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Integração biológico-social na
formação do sistema psicológico
Resumo
O objetivo deste artigo é discutir a formação do sistema psicológico e sua importância para a
integração biológico-social. Tal proposição foi desenvolvida inicialmente por Vigotski que, no
conjunto de sua construção teórica, propôs a caracterização dos processos psicológica superiores
– exclusivamente humanos – como mediados por meios auxiliares, possibilitando ao indivíduo a
superação das limitações naturais. Estes meios são apreendidos pelas crianças quando estas se
apropriam dos conhecimentos acumulados pela humanidade e organizam suas funções
psicológicas, que são internalizadas, tornando-se intrapsicológicas, proporcionando ao sistema
psicológico, um funcionamento intencional. O desenvolvimento de um sistema unificado é
essencial para a formação da personalidade, sendo a formação deste sistema dinâmico
diretamente relacionada com a formação, no encéfalo, de um conjunto variável de conexões
assim como de relações interfuncionais. Ressalta-se que o desenvolvimento do sistema
psicológico somente é possível pela humanização dos indivíduos, e neste processo a educação
tem uma importância fundamental na transmissão destes conhecimentos.
Palavras-chave: psicologia sócio-histórica, sistema psicológico, processos psicológicos
superiores
Abstract
The aim of this article is to discuss the formation of psychological system and its importance for
the biologic-social integration. This elaboration was developed by Vigotski who, in his
psychological investigations, proposed the characterization of higher psychological processes –
exclusively human – as mediated by auxiliary means, making possible to the individual to go
beyond his natural possibilities. These means are learnt by children when historical knowledge
stored by mankind is appropriated and their psychological functions organised and internalised,
becoming intrapsychological, offering the psychological system an intentional functioning. This
development is essential for the formation of personality, being the formation of this dynamic
system related directly to the development in the brain of a variable group of connexions as well
as interventional relations. It is necessary to highlight that the development of the psychological
system is only possible by humanization of individuals, and in this process, the education has a
basic role teaching the knowledge.
Key Words: socio-historical psychology, psychological system, higher psychological processes
(...) a psique não é, como expressara Spinoza, algo que jaz para além da
natureza, um Estado dentro do outro, senão uma parte da própria natureza,
ligada diretamente às funções da matéria altamente organizada de nosso
cérebro. Como o resto da natureza, não foi criada, mas surgiu em um
processo de desenvolvimento. (VYGOTSKI, 1997a, pp. 99-100)
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imediata como antes e era necessário aos indivíduos apreenderem as mediações e contradições
existentes no mundo humanizado, gerando assim novas necessidades e relações
objetivas/sensíveis.
Foi o aparecimento e o desenvolvimento do trabalho, como modificação intencional
da natureza pelo homem, que criaram as condições para a humanização, ou seja, para o
surgimento da separação homem-natureza pela produção de necessidades exclusivamente
humanas e dos modos de realizá-las. Essa mesma relação foi a responsável pelo
desenvolvimento do reflexo psíquico, desde seu momento sensorial até sua expressão mais
elevada e exclusiva humana, o reflexo psíquico consciente (estável) da realidade (LEONTIEV,
1978). Ao apropriar-se da natureza para satisfazer suas necessidades, o homem a transforma e,
com isso, objetiva-se nessa transformação, o que gera novas apropriações e objetivações, assim
como novas necessidades, genuinamente humanas.
O homem torna subjetivos os objetos (materiais ou não) da realidade pela
apropriação e objetiva os elementos por ele apropriados, isto é, traz à realidade sua subjetividade
pela objetivação, enfim, o indivíduo desenvolve seu corpo inorgânico. Os homens
(...) começam a se diferenciar dos animais tão logo começam a produzir seus
meios de vida, passo que é condicionado por sua organização corporal.
Produzindo seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua
própria vida material. (MARX; ENGELS, 1989, p. 27).
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estrutura reativa direta dos processos elementares, elas são construídas baseadas
no uso de estímulos-meios (signos) e, por isso, têm um caráter indireto
(mediado). Finalmente, em relação à função, são caracterizadas pelo fato de
desempenharem uma função nova e essencialmente diferente das funções
elementares; executando uma adaptação organizada à uma situação com
indivíduo controlando previamente seu comportamento. (VYGOTSKY, 1999,
p. 40).
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percepção começam a se integrar. O indivíduo inicia aos poucos o controle de seus atos motores
tendo a percepção como sólida referência (e não mais como simples eliciador).
Um fator que contribui de forma decisiva para esta conquista, além é claro do
próprio treino da habilidade motora e percepção, característica da atividade principal desta idade
(objetal-manipuladora, entre dois e três anos aproximadamente), é o surgimento da linguagem.
Esta, mesmo que ainda bastante rudimentar, possibilita a categorização da percepção ao sujeito
nomear com sentido o mundo objetivo, materializando seu pensamento. Neste momento
começa a ser mais amplamente desenvolvida a relação entre pensamento e linguagem, no qual
em uma idade mais avançada, se fundirão, como bem demonstrou Vigotski (2001).
O surgimento da linguagem, o domínio da marcha e o maior conhecimento e
controle do ambiente, criam as condições para que o indivíduo se conheça e assim desenvolva
sua consciência, sendo a autonomeação (aparecimento do eu na fala) um dos principais indícios
desse novo momento.
Assim, com a maior apropriação do mundo humano, a criança desenvolve ainda
mais sua imaginação e mundo simbólico, e o jogo de papéis (a atividade principal da criança pré-
escolar) é fundamental. Nesta atividade, utilizando, entre outras coisas, a imitação, a criança
desenvolve ainda mais seus movimentos, linguagem, percepção, memória e imaginação, sendo
este período (por volta dos 3 a 6 anos) de vital importância para a solidificação das habilidades
recém conquistadas, assim como um período crucial para a apropriação das regras sociais,
desenvolvimento dos sentimentos, enfim, de sua consciência social.
No momento seguinte (cuja atividade principal é o estudo) o indivíduo passa a
desenvolver capacidades e motivos mais complexos (do que os existentes até então),
impulsionados pela aprendizagem de um corpo de conhecimentos transmitidos de forma
elaborada pela escola. No que concerne às funções psicológicas, memória e atenção, em maior
destaque que as demais, estão neste momento em franco desenvolvimento, com suas estruturas
tornando-se cada vez mais mediatizadas e assim controladas voluntariamente. A memória, que já
tem em sua origem uma relação de interdependência com a atenção, funde-se ao pensamento,
tornando-se lógica (memória lógica). Com o desenvolvimento do corpo inorgânico, essas
funções vão se relacionando sistematicamente com o pensamento, sendo a seguinte expressão
vigotskiana uma clara explicitação deste processo: “se para criança pequena pensar é recordar,
para o adolescente recordar é pensar.” (VYGOTSKI, 2001, p. 381)
Este mesmo processo de surgimento de neoformações tendo com referência central
a atividade principal do período ocorre também na adolescência e vida adulta. Não serão aqui
observados com mais detalhes estes períodos, mas é preciso ressaltar que nestes o
desenvolvimento da autoconsciência e da personalidade são aspectos em primeiro plano.
Afinal, com o maior desenvolvimento e interconexão das funções psicológicas
superiores, há uma maior estruturação do sistema psicológico, formando um sistema cada mais
unificado (porém não monolítico), sendo que nestas conexões e relações com o mundo (ou
riqueza inorgânica do indivíduo) radicam as vidas dos sujeitos. (VYGOTSKI, 1997a).
O desenvolvimento de um sistema unificado, fundado na interconexão e inter-
relação dos processos psicológicos que agem como centros isolados e interdependentes, é
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essencial para (e coincide com) a formação da personalidade, e assim sendo, para a própria ação
voluntária do indivíduo na realidade, ou como expressa Vigotski “O homem pode certamente reduzir a
um sistema não somente funções isoladas, mas criar também um centro único para todo o sistema.”
(VYGOTSKI, 1997a, p. 92).
Esse centro único para todo o sistema é desenvolvido na ontogênese e dá ao
indivíduo a percepção integrada, totalizada do psiquismo, em seus aspectos biológicos e culturais. Essa
categoria síntese caracteriza a personalidade para-si, sua singularidade, ou seja, a apropriação
particular pelo indivíduo da genericidade humana.
A formação deste sistema dinâmico está, como já apontado, diretamente relacionada
com a formação, no encéfalo, de um conjunto variável de conexões assim como de relações
interfuncionais, ou em outras palavras, de um conjunto interfuncional de áreas independentes do
cérebro que trabalham em concerto (LURIA, 1980; 1981). O encéfalo humano é o que tem,
dentre os primatas, a maior região frontal, sendo esta a principal área responsável pelas
características afetivo-volitivas.
Desta forma, pode-se observar que a atividade psíquica complexa do homem é
função do encéfalo. No entanto, este não é o demiurgo do psiquismo e sim o órgão que
possibilita (biologicamente) a efetivação dessa atividade. O psiquismo se origina, como já
indicado até este momento, na realidade objetiva, apreendida pela sensibilidade com o auxílio do
encéfalo na atividade material sensível. “As características sociais e de classe se formam no homem a partir
de sistemas interiorizados e que não são outros que o sistema de relações sociais entre pessoas transladadas à
personalidade.” (VYGOTSKI, 1997a, p. 91-2)
Tem-se aqui uma espiral dialética de desenvolvimento social e fisiológico do homem.
Este por meio de sua atividade vital, o trabalho, transforma a natureza assim como esta o
transforma (ENGELS, 1985).
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Luria, dentre os autores da psicologia soviética, foi o que mais desenvolveu pesquisas
e intervenções, tendo sempre como respaldo não somente a obra de Vigotski (como querem
alguns interpretes de sua obra), mas também a produção de seus colegas soviéticos dentre os
quais se salienta Leontiev, Galperin e Zaporózhets, além de seus colaboradores mais próximos
como Homskaia, Tsvetkova e Políakov.
Dentre o imenso conjunto de relatos e casos analisados por Luria dois se destacam
não somente pela investigação (cada um durou mais de 20 anos), mas também pela exposição,
desenvolvido como romance científico. O primeiro deles (LURIA, 2002a) é o caso de um
mnemonista (Sherashevsky), cuja capacidade quase ilimitada de memorização foi o mote central
de análise, tendo o desenvolvimento de sua personalidade como fundo.
O segundo romance (LURIA, 2002b), que é o mais importante aqui, relata o caso de
Zazetsky, um soldado russo que sofreu (na II Guerra) uma lesão cerebral em virtude de artilharia
de metralhadora. A lesão foi na zona parieto-occipital esquerda de seu cérebro, o que decorreu
em Zazetsky em uma perda parcial da visão (na verdade ela via somente metade do campo
visual), amnésia de algumas habilidades como a escrita e alguns aspectos da fala (afasia semântica
ou amnésica), entre outras coisas. Mas a lesão também afetou a organização geral de seu
psiquismo ao Zazetsky perder o sentido da própria vida, pois, entre outras coisas, ele se sentia
um inútil para sua pátria. 5
O trabalho com Zazetsky poderia ter sido infrutífero, afinal sua lesão ocorreu
quando já em idade adulta, dificultando a restauração das habilidades perdida. No entanto, Luria
utilizou os pressupostos até aqui discutidos, como bem escreveu: “Via de regra, porem, nossos
métodos de restauração de funções combinavam a quimioterapia com um programa de treinamento e terapia
funcional. Uma das áreas para qual desenvolvemos métodos de treinamento visando reorganização de um sistema
funcional foi a escrita.” (LURIA, 1992, p. 145).
Essa foi a principal estratégia utilizada com Zazetsky. O soldado russo não conseguia
recordar de seu passado, assim como tinha dificuldade em expressar-se, além de poucas
esperanças em relação à sua vida. Com essa ação como referência, Zazetsky aprendeu
novamente a escrever (seu diário resultou em aproximadamente três mil páginas escritas em mais
de 25 anos).
Por meio dessa estratégia 6 o soldado pode escrever sua vida, suas impressões e
sentimentos, assim como reorganizar (dentro do possível) suas habilidades. Dessa forma
Zazetsky estabeleceu novas relações com o mundo objetivo, formou novas finalidades e motivos
para sua atividade. Enfim, reestruturou sua própria personalidade e o sentido para sua vida.
Ao trabalhar nesse relato meu todo dia (...) abrigava a esperança de falar
às pessoas acerca desta enfermidade e superá-la. (...) Outra razão deste relato é
a de querer desenvolver e ampliar minha memória, quebrar esta afasia. (...) Sei
que meu escrito pode ser também de grande ajuda para homens de ciência
que estudam como o cérebro e a memória trabalham. (LURIA, 2002b, p.86)
5. A guisa de conclusão
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NOTAS
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5 Neste momento específico da história soviética havia um exacerbado senso de nacionalismo bastante
alimentado pelo regime stalinista e pela própria condição histórica (Stalingrado), o que favorecia este tipo
de sentimento de Zazetsky. Não se pode esquecer também que havia naquela experiência social uma nova
forma de entender o papel do indivíduo no coletivo.
6 Há alguns pormenores importantes nesse processo, descritos tanto por Luria quanto por Zazetsky, que
não é possível discutir aqui devido aos objetivos do texto assim como o próprio tamanho do artigo.
REFERÊNCIAS
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