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CORDEL HÍBRIDO,
CONTEMPORÂNEO E COSMOPOLITA
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Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, vol.4. n. 1, 2007.
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se fazer artístico, como se a poesia ti- "tradição". Afirmam que: “na forma co-
vesse um dono. Neste sentido, nossa iro- incidimos... nossa maior divergência
nia é dizer que nosso cordel é mal feito, está na temática, no conteúdo” (Salete
mal elaborado (ou seja, que para ser bem Maria. Santos, 2002:142).
elaborado tínhamos que respeitar a vi- Nesse sentido, a poética dos Maudi-
são de mundo dos poetas clássicos do tos enfatiza uma desconstrução dos ele-
cordel, presos a uma ideologia centrada mentos do imaginário sertanejo e uma
numa memória, num imaginário social não identificação direta à cultura popu-
(Santos, 2002:133). lar, como fazem explicitamente os poe-
Nesse sentido, afirmam-se mau, com tas vinculados à Academia de Cordelis-
"u", por serem considerados como ruins tas de Crato (Santos 2002:136). Os Mau-
literariamente, e não pessoas nefastas ou ditos fazem, assim, uma crítica ao que
maléficas. designam como "aspectos retrógrados"
A maioria dos poemas exerce consci- da cultura popular, questionando mes-
entemente a intertextualidade, usando mo a idéia de "resgate" uma vez que,
desde referências a poemas de Cecília em sua concepção, resgatar algo trans-
Meireles, como “a vida só é possível porta a idéia de "congelar um tempo an-
reinventada”, até as analogias e rimas cestral", o que, por sua vez, reforçaria
musicais como dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, os modelos de opressão e exploração do
ou mesmo influência de poemas capitalismo (extraído do texto que deu
concretistas (Santos, 2002:134). É nes- origem ao manifesto dos Mauditos em
se sentido que declaram que: "entramos Santos, 2002:143)
na obra porque ela está aberta e é plu- Para a Academia do Crato o cordel
ral" (Santos, 2002:141). deve manter seu vínculo temático e sua
Os Mauditos se constituem a partir forma estruturada o mais próximo de sua
da polêmica que gira em torno da pro- origem na cantoria1. Por isso defendem
blemática questão da "autenticidade". a rima, a métrica, a xilogravura, o fo-
Assim, o alter construído surge na re- lheto de 8 páginas, o uso de sextilhas,
presentação dos cordelistas da Academia setilhas e décimas. Enquanto os Corde-
do Crato em que se atualizam velhas listas do Crato reatualizam o imaginá-
antinomias: popular/erudito, velho/ rio do sertanejo, os Mauditos querem,
novo, autêntico/inautêntico, conserva- justamente, romper com esse "popular
dor/vanguarda. sertanejo" (Santos, 2002:143).
Os Mauditos afirmam que não que- No próprio texto de criação da Socie-
rem negar a contribuição dos cordelistas dade dos Mauditos, há referências ex-
tradicionais (Santos, 2002:136), o que plícitas à ética e à estética dos armoria-
significa dizer que compartilham mun- listas2 que, de algum modo, recupera-
dos, porém não desejam perpetuar o que ram o sertão como plano temático de
denominam por "tradição", criando, as- criação. Distanciam-se, portanto, dessa
sim, novas redes de significação dessa estética uma vez que criticam mesmo a
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ética dos armorialistas que se constrói (Romero, 1977; Melo, 2003:63). “O fim
por meio de uma "identificação" serta- dos folhetos”, uma profecia que nunca
neja (Santos, 2002:146). Buscam, com se cumpre, aparece freqüentemente as-
isso, uma nova ética a partir da estética sociado à idéia de "progresso" e "mo-
ou uma "estética da nova ética" que, jus- dernidade", um imaginário romântico
tamente, procura romper com o sobre a cultura popular que vê os folhe-
"positivismo" e com as "idéias moder- tos e sua poética enquanto produtos ar-
nistas" de "tradição" e "autenticidade". tesanais que se transformariam no en-
A Academia de Cordelistas do Crato contro com o mundo moderno. Parece
quer "resgatar o cordel em sua expres- que desde Herder uma visão romântica
são mais autêntica" (William de Brito, sobre o que é o popular preconiza uma
presidente da Academia, em Santos, perspectiva de seu fim. Assim, a "des-
2002:115). Fundada em 1990 por inici- coberta do popular" e sua conseqüente
ativa de Eloi Teles, conhecido radialista valorização parecem ser, ao mesmo tem-
da região e grande admirador da poesia po, decretar seu desaparecimento. Sur-
popular, publica em 10 anos de existên- ge, portanto, "o popular" enquanto ima-
cia 254 cordéis. Os 12 acadêmicos que gem idealizada, do que seria "bom", "na-
ocuparam as primeiras 12 cadeiras à tural" em oposição a um ideal clássico.
época de sua criação eram poetas que já Se a poesia popular pode, nessa pers-
haviam publicado cordel ou violeiros e pectiva, ser considerada uma obra “anô-
cantadores. nima do homem natural, irmão históri-
co do bom selvagem: ela é
"naturpoesia"” (Debs, s/d:2) Desse
Nem erudito, nem popular: o modo, as freqüentes "descobertas" do
cordel como tradutor de cordel enquanto forma autêntica da ex-
pressão popular sempre predizem sua
mundos extinção. Há certa concepção que asso-
Os modernistas, quando deslocam a cia o declínio do cordel ao apogeu da
questão da formação do Brasil da modernidade no sertão. Uma visão, de
temática da raça para a da cultura, ins- certo modo, compartilhada pelos acadê-
tituem novo modo de construção de uma micos e pelos nativos, encontrada em
nação que leva em conta o chamado textos universitários e também na fala
"universo do popular" na reflexão sobre de um taxista de Fortaleza, quando eu
as origens do Brasil (Cf. Veloso e Ma- realizava trabalho de campo na região
deira, 1999:91). em maio de 2005:
Em 1880, Sílvio Romero previa já o Hoje em fortaleza não tem mais
declínio do cordel3 mesmo não tendo quase cordel, pode se encontrar
conhecido seu apogeu. O estudioso pro- em lugares mais turísticos os fo-
fetizava, à época, o fim dos folhetos a lhetos para vender... A moderni-
partir do advento do sucesso dos jornais dade acabou com a literatura do
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previsíveis, uma vez que na relação de poeta fala ou escreve para um público
produção e apropriação dos bens cultu- determinado e isso o deixa "dependente
rais cruzam-se distintas formais cultu- sobretudo do gosto popular" como se
rais. Transpondo essas questões para o produzisse para um público consumidor
universo do cordel, percebe-se que com de gente humilde. Assim, o “... poeta
suas múltiplas influências o cordel ao deverá fazer o que a "classe humilde", a
mesmo tempo se influencia do "sertão" "classe plebe", o povo quer. Ele, portan-
e de seus temas assim como influencia to, não é agora o pobre dotado do dom
apropriações eruditas do chamado "mun- de ver o mistério da natureza, e sim o
do popular", como por exemplo os fil- escritor que "faz o que o povo quer, não
mes de Glauber Rocha, gerando, assim, o que povo gosta"”(Almeida, 1979:128).
um universo novo de apropriações esté- Parece que essas reflexões estão funda-
tico-político-culturais bastante comple- das na idéia de que há uma necessária
xo para ser simplesmente classificado a construção de uma cultura compartilha-
partir da antinomia popular/erudito. Por da entre o poeta e seu público, a afirma-
isso é necessário estudar as práticas e as ção de uma identidade comum, de luga-
representações sobre o fenômeno cultu- res comuns, que constroem, desse modo,
ral em estudo, percebendo como as di- as "imagens do Nordeste" associadas ao
versas influências se cruzam a partir das universo do cordel.
múltiplas formas de apropriação cultu- A própria forma do folheto enquanto
ral. Significa dizer que se faz necessá- objeto possibilita sua condição errante.
rio prestar atenção às diversas relações Do mesmo modo que as histórias mu-
entre os vários campos intelectuais que dam de autor, os folhetos circulam, são
estão articulados em um determinado perdidos e recuperados, o que aponta
momento na produção e recepção dos para um aspecto importante na literatu-
chamados bens culturais (Chartier, ra de folhetos: o não controle de sua re-
1990:52). cepção e suas inúmeras apropriações
Assim, “perceber a produção como nesses 110 anos de história desde a sua
ato definidor das práticas culturais reti- primeira aparição na forma de publica-
ra a liberdade inerente ao "ato de ler", ção (Proença, 1977:20-21).
amordaçando o leitor em um silêncio que Essa "pequena indústria cultural"
invade a mais profunda esfera do seu ser: enfatiza, assim, seu lado "pop" no sen-
o espaço de pensar” (Lima, 2003:63). tido que se constitui de muitos emprés-
Essa reflexão expressa uma observação timos e se inspira em fontes heterogê-
de Chartier (1990:234) sobre as práti- neas (Stinghen, 2000:40). A Tipografia
cas de apropriação e seus usos, o que, São José, de Juazeiro do Norte, por
por sua vez, reflete a distância entre as exemplo, na década de 1940, chegou a
normas e os discursos e aqueles que dele imprimir 12.000 folhetos por dia (Melo,
se apropriam. 2003). Esse fenômeno “expressa com
Almeida (1979:86) observa que o propriedade o caráter comercial dessa
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produção, que faz do folheto um bem Mais de 1200 anos após a Bata-
simbólico material cujos versos passam lha de Ronceslaves, travada em
a ter a fixidez do documento (do texto- Espanha em 15 de agosto de 778,
monumento) e a propriedade do dono, os Pares de França permanecem
como modelos de valentia nos
além de se submeterem, do ponto de vis-
versos da literatura de cordel
ta temático e formal, ao crivo do consu-
(Kunz, 2001:73).
midor” (Stinghen, 2000:32).
O apogeu do cordel está diretamente Em Juazeiro do Norte, “podemos en-
relacionado a sua capacidade de venda. contrar Carlos Magno, o imperador sun-
Conta-se, por exemplo, que, em apenas tuoso do Reisado de José Matias da Sil-
três meses, um folheteiro no Piauí ven- va. No decorrer deste folguedo, que se
deu 10.000 exemplares de um único fo- apresenta como uma dança dramática,
lheto que tratava da morte de Getúlio não são as vozes que travam o duelo,
Vargas; um agente de fortaleza comprou mas os corpos que mimam o combate
de uma só vez 50.000 folhetos do poeta ancestral, seguindo uma coreografia tra-
Joaquim Batista de Sena; o vendedor de dicional. A coroa do Imperador, de es-
folhetos Antonio "Sola Crua" vendeu na pelhos e miçangas, reflete a luz do sol.
Praça do Ferreira, em Fortaleza, em pou- A espada rasga a tela do tempo. Mouro
cas horas, 300 exemplares do cordel "A e cristão surgem do passado, e a lem-
Louca do Jardim". Durante as festivida- brança de outras lutas, mais próximas,
des religiosas de Juazeiro, até a década não menos terríveis, percorre as memó-
de 1970, existiam inúmeros folheteiros rias e as ruas da cidade” (Kunz, 2001:
vendendo suas publicações durante as 75).
procissões e romarias. Lessa (1973:21) O cordel, nesse contexto, pode pare-
nos informa que houve época em que a cer um "excesso de criatividade" que
folhetaria de João Martins de Athayde reinventa novos mundos ao tentar tra-
tinha em estoque de mais de 800 mil duzi-los para a poética dos folhetos.
exemplares. Proença (1977:105-109) chama atenção
Proença (1977:58) destaca que o po- para as contradições próprias do gênero
eta de cordel sempre ocupou esse papel cordel: ecletismo, errância, não-confor-
de tradutor de mundos literários outros mismo, uma não-ideologia. Nesse sen-
para o seu universo; assim se passou com tido, o cordel está o tempo todo constru-
os romances O Guarani, Iracema, O indo e desconstruindo personagens, ce-
corcunda de Notredame, Amor de per- nários, situações. Esses aspectos de seu
dição, Romeu e Julieta, e com filmes de gênero vão de encontro à idéia de que o
cinemas, novelas da tevê, notícias de cordel é “simples”, “maniqueísta”, “con-
jornal 4 . Assim, há uma hibridização servador” e “tradicional”. Nessa mesma
constitutiva mesma do universo poético chave, pode-se dizer que a literatura de
de criação do cordel (Proença, 1977:40- cordel não pode ser vista como monolí-
41). Desse modo: tica, "conservadora", alienada ou revo-
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