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Como escrever a tese certa e vencer

José Murilo de Carvalho

Ter que fazer uma tese de doutoramento na incerteza de como será recebida e na
insegurança quanto ao futuro da carreira é experiência traumática. Quando passei por ela,
gostaria de ter tido alguma ajuda. É esta ajuda que ofereço hoje, após 30 anos de carreira, a
um hipotético doutorando, ou doutoranda, sobretudo das áreas de humanidades e ciências
sociais. Ela não vai garantir êxito, mas pode ajudar a descobrir o caminho das pedras.
Dois pontos importantes na feitura da tese são as citações e o vocabulário. Você
será identificado, classificado e avaliado de acordo com os autores que citar e a
terminologia que usar. Se citar os autores e usar os termos corretos, estará a meio caminho
do clube. Caso contrário, ficará de fora à espera de uma eventual mudança de cânone, que
pode vir tarde demais. Começo com os autores. A regra no Brasil foi e continua sendo: cite
sempre e abundantemente para mostrar erudição. Mas, atenção, não cite qualquer um. É
preciso identificar os autores do momento. Eles serão sempre estrangeiros. Atualmente, a
preferência é para franceses, alemães e ingleses, nesta ordem. Cito alguns, lembrando que
a lista é fluida. Entre os franceses, estão no alto Chartier, Ricoeur, Lacan, Derrida,
Deleuze, Lefort. Foucault e Bourdieu ainda podem ser citados com proveito. Quem se
lembrar de Althusser e Poulantzas, no entanto, estará vinte anos atrasado, cheirará a
naftalina. Se for para citar um marxista, só o velho Gramsci, que resiste bravamente, ou o
norte-americano F. Jameson. Entre os alemães, Nietzsche voltou com força. Auerbach e
Benjamin, na teoria literária, e Norbert Elias, em sociologia e história, são citação
obrigatória. Sociólogos e cientistas políticos não devem esquecer Habermas. Dentre os
ingleses, Hobsbawm, P. Burke e Giddens darão boa impressão. Autores norte-americanos
estão em alta. Em ciência política, são indispensáveis. Robert Dahl ainda é aposta segura,
Rorty e Rawls continuam no topo. Em antropologia, C. Geertz pega muito bem, o mesmo
para R. Darnton e Hayden White em história. Não perca tempo com latino-americanos (ou
africanos, asiáticos, etc.). Você conseguirá apenas parecer um tanto exótico. Da Península
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Ibérica, só Boaventura de Souza Santos, e para a turma de direito. Brasileiros não ajudarão
muito mas também não causarão estrago, se bem escolhidos. Um autor brasileiro, no
entanto, nunca poderá faltar: seu orientador ou orientadora. Ignorá-lo é pecado capital.
Você poderá ser aprovado na defesa da tese mas não terá seu apoio para negociar a
publicação dela e muito menos a orelha assinada por ele, ou ela. Se o orientador ou
orientadora não publicou nada, não desanime. Mencione uma aula, uma conferência,
qualquer coisa.
O vocabulário é a outra peça chave. Uma palavra correta e você será logo bem visto.
Uma palavra errada e você será esnobado. Como no caso dos autores, no entanto, é preciso
descobrir os termos do dia. No momento, não importa qual seja o tema de sua tese, procure
encaixar em seu texto uma ou mais das seguintes palavras: olhar (as pessoas não vêem,
opinam, comentam, analisam: elas lançam um olhar); descentrar (descentre sobretudo o
Estado e o sujeito); desconstruir (desconstrua tudo); resgate (resgate também tudo o que for
possível, história, memória, cultura, deus e o diabo, mesmo que seja para desconstruir
depois); polissêmico (nada de ‘mono’); outro, diferença, alteridade (é a diferença erudita),
multiculturalismo (isto é básico: tudo é diferença, fragmente tudo, se não conseguir juntar
depois, melhor); discurso, fala, escrita, dicção (os autores teóricos produzem discurso,
historiadores fazem escrita, poetas têm dicção); imaginário (tudo é imaginado, inclusive a
imaginação); cotidiano (você fará sucesso se escolher como objeto de estudo algum aspecto
novo do cotidiano, por exemplo, a história da depilação feminina); etnia e gênero
(essenciais para ficar bem com afro-brasileiros e mulheres); povos (sempre no plural, “os
povos da floresta”, “os povos da rua”, no singular caiu de moda, lembra o populismo dos
anos 60, só o Brizola usa); cidadania (personifique-a: a cidadania fez isso ou aquilo,
reivindicou, etc.). Para maior efeito, tente combinar duas ou mais dessas palavras. Resgate
a diferença. Melhor ainda: resgate o olhar do outro. Atinja a perfeição: desconstrua, com
novo olhar, os discursos negadores do multiculturalismo. E assim por diante.
Como no caso dos autores, certas palavras comprometem. Você parecerá démodé
se falar em classe social, modo de produção, infra-estrutura, camponês, burguesia,
nacionalismo. Em história, se mencionar descrição, fato, verdade, pode encomendar a alma.
Além dos autores e do vocabulário, é preciso ainda aprender a escrever como um
intelectual acadêmico (note que acadêmico não se refere mais à Academia Brasileira de
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Letras, mas à universidade). Sobretudo, não deixe que seu estilo se confunda com o de
jornalistas ou outros leigos. Você deve transmitir a impressão de profundidade, isto é, não
pode ser entendido por qualquer leitor. Há três regras básicas que formulo com a ajuda do
editor S.T. Williamson. Primeira: nunca use uma palavra curta se puder substituí-la por
outra maior: não é ‘crítica’, mas ‘criticismo’. Segunda: nunca use só uma palavra se puder
usar duas ou mais: ‘é provável’ deve ser substituído por ‘a evidência disponível sugere não
ser improvável’. Terceira: nunca diga de maneira simples o que pode ser dito de maneira
complexa. Você não passará de um mero jornalista se disser: ‘os mendigos devem ter seus
direitos respeitados’. Mas se revelará um autêntico cientista social se escrever: ‘o discurso
multicultural, com ser desconstrutor da exclusão, postula o resgate da cidadania dos povos
da rua’.
Boa sorte.
(Publicado em O Globo com o título “Como escrever a tese certa e vencer”, em
16/12/1999, 7).

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