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\Qe0 6 mrt nwo + Revista de Sociologia da USP VOLUME 1-N. 4 - 1, SEMESTRE, 1989 UNIVERSIDADE DE SXO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CleNCIAS HUMANAS “+. DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA \ a ‘Tempo Socal; Rev. Sociol. USP, . Paulo, (1 7-27, Isem. 1988, A SOCIOLOGIA E 0 MUNDO MODERNO* Octavio lanni** RESUMO: Este enssio procura esclarecer 0 “compromisso” da sociologia com 0 mundo modemo formado com o desenvolvimento do capitaismo. Primeiro, examina 2s principais teorias cldssicas. Mostra como elas nascem com os desafios com os quais se de- fronta a sociedade a partir de meados do sfculo XIX. E lembra que essas teoriss conti- ‘nuamn a propiciar paradigmas para as correntes sociol6gicas que se propéem no século XX. Segundo, registra os temas fundamentals da sociologia, também criados no Ambito dessa Sociedade: temas que continuam bisicos nas correntes que se ensaiam no século XX. Ter ceiro, analise as relagées entre a sociologia ¢ a modernidade, sugerindo que essa disciplina expressa dilemas e perspectivas do pensamento em fase da modemidade. E quarto, por fim, sugere que a sociolosia pode ser lida como uma forma literdria, na qual se destacam as criag6es épicas. Por seus temas ¢ explicagbes, a sociologia muitas vezes parece uma épi- ‘cado mundo modemo. UNITERMOS: Sociologia: teorias elfssicas, temas fundamentais, modemnidade, 6ica do mundo moderno, A Sociologia nasce desenvolve-se com 0 Mundo Modemo. Reflete as suas prin- cipais Epocas ¢ transformagées. Em certos casos, parece apenas a sua crénica, mas em ‘Aula inaugural, proferida no dia 12 de margo de 1988, para os alunos do Curso de Ciéncias Sociais, promovida pelo Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cign- cias Humanas, da Universidade de So Paulo. Escrita depois da fals. Professor colaborador do Programa é¢ P6s-Graduagio do Departamento de Sociologis- FFLCH-USP. € _IANNL, Octavio, A Sociologia « © mando moderne, Tempe Socal; Rev. Sociol. USP, S. Paul, 1 ‘TERT, Ler. 1989. outros desvenda alguns dos seus dilemas fundamentais. Volta-se principalmente sobre 0 presente, procurando reminiscéncias do passado, anuaciando ilusbes do fururo, Os im passes e as perspectivas desse Mundo taato percorem a Sociologia como ela percon 0 mundo, Se nos debrucamos sobre os temas cléssicos da Sociologia, bem como sobre as suas contribuigées tedreas, logo nos deparamos com as mais diversas expresses esse Mundo. Sob diversos aspectos, ela nasce ¢ desenvolve-se com ele. Mais do que isso, 0 Mondo Moderno depende da Sociologia para ser explicado, para compreender-se, Tal- vez se possa dizer que sem ela esse Mundo seria mais confuso, inedenito, 'A Sociologia nfo nasce no-nada, Surge em um dado momento da historia do Mundo Modemo. Mais precisemente, em meados do séoulo XIX, quando ele esté ex franco desenvolvimento, realizando-se. Essa € uma época em que jé se mevelam mais abertamente as forcas sociais, as configuragées de vida, as originalidades ¢ os impasses da sociedade civil, urbano-industrial, burguesa ou capitalista. Os personagens mais ¢a- racteristicos estio ganhando seus perfis e movimentos: grupos, classes, movimentos so- ciais e partidos politicos; burgueses, operdrios, camponeses, intelectuas, artistas ¢ pol ticos; mercado, mercadoria, capital, tecnologia, forga de trabalho, luero, acumulacéo de capital e mais-valig; sociedade, estado e naglo; divisto internacional do trabalho ¢ co- Tonialismo; revolucéo e contre-revolucéo. Um dos seus principais simbolos, 0 capital, parece estabelecer os limites © as sombras que demarcam as relacées ¢ as distancias entre 0 presente ¢ 0 passado, & SU- perstigdo ¢ a ilustracdo, o trabalho ea preguica, a nagéo ¢ a provincia, a tradigo © a modemidade. Em suas conotacées socials, politieas e culturais, além das econémicas, 0 capital parece exercer uma espécie de missio civilizaéria, em cada pals ¢ continente, ‘no mundo. claro que se podem reconhecer antecedentes ou prentincios da Sociologia em idéias, filosofias e correntes de pensamento de outras épocas. Sao comuns as referén- cias a Montesquieu, Vico e Rousseau, entre outros. Mas cabe lembrar que esses ¢ ou tros precursores foram “inventados” pelos fundadores da Sociologia. Os quadros inte- lectuais ¢ a problemdtica social desta, quando estabelecidos, tornam possivel descobrir, localizar, eriar ou recriar precursores. E isto é tanto mais fécil quando se constata que ‘95 antecessores realmente estavam buscando compreender as manifestagées iniciais, menos desenvolvidas mas jé assinaladas, do Mundo Moderno. E possfvel dizer que a Sociologia ¢ uma espécie de fruto muito peculiar desse Mundo. No que ela tem de original e criativa, bem como de insta e estranha, em t0- das as suas principais caracteristicas, como forma de pensamento, ¢ um singular produto ¢ ingrediente desse Mundo. IANML, Octavio, A Sociologia e @ mundo moderne. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, I): 9 7-31, Lsem. 1989. Principio Explicativos © pensamento filoséfico do séeulo XVIII e comegos do XIX compreende um conjunto de coatribuigées da maior importincia para as cigacias sociais em geral ¢ @ Sociologia em particular. O liberalismo, iluminismo, jacobinismo, conservantismo, ro- mantismo e evolucionismo séo algumas das principais manifestagGes do pensamento eu- ropeu desse tempo. Sdo expressdes da revolugio cultural simbolizada nas obras de filé- sofos, cientistas ¢ artistas como Rousseau, Kant ¢ Hegel, Goethe, Beethoven e Schiller, ‘Adam Smith, Ricardo, Herder e Condorcet, entre outros. ‘A despeito da multiplicidade dessas correntes de pensamento, bem como das suas divergéncias, é inegdvel que no conjunto elas instituem algumas das condigées episte- molégicas do desenvolvimento das ciéncias sociais em geral e da Sociologia em parti- cular. Por um lado, tratava-se de transferir ou traduzir para o campo da sociedade, cultu- rie histéria os procedimentos que jé se haviam elaborado ¢ continuavam a eleborar-se nas ciéncias fisicas e naturais, Por isso é que em trabalhos de Sociologia, passados presentes, ressoam perspectivas organicistas, evolucionistas, funcionalistas ¢ outras, oriundas daquelas ciéncias, Os paradigmas das ciéncias fisicas ¢ naturais influenciaram continuam a influenciar a reflexfo de socislogos. Nesse sentido ¢ que as sugestées epistemolégicas que se buscaram em Bacon, Galileu, Descartes ¢ Kant, entre outros, ressoam nos procedimentos de pesquisa e explicagio de uma parte da Sociologia passa~ dae presente, Por outro lado, tratava-se de criar novos procedimentos de reflexio, de modo a fa- zer face as originalidades dos fatos, acontecimentos e dilemas que caracterizam a vida social no Mundo Moderno. A emergéncia da sociedade civil, urbano-industrial, burgue- sa ou capitalista, passava a desafiar o pensamento em uma forma nova, pouco comum. Nesse sentido & que as sugestées epistemolégicas apresentadas por Vico, os enciclope- distas, Herder, Rousseau, Hegel e outros representam contribuigées fundamentais para @ criago de novos procedimetos de reflexio, O pensamento se torna capaz de dar conta a originalidade dos fatos, acontecimentos e dilemas mais caracteristicos das sociedades que se formam com 0 Mundo Moderno. Nos dois casos, no entanto, encontram-se influéncias da maior importancia para a formagio ¢ 0 desenvolvimento da Sociologia. No conjunto, as sugestées epistemoldgi- cas de uns e outros permitem que a Sociologia se preocupe tanto com a realidade social como com 0 proceso de conhecimento, Estes séo alguns momentos Iigicos bastante freqilentes na reflexio sociolégica: dado e significado, quantidade e qualidade, parte © todo, aparéncia e esséncia, singular e universal, causa ¢ sentido, negatividade ¢ con- 10 TANN, Oeavio. A Sociologia ¢ 0 mundo moder. Tempo Social; 7-21, Lem. 1989. Soziol. USP, §, Paulo, (1 tradigfo, sinerénico e diacrbnico. Devido ao seu continuo diflogo com & Filosofia, ¢ Sociologia guarda a peculiaridade de pensar-se continvamente, de par-em-par com a re- flexio sobre a realidade social. E claro que a Sociologia se divide em tendéncias, escolas, teorias, interpretagées. CCompreende produgées que se poderiam classificar em termos ts como O seguintes evolucionismo, organicismo, positivismo, formalismo, funcionalismo, estruturalismo, etraturalfincfonalismo, fenomenologia, historicismo ¢ outros. Hé grandes eons © trorias de alcance médio, Umas privilegiam 0 pequeno grupo social, o cotidiano,#s s- tuacées micro. Outras a sociedade como um todo, em seus movimentos gerais e parti- cules, om suas diversidades, dsparidades e contradigGes. Compreendem relegSes, processos ¢ estruturas de dominagao politica ¢ apropriagao econémica. ‘Umas mantém compromissos mais abertos com as sugesties epistemolégicas das cincias fisica enaturis, Privilegiam a inéugio quanttativa, a construgo de varéveis. fndices, indicadores, modelos, sistemas. Outras fundamentam-se nas sugestes epise moldgicas das ciéncias histéricas, ou do espirito, Privilegiam 0 enfoque qualitative, @ descoberta de relacdes, processos e estruturas responséveis pelos movimentes da socie- dade. E hé aquelas que privilegiam a intuigio, a circunstincia, © cotidiano, o efémero, 0 singular, como revelam algumas produges inspiradas na fenomenologia existencialista. Mas é possivel que a5 vérias tendéncias, esolas, torias ¢ intnpretagées se edly sam, em esstacia, a trés polarizacées fundamentais. Uns e outras ttm como bases e- fitina instncia, um dos tts prinfpios explicativos: causapio funcional, conexéo de sentido e contradigéo. Esses sfo os prineipios explicativos principais, nos quis s¢ sin- tetizam os fundamentos das mais diversas tendéncias, teorias, escolas ou interpretagées. © prinepio da causagéo funcional est presente em Spencer, Comte, Durkheim, Par sons, Merton, Touraine e outros. O da conexio de sentido inspira Dilthey, Rickert, We- ber, Toennies, Nisbet ¢ outros. Eo da contradigio fundamenta as contribuigdes de Marx, Engels, Lenin, Trotsky, Rosa Luxemburgo, Lukacs, Gramsci, Goldmann ¢ ou- tros. B claro que as produgées sociolégicas desses ¢ outros autores no se inspiram nesses prineipios de uma forma exclusiva, fechada. Hé variagGes ¢ combinagdes nos ‘seus modos de pensar, compreender, explicar. Inclusive se pode imaginar que meso autores classicos como Marx, ‘Weber e Durkheim, reconhhecidos como fundadores, nao se preocuparam maiormente com esse problema. ‘Alids, em suas obras substantivas en- contram-se reflexdes que “fogem" as suas anotagées metodolégicas. claro que hf intentos de inovar que poderiam e podem ser registrados. E ha ino- vagées reals. Sic noliveis algumas contribuigées teéricas de sociélogos wabalhande depois dos cléssicos, na mesma senda ou em outros ‘caminhos. Inclusive ha propostas que nao vingaram, mas que nem por isso deixaram de ajudar na retomada ¢ no aperfei- Goamento da reflexio cientfice na Sociologia, Entre uns ¢ outros encontram-se noes JANNI, Octavio. A Sociologia ¢ 0 mundo modern. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Pasio, 1 11 7-27, Lem. 1989. como os seguintes: Gurvitch, Sorokin, Parsons, Lazarsfeld, Merton, Touraine, Bourdieu € muitos outros. Uma anilise cuidadose, no entanto, pode indicar que todos tende: ser, em alguma medida, caudatérios daqueles principios explicativos cléssicos. Estes sio os princfpios explicativos para os quais tendem as contribuigées da aioria dos sociSlogos nos séculos XIX ¢ XX: causagéo funcional, conexio de seatido © contradigéo, Através deles @ Sociologia tem dado conte dos movimentos e impasses, as épocas e transformagées caracteristicos das sociedades formadas com o Mundo Mo- demo, Pode-se dizer que esses principios compreendem diferentes estos de pensa- mento, distintas visdes da sociedade, do mundo. Cada um a seu modo, segundo as suas possibilidades descritivas ¢ interpretativas, segundo a sua sensibilidade quanto a uns e ‘outros momentos I6gicos da reflexao, apanha os movimentos ¢ as modulagées da socie- dade modema. Sao formas de explicagao ¢ fabulagdo sobre essa sociedade. Entenden- do-se que a fabulagdo também pode ser um modo de apanhar o espirito do tempo. a Desafios da Revolugdo Social As transformages e crises provocadas pela emergéncia e o desenvolvimento da sociedade civil, urbano-industrial, burguesa ou capitalista, constituem outra matriz da Sociologia. O modo de vida e trabalho na comunidade feudal vem abaixo com a forma- gio da sociedade civil, a organizacio do estado nacional. Hé uma vasta, complexa e contraditéria revolugdo social na Europa, transbordando para outros continentes, O mercantilismo, ou a acumulagdo origindria, iniciava um amplo processo de europeizacio do mundo. Simultaneamente, a Europa sentia que se transformava, em sua fisionomia social, econémica, politica e cultural. Estava em marcha a revolugao burguesa, atraves- sando pafses ¢ continentes, sempre acompanhada de surtos de contra-revolugao, No meio da revolugao € contra-revolugdo, combinando e opondo diferentes setores sociais, grupos ¢ classes, provincias e regies, interesses emergentes ¢ estabelecidos, emergiam burgueses, trabalhadores assalariados diversos, camponeses, sctores médios urbanos, intelectuais, burocracia ptiblica e privada. A medida que se desenvolve e consolida a ordem social burguesa, impondo-se 2o antigo regime, multiplicam-se as lutas sociais ur- banas e rurais. Depois da revoluo burguesa ocorrida na Inglaterra no século XVII da Revolugio Francesa iniciada em 1789, o século XIX assiste 2s revoltas populares no campo € nos centros urbano-industriais. O Cartismo na Inglaterra, desde 1835, ¢ a Re- volugao de 1848-49, na Franga e em outros pafses europeus, assinalam a emergéncia do operariado como figura histérica. Em outros termos, € sob diferentes condigées, algu- 12 TANNE, Octavio. A Sotiologia © 9 mundo moderao, Tempo Social; Rev. Soci. USP, S, Paslo, (1) 7-27, Lsem. 1988. mas linhas dessa histéria manifestam-se na Alemanha, Ttélia, pafses que compéem 0 Im- pério Austro-Htingaro, Russia, Espanha e outros. O século XIX nasce também sob o signo dos movimentos de protesto, greve, revolta ¢ revolucéo. Af estio alguns tragos da sociedade burguesa, com tintas de modemnidade. E evidente que o tema da revolucao social esté no horizonte de alguns dos princi- pais fundadores e continuadores da Sociologia. Estio peocupados em compreender, ex- plicar ou exorcizar as revolugées que ocorrem na Europa ¢ em pafses de outros conti- nentes. E verdade que algumas revolugées preocuparam mais diretamente os fundado- res, Dentre essas destacam-se as francesas e européias de 1789, 1848-49 ¢ 1871. Mas logo eles ¢ outros passaram a interessar-se pelas revolugées que haviam ocorrido ¢ iam ‘cocorrendo nas Américas e na Asia. Alguns livros fundamentais denotam essa preocupa- go: Tocqueville, O Antigo Regime e a Revolugdo; Marx, As Lutas de Classes na Fran- ga; Engels, Revolugdo e Contra-Revolugdo na Alemanha; Lenin, Estado e Revolugéo; Hannah Arendt, Sobre a Revolueéo; Barrington Moore Ir., As Origens Sociais da Dita- dura e Democracia; Karl Polanyi, A Grande Transformagio; Joseph A. Schumpeter, Capitalismo, Socialismo e Demacracia: Theda Skoopol, Estados ¢ Revolugées Sociais. Naturalmente esto em causa vérias formas da revolugo social. Em um primeiro momento, 0 que sobressai € 0 empenho em explicar 2 revolucdo burguesa, que pode ser emocritica, autoritéria, prussiana, passiva. Em outro, a énfase recai na revolugéo po- ular, operdria, camponesa, operdrio-camponesa ou socialista, Mas também hé interesse em analisar 0 contraponto revolugio contra-revolugéo. Em varios casos, de permeio a esas preocupacées, coloca-se 0 desafio da revolugdo permanente. Isto €, as condicées as continuidades ¢ descontinuidades entre a revolugdo burguesa e socialista, em escala nacional ¢ internacional. A rigor, a anilise da revolugio social é um modo de conhecer 2 sociedade, as for- cas sociais que governam os movimentos da sociedade nacional tomzda como um todo. Essa manifestagdo “extrema” da vida social parece revelar mais abertamente as rela- Ges, 08 processos e as estruturas, compreendendo dominacio politica ¢ apropriagéo ccondmica, que organizam ¢ movimentam a sociedade moderna. Como um todo, em seus grupos e classes, movimentos sociais e partidos politicos, as relagées entre a so- ciedade civil e o estado revelam-se mais nitidas nas rupturas revoluciondrias. A revolu- ‘sao social pode ser vista como uma situagio extrema, um experimento crucial, um evento heurfstico, quando se revelam mais desenvolvidas as diversidades e disparida- des, os desencontros ¢ antagonismos, que governam os movimentos fundamentais da sociedade. Estava em curso 0 desenvolvimento da sociedade nacional, urbeno-industrial, bur- guesa, de classes. Com a dissolugdo, lenta ou répida, da comunidade feudal, emergia 2 sociedade civil. Essa ampla transformagio concretiza-se em processos sociais de ambito estrutural, tais como: - industrializagéo, urbanizagio, divisio do trabalho social, secula- IANNh, Octavio. A Seciologie ¢ @ mundo modemo, Tempo Soclal; Rev, Sociol. USP, $. Pale, 10:13 7-27, Lem. 1989. rizagfo da cultura e do comportamento, individuacéo, pauperismo, lumpenizagio ¢ ou- tos. Esse 6 0 paleo do trabalhador livre, formado com # sociedade moderna, Esse € 0 vasto cendrio hist6rico que se constitui na matéria prima da Sociologia, Ela surge como uma forma de autoconsciéncia cientifica da realidade social. Essa ¢ a realidade que alimenta boa parte dos escritos de Saint-Simon, Boaald, Maistre, Tocqus- ville, Comte, Burke, Spencer, Feuerbach, Marx ¢ outros. E claro que esses pensadores alimentam-se dos ensinamentos filosdficos de Hobbes, Locke, Montesquieu, Vico, Her- der, Rousseau, Kant ¢ Hegel, além dos enciclopedistas e outros. Mas é inegével que to- dos estio tratando de compreender, explicar ¢ responder as transformagées e crises ma- nifestas em processos sociais estruturais, em movimentos de protesto, greve, revolta ¢ revolugéo. A Sociologia posterior d4 continuidade a esse empenho de compreender, explicar, responder &s transformagées e crises sociais. Os escritos de Durkheim, Mauss, Halbwa- chs, Weber, Simmel, Toennies, Goldmann, Znaniecki, Mannheim, Gurvitch, Sorokin, Myrdal, Park, C.W. Mills, Merton, Parsons, Lazarsfeld, Bourdieu, Nisbet, Gouldner, Barrington Moore Jr, Schutz, Adorno ¢ outros dio continuidade a esse empenho. E cla- 10 que sio diversas ¢ desiguais as contribuigées de uns ¢ outros, tanto do ponto de vista teGrico como no que se refere as suas implicacées politices. No plano teérico, além das sugestdes relatives ao hiper-empirismo e & fenomenologia, como nos casos de Gurvitch e Schutz, outros revelam-se ecléticos ¢ alguns ortodoxos. No plano politico também re- velam todo um leque de posicionamentos, dentre os quais destacam-se liberais, conse1- vadores e radicais. Mas talvez se possa dizer que todos buscam compreender, explicar, controler, dinamizar ou exorcizar as condigées das transformagées ¢ crises. Em outros termos, em outros paises ¢ continentes, a Sociologia continua a desea volver-se desafiada pelos dilemas da sociedade moderna mais ou menos desenvolvida. Na América Latina, Africa ¢ Asia tanto ressoam as idéias e teorias como os temas ¢ ex- plicagées. Hi contribuigdes que parecem anacrénicas, exéticas ou ecléticas, pelo que ressoam das sociologias européias ¢ norte-americanas. Mas também ha criagées origi- nais, inovagées. Colocam-se novos temas e outras explicagées. Surpreendem ¢ desa- fiam, pels originalidade, forga e invencd A rigor, esses continentes e pafses séo, em certa medida, criagées do Mundo Mo- demo, desdobramentos das forgas sociais que movimentam a sociedade moderna. De- senvolvem-se € transformam-se com os desenvolvimentos e as transformagées que ocor- rem na Europa € nos Estados Unidos. O colonialismo, imperialismo, nacionaliswno, cosmopolitismo e internacionalismo podem ser vistos como produtos e condicées de um amplo proceso de europeizagio do mundo. Em distintas formas ¢ ocasiées, 05 pafses ¢ continentes atrelam-se desigual e contraditoriamente ao que parece ser a forga civiliza- ‘ria do capital. | | | Le tay, Geava, A Soxologia€@ mundo moderne, Tempo Sola Rev. Seal, USF, S. Pato, Hh 7-27, Ls 1989. Revolucionam-se os modos de vida e as culturas nativGs nas mais longinguas re- sides, Os birbaros sio obrigndos a civilizar-se, assumindo a barbérie do capital. Os po- sos foichistas, pantista, sem histéria, que vivam mergulhados no estado de nature?a, do obrigados 2 assinilar o monoteismo bfbico, 2 dligencia do tabalho que produz wercadoria e Iucro, a disciplina exigida pela criagio da mais-valia, a religito éo capita, ati em marcha a revolugdo burguesa em escala mundial. Ao mesmo tempo, por dentro ¢ por fora dessa revolugio, desenvolver-s revolugGes nativsias, naconalisias, soci populares, socialists, Uma espécie de revola desesperada contre a missS0 civilizatéria do capital, se 6 0 amplo cenério no qual o pensamento sociol6gico originério da Europa « dos Estados Unidos tanto se difunde como entra em relacdo & confronto com outras ideas, teoras, temas, explicagées. As obras de Frantz Fanon, José Carlos Manétegul ¢ Florecian Femandes, para citar apenas esses exemplos, expressam ¢ simbolizam ums parte importante dessa hist6ria. Mostram em que ¢ Como © modemizam os paises & continentes que estio além da Europa ¢ Estados Unidos. Ressoam contribuigdes euro- pias rcriadas em face de outros temas, demas. Mostram como se da revolugéo bur fuesa em ootras partes do mundo. E como nasoem as condigdes do socialism, no cone traponto com a barbérie. No comego € na travessi a revoluséo social parece sempre presente no horizonte da Sociologia. Metamorfoses da Multidio ‘Vista em perspectiva ampla, observa-se que a Scciologia formula ¢ desenvolve tl- guns tems da maior importincia para a compreensio do Mundo Moder Eles dizem respeito as transformagGes e crises, As 6pocas ¢ dilemas desse Mundo, Sie recorentss ti diversas abordagens teéricas,distintos paises, diferentes periodos da histéria. Po- dem ser considerados temas cléssicos, inclusive porque polarizam contribuigdes ¢ con trovérsias fundamentais da Sociologia. Testes certamente sfo alguns dos temas classicos que essa histéria nos revela: so- cjedade civil e estado nacional, multidéo, massa e povo, classe social ¢ revolugio, oF Gem e progresso, normal ¢ patol6gico, racionale iacional, anomie allenasio, soars: do e profano, ideologia e utopia, comunidade ¢ sociedade, passado ¢ presents, tradigéo ¢ modernidade. E claro que esses ¢ outros temas séo tratados diferentemente por umas ¢ sutras abordagens te6ricas. Nao hé divide de que slo trabalhados em distinias perspes tivas, conforme o principio explicetivo adotado, Mas é inegével que todos dizem s- peito 20 empenho da Sociologia em compreende e explicar o Mundo Modemo, & des- ee TANMI, Octavia. A Sociologia ¢ 0 mundo modemo, Tempo Social; Rev. Social. USP, S, Paulo, (ll) 18 7-37, Lsem. 1989. peito das suas condigdes muito particulares de organizacao, funcionamento ¢ transfor- magio, € inegével que também as sociedades latino-americanas, asidticas ¢ africanas — além das européias ¢ da norte-americana — ressoam uns ¢ outros daqueles temas, dile- mas. Algumas observagées breves sobre um ou outro desses temas podem ajudar a cla- Tear © que esté sendo sugerido. Sugerir como o pensamento socioldgico e a sociedade moderna so contemporineos, nos seus contrapontos ¢ desencontros. Comunidade ¢ Sociedade é talvez 0 tema mais recorrente no pensamento sociolé- gico, Esté em praticamente todas as obras fundamentais. Desafia as diversas abordagens tedricas. Os filésofos do século XVII estavam interessados nele. Mais que isso, os au- tores das utopias a que assinalam os tempos da Renascenca e os primérdios da socieda- de civil, burguesa, jé revelaram 0 fascinio da comunidade; ou esbocaram a ceriménia do adeus; 20 mesmo tempo que se maravilharam e espantaram diante da sociedade. Mesmo ‘95 que se debrugam apenas sobre a sociedade, em paises e tempos do século XX, mes- mo esses podem estar fascinados ou espantados com essa maravilhosa e diabélica fabri- ca. Estes sdo alguns livros nos quais 0 contraponto comunidade ¢ sociedade esté pre- sente, a despeito da énfase em um ot outro polo, em aspectos gerais ou muito particula- tes: O Contrato Social de Rousseau, O Segundo Tratado sobre o Governo de Locke, O Antigo Regime ¢ a Revolugéo de Tocqueville, A Ideologia Alema de Marx e Engels, A Diviséo do Trabatho Social de Durkheim, Economia e Sociedade de Weber, Comun- dade ¢ Sociedade de Tocnnics, Comunidade de Maclver, A Busca da Comunidade de Nisbet. A comunidade diz respeito & preeminéncia de grupos primatios, relagées sociais face-a-face, prestagio pessoal, contacto entre personalidades plenas, predominio de procugdo de valor de uso ¢ assim por diante. E 2 sociedade diz respeito & preeminéncia de grupos secundérios, dissociaco entre 0 pubblico e o privado, relacdes sociais entre Personalidades-status, organizacao contratual na maioria dos circulos de relagées so- ciais, predominio da produgdo de valor de troca e assim por diante. E possivel encontrar fregiientes ressonincias dessa problemdtica no peasamento sociolégico, bem como em reflexdes de fildsofos producGes de artistas, Uma parte importante do debate sobre passado ¢ presente, reforma ¢ revolucdo, anomia ¢ aliens- So, ideologia utopia, passa por ela, As idéias de liberdade e solidio, de medo da li- berdade multidao solitéria passam por af. A despeito das mais diversas revelagées so- bre a sociedade moderna, de massas, aldeia global, modernidade, subsiste ¢ recria-se Continuamente a iluséo da comunidade presente, pretérita ou future. Ordem e Progresso & lema que sintetiza a Sociologia de Augusto Comte. Mas influencia uma ampla produgéo sociolégica no século XIX e entrando pelo XX, além da Europa ¢ Estados Unidos. No Brasil ¢ México, entre outros paises latino-americanos, a 16 —_TANN!, Octavio, A Sociologia ¢ © mundo moderne. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, $. Paulo, 11% 7-37, Lsem. 1989. Sociologia positivista fez muito adeptos. Tornou-se uma corrente de pensamento, in- fluenciou a organizagéo do estado nacional. Assinala uma época importante da histéria as idéias. Acontece que as expressées ordem e progresso sintetizam uma perspective de in- terpretagdo da sociedade urbano-industrial, de classes, em sua formagio ¢ transforma- gio. A idéia de progresso identifica-se com a da sociedade urbano-industrial, burguesa, capitalista. Sociedade essa vista como uma forma superior, aperfeigoada, da histéria so- cial. Af, 0 estado deve ser forte, dirigente, para que as diversidades ¢ desigueldades entre grupos, classes, regiées, nacionalidades etc. néo afetem a harmonia ¢ o funciona- mento do todo. O progresso econdmico, industrial, capitalista, depende da ordem, har- monia, entre uns e outros. A ordem social ¢ uma exigéncia dos interesses representados ou simbolizados no governo, regime, éstado. Segundo essa orientacéo, nada melhor do que 0 estado forte para por a sociedade em ordem, conforme a religido da paz social. E possivel dizer que a idéia de ordem e progresso nunca foi abandonada pela So- ciologia, da mesma forma que pelas sociedades formadas com 0 Mundo Moderno. Tanto assim que ela esta presente tanto em Comte, Spencer ¢ Durkheim como em Parsons, Bourdieu e Touraine. No passado e no presente a reflexio socioldgica busca compreen- der, explicar e influenciar as transformagées ¢ crises sociais. Apresenta-se como uma forma de conhecer e ordenar a vida social, de modo a aperfeigoar 0 status quo. Nao é facil dizer, e demonstrar, qual € 0 nticleo da Sociologia, o seu tema princi- pal, sua esséncia. Se aceitamos que o pensamento sociolégico se forma e transforma com 0 Mundo Modemo, cabe-nos reconhecer que temas como comunidade e sociedade, ordem € progresso, ideologia e utopia, tradigéo ¢ modemnizagio, anomia e alienacio, re- volugdo € contra-revolucdo expressam dimens6es sociais e tedricas basicas da Sociolo- gia. Talvez seja possivel afirmar que esses ¢ alguns outros temas expressam 0 micleo dessa forma de pensamento. Mas é possivel sugerir que um aspecto essencial da Sociologia aparece no seu em- penho em compreender, explicar ¢ controlar a multiddo. A multidio surge na sociedade civil, urbano-industrial, burguesa, capitalista. Aparece nas manifestagdes de campone- ses, operdrios, populares, desempregados, miserdveis, famélicos. Desde os comegos da sociedade nacional, quando se rompem as relagGes, 0s processos ¢ as estruturas que or- ganizam o feudo, o grémio, 0 convento, a aldeia, o vilarejo, desde esse entio ele irrom- pe na sociedade, com # sociedade. Nos campos e cidades, nas casas de negécios e fi- bricas, nas ruas ¢ pragas, ela se tora uma realidade viva, forte, surpreendente, assusta- dora, deslumbrante. Desde o século XVI multiplicam-se os protestos, as revoltas ¢ as revolugdes po- pulares. As guerras camponesas na Alemanha sio uma amostra e um simbolo dessa 5 Octavio. A Soclologia ¢ 0 mundo moderne. Tempe Sorlal; Rev. Sociol. USP, Paulo, 1}: 17 ‘7, ser. 1989. histéria. Os camponeses estio em luta contra as obrigagées feudais (dizimos e presta- goes para os senhores e a igreja), querem melhorar as suas condigdes de vida, aumentar a sua participacéo no produto do proprio trabalho, ampliar 0 seu horizonte social ¢ cul- tural, conquistar alguma liberdade. Mas essa luta assusta os senhores, priacipes e bispos do passado, bem como os burgueses do presente, Séo muitos os lagos que se romper; € incertos os horizontes que se abrem. Os grupos dominantes, pretéritos ¢ presentes, jun- : tam-se para evitar transformacées mais drésticas, répidas. No empenho de evitar o rom pimento das estruturas sociais prevalecentes, Lutero adota posigSes semelhantes as do Vaticano. Reforma sim, mas nem tanto. ey Em vérios paises, em diferentes épocas, desde 0 século XVI ao XX, a multido se manifesta, protesta ou revolta, a0 mesmo tempo que atemoriza ou entusiasma. Na Re- volugio Francesa iniciada em 1789, nas revolugdes européias de 1848-49, na Comuna de Paris, em 1871, em varias épocas e situagdes, a multidao se transforma em um tema freqiiente, reiterado, obsessivo do pensamento sociolégico. Sio muitos os estudos que registram, descrevem ou interpretam os acontecimentos: protestos, greves, revoltas ¢ re- volugées; banditismo social e messianismo; movimentos sociais e partidos politicos; ja- cobinismo, blanquismo, anarquismo, socialismo e comunismo. Todos estio atravessados pela presenca da multidio, plebe, turba, malta, patuléia, ralé, massas trabalhadoras, classes populares, coletividades em busca de cidadania, povo em lute pela conguista de ireitos politicos e sociais. Alguns escritos antigos e recentes entram nessa corrente: Manifesto do Partido Comunista de Marx ¢ Engels, As Guerras Camponesas na Ale- manha de Engels, A Guerra Civil na Franca de Marx, O Povo de Michelet, Psicologia i das Massas de Le Bon, A Multiddo Criminasa de Sighele, Psicologia das Massas de i Freud, A Rebelido das Massas de Ortega y Gasset, Massa e Poder de Canetti, 0 Gran- de Medo de 1789 de Georges Lefebvre, Classes Trabathadoras e Classes Perigosas de Louis Chevelier, A Multiddo Solitéria de Riesman, A Politica da Sociedade de Massas de Komhauser, Rebeldes Primitivos de Hobsbavn, A Multidéo na Histbria de George Rudé, Guerras Camponesas do Século XX de Wolf, O Poderio das Multidées de Jac- ques Beauchard. que esté em causa, fundamentalmente, € a questio social que isrompe no hori- zonte da sociedade modema, seus governantes, os que detém os meios materiais e espi- Tituais de controle das instituigdes sociais. As mais diversas manifestagées populares, na cidade e no campo, revelam aspectos sociais, econémicos, politicos, religiosos, cul- turais e outros da questio nacional. Uma parte significativa da reflexdo sociolégica, desde 0s seus primeiros tempos, Telaciona-se a essa problemética, influenciando as reflexdes sobre sociedade civil ¢ es- tado nacional, ordem € progresso, racional e irracional, anomia e alienacao, ideologia e 18 JANNI, Ceuvie. A Sociologia e © mundo modero, Tempo Socal; Rev. Sociol, USP, $, Paulo 1): 7-7; sem. 1989. utopia, revolugio e contraevolugéo, comunidade ¢ sociedade, Trata-se de compreen- der, explicar, orientar, controlar ou expressar a forga ¢ 0 significado da multidio. Nese sentido € que se pode dizer que a Sociologia realiza uma complexa metamorfose da multidio. Cada comente de peasamento socioldgico parece oferecer uma solugéo pro- pria para o surgimento, as transformagées ¢ as tendéncias da multidio, Procuram dar tuma solugéo te6rica e pritica para um fenémeno que impressiona, desafia, assusta ou centusiasma, Uma primeira corrente da Sociologia lida com a idéia de massa. Para muitos, © conceito de massa é suficiente, claro, explicativo. A massa € naturalmente composta de trabalhadores assalariados, empregados e desempregados, na cidade e no campo. Euma coletividade forte, impressionante, mas que depende de instituigdes, regras, objetivos © rmeios para onganizar-se, manifestar-se. Caso contrério transborda dos limites do rizoé- vel, da conveniéncia, da ordem. Por isso, depende da elite. Esta 6 que pode The oferecer referéncias, norte, sentido. O contraponto necessério da massa é a elite que dirige, com ‘manda, organiza, governa, manda. Parcto é um autor classico desse ponto de vista. Mas ‘outros houve; € b4. A segunda corrente da Sociologia lida com a idéia de povo. O pove visto come uma coletividade de cidaddos. Supée a possibilidade de que a multidio pode ser orga- nizada em movimentos sociais ¢ partidos politicos que a expressam, organizam, edu- cam. A multidio adquire os tragos juridico-politicos convenientes, adequados, quando se organiza como povo, no sentido de coletividade de cidadaos. Cidaddos que se ca- racterizam pela faculdade de volar e ser votados. No limite, todo e qualquer cidadao pode exercer cargos no legislative, executivo ou judiciério, desde que preencha os te quisitos jurfdico-politicos estabelecidos na constituigéo liberal ~democrética. Tocqueville € um autor que pode situar-se nesse ponto de vista, Outro € Stuart Mill. ‘Mas cabe lembrar que ambos eram moderados, no que se refere & participacdo do povo no processo politico. Cada um a seu modo, julgavam que 0 exercicio do poder politico da maioria poderia provocar a tirania, Isto 6, 0 exercicio do poder pelo povo carrega consigo a tirania da maioria, Tocqueville e Stuart Mill podem ter sido os primeiros, mas outros houve; ¢ hé. E uma terceira corrente da Sociologia lida com a idéia de classe social. A classe & vista como uma categoria que expressa as diversidades e desigualdades que se acham na base das manifestagées da multidéo, massa, povo. Em tiltima instancia, o que funda 0 movimento social, protesto, greve, revolta, revolugdo, é 0 modo pelo qual se produz € reparte a riqueza social. A expropiagéo do trabalhador, produtor de mercadoria, valor, lucro, mais-valia, est4 na base do pauperismo, desemprego, caréncia. Tanto as revoltas camponesas na Alemanha do século XVI como a revolugéo popular na Franga, Alema- IANNL, Octavio. A Sociologia © 0 mundo moderne, Tempo Social; Rev. Social. USP, 8, Paulo, X(t: 19 7-27, Lem, 1989. nha e outros paises da Europa em 1848-49 sio manifestagées de trabalhadores “livres” em busca de melhores condigdes de vids, de outra forma de organizagao social da vida e trabalho. Assim, em lugar de ser anémalos, excepcionais, perigosos, os movimentos sociais, protestos, greves, revoltas e revolugGes exprimem as desigualdades contra as quais Iutam os trabalhadores do campo e da cidade, desde os comegos da sociedade moderna. Marx é 0 autor cléssico dessa anélise, Mostra como a classe social se acha na base, no centro, dos movimentos, lutas ¢ impasses que aparecem como se fossem da rmultidgo, massa, povo. Além de Marx e Engels, outros houve; e hé. Em vérias épocas, assim como em diferentes perspectivas, esté em curso 0 empe- nho do pensamento sociolégico em explicar, controlar, dinamizer ou exorcizar a pre- senga da multidio, massa, povo ou classe social nos movimentos da sociedade moderna. ‘Talvez seja possivel dizer que essa problemitica esta influenciando também as reflexdes sobre sociedade civil e estado nacional, comunidade ¢ sociedade, ordem ¢ progresso, racional ¢ isracional, anomia e alienagio, ideologia ¢ utopia, revolugao ¢ contra-revolu- g40, entre outros temas cléssicos da Sociologia; entre outros dilemas clissicos das so- ciedades formadas com o Mundo Moderno. Modemidade A idéia de Sociologia 6 contemporinea da idéia de Modemidade, Ambas nascem na cidade, Formam-se principalmente em Paris, capital do século XIX, em meados des- se século. Af decantavam-se as mais novas ¢ tipicas realizagGes materiais ¢ espirituais da sociedade modema. Desde que a Sociologia se debrugou sobre as relacdes, os processos ¢ as estruturas que constinuem 2 sociabilidade humana na sociedade modema, logo se colocaram as- Ppectos fundamentais da emergéncia da pessoa, individuo, cidadio, como um ser social singular, auténomo, surpreendente, que se sintetiza na liberdade; ou na solidio. Ele aparece como a mais recente e original realizagao social do Mundo Modero, lado a Ta do com a mercadoria. E a célula da sociedade, um 4tomo. Pode pensar-se singular, in- dependente, solitério, anénimo, livre, niilista. ‘A crescente intelectualizagio dos individuos ¢ a continua racionalizagao das orga- nizagées pareciam “despojar de magia o mundo”, desencanti-lo. © homem e a socieda- de pareciam conquistar 0 controle de seus atos, do seu presente, emancipados do passa- do, O mundo iluminava-se de outras cores. As ciéncias conferiam a muitos a ilusio do —--_——— gp IAN, Octavio, A Sociologia « © mundo rderne, Tempo Social: Rev Socio, USPS: Feo, MDE "7-31 Lsem. 1989. progresso, da resolugdo dos problemas matersis ¢ espisitusls Em 1837 Macaulay dizia ue 2 ciéacia “abrandou o sofrimento, venceu as doengas, aunenicl & fertilidade do jolo", deu “novas armas a0 guerreiro”, “iluminou a noite com 0 esplendor do dig, am- pliow 0 alcance do olho humano”, “acelerou o movimentoy reduziu as distdncias”, “fa- Pitou as comunicacdes", “'a condugio dos negécios"” e assim por diante, ‘A ciéncia & incansdvel. "A sua lei 0 progresso” ', std em curso 0 desencantamento do mundo, de que fala Weber, retomando as su- gestées de Schiller, Desde 0 steulo XVILL, ¢ em forma acentuada ¢ generalizada no SEX, os progressos da ciacia pareciam reduzir os expagos da tradicio, supersticéo, re-_ ligifo. Iniciava-se um amplo processo de afirmagio do presente, rompimento com 0 passado, A razio parecia vencer © apagar a 6. Os homens ficam orfios de Deus. Sé0 obrigados a assumir 0 proprio destino. ‘Um dos segredos da Modernidade esti em que o homem se defronta com ut des tino trégico. Tanto pensa, reflete, compreende explica, que pode prescindir de Deus. Bestacse a1 proprio, por sua inteligéncia ciéncia, azio ¢ invengéo. Dé-se no requinte fe aggasinar Deus. “Nao seremos forgados « tomarmo-nos deuses para parecernc’s pelo menos, dignos de deuses? Jamis houve ago tho grandiose « aqueles que poderio psec depois de n6s, perteacerdo por esta agdo ¢ uma historia mais alta que o foi até ‘aqui qualquer histéria’ < Na sociedade moderna, o homem abandonou a tradigéo © a religiéo, Deus ¢ o Dise to. Inelectualiza-se de tal maneira que desencanta 0 muado de vis6es ¢ Fanissmis. Afugente, confina ou domina a incerteza, 0 desconhecido, © inodgnito. Considera-se Senor do proprio destino. Substtui a tradigfo ¢ @ religiéo pela razio. A razio pode captar, compreender, explicar ¢ ordenar o mundo. Mais que sso» confere forma ¢ senti- srry mundo, retirando-0 do limbo; Fimpo. “O que é racional é real e o que é real ére cHonal”" iz Hegel, inaugurendo uma face do Mundo Moderne, da Modemidade a. a razio que descobre, nomeia, explica ¢ exoreiza visdes e fantasmas. Descobre que eles nfo estio no além, mas aqui, agora, & luz do di, transparsl=®, razpiveis. Sé0 A ifcheo, eriados pelo proprio horzem, aos quais ele se submete, imaginando-es auténe- thos, disocindos do homem, independentes, naturalizados. O fetichismo é ume fabula- Gao do dia-a-dia da vida de todos ¢ cada um. Ele se eria¢ recria na rams das relagies ae 1 Macaulay, Ensaio sobre Bacon, citado por STEINER, George, Dans le chdtenu de Harte, May El ne redfiniion de la culave. ‘Trad, Lucienne Lotringer. Pars, Gallimard, 1973p. 18. 9 Pe eesttie, F. A Gaia Citnci, Trad, Mércio Puglisi, Béson Bis « Norberto ds Pauls eae reed Peal Hem Livrara tora Lida., 1976, p. 134 citagso do aforisina n> 12°) 95 Ha NONE Prinapios da flop do direlto. Trad, Orlando Vitorno, Lisbos, Goins: Hes Editores, 1959, p. 13 (citaga do prefécio). TANNI, Octavio. A Sociologia ¢ @ mundo moder, Tempo Social; Rev. Sociol USI 7631, Laer. 1983. aslo, 2 sociais, descolado, naturalizado, reificado. Parece uma inesperada fabulagio das ativi- dades humanas, que fascina ¢ assusta. O halo mistico abandona os deuses ¢ os sonhos, as visdes ¢ os fantasmas. Pée-se coroando os produtos mais prosdicos do dia-a-dia pre- sente, conferindo-lhes solenidade. Tanto governo, bandeira, hino, herdis, santos, vité- rias, tradigGes, monumentos e ruinas, como mercadoria, dinbeiro, juro, renda, salério ¢ Iucro, tudo se deixa impregnar daquela inesperada fantasia, eriando a ilusio do halo que fascina e assusta. [As coisas criadas pelos homens projetam-se diante deles como seres sociais, dota dos de vida propria, relacionando-se entre si ¢ com os homens, auténomas, naturaliza- das, reificadas, ideologizadas. O criador submete-se A criatura, em deleite ¢ espanto. Agora as visGes e os fantasmas nao se encontram mais Ié fora, foreando para entrar, vi- giadas por Deus, estimuladas pelo Diabo. Os fetiches sio criados ¢ recriados cotidie- namente, 4 luz do dia, sombra da razdo. # af que se instaura o sentido trégico também presente na Modernidade. Agora 0 homem tudo sabe, sobre este ¢ © outro mundo. Tem tanta razio que desvenda os fet ches que ele priprio recria e recria, no cotidiano do dia-a-dia. Mas se reconhece aquém ¢ além dessa razio, Descobre que 0 seu entendimento nfo 0 emancipa de si, do que & como fabulagdo. Com o fetichismo das suas relagdes sociais, entroniza visdes e fantas- mas, nos quais se conhece ¢ desconhece, que alegram e 0 assustam. Um aspecto essencial desse clima é registrado por Baudelaire, quando descobre que 0 individuo da cidade esté solto ¢ perdido no meio da multidao, “do grande deserto de homens”. E af que se revela o que bd de breve, fugaz, aleatério, no modo de vida presente. “A Modemidade € o transitério, efémero, contingente” 4, Esto em curso a secularizagio da cultura ¢ do comportamento, ¢ industrializagdo © urbanizagio, @ divisto do trabalho social e a mercantilizagio. A marcha da revolucio burguesa, lenta e répida, parcial e dréstica, quebra, subordina ou destroi tradigées, re- gionalismos ¢ provincionismos materiais e espirituais. © trabalho produtivo se impde & pregui¢a, o proprietirio & terra, o capital ao trabalho, a fabrica ao grémio, o mercado & economia doméstica, a mais-valia & mercadoria. “A burguesia despiu todas as ativida- des até aqui veneriveis ¢ estimadas com piedosa reveréncia da sua aparéncia sagrada. Transformou © médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciéncia em trabalhado- res assalariados pagos por cla. ... Todas as relagées fixas e enferrujadas, com o seu 4 BAUDELAIRE, C. A Modernidade de Baudelaire. Org. Teixeira Coetho, trad. Suely Cas- sal, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1988, p. 173-4. 22 TANML Octavio, A Sociologia ¢ 0 mundo modems. Tempo Socal; Rev. Sociol, USF, S. Paulo, 1) 7-21, sen. 1985 cortejo de vetustas representagées € concepgées, so dissolvidas, todas as recém-forma- das envelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudo 0 que era dos estados (ou ordens sociais) ¢ estivel se volatiliz, tudo 0 que era sagrado € profanado, e os homens sio por fim obrigados a encarar com os olhos bem abertos @ sua posicfo na vida e as suas rela- (g6es reefprocas” °. 'A Sociologia ¢ a Modernidade surgem na mesma época, na mesia idade. Talvez se possa dizer que a revolucéo popular de 1848 despertou o Mundo para algo novo, que pio havia sido ainda plenamente pereebido, A multidéo aparecia no primeiro plano, no horizonte da hist6ria, E aparecia como multidio, massa, povo ¢ classe. A revolugao de 48 em Paris repercutiu em toda a Franga, na Buropa ¢ em muitas partes do mundo. Via- se que a multfo toriava-se classe revolucionéria em conjunturas critcas. A metamorfo- se pode ser brusca, inesperads, assustadora, fascinante. Em Paris de 48 viviam, traba- Ihavam, produziam ¢ Iutavam Tocqueville, Proudhen, Comte, Marx, Blanqui e Baude- laire, Na capital do séoulo XIX, quando se revelam os primeiros sinais de que a socie- dade burguesa também é histérica, transitéria, nesse momento nascem @ Sociologia ¢ a Modernidade. 34 é evidente que a ciéncia nfo se traduz necessariamente em progresso, que 0 de- senvolvimento material ndo se traduz em desenvolvimento social e espiritual, Pode in- clusive ocorrer que os usos da ciéneia agravam a questo social, desumanizem as rela- ges entre os homens, transformados em objetos das suas criaturas, “Vemos que as mé- uinas, dotadas da propriedade maravilhosa de reduzir ¢ tomar mais frutffero o traballno hhamano, provocam a fome e o esgotamento do trabalhador. As fontes de riqueza recém- descobertas se convertem, por artes de um estranho maleficio, em fontes de privagées. Os triunfos da arte parecem adquirides ao prego de qualidades morais; mas, ao mesmo tempo, o homem se transforma em escravo de outros homens ou da sua prOpria infémia ‘Até a pura luz da ciéncia parece s6 poder brilhar sobre 0 fundo tenebroso de ignorin~ cia” 6, ‘Acontece que 0 individuo autSnomo, andnimo, independente, livre, senhor do proprio destino, foi uma ilusio. Nem no século XIX nem no XX o cidadio chegou & conformar-se com uma realidade social, politica, espiritual. 5. MARX, K. & ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunisto. Trad. Alvaro Pina, noias Vasco Magathfes-Vilhena. So Paulo, Editora Novos Rumos, 1986, p. 84-5. 6 MARX, K. Discurso pronunciado na festa de aniversério do “People’s Paper”. In MARX, K. & ENGELS, F. Textos, Sio Paulo, Edigées Socizis, 1977, vol. 111, p. 298-9. IANNI, Oeuvio. A Sociologia ¢ ¢ mundo moderno. Tempo Social; Rev. Sociol, USP, S. Paulo, 4): 23, 7-27, Lem. 1989. ania, liberdade, muito mais como quimera. Por sob a aparéncia da autonomia da liber- dade, escondia-se a solidio niiliste. Como relembra Adorno, a idéia de que “o indivi- duo tenha sido liquidado por completo, eis af um pensamento demasiado otimista” ’, No século XX, redescobrem-se os antigos ¢ os novos limites da cidadania. Mas subsiste a ilusio da liberdade. # daf que nasce o heréi solitério e triste de Chaplin. Numa das mais avancadas expressées da Modemidade que € 0 cinema, surge o lumpen olhando espantado para os outros, as coisas, o mundo. Carlitos & um herd trigico. Solitério e triste, vaga perdido no meio da cidade, um deserto povoado pela multidio. Farrapo coberto de farraros. Fragmento de um todo no qual nfo se encontra; desencontra-se, Caminha perdido e s6, no meio da estrada sem-fim. Parece ele e outro, outros ¢ muitos, todos os que formam conformam a multid’o gerada pela sociedade moderna. Um romento excepcional da épica da Modernidade, Esse é uma das mais extremas e cruéis sétiras sobre © Mundo Moderno. Carlitos revela a poética da vida e do mundo, a partir da visto parddica do lupen que olha a vida e 0 mundo a partir dos farrapos, da extrema cartncia, de baixo-para-cima, de pon- ta-cabeca. + Sio diversas as faces da Modemidade que se revelam nas obras de cientistas, fild- sofos e artistas. Cada um a seu modo, muitos estio percebendo 0 que hé de novo e sin- gular no Mundo Modemo. © presente parece romper-se do passado, o homem se pensa senhor do seu destino, o futuro talvez esteja ao alcance da mio. Esse é 0 mundo produ- zido por uma ampla e intensa transformacio material e espiritwal, quando as ilusées do progresso naufragam nas lutas sociais, ao mesmo tempo que a utopia do futuro germina das mesmas lutas sociais. A sociedede e o individuo séo atravessados por realidades desconhecidas, assustadoras, fascinantes. Realidades que se expressam em novas idéias, categoria, teorias, ilusdes, visdes do mundo, Muitos defrontam-se com o singular con- traponto por meio do qual se desenha o labirinto da Modernidade: anomia e alicnagio, racional e irracional, ideologia e utopia, liberdade e solidao. Nesse ambiente, a Sociologia encontra elementos essenciais da sua formagio, do seu estilo de pensamento. A despeito das diversidades de perspectivas, das peculiarida- 7 ADORNO, T.W. Minima Moralia, Trad. Norberto Silvetti Paz. Caracas, Monte Avila Edi- tores, 1975, p. 153-4. Consultar também: HABERMAS, Jurgen. Problemes de legitimecion en el capitalismo tardio. Trad. José Luis Etcheverry. Buenos Aires, Amorrostu Editores, 1975, p. 142-155, item intitulado “El final del individuo?™. 24 TANT, Octavio. A Sosiologia e 0 mundo modem. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo 1): 7-27, Lsem. 1989. des dos principios explicatives, é inegivel que a Sociologia nasce ¢ desenvolve-se com as realizagSes ¢ 0s dilemas da Modernidade, Tanto assim que ela nio abandona ess problemitica primordial. Ao coatriro, torne e retorna fregientemente a ele. No pre- sente, como no passado, a Sociologia esté empenhada em desvendar o modo pelo qual 0 homem, Deus ¢ 0 Diabo esto metidos no meio do redemoinho. Epica do Mundo Moderno ‘A Sociologia revela ¢ constitui dimens6es essenciais do Mundo Modemo. As ex: pressées sociedade civil ¢ estado nacional, comunidade © sociedade, ordem e progresso, racional e irracional, anomia ¢ alienago, ideologia ¢ utopia, revolugio ¢ contra-revolu- cio, entre outras, explicam ¢ constituem muito desse Mundo. Essa problematiea denota 6 empenho do pensamento sociol6gico em compreender, interpreta, taquigrafer, orde- nar, controlar, dinamizar ou exorcizar esse Mundo, Algumas das suas dimensées esscn- ciais mostram-se mais claras, acentuadas ou surpreendentes nas explicacdes e fabula- g6es que constituem grande parte do pensamento sociolégico. Nesse sentido € que s¢ pode imaginar que sem a Sociologia 0 Mundo Moderno seria mais obscuro, inoégnito, Ficaria um pouco mais no limbo. O vulto do desafio, da empresa e da realizago Janga a Sociologia também no pla- no artistico, B claro que © compromisso com a reconstrugao da realidade, compreen- dendo relagées, processos ¢ estruturas sociais, organiza-se basicamente em moldes dese critivos € interpretativos. O significado cientifieo do escrito predomina no modo pelo qual se reconstrci e explica a realidade social. O escrito impde-se & eseriura. Mas 2 es critura pode adquirir também conotagées artisticas. Além dos compromissos cientificos ¢ das implicacées filosbficas, ela pode revelar entonagdes draméticas ¢ €picas. E possfvel constatar que algumas das principais obras da Sociologia possuem tam- bém conotagdo axtistica, seja dramitica seja épica, ou mesmo mesclando ambas. O mo~ do pelo qual recriam, compreendem, explicam ¢ fabulam a realidade sociais, em seus movimentos € impasses, encontros e desencontros, sugerem algo nesse sentido, Sim, ‘uma parte da Sociologia apania o Mundo Moderno como espetculo. E 0 homem esse ‘Mundo como personagem singular ¢ coletivo, figura ¢ figuragio. Hé livros nos quais a narrativa esté atravessade por algo que parece uma force maior, que arrasta as pessoas e as coisas, umna espécie de pathos assustador e fascinan- te, Néo 6 mais o destino da épica grega que atravessa a vida do individuo e sociedade, — TANNE, Octavio, A Sociologia © 0 mundo moderne, Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, If}! 25 7-27, sem. 1989. comandando os homens um-a-um e todos, em suas relagées entre si, com a natureza os deuses. No Mundo Modemo, o que comanda a vida da coletividade e do individuo, no campo ¢ na cidade, pode ser 0 poder, 2 ordem, 0 progresso, o racional, o irracional, 2 anomia, a alienacéo, a ideologia, a utopia, a revolugéo, a contra-revolugo. Todos e ca dda um sfo levados por algo que parece ser a forca das coisas. E claro que nio se podem esquecer relagdes, processos e estruturas presentes no Ambito da econémica, politica, religifo, ciéncia, cultura, etc. Nio hd dilvidas de que 2 tecnologia, o capital, a forga de trabalho, a divisdo do trabalho social e outros compo- rnentes da vida social so poderosas forgas que s¢ impGem sobre uns e outros. Também € Obvio que a luta pelo poder, politico, econdmico ou outro, galvaniza uns e outros, muitos, todos. As relagées entre dominantes ¢ dominados, governantes € governados, Girigentes e subaltemos, estio atravessadas por forgas que carregam 0s individuos, eru- pos e classes sociais alem dos seus desfgnios, ideais, ilusdes. As vezes atingem as pes- sas, grupos, classes, movimentos sociais, partidos politicos, amplos setores sociais ou mesmo a sociedade como um todo, como se fosse um tuféo, um terremoto. Talvez isto estivesse no espitito de Hegel quando se preocupou em lembrar 0 seguinte: “Napoleéo disse uma vez, diante de Goethe, que nas tragédias do nosso tempo a politica substituiu ‘© destino das tragédias antigas” ®. Na comunidade grega, os deuses comandam o desti- no dos homens, incutindo-Ihe o mistério do pathos. Na sociedade burguesa, a luta pelo poder comanda o destino dos homens, incutindo-lhe 0 mistério do pathos. E 0 que esté em causa, quando a Sociologia procura apanhar as transformacées e crises, épocas € impasses do Mundo Moderno, da Modemidade. Uma forga que atravessa a coletividade, individuo, grupo, classe, movimento, partido, protesto, revolta, revolugao, cidade. E 0 que confere aos escritos sobre a sociedade moderna uma inflexio artistica. Nessa perspectiva € que se situam algumas das obras fundamentais da Sociologia, entre as quais lembramos agora as seguintes: O Antigo Regime e a Revolugéo de Toc- queville, Manifesto do Partido Comunista de Marx ¢ Engels, A Diviséo do Trabalho Social de Durkheim, A Etica Protestante e 0 Esptrito do Capitalismo de Weber, Comu- nidade ¢ Sociedade de Toennis, Ideologia e Utopia de Mannheim, A Personalidade Autoritéria de Adomo e outros, O Homem Unidimensional de Marcuse, Guerras Cam- onesas do Século XX de Eric Wolf, As Origens Sociais da Ditadura e Democracia de Barrington Moore Jr., 7 Ensaios de Interpretacéo da Realidade Peruana de José Carlos 8 HEGEL, G.W.F, Lecciones sobre ta flosofia de la historia universal, Trad. José Gaos, 4ed., Madrid, Revista de Occidente, 1974, p. 499, as IAN, Octavio. A Sosioogn« © mundo mero, Tempo Soca Rev. Sexcl, USP, S Paslo 1C 17-37, Lsem. 1989. Maciétegui, A Revolugdo Burguesa no Brasil de Florestan Femandes, Os Condenados da Terra de Frantz Fanon. A histéria contada nesses escritos néo terminou. Continue viva, presente, decisiva. A inteligéncia da sociedade néo garante # sua cemancipacéo. O vreemo homer que explica, nfo se emancipa, Debutese como individuo ¢ coletividade, pessoa e personagem, figura ¢ figuragSo. Pode principalmente refazer a esperaiss 9 btopia. Canta e desencanta # inflexio dramética ou épica impregnando os movimentos da sociedade. ‘Alguns soci6logos traduzem de forma particularmente nitiéa a dimenséo épics do Mundo Modemo, Mostram como a razio Tuta para compreender, explicar taquigrafar, slorifcar ou exorcizar a realidade social. Procuram os limites ¢ as sombras que Gistin- jquem e confundem comunidade e sociedade, ordem e progress, racional ¢ isracional, nomia e alienacéo, ideologia ¢ utopia, revolugéo e contra-revolucéo, Procuram 0 Ivgar de rando no jogo das relagGes,processos e estuturas que se exprestam em transforma Bes e impasse, épocas e crises. Pazecem demiurgos, idando com as imensas forgas so- aia, econémicas, poltcas, religioses e outras; tratando de explicar o Mundo, comprs- ndélo, conhecet 0s seus movimentos € as suas possiilidades; proeurando confers-Ihe outro destino; querendo reinventar a vida. Weber ¢ Marx sio dois sociélogos em cujas obras encontramos alguns elementos essenciais da épiea. Nao querem apenas conheeer @ sociedade modema, burgues®, C2 pitalista. Querem explicar como ela se forma ¢ transforma, de onde vem ¢ Part aonde vrai, Procurem explicar o que pode ser @ humanidade criada com © capitalism, F como te transforma, preserva, transtoma, Séo dois estilos de pensarento, duas interpretacées da sociedade moderna, duas visbes do mundo. Max Weber 6 uma das figuras notéveis dessa épica. Grande parte da sua Sociclo- sia revela’um debate desesperado sobre o racional ¢ o irracionel. Mostra como © indivi- duo, grupo, classe, insinigéo, sociedade, estado, formam-se ¢ confommas-se, todo o tempo, 2 beira da razio, sem-razio. A tradicio eo carisma, o despotismo ¢ 2 demagogia parecem rondar continamente as pessoas, as coisas ¢ as idéias,o real ¢ 0 imaginério. A fraga da vocagio se revela no castigo éa profisio, ganho, luro, acumulaéo, A fe compensa pelo ascetismo se mostra na obediéncia do individuo e soviedade aos desis hos das coisas, de forgas que escapam ao controle tanto do indivfduo como da sovieda- de, Todos parecem vagar extrwviados, perdides, solitirios, no labisinto do Mundo Moderno, Mundo esse no qual Weber pode ser visto como um Prometeu ecorrentado, Karl Marx € uma das figuras mais fortes dessa épica. A sua obra ¢ toda ela um vasto mural do Mundo Modemo. Todas as principais linhas, figuras ¢ cores, todos os prineipais movimentos e sons desse Mundo estio assinalados nos seus escrtes, vibran- do na sua escritura, A narrativa de Marx ressoa sempre esse tempo presente, no qual 1 IANNI, Octavio. A Sociologia e 0 mundo moderno, Tempo Social; Rev, Sociol. USP, S. Paulo, 1) 7627, Lsem. 1989, se lembra o passado e ressoa 0 futuro, Um tempo que contem os muitos andamentos dos individuos, grupos e classes, movimentos sociais e partidos politicos, diversidades ¢ de- sigualdades, contradigGes e rupturas, revolugdes e contra-revolugées. Assim se revela a historicidade da sociedade moderma, do Mundo Modemo. Apenas um momento da his- ‘ria, € no 0 apogeu e coroamento de todas as outras idades. Em seu interior germinam as forcas ¢ as relagdes que abalam o presente, resgatam fragmentos do passado, podem construir 0 futuro. A histéria da sociedade burguesa € uma histéria de lutras sociais. Mas o segredo mais recdndito dessas lutas esté em que elas produzirao a sociedade fu- tura, livre das desigualdades escondidas nas diversidades entre individuos, grupos, clas- 06, regides. Nesse entio, 0 homem estaré livre da propriedade privada capitalista, en- tendida como fato juridico-politico, como realidade social e como principio organizaté- rio universal da vida material ¢ espiritual. Nesse entio, os sentidos fisicos e espirituais do homem estario livres para expressar-se, revelar-se. Assim comega a apagar-se 0 componente de barbaric que acompanha a Modernidade, Livres da tiranie desse princi pio, que os organiza, ordena ¢ subordina, os sentidos fisicos ¢ espirituais poderdo des- cobrir e inventar formas, cores, sons, movimentos, imagens, figuras, idéias e outras di- mens6es escondidas na maquina do Mundo. Assim, desse modo, plantado no vasto mu- ral do Mundo Modemo, Marx pode ser visto como um profeta iluminado. IANNE, Ostvie, Sociology and the Modern World, Tempo Social; Rev. Sociol. USP, Sio Pavlo, 1CNE7-27, Lsem. 1983. ABSTRACT: This essay attempts to clarify sociology’s “commitment” to 2 modern world based on capitalist development. First, the principal classical theories are examined. ‘They are shown to have risen alongside the challenges confronting society in the mid-19th Century. We are reminded that these theories continue providing models for sociological currents proposed in the 20th Century. Second, sociology’s fundamental themes, also created in the atmosphere of that society, are listed — themes that are still basic to the currents developed in the 20 Century. Third, the relationships between sociology and modemity are analysed. It is suggested that, in light of modernity, this discipline expresses ‘lemmas and perspectives of thought. Finally itis suggested that sociology can be read as 2 literary form in which epic creations ean be distinguished. Because of its themes and explanations, sociology often resembles an epic of the modern world. UNITERMS: Sociology: classical theories, fundamental themes, modernity, epic of the modern world,

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