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Para ler Vilém Flusser

José Eugenio de O. Menezes


Doutor em Ciências da Comunicação (ECA-USP)
Professor de Pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero
jeomenezes@facasper.com.br

Resumo: O texto apresenta as principais idéias desenvolvidas


pelo pensador tcheco-brasileiro Vilém Flusser nas suas obras
disponíveis no Brasil. Destaca a contribuição de Flusser para a
compreensão dos complexos ambientes comunicacionais e das
práticas vinculadoras que permitem a organização das socieda-
E ste artigo pretende mostrar o desen-
volvimento das contribuições de Vi-
lém Flusser (1920-1991) para a compreensão
dos processos mediáticos contemporâneos,
des e das culturas. No contexto da contemporaneidade, marcada
por processos de comunicação também mediados por compu- ou seja, da chamada cultura dos media ou
tadores e ambientes digitais, mostra a importância da interlo- cultura de redes. O mapa das obras de Flus-
cução com Flusser nas pesquisas sobre cultura, imagem, media,
aparatos da comunicação e o próprio processo da comunicação.
ser disponíveis no Brasil facilita o contato
Palavras-chave: Vilém Flusser, comunicação, cultura, imagens com seus primeiros breves ensaios publica-
técnicas, teorias da comunicação, media. dos em jornais brasileiros e depois reunidos
Para leer Vilém Flusser em livros. Em seguida, oferece subsídios
Resumen: Este artículo presenta las principales ideas desarrolla- para a continuidade dos debates a respeito
das por el pensador checo-brasileño Vilém Flusser en sus obras das imagens, dos media, dos processos de co-
que están disponibles en Brasil. Destaca la contribución de Flus-
ser para entender los complejos ambientes de la comunicación y municação e dos aparatos de comunicação,
las prácticas de interacción que permiten la organización de las temas com os quais Flusser trabalhou na fase
sociedades y sus culturas. En el contexto actual, marcado por los
procesos de comunicación mediada también por los ordenado-
madura de sua vida.
res y los entornos digitales, muestra la importancia del diálogo Entre os diversos caminhos para o acesso
con Flusser en la investigación sobre la cultura, imagen, medios a um autor e/ou sua obra destaca-se a leitu-
de comunicación, aparatos de comunicación y el proprio proce-
so de la comunicación. ra de sua autobiografia. O contato com Bo-
Palabras clave: Vilém Flusser, comunicación, cultura, imáge- denlos: uma autobiografia filosófica, de Vilém
nes, técnicas, teorías de la comunicación, media.
Flusser, permite o acesso ao universo dialó-
To read Vilém Flusser gico no qual viveu o filósofo tcheco natu-
Abstract: This text presents the main ideas of the books available ralizado brasileiro que, fugindo da invasão
in Portuguese by Czechoslovakian-Brazilian thinker Vilém Flusser.
It highlights Flusser contribution to understanding the complex nazista, deixou sua cidade natal – Praga –
communicational environments and the bounding practices that com a família de sua namorada Edith Barth
allow the organization of societies and cultures. In the context of
contemporary world, set by communication processes mediated
e viveu no Brasil de 1940 a 1972. No prefácio
by computers and digital environments, this study shows interlo- da edição brasileira Gustavo Bernardo, pro-
cution with Flusser in researches about culture, image, media, com- fessor de Teoria Literária da UERJ, traduz a
munication devices and the communication processes themselves.
Key words: Vilém Flusser, communication, culture, technical palavra alemã Bodenlos como “sem chão” ou
images, communication theory, media. “sem fundamento”, lembrando que Flusser

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“assume sua condição de eterno migrante, de mentação da primeira parte de A língua é a


sujeito desenraizado; tanto de pátrias quanto realidade o autor mostra que a correspondên-
de quaisquer sistemas” (Bernardo in Flusser, cia entre língua e realidade é inarticulável, que
2007:10). o conhecedor é produto e produtor da língua,
Para Norval Baitello, professor da que as múltiplas línguas representam diferen-
Pós-graduação em Comunicação e Semióti- tes cosmos e que o poliglotismo é um método
ca da PUC/SP, Flusser é um dos pensadores para se ultrapassar os limites de uma língua e
que permitem a compreensão dos processos da visão de mundo expressa pela mesma.
de comunicação em uma ótica culturalista. Na segunda parte, intitulada A língua for-
ma realidade, Flusser lembra que o filósofo
austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951)
define a filosofia como “um conjunto de con-
O primeiro livro de
tusões que o intelecto acumulou ao chocar-
Flusser, redigido em se contra os limites da língua”. Lembra que
alemão, não encontrou Wittgenstein fala em língua “como se existis-
acolhida de editoras se uma única, nunca considera a pluralidade
e foi traduzido para das línguas” (2004:85). Em seguida, mostra
o português pelo que “cada língua é o mundo inteiro, e dife-
rente de toda outra língua” (2004:128).
próprio autor
No terceiro capítulo, denominado A lín-
gua cria realidade, Flusser argumenta que as
chamadas realidade e conhecimento são “ca-
Flusser reflete em sintonia com uma corrente tegorias da língua que variam de língua para
de estudos marcada por pesquisadores como língua”.
o historiador da arte Aby Warburg (1886- No quarto capítulo, A língua propaga a
1929), o jornalista e depois teórico dos me- realidade, o autor mostra que a natureza é
dia Harry Pross (1923-2010), o filósofo e uma conseqüência da conversação, lembra
sociólogo Dietmar Kamper (1936-2001) e o que “aquilo que chamamos de fenômenos
historiador da arte Hans Belting (1935). naturais, as pedras, as estrelas, a chuva, as ár-
vores, a fome, são fenômenos reais, porque
Língua e realidade são conceitos, palavras. As relações entre os
fenômenos são reais, porque formam pensa-
A primeira obra de Flusser, publicada em mentos, frases” (2004:190).
1963 pela Editora Herder e em 2004 pela An- O autor conclui mostrando que o pro-
nablume, foi dedicada ao tema da linguagem. pósito da obra era incentivar o processo de
Língua e realidade está dividido em um prólo- conversação, que pretende “mergulhar este
go, quatro partes e uma conclusão. As quatro trabalho no grande rio da conversação para
partes praticamente explicitam todo o sentido que seja levado pela correnteza da realização
dos propósitos teóricos do autor: a língua é a até o oceano do indizível” (2004:203).
realidade; a língua forma a realidade; a língua
cria realidade e a língua propaga a realidade. A história do diabo
Na primeira parte o autor enfatiza que
pretende investigar como “a realidade dos O primeiro livro de Flusser, com o títu-
dados brutos é apreendida e compreendida lo A História do Diabo, foi escrito antes de
por nós em forma de língua. Essa posição é Lingua e Realidade, mas publicado apenas
radical, já que, se for aceita, a realidade em si em 1965. A História do Diabo, redigido em
dos dados brutos se torna inacessível e, neste alemão entre 1956 e 1957, não encontrou
sentido, vazia” (Flusser, 2004: 82). Na argu- acolhida de editoras alemãs e foi traduzido

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para o português pelo próprio autor. Publi- Dentre os temas de A História do Diabo
cado pela Livraria Martins Fontes (1965) e encontra-se um questionamento ao nacio-
depois pela Annablume (2005), a obra pa- nalismo. “O nacionalismo é uma máscara
rodia textos bíblicos e aborda temas recor- romântica da luxúria que conseguiu enganar
rentes no imaginário ocidental: luxúria, ira, a inibição e penetrou, assim disfarçada, a su-
gula, inveja, avareza, soberba, a preguiça e a perfície dos acontecimentos”. E o autor ain-
tristeza do coração. da acrescenta que o nacionalismo é uma das
Em uma resenha publicada na revista vitórias mais impressionantes do diabo pelo
Communicare, Mônica Maria Martins de fato de ter “todas as características diabólicas
Souza, doutora em Comunicação e Semi- em grau elevado” (2005:85).
ótica e professora da Faculdade Anchieta, No livro destaca-se também a diferença
destaca que “Flusser considera que escrever cara ao autor entre conversação e conver-
sobre o diabo é embrenhar-se em confusão sa fiada, quando lembra que “as palavras,
ética, portanto, pecar, mas não escrever é que na conversação autêntica são conceitos,
tornar-se autoconsciente disso. Refletir a res- transformam-se, na conversa fiada, em pre-
peito é deparar-se com a dúvida, a essência conceitos” (2005:153).
do homem. Viver é lançar-se ao inferno, tão
ou mais prazeroso que os céus” (2004:174). Da Religiosidade
Mônica Martins de Souza lembra que:
Publicado originalmente pela Imprensa
Através de cenários, de imagens e da discus-
são a respeito das imagens, Flusser oferece Oficial para a Comissão Estadual de Cultura
uma grande contribuição à teoria da mídia, do Estado de São, em 1967, a última edição
tratada a partir da concepção das relações de Da Religiosidade recebeu um acréscimo
espaciais, a partir da criação de vínculos. em seu título na publicação da Editora Escri-
Lembra do mito do início e do tempo como turas (2002): Da Religiosidade. A literatura e
dimensão do espaço. No início, o Senhor
o senso de realidade.
deu a corda, de onde se desenrolaram o céu
e a terra. Quando ela desenrolasse intei- Da Religiosidade reúne dezessete ensaios.
ramente, o início estaria findo. Sendo isso Onze deles publicados no Suplemento Literá-
obscuro, e na obscuridade, o significado se rio do jornal O Estado de S. Paulo, bem como
esconde e se revela, criaram-se céu e ter- outros textos publicados na Revista Brasileira
ra, espaço e tempo. Então, Deus arrancou de Filosofia, na Revista do Instituto Tecnológico
um pedaço do ser em si e o mergulhou na
da Aeronáutica, na Revista Comentário, na Di-
correnteza do tempo. A identidade entre o
tempo e o diabo torna-se, então, o princí- álogo e também um artigo publicado na Re-
pio do progresso, transformação da realida- vista Brasileña de Cultura, editada em Madrid.
de em irrealidade (Martins, 2004:174). A literatura, para Flusser, é “o lugar no
qual se articula o senso de realidade. E senso
Ao comentar esta obra de Flusser, no arti- de realidade é, sob certos aspectos, sinônimo
go Os elementos pós-modernos na obra brasi- de religiosidade” (Flusser, 2002:13). O autor,
leira de Vilém Flusser, a pesquisadora tcheca depois de observar que “senso de realidade” é
Eva Batlickova mostra que o autor “logica- sinônimo de “religiosidade”, acrescenta:
mente, mas de maneira incomum, liga Deus
com tudo que se encontra fora do tempo e Real é aquilo no qual acreditamos. Durante
com tudo que é individual”. Por outro lado, a época pré-cristã o real era a natureza, e
mostra que “o Diabo desempenha o papel as religiões pré-cristãs acreditam nas for-
ças da natureza que divinizam. Durante
do construtor da história, porque, em con- a Idade Média o real era o transcendente,
traste com Deus, passou a existir a partir de que é o Deus do cristianismo. Mas a par-
um determinado momento e assim tem uma tir do século XV o real se problematiza. A
história” (Batlickova, 2004). natureza é posta em dúvida, perde-se a fé

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no transcendente. Com efeito, nossa situa- sas. Gustavo Bernardo, ao comentar o livro
ção é caracterizada pela sensação do irreal Natural:mente, afirma que o autor propõe a
e pela procura de um senso novo de reali- suspensão das principais crenças. De acordo
dade. Portanto, pela procura de uma nova
religiosidade. Esse o tema dos ensaios esco- com Bernardo:
lhidos (Flusser, 2002:13).
A proposta se explicita desde o título
ambíguo do seu livro de contos/ensaios,
Neste livro destaca-se um artigo denomi-
Natural:mente. Fala-se ‘naturalmente’, uma
nado O Funcionário, no qual aborda o tema palavra só. Mas o ‘natural’, propriamen-
da liberdade, considerando que aqueles que te dito, ‘mente’; é desta constatação que
trabalham com aparelhos, os funcionários, emerge a obra de Flusser. É possível pro-
agem em função dos aparelhos e não podem jetar um mapa e consultá-lo para se orien-
escolher. Este tema fundamental, depois de- tar na paisagem – ou consultar a paisagem
para se orientar no mapa. Todavia, quan-
senvolvido por Flusser em A Filosofia da Cai-
do se trata de tomar decisões, mapas não
xa Preta, continua instigando as pesquisas a servem: ‘Decisões autênticas são absurdas’
respeito da liberdade no contexto das redes (Bernardo, 2002:89).
de computadores.
No final da obra Flusser justifica o fato de
publicar um volume sobre as paisagens eu-
Natural:mente
ropéias no contexto da literatura brasileira.
Publicado em 1979 pela Livraria Duas Lembra que o livro “foi escrito por quem vi-
Cidades, o livro Natural:mente: vários acessos veu a maior parte de sua vida no Brasil e vol-
ao significado da natureza reúne um conjun- tou para a Europa natal com mente e sensibi-
to de ensaios que Flusser escreveu para diver- lidade fortemente abrasileiradas” (1979: 47).
sas revistas brasileiras, americanas, alemãs,
francesas e especialmente para o Suplemento Pós-História
Literário do jornal O Estado de S. Paulo. Os
ensaios, redigidos a partir da observação de O livro Pós-História. Vinte instantâneos e
paisagens européias e publicados pela pri- um modo de usar foi publicado em 1983 pela
meira vez em Paris, apresentam títulos em Editora Duas Cidades. O livro está organiza-
forma de “guia turístico”: caminhos, vales, do em pequenos textos que podem ser lidos
pássaros, chuva, o cedro no parque, vacas, em qualquer ordem. O sumário indica um
grama, dedos, a lua, montanhas, a falsa pri- panorama dos temas abordados: modos de
mavera, prados, ventos, maravilhas, botões, usar, o chão que pisamos, nosso céu, nosso
neblina e natural:mente. programa, nosso trabalho, nosso saber, nos-
No último ensaio de Natural:mente o au- sa saúde, nossa comunicação, nosso ritmo,
tor indica que a mesma pretende “ilustrar nossa morada, nosso encolhimento, nossa
como a cultura, longe de libertar o homem roupa, nossas imagens, nosso jogo, nosso di-
da determinação pelas forças da natureza, se vertimento, nossa espera, nosso receio, nossa
constitui em condição determinadora. Por- embriaguez, nossa escola, nosso relaciona-
tanto, em ‘segunda natureza’” (1979:137). mento e, por fim, retorno.
Na medida em que os ensaios mostram a Os leitores devem ter o cuidado de não
vacuidade do termo natureza, o autor indica confundir o título do livro Pós-História com
que na verdade escreveu um livro a respeito os estudos a respeito da pós-modernidade na
de filosofia da ciência, da história da ciência perspectiva da obra La Condition Postmo-
ou a respeito de questões epistemológicas. derne de Jean-François Lyotard. Pós-história
Flusser mostra que a crise da ciência exige “é um conceito irônico, em contraposição à
uma reformulação radical tanto dos méto- seriedade patética que cerca o chamado pós-
dos quanto do interesse da mesma pelas coi- moderno” (Bernardo, 2002:127).

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No início da obra, ao apresentar os Mo- Philosophie der Fotografie (Göttingen: Euro-


dos de usar, Flusser explica que o texto não pean Photography, 1983). No Brasil, a versão
pretende orientar ou instruir o leitor. “O traduzida pelo próprio autor foi publicada
que precisamente não quer é ser consumido. como Filosofia da Caixa Preta (1985). A úl-
Por isto este ‘modo de usar’ se quer rejeita- tima edição brasileira, pela Editora Relume
do depois de lido. O que se pretende é que Dumará, apresenta o título Filosofia da Caixa
o leitor faça uso deste texto da maneira que Preta: Ensaios para uma futura filosofia da fo-
bem entender. Mas que o transforme, prefe- tografia (2002).
rivelmente, em parte dos diálogos dos quais
o leitor participa” (Flusser, 1983:8).
No texto O chão que pisamos, o autor O autor mostra que
mostra que o programa da cultura ociden- a crise da ciência
tal contém várias virtualidades, não apenas exige uma reformu-
aparelhos que aniquilam seus funcionários e
lação radical tanto
seus programadores.
dos métodos quanto
Numerosas virtualidades ainda não foram do interesse da
realizadas. Em tal sentido a ‘história do Oci-
dente’ ainda não acabou, o jogo ocidental
mesma pelas coisas
continua. [...] O que nos resta é analisarmos o
evento Auschwitz em todos os detalhes, para
descobrirmos o projeto fundamental que lá
se realizou pela primeira vez, para podermos O livro mais conhecido de Flusser apre-
nutrir a esperança de nos projetarmos fora
senta um sumário com os seguintes capítu-
do projeto. Fora da história do Ocidente. Tal
o clima ‘pós-histórico’ no qual somos chama- los: a imagem, a imagem técnica, o aparelho,
dos a viver doravante (1983:15). o gesto de fotografar, a fotografia, a distribui-
ção da fotografia, a recepção da fotografia, o
Na avaliação de Gustavo Bernardo universo fotográfico, a necessidade de uma
(2002:187), foi a história das imagens técni- filosofia da fotografia e, finalmente, glossário
cas que conduziu Vilém Flusser ao conceito de para uma futura filosofia da fotografia.
pós-história. Tal concepção de imagens técni- Apesar de Filosofia da Caixa Preta ter, no
cas foi abordada no livro Filosofia da Caixa Pre- Brasil, o subtítulo Ensaios para uma futura
ta, quando em um pequeno glossário Flusser filosofia da fotografia, a palavra ‘fotografia’
distingue a pré-história ou “domínio de idéias, deve ser lida como metonímia, isto é, como
ausência de conceitos; ou domínio de imagens, uma palavra para designar o universo de
ausência de textos”, a história como “tradução imagens mediadas por tecnologias. O autor
linearmente progressiva de idéias em concei- usa a palavra fotografia como pretexto para
tos, ou de imagens em textos” e, finalmente, a compreender o funcionamento das socie-
pós-história como “processo circular que re- dades pós-históricas que trabalham menos
traduz textos em imagens” (2002:77). com textos e mais com imagens. Na avalia-
O livro Pós-História apresenta conceitos- ção de Arlindo Machado (2001), professor
chave para a pesquisa a respeito das redes e da USP e da PUC de São Paulo, Flusser estu-
dos hiperlinks que marcam a comunicação da a fotografia como modelo para analisar a
e a incomunicação na contemporaneidade. sociedade das imagens técnicas.
O livro mostra, ainda segundo Machado,
Filosofia da Caixa Preta que os fotógrafos atuam dentro de duas pos-
sibilidades: usar a máquina como um simples
A obra hoje traduzida em quinze países funcionário que não conhece os programas
foi publicada originalmente como Für eine do aparelho (caixa preta) ou em uma pers-

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pectiva artística que insurge contra o progra- significativa na qual as idéias se interrelacio-
ma e resgata artisticamente a liberdade. nam magicamente”.
Ao tratar as imagens como “superfícies
que pretendem representar algo” (2002:7), o Os gestos
autor está se referindo à subtração de algo,
isto é, mostra que a imagem é a principal Em 1991 o autor publicou Gesten. Versu-
ferramenta da desmaterialização das coi- ch einer Phänomenologie pela editora alemã
sas e dos corpos. Flusser ainda mostrará, na Bollmann Verlag. A obra, inédita em portu-
continuação de suas obras, a diferença entre guês, foi traduzida para o espanhol pela Edi-
imagens tradicionais (bidimensionais) e as tora Herder em 1994 como Los Gestos. Feno-
imagens técnicas (nulodimensionais). menología y Comunicación.
É interessante observar que esta obra en-
cerra toda uma pesquisa sobre a observação
Flusser usa a palavra aberta, minuciosa e compreensiva dos gestos
fotografia como pretexto mais simples em pleno momento do desen-
para compreender o volvimento da telemática. Assim, Los Gestos,
é uma obra madura que revela que todo ca-
funcionamento das minho percorrido pelo autor foi marcado
sociedades que traba- por uma postura filosófica com metodologia
lham mais com imagens fenomenológica.
do que com textos No capítulo O gesto de escrever 1 encontra-
se um exemplo dessa perspectiva fenomeno-
lógica pela qual o pensador deixa-se tocar,
abre-se para observar um gesto, descreve-o
Gustavo Bernardo, para decifrar a noção com uma sensibilidade impar:
do “funcionário” que utiliza aparelhos já
Para podermos escrever necessitamos – en-
montados e programados, faz uma relação
tre outras coisas – dos seguintes fatores: uma
entre a filósofa alemã Hannah Arendt (1906- superfície (a folha de papel), um instrumen-
1975) e Vilém Flusser. to (uma caneta, esferográfica), uns signos
(letras), uma convenção (o significado das
Hannah Arendt, ao estudar a banalidade letras), umas regras (a ortografia), um siste-
do mal, se perguntou como gente insignifi- ma (a gramática), um sistema marcado pelo
cante foi transformada pelo aparelho nazis- sistema da língua( um conhecimento se-
ta em funcionários poderosos. Flusser ten- mântico da língua em questão), uma men-
tou olhar o outro lado do problema: gente sagem para escrever ( as idéias ) e a escrita. A
responsável e culta sendo transformada complexidade não está tanto na pluralidade
em funcionários insignificantes que pro- dos fatores indispensáveis quanto na sua he-
movem, sem o perceber, males gigantescos, terogeneidade (Flusser, 1991:32).
adequados aos aparelhos agigantados que
os empregam (Bernardo, 2002:176). Assim, para o autor, “os gestos são movi-
mentos do corpo que expressam uma inten-
O último capítulo de Filosofia da Caixa
ção” (1991:14). Uma Teoria dos Gestos seria
Preta, intitulado Glossário para uma futu-
a “disciplina interpretativa (semiológica)
ra filosofia da fotografia, apresenta termos
das manifestações fenomenais da liberdade”,
como: aparelho: “brinquedo que simula um
definiu o autor em uma carta a Celso Lafer,
tipo de pensamento”, fotógrafo: “pessoa que
professor de filosofia do direito da USP, em
procura inserir na imagem informações não
1975 (Lafer in Flusser, 1999:15).
previstas pelo aparelho fotográfico”, funcio-
nário: “pessoa que brinca com aparelho e
age em função dele” e imagem: “superfície 1
Citação traduzida do espanhol por Maria Helena Charro.

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A obra, ainda inédita em língua portu- brasileira: em busca de um novo homem,


guesa, está organizada, na edição espanhola, imigração, natureza, defasagem, alienação,
em 18 capítulos: gesto y acordamiento, más miséria, cultura, língua e, finalmente, diag-
allá de las máquinas, el gesto de escribir, el nóstico e prognóstico.
gesto de hablar, el gesto de hacer, el gesto de Na avaliação de Maria Helena Varela, da
amar, el gesto de destruir, gesto de pintar, el Universidade de Évora (Portugal), “Flusser
gesto de fotografar, el gesto de filmar, el ges- não se questiona sobre o que é o Brasil, mas
to de darle la vuelta a la máscara, el gesto de sobre o que pode ser o brasileiro, sobre a pos-
plantar, el gesto de afeitar, el gesto de oír mú- se de sua ontologia poi-ética, num processo
sica, el gesto de fumar em pipa, el gesto de te- que começou ao nível lingüístico, e, por isso
lefonar, el gesto del vídeo e el gesto de buscar. mesmo, é autêntico, não deliberado”. A pes-
Dos gestos descritos por Flusser nasce a quisadora enfatiza:
necessidade de se aprofundar os processos de
Não há qualquer atitude messiânica do fi-
percepção a partir, por exemplo, de trabalhos
lósofo tcheco em relação ao Brasil. O Bra-
como Fenomemelogia da Percepção de Mau- sil é apenas um dos vários lugares (não
rice Merleau-Ponty. de muitos) em que surgem sintomas que
tornam possível uma esperança. Dialogar
com ele, sentir a experiência afetiva de ou-
Fenomenologia do brasileiro tra língua no colorido metafísico do por-

tuguês brasileiro, na versatilidade táctil de
Publicada na Alemanha pela editora Boll-
seu significante politicamente incorreto,
mann Verlag em 1994 e no Brasil em 1998, em ressonância com a oração do coração
pela Editora da Universidade do Estado do e a noite do sensível, seduz o seu [Flusser]
Rio de Janeiro, a obra reflete a respeito do espírito fenomenológico, no claro-escuro
Brasil dos “anos 70 para ‘trás’ ”. Em alemão de uma cumplicidade que insere mas não
o título completo da obra é Brasilien oder die integra (Varela, 2001:444).
Suche nach dem neuen Menschen: Für eine
Na obra encontram-se afirmações curio-
Fhänomenologie der Unterentwichklung. Na
sas como, por exemplo: “O brasileiro é ho-
tradução brasileira realizada pelo próprio
mem do palpite genial, e não do planejamen-
Flusser o título é Fenomenologia do brasileiro:
to” (1998:53). Na verdade, Flusser manifesta
em busca de um novo homem.
como o Brasil se apresenta ao imigrante inte-
O autor propõe que o novo homem seja
lectual no último terço do século XX:
um homo ludens consciente de que joga e de
que jogam com ele. Neste contexto, descreve um ambiente que não lhe opõe obstáculo
três estratégias de jogo. A estratégia um é a digno de nota, nem incentivo para enga-
dos que, como os estadunidenses, jogam para jar-se nele. Se quiser viver nesse ambiente
vencer, mesmo arriscando a derrota. A estra- como homem livre, deve abrir sua própria
picada. Homem livre significa homem que
tégia dois é o jogo dos excluídos que jogam vê sua própria situação de fora, projeta um
para não perder, buscando reduzir os riscos mapa sobre ela e age de acordo, que dá sen-
tanto da derrota como da vitória. Já a estraté- tido ao seu ambiente, vive de acordo com
gia três é o jogo dos que jogam para mudar o este sentido, e assim o transforma num
jogo, atuam com certo distanciamento, como mundo da sua vida. E, para que este sen-
fazem os cientistas. O termo Homo Ludens tido dado não seja mera fantasia, procura
desvendar a realidade da situação em que
integra o título de um livro do historiador vive. Portanto: pronto a alterar-se, a fim de
medievalista Johan Huizinga: Homo Ludens: alterar o mundo” (Flusser, 1998:56).
o jogo como elemento da cultura (1990).
O livro Fenomenologia do brasileiro: em Uma importante revelação dos motivos
busca de um novo homem está organizado pelos quais Flusser se interessava pelos fenô-
de forma a abordar vários cenários da vida menos da comunicação humana está presen-

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te neste livro. O autor explicita que reflete so- ouvido e a política; mostra que o ouvido é
bre os abismos que separam os homens e as muito mais político que a vista, que o silêncio
pontes que atravessam tais abismos, porque é o maior dos luxos, que o engajamento po-
flutua, ele próprio, por cima deles. lítico é um engajamento “em barulho”. Com
suas palavras, com a política “[...] pretende-
Ficções Filosóficas se harmonizar o barulho. Em alemão ‘voto’
é ‘voz’ (stimme). Trata-se de harmonizar as
Publicado em 1998 pela Edusp, o livro esferas. Fazer do barulho concerto (não con-
Ficções Filosóficas reúne 35 artigos, a intro- senso) (Flusser, 1998:62).
dução da advogada Maria Lília Leão e a apre- Na mesma coletânea destaca-se também
sentação de Milton Vargas, professor da USP. um instigante texto a respeito da canção
O livro reúne artigos publicados em perió- Deixa Isso Pra Lá, composta por Edson Me-
dicos brasileiros, cinco traduções de ensaios nezes e Alberto Paz, e interpretada por Jair
publicados na Europa e um texto inédito Rodrigues: “Deixa que falem, que digam,
com o título Pontificar. que pensem; deixe isto pra lá. Eu não estou
Em uma carta dirigida a Maria Lilia Leão, fazendo nada, você também. Faz mal bater
que introduz o livro com o texto Flusser e a um papo assim gostoso com alguém? Vem
liberdade de pensar, Vilém Flusser comenta o pra cá, o que é que tem?”. Com o texto in-
título do livro. titulado Deixe isto pra lá, Flusser analisa a
consciência coletiva indicando que a canção
Quanto ao título ‘ficção filosófica’: há muito revela uma desilusão total com os valores da
tempo estou com a idéia de que o tratado
sociedade, “o abandono desses valores e sua
filosófico (texto alfanumérico sobre) não
mais se adequa à situação da cultura; de que substituição pela inautenticidade do bate-
os filósofos acadêmicos são gente morta, e papo” (Flusser, 1998:77-82).
que a verdadeira filosofia atual é feita por
gente como Fellini, os criadores de clips, Bodenlos: uma autobiografia filosófica
ou os que sintetizam imagens. Mas como
eu próprio sou prisioneiro do alfabeto, e A obra foi publicada na Alemanha logo
como sou preso da vertigem filosófica, devo
após a morte do autor, reunindo textos es-
contentar-me em fazer textos que sejam
pré-textos para imagens. A maneira de fazê- critos após sua volta para a Europa, em 1972.
lo é escrever fábulas, por que o fabuloso é No prefácio da edição brasileira (2007), inti-
o limite do imaginável. Escrevi e publiquei tulado A Gente de Flusser, Bernardo explica a
uma fábula animal, Vampyrotheutis Infer- preferência do autor pela expressão “a gente
nalis, sobre a qual Abraham Moles escreveu no lugar da primeira pessoa do singular, eu,
que inicia método filosófico futuro, e meus
ou do plural de modéstia, nós”, bem como o
ensaios não aparentemente fabulosos, na re-
alidade se querem ficcionais (Flusser apud próprio sobrenome do autor que sugere o
Leão in Bernardo e Mendes, 2000:18). fluir de um rio (Fluss, em alemão).
A obra está organizada em quatro seções:
Para o leitor brasileiro fica a curiosidade monólogo, diálogo, discurso e reflexões. Na
pelo Vampyrotheutis Infernalis (Flusser; Bec, seção Monólogo encontramos oito temas:
1987), citado na carta acima. Trata-se de um atestado de falta de fundamento, Praga en-
monstro criado em colaboração com o ‘bi- tre as guerras, a invasão nazista, a Inglaterra
ólogo-fantasista’ francês Louis Bec, descrito sitiada, a guerra em São Paulo, o jogo do sui-
sobre forma ‘fantasiosamente científica’, que cídio e do Oriente, a natureza brasileira e a
vive isolado nas profundidades oceânicas. língua brasileira. Na seção Diálogo apresenta
Ainda em Ficções Filosóficas, destaca-se o as conversações com Alex Bloch, Milton Var-
ensaio Hearing Aids, no qual o autor faz uma gas, Vicente Ferreira da Silva, Samson Flexor,
importante reflexão sobre a relação entre o João Guimarães Rosa, Haroldo de Campos,

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Dora Ferreira da Silva, José Bueno, Romy A dúvida é um estado de espírito poliva-
Fink, Miguel Reale e Mira Schendel. Na se- lente. Pode significar o fim de uma fé, ou
ção Discurso apresenta sua leitura da Teoria pode significar o começo de outra. Pode
ainda, se levada ao extremo, ser vista como
da Comunicação e da Filosofia da Ciência. ‘ceticismo’, isto é, como uma espécie de fé
Por fim, a seção Reflexões, explica o que sig- invertida. Em dose moderada estimula o
nifica habitar a casa na apatridade. pensamento. Em dose excessiva paralisa
Através do relato dos diálogos com 11 in- toda atividade mental. [...] A dúvida, aliada
terlocutores, 7 brasileiros e 4 imigrantes (o à curiosidade, é o berço da pesquisa, por-
tcheco Alex Bloch, o artista plástico romeno tanto de todo conhecimento sistemático
(Flusser, 1999:17).
Samson Flexor, o inglês Romy Fink e a artista
plástica suíça Mira Schendel), Flusser mos-
tra que toda construção de sua vida e de sua
Los Gestos é uma obra
produção aconteceu na conversação com in-
terlocutores. Pessoas que também buscavam madura que revela que
a compreensão do mundo e a justificativa todo caminho percor-
para continuar a viver e a manter um engaja- rido pelo autor foi mar-
mento na contemporaneidade. cado por uma postura
filosófica com metodo-
A Dúvida logia fenomenológica

O prefácio de Celso Lafer para A Dúvi-
da (1999) é um texto revelador do percur-
so filosófico de Flusser, das relações com A perspectiva da dúvida é um importante
os interlocutores, das idéias e livros que componente do pensamento de Flusser. Ele
devorou antropofagicamente, à maneira tinha a consciência de fazer parte da primei-
de Oswald de Andrade. Assim, mostra que ra ou segunda geração daqueles para os quais
o positivismo lógico, com seu formalismo, a dúvida da dúvida” não é mais um passa-
era insuficiente para dar conta das inquieta- tempo teórico, mas uma situação existencial”
ções filosóficas de Flusser. Observemos, por (Flusser, 1999:19).
exemplo, o seguinte excerto:
No trato teórico da língua em A Dúvida, O mundo codificado
estão presentes tanto Carnap e Wittgens-

tein quanto Heidegger e Sartre. Em Flus- Publicado pela Cosac Naif em 2007, o
ser, esta confluência se radica na razão livro reúne um conjunto de artigos sobre
vital, que é, à maneira de Ortega y Gasset, comunicação e design. O organizador, Ra-
que ele conhecia bem, uma razão de vida fael Cardoso, reuniu nesta coletânea alguns
na dupla acepção de orientar nossa vida textos traduzidos por Raquel Abi-Sâmara
no mundo e orientar-nos no entendimen-
a partir da obra alemã Vilem Flusser: Vom
to do mundo através de nossa vida” (Lafer
in Flusser, 1999:8). Stande der Dinge (Gottingen: Seidl Verlag,
1993 e 1997), outros textos traduzidos da
O livro, uma versão ampliada e trabalha- coletânea Vilém Flusser: Dinge und Undin-
da de um artigo chamado Da Dúvida, publi- ge: Phänomenologische Skizzen (Munique/
cado em Da Religiosidade (1967), apresenta Viena: Carl Hanser Verlag, 1993) e outros
os seguintes capítulos: introdução, do inte- traduzidos do alemão a partir de originais
lecto, da frase, do nome, da proximidade, e datilografados fornecidos pelo Vilém Flus-
do sacrifício. Pode-se dizer que a dúvida é o ser Archiv. A coletânea, além da introdução
mais espinhoso tema de Flusser, apresentado de Rafael Cardoso, que chega a apresentar
logo no início deste livro: Flusser como um dos maiores pensadores

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do século XX, conta com três grandes se-


ções: coisas, códigos e construções. O universo das imagens técnicas.
Trata-se de uma obra fundamental para Elogio da superficialidade
compreender o que pode ser chamado de
“período europeu” da vida do autor, pois O Elogio da Superficialidade era o título
também reúne textos escritos entre 1973, do original datilografo em português, pu-
um ano após o retorno para a Europa, e blicado no Brasil em 2008 como O Universo
1991, ano da sua morte (Menezes, 2009). das Imagens Técnicas – Elogio da Superficia-
Este período é marcado pelo reconhecimen- lidade. Composto de 16 capítulos, sendo 15
deles com os títulos expresso através de ver-
bos: abstrair, concretizar, tatear, imaginar,
Nas investigações apontar, circular, dispersar, programar, dia-
logar, brincar, criar, preparar, decidir, domi-
sobre os novos nar, encolher e o último intitulado música de
ambientes comuni- câmera. O autor recomenda, no final da obra,
cacionais, sobre que “este último capítulo pode ser lido como
cultura, media e primeiro”. Em síntese, a imagem técnica ou
imagem, Flusser é um tecno-imagem, produzida por aparelhos, é a
interlocutor necessário imagem pós-escrita, feita de pontos, grânulos
e pixels, não mais de planos ou superfícies.
Neste livro Fusser percorre a história das
transformações dos meios de comunicação
to internacional e pelas inúmeras palestras e elabora o conceito de escalada da abstra-
que proferiu em diferentes países onde era ção, a subtração progressiva das dimensões
convidado como “filósofo dos novos media” dos objetos. O conceito é fundamental para
(Bernardo in Flusser, 2007: 9). Dentre os tex- a o entendimento das relações entre comu-
tos de O mundo codificado, destaca-se O que nicação tridimensional (o corpo e sua ges-
é comunicação, onde distingue comunicação tualidade), comunicação bidimensional (a
dialógica e comunicação discursiva: imagem), comunicação unidimensional (a
escrita, o traço, a linha...) e comunicação nu-
Para produzir informação, os homens lodimensional (pontos ou números do uni-
trocam diferentes informações disponí- verso digital, as imagens técnicas). Detalhes
veis na esperança de sintetizar uma nova a respeito desta questão foram desenvolvidos
informação. Essa é a forma de comuni-
cação dialógica. Para preservar, manter por Baitello (2003, 2005 e 2010) e Menezes
a informação, os homens compartilham (2008 e 2009).
informações existentes na esperança de O estudo é uma importante contribuição
que elas, assim compartilhadas, possam para leitura da cultura dos media ou cultura
resistir melhor ao efeito entrópico da na- de redes. O Elogio da Superficialidade ante-
tureza. Essa é a forma de comunicação
cede e prepara o conjunto de ensaios depois
discursiva (Flusser, 2007:97).
reunidos no livro Medienkiltur (Cultura dos
O filósofo mostra a importante diferença Media), publicado na Alemanha em 1997 e
entre participar de um discurso e participar ainda inédito em língua portuguesa.
de um diálogo, considerando especialmente
que um dos desafios da contemporaneidade A Escrita. Há futuro para a escrita?
é justamente a “dificuldade de produzir diá-
logos efetivos, isto é, de trocar informações O livro foi redigido entre 1987 e 1989,
com o objetivo de adquirir novas informa- dois anos antes do autor sofrer um acidente
ções” (2007:98). automobilístico e falecer em Praga, em 21 de

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dezembro de 1991. Em A alquimia da escrita:


a passagem obrigatória das coisas para as não- Considerações finais
coisas, a apresentação da edição brasileira
do livro A Escrita. Há futuro para a escrita? Os leitores brasileiros recentemente foram
(2010), Norval Baitello mostra que a obra é brindados com obras que mostram a impor-
peça-chave para compreensão do pensamen- tância de Flusser: A serpente, a maça e o holo-
to de Flusser. grama. Esboços para uma Teoria da Mídia, de
Norval Baitello Jr. (2010), Vilém Flusser: uma
[...] Como se trata do artifício que trans- introdução, de Gustavo Bernardo, Anke Finger
formou a cabeça dos seus criadores e lhes e Rainer Guldin (2008) e A época brasileira de
abriu as perspectivas para um novo pen- Vilém Flusser de Eva Batlickova (2010).
samento, abstrato e de horizontes impen- Ciente que qualquer articulação de tantos
sados, a escrita é fundamental passo para
se compreender o novo universo abstrato
ensaios não capta o cenário do pensamento do
e imaterial dos avanços tecnológicos, sobre autor, recordo uma entrevista que realizei, em
os quais Flusser tanto profetizou (Baitello 29 de julho de 2004, com Suzana Maria de Ca-
in Flusser, 2010:19). margo Ribeiro, ex-aluna de Flusser. De acordo
com Suzana Ribeiro, que concluiu o curso de
No sumário da obra percebe-se a pers- Comunicação com Habilitação Polivalente em
pectiva metodológica de busca das cama- 1971, na Faculdade de Humanidades e Comu-
das mais profundas utilizada pelo autor, tal nicações da FAAP, o professor Flusser orienta-
como fazem os pesquisadores das ciências va seus alunos para três formas de aproxima-
arqueológicas. Após a introdução, o sumário ção na leitura de um texto: “Primeiro a leitura
indica os seguintes capítulos: metaescrita, e absorção pela intuição e emoção, que são
inscrições, sobreescrições, letras, textos, ti- muito minhas amigas. Segundo, pelo distan-
pografia, a língua falada, poesia, modos de ciamento e finalmente pela busca da estrutura
leitura, decifrações, livros, cartas, jornais, do texto”. Assim, convido o leitor a deixar este
papelarias, escrivaninhas, roteiros, (códigos) mapa introdutório e continuar ou começar a
digitais, transcodificar, subscrita e posfácio. ler Flusser com muita calma, seguindo as três
Ao comentar o fato que o livro teria uma orientações que ele mesmo compartilhava
segunda edição Flusser escreveu um posfá- com seus alunos ou interlocutores.
cio no qual convida os leitores a refletir de Nas investigações sobre os novos ambien-
maneira dialógica a respeito do ensaio, con- tes comunicacionais que marcam as práticas
siderando que este estilo de texto não tem o vinculadoras que permitem a organização das
objetivo de comprovar algo. “Um ensaio é sociedades e das culturas, nas pesquisas sobre
uma tentativa de incitar os outros a refleti- cultura, imagem, media, aparatos da comuni-
rem, de levá-los a escrever complementos” cação e o próprio processo da comunicação,
(2010:177). Flusser é um interlocutor necessário.

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