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A BIBLIOTECA DE MACHADO DE ASSIS Copyright © José Luis Jobim e outros, 2001 Reimpresso em 2008, ano de centendrio da morte de Machado de Assis Direitos de edicgdo da obra em lingua portuguesa no Brasil adquiridos pela Torsooxs Eprtora. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrénico, de fotocépia, gravagio etc., sem a permissao do detentor do copyright. Editor José Mario Pereira Editora-assistente Christine Ajuz Organizacéo e apresentagio José Luis Jobim Capa Adriana Moreno Tovos OS DIREITOS RESERVADOS POR Topbooks Editora e Distribuidora de Livros Ltda. 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Machado de Assis, leitor (autor) da Revista do IHGB — Jofio Cezar de Castro Rocha aus 31S “O lapso” ou uma psicoterapia de humor — Ivo Barbieri .......... 335 Machado de Assis, estudioso de lingua — Claudio Cezar Henriques. wee 349 Uma ligdo de historia: “Conto de escola” de Machado de Assis — John Gledson .. - 359 Machado de Assis, membro do Conservatério Dramdtico Brasileiro ¢ leitor do teatro francés — José Luis Jobim........ 373 O LAPSO OU UMA PSICOTERAPIA DE HUMOR Ivo Barbieri Quando me propus estudar os titulos relacionados com Psiquiatria, hoje ainda existentes no acervo restante da Biblioteca de Machado de Assis, eu tinha em mente identificar poss{veis fontes de inspiragao e, depois, cotejar textos da fico machadiana com modalidades de discur- sos expositivos, concebidos 4 época dentro do rigor metodoligico exi- gido das ciéncias naturais. Mais do que conseqiiéncia da onda avassala- dora do cientificismo positivista, 0 século XIX tardio buscou na Psicologia uma sintese que coroasse todos os empreendimentos da inte- ligéncia te6rica testada na prdxis histérica, cuja ambigdo totalizante se pode ler no primeiro pardgrafo do manual de Siciliani (1880): Vou expor algumas idéias a respeito de uma ciéncia que todos, hoje, consideram como o fundamento do saber filoséfico positivo, e donde procedem as leis e os principios geradores da sociedade civil, da histéria, da arte, das religides, da mitologia, da filologia, como tam- bém, do conjunto das disciplinas juridicas e morais: a psicologia. (SICILIANT, 1880, 1) A guinada no percurso literério de Machado de Assis, verificada na década de oitenta, parece coincidir com o persistente interesse do autor pelas novidades trazidas ao dominio do conhecimento por estu- diosos que, sondando os enigmas da alma humana, a vinham consti- tuindo como fronteira privilegiada de pesquisa e experimentagao. A convicgao cientifica com que Simio Bacamarte faz a parédia da pre- suncio psiquidtrica, vigente no tempo de elaboragiio do conto, é mode- 337 lo emblematico da atitude do narrador machadiano diante da nova ten- déncia. O corpus, porém, se alarga bastante se acrescentarmos ao pro- tagonista d’O alienista, o Quincas Borba das Memérias péstumas de Bras Cubas, 0 Rubiio do Quincas Borba, e mais 0 alferes Jacobina do conto “O espelho”, o cnego Matias d’“O cOnego ou metafisica do esti- lo”, e o doutor Jeremias Halma d’“O lapso”, conjunto de narrativas, a que se poderiam acrescentar muitas outras figuras menos Obvias. O mote instigador deste trabalho, portanto, provém do narrador machadiano que reincidentemente bate na mesma tecla. N’O alienista, por exemplo, diz ter o seu protagonista mergulhado inteiramente no estudo e na pratica da medicina, nesta tendo-lhe chamado especialmen- te a atengio: “o recanto psiquico, o exame da patologia cerebral”; em “O espelho”, escancara o tema no subtitulo — “uma nova teoria da alma humana” e, n’“O cénego”, concentrando o seu ela satirico contra 0 pro- fetismo dogmitico entao vigente, sentencia bem ao jeito do conhecido humor machadiano: “As filosofias queimardo todas as doutrinas ante- riores, ainda as mais definitivas, e abracardo esta psicologia nova, Jin ca verdadeira, e tudo estaré acabado” (ASSIS, 1962, 270). No pico da crise de invengao literaria que acomete 0 protagonista, 0 texto penetra na intimidade do personagem e, conduzindo o leitor pelos labirintos do seu inconsciente que, surpreendido em estado de ebulicao, revela-se, numa visio extraordinariamente rica, como fonte geradora de lingua- gem e sede de articulagiio do pensamento consciente. Em todas essas ficgdes, 0 estudo de anomalias psiquicas vem énvolto em considera- ges filosdficas que tanto fazem a critica ao monismo idealista de um Schopenhauer, de um Hartmann ou de um Wundt quanto ao pragmatis- mo positivista da ciéncia fin de siécle. A idéia fixa de Bras Cubas, 0 humanitismo de Quincas Borba-Rubido, as hipéteses psiquiatricas do alienista da Casa Verde, a teoria das duas almas, a interior ¢ a exterior, do Alferes Jacobina reduzem ambigdes pretensamente cientificistas 4 caricatura de proclamagdes dogmiticas e extravagantes. Em franca oposigio ao que pregava a retérica otimista da época, a mordacidade critica do narrador machadiano desmonta o aparato de verdades cienti- ficas que as mascaravam e abala no leitor os fundamentos de certezas em que assentavam 0 valor gnoseoldgico e a eficdcia positiva que elas prometiam. 338 Ao examinar os titulos relacionadas com 0 assunto e constantes do acervo existente na Academia Brasileira de Letras, denominado Biblioteca de Machado de Assis, encontrei-as seguintes obras: Philosophie de l’inconscient, de Edouard von Hartmannn, 1877. Prolégoménes & la psichogénie moderne, de Pierre Siciliani, 1880. L’Homme selon la science e La vie psychique des bétes, ambos da autoria do Dr. Louis Bachner, e ambos editados em 1881. Les maladies de la mémoire, de Th. Ribot, 1881. Physiographie, de Th. H. Huxley, 1882. Além de escassa, a relagdo é decepcionante pela auséncia de auto- res do XIX, fundamentais na constituigdo da Psiquiatria. A proximida- _ de nas datas de publicagiio dessas obras que, excetuado Hartmann, sio todas dos trés primeiros anos da década de oitenta, poderia sugerir a hipétese de um interesse recente de Machado de Assis pelo assunto, coincidindo, assim, com o inicio do periodo que, obediente 4 cronolo- gia bibliogrdfica, a historiografia literéria convencionou chamar de segunda fase ou de maturidade do autor. A hipétese, porém, esbarra em algumas dificuldades que recomendam muita cautela em relag&o ao acervo remanecente da Biblioteca de Machado de Assis. E problemiti- ca a exclusividade de obras em francés, sobretudo das traduzidas do inglés ¢ do italiano, linguas de que Machado possuia pleno dominio, sem a contrapartida dos titulos nas linguas originais. Pesam mais ainda, contra a autenticidade do acervo, duas observagées que fiz. A primeira diz respeito ao titulo Essais choisis, de Charles Lamb, traduzido para 0 francés por Louis Depret e datado de 1880. Em “O Lapso”, conto que vou analisar mais adiante, Machado refere-se a esse ensajsta inglés, e 0 cita no original ao fazer alusio 4s duas grandes racas humanas — a dos homens que emprestam, e a dos que pedem emprestado, — “a primeira contrasta pela tristeza do gesto com as maneiras rasgadas e francas da segunda, the open, trusting, generous manners of the other” (ASSIS, 1962, 270). A citagdo foi tirada do ensaio Tivo Races of Men, que faz 339 parte do conjunto Essays of Elia publicado entre 1823-1833 e que nao consta do acervo. A outra observacio se refere 4 sdtira de Jonathan Swift, A Tale of a Tube Written for the Universal Improvement of Man- kind, cuja edigdo constante do acervo data de 1889. Ora, como demons- trou Eugénio Gomes (GOMES, 1949, 30-37), 0 texto swiftiano esté na base da elaboragio d’O alienista, que é de 1881 e, portanto, nio pode ter sido da edi¢fio remanescente que Machado se serviu. Mas, como a minha pesquisa est4 ainda muito no comego, nado devo avangar mais. Acredito, porém, que essas duas observagées so suficientes para aler- tar acerca das precariedades do acervo, ndo sé em vista das perdas que ele sofreu, mas também quanto aos acréscimos que a ele podem ter sido feitos. A Biblioteca de Machado de Assis é mais um caso a ilustrar escandalosamente o descaso das instituigdes e dos intelectuais brasilei- ros em relagio ao patriménio cultural do pais. Desse descaso, nao esca- pam nem mesmo monumentos de maxima estatura como é 0 caso de que se trata. Mas, apesar dessas e outras ressalvas que ainda se venham a fazer, o acervo é utilfssimo aos estudiosos da obra machadiana. A mim particularmente interessam, mais do que a biblioteca em si, os indicios que nela encontro da maneira como Machado lia os autores de sua preferéncia, existentes ou nao no acervo, e cujas pistas podem ser rastreadas nos casos em que a comprovagio é possivel. E como isso parece mais vidvel a partir da identificagao das pegadas que o texto- fonte deixa nos seus escritos, penso que 0 primeiro passo seria a elabo- ragao de um diciondrio com todas as citagdes que ocorrem em seus tex- tos. A andlise de tal levantamento e 0 registro da freqiiéncia com que comparecem determinados autores formariam a base que se expandiria A medida que se fossem reconhecendo incidéncias mais mascaradas e apenas indiretamente indiciadas. Na impossibilidade constatada hoje de recuperaciio da biblioteca material, seria essa a via auténtica de reconstituig&o da biblioteca virtual de Machado. Mas, no ponto em que nos encontramos, 0 acervo remanescente é bastante titil para a realizagio de trabalhos parciais. Consult4-lo com 0 objetivo de identificar fontes de interlocugdo da ficgiio machadiana, pode render bons frutos. Lendo, por exemplo, Les maladies de la 340 mémoire, de imediato, me dei conta do uso que dele fez Machado ao escrever 0 conto “O lapso”. Particularmente o capitulo III do livro de Ribot, “Les amnésies partielles”, parece ter sido fonte direta de inspira- do para a sdtira machadiana. Com fundamento na independéncia rela- tiva das diversas formas de memoria, Ribot desenvolve, nesse capitu- lo, uma curiosa teoria a respeito das falhas parciais da meméria, ressal- tando o parcelamento de suas fungGes em vez de afirmar a existéncia de uma faculdade unitdria como fazia a psicologia classica. De acordo com essa perspectiva, seria natural que, no estado mérbido, uma forma desaparecesse enquanto outras continuassem intactas. Assim, o lapso que danificasse determinado campo semintico ou tal ou qual subcon- junto especifico de gestos comportamentais, ficaria restrito a essa drea, nao afetando em nada as demais atividades mnemGnicas. Antes de refe- rir uma série de casos de amnésias parciais, 0 autor adverte que s6 0 esquecimento de signos, isto é, as varias formas de afasia, pode ser “ metodicamente estudado. Entende-se bem a raziio: é que falhas num sistema coeso seriam sensivelmente demonstraveis perante exigéncias de cardter positivo. No entanto, os problemas relativos a classificagio desses casos em grupos definidos ¢ a dificuldade de saber que aspectos da linguagem sio alterados nas diferentes modalidades de amnésia nao poderiam ser resolvidos sem 0 conhecimento sistémico da estrutura e funcionamento da linguagem. As curiosidades e constataces interes- santes dos psicopatologistas de entao, por isso, s6 seriam respondidas satisfatoriamente bem mais tarde, com o advento e avango da lingiiisti- ca. Foi preciso esperar algumas décadas desde Ribot até que um Roman Jakobson, partindo das observagées de ilustres psicdlogos, e em plena vigéncia do estruralismo, dividisse os afésicos em dois gran- des grupos — 0 daqueles que apresentam problemas no eixo da selegiio ou substituigao de signos e o daqueles que padecem de deficiéncia na linha da combinag3o ou encadeamento sintatico (AKOBSON, 1962, 43-67). Carecendo da sistematicidade que os conhecimentos lingiiisti- cos alcangariam mais tarde, Ribot ateve-se 4 génese e evolugiio de alguns casos isolados, trazidos mais como ilustragdes do que como comprovacées de suas teses. Nao é dificil apontar varias analogias de detalhe entre o texto de Ribot e 0 conto de Machado. E aqui sem forgar a barra e sem nenhum 341 anacronismo. O exemplar de Les maladies de la memoire existente no acervo da Academia Brasileira de Letras é de 1881, enquanto “O lap- so” foi publicado pela primeira vez em 17 de abril de 1883 na Gazeta de Noticias e posteriormente editado em livro em 1884 como o segun- do conto das Histdrias sem data. Para dar conta do curioso caso de Tomé Gongalves, personagem que esquece de pagar aos seus devedores, Machado inventou o Dr. Jeremias Halma, uma figura estranha, misto de médico e charlatao, de cientista e profeta, que explica 0 personagem nao como portador de uma falha moral e sim como afetado de uma deficiéncia mental. Hé uma doenca especial (...), um lapso de meméria; 0 Tomé Goncalves perdeu inteiramente a nogao de pagar. Nao é por descuido, nem de propésito que ele deixa de saldar as contas; é porque esta idéia de pagar, de entregar o preco de uma cousa, varreu-se-Ihe da cabeca. (ASSIS, 1962, 378) Mais adiante, retomando a narrativa em suas mios, 0 narrador complementa 0 diagndstico. O lapso do infeliz era completo; tanto a idéia de pagar, como as idéias correlatas de credor, divida, saldo, e outras tinham-se-lhe apa- gado da meméria, constituindo-the assim um largo furo no espirito. (ASSIS, 1962, 378) Combinando Pascal e Ribot, a fala do Dr. Jeremias verte para a linguagem ficcional, criticamente deformado, o discurso cientificista. De acordo com a terminologia psicopatolégica do autor de Les mala- dies, Tomé Gongalves padece de uma “‘desordem da mem6ria”, defini- da como “uma forma de amnésia parcial”, que se manifesta através do sintoma da afasia, “variando esta segundo as condigdes que a produ- zem” (RIBOT, 1881, 120). L’aphasie est tantét permanente, tantot transitoire, assegura Ribot. Mas, para felicidade das trés ou quatro de- zenas de credores que recorreram aos bons servigos do sdbio estrangei- ro, que “sabe cousas que nunca lembram ao diabo” (ASSIS, 1962, 377), Dr. Jeremias diagnostica como curdvel a doenga de Tomé Gon- calves. A leitura em paralelo dos dois textos, o do ficcionista e o do 342 Psicdlogo, produz o efeito de um didlogo intertextual gerador de espa- go semAntico contraditério pois que, articulado a base de unidades lexi- cais convergentes, gera significados divergentes. E que taticas e estra- tégia divergem de um para outro texto. Enquanto a exposigao do psic6- logo apresenta-se com a gravidade de quem pretende ter alcangado uma nova verdade cientifica e, para enuncid-la, necessita elaborar um discurso coeso e convincente, a narrativa do ficcionista desmascara, sob a aparéncia de falsa seriedade, a inconsisténcia da construgdo monolitica e presungosa. Imitando a forma retérica do discurso pseu- do-cientifico, Machado inverte-Ihe o sentido, bem ao gosto da parédia estilfstica. A inversdo de sentido ocorre mesmo nos detalhes que pare- cem corresponder-se ponto a ponto no confronto do texto de Ribot com a fala de Jeremias. Confira-se o exemplo (bem picante segundo Ribot) de um velho que, estando com a mulher e se imaginando estar ao lado de “uma dama a quem dedicara outrora todas as suas noites”, repetia- . lhe constantemente: “Querida, nao posso ficar mais tempo com vocé; preciso voltar para junto da minha mulher e dos meus filhos”. (RIBOT, 1881, 116). Cotejando o exemplo ilustrativo da tese de Ribot com um dos grandes casos contados pelo Dr. Jeremias, o da dama catala que“a principio confundia o marido com um licenciado Matias, alto e fino, quando o marido era grosso e baixo” (ASSIS, 1962, 378), saltam simultaneamente a vista semelhangas e contrastes entre os dois relatos. A confusao entre marido e amante, motivada pela amnésia e comum a ambos, produz no contexto da narrativa ficcional efeito contrério ao intencionado por Ribot. Ao passo que 0 texto do psicélogo neutraliza o picante da anedota com a capa de uma linguagem fria, o ficcionista acentua maliciosamente o picante anedético sublinhando os tragos fisi- cos que distinguem, de maneira inconfundivel, marido e amante. Obviamente, a teoria cientifica do lapso fica confinada ao ridiculo quando avulta a mordacidade critica do mestre da ficgdo. A citacio j4 é expediente de que Machado se serve reiteradamen- te como recurso critico. Em “O lapso”, tanto a epigrafe tirada do livro de Jeremais (XLLL,1,2) como a alusio A imagem do abismo retirada do contexto dos pensamentos de Pascal e deslocado para o de Tomé Gongalves dao a medida das radicais transformacdes a que Machado submete os seus autores preferidos. A passagem é exemplar porque 343 nela se cruzam, parodiados, o texto pascaliano e o texto sagrado: “e [o abismo era] tao profundo que cabiam nele mais de sessenta credores que se debatiam 14 embaixo com o ranger de dentes da Escritura” (ASSIS, 1962, 379). A transgressio ao original e sua distorgao parodis- tica alcancam efeito maximo. Ja apontei em outro trabalho (BARBIERI, 1998, 52-61) o senti- do satirico-critico do uso machadiano da taxionomia transformando em parddia o gosto classificatério da ciéncia positiva do XIX. Em “O lapso”, esse t6pico retorna de modo caricaturado na ja citada referéncia ao ensaio de Lamb, — 0 que propée a divisio da humanidade em duas ragas: a dos homens que emprestam, e a dos que pedem emprestado. Essas referéncias ajudam 4 compreensio da maneira como Machado lia e como se servia de textos lidos no ato de escrever os seus. Descontex- tualizando categorias e enunciados, emenda-os em novos contextos, construindo novos textos, os seus, sobre as rujnas de textos desmorona- dos. O leitor ruminante, com sete est6magos no cérebro a que o narra- dor se refere em Esaii e Jacd, era ele mesmo, maquina ativissima de tri- turacdo de discursos alheios, cujos detritos eram reagenciados em ela- boragées discursivas de sentido inverso ou oposto as intengdes do tex- to fonte. Comparando a epigrafe de “O lapso” — E vieram todos os ofi- ciais... e o resto do povo, desde o pequeno até ao grande. E disseram ao profeta Jeremias: Seja aceita a nossa siiplica na tua presenga, — com a fonte donde provém (J. E vieram todos os oficiais de guerra, e Joanan, filho de Carée, e Josias, filho d’Osaias, e 0 resto do povo, des- de o pequeno até ao grande// 2. E disseram ao profeta Jeremias: Seja aceita a nossa suplica na tua presenca, e faze oragdo por nés ao Senhor teu Deus por todo este resto do povo, porque de muitos temos ficado poucos, assim como nos véem teus olhos)' — vé-se que 0 corte tan- to dos nomes biblicos quanto o do Senhor Deus, suprimindo toda marca do sagrado, profanam (tornam profano) 0 texto biblico adequando-o, com perfeigao, ao contexto satirico-critico da narrativa ficcional. Acrescente-se a esse procedimento a coincidéncia de nome entre o pro- '-O texto biblico de que se utilizava Machado foi traduzido da vulgata latina para o portu- gués por Ant6nio Pereira de Figueiredo. Londres: Oficina de Harrison e filhos, 1866. A 2 ed. € da Garnier, 1881. 344 feta biblico e 0 cientista-psiquiatra do conto, e se terd completado 0 cir- cuito dessacralizador do procedimento machadiano. Com toda proprie- dade, cabe a tais textos a aplicagio do termo contra-digdo pois recor- rentemente contradizem outras dicges. O texto segundo no reproduz 0 texto primeiro que, nele nio se reconhecendo como 0 mesmo, contri- bui para produzir o outro. Como o humanitismo de Quincas Borba, como as hipéteses “psi- quidtricas” do alienista Simao Bacamarte, a teoria do lapso de mem6- tia do Dr. Jeremias Halma e 0 seu método terapéutico desarticulam os discursos da ciéncia e da filosofia cultuados como fetiches no declinio do XIX. Gragas ao Dr. Jeremias, no climax da narrativa, quando Tomé Gongalves fica curado do lapso e paga a todos os seus credores, 0 tex- to escorrega de passagem no que diziam as mulheres: “Parece cousa de feitigaria” (ASSIS, 1962, 380). Feitigaria entra aqui como signo indi- ciador, termo-dentincia do irracionalismo que irrompe das camadas retdricas de um discurso pretensamente racionalista e eficaz. De maneira muito semelhante ao final d’O alienista, 0 desfecho d’“O lap- so” aponta para uma tnica vitima. Se ld era 0 alienista que, depois de diagnosticar a loucura em levas e¢ levas de itaguienses, se declara a si mesmo como 0 Unico louco em Itaguai e, ato continuo, interna-se na Casa Verde, aqui é o Dr. Jeremias que sobra como 0 tnico credor, depois de ter curado Tomé Gongalves da amnésia ¢ este ter pago todas as suas dividas. E preciso, porém, ressaltar a grande divergéncia entre as priticas terapéuticas aplicadas por Simio Bacamarte e as aplicadas por Jeremias Halma. Enquanto 0 alienista recolhe os “loucos” na Casa Verde, onde sao tratados longe do contato e dos olhos da sociedade, o “psiquiatra” do lapso desdobra a sua terapia em dois procedimentos distintos: primeiro, aplica-Ihes uma droga milagrosa que restaura em suas mentes o paradigma lingiifstico danificado, curando-os da afasia parcial; segundo, exercita-os com vista 4 recuperacio dos gestos perdi- dos que, forma de amnésia mais rara segundo Ribot e, portanto, mais renitente, exige terapia intensiva e repetitiva: “O médico levava o doente as lojas de sapatos, para assistir 4 compra e venda da mercado- ria, e ver uma e muitas vezes a agdo de pagar” (ASSIS, 1962, 380). O método é plenamente eficaz, segundo a narrativa, pois que “tudo foi 345 pago”. Como facilmente se percebe, Dr. Jeremias atua em contraponto relativamente a Bacamarte. Contra a segregaciio social dos loucos, que siio internados na Casa Verde, os afdsicos demandam, como pratica curativa, estreitamento de contato e convivio social. Se ambos se apro- ximam ao objetivarem a reeducagao, separam-se, no entanto, nos pro- cedimentos e resultados visados. Num caso, a exclusio é exigida para apagar gestos interpretados como sintomas patolégicos; no outro a integragio propicia a reaprendizagem dos rituais esquecidos. O alienis- ta, sublevando toda uma comunidade, provoca reacio politica que per- turba a ordem e apatia reinantes. O psicoterapeuta Jeremias, apaziguan- do os Animos dos credores exaltados, restabelece a tranqililidade social ao mesmo tempo que restaura a confianga nos negécios. As duas narra- tivas formam assim um par simétrico e, postas em confronto, recipro- camente se iluminam. O parentesco dos dois relatos reforga a atitude irénica de Machado frente a ciéncia e o mal que ela pretende sanar. Virando pelo avesso 0 discurso cientificista, 0 ficcionista leva o leitor a desconfiar tanto da retérica quanto da légica que se apresentam como detentoras de verdades absolutas. Na reviravolta final das duas narrati- vas aqui consideradas, desmoronam tanto a teoria psicolégica quanto a terapia psiquidtrica professadas e praticadas pelos dogmiticos Simao Bacamarte e Jeremias Halma e, por ricochete, alcanga-se a autoridade das fontes onde foram bebidas as idéias ficcionalizadas em figuras tao extravagantes. Ao fim e ao cabo, 0 alcance de tao pomposas descober- tas fica circunscrito ao Ambito do anedético. Nasce dai a inevitavel indagagAo quanto a validade de um saber que, tratando e curando o mal de Tomé Gongalves, que é a excegao, condena ao mesmo mal os ses- senta credores — a regra — que, pagos, se olvidam de saldar a divida con- trafda com o seu benfeitor. Feitas devidamente as contas, o débito ago- ra € muito maior, sobrando ainda a ocednica e incorrigivel credulidade humana, de que os espertos sabem sempre tirar proveito para diverti- mento apenas de alguns — os bem dotados do espirito de humor. 346 Referéncias SICILIANI, Pierre. Prolégomenes a la psichogénie moderne. Trad. do italiano por A. Herzen. Paris: Germer Bailliére, 1880. MACHADO de ASSIS. Obra completa. Afranio Coutinho (org,). Rio de Janeiro: José Aguilar, 1962. V. II. GOMES, Bugénio. “Swift”. In: Espelho contra espelho. Sao Paulo: Progresso Editorial, 1949. JAKOBSON, Roman. “Deux aspects du langage et deux types d’aphasie”. In: Essais de linguistique générale. Paris: Minuit, 1962. RIBOT, T. Les maladies de la mémoire. Paris: Germer, 1881. BARBIERI, Ivo. “O alienista: a razio qué enlouquece”. Revista Brasileira. Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, fase VII - jan-fev-mar. 1998 — ano IV n? 14. 347

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