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Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, vol.4. n. 1, 2007.

CORDEL HÍBRIDO,
CONTEMPORÂNEO E COSMOPOLITA

Marco Antonio Gonçalves

O artigo discute o significado do fazer cordel hoje na região


do Cariri cearense. A partir de dois grupos de cordelistas,
aparentemente distintos, observa-se o contraste de suas
representações sobre o “Nordeste”: a Academia de Cordelis-
tas de Crato e a Sociedade de Cordelistas Mauditos. Embora
a produção do cordel se dê no interior dos grupos distintos,
os poetas têm um universo poético compartilhado, o que lhes
assegura uma interlocução e comunicação. Os "acadêmicos"
assumem um papel “tradicionalista”, constituem-se em de-
fensores de um cordel autêntico, o que gera uma determinada
concepção de Nordeste. Os “mauditos” contrastam com os
“acadêmicos” produzindo uma crítica não propriamente ao
“estilo” cordel, mas a determinadas temáticas e representa-
ções sobre o Nordeste, jogando luz sobre outras possibilida-
des de criação de uma imagem da região, apoiada na con-
temporaneidade e na universalização dos valores que ali se
fazem presentes hoje.

Palavras-chave: CORDEL, NORDESTE, HIBRIDIZAÇÃO.

GONÇALVES, Marco Antonio. Cordel híbrido,


contemporâneo e cosmopolita. Textos escolhi-
dos de cultura e arte populares, Rio de Janeiro,
v. 4, n. 1, p. 21-38, 2007.

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Experiência cultural ou certa- tilo" privilegiado de reflexão sobre uma


mente toda forma cultural é ra- imagem do Nordeste veiculado pelos
dicalmente, quintessencialmente próprios nordestinos. Nesse contexto, o
híbrida e se a prática do ocidente cordel entendido em sua manifestação
tem sido desde Immanuel Kant a
poética produz um sentimento e uma
de isolar domínios estéticos e cul-
imagem do que seria o Nordeste, e, mes-
turais do mundo vivido, é chega-
da a hora de rejuntá-los. mo que não se trate explicitamente do
nordestino, encarna um "estilo nordes-
Edward W. Said (1993:58) tino" de reflexão sobre o mundo ou mes-
mo de criação de um mundo que quer
O cordel contemporâneo é um fenô- ser "essencialmente" nordestino. Assim,
meno de criação cultural realizado por este estudo pretende dar conta do que
múltiplos setores e grupos. Embora o seria propriamente sua constelação de
público alvo tenha mudado, hoje identi- figuras e seus processos de significação
ficado mais com a classe média, os tu- (Bosi, 2000:9). Nesse sentido, não pode
ristas e os pesquisadores, o cordel ainda haver separação entre forma e substân-
adquire formas variadas de atualização, cia no processo de significação da poé-
seja em Academias de Cordel, em Ban- tica do cordel, uma vez que a forma faz
das de Cordel ao estilo “Bandas de parte mesmo de um "estilo" que se apóia
Rock” como Cordel do Fogo Encantado na redundância, em um padrão, algo
de Pernambuco ou Dr. Raiz e previsível para que possa ser a razão da
Zabumbeiros de Juazeiro do Norte, em comunicação enquanto forma estrutura-
encontros da terceira idade, em romari- da de significação (Bateson, 1973:31,
as do Padre Cícero, em projetos do Sesc, 194). É por isso que quando poetas
em cantorias, em cds e na internet. Hoje enfatizam que o "ser do cordel" é sua
trata-se de um público letrado, que lê o rima, sua métrica, o cuidado na versifi-
cordel, e que contrasta com o público cação, querem sublinhar que o comum
do passado, considerado analfabeto, que à variedade dos temas, à heterogeneida-
apenas memorizava para uma récita ou de dos conteúdos e às infinitas possibi-
que aprendia a ler com o cordel. lidades de se construir interpretações e
pontos de vista é a "forma" que se tra-
Na região do Cariri cearense a pro- duz mesmo em essência de um "saber
dução do cordel está relacionada a três fazer cordel" que independe do tema
esferas mais institucionais: Academia de abordado.
Cordelistas de Crato, Projeto Sesc Cor- A importância da métrica e ao mes-
del – novos talentos e A Sociedade dos mo tempo sua associação à "cantoria"
Cordelistas Mauditos. imprimem no cordel esse lado "primiti-
O que é importante salientar é que o vo" e “clássico" da poesia: um sentimen-
“verso”, a “rima”, a forma como o fluxo to agregado à forma e cujo conteúdo-
sonoro é proferido são ainda hoje o "es- imagem expresso é menos um tema es-

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pecífico e mais um "estilo" de compre- pular, instituindo, assim, uma espécie de


ender e construir pontos de vista sobre o "anti-nordeste" em que se enfatiza a con-
mundo, as coisas e as relações. O cordel tra-cultura, a homossexualidade, a mu-
evoca, por assim dizer, uma cosmologia lher, a intertextualidade, e construindo
por meio de seu verso. um mundo em que não se é nem erudito
Apresentaremos de forma sucinta e nem popular, mas apenas um mundo
dois grupos aparentemente distintos que de "linguagens" pós-modernas sertane-
pelo contraste de suas representações jas, como enfatiza o manifesto que cria
evocam imagens díspares de represen- a "Sociedade dos Cordelistas Mauditos".
tação de "Nordeste": a Academia de Cor- A partir destes dois grupos, herdei-
delistas de Crato e a Sociedade de Cor- ros de um mesmo universo, percebem-
delistas Mauditos. Embora a produção se os sentimentos/imagens construídos
do cordel se dê no interior de grupos sobre o Nordeste e o sertão a partir do
distintos, os poetas têm um universo "estilo"cordel. Estilo, no sentido de que
poético compartilhado, o que lhes asse- o cordel encarna um modo muito pecu-
gura interlocução e comunicação. Os liar de elaborar um pensamento, em que
"acadêmicos" assumem um papel "tra- a forma do verso, sua metrificação, é
dicionalista", constituem-se em defen- fundamental para expressar uma condi-
sores de um cordel autêntico, o que re- ção do ser e do estar no mundo. A forma
sulta numa determinada concepção de versificada elabora e reflete o cotidiano
Nordeste. Os "mauditos" contrastam enquanto experienciação poética, provo-
com os primeiros produzindo uma críti- cando, assim, acontecimentos que inci-
ca não propriamente ao "estilo" cordel, tam a criação e elaboração de relações
mas a determinadas temáticas e repre- sociais, "pelejas", contrastes de pontos
sentações sobre o Nordeste, jogando luz de vista, posições éticas e políticas.
sobre outras possibilidades de criação de Revive-se na forma métrica o vivido no
uma imagem da região, apoiada na con- mundo ao mesmo tempo em que se de-
temporaneidade e na universalização dos clara um ponto de vista sobre esse mun-
valores que ali se fazem presentes hoje. do. Perspectivas do mundo que presen-
Para os Acadêmicos Cordelistas do tificam sentimentos/imagens que se fi-
Crato, o Nordeste é essencialmente o da xam pela forma versificada na memó-
cultura popular, do folclore, das mani- ria. Assim, o cordel enquanto "estilo" é
festações culturais do "matuto" e do cam- uma forma de evocar um imaginário
po. De outro lado, os Mauditos querem sertanejo mesmo que este não seja ima-
evocar uma pertença a um mundo urba- ginado por sertanejos; "estilo" que pro-
no, do tecno-forró, da cibernética, do duz e reproduz representações do Nor-
trash, o que desestabiliza a partir da deste e sobretudo do sertão.
mesma linguagem e estilo – o cordel –
uma imagem de um Nordeste rural, ca-
tólico, do cangaço, da religiosidade po-

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A Sociedade dos Cordelistas do ponto de vista estético-narrativo e do


Mauditos e a Academia de ponto de vista político; os Mauditos pre-
tendiam denunciar "costumes populares
Cordelistas do Crato reacionários". Composto por 12 poetas
Pra fazer verso de tema/ Padre (do mesmo modo que se iniciou a Aca-
Ciço, Lampião.../ Cordel bom é demia de Cordelistas do Crato), o grupo
sobre seca.../ Arraigado às tradi- dos Mauditos publica seus primeiros 10
ções/ Igreja, Pátria e Família/ folhetos (“Agora são outros 500”) por
Apoderei-me da forma/ De rimar ocasião da celebração dos 500 anos do
tendo em mente/ De ser um con- Descobrimento, que, segundo eles, "não
servador /No versar obediente/ tem nada para comemorar". As imagens
Pra manter aí o traço/ Literário dessa poética são evocadas a partir de
do que faço/ Sou maudito coeren-
trocadilhos, misturas de palavras cultas
te/ Eu acendo um estopim/ Pra
detonar o apagão/ Cultural insti- e tradicionais que privilegiam uma es-
tuído/ Pelo governo entregão/ tética underground (Santos, 2002:129).
Sou urbano e visceral/ Mostro a Santos (2002:130) destaca que Hamu-
obra, meto o pau/ Sou vetor da rabi Batista, filho do famoso cordelista
maudição”. de Juazeiro, Abraão Batista, foi o pre-
cursor e o agenciador da Sociedade dos
Helio Ferraz, 2001. “Os dez
mandamentos do bom Mauditos. Na verdade, os Mauditos re-
cordelista”. presentavam um cordel que nascia de
uma vanguarda universitária de Juazei-
Folclore no meu sertão/ é o ca- ro, provenientes da URCA, Universida-
bra chegar em casa/ almoçar
de Regional do Cariri. O Jornal O Povo
angu de milho/com carne assada
de Fortaleza os compara ao movimento
na brasa/ depois se deitar na rede/
dormir tanto que se atrasa/Esse modernista de 1922, quando afirma que
aí foi o folclore/ Do sertão de “a antropofagia chega ao cordel”. En-
antigamente/ Eu sei que o sertão tretanto, Santos (2002:132) enfatiza que
de hoje/Está muito diferente/ Mas as preocupações dos Mauditos vão mais
a história é preciso/ Ser contada na direção dos pós-modernistas do que
a nossa gente dos modernistas: embora digam que "co-
Luciano Carneiro, 2001. “O mem o imaginário" reacionário, a for-
folclore no sertão” ma de desconstrução assumida nos cor-
déis é uma inspiração derivada da esté-
A Sociedade dos Cordelistas Maudi- tica pós-moderna.
tos teve sua criação no "Dia da menti- A palavra Maudito é uma ironia aos
ra", 1º de abril de 2000, em Juazeiro do professores acadêmicos e puristas que
Norte. Seu manifesto de criação elegeram um tipo específico de pessoa/
enfatizava a proposta de construir uma poeta para fazer o cordel, que seria por
poética a partir da “intertextualidade” excelência o representante legítimo des-

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se fazer artístico, como se a poesia ti- "tradição". Afirmam que: “na forma co-
vesse um dono. Neste sentido, nossa iro- incidimos... nossa maior divergência
nia é dizer que nosso cordel é mal feito, está na temática, no conteúdo” (Salete
mal elaborado (ou seja, que para ser bem Maria. Santos, 2002:142).
elaborado tínhamos que respeitar a vi- Nesse sentido, a poética dos Maudi-
são de mundo dos poetas clássicos do tos enfatiza uma desconstrução dos ele-
cordel, presos a uma ideologia centrada mentos do imaginário sertanejo e uma
numa memória, num imaginário social não identificação direta à cultura popu-
(Santos, 2002:133). lar, como fazem explicitamente os poe-
Nesse sentido, afirmam-se mau, com tas vinculados à Academia de Cordelis-
"u", por serem considerados como ruins tas de Crato (Santos 2002:136). Os Mau-
literariamente, e não pessoas nefastas ou ditos fazem, assim, uma crítica ao que
maléficas. designam como "aspectos retrógrados"
A maioria dos poemas exerce consci- da cultura popular, questionando mes-
entemente a intertextualidade, usando mo a idéia de "resgate" uma vez que,
desde referências a poemas de Cecília em sua concepção, resgatar algo trans-
Meireles, como “a vida só é possível porta a idéia de "congelar um tempo an-
reinventada”, até as analogias e rimas cestral", o que, por sua vez, reforçaria
musicais como dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, os modelos de opressão e exploração do
ou mesmo influência de poemas capitalismo (extraído do texto que deu
concretistas (Santos, 2002:134). É nes- origem ao manifesto dos Mauditos em
se sentido que declaram que: "entramos Santos, 2002:143)
na obra porque ela está aberta e é plu- Para a Academia do Crato o cordel
ral" (Santos, 2002:141). deve manter seu vínculo temático e sua
Os Mauditos se constituem a partir forma estruturada o mais próximo de sua
da polêmica que gira em torno da pro- origem na cantoria1. Por isso defendem
blemática questão da "autenticidade". a rima, a métrica, a xilogravura, o fo-
Assim, o alter construído surge na re- lheto de 8 páginas, o uso de sextilhas,
presentação dos cordelistas da Academia setilhas e décimas. Enquanto os Corde-
do Crato em que se atualizam velhas listas do Crato reatualizam o imaginá-
antinomias: popular/erudito, velho/ rio do sertanejo, os Mauditos querem,
novo, autêntico/inautêntico, conserva- justamente, romper com esse "popular
dor/vanguarda. sertanejo" (Santos, 2002:143).
Os Mauditos afirmam que não que- No próprio texto de criação da Socie-
rem negar a contribuição dos cordelistas dade dos Mauditos, há referências ex-
tradicionais (Santos, 2002:136), o que plícitas à ética e à estética dos armoria-
significa dizer que compartilham mun- listas2 que, de algum modo, recupera-
dos, porém não desejam perpetuar o que ram o sertão como plano temático de
denominam por "tradição", criando, as- criação. Distanciam-se, portanto, dessa
sim, novas redes de significação dessa estética uma vez que criticam mesmo a

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ética dos armorialistas que se constrói (Romero, 1977; Melo, 2003:63). “O fim
por meio de uma "identificação" serta- dos folhetos”, uma profecia que nunca
neja (Santos, 2002:146). Buscam, com se cumpre, aparece freqüentemente as-
isso, uma nova ética a partir da estética sociado à idéia de "progresso" e "mo-
ou uma "estética da nova ética" que, jus- dernidade", um imaginário romântico
tamente, procura romper com o sobre a cultura popular que vê os folhe-
"positivismo" e com as "idéias moder- tos e sua poética enquanto produtos ar-
nistas" de "tradição" e "autenticidade". tesanais que se transformariam no en-
A Academia de Cordelistas do Crato contro com o mundo moderno. Parece
quer "resgatar o cordel em sua expres- que desde Herder uma visão romântica
são mais autêntica" (William de Brito, sobre o que é o popular preconiza uma
presidente da Academia, em Santos, perspectiva de seu fim. Assim, a "des-
2002:115). Fundada em 1990 por inici- coberta do popular" e sua conseqüente
ativa de Eloi Teles, conhecido radialista valorização parecem ser, ao mesmo tem-
da região e grande admirador da poesia po, decretar seu desaparecimento. Sur-
popular, publica em 10 anos de existên- ge, portanto, "o popular" enquanto ima-
cia 254 cordéis. Os 12 acadêmicos que gem idealizada, do que seria "bom", "na-
ocuparam as primeiras 12 cadeiras à tural" em oposição a um ideal clássico.
época de sua criação eram poetas que já Se a poesia popular pode, nessa pers-
haviam publicado cordel ou violeiros e pectiva, ser considerada uma obra “anô-
cantadores. nima do homem natural, irmão históri-
co do bom selvagem: ela é
"naturpoesia"” (Debs, s/d:2) Desse
Nem erudito, nem popular: o modo, as freqüentes "descobertas" do
cordel como tradutor de cordel enquanto forma autêntica da ex-
pressão popular sempre predizem sua
mundos extinção. Há certa concepção que asso-
Os modernistas, quando deslocam a cia o declínio do cordel ao apogeu da
questão da formação do Brasil da modernidade no sertão. Uma visão, de
temática da raça para a da cultura, ins- certo modo, compartilhada pelos acadê-
tituem novo modo de construção de uma micos e pelos nativos, encontrada em
nação que leva em conta o chamado textos universitários e também na fala
"universo do popular" na reflexão sobre de um taxista de Fortaleza, quando eu
as origens do Brasil (Cf. Veloso e Ma- realizava trabalho de campo na região
deira, 1999:91). em maio de 2005:
Em 1880, Sílvio Romero previa já o Hoje em fortaleza não tem mais
declínio do cordel3 mesmo não tendo quase cordel, pode se encontrar
conhecido seu apogeu. O estudioso pro- em lugares mais turísticos os fo-
fetizava, à época, o fim dos folhetos a lhetos para vender... A moderni-
partir do advento do sucesso dos jornais dade acabou com a literatura do

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cordel; a televisão, o rádio aca- lonialismo ao mesmo tempo em que esse


baram com a raiz, com as tradi- cinema de autor permitia "re-centrar" e
ções... Eu aprecio muito porque espetacularizar os elementos da chama-
venho do interior e sempre escu- da cultura popular, recuperando uma
to a rádio universitária, que é a
certa noção de "autenticidade". Da dé-
única que se preocupa com as
cada de 1960 até hoje as apropriações
raízes e tem programas de desa-
fios, de cantorias. do cordel são de certo modo reféns da
evocação de uma autenticidade da cul-
O taxista faz um contraste entre o
tura popular.
interior e Fortaleza, dizendo que em Ju-
A antropologia contemporânea tem se
azeiro, certamente, eu iria encontrar
ocupado sobremaneira com a problemá-
"milhões" de folhetos. Embora seja exa-
tica do inautêntico, produzindo assim
gerado o número de folhetos que o
um estranho paradoxo: apenas a partir
taxista menciona e sua visibilidade, o
de sua denúncia enquanto objeto inau-
cordel de certo não entrou em extinção
têntico é que se pode elegê-lo objeto pas-
como se previa, mas sem dúvida se trans-
sível e justificado de investigação, im-
formou ao longo dos últimos 40 anos.
pregnando-o, assim, de "autenticidade"
Era idéia corrente no início dos anos 60,
não mais nativa, mas sim antropológi-
tanto entre os leitores de cordel quanto
ca. Pensamos que, no lugar de tratar das
entre os pesquisadores, que esse "esti-
autenticações do inautêntico, o que pa-
lo" de versejar o mundo estava ameaça-
rece mais produtivo é situar-se na esfe-
do de extinção. A entrada do cordel no
ra de quem realiza o que é autêntico/
Cinema Novo pelos filmes de Glauber
inautêntico, percebendo o sentido que
Rocha (Deus e o Diabo na Terra do Sol,
este par conceitual ganha para seus rea-
1963, e O Dragão da Maldade contra o
lizadores, isto é, o importante é explo-
Santo Guerreiro, 1969) (Debs, 1997)
rar o ponto de vista dos executantes, a
marcou uma determinada apropriação
perspectiva de quem faz e de quem rea-
do gênero enquanto algo autêntico da
liza o chamado "autêntico" ou "inautên-
cultura popular; o Cinema Novo trans-
tico". Não se trata, portanto, de acentu-
formava esses sentimentos/imagens do
armos "a invenção da cultura", mas seu
Nordeste evocados pelo cordel em espe-
aspecto criativo; não enfatizar "a inven-
táculos épicos de cultura singular e pró-
ção do Nordeste", mas a criação de um
pria e, naquele contexto, exaltava uma
Nordeste, os usos contextuais, signifi-
cultura popular no sentido de se contra-
cativos e particulares de sua criação.
por a uma idéia de colonialismo que
Patativa do Assaré, ele mesmo, pare-
pressupunha uma ausência de tradição
ce enfatizar o aspecto "romântico" da
cultural nos países do chamado Tercei-
vocação da poesia popular ao construir
ro Mundo. Essa construção do Nordes-
um sistema de negações sobre si próprio
te, via cordel, servia para destruir o mito
quando destaca em sua poesia a imagem
do antitradicionalismo evocado pelo co-
do homem rural pobre, matuto, ignoran-

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te (Debs, s/d:8), engendrando, assim, lizado, como a Sociedades dos Corde-


uma retórica que compõe uma identida- listas Mauditos de Juazeiro, Patativa do
de a partir de uma não-identidade. Uma Assaré é reverenciado com uma sauda-
construção de si com atributos negati- ção que conclui o manifesto de criação
vos como o do "matuto" que se positivam desse grupo: “Salve Patativa do Assaré
quando postos em relação a uma deter- e Oswaldo de Andrade”.
minada visão do Sudeste sobre o mundo Carvalho (2002:65) chama atenção
rural, e especialmente o Nordeste. Des- para uma questão que parece ser central
se modo, Patativa constrói "um não-lu- para a compreensão do cordel, qual seja,
gar" que ao mesmo tempo o autoriza a de que o popular, o erudito e o fenôme-
ocupar um lugar, sempre a partir de uma no de massa se interpenetram no gêne-
relação com um outro imaginado e com ro cordel demonstrando que as
a própria imagem imaginada que esse dicotomias como popular e erudito não
outro tem sobre o Nordeste. são úteis para se pensar esse fenômeno
Albuquerque (1999) sublinha em seu de uma perspectiva mais abrangente. O
trabalho essa relação dialética entre ima- autor (2002:42) nos ajuda, também, a
ginários que constrói o que designa por situar o cordel na construção imagética
"não-lugar" que passa a constituir uma do Nordeste a partir da análise do cor-
identidade nordestina em relação a ou- del na propaganda. A evocação do po-
tro "não-lugar" que seria o sul. Assim, pular via propaganda ajudou a construir
Patativa do Assaré encarna, de certo uma imagem do Ceará que apela para
modo, enquanto metáfora, a própria in- um forte regionalismo mesmo antes do
venção de um Nordeste por meio de sua que se poderia considerar o "boom" da
poesia e de sua vida. Em "Canta lá que cultura popular associada ao fenômeno
canto cá", a dicotomia entre sul e nor- da "globalização". Nessa reificação do
deste sobredetermina o poema, fazendo imaginário de uma região, até mesmo o
com que Patativa se construa nessa in- Natal foi regionalizado, tornando-se um
terseção entre as duas imagens, criando "natal cearense" em que a árvore-sím-
em sua poética esses "não-lugares", os bolo é o cajueiro, e o Papai Noel entra
imaginários sobre o sul e o nordeste. pelo quintal (p. 45). Nesse contexto, o
Patativa, torna-se poeta e personagem folheto, o cordel, para Carvalho (p. 60),
ao fazer a conexão, a relação por exce- representava a permanência e a atuali-
lência entre esses imaginários, e talvez dade de uma tradição. Os folhetos, as-
seja por isso que tanto no Nordeste quan- sim, continuam a produzir um imagi-
to no "sul" sua poesia é um ícone da ima- nário nordestino e são, nesse novo con-
gem do matuto, de um Nordeste que se texto da propaganda, usados enquanto
constrói na relação com outros imagi- símbolos eles mesmos dessa construção
nários regionais. Mesmo para aqueles de um imaginário regionalizado.
que criticam o imaginário nordestino Uma determinada leitura sobre o uni-
construído sobre um mundo rural idea- verso do cordel enfatiza que seu conteú-

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do poético se refere a enredos simples, polita-contemporâneo. O que se vê, em


maniqueístas, com tipos sociais defini- realidade, é uma "nova" investida do
dos e histórias que sempre terminam cordel ou, simplesmente, sua continui-
com a vitória do bem sobre o mal. Esse dade: na propaganda (Carvalho, 2002),
tipo de classificação parece se apoiar em nos livros (Editoras Hedra, Tupinan-
um bias que pensa a oralidade enquan- quim), nas academias de Cordel e suas
to simplicidade, associando-a ao popu- publicações. Em 2001 uma grande ex-
lar em contraposição ao escrito e ao eru- posição realizada em São Paulo celebrou
dito. Trata-se do mesmo problema que os 100 anos de cordel querendo também
se observa nas diversas tentativas de enfatizar seu aspecto contemporâneo. Os
classificação desse gênero que sempre Cordelistas Mauditos participaram da
implicam uma pré-concepção sobre po- exposição como a expressão da forma
ética e narração que partem de pressu- mais contemporânea que o gênero assu-
posições, por exemplo, de que um enre- me. Ao mesmo tempo em que se obser-
do deve ter começo, meio e fim, e que va um movimento de recriação do cor-
sempre evocam uma moral, um saber del e suas expressões mais contemporâ-
cultural, ou que encarnam uma função neas, ele próprio aparece como fixando
social. Entretanto, a poética de um fo- a imagem de um Nordeste enquanto “um
lheto pode facilmente subverter essas lugar do arcaico, da imobilidade, do fol-
regras canônicas do que seria a "boa li- clore, dos grandes coronéis” (Galvão,
teratura", engendrando outras formas de 2001:18). O que se percebe, portanto, é
apreensão desse universo poético. que o ressurgimento do cordel ou do
A relação entre o que é chamado po- popular no contexto do novo milênio é
pular ou erudito resta sempre problemá- justamente a possibilidade de constru-
tica uma vez que não parecem ser con- ção de um discurso híbrido, que se asso-
ceitos que se apóiem em essências que cia aos movimentos de vanguarda que
os possam definir de modo inequívoco. não necessariamente pregam "pureza"
O popular, no momento mesmo em que ou autenticidade (Galvão, 2001:18).
é tomado como popular para servir de O que me parece central na argu-
inspiração a outros movimentos, não é mentação de Galvão (2001:26) sobre
mais do que uma imagem, constructo a literatura de folhetos é o fato de pro-
do que seria o popular, como foi o caso curar relativizar a relação que se pode
de suas recriações feitas pelo Quinteto estabelecer entre classes sociais e pro-
Armorial, o Quinteto Violado, o Balé duções culturais. Assim, não se deve
Popular do Recife, a Banda de Pífanos tomar um "texto popular" como refle-
(cf. Galvão, 2001:18). xo de uma suposta "mentalidade po-
A idéia do desaparecimento do cor- pular", uma vez que os efeitos espe-
del parece ser produto do próprio pen- rados pelo autor ou editor não são ne-
samento modernista de filiação român- cessariamente coincidentes com as
tica que opõe popular ao urbano-cosmo- apropriações feitas pelos leitores nas

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suas "práticas concretas de leituras" lação entre o universo popular e o meio


(Galvão, 2001:26; 1999:19). intelectual. Assim, intelectuais como
O que parece ser interessante na re- Amadeu Amaral, Capistrano de Abreu,
cepção do cordel e, propriamente, o que José de Alencar e Sílvio Romero inici-
aponta para uma imprevisibilidade na am estudos sobre a poesia popular e as
recepção e significação dos folhetos, é cantorias como pela primeira vez per-
que se em seu começo, entre os anos tencentes à literatura brasileira, uma
1900-1920, era um objeto da cultura le- maneira de pensar o nacional por meio
trada, sendo adquirido em livrarias, hoje do local e do popular (Melo, 2003:61-
em dia, o cordel se reinstala nas livrari- 62).
as e se adere, novamente, à chamada Francisco das Chagas Batista foi um
cultura letrada (Galvão, 2001:45). poeta que publicou seus próprios poe-
Galvão (2001:45), ao invés de classi- mas. Em 1929 produz o primeiro estu-
ficar os folhetos como "popular", empre- do sobre essa temática intitulado
ga o termo "impressos de larga circula- Cantadores e poetas populares, editado
ção" o que parece bastante adequado à por sua própria editora, a Popular Edi-
compreensão da literatura de folhetos, tora (Melo, 2003:71). Portanto, uma das
uma vez que procura escapar de uma primeiras reflexões sobre a poesia po-
determinada visão do que seja o "popu- pular é produzida por um poeta que se
lar". situa no interior desse campo de atua-
A visão de Proença (1977:42), refor- ção e de significação. O que inaugura
çada por Galvão (2001:82), leva a crer uma reflexão do poeta sobre sua obra
que a criatividade estaria ausente do como forma de estabelecer uma comu-
cordel, no sentido de que quanto mais nicação com os intelectuais e o meio
tradicional, quanto mais clichê, quanto acadêmico.
menos original, quanto mais chavões o Chartier (1990:56) chama atenção
cordel utilizar torna-se mais popular. O para a dificuldade em se classificar o que
cordel pode ser lido pelos próprios lite- é popular ou erudito, uma vez que essa
ratos como não tendo nenhum valor li- distinção produz apenas antinomias que
terário, o que aliás aparece registrado não ajudam a compreender o fenômeno
em alguns dicionários, mas pode, tam- propriamente estudado. Foi o caso da
bém, ser lidos na chave de que são exu- Bibliotèque Bleu, analisado por Char-
berantes, com rebuscados procedimen- tier, que, ao mapear as representações
tos expressivos e retóricos (Correia, dos editores e dos leitores dos chama-
1971). dos "livrinhos" considerados populares,
No momento áureo das cantorias, percebe que estes não se restringiam
quando ainda era embrionária a indús- apenas a um público popular. Chartier,
tria dos folhetos, surgem os primeiros assim, nos ensina que as apropriações
estudos sobre a poesia popular e uma dos produtos culturais são bastante com-
primeira, nunca mais interrompida, re- plexas e, de certo modo, não totalmente

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previsíveis, uma vez que na relação de poeta fala ou escreve para um público
produção e apropriação dos bens cultu- determinado e isso o deixa "dependente
rais cruzam-se distintas formais cultu- sobretudo do gosto popular" como se
rais. Transpondo essas questões para o produzisse para um público consumidor
universo do cordel, percebe-se que com de gente humilde. Assim, o “... poeta
suas múltiplas influências o cordel ao deverá fazer o que a "classe humilde", a
mesmo tempo se influencia do "sertão" "classe plebe", o povo quer. Ele, portan-
e de seus temas assim como influencia to, não é agora o pobre dotado do dom
apropriações eruditas do chamado "mun- de ver o mistério da natureza, e sim o
do popular", como por exemplo os fil- escritor que "faz o que o povo quer, não
mes de Glauber Rocha, gerando, assim, o que povo gosta"”(Almeida, 1979:128).
um universo novo de apropriações esté- Parece que essas reflexões estão funda-
tico-político-culturais bastante comple- das na idéia de que há uma necessária
xo para ser simplesmente classificado a construção de uma cultura compartilha-
partir da antinomia popular/erudito. Por da entre o poeta e seu público, a afirma-
isso é necessário estudar as práticas e as ção de uma identidade comum, de luga-
representações sobre o fenômeno cultu- res comuns, que constroem, desse modo,
ral em estudo, percebendo como as di- as "imagens do Nordeste" associadas ao
versas influências se cruzam a partir das universo do cordel.
múltiplas formas de apropriação cultu- A própria forma do folheto enquanto
ral. Significa dizer que se faz necessá- objeto possibilita sua condição errante.
rio prestar atenção às diversas relações Do mesmo modo que as histórias mu-
entre os vários campos intelectuais que dam de autor, os folhetos circulam, são
estão articulados em um determinado perdidos e recuperados, o que aponta
momento na produção e recepção dos para um aspecto importante na literatu-
chamados bens culturais (Chartier, ra de folhetos: o não controle de sua re-
1990:52). cepção e suas inúmeras apropriações
Assim, “perceber a produção como nesses 110 anos de história desde a sua
ato definidor das práticas culturais reti- primeira aparição na forma de publica-
ra a liberdade inerente ao "ato de ler", ção (Proença, 1977:20-21).
amordaçando o leitor em um silêncio que Essa "pequena indústria cultural"
invade a mais profunda esfera do seu ser: enfatiza, assim, seu lado "pop" no sen-
o espaço de pensar” (Lima, 2003:63). tido que se constitui de muitos emprés-
Essa reflexão expressa uma observação timos e se inspira em fontes heterogê-
de Chartier (1990:234) sobre as práti- neas (Stinghen, 2000:40). A Tipografia
cas de apropriação e seus usos, o que, São José, de Juazeiro do Norte, por
por sua vez, reflete a distância entre as exemplo, na década de 1940, chegou a
normas e os discursos e aqueles que dele imprimir 12.000 folhetos por dia (Melo,
se apropriam. 2003). Esse fenômeno “expressa com
Almeida (1979:86) observa que o propriedade o caráter comercial dessa

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produção, que faz do folheto um bem Mais de 1200 anos após a Bata-
simbólico material cujos versos passam lha de Ronceslaves, travada em
a ter a fixidez do documento (do texto- Espanha em 15 de agosto de 778,
monumento) e a propriedade do dono, os Pares de França permanecem
como modelos de valentia nos
além de se submeterem, do ponto de vis-
versos da literatura de cordel
ta temático e formal, ao crivo do consu-
(Kunz, 2001:73).
midor” (Stinghen, 2000:32).
O apogeu do cordel está diretamente Em Juazeiro do Norte, “podemos en-
relacionado a sua capacidade de venda. contrar Carlos Magno, o imperador sun-
Conta-se, por exemplo, que, em apenas tuoso do Reisado de José Matias da Sil-
três meses, um folheteiro no Piauí ven- va. No decorrer deste folguedo, que se
deu 10.000 exemplares de um único fo- apresenta como uma dança dramática,
lheto que tratava da morte de Getúlio não são as vozes que travam o duelo,
Vargas; um agente de fortaleza comprou mas os corpos que mimam o combate
de uma só vez 50.000 folhetos do poeta ancestral, seguindo uma coreografia tra-
Joaquim Batista de Sena; o vendedor de dicional. A coroa do Imperador, de es-
folhetos Antonio "Sola Crua" vendeu na pelhos e miçangas, reflete a luz do sol.
Praça do Ferreira, em Fortaleza, em pou- A espada rasga a tela do tempo. Mouro
cas horas, 300 exemplares do cordel "A e cristão surgem do passado, e a lem-
Louca do Jardim". Durante as festivida- brança de outras lutas, mais próximas,
des religiosas de Juazeiro, até a década não menos terríveis, percorre as memó-
de 1970, existiam inúmeros folheteiros rias e as ruas da cidade” (Kunz, 2001:
vendendo suas publicações durante as 75).
procissões e romarias. Lessa (1973:21) O cordel, nesse contexto, pode pare-
nos informa que houve época em que a cer um "excesso de criatividade" que
folhetaria de João Martins de Athayde reinventa novos mundos ao tentar tra-
tinha em estoque de mais de 800 mil duzi-los para a poética dos folhetos.
exemplares. Proença (1977:105-109) chama atenção
Proença (1977:58) destaca que o po- para as contradições próprias do gênero
eta de cordel sempre ocupou esse papel cordel: ecletismo, errância, não-confor-
de tradutor de mundos literários outros mismo, uma não-ideologia. Nesse sen-
para o seu universo; assim se passou com tido, o cordel está o tempo todo constru-
os romances O Guarani, Iracema, O indo e desconstruindo personagens, ce-
corcunda de Notredame, Amor de per- nários, situações. Esses aspectos de seu
dição, Romeu e Julieta, e com filmes de gênero vão de encontro à idéia de que o
cinemas, novelas da tevê, notícias de cordel é “simples”, “maniqueísta”, “con-
jornal 4 . Assim, há uma hibridização servador” e “tradicional”. Nessa mesma
constitutiva mesma do universo poético chave, pode-se dizer que a literatura de
de criação do cordel (Proença, 1977:40- cordel não pode ser vista como monolí-
41). Desse modo: tica, "conservadora", alienada ou revo-

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lucionária; ela é, na verdade, multiface- reatualiza (...). O que nos folhe-


tada (Kunz, 2001:61). tos é anotado como anacronismo
O poeta parece ocupar esse papel de e, portanto, como marca de uma
mediador entre os mundos culturais, pois ruptura entre o real vivido e o
imaginário é, na verdade, o
versa livros, jornais, a Bíblia e tudo o
modo, produzido pelo grande
mais que cair em suas mãos de modo a
intertexto, de possibilitar uma
transformar o mundo letrado em verso experiência do mundo e de si pró-
para ser lido/ouvido por pessoas que não prio que se coloca acima do tem-
tiveram acesso ao letramento (Rondelli, po administrativo e é sua crítica.
1993:38). Nesse sentido, a escrita se faz Sob a aparente intemporalidade
presente em pelo menos um dos elos da dos enunciados se esconde o
cadeia – aquele que emula o primeiro modo astucioso de passar a re-
impulso do código letrado é aquele que sistência: a emancipação. (Apud
escreve ou que lê o cordel. Assim, o cor- Rondelli, 1993:108)
del se constitui por meio de um proces- Stinghen (2000) classifica de manei-
so de criação, transformação e síntese ra bastante apropriada o cordel enquan-
sobre o escrito, sobre a leitura. Constrói- to produção poética híbrida, a meio ca-
se, literalmente, por pedaços, recortes, minho entre esferas culturais distintas,
isto é, na intertextualidade. entre a oralidade e a escrita, entre a le-
Pasta Jr. (1980:34) chama atenção tra e a voz. Dessa forma não se pode
para esse aspecto da intertextualidade no simplesmente denominar essa literatu-
cordel como advindo dessa valorização ra de folhetos como literatura popular
da experiência no mundo. Acentua que, no sentido "purista romântico" que im-
apesar de toda a diversidade temática, o plica essa conceituação, uma vez que é
cordel apresenta um conjunto de signi- constituída justamente a partir de múl-
ficações coerentes, produzindo o que foi tiplas referências: do imaginário popu-
designado por Terra (1978) como "tex- lar, da cultura bíblica, da história local,
to único": da história nacional, da história univer-
O texto único (...) opera com os sal, etc.
seus componentes oriundos de O mito de origem da criação do cor-
tradição e tempos diversos: ao del pode ser estabelecido a partir de uma
mesmo tempo em que cada um história contada a respeito de Manoel
desses componentes se entretece Camilo dos Santos, que era cantador,
na criação do texto único – ro- cordelista, tipógrafo e autor de mais de
mances, Carlos Magno, cangaço, 80 títulos, entre os quais destaca-se "A
queixas, atualidades – carrega a viagem a São Saruê". Quando Manuel
memória de sua temporalidade
Camilo resolve se dedicar à poesia como
específica, todos estão
presentificados e ativos porque profissão, retira-se por seis meses, pre-
fazem parte de um mesmo con- parando-se para a grande carreira. Para
junto significacional que os tanto, compra quatro livros: a Bíblia, um

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de Ciências Físicas e Naturais, um de do presente e do futuro, como o folheto


Geografia e uma Gramática (Orígenes que descreve o ataque de Bin Laden a
Lessa, 1973:15). Juazeiro do Norte e a defesa da cidade
Esse mito de origem parece ser de pelo Padre Cícero. Essa forma que
crucial importância para se entender o desreferencia, mistura cenários, perso-
aspecto eclético do cordel e de seu "esti- nagens, temporalidades, confere ao cor-
lo" que positiva a mescla, as múltiplas del um "estilo" próprio em que o folheto
influências, ao mesmo tempo em que ganha uma aparente homogeneidade em
aponta, sobretudo, para influências es- sua forma (metrificada, repetitiva, re-
critas que repousam em sua relação di- dundante). Por outro lado, apresenta
reta com os livros. Esse estilo de se fa- também uma mescla de suas múltiplas
zer cordel a partir de várias fontes e influências temáticas. Nesse sentido,
múltiplos cruzamentos não estaria lon- parece ser problemático considerar que
ge de uma noção contemporânea de "in- o cordel, em sua origem, num passado
tertextualidade" proposta pela “Socieda- remoto, foi fonte de autenticidade, uma
de dos Cordelistas Mauditos”. É comum vez que seu modo de produção sempre
encontrarmos nas academias de cordel apresentou ou pelo menos enfatizou des-
ou na casa mesmo dos poetas múltiplas de os primórdios uma vocação para a
referências expressas em influências de hibridização. O cordel, assim, copia al-
livros tão heterogêneos quanto os encon- terando, imita linguagens e cenários,
trados na “Academia de Cordelistas do transfigura-se tematicamente, traduzin-
Crato”: livros sobre religião, dicionári- do universos exteriores ou próximos para
os, auto-ajuda e poder da mente, didáti- uma forma que cria, por sua vez, o pró-
cos, de História do Brasil, um livro so- prio universo do cordel. Em outras pa-
bre a filosofia de Deleuze e outro sobre lavras, o cordel é mímeses, no sentido
a hermenêutica de Paul Ricouer. Uma que Taussig (1993: 19) confere a esse
espécie de universo heteróclito produ- conceito – repete e altera.
zindo uma heteroglasia. Um universo O cordel pode ser pensado enquanto
heterogêneo de livros, de letras, que pro- algo contextual e, por isso, sempre con-
duz letras, como no caso dos poetas de- temporâneo, uma vez que as mesmas
nominados Cordelistas Mauditos, que estórias lidas em diferentes épocas sig-
processam essas múltiplas influências. nificam coisas distintas para os leitores/
Nesse sentido, parece que o cordel é, por ouvintes. É daí que deriva seu aspecto
definição, o meio de expressão dessa de ser sempre contemporâneo, pelo me-
relação entre letras e letras, livros e li- nos sua interpretação e sua recepção
vros, temas e temas, processando ques- (Galvão, 2001; Terra, 1983).
tões díspares que nele se misturam, ga- Fora do eixo do Nordeste, a Editora
nhando homogeneidade por meio de sua Luzeiro, estabelecida em São Paulo, pas-
forma, produzindo assim seu "estilo". sa a publicar na década de 1960 muitos
Desse modo, o cordel trata do passado, folhetos que se desviam do tema

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regionalista e abordam novelas da tevê, de linguagem que lhes imprime uma


como “O direito de nascer”, que foi es- nova sensibilidade de percepção, seja dos
crita em vários folhetos, somando um fatos corriqueiros e banais do dia-a-dia
total de 719 sextilhas, ou “Gabriela” com ou de fatos culturais estranhos ao mun-
527 sextilhas escritas por Manoel do daqueles que escutam ou que lêem a
d"Almeida Filho. O que é interessante narrativa poética.
a ser observado nesse contexto de adap- Para a Editora Luzeiro o cordel esta-
tação de novelas da tevê é que nada pa- va mais associado a uma estética urba-
rece escapar da forma cordel, de seu "es- na e moderna e, por isso, não reprodu-
tilo". Um estilo que quer sempre ultra- zia de modo proposital a xilogravura nas
passar o tema, propriamente dito, ade- capas dos folhetos que editava uma vez
quando-se a uma linguagem poética. que, nesse mundo urbano-industrial, ela
Essa parece ser mesmo uma espécie de era considerada pelos consumidores
"essência" do cordel, isto é, sua capaci- como um símbolo do "atraso" e, portan-
dade de adequar, de transformar, de sub- to, rejeitado pelo público consumidor dos
meter qualquer assunto e tema a sua for- folhetos que editava. Seu proprietário,
ma poética. Na verdade, um senso co- Arlindo Pinto de Souza, dizia que, quan-
mum entre os cordelistas é que o cordel do mostrava capas de folhetos para um
não tem um tema, mas pura forma, e freguês, este sempre dava preferência
que por isso pode submeter tudo a sua àquelas coloridas, com fotos, recusando
poética: Carlos Magno e os dozes pares a xilogravura. O caso parece ser exem-
de França, a novela da tevê, uma aula plar na apreensão da importância da for-
de ABC, a vida do matuto no Nordeste, ma para o cordel. Arlindo, residente de
um convite de casamento, a propagan- São Paulo, ao mesmo tempo em que ado-
da política. Uma estética em que a for- tava uma relação comercial com o cor-
ma parece ser preponderante e capaz de del, considerava-se um pouco "nodesti-
traduzir qualquer que seja o mundo cul- nizado", uma vez que escrevia cordel
tural, tornando-o compreensível a par- sem nunca ter ido ao Nordeste, apenas
tir de sua estrutura poética. A tarefa e o pela apreensão de sua forma, pelo con-
desafio do cordelista seria, por assim vívio com os poetas e com os folhetos
dizer, traduzir mundos, sejam próximos que editava (Souza, s/d).
ou distantes, para sua forma poética, que Deve-se assinalar que mesmo quan-
lhe atribui plena significação e sensibi- do o rádio e a tevê passam a fazer parte
lidade especiais, reforçando assim o pró- do mesmo universo de significação da
prio caráter de gênero que tem o cordel. literatura de folhetos, a poética do cor-
Nesse sentido, o poeta, a partir da cons- del passa a replicar, muitas vezes, o uni-
trução poética, traduz sensibilidades, verso desses veículos, produzindo uma
fazendo com que mundos tão próximos mímese das notícias e das novelas. O fato
ou aqueles distantes ganhem pelo rela- revela a essência dessa poética do cor-
to, pela narrativa poética, um estatuto del ao acentuar seu caráter de incorpo-

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ração de qualquer referência a sua for- visão, à industrialização e à idéia de que


ma, isto é, replica alterando o que é nar- hoje o cordel seria apenas para turistas
rado para sua forma poética, adequan- e estudantes universitários (Galvão,
do-o ao seu "estilo". Muitas vezes se as- 2001: 35) não parece ser totalmente ver-
socia a esse tipo de cordel, que replica dadeira uma vez que o universo de apro-
notícias do jornal ou da rádio, a idéia de priação do cordel continua a ser bastan-
que o "jornal seria para o rico o que o te vasto e não marcado por uma previsi-
folheto é para o pobre" (Hata, s/d), no bilidade. Melo (2003: 141-143) não atri-
sentido de que existem linguagens dife- bui ao rádio e às novelas da televisão a
renciadas e que de algum modo demar- responsabilidade pelo declínio da indús-
cam classes sociais. Penso que o cordel tria dos folhetos, uma vez que as
não seria equivalente ao jornal no senti- cantorias passaram a ter no rádio um
do de informar sobre os acontecimentos aliado em sua difusão, e a novela
e nem mesmo faria as vezes de "jornal “Saramandaia”, de Dias Gomes, exibi-
do sertão". A poética do folheto trans- da pela Rede Globo, foi justamente ins-
forma as notícias de jornal em algo que pirada no cordel do “Pavão Misterioso”.
se estrutura numa linguagem escrita Desse modo, o declínio das tipografias
versificada, capaz de produzir uma nova de cordel no Nordeste se associam a cau-
interpretação sobre o fato relatado. A sas mais objetivas relacionadas à suces-
notícia do jornal, as influências do rá- são do empreendimento, pessoalização
dio e da televisão estão, por assim dizer, da edição e a uma crise econômica bra-
na mesma chave das influências advin- sileira que afeta sobretudo o Nordeste e
das das enciclopédias, da bíblia, dos li- a empresa tipográfica.
vros de História. A decadência da litera-
tura de folhetos é na maior parte das NOTAS
vezes atribuída à mídia, que cumpriria
o papel de substituir o cordel. Mas a 1 Mario de Andrade (1963:87) nos faz aten-
questão primordial que deve ser consi- tar para uma outra faceta da relação entre
o cordelista e o cantador, uma vez que o
derada não é a de que o cordel é um con-
cantador também decora os folhetos e “vai
teúdo com informações, mas sim uma cantando o romance, brejo, catinga e ser-
forma, um estilo, uma performance, uma tão afora”.
linguagem, uma ética e uma estética de
2 Armorialistas é a designação pela qual fi-
se pensar as coisas e os fatos. A deca-
caram conhecidos os poetas, músicos e
dência comercial da literatura de folhe-
escritores que integram o movimento
tos não quer significar necessariamente armorial, cujo principal expoente é o es-
seu desaparecimento e, menos ainda, sua critor Ariano Suassuna.
substituição por outras formas de "en-
3 Sílvio Romero designa os folhetos como
tretenimento" como cinema, rádio, tevê.
“livreto de rua”, classificando essa litera-
A crise e decadência da literatura de
tura como um produto de mestiços, embo-
folhetos é atribuída à influência da tele-

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Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, vol.4. n. 1, 2007.

ra reconhecesse a predominância do ele- navegador. São Paulo: Unesp, 1998.


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4 Sobre as adaptações ou traduções de obras
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