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A RIQUEZA DO CAPITAL

E A MISÉRIA DAS NAÇÕES

JOSÉ ANTÔNIO MARTINS

A RIQUEZA DO CAPITAL

E A MISÉRIA DAS NAÇOES

1994 © José Antônio Martins

I' edição: abril de 1994


© EDITORA PÁGINA ABERTA LTDA.

ISBN 85-85328-64-9
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SCRITTA
s u M Á R o
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PARTE I - As TRANSFORMAÇÕES GERAIS


O vírus da crise . 11
Imperial dcclínio .. . 17
Apertando o cerco . .. . 27
Projeto grâjl(,o e caP" Mudança no Jogo . 39
Altrcdo S V Coelho O mundo gira. .. . 45
O fantasma da solidão. . . 49
Competitividade e rnundialização 55

l.asar Segall - Interior com família cnlerrna 11921) Os tigres estão miando. 59
Depois da queda do muro 65
E[)ITORA l'ilUNA AHFRTA LTL)!\ Neoliberalismo acuado .. 69
Rua C"rmaine Ilurchard. 286 Algo fora do lugar 73
050ü2-061 - São Paulo - SP A nova ordem . 79
Telefone: (011) 262-1155 Capital desgovernado. idcólogos preocupados . 81

Telefax (011) 864-9320 A crise sem fronteiras ........... 85


PARTE 11- TERCEIRO MUNDO:
p
.•..
A R T E
INVOLUÇÃO, DESTRUiÇÃO E NEOLlBERALlSMO
América Latina.. . . , 91 ----_ _ ... _-_.

Mudança de marcha. 99
Venezuela e Peru: nuvens escuras no céu azul AS TRANSFORMAÇÕES
do neoliberalisrno .. . 105
o misterioso NAFTA .... .109 G E R A S
Mundialização da miséria .... 115
Karoshi, rnade in japan . .... 123
O mundo é uma moeda 129

PARTE 11I- BRASIL: NEOLlBERALlSMO TARDIO


Lógica sombria. 135
Patinando na tempestade. 139
Quem tem medo da inflação? ..... 151
O comércio da inflação e da miséria 157
Novos pesos e medidas 16 I
O salário mínimo de Smith . . 165
Impostos, agressão contra os trabalhadores 169
FHC-2: O Haiti é aqui .... . . 175
URV: O salto no escuro da Burguesia ,....... 181
A ciência da mudança 189
o VÍRUS DA CRISE

o novo mapa da economia mundial se anuncia tortuoso. O


que se pode vislumbrar é apenas o seu esboço, traçado
provisoriamente por importantes mudanças e fatos portado-
res de futuro - realinhamento das diferentes áreas
geoeconômicas, nova repartição do poder mundial, novo
papel do Estado na economia e na sociedade, dissolução do
velho sistema monetário internacional, etc. Nada disso es-
taria acontecendo naquela modorrenta estrutura do pós-
guerra, entretanto, se na base de tudo não estivesse agindo
a fantástica revolução científica e tecnológica dos últimos
quinze anos. Mas o que existe de mais característico no
regime capitalista é que as mudanças da sua base técnica não
podem ocorrer sem que se abra um período de profunda
desorganização do seu processo de valorização - formação
dos preços, investimentos, acumulação, concorrência, etc. A
12 José Antônio Martins A riqueza do c a b it al e a miséria das nações 13

absorção de todos os conhecimentos e novas tecnologias tão simples. É muito mais sensato se pensar em dois cenários
depende então de uma reorganização do próprio sistema mais prováveis. O primeiro seria de uma restauração da
econômico mundial. Nesta perspectiva não se pode descar- competitividade comercial americana, conservando-se as áreas
tar, a partir do próximo ano, a eclosão de uma crise econô- asiáticas e européias sob o monopólio industrial e financeiro
mica global de grandes proporções. americano. Seria uma reafirrnação da hierarquia econômica
Segundo uma antiga teoria, a crise geral começa atingin- que funcionou em todo o período do pós-guerra, abrindo-se
do primeiramente a periferia para depois alcançar o coração ao mesmo tempo a possibilidade de uma saída conciliatória
do sistema. De alguma forma, esta teoria está se confirmando para o novo realinhamento entre as potências econômicas. O
nos últimos anos. Desde o início dos anos 80, com a chamada segundo provável cenário seria o de uma agudização da
crise da dívida, grandes áreas da periferia, como a América concorrência entre os três blocos, tendendo para a formação
Latina, África, Oriente Médio e parte do Extremo Oriente, de barreiras e retaliações protecionistas, abrindo-se a possi-
foram atingidas pela estagnação econômica. No final da bilidade de uma desestruturação catastrófica do comércio
década, foi a vez de a Europa Oriental desabar estrondosa- internacional. Pelo menos por enquanto, este segundo cenário
mente. Nos últimos doze meses, os sinais de uma grande crise ainda é menos provável do que o primeiro (manutenção do
começaram a se manifestar em importantes economias da monopólio americano).
Europa Ocidental como a Suécia, Inglaterra, Dinamarca, Outra opinião que circulava como grande verdade, no
Itália, etc. Se a trinca formada pelos Estados Unidos, Japão decorrer dos anos 80, era que o novo sistema monetário
e Alemanha pode ser considerada como o coração do sistema, internacional se distanciaria, também naturalmente, do antigo
a conclusão é que existem muitas possibilidades de que, desta monopólio do dólar americano, para se reestruturar na base de
vez, a crise não ficará restringida apenas à periferia do sistema. uma pacífica convivência de vários centros monetários -
Neste sentido, a derrocada da Bolsa de Tóquio, a desva- sistema dólar, sistema Ecu e sistema Yen. Esta reorganização
lorização recorde do dólar americano e as dificuldades finan- do sistema monetário, com a perda da hegemonia do dólar, é
ceiras da Alemanha são movimentos que se interligam. Até estreitamente ligada ao realinhamento do poder geoeconômico
pouco tempo atrás se imaginava que o declínio da economia visto anteriormente. Quanto à CEE, as recentes tempestades
americana seria compensado por uma ascensão automática do sobre o Sistema Monetário Europeu (SME) e sobre a própria
Japão e Comunidade Econômica Européia (CEE), conforman- perspectiva de uma verdadeira unificação européia mostram que
do-se um novo realinhamento de poder geoeconômico no vai ser muito difícil se criar uma moeda européia suficientemen-
mapa da economia mundial. Entretanto, certos sinais de te forte para repartir as funções que o dólar americano cumpriu
fragilidade, expostos récentemente, tanto na economia japo- desde o final dos anos 40. As recentes intervenções do governo
nesa quanto na CEE, servem para alertar que as coisas não são japonês, para socorrer o setor privado daquela economia,
A riqueza do capital e t1 miséria das nações 15
1-1 .José Antônio /\tltlrlills

comprando as mercadorias produzidas no lado ocidental.


principalmente os grandes bancos ameaçados de falência
Criou-se uma grande farsa financeira, que acabou deses-
mostram também que o capital japonês não está imune às
truturando todo o SME e sepultando o que ainda restava do
vicissitudes da crise que se alastra pelo mercado internacional.
sonho de um dia existir uma moeda única européia.
A fragilidade do sistema bancário japonês e do seu mercado de
Os europeus estão vivendo uma espécie de pós-euforia
capitais não tardará a se manifestar na forma de debilidade da
liberal. Estão percebendo que as questões colocadas pelo
sua moeda nacional. Neste caso, os cenários mais prováveis para
neoliberalismo não só não foram resolvidas como estão se
o novo sistema monetário internacional estarão mais próximos
agravando. E agora? É bom relembrar que não se pode
dos cenários já mencionados anteriormente para o novo
imaginar a simples volta ao Estado antigo - seja ele liberal,
realinhamento geoeconômico do que daquelas ingênuas idéias
social-democrata ou stalinista - para se corrigir os equívocos
de que a CEE e o Japão se descolariam com muita naturalidade
da década passada. De todo modo, como já se disse há muito
da esfera do dólar.
tempo, os homens só colocam questões que eles podem
O pano de fundo para as incertezas atuais na economia
resolver. O neoliberalismo foi uma idéia vazia de volta ao
mundial é também um certo desalento quanto às virtudes do
passado, apenas uma forma de se prorrogar a verdadeira
liberalismo. De alguma forma, o otimismo dos anos 80 se
solução para um Estado envelhecido e estilhaçado pelo gigan-
assentava naquelas idéias neoliberais de que, para se reformar
tesco crescimento das forças produtivas das últimas décadas.
o Estado, bastava destruí-Io. Esta ilusão encontrou sua mais
Existe uma forte inadequação entre as ricas potencial idades
dura realidade na experiência da reunificação alemã. Supunha-
trazidas pelo conjunto de revoluções tecnológicas, de um
se que a anexação da antiga Alemanha Oriental daria início
lado, e os estreitos limites de valorização do capital, de outro.
a um grande impulso ao capital alemão ocidental. A idéia era
É neste quadro que as perspectivas de uma crise econômica
de que o grande mercado consumidor do Leste seria um
de grandes proporções não podem ser descartadas, transfor-
estímulo para aumentar a demanda, e, assim, provocar um
mando o que poderia ser comemorado como uma grande
novo milagre econômico na Alemanha. Nada disso se confir-
conquista da humanidade em uma verdadeiro pesadelo para
mou. Na verdade, os ocidentais estão usando os orientais
as massas desqualificadas. desempregadas e marginalizadas do
apenas para vender os seus produtos, é só. Mas a destruição
processo de produção social.
da economia oriental provocou um enorme desemprego, as [1992]
pessoas têm cada vez menos dinheiro e, consequentemente,
compram cada vez menos. O resultado é que o Estado alemão
destina mais de US$ 100 bilhões anuais para a Alemanha
Oriental, não para financiar investimentos produtivos ou coisa
parecida, mas apenas para que a população oriental continue
IMPERIAL DECLÍNIO

Os americanos não estão muito otimistas quanto ao futuro da


sua economia. Não bastassem as nuvens cada vez mais car-
regadas de uma prolongada recessão, um tormento ainda
maior está se somando às suas preocupações. É a sensação de
que os Estados Unidos da América estão perdendo a velha
superioridade econômica mundial, entrando literalmente em
declínio frente aos seus principais parceiros econômicos.
Quando os próprios símbolos do orgulho e da filosofia da
classe média americana, os seus automóveis, são considerados
carroças em comparação aos europeus e, principalmente, aos
japoneses, todos começam a pensar que alguma coisa funda-
mental está acontecendo.
O declinismo é uma nova doença que está atacando a maior
potência econômica mundial. Ele não se manifesta apenas sob
a forma de impotência para concorrer com os carros japoneses
18 José Antônio Martins
A riqueza do capital e a miséria das nações 19

e coreanos e as bugigangas eletrônicas de Taiwan, Hong


destroçadas economias do Japão e da Europa. Em t 950 a soma
Kong, China, Coréia, Japão, ete. Outros sintomas, mais
da produção nacional de Alemanha e Japão não passavam da
significativos até, ajudam a aumentar o pessimismo americano.
quinta parte do PNB americano. Mas não era só isso. A
É o caso da inquietante fragilidade do dólar frente às prin-
indústria americana estava intacta e nova, o sistema monetário
cipais moedas e da perda de liderança dos bancos americanos
internacional gestado em Bretton Woods conferia à moeda e
vis-à-vis aos seus congêneres japoneses e europeus. Essa anemia
aos bancos americanos o controle das finanças mundiais. A
do sistema financeiro americano está muito ligada a uma outra
cultura americana reluzia e exportava padrões perfeitamente
manifestação mais popular, digamos assim, do declínio da
adaptados a uma emulação sem limites do consumo de massa,
economia americana. Se a crescente dependência em relação
do crescimento rápido do capital, do sucesso individual, em
aos recursos externos se limitasse ao financiamento dos déficits
resumo, do Americal1 way of life. Houve condições econômicas
público e das empresas, talvez não se falasse tanto nela.
iniciais para garantir aos EUA o monopólio e os superIucros
Poderia se dar até a desculpa da globalização do mercado
do mercado mundial, pelo menos até os anos 70. Haviam
financeiro mundial, por exemplo. O problema é que um
também as condições políticas de superpotência que favore-
subproduto desta fragilidade financeira americana é o bara-
ciam a superioridade econômica americana. A corrida ar-
teamento dos ativos em geral daquela economia. Há muito
mamentista foi, durante muito tempo, mais um estímulo à
tempo os americanos compram vorazmente carros, filmadoras,
expansão industrial americana.
roupas, bebidas, sapatos, computadores, e outros bens de
Vendo-se agora, em perspectiva, as mudanças do quadro
consumo dos seus concorrentes. Mas de alguns anos para cá
competitivo mundial, pode-se apresentar uma série de razões
japoneses e europeus passaram a comprar, também vorazmen-
que concorreram para que o monopólio econômico ameri-
te, as ações de tradicionais empresas americanas, os imóveis
cano fosse se estiolando no decorrer do tempo. A primeira
mais valorizados, as grandes redes de hotéis, as obras de arte
é que uma situação de monopólio, no sentido capitalista de
mais valiosas, etc.
superioridade produtiva de uma empresa líder dentro de um
Ninguém resiste a tantos ataques, em tão pouco tempo.
ramo ou de uma nação no mercado mundial, nunca é
Mas talvez ainda seja muito cedo para se falar de uma
permanente. A generalização das condições produtivas da
derrocada em queda livre dos EUA na competição com Japão
empresa ou da nação líder para o restante do ramo ou do
e CEE. A questão tem de ser analisada com mais cuidado. A
mercado mundial provoca o desaparecimento dos superlucros.
superpoderosa economia americana dos anos 50 é a base de
Mesmo que isso não signifique necessariamente o desapare-
comparação para se encontrar suas fragilidades atuais. As
cimento da empresa ou nação líder, mas apenas dos
condições daquela economia representavam um verdadeiro
superIucros de monopólio. Os Estados Unidos nunca criaram
monopólio, no sentido capitalista do termo, frente às
barreiras para que o Japão, Alemanha e Europa Ocidental
20 José Antônio Martins A riqueza do c ab i tal e a miséria das nações 21

não tivessem acesso às suas condições produtivas e econômico mundial começasse a se modificar. Na verdade
tecnológicas. Ao contrário. Por interesses geopolíticos da as coisas ficaram meio embaralhadas pelo menos até o final
época da Guerra Fria, os EUA foram obrigados a incentivar dos anos 70. No decorrer daquela década as condições do
e favorecer a plena recuperação das potências derrotadas na comércio americano, dos seus investimentos diretos no
Segunda Guerra. exterior, etc. ainda não tinham sido seriamente atingidas. O
Uma outra razão para o estreitamento da liderança eco- problema, mais uma vez, se agravava no lado dos
nômica americana pode ser encontrada nas suas despesas de desequilíbrios públicos e na corrida sobre o dólar. Em 1979,
guerra, que acabaram centralizando o dinamismo e o cresci- com uma onça de ouro valendo mais de US$ 700, uma
mento da indústria daquele país. Essa característica estrutural inflação que já chegava perto dos 10% ao ano e o mundo
da economia provocou dois resultados importantes no quadro inundado da moeda americana, um outro acontecimento
competitivo com o Japão e Alemanha. O primeiro é que estas muito importante acabou definindo certas regras que criaram
duas economias não enfrentaram a corrosão fiscal que todas o mundo de hoje. Esse processo se desdobra em duas etapas.
as despesas improdutivas com o armamentismo acabaram A primeira foi protagonizada por Paul Volker, ainda no
provocando - até porque, como nações derrotadas na última governo Carter. A política de aperto monetário e elevação
guerra, elas estavam proibidas de se rearmarem. A especializa- dos juros no início dos anos 80 teve como resultado a
ção em bens de consumo, induzida pelas próprias restrições revalorização do dólar, mesmo acompanhada pelo pior
geopolíticas de se produzir outra coisa, terminou reforçando choque econômico do pós-guerra, que se prolongou até o
a capacidade da indústria civil, o setor que produz a maioria último trimestre de 1982. A segunda etapa das reformas foi
dos produtos do comércio internacional e determina o grau protagonizada pelo novo presidente. Em 1981 Reagan bai-
de competitividade da indústria como um todo. O Japão, mais xou um ato fiscal que reduziu impostos e criou incentivos
ainda que a Alemanha, se estruturou adequadamente a essas explícitos ao endividamento das empresas e das pessoas.
condições da divisão do trabalho imposta de alguma forma pelos Altas taxas de juros, supervalorização do dólar (que durou
próprios EUA. pelo menos até 1985), redução da carga fiscal, des-
O segundo resultado importante é que as crescentes regulamentação do sistema bancário para facilitar a entrada
pressões sobre as finanças públicas americanas acabaram das montanhas de eurodólares e petrodólares que inundavam
mudando radicalmente os sistemas monetário e financeiro o mercado mundial, esses foram apenas alguns dos ingre-
internacionais. No começo dos anos 70 iniciou-se efetiva- dientes do explosivo coquetel econômico dos anos 80.
mente uma nova era no quadro econômico mundial. A A economia americana, com seus défícits públicos, co-
quebra da paridade do dólar, estabeleci da em Breton Woods, merciais e enorme acúmulo de dívidas, acabou centralizando
em 1972, foi o verdadeiro tournant para que o placar do jogo novamente os destinos da economia mundial. Só que, desta
22 José Antônio Martins A riqueza do capital e a miséria das nações 23

vez, acumulando principalmente os desequilíbrios de todo o nacional dos EUA. As contas públicas também estavam
sistema. No período 82-90 os Estados Unidos produziram um comprometidas. As medidas para se reduzir o déficit público
déficit comercial de quase US$ 900 bilhões. Por outro lado, não podem passar de meros exercícios retóricos entre a Casa
o Japão e a Alemanha registraram, no mesmo período, um Branca, o Pentágono e o Congresso. De um total de despesas
superávit de US$ 734 bilhões. Todos estavam crescendo de US$ 1,14 trilhão no orçamento de 1989, o governo
muito com as novas condições do jogo. Em 1986, o jogo americano gastava US$ 303 bilhões com a defesa e US$ 170
competitivo já estava totalmente mudado. O poder financeiro bilhões com o item "despesas líquidas com juros"!
já tinha se deslocado para a Ásia e, em menor medida, para As razões da perda de competitividade e do declínio
a Europa Ocidental. Em 1982 os dois maiores bancos do americano vão muito além da simples observação popular da
mundo eram americanos (Citicorp e Bankarneríca). Em 1986, frota de modelos de automóveis que circulam por aquele
os cinco primeiros eram japoneses. país, ou da montanha de eletrodomésticos estrangeiros que
A perda de competição financeira americana se manifes- ocupam todos os lares americanos. O problema é que,
tava também na perda de agressivídade das suas empresas no mesmo que este declínio seja apenas relativo, permanece o
exterior. Entre 1980 e 1985 os investimentos diretos ameri- fato de que o destino de todas as economias nacionais ainda
canos no exterior cresceram muito pouco. No entanto, a depende do que se passa naquela velha superpotência eco-
entrada de investimentos diretos de estrangeiros nos EUA nômica. Os próximos dois ou três anos serão decisivos.
praticamente triplicou no mesmo período. No Japão se pas- Nesse período se somarão uma nova desaceleração cíclica -
sava o contrário. Enquanto o seu mercado continuou fechado que ocorre a cada período de seis ou sete anos - e a
aos investimentos diretos externos, multiplicou por sete os transição do velho mundo econômico da Guerra Fria, para
seus investimentos no exterior. gerar formas menos polarizadas e monopolistas do comércio
Uma rápida verificação na evolução das taxas de câmbio internacional.
até 1985 é suficiente para entender o origem dos estragos
que a dupla Volker-Reagan tinha causado sobre a Poupança nacional (porcentagem do PNB)
competitividade externa americana. Talvez isso tivesse sido
necessário. Afinal, o longo prazo é muito difícil de se País 1973 J 980 1985 1989

justificar na economia. De qualquer modo, o longo prazo já EUA 21,1 18,8 15,8 15,4
começava a bater na porta por volta de 1985/86. Uma Japão 39,2 31,1 31,6 34,0
política desesperada de desvalorização do dólar, no período Alemanha 26,5 21,7 22,1 26)
1986-91, não foi, entretanto, suficiente para reverter o
quadro de desfalecimento da indústria e do comércio inter- Fonte aCDE
24 José Antônio Martins A riqueza do c ap it a! e a miséria das nações 25

Formação bruta de capital fixo Estoque de investimentos diretos estrangeiros


1986 = 100 (US$ bilhões, fim do período)

País 1987 1988 1989 1990 Grupo dos Sete No Exterior No País
EUA 101,9 107,61 109,33 1975 1980 1985 1989 1975 1980 1985 1989
108,24
Japão 109,6 122,64 133,56 148,12 EUA 124 215 230 373 28 83 185 401
Alemanha 102,1 106,80 114,27 124,33 Japão 17 20 44 154 3 3 5 9
Alemanha 15 31 43 104 19 25 23 40

Fonte: OCOE França 14 28 73 17 37 61


Itália 3 7 18 47 9 9 19 51
Reino Unido 38 78 107 224 24 63 63 138
Balança corrente (comércio mais serviços) Canadá 10 23 39 64 40 60 62 103
US$ bilhões [1991J

País 1975 1979 1980 1981 1982 198) 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990
EUA 18,I -1,0 1,1 6,9 -5,8 -40,1 -99,0 -122,3 -145,3 -160,2 -126,2 -106,3 -92,1
Japão -0,7 -8,76 -10,75 4,77 6,85 20,78 34,9 49,1 85,8 87,0 80,0 57,1 35,42
Alemanha 4,3 5,4 -13,8 -3,5 5, I 5,3 9,8 16,4 39,5 45,8 50,5 57,2 47,9

Fonte: OCOE

Défici ti superávit
Período 82-90 (US$ bilhões)

EUA Japão Alemanha


-897,3 +457,0 +277,3
Japão e Alemanha = +734,3

Fonte: OCOE
APERTANDO O CERCO

Na economia, como na natureza, os grandes abalos sís-


micos são geralmente precedidos de sinais de menor
intensidade. Foi o que aconteceu em 1991, quando a
produção econômica mundial sofreu uma quase impercep-
tível queda de 0,4%. Foi o suficiente, entretanto, para os
pesquisadores da ONU constatarem em seu relatório
World Economic Survey 1992, de julho passado, que "foi
a primeira recessão global do período pós-guerra". Uma
recessão não é ainda uma verdadeira crise econômica, um
colapso do sistema. O problema é que a economia está
longe de mostrar a mesma capacidade de recuperação de
ciclos passados, quando certas reestruturações foram su-
ficientes para recolocar a poderosa máquina de Bretton
Woods em movimento.
28 José Ant611io Martins A riqueza do cap it al e a miséria das nações 29

Crescimento da economia mundial, 1988-91 (variação anual em %) tado de um processo cíclico que já dura pelo menos dez anos,
Portanto, uma boa maneira para se avaliar as razões da queda
1988 1989 1990 1991 atual da produção mundial pode ser procurar alguns elementos
Produto Mundial 4,4 3,2 1,8 ,0,4 que, no período anterior, fizeram com que esta mesma pro-
Economias Desenvolvidas 4,4 3,3 2,6 0,9
Europa Oriental e Ex,URSS 4,5 2,3 ,5,0 ,15,9
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Economias Subdesenvolvidas 4,4 3,3 3,2 3,4
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Comércio Mundial (volume exportado) 8,5 7,2 4,7 3,4 ,..... -e- \O
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Crescimento Produto Mundial Percapita 2,7 1,5 ,2,1 '"':'
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Fonte: ONU, 1992 ~ ,...,..•. ,...,
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possível crise econômica, poderá se transformar em um desa-
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bamento geral? A revista The Economist acha que não, Em sua o-
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edição de 25 de julho, com o sugestivo título "When economies QO ~


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screarn", tenta desfazer um certo temor que começa a tomar


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30 José Antônio Martins A riqueza do ca p it a! e a miséria das nações 31

dução alcançasse um dos pontos máximos de expansão do


período pós-guerra.
Os números recentemente publicados pelo relatório da
ONU podem ajudar. Um movimento que se destacou, no
decorrer dos anos 80, foi a fantástica concentração dos recursos
financeiros mundiais na área da Organização para o Comércio
e Desenvolvimento Econômico - OCDE. É a área econômica
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que reúne as chamadas economias desenvolvidas. Até 1982, 1
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como se pode verificar na Tabela A havia uma certa repartição 00
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dos recursos financeiros entre as diversas áreas econômicas.


A partir de 1983, entretanto, iniciou-se um período de cen-
tralização na área da OCDE, enquanto as demais áreas -
América Latina e Europa Oriental - se limitaram, pratica-
mente em todo o transcorrer da década, a bombear capital
para o exterior.
Outra coisa que também chamou a atenção neste movi-
mento foi a forma como se organizou o sistema, de modo a
reciclar a quase totalidade dos recursos financeiros mundiais
para o interior da economia dos Estados Unidos. Isto pode
ser verificado na Tabela B. Em 1980, a totalidade do sistema
transferia pouco mais de US$ 19 bilhões para os EUA. Este CY"l lI"'I o tv"l
~ 0- -.:t"- 0:-- "7-

saldo americano foi subindo, até atingir o ponto mais elevado


em 1987, quando aquela economia absorveu US$ 153 bilhões
de recursos financeiros líquidos. Mas a partir de 1988 o saldo
começou a declinar, para chegar em 1991 com apenas US$
37,7 bilhões. Para as demais economias da OCDE - Canadá,
Japão e Europa Ocidental - este financiamento da expansão
americana não significou nenhum prejuízo. Ao contrário,
representou a possibilidade de valorizarem os seus enormes
excedentes financeiros, generosamente aumentados nos anos
w
fJ

Tabela C
América Latina: investimento, poupança e transferências líquidas, 1980-90 (% do PIB)

Investimnlto Interno Bruto POII~anía IlIterna Bruta Transferência Lí4uida de Recursos '-
o
v;

1980 1985 1989 1990 1980 1985 1989 1990 1980 1985 1989 1990
",
;to.
América
Latina 24, I 17,5 21) 18,6 22) 22,4 14,9 11,0 1,4 -4,8 -3,2 -2,3
-
;:
o,
;:
o
Brasil 23,3 17,0 24,8 21, I 21, I 22,0 28,3 22,6 2,2 -5,0 -3,5 -1,4 $:
.,.
Argentina 22,2 8,5 9,0 8,9 10,0 15,2 17,0 15,6 2,2 -6,6 -8,0 -6) ~
;:
México 22) 11,2 22,8 18) 24,9 26,3 23) 18,2 2,3 -5,1 -0,9 0,5 v;

Peru 17,5 11,6 20,6 22,9 27,5 26,3 21) 23,2 - -4) -1,1 -0,3

Fonte: ONU, 1992

Tabela O
Comércio mundial, 1982-91

;to.
1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 ~.
-<:>
Valor das exportações ~
"
.,.N
(bilhões de dólares)
l::l..
Mundo 1.806 1.771 1.873 1.895 2.083 2.438 2.768 2.988 3.408 3.469 o

Economias Desenvolvidas 1.186 1.171 1.248 1.289 1.504 1.759 2.007 2.148 2.476 2.534 .,.
()

"'"
Economias Subdesenvolvidas 494 475 501 485 452 547 630 711 808 846 ;:;-
Europa Oriental 126 125 124 121 127 \32 131 129 124 90
.,.
Volume das exportações
(% Anual)
=
v;

..,'"
Mundo -2,6 2, I 8,3 3) 4,1 6,2 8,5 7,2 4) 3,4 ~.

Economias Desenvolvidas -1,8 1,8 9,9 5,1 3,3 5,0 8,6 6) 5) 2,8 .,.l::l..
v;

Economias Subdesenvolvidas -6,9 2,1 5,6 1,1 12,0 10,9 10,2 8,5 5,9 10,1 .,.;:
Europa Oriental 5) 4) 4,6 -1,0 4,3 2,4 4,3 -0,9 -10) -21,6 ""o,
"'"

Fonte ONU, 1992


w
w
34 José Antônio Martins A riqueza do capital e a miséria das nações 35

80 pelos superátivs
do comércio com os EUA e, em segundo trabalhador subiu em média 1,96% nos países desenvolvidos,
momento, com as próprias receitas financeiras dos emprésti- contra 33% nos países subdesenvolvidos. Na América Latina
mos para aqueles país. Entretanto, para as economias do subiu 25%. No decorrer dos anos 80 a situação se inverteu.
Terceiro Mundo, e particularmente para a América Latina, isto De 1980 a 1990 o investimento por trabalhador subiu 22 %
tudo significa apenas uma dedução de recursos, que se des- nos países desenvolvidos, ficou estagnado nos países subde-
viavam do seu investimento bruto interno em direção ao senvolvidos, e caiu 18% na América Latina. Estes números
sistema financeiro internacional, onde eram devidamente refletem aquele profundo déficit de capital dos países pobres
reciclados e, finalmente, desaguavam na economia americana. visto anteriormente, provocado pela remessa de recursos
Era como se estas pobres áreas econômicas fossem altamente financeiros líquidos em direção à OCDE. Este processo teve
superavitárias nos seus balanços de pagamentos quando, na consequências diretas também na produtividade da força de
verdade, o que se passava era uma profunda sangria na sua trabalho das áreas analisadas. Nos anos 70, o produto bruto por
capacidade de poupar e investir nas respectivas economias trabalhador cresceu 9% nos países desenvolvidos e 13% nos
internas, como se pode verificar nos números da Tabela C. países subdesenvolvidos. Nos anos 80, a situação também se
Esta sangria de recursos financeiros do Terceiro Mundo foi inverteu. Nos países desenvolvidos, o produto bruto por trabalha-
extraída em grande parte de uma violenta perda nos termos de dor subiu 12%, enquanto no Terceiro Mundo subiu apenas 5%.
intercâmbio dos países pobres no comércio internacional. Sem Na América Latina caiu quase 2 %!
aumento da produtividade, a produção destes países foi direcio- O aumento da produtividade da força de trabalho na
nada para aumentar o volume de mercadorias exportadas, com OCDE e a sua diminuição no Terceiro Mundo significaram
correspondente redução do seu valor unitário. É o que se pode que as inovações tecnológicas foram crescentemente incorpo-
verificar nos números da Tabela D. Entre os anos de 1982 e radas no aparelho produtivo da OCDE e estagnadas no
1991, as economias desenvolvidasaumentaram o valor das suas Terceiro Mundo, particularmente na América Latina. São
exportações em 114% e o volume em 57%. No mesmo período, estes números que refletem um ambiente de rápida deterio-
as economias subdesenvolvidas aumentaram o valor de suas ração das condições de reprodução das populações do T er-
exportações apenas 71 % e o volume em 75%. ceiro Mundo, e uma crescente marginalização das suas
Este processo de brutal concentração dos recursos finan- respectivas economias dentro do sistema econômico mundial.
ceiros internacionais nas economias da OCDE acabou provo- Este processo acabou resultando em uma elevação da renda
cando uma série de condicionantes da expansão mundial dos per capita na OCDE - de US$ 14.999 em 1981, para US$
anos 80. Em primeiro lugar, o crescimento econômico se 18.211 em 1991. Na América Latina , no mesmo período , ela
concentrou nas principais economias, como se pode verificar caiu de US$ 2.109 para US$ 1.984!
na Tabela E. No decorrer dos anos 70 o investimento por
36 José Antônio M,uli/1s A riqueza do capital e a miséria das nações 37

Tabela E elevação dos níveis das trocas internacionais não produzem


Produtividade e investimento na economia mundial, 1971-90 apenas mais valorização e mais lucro para o capital instalado,
(miilJam de dólares de :/980) Produzem também, a partir de um ponto máximo do período
de expansão do sistema, uma montanha gigantesca de recursos
!971-1975 !976-!980 !98H985 1986-1990 e de mercadorias que só pode ser realizada com uma dimi-
Produto bruto por trabalhador nuição proporcional do valor unitário de todas estas formas
Economias Desenvolvidas 20) 22,0 23,0 25,8 de existência do capital. Em resumo, instala-se no mercado
Economias Subdesenvolvidas 1,5 1,7 1,8 1,9 um progressivo processo de desvalorização do capital. Isto se
América Latina 5,4 6,0 5,9 5,8 manifesta, nos dias atuais, como poderosas forças de deflação,
Mundo 5,5 6,0 6,2 6,6 que acabam reduzindo o valor das moedas, dos estoques, das
Investimentos por trabalhador ações, da propriedade imobiliária, dos ativos em geral.
Economias Desenvolvidas 5,1 5,2 5,1 ó,2 Em termos concretos, as tensões e os gritos atualmente
Economias Subdesenvolvidas 0,3 0,4 0,5 0,5 existentes no mercado internacional surgem das expectativas
América Latina 1,2 1,5 1,1 0,9 de perdas que deverão ser repartidas entre as principais
Mundo 1,4 1,5 1,5 1,6 economias e blocos econômicos, A reestruturação daquela
poderosa máquina de Bretton Woods - que abriria mais um
Fonte ONU, 1992 ciclo de expansão da economia global - não pode ser
efetuada sem uma prévia queima de estoques, que em último
Mas estes movimentos devem ser analisados dinamica- caso é provocada pela redução dos preços que valorizam as
mente, As mesmas forças que possibilitaram a elevação da diversas formas de capital no período de expansão anterior.
produção a seus pontos mais elevados se desmancham a partir Entretanto, esta deflação dos preços não pode ser confundida,
dos últimos dois anos, Pelos próprios números mostrados, como na matéria da The Economist, com uma redução da
pode-se perceber que em 1991 aquela poderosa centralização inflação. A deflação diz respeito à redução dos preços de
de recursos financeiros mundiais na OCDE, e mais particu- produção e portanto, dos lucros. A desinflação, por seu lado,
larmente nos EUA, desabou com a mesma rapidez com que diz respeito à queda dos preços de mercado. Nestas condi-
se elevou no começo da década. As razões desta recente ções, as "poderosas forças em ação", muito bem sentidas pela
descentralização do capital mundial devem ser procuradas na veneranda revista, não poderão ser controladas apenas com
base de funcionamento do sistema. A elevação da produtivi- as tradicionais intervenções fiscais e monetárias dos governos
dade da força de trabalho, a incorporação de novas técnicas ou, para não se arquivar de vez a velha ladainha liberal, com
na produção, a modernização das comunicações e a rápida o aprofundamento do livre mercado. Antes de se criar deman-
da e se ampliar mercados, muitos estoques ainda terão que ser NO JOGO
queimados. Neste meio tempo, os gritos ecoarão cada vez
mais pelo mundo.
[1992]

Recentes acontecimentos estão atingindo a euforia neoliberal


dos anos 80. A chamada globalização do mercado, por exem-
plo, talvez não resista a uma crise econômica cíclica. Globalização
dos mercados foi o nome dado à eliminação das barreiras naci-
onais, tanto para os movimentos comerciais - importações e
exportações - quanto para os financeiros e de capitais. No caso
dos movimentos comerciais, a globalização significou uma abertura
dos mercados nacionais ao fluxo de bens e serviços. Isto
estimulou uma expansão muito grande do volume de comércio
a nível mundial. No caso dos movimentos financeiros e de capitais,
a globalização significou uma desregulamentação muito grande
do sistema bancário privado e das bolsas de valores de todo
o mundo. O capital financeiro pôde então se movimentar com
muito mais rapidez, volume e intensidade nos principais mer-
cados nacionais - Estados Unidos, CEE e Zona Asiática.
40 José Antôr,io Martins A riqueza do ca p i t a l e a miséria das nações 41

Em resumo, a globalização dos mercados foi a principal Crescimento do PIB


característica neoliberal dos anos 80: abertura dos mercados, (em porcentagem de variação anual)
afastamento do Estado na regulação dos mercados financeiros
e de capitais, diminuição da importância do aspecto nacional Região 198H987 1988 1989 1990 1991

de origem das mercadorias do capital. Mas a crise econômica Mundo 2,7 4,4 3,2 1,8 - 0,4
cíclica que está se iniciando na economia americana, ponta Rússia e Leste Europeu 2,9 4,5 2,3 -5,0 -15,9
do sistema, e se alastra pela Comunidade Econômica Européia China 9,7 10,9 3,3 5,2 i,O
(CEE) e Japão, já começa também a enfraquecer o ambiente
de livre movimentação de mercadorias e dinheiro nos mer- Fonte ONU . Julho/92
cados globalizados. O primeiro efeito da desaceleração cíclica
mundial é o de criar uma forte instabilidade sobre as finanças Enquanto o PIB da Rússia e economias do Leste Europeu
públicas das principais economias. O segundo é o de se criar começou a se desacelerar a partir de 1989, quando as reformas
um ambiente cada vez menos propício a políticas comuns de neoliberais se intensificaram na região, o PIB da China reto-
estabilização e retomada do crescimento mundial. Isto quer mou e manteve uma elevada taxa de crescimento até o ano
dizer uma recaída no individualismo e no comportamento passado. Isto mostra que, se a China tivesse seguido a mesma
egoísta de cada nação se preocupar em primeiro lugar com receita neoliberal vendida pelo FMI para os europeus do Leste,
seus próprios problemas. possivelmente ela estaria amargando uma situação catastrófica
É como se uma gripe muito forte tomasse conta de um muito parecida com a atualmente vivida pelos seus falecidos
atleta, um dia antes da prova decisiva. Os anos 90 deveriam primos europeus. Isto desmente, também, a crença de que só
decidir várias coisas importantes. A reforma liberal das eco- com a diminuição radical da intervenção do Estado na eco-
nomias do Leste Europeu, em primeiro lugar, anunciada como nomia se possa fazer crescer o capital nacional. As poucas
um grande feito das maravilhas do mercado, transforma-se repúblicas populares que sobreviveram ao vendaval do
rapidamente em um estrondoso fracasso. O mais interessante neoliberalismo dos anos 80, como é o caso de Cuba, devem
deste fracasso do liberalismo europeu é que, simultaneamente, prestar bastante atenção neste quadro comparativo das expe-
na China estatizada, de partido único, stalinista, a abertura da riências do Leste Europeu e da China. Em resumo, vale a pena
economia caminha de vento em popa. O relatório da ONU não se precipitar e resistir por mais algum tempo às pressões
sobre a situação da economia mundial, publicado no mês externas. Mesmo porque os ventos começam a mudar no reino
passado, apresenta o seguinte quadro de crescimento do PIB do neoliberalismo.
nas duas regiões. A Comunidade Econômica Européia (CEE), outro sonho
olímpico de se eliminar barreiras nacionais em plena vigência
42 .José Antônio Martins A riqueza do c a p it al e a miséria das nações 43

do sistema capitalista, só tem sofrido revezes nos últimos passivamente, mais uma vez, os efeitos de uma brusca mudan-
meses. Depois da recusa plebiscirária da Dinamarca, não ça de rota das principais áreas econômicas. O cenário de um
aceitando os termos de unificação européia, agora é o pessi- recrudescimento do protecionismo internacional não pode ser
mismo quanto ao plebiscito francês, marcado para setembro, descartado para os próximos anos. Nestas condições, os
que lança sérias dúvidas quanto ao futuro de uma Europa maiores atingidos serão os incautos que teimam em navegar
comum. O maior cabo eleitoral para a vitória do não francês nas inprevisíveis e traiçoeiras águas do livre jogo de mercado.
à unificação está sendo a política econômica individualista da [1992]
Alemanha, que desesperadamente eleva suas taxas internas de
juros e empurra o resto da Europa para o buraco da recessão
e do desemprego.
Os Estados Unidos estão prorrogando a ec!osão da sua
crise para depois das eleições de novembro. Se ganharem os
democratas, que neste momento lideram as pesquisas de voto,
a ameaça de medidas econômicas nacionalistas e protecionis-
tas aumenta mais do que com uma vitória republicana. Esta
perspectiva é a pior que se pode imaginar para a economia
japonesa, que já se encontra em uma delicada conjuntura de
desvalorização do capital, refletida em uma verdadeira derro-
cada do preço das ações na Bolsa de Tóquio.
Por essas e por outras razões é que a música de maior
sucesso da década de 80, o neoliberalisrno. composta pela
dupla Tatcher-Reagan, já está há um bom tempo fora das
paradas dos principais centros econômicos. O que se ouve,
cada vez mais, são acordes neonacionalistas, com ênfase nas
políticas nacionais contra a recessão e o enorme desemprego
que se acumula naquelas áreas.
E para o Brasil? Para os latino-americanos em geral, e para
os brasileiros em particular, é como se nada estivesse mudando
no ambiente econômico mundial. Por aqui a música continua
a mesma dos anos 80. Corre-se um grande risco de se esperar
o
-----
MUNDO
. GIRA

A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econô-


mico (OCOE), que reúne os 24 países mais industrializados
do mundo - Estados Unidos, Canadá, países da Europa
Ocidental, Japão, Austrália e Nova Zelândia - refez a sua
previsão de crescimento para este bloco em 1993. No
começo do ano, a OCOE previa um crescimento de 2%.
Rebaixou aquela previsão para pouco mais de 1 %. No ano
passado o PIB do bloco cresceu 1,5%. Até o final deste ano
a OCDE será obrigada a rever novamente estes números,
possivelmente para pouco mais ou pouco menos de zero.
Estará mais próximo de nossas previsões.

As previsões do último relatório da OCDE são as


seguintes:
46 José Antônio Martins A riqueza do catrit al e a miséria das nações 47

PIB rizar as crises do capital. Pletora, em medicina, é uma patologia


Desemprego
(Vanação %) em que o corpo humano sofre um aumento descontrolado da
(em % da população economicamente ativa)
Países 1992 1993 1994 1992
produção de sangue. Esta super-produção sanguínea acaba
1993 1994
Estados Unidos 2,1 2,6 3,1 7,4 7.0 pressionando, explodindo as artérias.
6,5
Japão 1,3 1,0 3,3 2,2 A patologia capitalista é muito parecida com a pletora no
2,5 2,6
Alemanha 2,0 -1,9 1,4 7,7 corpo humano. A super-produção do capital é a super-pro-
10,1 11,3
OCDE 1,5 1,2 2.7 7,9
dução de valor e de mais-valia. Mas o valor e a mais-valia são
8,5 8,6
o próprio sangue do capital. É o trabalho humano que tem
Fonte: OCDElFolha de São Paulo esta capacidade de produzir valor e mais-valia. É a exploração
da força de trabalho, portanto, que está na base das crises do
?
que está alarmando os técnicos da OCDE é o rápido capital. A exploração desmesurada da força de trabalho é a
base para a super-produção de capital, que acaba ciclicarnente
crescimento do desemprego nas principais economias. Afir-
mam no relatório que "o desemprego na OCDE con timuara, impondo a desorganização, o arrebentamento dos circuitos de
a crescer e poderá alcançar 36 milhões de pessoas (8,75% da circulação da gigantesca massa de capital. A exploração da
força de trabalho) na primeira metade de 1994, antes de força de trabalho é imprescindível para a existência do capital.
começar lentamente a cair". Mas a profundidade com que extrai dos trabalhadores o
Muita gente fica mais alarmada ainda do que os técnicos sangue valorizado em forma de capital, acaba se transforman-
da OCDE - que fazem sempre um grande esforço para do em uma massa de capital maior do que a própria capacidade
manterem projeções otimistas para o ano de 1994 - achando de circulação e realização de uma determinada taxa de lucro.
que o sistema capitalista entrará em declínio permanente a A crise capitalista explode no seu ponto mais elevado de
partir deste choque de 1993. A coisa não é bem assim . N'-ao acumulação, e não no ponto mais baixo de um pretenso
se. pode imaginar que este regime econômico de exploração declineo, de uma estagnação permanente, como imaginam o
~ala por si só, de maduro, mecanicamente. As crises capita- senso comum e boa parte dos teóricos de esquerda.
listas não são permanentes, mas periódicas em permanência. O aumento do desemprego mundial é apenas um aspecto
Não são crises de maturidade e estagnação_ Ao contrário do que do aprofundamento da exploração da força de trabalho. Éo
se pensa, as crises capitalistas não são provocadas por uma aumento desta condição imprescindível para a produção do
pretensa incapacidade sistêmica de se produzir capital p sangue que se transforma em lucro e em capital. O sistema
' or
uma insu f iciência de valorização . São na verdad e provoca d as apenas se prepara para uma superação de mais um choque
pela super-produção de capital, por uma pletora de capitaL Foi cíclico Mesmo que isto Signifique a derrubada de muros na
Marx que cunhou este termo, pletora de capital, para caracte- Eu"ropa, de muralhas na China, de barreiras no Japão, de
48 José Antônio Martins

mercados na América Latina, de Estados do Bem-Estar Social


na Europa, nos Estados Unidos, etc. Muita gente se assusta o FANTASMA
com as perspectivas desastrosas de desemprego, tomando este
processo como uma limitação do sistema capitalista. Não DA SOLIDÃO
deixam de ser realistas, entretanto, ao considerar a possibi- -....•.......--_._._ .. -

lidade de uma retomada do crescimento em 1994, como fazem


os técnicos da OCDE, mesmo com o simultâneo agravamento
do desemprego. É a luta de classes que acaba decidindo a
superação ou não dos ciclos de super-produção e crise do
capital. É a capacidade política das classes proprietárias im-
porem um patamar superior de exploração no sistema capi-
talista que possibilitará novos e mais sangrentos ciclos de
expansão econômica. Parece que é com esta possibilidade que
a OCDE e os tecnocratas da estabilização econômica em todo
o mundo estão contando, para que realisticamente possam
prever novos ciclos de expansão capitalista A grande roda de Parece que os japoneses estão aprendendo tardiamente um dos
Adam Smith não pode parar de girar. Agora, uma roda mais principais ensinamentos de David Ricardo, o maior dos eco-
mundializada do que nunca. nomistas: o mercado externo nunca deve ser o principal local
[1993] de investimentos de uma economia que pretenda um cresci-
mento estável e duradouro. Ricardo não deixou de formular
o famoso modelo das vantagens comparativas no comércio
internacional mostrando que o livre comércio poderia ser
vantajoso para todos os participantes, mesmo para aqueles que
apresentassem vantagens apenas relativas na produção de uma
ou outra mercadoria. Mas em nenhum momento aquele gran-
de economista colocou o mercado externo como solução para
excedentes de mercadorias que não pudessem ser realizados
internamente, ou para capitais que não pudessem ser inves-
tidos nos ramos internos.
A -rigidez desta tese ricardiana talvez não agrade o senso
50 José Antônio Martins
A riqueza do c ab it al e a miséria das nações 51

comum que comanda as concepções mais práticas e


de lucro, as empresas japonesas podiam diminuir seus preços
mercantilistas. Mas ela talvez contenha a explicação mais
e vencer a competição internacional.
plausível que os japoneses podem encontrar para os primeiros
O que há de surpreendente nesse diagnóstico é uma visão
sinais de esgotamento do seu modelo econômico baseado em
totalmente nova para explicar o sucesso da economia japonesa
crescentes superávits comerciais.
no período recente. Não se trata das costumeiras exaltações ao
Akio Morita, presidente da Sony, talvez nunca tenha lido
espírito cooperativo dos trabalhadores japoneses, ao seu eleva-
Ricardo, mas parece um homem amargurado com os limites da
do nível educacional, patriotismo, dedicação espontânea ao
economia japonesa. Quando o mundo todo ainda parece acre-
trabalho e outras qualidades nem sempre facilmente confirma-
ditar que aquela economia tem tudo para ultrapassar e substituir
das por quem se aprofunda no microcosmo industrial daquele
a problemática economia americana no topo das potências
país. O que existe, para o senhor Morita, é uma condição
mundiais , o senhor Morita deve ter sérias dúvidas a respeito.
macroeconômica que pode explicar tanto a expansão quanto
Recentemente ele tem se preocupado em difundir a idéia de que
os limites deste modelo japonês do pós-guerra, sugerindo que
o modelo econômico japonês tem que ser mudado. "Durante
as empresas daquele país deveriam pagar salários no mesmo
muito tempo, acreditei que não havia nada de errado em
nível dos americanos e europeus, reduzir o número de horas
fabricar produtos de qualidade a preços baixos", declarou Morita
de trabalho para igualar a jornada vigente na Europa e EUA,
em entrevista ao Asahi Shimbum. "Porém, passei a me preo-
e assumir responsabilidades sociais como, por exemplo, pagar
cupar cada vez mais com a possibilidade de não existir solução
custos ambientais. Uma verdadeira mudança nas condições de
para o crescimento do superávit comercial japonês."
acumulação que predominaram até agora na economia japone-
Na verdade, o modelo japonês começa a fazer água no
sa. Essa não é uma tarefa fácil para quem ainda acredita que
componente vital de qualquer sistema capitalista: a taxa de
o voluntarismo mercantilista de se conquistar mercados a
lucro. O presidente da Sony descobriu, por exemplo, que o
qualquer custo é uma receita de permanente sucesso.
Japão só pôde crescer nas últimas décadas devido a condições
A queda livre dos preços das ações na Bolsa de Tóquio-
de valorização do capital totalmente diferentes das dos seus
que nos últimos dezesseis meses já atingiu quase 50% - e a
principais concorrentes. Mas em que se baseavam estas con-
publicação dos últimos demonstrativos de perdas das principais
dições? Foi o próprio senhor Morita que descobriu que as
corpo rações industriais e financeiras japonesas, talvez estejam
empresas japonesas nunca se preocuparam muito com distri-
ajudando a estimular a capacidade teórica dos japoneses de
buição de dividendos, com salários e férias razoáveis aos seus
descobrir as fraquezas de um modelo dependente do mercado
trabalhadores, dentre outros procedimentos rotineiros para
externo. Eles percebem que não se trata apenas de possíveis
seus concorrentes nos EUA e Europa.
restrições protecionistas às mercadorias e aos capitais japoneses.
Resultado: com esta fórmula peculiar de elevar suas taxas
Isso não está acontecendo, pelo menos por enquanto. O que
COMPETITIVIDADE E

MUNDIALIZAÇÃO

Apesar da calmaria passageira que se presenciou na última


cúpula das três grandes potências econômicas mundiais, re-
alizada no mês de julho de 1993 em Tóquio, vários aconte-
cimentos estão reavivando as tensões entre os três amigos -
inimigos - concorrentes, que são os Estados Unidos, Japão
e Comunidade Econômica Européia (CEE)
A situação americana é de pessimismo quanto a uma
solução de seus maiores problemas estruturais: crescente déficit
comercial, principalmente com o Japão; rígido desemprego,
que já atinge amplos setores da classe média; déficit público;
deterioração das condições de vida - habitação, saúde e
educação, principalmente. A tão decantada estabilidade do
sistema econômico japonês também já começa a ser coisa do
passado. Como já é do passado a supremacia do Partido
Liberal Democrático, que governou monoliticamente aquele
56 José Antônio Marfins A riqueza do capital e a miséria das nações 57

país nos últimos quarenta anos. Tomou posse nessa semana O livro de Lester Thurow, escritor americano, traduzido na
um novo governo, formado por diversos partidos que foram França com o nome de A casa européia, superpotência do século
vitoriosos nas eleições de menos de um mês atrás. A perspec- vinte e um, descreve uma guerra econômica que vai acontecer
tiva é de que o novo governo japonês aprofunde uma nova no interior da Tríade (Estados Unidos, Japão e CEE), pela
estratégia de presença prioritária na Ásia, como forma de se liderança mundial. As teses de Thurow refletem a opinião
preparar para uma guerra econômica com os Estados Unidos da maioria dos dirigentes industriais e políticos americanos.
e CEE. Segundo os últimos dados, a China já é o segundo Na Europa, notadamente na França e Alemanha, começa a
comprador mundial das mercadorias japonesas. Há cinco anos tomar conta a idéia de que a sobrevivência econômica só
atrás, o Japão tinha pelo menos uns oito ou nove compradores poderá se dar, dentro de uma guerra econômica que se
na frente da China. Este recolhimento do Japão sobre a Ásia anuncia, com um bloco único contra Japão e Estados Unidos.
é necessário para garantir o apoio ativo ou pelo menos a Esta idéia de união européia contra os dois outros compo-
neutralidade dos países da região, para uma nova política nentes da Tríade pode ser encontrada em livros como o de
externa do Japão à nova ordem política e econômia mundial. Pierre Lellouche, O novo mundo, Paris, 1992; jean-Louis Levet
A CEE, entretanto, é a região econômica que mais sofre e jean-Claude Tourret, A revolução dos poderes - os patriotismos
os efeitos das mudanças econômicas mundiais. Incapaz de econômicos testados COIl1 a mundialização, Paris, 1992; Cristian
absorver os imensos mercados da Europa do Leste, a CEE se Harbulot A máquina de guerra econômica - Estados Unidos, Japão
desagrega com seus próprios problemas. O fim do Sistema e Europa,Paris, 1992.
Monetário Europeu (SME), ocorrido de fato, representa a A ideologia da competitividade e a mundialização da
incapacidade de se manter um velho sistema, que bem ou mal economia destruíram as velhas estruturas políticas e as velhas
funcionava nos últimos quinze anos. Os planos, até dois anos concepções nacionais. Competitividade e mundialização são
atrás, eram de substituir o velho SME pela integração da os componentes estruturais mais importantes da lógica das
moeda única européia. Agora ficaram sem sistema nenhum. grandes empresas mundiais nos anos 90, que não cabem mais
Mais do que nunca, a CEE se distancia da realidade e se nos velhos espaços nacionais, arrebentando os pactos sociais,
transforma em um mero sonho burocrático de unificar a as culturas dos grupos e nações, as condições ambientais, etc.
economia européia. Segundo Ricardo Petrella "Por um desarmamento econômico",
O desmantelamento da velha ordem capitalista do pós- Le Monde Diplornatique de agosto de 1993, "A cornpe-
guerra apresenta seus resultados na crise econômica das três titividade induz e alimenta a guerra. Não se cria laços de
potências econômicas. A perspectiva de confrontos entre as Cooperação entre as pessoas, Cidades, países, povos, pregando-
três regiões é cada vez mais reafirmada na imprensa e nos se valores contraditórios com o espírito de solidariedade e de
livros que estão aparecendo na Europa e nos Estados Unidos. reconhecimento dos direitos de existência dos outros ... Con-
58 José Antônio Martins

trariamente aos fenômenos da multinacionalização dos anos


50 e seguintes, caracterizados sobretudo pelo deslocamento
o S T G R E S
das empresas americanas para a Ásia, América Latina e Europa,
ESTÃO MIANDO
visando explorar as oportunidades geográficas de lucros e
mercados, a mundialização atual se traduz sobretudo por uma
integração - interpenetração crescente entre as econômicas

~os países mais desenvolvidos do mundo, aqueles da T ríade.
E claro que as deslocações continuam, pois o nível extrema-
mente baixo do custo do trabalho continua sendo fator
atrativo. Mas o importante é ocupar posições, se possível
dominantes, sobre os mercados mais desenvolvidos, portanto
os mais ricos (mesmo que saturados), e com mais elevado valor
agregado, portanto os mais atrativos. Por essas razões, são
também, os mais difíceis e os mais custosos a penetrar e a
conquistar. Daí a violência da concorrência e da luta. daí a
lógica de guerra entre os países e as empresas mais poderosas A super-produção de capital pressiona ainda mais a economia
do mundo". mundial. Todas as previsões oficiais quanto ao crescimento
Para países como o Brasil, em que ainda predominam das principais economias neste ano estão sendo revisadas para
ilusões liberais, é sempre interessante atualizar as perspectivas baixo. É sinal de que as máquinas estão parando, as dívidas
dos principais centros econômicos e, principalmente, com a aumentando e a queima de grandes massas de capital (falência
idéia que eles fazem da economia internàcional para os de indústrias, bancos, comércio, etc.) está esperando na pró-
próximos anos. Talvez assim consigam colocar no seu devido xima esquina. É sinal de que o desemprego e as pressões
lugar conceitos como competitividade, mundialização, etc., sociais aumentarão a desagregação do Estado capitalista e a
nas perspectivas desta estranha economia brasileira. Antes que incapacidade dos mais diferentes governos acharem formas
a guerra tenha começado. estáveis de organização do sistema.
A área asiática (japão, Tigres Asiáticos, China) era até
pouco tempo considerada uma inabalável reserva de cresci-
mento para o resto do sistema. Era. Os dados publicados pela
imprensa internacional mostram que as economias do Japão
e da China também estão jogando a toalha.
60 José Antônio Martil1s A riqueza do capital e a miséria das uações 61

Segundo o Financial Times "a economia do Japão se recessão de agora. Quanto aos preços de produção (ou do
contraiu no segundo trimestre deste ano: o Produto Nacional atacado), estão caindo. Os economistas vão logo interromper
Bruto (PNB) registrou queda de 2% em termos anuais e de suas palmas para compreender que essa deflação nada mais é
0,5% em relação ao trimestre anterior. Se essa retração ocorrer do que a expressão mais acabada (e clássica) de uma pesada
novamente no trimestre que termina neste mês, significará que crise de super produção que se desenrola à nossa frente. Está
o país está oficialmente em recessão. Colocará o governo de certo, fazia tanto tempo que isso não acontecia, que não se
coalizão, empossado há um mês, sob forte pressão para que pode exigir uma mudança muito brusca no modo de pensar
amplie seus planos de um novo pacote de estímulo econômi- a economia dos últimos cinquenta anos.
co". Seria a primeira retração anual da economia japonesa E na China? Tanta gente estava confiando no socialismo
desde o choque do petróleo em meados dos anos 70, quando de mercado da China, que passou a tratar aquele caso como um
o PNB do trimestre outubro-dezembro de 1974 caiu 1,3%. stalinismo mais inteligente do que os outros. Afinal, há mais
Agora não existem bodes expiatórios para explicar a de dez anos aquela economia está crescendo a taxas superiores
super-produção de capital. O petróleo está mais barato , em a 10% ao ano. Todo o mundo capitalista tem se beneficiado
reais, do que em 1973, os juros também em níveis cada vez nos últimos anos daquela reserva de crescimento do capital
menores, o governo não para de emitir pacotes keynesianos mundial. Principalmente o Japão e os Tigres Asiáticos. E
para reanimar a economia (só nos últimos dezesseis meses o também as empresas americanas, européias, etc. Mas o milagre
governo japonês já injetou mais de 200 bilhões de dólares em chinês parece que está chegando ao fim. Uma matéria do The
obras públicas, socorro a bancos, etc). e no entanto a eco- Wall Street )ournaJ, transcrita pela Gazeta Mercantil, começa
nomia não se desvia da ladeira da recessão. Também na dizendo que "para a jmbei G.M Automotive Co. o caminho
Europa e nos Estados Unidos se procura escapar com a mesma à frente está cada dia mais acidentado. As vendas de cami-
política de estímulos governamentais na economia. Tanto é nhões leves fabricados em joint venture, na qual a General
verdade que já começa a ficar preocupante para o mercado Motors detém 30% das ações, caíram 50% nos últimos dois
financeiro internacional a brutal elevação dos empréstimos e meses. Enquanto os estoques acumulam, a jinbei G.M apressa-
das dívidas públicas nas principais economias. Mas mesmo se em diminuir a produção. Incapaz de obter junto aos bancos
essa super-ativa política de endividamento público não é créditos adicionais, a empresa recorreu à sua acionista majo-
capaz de gerar pressões inflacionárias no sistema internacio- ritária, a .linbei Automotive Co., a maior empresa industrial
nal. Ao contrário. O que se presencia, frente também aos de Shenyang, só para constatar que ela também precisa de
ciclos passados, é uma redução dos níveis de preços. Os dinheiro".
ingênuos economistas saúdam o brilhante quadro de queda dos A China é o elo mais fraco do capital mundializado e
preços ao consumidor. A inflação praticamente não existe na globalizado na área asiática. O milagre do socialismo de mercado
62 José Antônio Marfins A riqueza do capital e a miséria das nações 63

naquele país nada mais foi do que uma conjugação do capital lianing, onde os dados oficiais revelam que 43% das fábricas
financeiro, de Taiwan e Hong-Kong com as indústrias do de controle estatal estão no vermelho (para toda a China,
Japão e Coréia do Sul e com milhares de escravos assalariados cerca de um terço das fábricas apresentam déficit, segundo as
chineses que ganham um salário mais baixo que no Brasil, na informações oficiais) ... Líaoníng tem uma grande concentra-
Argentina e no México. Agora as dificuldades aparecem como ção de fábricas construídas pelos japoneses durante sua ocu-
uma enorme bolha especulativa (e inflacionária) no preço dos pação antes da Segunda Guerra Mundial. Sem capital para o
imóveis e das terras chinesas. Houve tanto dinheiro fácil, nos reaparelhamento, muitas fábricas ainda utilizam equipamentos
últimos anos, que todos os capitalistas e especuladores em japoneses pré-guerra". Lin Chunxin, diretor e secretário do
geral se endividaram além da conta. É claro que esse finan- partido da Tecelagem da Lã n. 2, de Shenyang, afirma diante
ciamento, essa entrada de cabeça da China no mercado de seis grandes armazéns repletos de vestuários não vendidos,
globalizado da área asiática, acabou criando o longo período que "não tenho dinheiro suficiente para comprar matérias
de crescimento a taxas superiores a 10% ao ano. Agora primas, para não falar de recursos para o reaparelhamento".
começa a chegar a hora do imenso tigre pedir água. O Para a Fábrica de Máquinas n. 3 de Shenyang, uma
governo está apertando as condições de endividamento das importante fabricante de equipamentos para perfuração petro-
empresas e dos especuladores, tentando com isso combater a lífera e empresas automobilísticas, não se vislumbra também
inflação que começa a explodir. Segundo o próprio The WaIl qualquer melhora. Suas dificuldades começaram em abril,
Street Jornal, "o programa adotado há dois meses estabilizou quando a fábrica começou a encontrar problemas para receber
o Yuan - moeda chinesa - restringiu os generosos emprés- de seus clientes. No fim de junho, tinha recebido 60% dos
timos e diminuiu a especulação. Mas o aperto de crédito equipamentos que vendera no primeiro semestre. Quando a
tornou-se tão intenso que a produção industrial e as vendas fábrica pediu crédito adicional ao seu banqueiro, o crédito foi
despencaram, forçando muitos trabalhadores de empresas negado. Sem esse crédito adicional, a Fábrica n.3 está redu-
estatais a tirar férias por tempo indeterminado". zindo a produção em um terço neste segundo semestre. Como
A super-produção de capital se contabiliza nos gigantes- afirma Zhu Feng, diretor adjunto da empresa: "achávamos que
cos índices de crescimento industrial deste ano na China. A daríamos um grande salto à frente neste ano. Agora parece
indústria atingiu um auge em junho deste ano de 32% de mais um estouro".
crescimento em termos anuais e declinou para 25,1% em
junho. Os burocratas de Pequim esperam reduzir essa febre
para 15% no final do ano. Mas por que tanta austeridade
frente a esse milagre? Segundo o The Wall Street Jornal
"enfrentar o aperto de crédito é doloroso na província de
DEPOIS DA QUEDA

D O M U R O

o pano de fundo para as atuais incertezas da economia


mundial é um certo desalento quanto às virtudes do libera-
lismo econômico. O otimismo burguês dos anos 80, de alguma
forma se baseava naquelas idéias de que para se reformar o
Estado bastava destruí-Ia. Esta ilusão encontrou sua mais dura
realidade no caso da reunificação alemã. Supunha-se que a
anexação da antiga Alemanha Oriental daria início a um
grande impulso ao capital alemão ocidental. Nada disto está
acontecendo. A idéia era de que o grande mercado consumi-
dor do Leste seria um estímulo para aumentar a demanda,
investir na parte oriental e, assim, provocar um novo milagre
econômico na Alemanha, também não se confirmou.
Na verdade, os ocidentais estão usando os orientais para
vender os seus produtos, e só. Mas a destruição da economia
oriental provocou um enorme desemprego, as pessoas têm
66 .José Antônio Marfins 1\ riqueza do capital e a miséria das nações 67

cada vez menos dinheiro e, em consequência, compram Japão. As necessidades de valorização do novo capital unifi-
menos. O resultado é que o Estado alemão destina mais de cado vão alongar esta jornada e, ao mesmo tempo reduzir os
100 bilhões de dólares, anualmente, para a Alemanha Orien- salários diretos e indiretos. A destruição do Estado stalinista
tal. Este dinheiro não serve para financiar investimentos oriental é acompanhada de destruição do Estado social-demo-
produtivos ou coisa parecida, mas apenas para que a popu- crata do ocidente. Os dois primos não estão apenas se
lação oriental continue comprando as mercadorias produzidas encontrando, estão também se anulando.
no lado ocidental.
Um instituto de pesquisa alemão mostrou recentemente
Criou-se uma farsa financeira que atualmente desestrutura que, depois da unificação, os alemães ocidentais sofrem mais
a economia alemã. O custo anual de 100 milhões para de fadiga, insônia, má digestão, gripe, distúrbios nervosos e
financiar a anexação do Leste alemão é o responsável pelo outras doenças. Enquanto isto, na parte oriental, todas estas
déficit público de mais de 3,5% do PIB daquela economia. O doenças regrediram. São os dois lados das enormes transfe-
desemprego continua subindo. No território da antiga Alema- rências de recursos para garantir uma relativa estabilidade
nha Oriental, existem atualmente 1,2 milhão de pessoas política no lado oriental. Mas esta realidade é cada vez mais
procurando emprego, o que equivale a uma taxa de desem- pesada, na medida em que aumenta a pressão migratória de
prego de 14,6% naquela região. Mas também no lado ociden- outras regiões da Europa Oriental em direção à Alemanha.
tal se encontram agora 1,8 milhão de desempregados. Ou seja,
Somente nos nove primeiros meses deste ano aconteceram
para a Alemanha unificada, existe um total de aproximada-
319 mil pedidos de asilo na Alemanha. É um número recorde,
mente 3 milhões de pessoas desempregadas.
88% acima do mesmo período de 1991. entre 1988 e 1991
As grandes empresas alemãs estão projetando grandes
foram acolhidos 730 mil pedidos de asilo de pessoas originá-
dificuldades para os próximos anos. No mês passado, a com-
rias da Europa Central e do Leste. Durante o mesmo período,
panhia aérea Lufthansa anunciou um corte de 8 mil postos de
',2 milhões de migrantes romenos, poloneses ou russos, de
trabalho, acompanhado de um congelamento dos salários. A
origem germânica, obtiveram a nacionalidade alemã. Esta
Volkswagen projeta reduzir seus efeitos em 12.500 pessoas até
pressão populacional e as diferentes nacionalidades dos que
1996. A Opel, 1.200 por ano, a Siemens 2 mil, a Basf 6 mil
estão engrossando o desemprego alemão, acabam desembo-
O que se presencia atualmente, na Alemanha, é um ataque
cando em instabilidades sociais e crescimento de movimentos
também sobre as condições trabalhistas. Na Alemanha Oci-
nacionalistas, racistas e xenófobos naquele país.
dental trabalha-se em média 1.506 horas por ano, sendo dos
Os alemães festejam agora três anos da derrubada do
países que mais encurtou a jornada de trabalho no período do
muro de 8erlim com desemprego crescente e desilusão polí-
pós-guerra. Esta mesma jornada de trabalho anual é de 1.635
tica. De uma forma geral, não apenas na Alemanha, os
horas na Inglaterra, 1.847 nos Estados Unidos e 2.165 no
europeus estão vivendo uma espécie de pós-euforia liberal.
68 José Antônio Martins

Estão percebendo com rapidez que as questões colocadas pelo


neoliberalísmo não só não foram resolvidas , como estão se
agravando.
NEOLlBERALlSMO
-----------~ . ACUADO
.------------
[1992]

Vários acontecimentos recentes estão esfriando a euforia


neoliberal dos anos 80. A globalização do mercado, base para
uma verdadeira superação de fronteiras econômicas nacionais,
talvez não resista a uma desaceleração cíclica da economia.
Esta desaceleração, que se iniciou na economia americana,
ponta do sistema, já se alastra pela Comunidade Econômica
Européia (CEE) e Japão. Seu primeiro efeito é o de uma
instabilidade sobre as finanças públicas das principais econo-
mias. O segundo é o de se criar um ambiente cada vez menos
propício a políticas comuns de estabilização e retomada do
crescimento mundial.
É como se uma gripe muito forte tomasse conta de um
atleta, um dia antes da prova decisiva. Os anos 90 deveriam
decidir várias coisas importantes. A reforma liberal das eco-
nomias do Leste Europeu, em primeiro lugar, anunciada como
70 .l o s e /vnt õni o Mtlrli/ls A riqueza do c ab i t al e a miséria das nações 71

um grande feito das maravilhas do mercado, transforma-se cimento do protecionismo internacional não pode ser descar-
rapidamente em um estrondoso fracasso. A CEE, outro sonho tado para os próximos anos. Nestas condições, os maiores
olímpico de se eliminar barreiras nacionais, só tem sofrido atingidos serão os incautos que teimam em navegar nas
reveses nos últimos meses. Depois da recusa plebiscitária da imprevisíveis e traiçoeiras águas do livre jogo do mercado.
Dinamarca, não aceitando os termos de Maastricht, agora é [1992]
a política econômica individualista da Alemanha que empurra
o resto da Europa para o buraco da recessão e do desemprego.
Isso tudo gera pessimismo e sérias dúvidas quanto ao futuro
de uma Europa comum.
Os Estados Unidos estão prorrogando a eclosão da sua
crise para depois das eleições de novembro. Se ganharem os
democratas, a ameaça de medidas econômicas nacionalistas e
protecionistas aumenta mais do que com uma vitória republi-
cana. Esta perspectiva é a pior que se pode imaginar para a
economia japonesa, que já se encontra em uma delicada
conjuntura de desvalorização do capital, refletida em uma
verdadeira dlbâcle do preço das ações na Bolsa de Tóquio
Por essas e por outras razões é que a música de maior
sucesso da década de 80, o neoliberalismo, composta pela
dupla Reagan- Thatcher, já está há um bom tempo fora das
paradas dos principais centros econômicos. O que se ouve
cada vez mais são acordes neonacionalistas, com ênfase nas
políticas nacionais contra a recessão e o enorme desemprego
que se acumula naquelas áreas. Entretanto, para os latino-
americanos em geral, e para os brasileiros em particular, é
como se nada estivesse mudando no ambiente econômico
mundial. Por aqui, a música continua a mesma dos anos 80.
Corre-se um grande risco de se esperar passivamente, mais
uma vez, os efeitos perversos de uma brusca mudança na rota
das principais áreas econômicas. O cenário de um recrudes-
ALGO FORA DO LUGAR
--------+-------

Algo está fora de lugar no reino da Dinamarca. Com uma


população de pouco mais de cinco milhões de habitantes e
um Produto Interno de US$ 120 bilhões, pode-se dizer que
a Dinamarca é uma economia desenvolvida. Talvez por isso
a não-aprovação da sua população às regras de unificação
econômica européia, através de um plebiscito nacional, te-
nha sido uma verdadeira ducha fria no ânimo dos onze
demais parceiros da Comunidade Européia (CEE). Mas, na
medida em que a decisão dinamarquesa coloca em risco a
unificação européia, revela a incerteza sobre uma série de
coisas que marcaram o desenvolvimento da economia mun-
dial dos anos 80. O que está fora do lugar, portanto, talvez
não seja propriamente a decisão dos súditos da rainha
Margarida li, mas principalmente a idéia de que blocos
econômicos, globalização do mercado, derrubada de barrei-
74 .l o s e Antônio Martifls i\ ri q ve z a do ca tvit a! c a miséria das nações 75

ras nacionais, etc., não serão afetados pelas turbulências que Não se pode negar o brutal processo de retrocesso que
estão marcando a economia dos anos 90. marcou a produção da América Latina nos anos 80. Isto pode
Três grandes blocos econômicos sempre são citados para ser verificado pela evolução do PJB pa cabita no período 1981-
se caracterizar uma tendência significativa da economia mun- 1990. Segundo dados do Fundo Monetário Internacional, na
dial. O mais importante, e ao mesmo tempo o mais ousadamente segunda metade dos anos 80 o volume global de investimento
elaborado, é o da CEE. Outro seria o bloco formado pelos externo direto, no mercado mundial, cresceu de aproximada-
Estados Unidos, o Canadá e o México. Finalmente, haveria mente US$ 47 bilhões em 1985 para US$ 132 bilhões em
ainda a formação de um bloco asiático, comandando pelo Japão 1989 O fluxo destinado aos países do Terceiro Mundo ficou
e com a participação dos chamados tigres asiáticos. Muita gente estagnado, no mesmo período. Consequentemente, a partici-
acabou confundindo o projeto da CEE, que ambiciona uma pação destes países, inclusive os da América Latina, no fluxo
verdadeira fusão econômica - com moeda, política social e global de investimentos diretos caiu de cerca de 24% para
política externa únicas -, com os demais projetos da América 13% no mesmo período. Embora a América Latina mantivesse
do Norte e da Ásia. Na verdade estes dois últimos não passariam a maior parte do fluxo destes investimentos diretos no con-
de acordos de livre comércio, em que são facilitados principal- junto dos países do Terceiro Mundo, isto não significou um
mente o comércio e os fluxos de investimentos. É bom que se aparte de capital capaz de evitar a grande estagnação produ-
diga que mesmo estes projetos menos ousados ainda estão tiva desta área.
muito longe de ser concretizados. O que imperava, entretanto, Esta enorme centralização dos grandes fluxos de capitais
nas avaliações da economia mundial era muito mais uma certa nas principais economias (EUA, Candá, Europa Ocidental e
idéia de que o mundo estava se estruturando em rígidos blocos Japão) de alguma forma se relaciona com a chamadaglobalizaçilo
econômicos. Talvez esta idéia fosse uma mera confusão entre dos mercados, mas nem todos os grandes protagonistas desempe-
blocos econômicos e aglobalizaçilo dos mercados. Aglobalizaçilo foi nharam o mesmo papel nesta história. Os Estados Unidos e
um processo iniciado a partir dos anos 70 - através da Inglaterra, principalmente, representaram os grandes liberais,
multinacionalização dos principais ramos e empresas industriais tanto em seus mercados bancários e de capitais quanto na
- e aprofundado nos anos 80 pela desregulamentação dos abertura de seu mercado interno. Também os países da CEE,
mercados financeiros e de capitais nos Estados Unidos e embora mais comedidos, dividiram a cena com EUA e lnglater-
Europa. Como as economias que mais se beneficiaram desta ra 1)0 outro lado da mesa, o país que mais cresceu com a
global/zaçilo foram aquelas incluídas nos três blocos citados, glohalização dos mercados, o Japão, exatamente porque conse-
criou-se a falsa imagem, de outro lado, que a estagnação de guiu evitar em seus mercados qualquer aventura neoliberal. O
grandes áreas, como a América Latina, era devido à sua Japão é um dos países mais abertos para fora, mas possívelmente
marginalização dos grandes blocos econômicos. um dos mercados nacionais mais fechados para dentro.
76 ./osé An tô n io Martil1s A riqueza do capital f a miséria das ~lações 77

A liberalização econômica pode representar enormes CEE talvez tenha muito a ver com as preocupações sociais e
benefícios para as empresas multinacionais, mas não se pode incertezas econômicas que agora se identificam com o velho
dizer a mesma coisa das economias e das finanças nacionais. ambiente neoliberal dos anos 80.
Melhor dizendo, existem limites para que as estruturas sociais Enquanto aumentam os sinais de que aquela estrutura
e políticas nacionais possam suportar a expansão contínua dos começa a afundar, a América Latina parece de repente recu-
lucros e dos investimentos das empresas privadas. Um dos perar um certo grau de credibilidade no sistema financeiro
limites mais claros nestes dois últimos anos tem sido a crise internacional. Pode parecer verdadeiro milagre o interesse de
fiscal de grandes economias, particularmente dos EUA. Mas uma boa parte dos investidores internacionais pela economia
a crise começa a se manifestar também nos elevados índices brasileira, por exemplo. Por aqui nada mudou. Pouca abertura
de desemprego e na deteorização das condições de vida nas do mercado, pouquíssimas privatizações, muita dívida, muita
grandes cidades. Nos EUA isto é cada vez mais evidente. Na inflação, ete. No entanto, existem fortes sinais de que o capital
Europa acontece uma evolução muito significativa, que deve externo começa a redescobrir aquela sua velha freguesa dos
ter pesado bastante na decisão dos dinamarqueses: na grande anos 70 e que durante os últimos dez anos parecia condenada
maioria dos doze países que compõem a CEE, as taxas de à marginalização dos grandes blocos econômicos. Quem sabe
desemprego são extremamente elevadas, principalmente quan- os brasileiros se recuperem logo do espanto que esta súbita
do comparadas com outras grandes economias européias- mudança de conjuntura pode estar provocando e comecem a
ocidentais que não fazem parte da comunidade. É o caso da aproveitar novas possibilidades que se apresentam, para sair
Áustria, Suíça e Noruega. No japão, outro país bem pouco do enorme sufoco dos últimos tempos. Neste sentido, o
liberal, a taxa de desemprego também é muito baixa. exemplo dinamarquês de redirecionar com firmeza o seu
Sérias turbulências econômicas parecem ser, neste come- destino pode ser um bom caminho.
ço dos anos 90, o resultado das contradições daquele longo
período de desregulamentação, abertura de mercados e
neoliberalismo que marcaram a última década da economia
mundial. O enorme fracasso das reformas neoliberais do Leste
Europeu coincide com as precauções que as principais eco-
nomias também estão adotando quanto ao seu recente rela-
cionamento com o resto do mundo. O reaparecimento de
certas atitudes mais defensivas, protecionistas e nacionalistas
poderá ser cada vez mais comum no mercado internacional
dos próximos anos. A decisão dinamarquesa de se afastar da
A NOVA ORDEM

A economia mundial dos anos 90 será radicalmente diferente


daquela montada nos últimos dez ou doze anos, a qual, de
alguma forma, continua gerando as perspectivas e estratégias
da maioria das pessoas. Se os problemas atuais - recessão
americana, desabamento do Leste Europeu, ete. - fossem
apenas desequilíbrios conjunturais, ainda se poderia imaginar
um cenário de progressivos avanços e recuos da mesma
estrutura econômica atual. Mas as coisas são mais complexas.
O problema básico é que a economia mundial - capita-
neada pela economia americana - esticou por um tempo
demasiadamente longo (quase dez anos) o atual ciclo de
negócios. O resultado foi uma gigantesca superprodução de
capital, que há algum tempo vem provocando uma erosão das
margens de lucro das principais corpo rações e ramos industriais
dos Estados Unidos, Europa e Japão Este é um processo que
ultrapassa as tradicionais políticas de juros e de medidas fiscais
dos governos. A atual dificuldade de estancar a tendência CAPITAL DESGOVERNADO,
recessiva mundial é uma prova de que apenas esses instrumentos
de política econômica não são capazes de remediar a situação.
IDEÓLOGOS PREOCUPADOS
Neste ambiente, as desesperadas políticas expansionistas --_._--+--_._--_ ..._--_._--
de Bush ainda poderão prolongar por mais algum tempo a
sobrevida do atual ciclo de negócios Mas isso vai jogar mais
água no moinho da superprodução que desestabiliza o mer-
cado mundial.
Os principais tigres asiáticos estão acumulando déficits
comerciais a partir da retração americana. A Bolsa de Valores
de Tóquio não vive só escândalos financeiros. Vive, princi-
palmente, uma das crises mais sérias de desvalorização do pós-
guerra. O que existe de pior, neste momento, para a economia
japonesa, é o que existia de melhor para ela nos anos 80: a
enorme integração e dependência dos seus mercados com a Os felizes ideólogos do capitalismo sem fronteiras às vezes
economia americana. se preocupam com o futuro. Não que eles vejam a possibi-
A CEE, que não é tão dependente da economia americana, lidade de um retrocesso na globalização e mundialização do
é entretanto muito dependente do que acontece no Leste sistema capitalista. O problema é que quem destampou o vaso
Europeu. Os acontecimentos geopolíticos da área estão se de Pandora presenteado pelos neoliberais não consegue agora
encavalando com as dificuldades econômicas. A superprodução medir os estragos que os demônios da nova ordem podem
de capital não pode ser drenada para aquelas áreas que se provocar. Até pouco tempo atrás as coisas caminhavam com
abriram recentemente para o mercado ocidental. Ao contrário. um certo controle e previsibilidade. As estruturas de produção
O que mais se acumula nas novas áreas são dívidas, desemprego e do comércio ainda eram carimbadas com as marcas nacionais
e pedidos de socorro ao tesouro público ocidental. e uma certa personificação dos fluxos de capitais. A relação
Antes de se imaginar o cenário que vai marcar a saída do entre as empresas e os mercados era mais ou menos estável.
século XX, é aconselhável que se considere o que vai signi- De uma maneira geral, aquele animal chamado capital ainda
ficar, nos próximos dois ou três anos, a desintegração do atual era mantido e alimentado na jaula das regulamentações e
modo de vida da economia mundial. controles do Estado característico do período do pós-guerra.
As armas políticas eram suficientes para orientar e delimitar
82 José Antônio Martin5 A r iq u e z a do capital fI/miséria das nações 83

a acumulação. Até as crises econômicas podiam ser abortadas, ramo cada vez mais instável e incerto. As vendas permanecem
na medida em que as desvalorizações periódicas do capital fracas no Japão, na Europa e nos Estados Unidos.
podiam ser administradas com medidas políticas e econômicas O problema de mercado atinge todos os principais ramos
que eram emanadas dos diversos governos nacionais. industriais. Até o último ano, a Europa era o mercado de
A etapa atual é marcada por uma profunda de s- computadores pessoais (PC) mais aquecido do mundo. Mas
personalização dos movimentos do capital. A General Motors agora está perdendo o gás. Um mercado que movimentava 22
que opera na Alemanha entra em conflito aberto com a bilhões de dólares, agora se revela uma bolha que está
Volkswagen. Até agora a briga entre estes gigantes da indús- provocando prejuízos para empresas líderes do setor, como
tria automobilística mundial não assumiu a cara de briga entre Apple, Commodore, Oell, Siemens, Olivetti, ete. A retração
empresa estrangeira e nacional. Não existem argumentos dos mercados é uma consequência da instabilidade do mer-
nacionais nessa briga. Apenas uma feroz luta de concorrência cado de trabalho, criada pelo próprio desenvolvimento da
do capital dentro de um determinado ramo de produção Um informatização e novas tecnologias aplicadas na produção. A
ramo aliás, que passa nesse momento por uma crise muito clara nova composição do capital mundial diminui proporcional-
de desvalorização do capital instalado. Segundo os últimos mente ao emprego de força de trabalho, desqualifica os
dados, acontece uma grande queda nas taxas de lucros das trabalhadores, ao mesmo tempo em que incrementa a produ-
principais empresas automobilísticas do mundo. A Honda tividade da massa de trabalhadores empregada A síntese é o
divulgou uma retração de 55% dos seus lucros no trimestre aumento da quantidade de mercadorias, diminuição da renda
encerrado em 30 de junho, comparando-se com o mesmo e dos salários, aumento da competição entre as principais
trimestre do ano passado. A Ford européia anunciou que suas empresas, queda na taxa de lucros e crise econômica.
atividades na Europa registraram uma perda de 75 milhões de Nenhuma economia nacional poderá escapar dos males
dólares no segundo trimestre deste ano, em comparação com dessa transição do sistema global. É a natureza política dessa
um lucro de 150 milhões no mesmo período do ano anterior. transição que preocupa os otimistas ideólogos da liberdade
A consequência da crise no setor automobilístico mundial, sem limites do capital. Para isso eles não tem respostas. É o
além de uma guerra sem fronteiras para a conquista de novos caso de Alvin T offler, autor de best-sellers como Choque do
mercados, é o desemprego e a queda dos salários. A Mercedes- ftlturo e A terceira onda, que nesta semana andou lotando audi-
Benz já cortou 14,7 mil trabalhadores em 1992 e planeja cortar tórios em São Paulo para repetir sua visão de um mundo
o mesmo tanto no decorrer deste ano. Os problemas são os dominado pela corrida tecnológica nas áreas da comunicação
mesmos para todas as grandes companhias. Se não saírem logo e informatização. Tudo vai bem nas suas verificações de uma
do vermelho, não poderão renovar seus equipamentos e suas nova estrutura produtiva mundial, até chegar às consequências
fábricas, desenvolver novos modelos para competir neste imediatas desta nova fase. "Novas tecnologias eliminam em-
84 José Antônio Martins

pregos da era industrial", descobre finalmente o esperto guru


da classe média. Outra grande descoberta: "As novas A C R I S E SEM
tecnologias mudam a estrutura política do mundo". A grande
mudança, entretanto, descoberta pelo quru da terceira onda, é o FRONTEIRAS
desemprego. Segundo os jornais, ele não tem resposta para ----+
problema de desemprego. De qualquer forma, para quem
estava cobrando 500 dólares por pessoa que foi assistir a sua
palestra, tinha que falar alguma coisa. "Novos postos surgirão
para pessoas mais qualificadas. Mas quando se conclui o
retreinamento dos desempregados, a tecnologia já mudou de
novo". O limite intelectual de ideólogos como Alvin Toffler
é o próprio limite da civilização capitalista, que não reservou
lugar privilegiado para as grandes massas no novo patamar de
acumulação que está apenas começando.
[1992]
Os anos 90 estarão marcando as novas fronteiras do mapa
econômico mundial. O velho mapa do período da Guerra Fria
será totalmente redesenhado. Isto está acontecendo. O que
se pode perceber, entretanto, é apenas o seu esboço, traçado
provisoriamente por importantes mudanças nas antigas estru-
turas. É o caso de um radical realinhamento das diferentes
áreas geo-econômicas, de uma repartição do poder geo-
político mundial, de um novo papel do Estado na economia
e sociedade, da desagregação do velho sistema monetário
internacional, ete.
Não se deve, portanto, imaginar que o novo mapa-mundi
da economia será redesenhado com muita tranquilidade. Até
que a sua nova versão esteja definitivamente pronta, muita
água ainda terá que correr por debaixo da ponte. Muitas
turbulências terão que ser enfrentadas, até que uma nova
8(, José AntôlJio i\llartil1s A riqueza do cab i tal e a miséria das l1ações 87

ordem econômica internacional se estruture com uma razoável dorias. Ao mesmo tempo em que se aumenta a taxa de
cst abf lidade. Nada disto estaria acontecendo naquela exploração, com o desemprego, a desqualificação dos salários,
modorrenia ordem econômica do período da Cuerra Fria, se diminui-se a taxa de lucro média do sistema. Não é apenas
na base de tudo não estivesse correndo, revolucionariamente, o custo de produção das mercadorias que diminui, mas tam-
a fantástica mudança científica e tecnológica dos últimos bém a parte correspondente à massa de mais-valia incorparada
quinze anos. em cada uma das mercadorias produzidas. Isto provoca
O que existe de mais característico no regime capitalista montanhas e montanhas de mercadorias que não conseguem
é que as mudanças na sua técnica não podem ocorrer sem uma ser vendidas com a taxa de lucro e preços relativamente
profunda desorganização do seu processo de valorização. O elevados do período anterior.
processo de valorização do capital nada mais é do que a A crise econômica global se abre quando os investimentos
geração ampliada da mais-valia e do lucro. Mas para passar capitalistas começam a desacelerar. Com os preços unitários
de um patamar de exploração para outro superior, de acordo deprimidos e uma nova taxa média de lucro inferior àquela
com as novas condições técnicas e científicas aplicadas no que comandava os investimentos ainda em operação, os
aparelho produtivo, as formas de aparecimento do processo capitalistas começam a reformular suas decisões de investir ou
de valorização do capital tem que passar também por período ampliar o aparelho produtivo existente. Junto com a variação
de desordem e, se possível, uma nova organização no mercado dos preços, desacelerara-se também o rÍtmo da acumulação.
internacional. Quais são estas formas fenomenais do processo Os primeiros a saírem do sistema são os capitalistas e as
de valorização global? A formação dos preços, por exemplo. economias nacionais que se atrasam na modernização dos seus
Com uma nova composição do capital, ou seja, com uma sistemas de produção. A concorrência entre as grandes em-
participação crescente das máquinas, das novas linhas de presas e economias aumenta com muita rapidez, em um
produção, novos materiais, aumento da velocidade das infor- quadro em que todos procuram escapar da destruição do
mações e cálculos do tempo de produção, diminui a parte capital, da queima de estoques e de valores capitalizados. A
correspondente à força de trabalho, ao trabalho vivo. lsto tendência à queda da taxa média de lucro se acentua, trans-
significa que uma quantidade muito menor de trabalhadores ferindo o problema para a esfera monetária e financeira da
será capaz de produzir muito mais mercadorias do que na economia mundial. Em um primeiro momento, instala-se uma
antiga composição do capital. É isto que caracteriza o aurncu- grande desorganização nos valores das moedas nacionais, e
to da produtividade da força de trabalho. O problema é que nas taxas de juros das diferentes economias. Cada economia
no regime capitalista isto significa não apenas um aumento quer se manter à tona em detrimento das demais. Algumas
fantástico da quantidade dos bens produzidos, mas também preferem adotar políticas de diminuição das taxas de juro e
uma diminuição do valor e dos preços unitários das merca- desvalorização das suas moedas. Outras preferem correr na
88 José Antônio Martins

contramão, aumentando as taxas de juro e valorização de suas p A R T E


moedas. Neste momento, isto ocorre com os Estados Unidos
agindo na primeira forma e Japão e Alemanha agindo na -- •....
_._----

segunda forma.
Nesta briga, os países dependentes e subdesenvolvidos, TERCEIRO MUNDO:
como Brasil e restante do Terceiro Mundo, ficam passivamen-
te sofrendo as consequências. A desorganização, recessão e INVOLUÇÃO, DESTRUIÇÃO
regressão social acontecem em primeiro lugar e com maior
intensidade na periferia do sistema. Depois da América Latina, E NEOLIBERALISMO
Ásia e Oriente Médio, a crise está arrebentando o Leste
Europeu e logo chegará à China Continental. Entretanto,
dependendo do grau de desorganização do sistema como um
todo, a crise não poderá ser evitada também no coração do
sistema - Estados Unidos, Alemanha e Japão. Economias
muito fortes como Inglaterra, Itália, França, Suécia, Dinamar-
ca, etc., que poderiam ser listadas no coração do sistema, já
começam também a se desmanchar. Nos próximos doze
meses, é bem provável que as explosões monetárias, de
desemprego e de queima de capital se generalizem por todo
os sistema. É por isso que uma revolução científica e tecnológica
da magnitude da atual, que deveria ser comemorada como uma
grande conquista da humanidade, se transforma em um ver-
dadeiro pesadelo para as massas desqualificadas, desemprega-
das e marginalizadas do processo de produção social.
AMÉRICA LATINA
-+ __.--- --

Há uma certa leviandade nas opiniões do Fundo Monetário


Internacional - FMI - quanto ao papel da América Latina
na recessão que começa a se generalizar nas economias
industrializadas. No começo de abril, divulgando mais um de
seus relatórios sobre o estado da economia internacional,
aquela vetusta instituição acabou tirando do bolso do colete
uma das mais inesperadas razões para ter otimismo quanto à
recuperação da economia mundial: nada mais, nada menos, do
que a expansão da economia latino-americana.
Este otimismo pode ter reanimado um pouco as combalidas
Bolsas de Valores internacionais, às voltas com as incertezas
aumentadas pela persistente queda do índice Nikkei. Do lado
de cá, Fujimori, Pérez, Menem, Collor, Salinas, etc., também
devem ter se sentido reconfortados com a perspectiva colo-
cada no relatório do FMI. Mas o problema é que entre este
92 José Antô~lio Martins A riqueza do capital e a miséria das nações 93

relatório e a realidade não existe apenas uma grande distância, PIB per capita na América Latina
mas praticamente um mundo a ser refeito. Os tecnocratas do (em US$ por ano)
FMI, como de resto os do Banco Interamericano de Desen-
volvimento (BID) e os do Banco Mundial, dentre outros, País 1981 1990 Variação % País 1981 1990 Variaçào %
acham que na década de 90 haverá uma retomada do cres- Argentina 3.286 269; (-20,18) Haiti 415 324 (-21,93)
cimento das economias latino-americanas. Acham, também Bolívia 1.112 870 (21,76) Honduras 991 880 (-11,20)
que as economias centrais poderão se apoiar nesta retomada Brasil 2.252 2.169 (-3,69) México 2.269 1.980 (-12,70)
latino-americana para também escaparem das suas atuais ten- Colômbia 1.226 1.416 + 15,50 Nicarágua 922 505 (-45,20)
dências depressivas. Mas em que se baseia esta opinião? O Chile 2.325 2.451 +5,42 Paraguai 1.575 1.493 (-5,21)
que se propala neste momento são os investimentos interna- Equador 1.384 1.249 (-9,75) Peru 1.846 1.312 (-28,93)
cionais que começam a se voltar para a América Latina. Mas EI Salvador 1.177 1.091 (-7,31) Uruguai 3.093 2.921 (-5,56)
será que a simples abertura neoliberal destas economias, Cuatemala 1.061 892 (-15,93) Venezuela 3.691 3.038 (-17,69)
somada a uma enxurrada de capital especulativo internacional,
será suficiente para retirar a América Latina da condição de Fonte BID.
área geo-econômica sem futuro, como era considerada nos
anos 80, para ser colocada como um novo e providencial Pode-se começar pela Venezuela, a quarta das grandes
eldorado do sistema internacional? As coisas não são tão economias. Neste momento aquele país está praticamente
simples. Em primeiro lugar, não se pode afirmar que só a partir paralisado politicamente, consequência de duas razões econô-
de agora estas economias latino-americanas podem começar micas muito claras. A primeira é que sua principal fonte de
a colaborar com a saúde das economias centrais. Esta cola- recursos, o petróleo, sofreu uma das piores crises durante os
boração sempre existiu, principalmente nos últimos dez anos, anos oitenta. A segunda é que as classes dominantes daquele
quando algumas centenas de bilhões de dólares foram drena- país não opuseram nenhum obstáculo à implantação da receita
das destas economias diretamente para os cofres das econo- neoliberal. O resultado agora explode nas mais variadas for-
mias industrializadas. Esta colaboração custou um enorme mas de rebeliões populares, militares, ete.
retrocesso da produção e das condicões de vida neste con- A Argentina teve um choque parecido com o da Vene-
tinente. Os estragos provocadas nos anos 80 podem ser zuela, só que não com a queda de receitas petrolíferas, mas
comprovados pela involução do produto per capita no con- com o sucateamento da sua outrora poderosa estrutura
tinente no período 1981-1990, com dados recentemente agropecuária. A grande exportadora de trigo, carne, lã, etc.,
publicados pelo BID. agora não produz nem o suficiente para alimentar a sua
população. A famosa pampa úmida agora é apenas um estoque
11 r i q u e z a do C~"'l·/'II
"'I' e 'I .,.
mlsena d as nações 95
94 José /vntõ n io /v1ilr/ills

ocioso de terras controladas por grandes empresas latifundi- atrair as empresas multinacionais. O México entretanto
árias. A concentração do capital industrial em dez ou doze passou a ser mais lucrativo que o Brasil, na me'dida em qU~
grandes grupos econômicos também foi um resultado do as condições de concorrência da indústria automobilística
sucateamento econômico argentino. Cada grande grupo con- mudaram completamente no decorrer dos anos 80. A perda
trola não apenas propriedades industriais, mas ao mesmo de competitividade da indústria americana de automóveis está
tempo bancos, importações, exportações, agropecuária, turis- transformando o México na grande plataforma mundial de
mo comércio atacadista, grandes construtoras, etc. Isto faz produção e exportação de carros. Em 1988 o México produzia
com que os interesses industriais fiquem diluídos com os 500 mil veículos de passeio e utilitários leves. Em 1998 prevê-

lucros decorrentes dos demais segmentos improdutivos destes se uma produção de 3 milhões deste veículos por ano. Com
grandes grupos. O resultado é uma resistência muito pequena a condição, evidentemente, de que o salário não passe de um
a políticas econômicas que privilegiam a diminuição da pro- dólar por hora.
dução interna frente às atividades parasitárias ligadas à circu- O Brasil, finalmente, não precisa de muito esforço para
lação financeira e comercial. É nisto que se resume , atualmente , se adaptar às formas atuais do neoliberalismo. No fundamen-
a política econômica denominada dolarização, que nada mais tal, este país sempre foi muito generoso e perfeitamente
é que a alienação da capacidade de se fazer política monetária adaptado aos interesses multinacionais. Tem um dos meno-
e fiscal, de um lado, e a abertura descontrolada do sistema res salários da América Latina, um Estado que nunca deixou
econômico à especulação internacional, de outro. de colaborar com os interesses industriais e financeiros
O México é outro órfão das grandes receitas do petróleo. externos, abundante e barata produção de matérias primas
Mas de repente este país é festejado pelos neoliberais de todo e insumos, ete. Onde estão, entretanto, as dificuldades
o mundo como o novo eldorado das empresas multinacionais. econômicas atuais do Brasil? Por que a involução da produ-
Não é apenas a proximidade com os Estados Unidos que ção na última década? Para falar em uma linguagem parecida
favorece as indústrias maqut/adoras naquela economia. Existem à dos tecnocratas do FMI, a transferência líquida de recursos
outros motivos muito fortes para que ali se instalem também em dez anos superou a casa dos 100 bilhões de dólares. Isto
indústrias montadoras, como por exemplo a indústria automo- significou uma repentina diminuição da poupança interna de
bilística. Segundo uma recente matéria da revista Businesss quase 5?,ú do PIB. No mesmo período desenvolveu-se na
Week, enquanto um operário da linha de montagem da economia mundial uma nova ordem financeira, marginali-
indústria automobilística ganha a média de 14 dólares por zando países como o Brasil do fluxo internacional de capitais
hora nos Estados Unidos. no México o mesmo operário realiza e concentrando estes movimentos principalmente no finan-
trabalho idêntico por um dólar a hora: Os brasileiros estão ciamento dos déficits americanos e, em grande parte tam-
acostumados a conviver com esta va/l/agem comparativa para bém, em blocos regionais como a Comunidade Econômica
96 José Antônio Martins A riqueza do c a p i t a l e a miséria das nações 97

Européia (CEE) ou em novos entrepostos industriais e ex- industrializadas. Só que ela não poderá resolver tudo so-
portadores como os Tigres Asiáticos. Os neoliberaís conti- zinha. Os tecnocratas erraram também na forma como esta
nuam bombardeando o Estado como o grande culpado das sustentação será realizada. Ao invés de expansão, a eco-
dificuldades econômicas brasileiras. Talvez tenham uma certa nomia latino-americana vai continuar colaborando da
razão, na medida em que só um Estado totalmente irrespon- mesma forma dos anos 80, com involução, destruição e
sável poderia estatizar uma fantástica dívida externa contra- neoliberalisrno
ída pelo setor privado, só um Estado irresponsável poderia
reduzir sua receita tributária líquida (receita bruta menos
transferência) de 19% para algo em torno de 10% do PIB.
Só um Estado irresponsável pode manter uma estrutura
tributária em que o imposto sobre renda e lucro não passa
dos 4% do PIB, quando esta proporção corresponde a 12%
nos Estados Unidos, Japão e Alemanha.
O problema da América Latina é que ela tem financiado
grande parte da expansão das economias centrais. Isto ocorreu
nos anos 80 e vai continuar ocorrendo nos anos 90. Recente
estudo do Conselho de Desenvolvimento Exterior (Overseas
Development Council), um centro de estudos avançados com
sede na capital dos Estados Unidos, conclui que a América
Latina, que concentra os três países dependentes com maior
volume de endividamento externo do mundo - Brasil, México
e Argentina - apresentará a gigantesca cifra negativa de US$
186 bilhões, entre captação e transferência de recursos, até
o início do século XXI.
O mundo em que a América Latina se meteu está longe
de ser refeito. Os tecnocratas do FMI exageraram, certa-
mente, quanto ao peso da América Latina na balança que
vai decidir a recuperação ou o aprofundamento da depres-
são econômica mundial. Ela vai continuar tendo um papel
importante na sustentação do crescimento das economias
MUDANÇA DE MARCHA
-+_ ..
_. -

Começou pelo fim das ditaduras militares em quase todas as


partes do mundo. Na virada dos anos 70 para os 80, caiu a
ditadura no Irã, uma das mais sólidas fortalezas imperialistas
no Oriente Médio. Desmanchou-se com a revolução xiita. A
seguir foi a vez da América Latina. No decorrer dos anos 80,
uma a uma das sangrentas ditaduras foram sendo substituídas
por regimes civis mais ou menos democráticos. Velhas estru-
turas ditatorias também se desmancharam em grande parte da
África e Ásia. Até o apartheid sul-africano, que há poucos anos
não imaginava pudesse ser ameaçado, agora se encontra
também em sua fase agonizante. O seu mais recente capítulo
foi o assassinato do líder Chris Hani, no último dia 10, pelas
forças da ordem da África do Sul. Imediatamente as manifes-
tações populares tomaram conta daquele país. Pelo menos seis
pessoas morreram e centenas ficaram feridas, durante protesto
100 José Antônio Martins A riqueza do ca p i ta l e a miséria das nações 101

contra o assassinato de Hani, nas cidades de Soweto, Cabo, dizendo que "não queremos pensar no passado, queremos
Durban, Pieterrnaritzburg e Port Elizabeth. dentre outras. O pensar no presente e no futuro" Terminou chamando o povo
governo reage, prometendo estabelecer o toque de recolher a transformar seus inimigos em amigos, para construir uma
e proibir qualquer tipo de manifestação. O chefe do governo, nova nação.
Frederik de Klerk, afirmou apenas que "não podemos deixar Que tipo de nova nação os dirigentes e mandelas do
o país se degenerar até o caos" e o tipo de protesto popular Terceiro Mundo estão pensando fazer? Até os anos 80 as
contra o assassinato do seu líder "não pode ser tolerado em camadas dominantes destas áreas conseguiam governar com
nenhum país civilizado". uma certa regularidade de crescimento econômico. Agora a
A civilização não sabe o que fazer com a maior parte da situação é totalmente diferente. A pressão da crise de
população trabalhadora. Atingidas em primeiro lugar pelas reformulação por que passa o sistema capitalista mundial
pesadas crises econômicas que voltaram à cena do sistema retirou destas economias periféricas as suas principais vanta-
capitalista, as economias do Terceiro Mundo também foram gens no mercado mundial: matérias primas baratas e trabalho
escolhidas para pagar as primeiras contas do cataclisma. A escravo assalariado. Mas o mundo está inundado de matérias
queda das ditaduras militares e instalação de regimes civis foi primas, em grande parte sendo substituídas por novas maté-
a primeira forma dessas economias se adaptarem às novas rias, e de desemprego, em grande parte também provocado
condições de instabilidade das suas classes dirigentes. Isto no pelas novas máquinas e sistemas produtivos que expulsam o
plano político. Na verdade, estas mudanças institucionais trabalho da produção. Pressionados pela falência do seu antigo
procuram formas mais sofisticadas para que se realize a padrão de sub-desenvolvimento capitalista, de um lado, e pela
enorme destruição da indústria, do emprego e dos salários, impossibilidade de alcançarem o mesmo nível produtivo das
nestas áreas dominadas pelo sistema imperialista. Enquanto se economias centrais, de outro, os dirigentes do Terceiro Mundo
continua em um ambiente policialesco, com assassinatos das não sabem mais qual será o seu futuro. Não conseguem mais
principais lideranças operárias e populares, na superfície das definir um projeto nacional de relacionamento estável com o
insti tuições se acena com a ilusão democrática. Até agora estes mercado comandado pelas potências centrais. Neste meio
novos regimes têm conseguido controlar as rebeliões popu- tempo, eles têm apenas uma certeza - grande parte da
lares elson Mandela, um líder popular moderado, que faz população trabalhadora terá que continuar eternamente mar-
o jogo da administração da crise capitalista na África do Sul, ginalizada do processo social de produção. O mercado capi-
foi vaiado por 30 mil pessoas que se reuniram num estádio talista da Nova nação não poderá absorver e empregar a maior
de Soweto, quando fez apelos de paz à população, acrescen- parte da população desses países do Terceiro Mundo. Isto já
tando que tinha recebido mensagem de simpatia do Partido Ocorria no passado, mas no futuro a dimensão política desta
Nacional, de De Klerk. Mas conseguiu silenciar a multidão, exclusão será muito maior. Junto com o capital desta região,
102 l o s « A"lô"io iv1drli,,, J\ riqueza do capital e a miséria das nações 103

grande parte dos trabalhadores que eram recrutados para a para um nível muito mais intenso da exploração da força de
produção agora serão sucateados, jogados na vala comum dos trabalho mundial e de destruição da força produtiva social nos
marginalizados da civilização capitalista. diversos quadrantes do mundo. Mas a barbárie decorrente
O que se passa na economia da África do Sul é o mesmo deste processo não deve ser entendida como algo qualitati-
que no restante da África, no Oriente Médio, na Ásia e na vamente novo na cena mundial. Trata-se apenas de um
América Latina. Este processo de destruição das forças pro- aprofundamento da velha civilização capitalista. A luta de
dutivas também atinge o Leste Europeu e, crescentemente, classes vai decidir, como sempre, se esta marcha vai continuar
também já está ameaçando as populações trabalhadoras do ou se vai ser interrompida. A luta de classes é que vai decidir
centro do sistema. Também nestas regiões de capitalismo se a velha civilização, agora travestida pela forma capitalista,
avançado os tremores da base econômica começam a alterar vai ser destruída ou se vai continuar amontoando destroços
a superestrutura política. A mudança dos regimes políticos nas cada vez maiores da espécie humana nas novas nações do mundo
economias do Leste Europeu já se encontra em fase avançada capitalista.
de decomposição e crise. A guerra CIvil Já começou em
algumas áreas, como na Iugoslávia, Arlllênia, Ceorgia, e é
iminente a sua generalização para a RLlssia, Ucrânia e outras
nações mais importantes da região. Também na Europa rica
da CEE, os sinais de esgotamento dos velhos regimes social-
democratas já são visíveis. A crise institucional já bate nas
portas da França, Itália, Espanha. Mas não só os social-
democratas são derrotados nas eleições e deixam o poder. os
Estados Unidos o velho Bush perdeu as eleições para Clinton
pelo mesmo motivo que os socialistas franceses perderam para
a direita nas últimas eleições parlamentares. queda na produ-
ção, desemprego e incerteza quanto ao futuro da nação. Japão
e Alemanha também sofrem do mesmo irnpassc.
A troca de ditaduras por regimes civis no Terceiro Mundo,
de social-democratas por liberais, de stalinistas por liberais,
de liberais por social-democratas, no centro do sistema, são
fenômenos políticos de uma mesma realidade global: a pas-
sagem da acumulação característica dos últimos quarenta anos
VENEZUELA E PERU:
NUVENS ESCURAS

NO CÉU AZUL

DO NEOLlBERALlSMO

Os recentes acontecimentos na Venezuela e no Peru, com a


volta dos militares e dos tanques à cena política, talvez não
sejam fenômenos isolados. A sanguinária política econômica
neoliberal, que infesta a América Latina nos últimos anos, está
aparecendo como o estopim das crises sociais e políticas que
começaram a explodir nos dois países.
Mas a política neoliberal não passa da forma mais
atualizada de uma secular situação de miséria e subdesen-
volvimento das economias latino-americanas. Na base desta
situação, uma característica forma de extração da mais-valia
e da acumulação capitalista no continente. De um lado a
exploração dos trabalhadores com base na mais-valia abso-
luta: pagamento do salário sempre abaixo do seu valor e
prolongamento da jornada de trabalho. Na medida em que
a mais-valia absoluta não permite o pagamento de um
106 José Anlônio Marlill' 107

salário justo, que seria o salário suficiente para reproduzir a tentaram passar nos últimos anos. Mas sem modificar aquela
classe trabalhadora em condições razoavelmente normais, hasc podre da reprodução econômica e social, não seria
é ao mesmo tempo impossível pensar uma superestrutura possível construir Estados democráticos. O resultado con-
política civilizada, baseada em conceitos gerais de justiça, creto do processo político dos últimos anos, na América
cidadania, direitos individuais, ete. É por isso que as ins- Latina, foi que, ao invés de implantar reformas capazes de
tituições políticas latino-americanas são tão instáveis e modificar aquela podridão histórica da acumulação no con-
permanentemente vulneráveis às aventuras militares e to- tinente, as democracias neoliberais foram na verdade um
talitárias de governo. importante instrumento para enquadramento econômico dos
A fragilidade das condições econômicas e políticas da trabalhadores, para uma nova e mais profunda rodada de
região favorece, de outro lado, uma também característica exploração.
condição histórica de acumulação do capital. Trata-se de Azora
b
os trabalhadores de todos estes países descobrem
uma permanente dependência e subordinação às necessida- que não basta haver crescimento do Produto Interno Bruto
des globais do sistema imperialista. É neste quadro que se (PIB) e nem queda da inflação para que sua situação melhore.
pode entender a aceitação praticamente passiva das princi- Isto acon teceu na Venezuela e em parte no Peru, onde os
pais economias da área da política neoliberal privatização níveis inflacionários estão baixos. Tanto na Venezuela quanto
- doação das melhores empresas públicas; redução dos no Peru os salários caíram a seus níveis históricos mais baixos,
impostos e das despesas sociais do Estado; abertura da a mrseria e o desespero da população crescem na mesma
economia para a importação de bens de luxo e para a proporção em que os salários são arrochados.
especulação financeira internacional; liberdade de preços 'estes países, a ilusão neoliberal de se fazer democracia
para os capitalistas e de aluguel para os proprietários, com sem mudar a realidade econômica e social, acaba cedendo
a simultânea amarração dos salários e aposentadorias, ete. lugar a uma profunda desestabilização das mais rudimentares
Junto com tudo isto, a exigência dos bancos internacionais regras de convivência democrática, - como, por exemplo, a
de que se mantenha a sangria do que restar de recursos relação entre os três poderes ou a própria obediência ao texto
nacionais, para pagamento dos juros daquela velha dívida constitucional - trazendo de volta os militares e os golpes
externa dos anos 70. de Estado, que se supunha neutralizados pela nova política
Seria uma grande ilusão se imaginar que, sobre estas imperialista no continente.
condições econômicas de extração da mais-valia absoluta e O retorno de cxército às ruas de Lima e de Caracas não
de dominação crescente do imperialismo, se pode construir é apenas uma nuvem escura e isolada no céu azul das demo-
qualquer tipo de superestrutura política civilizada. Foi jus- cracias neoliberais. Os acontecimentos dos últimos dias na-
tamente esta ilusão que as diversas burguesias do continente quclcs dois países servem para demonstrar mais uma vez que
a democracia será apenas uma desastrosa ilusão, se previamen-
te não forem eliminadas as bases do subdesenvolvimento
o MISTERIOSO NAFTA
econômico e social.

[1992J
---.------ ... -

Existe um negócio chamado NAFT A. É a sigla em inglês para


Acordo de Livre Comércio Norte-Americano. Através do
NAFT A, os três países que compõem a América do Norte -
Canadá, Estados Unidos e México - vão eliminar barreiras
comerciais e financeiras, formando um novo bloco econômi-
co. A evolução recente da economia mexicana, que se ajustou
nos últimos três anos para esta integração com os Estados
Unidos, tem sido alardeada como um exemplo bem sucedido
de recuperação econômica. Segundo os neoliberais, o México
mostra o caminho a ser seguido por economias da América
Latina que ainda se debatem com problemas inflacionários,
desemprego, etc., como é o caso do Brasil. Segundo estes
ideólogos da devastação neoliberal, o Brasil deve seguir o
exemplo do México para promover sua inserção na nova
ordem econômica mundial, baseada em blocos econômicos e
A riqueza do capital e a miséria das nações 111
110 José Antônio Mllrtins

em condições produtivas e tecnológicas absolutamente novas. mando basicamente que não se pode fazer esta integração sem
Em resumo, o que é proposto pela direita econômica é que se resolver os baixos salários mexicanos. Caso contrário, os
os brasileiros não precisam se preocupar com o seu futuro. mais atingidos serão os trabalhadores americanos, que perde-
Basta integrar sua economia ao esquema do NAFT A e seu rão seus empregos ou, na melhor das hipóteses, sofrerão um
lugar no céu estará garantido. arrocho sem precedentes na história sindical daquele país.
Esta discussão é importante, na atual conjuntura econô- Segundo a AFL-CIO: "A diferença de salários entre os
mica e política da América Latina, porque o modelo mexicano, Estados Unidos e o México está no centro dos problemas
imposto pelo governo Bush, é basicamente o que a direita causados pelo incremento da integração econômica entre os
neoliberal no Brasil tem na cabeça para aplicar nas novas dois países ... O baixo padrão salarial mexicano só vai incen-
relações econômicas externas do Brasil. É bom que se diga, tivar a fuga dos investimentos americanos pela fronteira, onde
também, que a propaganda do modelo mexicano está presente não existe uma legítima vantagem comparativa, mas apenas
também nos projetos que alguns sindicatos estão propondo lucros da exploração do trabalho".
para o Brasil. Comecemos uma análise do que está realmente O ajuste econômico e o Pacto Social conseguidos pela
se passando na economia mexicana, depois que ela iniciou seu burguesia mexicana, capitaneada por Salinas e seus tecnocratas,
processo de integração ao NAFTA resultaram em um assombroso arrocho salarial. Segundo dados
O acordo definitivo do Nafta ainda não foi assinado. Não da Universidade acional Autônoma do México, o salário
porque o governo mexicano esteja colocando alguns obstá- mínimo mexicano perdeu 72 % do seu poder de compra desde
culos. Ao contrário, a burguesia mexicana, representada pelo que Salinas tomou posse, no começo de 1988. A queda nos
seu presidente Salinas, está ansiosa para que se oficialize logo salários mexicanos teve que ser bem mais rápida do que a
este acordo. Na verdade, o próprio futuro político do PRI, o queda nos salários americanos, para se criar a grande vantagem
maior partido mexicano, depende desta assinatura do acordo. comparativa da economia mexicana para as empresas mul-
O problema é que os americanos estão preocupados com o ti nacionais se instalarem naquele pobre país latino-americano.
que poderá acontecer se este projeto de integração for levado Segundo a AFL-CIO, os salários reais dos trabalhadores
até o fim. O novo presidente americano, Bill Clinton, não produtivos declinaram 7,2 % desde 1980. Comparado com o
parece tão convencido quanto seu antecessor, Ceorge Bush, México, é pouco. É esta diferença que faz do México, atu-
de que haverá vantagens para os americanos com esta almente, o paraíso dos capitalistas americanos. É pensando na
integração. O Congresso americano também oferece forte perda de empregos dos seus afiliados, que a AFL-CIO con-
oposição à assinatura do acordo, na forma como está colo- tinua chorando: "Os defensores do NAFT A afirmam que os
cado. Recentemente a maior central sindical americana , a consumidores mexicanos terão o poder de compra para au-
AFL-CIO, publicou um boletim criticando o NAFTA, alir- mentar as exportações americanas para aquele país, compen-
112 José Antônio Martins A riqueza do ca p it a] e a miséria das nações t t 3

sando assim os empregos perdidos. Entretanto, a queda de o salário mínimo nacional pelo menos na metade do salário
50% dos salários reais dos trabalhadores mexicanos na década médio dos operários industriais. Se isto fosse aplicado no
passada, significa menos poder de compra daqueles trabalha- México, o salário mínimo mexicano atual de aproximadamen-
dores, e portanto a perda de mercado de exportações para as te 0,68 centavos de dólar, deveria dobrar imediatamente. Nos
manufaturas dos Estados Unidos. O México tem uma taxa de Estados Unidos, a metade do salário médio industrial atual de
desemprego efetiva de 20%, taxa de pobreza de 40%, e um 11,45 dólares por dia, deveria elevar o salário mínimo atual
produto interno bruto que é um vigésimo do nosso". para 5,73 dólares por dia. Na França, apenas para comparação,
De acordo com o mesmo estudo da Universidade Naci- o salário mínimo atual é de aproximadamente 6,36 dólares por
onal do México, o preço da cesta básica de bens de consumo hora, com reajuste indexado à inflação.
dos trabalhadores mexicanos supera atualmente três salários A AFL-CIO exige que, para que se possa pensar em uma
mínimos. Em novembro de 1992, o salário mínimo diário era definitiva integração do NAFTA, deve-se exigir os seguintes
13,330 pesos (4,30 dólares), comparado com 45,322 pesos pontos relacionados com os salários:
(14,3 dólares) que seriam necessários para comprar as mer- 1. O salário mínimo mexicano precisa aumentar 300%,
cadorias da cesta com a qual se suprima as necessidades básicas apenas para recuperar o seu poder de compra de 1976;
de uma família de cinco pessoas. O salário mínimo supre a 2. O salário mínimo mexicano precisa aumentar 333%
necessidade de apenas uma pessoa, quando a média de uma para viabilizar a compra da cesta básica necessária para uma
família mexicana é de seis pessoas, a maioria crianças. Não família de cinco pessoas;
sobra nada para o restante das necessidades básicas como a 3. O salário mínimo mexicano também deve ser relaci-
habitação, saúde e educação. O resultado é o crescimento das onado com a taxa de câmbio, preço do peso frente ao dólar.
disparidades sociais, com o incremento da exploração do Se a moeda mexicana for continuamente desvalorizada frente
trabalho das crianças para a sobrevivência das famílias. Nos ao dólar , os consumidores mexicanos estarão na condição de
Estados Unidos, o salário mínimo de 4,25 dólares por hora comprar cada vez menos produtos feitos nos Estados Unidos
está bem abaixo dos 6,97 dólares por hora necessários para e México.
superar a linha de pobreza para uma família de quatro pessoas. Termina o seu relatório com a seguinte conclusão: "O
Mas o que vale para o cálculo capitalista é a diferença que NAFT A representa uma experiência de alto risco, porque
o México propicia. Se a pobreza mexicana é maior do que nunca dois países com tantas disparidades de padrão de vida
a americana, é para lá que eles vão. propuseram uma integração econômica. O NAFTA está fada-
Se o ritmo de 1987-1991 continuar, o salário médio dos do a provocar uma diminuição de 550 mil empregos e depri-
operários industriais mexicanos será de aproximadamente 2,40 mir os salários nos Estados Unidos, sem nenhuma possibilidade
dólares em 1993. Um padrão internacional conservador fixa real de aumentar os salários no México. O desafio para os
114 José /vn i n ío
õ Martins

Estados Unidos, México e Canadá é o de expandir o comércio


na América do Norte e, ao mesmo tempo, criar uma real
MUNDIALIZAÇÃO
oportunidade de elevar os salários e padrão de vida no
México, sem comprometer os padrões de emprego e salários
o A MISÉRIA
nos Estados Unidos e Canadá. Uma estrutura apropriada de +-----
salário mínimo é compromisso necessário para se alcançar
aquele objetivo".
[1993]

Ainda existe a crença de que as novas condições tecnológicas


mundiais não são compatíveis com mão-de-obra barata. Além
disso, a mão-de-obra empregada nas novas condições produ-
tivas deveria ser mais e mais qualificada, dadas as complexas
operações das novas linhas de produção. Por trás desta crença
está uma visão otimista do desenvolvimento capitalista, ima-
ginando-se que a exploração desse regime pode ser acompa-
nhada pelo desenvolvimento da educação, da saúde e do
bem-estar da população trabalhadora.
O caso do México desmente concretamente essa visão
idílica e tecnocrática do processo de valorização do capital.
A experiência liberal mexicana mostra exatamente que o
arrocho salarial e o prolongamento desmesurado da jornada
de trabalho continuam sendo um importante determinante do
investimento capitalista. Mostra também que crianças, mulhe-
116 José Antônio Martins A riqueza do capital e a miséria das nações 117

res e homens famintos sem qualquer qualificação podem ser do modelo asiático do que qualquer outro país do ocidente"
rapidamente treinados e preparados para operar nas mais (Business W'eek)
sofisticadas linhas de produção da economia globalizada. A grande façanha de Salinas e seus comparsas reunidos
Smart, motivated, cheap. Assim a revista Business Week - toda quinta-feira para repassar as suas diversas câmaras setoriais
a mais importante revista de economia e negócios dos Estados é a de manter os seguintes quadros:
Unidos - sintetiza o novo trabalhador mexicano. É uma
matéria de capa, em sete páginas, de 19 de abril de 1993, que 1. Salários e benefícios dos operários industriais
apresenta interessantes detalhes da fantástica experiência (dólar por hora, 1991)
mexicana de adaptar a sua economia e a sua população ao
inferno da nova economia mundializada. O título da matéria, México - 2.17 Hong Kong - 3.58
realisticamente, é "O trabalhador mexicano". Coréia - 4.32 Sírngapura - 4.38
Salinas, o presidente mexicano, e a burguesia resol- Taiwan - 4.42
veram colocar toda a esperteza, motivação e salários de
escravo do trabalhador mexicano à disposição do capital 2. Salários e benefícios dos operários industriais
mundializado das grandes corporações capitalistas, das (dólar por hora, 1990)
tecnologias de ponta, dos produtos mais sofisticados. "Toda
manhã de quinta-feira, nos últimos seis anos, uma equipe Ind,íslrin México Esirldos Unidos

de economistas, incluindo seis ministros, junto com líderes Têxlil 1,94 10,31
empresarias e dirigentes sindicais, se reúne em torno de Alimentícia 1,67 13,n
uma grande mesa no Ministério do Trabalho, na cidade do Eletrônica 1.54 13,96
México. Lá eles estabelecem acordos que controlam preços ,\iáquina·Equipamenro 202 15,97
e salários e bolam maneiras de aumentar a produtividade ... Química 2,61 18,96
Em seu esforço para modernizar o México, Salinas e seus Automobilística 2)5 21,93
planejadores comandam quase todas as variáveis da econo- Metalurgica 3.20 24,26
mia. Para combater a inflação e manter a enorme diferença
em relação aos custos de trabalhos dos Estados Unidos e Fonte Businnes Week, de 19/04193
outros países, Salinas fixa salários através de um complexo
acordo entre capital e trabalho que é conhecido como el Para que Salinas seja vitorioso, é fundamental que o
pacto ... Em resumo, Salinas e seus econometristas tocam NAFT A dê certo. Mas segundo a revista, o processo de
uma economia monitorada de perto, muito mais próxima integração continental que se desenvolve atualmente é um
118 .José /vnt ô nio /'vlllrli", A r i q u ez a do capital e a miséria das nações 119

casamento sem precedentes e politicamente explosivo entre geopolíticas estão sendo destruídas para abrirem caminho a
o Primeiro e o Terceiro Mundo. Enquanto os mexicanos um profundo processo de exploração e valorização do capital.
sobem na escala do emprego, eles lutam essencialmente mano Não são as condições do Primeiro Mundo que se generalizam.
a mano, por empregos dos Estados Unidos. Como centenas Ao contrário, é uma irreversível metástase terceiro-mundista
de milhares de desempregados americanos descobriram os _ baixa qualificação, baixos salários, prolongamento da jor-
empregados nos Estados Unidos que estão vulneráveis não são nada de trabalho, diminuição da qualidade de vida da popu-
os de 6 dólar/hora, mas também os de ) 8 dólar/hora. Atinge lação como um todo - que já começa a se alastrar no interior
o coração da base industrial americana ... Na verdade, os olhos das principais economias (Estados Unidos, Europa e Japão).
americanos estão se abrindo para a poderosa vantagem que Os principais dirigentes da Comunidade Econômica
o México tem em sua reserva de trabalho jovem, de baixo Européia, reunidos ontem em Copenhague, emitiram um
custo e rápido crescimento. Quase quatro entre dez jovens de comunicado conjunto em que prescrevem a receita para
18 anos que entram no mercado continental de trabalho são combater a crise econômica e o desemprego de mais de 17
mexicanos - isso num país com apenas 5% do Produto milhões de trabalhadores na CEE. O ponto básico do progra-
Nacional Bruto dos Estados Unidos. Para dar mais força ainda ma de recuperação é o estímulo ao investimento público e
ao México, os salários baixos se casam com alta produtividade. privado: dinheiro novo para obras de infra-estrutura, como
O pagamento no México permanece um sexto do nível rodovias, ferrovias, telecomunicações e informática, capazes
americano, enquanto a produtividade cresceu o dobro da taxa de gerar muitos empregos. Mas onde será empregada a quase
americana nos últimos cinco anos. totalidade dos U$ 192 bilhões - simplesmente o triplo, em
O que está acontecendo no México e na integraçào valores reais, dos recursos utilizados no Plano Marshall, que
norte-americana (NAFTA) mostra um novo processo de di- recuperou a Europa após a Segunda Guerra Mundial? Exata-
visão mundial do trabalho e da produção Este casamento sem mente nos países mais pobres da CEE: Portugal, Espanha,
precedentes e politicamente explosivo entre o Primeiro e o Crécia e Irlanda. Exatamente onde predominam os mais
Terceiro Mundo não está acontecendo apenas no NAFT A. As baixos salários e a mais baixa qualificação da mão-de-obra.
novas condições técnicas da produção capitalista desqualificam Conforme o comunicado da CEE, um dos principais
radicalmente a força de trabalho, o que possibilita uma liber- objetivos do programa de recuperação é a flexibilização do
dade sem limites à movimentação do capital produtivo So- merwdo de trahalho, o que quer dizer reduzir o custo do trabalho
mando-se isso ao desenvolvimento das comunicações e J para aumentar os índices de produtividade. Segundo matéria
rapidez das informações entre os diversos mercados mundiais, publicada no jornal O Estado de São Paulo de 23 junho "esse
cria-se a possibilidade de modificar o emprego no espaço das ponto do programa foi considerado o início do desman-
ídenciá . racterístico
antigas áreas geo-econômicas. É por isso que as fronteiras telamento do sistema de E sta d o previ enClano, ca
121
A riqueza do capital e a miséria das nações
120 José Antônio Martins

tentam as viagens de um lado para outro, como baratas tontas.


da Europa ao longo de décadas, e que se traduz em gastos
estatais de grande porte como assistência médica e outros É verão, eles comem e dormem nas ruas."
A China tem um estoque de quase 1 bilhão de escravos
benefícios."
assalariados, esperando novos investimentos internacionais,
O milagre econômico chinês representa na Ásia este movi-
principalmente do Japão. Ou dos Estados Unidos, ou da
mento de um novo mapa da acumulação capitalista. A formula
Europa. Do mesmo modo que mexicanos, portugueses,
política da economia de mercado controlado pelo Estado está
coreanos, gregos, russos, poloneses, sul-africanos e ... brasilei-
produzindo seus resultados. Segundo reportagem publicada
rOS os chineses estão prontos para ser empregados nas sofis-
no mesmo O Estado de São Paulo, de 20 de junho: "O país
tic~das linhas de produção criadas pela recente revolução
já cresceu em média anualmente 9% nos últimos 14 anos mas
tecnocientífica dos anos 80, estão prontos para produzir reluzen-
isto não foi suficiente, até agora, para diminuir o desemprego
tes carros de luxo, computadores, aviões, etc. Estão prontos
e evitar a inflação. Na quarta-feira o Ministério da Agricultura
para competir com fome e trabalho contínuo com os traba-
revelou que há 110 milhões de camponeses desempregados
lhadores do NAFT A, do MERCOSUL, da CEE e da Europa
- ou excedentes, na linguagem oficial. O número veio com
Oriental. Estão prontos para exportar suas desumanas condi-
um alerta: serão 230 milhões na virada do século ... Na mesma
ções de emprego para os tradicionais mercados social-demo-
quarta, o Conselho de Estado admitiu que já são quase 10
cratas, protegidos até pouco tempo pelo bem lubrificado
milhões de desempregados nas cidades... Esses dados
sistema imperialista do pós-guerra. As novas condições pro-
em pilhados aí em cima são estatísticas e projeções. A realidade
dutivas arrebentaram com o velho e inferior sistema de
é bem pior. A vida nas grandes cidades liberadas virou vale
exploração da época da Guerra Fria. Estamos entrando em um
tudo. Acabou a legislação trabalhista. As jornadas são de dez
novo e mais poderoso período da luta de classes. O capital
horas diárias, sem sábado e domingo. Cortiços são alugados
é obrigado a superproduzir e reabrir suas portas para sua
em dólar. O governo força milhares de camponeses a voltar
às zonas rurais.Os deserdados resistem. Eles pulam de uma própria superação.
cidade para outra, congestionando os trens. Aliás, acabam
morando nos trens e nas estações. A de Pequim é um favelão.
Mais de 10 mil pessoas dormem espalhadas pelo chão, cor-
redores e pátios, a espera de um trem para qualquer lugar.
Como não há informações na imprensa, as pessoas perambulam
de Norte a Sul do país perguntando onde há algum bico. Em
Xangai, milhares de desempregados formam filas nas fábricas.
E em todas as províncias outros milhões de desempregados
KAROSHI, MADE

N J A P A N
---+-

Alguns dados sobre o real funcionamento do modelo japonês


de trabalho industrial foram trazidos pelo líder sindical japo-
nês Ben Watanabe, que no mês de junho último esteve no
Brasil, participando dos eventos organizados no âmbito do
projeto Auto, mantido pela TIE e Confederação Nacional dos
Metalúrgicos CNM/CUT
Watanabe trabalhou durante trinta anos como organizador
de base da União Nacional dos Trabalhadores Japoneses. Ao
longo dos últimos quinze anos, foi presidente desse sindicato
no distrito sul de Tóquio, conhecido no Japão por sua
combatividade e militância na organização de trabalhadores
migrantes (dekasscguis) dos setores de serviços e de autopeças.
De modo geral, o sindicato organiza os trabalhadores nas
lábricas e serviços periféricos das montadoras. Watanabe é um
dos fundadores da Coordenação de Solidariedade dos Traba-
124 José An t n i o Martins
õ
A riqueza do capital e a miséria das nações 125

Ihadores Asiáticos (AWSL), rede de intercâmbio e de apoio um salário. Com a aposentadoria aos 55 anos, o trabalhador
à luta nos países asiáticos. Watanabe notabiliza-se pela po- é transferido para um emprego menos remunerado em empre-
sição classista contrária à cooperação capital-trabalho propos- sas de menor porte e prestígio.
ta pelos sistemas gerenciais japoneses impostos pelos patrões, • Promoção por tempo de serviço.
sistemas que estimulam a competição entre os trabalhadores, • Sindicato por empresa: na proibição de organizações
por meio da cooptação individual, levando-os a se denunci- intercategorias ou confederadas de trabalhadores, a empresa
arem uns aos outros, estilhaçando os laços de solidariedade é o espaço privilegiado das práticas e negociações sindicais.
e identidade de classe e submetendo os sindicatos aos inte- Trata-se de um estilo de relações pouco conflitantes, que tem
resses das empresas.
mais a ver com o esmagamento do movimento operário no
Watanabe foi um dos principais divulgadores do fenôme- período do expurgo vermelho do pós-guerra do que com uma
no karoshi, termo japonês que quer dizer morte súbita provocada doei/idade natural do operário japonês. Para se ter uma noção
por sobrecarga de trabalho, última consequência da busca perpétua do resultado da política de perseguição ostensiva aos sindi-
por aumento da produtividade. catos combati vos, basta dizer que a última greve da T oyota
Os métodos produtivos japoneses aparecem sempre como foi no ano de 1950. Neste mesmo ano, a taxa de trabalha-
a materialização de um novo sistema de organização, desen- dores sindicalizados era de 50%, percentual que em 1990
volvimento e competitividade industrial, como exemplo de equivalia a 25%.
modernidade capitalista a ser reproduzido pelas empresas que Para Watanabe, este é um modelo de relações industriais
pretendam chegar à condição de world class company (empresa altamente corporativo e excludente, pois não vale para as
de categoria mundial) O toyotismo é a marca de um modelo mulheres, nem para os trabalhadores de pequenas e médias
de exploração que é vendido mundialmente e adaptado a empresas. O fato de o trabalhador não ser recrutado para um
qualquer situação nacional. Na visão dos capitalistas e da posto de trabalho determinado e a inexistência de um sistema
maior parte dos pesquisadores, as relações de produção deste -de qualificação codificado em classificações com seus coefi-
modelo japonês são também a própria realização da harmonia cientes, como em outros países, permite também o chamado
entre capital e trabalhador. Para Watanabe , no entanto , a uso flexível da mão-de-obra.
realidade japonesa é bem diferente. O toyotismo é essencial- Podemos complementar dizendo que o toyotismo não é
mente um sistema de emprego e de exploração da força de apenas a expressão de uma realidade cultural japonesa, mas
trabalho, criado e adotado por grandes empresas japonesas. principalmente de condições geo-políticas do período da
As suas características principais são: Guerra Fria, em que a repressão estatal aos movimentos
• Emprego vitalício: o trabalhador é da empresa, e não operários foi a marca registrada. No caso particular do Japão,
de um posto de trabalho, com um cargo ao qual corresponde esta repressão assumiu uma permanente forma militarista e
A riqueza do capital e a miséria das nações 127
126 José Antônio Martins

radicalmente corporativista. Com o colapso daquelas con- consiga se proteger da tempestade. Pelo menos para o
dições geo-políticas, os dirigentes japoneses terão crescentes próprio capitalismo japonês, pois o que permanece é a
dificuldades para conservar as bases do toyotisnlO. proliferação no resto do mundo daquela doença chamada
Segundo ainda Watanabe, para produzir 4 milhões de karoshi, forma mais acabada do toyotismo e seus pregadores
veículos, a General Motors dos Estados Unidos (que man- fanáticos do neoliberalismo
tinha sua estrutura produtiva mais verticalizada) utilizava
265 mil trabalhadores. No mesmo ano, a Toyota do Japão,
com uma rede de produção plenamente desverticalizada,
produzia o mesmo número de veículos com apenas 58 mil
trabalhadores.
Essa diferença se deve, sobretudo, à terceirização dos
serviços: o núcleo estratégico dos funcionários altamente
qualificados trabalha na Toyota, enquanto o restante da
produção é feita por terceiros, com salários muito mais
baixos e piores condições de trabalho. Nas pequenas e
médias empresas, que fazem essa função de terceirização,
apenas 5% da sua força de trabalho é sindicalizada. São
permanentemente reprimidas com políticas anti-sindicais. As
jornadas de trabalho são moduladas pelas flutuações de
demanda das grandes empresas, sendo comum o trabalho aos
finais de semana.
Mas não é apenas o fim da Cuerra Fria que solapa as
bases do corporativismo japonês. A crise econômica, que já
faz seus estragos naquela outrora fortaleza de produção de
capital, ameaça também, segundo Watanabe, provocar o
colapso do emprego vitalício e do sistema de incentivos e
enrolação dos operários japoneses. Moral da história: do
mesmo modo que a nova era de convulsões econômicas já
atingiu as bases do stalinismo e da social-democracia ociden-
tal, não se pode imaginar que o corporativismo japonês
o M U N D o É

UMA M O E D A

A onda da dolarização passa como um furacão sobre as


economias pobres do mundo. Já houve época em que a moeda
nacional era uma coisa importante para os países subdesen-
volvidos, que ainda aspiravam um dia ser desenvolvidos. Mas
na nova ordem política mundial o mundo está forrado de
dólares. Na cidade de Ho Chí Minh, o dono de uma boate
cobra uma taxa de consumação mínima de 4 dólares. Sem
conversão para o don9, moeda local, em notas da moeda
americana mesmo, por favor. Em São Paulo, os anúncios
classificados dos jornais de domingo oferecem de tudo a
preços cotados em dólar. No comércio de Pequim e Shangai
os chineses trocam seus reminbí por dólares ernpilhados nas
mesas dos comerciantes e banqueiros. Ninguém sabe quantos
dólares estão em circulação na Rússía, mas calcula-se que não
deve ser menos de US$ 20 bilhões. Na Argentina, desde 1991,
130 José" Antônio Martins A riqueza do capital e a misúia das nações 131

não se imprime mais pesos sem que estes tenham lastro em tentaram estabilizar as suas inflações, com a recuperação da
dólar. A taxa de câmbio é fixa desde então, e a moeda velha moeda nacional, quebraram a cara. O máximo que se
americana pode circular livremente no mercado argentino, consegue, com estas derradeiras tentativas de preservar sua
seja nas compras, nos depósitos bancários, nos contratos autonomia econômia, é cortar três zeros da moeda nacional
privados, etc. Coisa parecida acontece no Chile , Bolívia , de tempos em tempos, para que seus valores possam ser
México e outros países latino-americanos. inscritos nas notas, nos cheques e nas calculadoras eletrô-
Na época em que os países subdesenvolvidos ainda ima- nicas. Mas a corrosão continua, na mesma medida em que
ginavam que o capitalismo um dia poderia generalizar por todo se corrói o crédito do governo que emite e procura garantir
o mundo as modernas estruturas industriais, do mesmo modo o curso forçado da moeda nacional. A irresistível tentação
em que elas se desenvolveram nos países centrais - com amplo de estabilizar a economia - quer dizer, combater a inflação
mercado interno, alta produtividade, elevação de salários reais, - acaba desembocado na dolarização da economia. Busca-
expansão do comércio externo e um bem articulado sistema se no dólar, padrão monetário global por excelência, a âncora
financeiro para o financiamento da produção privada - eco- para o navio desgovernado. A taxa de câmbio - valor da velha
nomias como a brasileira, argentina, mexicana, ainda procura- moeda nacional frente às moedas fortes - se acalma, o nível
vam zelar pela autonomia da sua política econômica, do seu de preços internos se estabiliza, a inflação mensal que
mercado interno, das suas exportações. Para tanto havia a passava de 30% a 50% ao mês, agora cai a 1% ou 2% ao
necessidade de se medir com sua própria moeda nacional. E mês. Simultaneamente, afundam as barreiras estatais e a
para que tudo isto ficasse protegido da concorrência externa, âncora cambial. Junto com a estabilização, as empresas
havia a presença do Estado na economia , financiando , estatais se privatizam, as reservas de mercado e as proteções
intermediando, regulando e, finalmente, protegendo a sua comerciais desaparecem e, finalmente, os controles de en-
estrutura industrial, que um dia, imaginava-se, seria tão pujante tradas e saídas do capital financeiro são arquivados. A partir
quanto a dos poucos países desenvolvidos do Norte. deste ponto de reformas estruturais, acende-se um enorme farol
Mas o sonho do desenvolvimento nacional se transfor- verde para os movimentos do capital global em todos os
mou nos últimos dez ou quinze anos no pesadelo do poros da velha economia. A globalização do capital finan-
neoliberalismo desequilíbrios das funções financeiras e fiscais ceiro internacional exige desregulamentação econômica e
do Estado, livre comércio e queda das barreiras comerciais, estabilização monetária. A desregulamentação significa o
enfraquecimento crescente dos instrumentos de política eco- arquivamento definitivo do desenvolvimento auto-sustenta-
nômica e, consequentemente, corrosão hiperinflacionária das do. A estabilização significa uma moeda nacional que apa-
moedas nacionais. rece apenas como a sombra da moeda internacional, no caso
Todas as economias atrasadas que nos últimos dez anos o dólar americano.
132 José Antônio Martins

Quando ainda se pregava a ilusão do desenvolvimento P A R T E


estatizado, todas as soluções para as fragilidades estruturais do
subdesenvolvimento - concentração da renda e da propri-
edade, atraso científico e tecnológico, desigualdades regio-
nais, baixa competitividade internacional, etc. - eram jogadas
B R A S L
para o futuro, para a utopia da harmonia capitalista mundial,
em que as lacunas do desenvolvimento desigual e combinado
NEOLIBERALISMO
seriam
justa
compensadas
e igualitária
por uma nova ordem
entre Norte e Sul,
internacional
entre as economias
mais
T A R o o
centrais e as economias periféricas.
Agora o futuro finalmente chegou. Os bancos centrais da
Argentina, Bolívia, Vietnã, Chile, México, Hong Kong, Pa-
namá, China, Rússia, Singapura, etc, não precisam mais se
preocupar com suas moedas nacionais e nem com a inflação.
Os bancos americanos, europeus e japoneses embarcam dia-
riamente - ou instantaneamente, como se costuma idolatrar
nos mercados financeiros programados e computadorizados
24 horas por dia, em todas as praças financeiras do mundo
- pilhas cada vez maiores de dinheiro para estes. Agora eles
são países globalizados. O cenário está montado para o
desenvolvimento capitalista sem fronteiras. Do mesmo modo
que não é mais importantes se preocupar com a manutenção
da moeda nacional - afinal os problemas monetários e
inflacionários parecem coisa do passado - também não é
mais necessário que se cuide das fragilidades estruturais do
subdesenvolvimento. Basta deixar que elas finalmente se re-
alizem em toda a sua plenitude, basta deixar funcionar o livre
jogo do mercado globalizado.
[1993]
LÓGICA SOMBRIA

G1auber Rocha dizia que Celso Furtado era o grande marxista


brasileiro. Exageros à parte, o fato é que este velho teórico
da formação econômica nacional foi a grande fonte inspiradora
para as teses econômicas dos partidários brasileiros do soci-
alismo em um só país. Pode ser interessante verificar -
principalmente nestes tempos de refluxo dos socialismos
nacionais - que tipo de interpretação Furtado anda fazendo
das novas condições econômicas mundiais e dos seus impactos
sobre o Brasil.
A oportunidade para satisfazer esta curiosidade é dada
por sua mais recente pulicação - Brasil, a construção interrompida,
Paz e Terra, 1992. O título já dá uma boa pista para se
imaginar a idéia de Furtado sobre o estado atual da economia
brasileira. Tudo continua como dantes, entretanto, na meto-
dologia do velho mestre. Antes de tudo, são os choques
136 José Antônio Martins A riqueza do c ab i t al e a miséria das nações 137

externos que continuam dando o ritmo para as novas condi- mação de bolsões de rmsena e, finalmente, a inviabilização
ções endógenas da economia nacional. Mas alguma coisa do país como projeto nacional.
mudou na nova realidade. Os choques externos dos anos 80 O dilema é inevitável; "trata-se de saber se temos um
foram tão estimulantes quanto aqueles de outras épocas, que futuro como nação que conta na construção do devenir
afinal acabavam propiciando grandes ondas de crescimento e humano, ou se prevalecerão as forças que se empenham em
integração nacional, baseadas na substituição de importações. interromper o nosso processo histórico de um Estado-nação".
Nos últimos dez anos, ao contrário, as transformações da Neste momento, o mesmo dilema de Furtado deve estar
economia internacional criaram para o Brasil apenas uma povoando as cabeças da velha guarda iugoslava, russa, polo-
perversa combinação de estrangulamento financeiro e desva- nesa, georgiana ete. Embora à sua revelia, o autor acaba não
lorização das tradicionais vantagens comparativas. As mesmas apenas confirmando, mas principalmente, dando atualidade ao
vantagens comparativas - mão-de-obra barata, recursos veredicto de Glauber Rocha.
naturais ete. - que, apesar de incentivar a reprodução do
subdesenvolvimento, garantiam certo dinamismo econômico.
Agora, nem isto existe mais.
Era aquele dinamismo residual de uma grande economia
periférica que criava as condições materiais para a construção
de um sistema econômico nacional no Brasil. A própria idéia
de um sistema econômico nacional passou a ser apresentada
como um anacronismo, no âmbito das novas condições de
globalização da economia mundial. Os efeitos de retirada dos
critérios políticos, estatais, que anteriormente ainda contra-
balançavam a rigidez da lógica econômica, são devastadores
para um país ainda em formação, como é o caso do Brasil.
A reprodução atual do subdesenvolvimento é qualitativa-
mente diferente daquela época em que pelo menos a unidade
nacional podia ser construída. A lógica atual - comandada
pela abertura indiscriminada e pela predominância das empre-
sas transnacionais na ordenação dos investimentos nacionais
- acaba levando Furtado a um cenário pessimista; tensões
intra-regionais, exacerbação de rivalidades corporativas, for-
PATINANDO NA
TEMPESTADE

Em primeiro lugar, algumas considerações sobre o quadro


econômico internacional, neste começo de 1993. Na ponta
do sistema, na economia americana, os dados mais recentes
indicam uma recuperação do Produto Interno Bruto (PIB), de
4,8% no último trimestre do ano passado. Entretanto, do
outro lado do Atlântico, puxadas pela Alemanha, as principais
economias européias já entraram no vermelho, na virada do
ano. Alemanha, França, Itália, Inglaterra e Suíça, já estão com
crescimento negativo do PIB. A mesma coisa acontece no
outro lado do Pacífico, onde o Japão apresenta uma queda de
1,5% do seu PIB.
Isto quer dizer que a retomada da economia americana
poderá abortar, caso se mantenha a situação pré-depressiva dos
seus principais parceiros europeus e japoneses. O cenário mais
provável, para este ano, é uma desaceleração global do produto
140 José Antônio Martins A riqueza do c a p i t a] e a miséria das nações 141

e dos investimento naqueles blocos. A taxa de inflação deve desagregadora do que a que vem atingindo aquela área nos
manter a tendência de queda, do mesmo modo que as taxas de últimos anos.
juro. O volume do comércio internacional deve se ressentir A América Latina poderá ser atingida de forma diferen-
desta contração produtiva, o que aumentará as pressões prote- ciada. Os países que mais avançaram em seus projetos de
cionistas e a redução dos preços do comércio. A desvalorização reformas liberais, poderão sentir mais pesadamente a retração
do dólar americano frente ao ien e ao marco alemão agravará econômica mundial. Economias como as do México, Venezuela
um pouco mais as dificuldades para um comércio mais estável. e Argentina, que já acumularam gigantescos déficíts comer-
A instabilidade nos mercados cambiais será mais um foco de ciais no ano de 1992 (só o México amargou um déficit de US$
tensão e de desorganização do antigo padrão de comércio e 20 bilhões),ficarão cada vez mais carentes de recursos inter-
dos financeiros que vigoraram nos anos 80. nacionais. O problema destas economias é que os efeitos das
O desempenho econômico dos países pobres será afe- reformas neoliberais privatização, desregulamentação dos
tado negativamente pelas tendências depressivas dos prin- mercados financeiros e de capitais, abertura do mercado
cipais blocos econômicos. Os efeitos destas determinações interno, etc. - já estão entrando em rendimentos decrescentes. As
globais, entretanto, deverão se repartir com pesos diferentes privatizações já não são tão atraentes; os preços das ações já
nas diversas áreas do mundo sub-desenvolvido. A Europa do não estão tão baixos; as demandas internas já estão saturadas,
Leste não receberá nenhum estímulo positivo, capaz de a capacidade exportadora está em declínio. Nestas condições,
interromper o curso catastrófico que configura o seu atual os desequilíbrios financeiros e do balanço de pagamentos
quadro econômico. Na Ásia, a queda das exportações dos destas economias tenderão a aumentar ainda mais, na medida
Tigres Asiáticos para o EUA, Europa e Japão, poderá ser em que a entrada de capitais externos for desacelerada.
compensada em parte pela fantasmagórica expansão da A economia brasileira seguiu um caminho ligeiramente
economia chinesa, reforçando-se ao mesmo tempo os elos diferente das demais economias latino-americanas neo-
comerciais e financeiros no interior daquela florescente área liberalizadas. Continua com enormes desequilíbrios financeiros
econômica. Novos Tigres, como Vietnã, Tailândia, etc., estão internos, o que se traduz nas maiores taxas mundiais de
sendo soltos naquela região. inflação. Não avançou significativamente nas chamadas refor-
O Oriente Médio e outras economias primário-exporta- mas estruturais: privatização, desregulamentação, dolarização,
doras serão mais duramente atingidos pela redução da deman- etc. O mercado interno continua relativamente protegido e
da e compressão dos preços das matérias primas consumidas desaquecido, o que se soma a uma política cambial que acaba
pelas economias industrializadas. Esta perspectiva será mais propiciando gigantescos superávits da balança comercial (só
duramente sentida pelos países da África Negra, que poderão no ano passado as exportações superaram as importações em
mergulhar em uma depressão ainda mais profunda e mais de 15 bilhões de dólares). No front da dívida externa,
A riqueza do capital e a miséria das nações 143
142 José A"tôf1io Martif1s

o primeiro é que a desaceleração dos investimentos no centro


também diferentemente das outras grandes economias latino-
do sistema se transforma em oportunidades novas para o Brasil:
americanas, o Brasil ainda está longe de concretizar um acordo
da grande massa de capitais atualmente desempregados nos
de renegociação com o FMI e credores externos, nos moldes
Estados Unidos, Europa e Japão, uma parte acaba desaguando
do Plano Brady.
na economia brasileira em busca de maior rentabilidade. O
Entretanto, mesmo com estas resistências às determina-
segundo fator, é que a economia brasileira, sempre diferente-
ções neoliberais dos anos 80, a economia brasileira acabou se
mente das demais economias latino-americanas, não entrou de
beneficiando de uma surpreendente reviravolta dos fluxos de
cabeça nas chamadas reJonnas estruturais, preconizadas pelo recei-
capitais mundiais, iniciada em 1991. Os motivos são vários.
tuário neoliberal dos anos 80.
O fato é que segundo dados recentes do Banco Mundial e da
Esta é a parte boa da história. Não se pode ignorar,
ONU, os países latino-americanos vivenciaram uma transfor-
entretanto, que a própria economia brasileira também se
mação, nos últimos dois anos, quando os investigadores
encontra frente ao mesmo processo global de desvalorização
internacionais despejaram recursos na região. De fugas líqui-
do capital mundial Uma rearticulação com os circuitos finan-
das de capital de mais de 13 bilhões de dólares em 1990 as
ceiros internacionais deve levar em conta a baixa taxa de lucro
economias latino-americanas registraram entradas líqUidas' de
e desaceleração da taxa de acumulação do capital industrial
capital de quase 26 bilhões de dólares no ano passado. O
nacional, base última dos próprios desequilíbrios financeiros
Brasil, o maior devedor no ano passado, viu a fuga de US$
e inflacionários que atingem a economia interna. As demais
7,4 bilhões de 1990 mudar para uma entrada de US$ 1 4
economias latino-americanas, por não possuírem a mesma
bilhões no ano passado. É isso que explica as elevadas reservas
estrutura industrial e o mesmo mercado do Brasil, ou por
internacionais de US$ 20 bilhões atuais do Brasil. Se não
decisões irresponsáveis de suas elites, atrelaram-se passiva-
tivesse ocorrido aquela reviravolta dos fluxos financeiros os
mente àqueles movimento externos. O resultado está sendo
mega-superávits comerciais brasileiros teriam se evaporado na
um desenvolvimento altamente especulativo e liquidacionista
remessa de recursos para o exterior, como ocorreu em toda
das forças produtivas daquelas economias. O desafio que se
a década de 80.
coloca para a economia brasileira frente às novas possibilida-
A economia brasileira, dentre as economias periféricas, é
des de relacionamento econômico externo, é encaminhar
a que se encontra em melhores condições para enfrentar o
todas as reformas necessárias no comércio exterior, no mer-
vendaval de uma possível desaceleração cíclica de economia
cado de capitais, no processo de privatização, no sistema
mundial. As condições para se relacionar com o sistema finan-
financeiro e bancário, etc., no sentido de que as enormes
ceiro internacional são muito mais folgadas do que há três ou
ondas de capital externo desaguem em novas linhas de pro-
quatro anos atrás. Pode parecer paradoxal, mas esta folga deriva
dução, na expansão da capacidade tecnológica. E não, ao
de dois fatores aparentemente ameaçadores para esta economia.
144 José Antônio Martins A riqueza do capital e a miséria das nações 145

contrário, em políticas de esterilização de reservas internacio- reposição que incorpora novas tecnologias, novas estruturas
nais, em dolarização da economia, em desregulamentações de produção, o que implica em maior produtividade da força
apressadas, apenas para se remunerar o capital especulativo de trabalho empregada. Quem não segue estes ciclos, acaba
transitoriamente e com elevadas taxas de curto prazo. se atrasando tecnologicamente e perde a capacidade de con-
Existe um problema de fundo na economia brasileira: a correr no mercado internacional.
indústria está em rápido declínio. A produção industrial caiu Por que este retrocesso na indústria brasileira? Em primei-
7,4% no período 1980-1992. Apenas para comparação; na ro lugar porque é uma indústria de economia dependente,
década de 70, a produção industrial brasileira cresceu 138,7%. vulnerável às idas e vindas do sistema financeiro internacional.
Em 1980 foram produzidos 933 mil automóveis. Em 1992 não Internamente, se baseia no trabalho barato e nos subsídios do
passou de 680 mil. Máquinas e equipamentos, em 1992, não governo. Por isso é tão importante a política econômica para
passam da metade do que era produzido em 1980. A produção esta indústria e a exigência do capital financeiro externo. Nos
de cimento ficou estacionada nas 27 milhões de toneladas anos 80, quando esta indústria deveria ter se renovado, o
anuais de 1980. O aço está estacionado desde 1988 em 24 capital mundial impôs à economia brasileira uma sangria
milhões de toneladas anuais. vultuosa de recursos, que saíram para o pagamento da dívida
Este declínio na produção foi provocado pela diminuição externa e de outras formas de remuneração do capital
dos investimentos produtivos. A taxa de investimento, que multinacional aqui instalado. Estes recursos foram subtraídos
chegou à média de 24% do PIB entre 1974 e 1980, caiu para exatamente da chamada poupança nacional. Geralmente, de
18,1% no período 1981-1988. No ano passado, ficou em acordo com a teoria econômica, a poupança se transforma em
14,8%, segundo o IPEA, órgão de estudos do Ministério do investimento. No caso brasileiro dos anos 80, boa parte da
Planejamento. O investimento das empresas estatais federais, poupança se transformou em dinheiro líquido enviado para os
que representavam 5% do PIB no final dos anos 70, agora está cofres dos bancos e empresas multinacionais. Foi o que faltou
ao redor de 1,5%. para financiar a renovação dos investimentos internos e aca-
Esta diminuição dos investimentos representou um enve- bou provocando o retrocesso da indústria nacional.
lhecimento da maior parte da indústria. Na indústria
têxtil , A burguesia industrial se defendeu de várias maneiras. De
por exemplo, das cerca de 500 mil máquinas em operação no nenhum modo, entretanto, desobedecendo ou resistindo à
setor, 90% têm mais de vinte anos de uso. A idade média dos sangria imposta pelo sistema financeiro internacional e orga-
teares é de 18,5 anos sendo que 32% têm mais de 25 anos nizada pelo governo americano e FMI. Ao contrário, a bur-
de uso. O normal, no mercado mundial, nas principais eco- guesia brasileira sempre foi, e sempre será, extremamente
nomias, é que a reposição das máquinas e do capital fixo em dócil às ordens das burguesias centrais. Ela se defendeu com
geral, seja realizada em média a cada seis ou oito anos. É esta o aprofundamento de certos mecanismos internos de funci-
146 José Antônio Marfins
A riqueza do capital e a miséria das nações 147

onamento da economia nacional. Em primeiro lugar, compen-


partir de 1991, aproximadamente, as condições globais da
sou a queda da taxa de lucro com o mais brutal arrocho salarial
acumulação começaram a se modificar. As principais econo-
da história brasileira. Usou o desemprego, decorrente da
mias estão em luta contra a desvalorização do seu próprio
queda da atividade industrial, para colocar os trabalhadores capital. A temperatura da concorrência sobe quando a queda
contra a parede Em segundo lugar, usou o dinheiro público
dos preços internacionais se funde com gigantescos estoques
para pagar suas dívidas externas e garantir novos subsídios
de mercadorias, encalhadas pela retração do consumo no
internos. A indústria se adaptou à recessão e ao retrocesso dos
centro capitalista.
investimentos e da produção, de tal modo que a queda dos Nestas novas condições, o esquema inflacionário e pro-
lucros fosse compensada pela pirataria sobre o salário do
tecionistas da economia brasileira começa a se mostrar insu-
trabalhador, em primeiro lugar, e sobre o dinheiro público,
ficiente para garantir a sobrevivência da indústria nacional. Em
em segundo lugar. O ataque sobre o salário necessário do
primeiro lugar, a crise mundial de superprodução afeta dire-
trabalhador, pagando-se cada vez menos do que necessita para
tamente a rentabilidade da indústria brasileira. Basta se veri-
a simples reprodução física a família operária, acelerou ainda
ficar a grande queda dos lucros de algumas indústrias ligadas
mais a miséria e a marginalidade social. O ataque sobre o
à exportação. O setor do papel e derivados já teve uma
dinheiro público acelerou a inflação. Em resumo, arrocho
rentabilidade sobre o patrimônio negativa nos dois últimos
salarial e inflação são dois expedientes implantados pela bur-
anos. O setor de bebidas teve, em 1990, um lucro sobre o
guesia dependente brasileira para obedecer às ordens dos seus
patrimônio de 31,7%. Em 1992 este lucro caiu para 2,96%.
tempo, continuar encenando o papel de empresários industriais.
A indústria de alimentos também entrou no vermelho nos dois
Esta montagem funcionou para a burguesia brasileira até
últimos anos. Em 1992 teve uma rentabilidade negativa de
o final dos anos 80. Recessão. desemprego, arrocho salarial,
J ,35%. A indústria química está com prejuízos há três anos
especulação financeira, inflação, tudo isto combinado acabava
seguidos. Nos setores mais atrasados tecnologicamente, ~
compensando a queda do lucro empresarial. Uma queda de
prejuízo é ainda maior. No vestuário, a taxa de lucro e
lucro que era provocada pela fa Ita de investimentos produtivos
negativa desde 1987. Em 1982 a rentabilidade média neste
e pela perda de competitividade da indústria nacional no
setor foi de (-) 22,7%. No setor Têxtil, o retorno negativo
mercado mundial. Duas condições importantes garantiam esta
acontece há três anos, com (-) 6,5% no final de 1992.
montagem. A primeira, é que a economia internacional estava A abertura mais rápida da economia ao capital externo
em expansão. A segunda é que se manteve, por toda a década
é uma pressão que vai aumentar
com muita rapidez. Do
de 80, uma certa proteção ao mercado interno. Pode-se então . M'· e Venezuela
mesmo modo que ocorreu na A rgentina, exJCO ,
evitar a concorrência direta com o capital industrial externo . I . d is o desmonte do
esta pressão externa vai ace erar ain a mal , .
e garantir a sobrevivência do ferro-velho nacional. Mas a funcí va para a industna
esquema de sobrevivência que nciona
• A·
148 José Antônio Martins A riqueza do capital e a miséria das nações 149

nacional nos anos 80. As importações asiáticas podem destruir da economia nacional, como a reforma agrária, a reforma
com muita rapidez setores que produzem bens de consumo, industrial, a reforma do sistema financeiro, a reforma de
enquanto a abertura para importações da Europa e dos Estado propriedade fundiária urbana, a reforma do comércio, a refor-
Unidos podem destruir amplos setores de serviços e o que ma do ensino público, etc., só restará às classes dominantes
ainda resta da produção de máquinas e equipamentos no nacionais duas vias. A primeira é se manter o velho esquema
Brasil. de arrocho e inflação das últimas décadas. A segunda será
Estas são as condições materiais que sustentam as instabi- embarcar na via Argentina de dolarização e abertura passiva e
lidades da política econômica atual. Não interessa às classes acelerada às necessidades especulativas do capital internaci-
dominantes, por tudo que foi exposto acima, um combate onal, momentaneamente desempregado. Tanto a primeira
efetivo ao processo inflacionário. O fim da correção monetária, quanto a segunda via aumentarão cada vez mais a instabilidade
por exemplo, representaria a própria destruição do sistema de econômica e o desespero das grandes massas. Indecisas entre
crédito implantado para manter de pé um envelhecido parque uma outra via, as classes dominantes nacionais continuarão
industrial. Um sistema de crédito que se baseia totalmente na trocando presidentes e ministros da Fazenda em intervalos de
dilapidação das receitas fiscais do governo. O déficit público tempo cada vez menores.
provocado por este sistema é a causa mais aparente da inflação. [1993]

O governo precisa expandir mais e mais a base monetária e os


meios de pagamento da economia, para manter o seu próprio
funcionamento. A desvalorização da moeda nacional é cada vez
mais acelerada. Se o déficit é a causa mais imediata e aparente
da inflação, a compensação dos prejuízos e da falta de
competitividade empresarial do capital nacional é a sua causa
mais profunda e oculta. Se a atrasada estrutura industrial e
agrícola nacional é incapaz de produzir valor suficiente para sua
sobrevivência no mercado internacional, o Estado é obrigado
a produzir mais e mais moeda para financiar esse atraso. É
obrigado a produzir mais e mais inflação.
Os chamados planos de estabilização serão cada vez
menos eficientes e cada vez mais catastróficos para as con-
dições de empregos e salários. Na ausência de reformas que
alteram as condições de dependência e sub-desenvolvimento
QUEM TEM MEDO

DA
-----~
INFLAÇÃO?
..--. _._-

Não procurem nos departamentos financeiros das empresas e


dos bancos, que não vão encontrar ninguém perdendo dinhei-
ro com a elevação dos preços de 30% ao mês. Ao contrário,
todo o setor empresarial privado se garante exatamente com
a atual situação inflacionária da economia. "Com recessão
profunda e inflação persistente, todos os setores sobreviveram
e continuam de pé" afirma um gerente da consultoria Price
Whaterhouse ao jornal °
Estado de São Paulo. 10 BhrasbiI não
é o país da impunidade apenas para os crimes do co arin o ranco,
tipo Collor, PC, grupo Votorantim, Mercedes Benz, Ode-
brecht, etc. Nenhum grande proprietário ou grande burocrata
vai para a cadeia, neste país. Mas esta impunidade se estende
também às empresas que estão no mercado. Não se ouve falar
de quebras ou falências de pequenas, médias ou grandes
empresas. Isto é verdade, principalmente no setor financeiro
152 JosE Antônio Martins A riqueza do capital e a misEria das nações 153

- há muito tempo não se fala do fechamento de nenhum no mercado financeiro e de reajustar seus preços à vontade,
banco, de nenhuma financeira, de nenhuma distribuidora. No não há nenhum problema, para elas, que a inflação permaneça
outro lado da moeda, entretanto, o aumento do desemprego na casa dos 25% ao mês, como já está há bem mais de um
e do arrocho salarial, decorrente da inflação e recessão, leva ano. O remédio, neste caso, é produzir cada vez menos e
milhares e milhares de trabalhadores brasileiros à sua forma especular cada vez mais. Esta é a chave do sucesso da esperta
particular de falência econômica - exclusão do mercado , burguesia brasileira.
fome e miséria crescentes. Mas alguém tem que pagar a orgia de desperdício e de
Segundo dados do IBCE, a participação dos setores lucros da burguesia. Para tanto, eles se organizam muito bem.
produtivos na produção nacional caiu bastante nos últimos O governo é o intermediário entre as duas pontas - a ponta
anos. A Indústria, que em 1986 representava 45% do Produto que lucra, dos empresários, e a ponta que paga, dos trabalha-
Interno Bruto (PIB), em 1991 não passava dos 37,2%. A dores. O governo faz a política econômica, pela qual se define
agropecuária, outro setor produtivo, também caiu no mesmo a recessão, as elevadas taxas de juros e, finalmente, uma
período - de 11,5% (1986) para 10,8% (1991). Os setores repartição de recursos públicos que provoca não apenas in-
improdutivos subiram, também no mesmo período, de 51,1 % flação mas principalmente a transferência de uma montanha
(1986) para 60%. Em resumo, produziu-se relativamente menos gigantesca de recursos para o setor empresarial. Esta transfe-
e se desperdiçou relativamente mais, na economia brasileira. rência se faz diretamente, como no caso Eliseu - Odebrecht,
Mas o desperdício de trabalho, na economia capitalista, é em que se liberou 115 milhões de dólares para irrigar os lucros
também uma fonte de grandes lucros. O mesmo gerente de da empresa e os bolsos dos cupinchas envolvidos na operação.
Price, citado acima, conta o caso do setor higiene e limpeza: em Mas a maior transferência de recursos para as empresas se faz
1989 teve aumento de vendas de 25% e um lucro de 6%. Em através da taxa de juros pagas pelo governo ao setor privado.
1990, com o aumento da recessão, as vendas cairam 20% mas Isto se realiza através do item do orçamento do Tesouro
o lucro, milagrosamente, subiu para 20%. Em 1991, o resul- Nacional denominado Encargos da Dívida Pública Mobiliária
tado das vendas foi novamente negativo e os lucros continuam Federal. É um nome complicado para a vulgar operação de
subindo. Produção, salários e vendas caindo, desemprego e agiotagem dos empresários sobre o dinheiro público. Segundo
lucros aumentando. O caso do setor industrial higiene e limpeza os últimos dados publicados pela Secretaria do Tesouro
pode ser generalizado para o restante dos ramos econômicos. Nacional, ocorreu a seguinte variação de alguns itens impor-
Receita do milagre? Elevados rendimentos das aplicações no tantes do orçamento federal, no período janeiro a abril deste
setor financeiro, de um lado, e poder de reajustar os preços ano (1993), comparando se com o mesmo período do ano
das mercadorias no prazo mais curto possível. Se as empresas passado (1992).
têm duplo expediente, de conseguir elevadas taxas de juros • Custeio e Investimento (-) 2,28%
154 José Antônio Martins A riqueza do capital e a miséria das nações 155

• Pessoal e Encargos Sociais (+) 29,26% Receitas e lucros


• Encargos da Dívida Pública Mobiliária Federal (+) (em milhões de dólares)
1,240,35% 1990 1991 1992

É bom salientar que estes índices representam variações Receitas com títulos públicos 10.584 8.000 29.556
reais (já descontada a inflação). Ou seja, enquanto as despesas Receitas com operações de crédito 24.397 22.117 29.035
federais com custeio e investimento estão caindo, as despesas Lucro líquido 517 741 897
com juros pagos aos agiotas do setor privado subiram mais
de 1200%. Normalmente, estes agiotas e seus economistas (Obs Bradesco, Itaú, Bamerindus, acional, Real, Safra e Unibanco)
de plantão alegam que o governo precisa enxugar seus gastos
com pessoal para combater o déficit público. Mas estes Em 1990 e 1991 os ganhos com Títulos Públicos equi-
gastos com pessoal subiram apenas 29,26% no período, valem a menos da metade dos ganhos com Operações de
frente aos 1.240,35% do pagamento de juros para os títulos Crédito. Ou seja, os bancos ainda ganhavam mais com as
do governo que compõem a dívida interna. Qual o item que operações normais de empréstimos ao mercado privado (Ope-
o leitor realmente reduziria a zero, para efetivamente com- rações de Crédito). Em 1992, como resultado da política de
bater o déficit público e, consequentemente a inflação? E se Marcílio Marques Moreira, que elevou a inflação mensal e as
o leitor aproveitasse - pensando na recuperação do cres- taxas de juros, os ganhos dos bancos com Títulos Públicos já
cimento - e aumentasse o item custeio e investimento, na superava os ganhos com Operações de Crédito. Neste ano de
medida em que ele reduz despesas improdutivas com juros? 1992, os bancos também tiveram um lucro líquido recorde:
O déficit público poderia até continuar em um certo nível, 897 milhões de dólares.
mas o resultado seria a queda da inflação e a recuperação
do crescimento econômico. Isto por uma razão muito sim-
ples: os recursos públicos estariam se encaminhando para os
setores produtivos da economia, e não para o desperdício
improdutivo. Tome a sua decisão.
Do modo como está sendo conduzi da a política econô-
mica, quem mais tem lucro no sistema são os bancos. Con-
forme dados publicados pelo jornal O Estado de São Paulo,
de 10 de maio, os principais bancos privados brasileiros
tiveram as seguintes receitas e lucros:
o COMÉRCIO DA

INFLAÇÃO E DA MISÉRIA

A evolução do comercio exterior brasileiro (exportações e


importações) é bastante particular e cheia de ilusões. Parece
não encontrar paralelo com nenhuma outra economia mun-
dial. Em primeiro lugar, parece não tomar conhecimento da
profunda desaceleração econômica internacional. As exporta-
ções brasileiras cresceram de janeiro a agosto de 1993 a uma
taxa de 11,3%, sobre igual período do ano passado. No mês
de agosto passado as exportações cresceram 16,8 % sobre o
resultado de agosto do ano passado. Ou seja, as vendas
externas brasileiras crescem a taxas japonesas, diferentemente da
grande maioria dos países subdesenvolvidos. Em segundo
lugar, mesmo com a redução generalizada das alíquotas de
importações, que já estão no mesmo nível de economias
neoliberalizadas da América Latina, como Chile, Argentina,
México, Venezuela, etc. Continua acumulando enormes
158 José Antônio Martins A riqueza do capital e a miséria das nações 159

superávits comerciais. com as exportações superando larga- ajuste anti-inflacionário, que eliminaria um importante fator
mente as importações. Quer dizer, ao mesmo tempo em que de sustentação das exportações brasileiras. Trata-se das extra-
se abre o mercado interno às mercadorias
externas , aumen- ordinárias taxas de juros internas, provocadas unicamente
tando 26,8% o volume importado de janeiro/agosto deste ano, pelas desastrosas condições das finanças públicas nacionais. As
em relação ao mesmo período do ano passado, a meta prevista elevadas taxas de juros transformam os negócios de exporta-
é de 15 bilhões de dólares de superávit (exportações menos ção em um lucrativo meio de se vender barato a produção e
importações) . compensar essa liquidação com o diferencial de juros internos
As exportações brasileiras são sustentadas em grande e externos. No momento em que estabilizar a economia, e
medida pelas condições salariais e inflacionárias que predo- consequentemente se equalizarem os juros internos e ex-
minam na economia. Os salários dos trabalhadores estão entre ternos, as exportações brasileiras cairão abruptamente, em
os menores do mundo. A competitividade das mercadorias direção às mesmas condições dos pobres parceiros latino-
brasileiras é garantida por essa situação de miséria da maior americanos. São essas condições financeiras excepcionais alia-
parte da população brasileira. Mas esta é um condição neces- das e uma queda persistente da capacidade de compra do
sária, porém não suficiente, para explicar a atual capacidade mercado interno (arrocho salarial que atinge os operários e
exportadora brasileira. Afinal, a maioria das grandes econo- grande parte da classe média assalariada) que também contêm
mias da América Latina tem essa mesma deformação salarial, momentaneamente uma explosão de importações. Mas nesse
mas não a transforma em vantagem comparativa como o Brasil. caso das importações, a manutenção das elevadas taxas de
Ao contrário, como dito acima, todas estão diminuindo suas juros internas que é mais determinante. A explosão de impor-
exportações e aumentando catastroficamente seus déficits tações, já preparada pela derrubada neoliberal das alíquotas
comerciais. O México. por exemplo, que se integra cada vez de importação, correrá no momento em que a taxa de câmbio
mais ao NAFTA (Mercado Comum, Estados Unidos, Canadá não for mais alavancada pelos juros internos.
e México), teve um déficit comercial de mais de 20 bilhões E, frente a essas con d içoes
- .'
excepCIOnaIS da economia
de dólares no ano passado, e deve repetir a dose neste ano. brasileira que se deve entender a folgada posição das reservas
A Argentina também acumulou déficit de mais de 5 bilhões internacionais - mais de 25 bilhões de dólares. Qualquer
de dólares no ano passado e continua no mesmo caminho plano de estabilização para valer, que realmente ataqu~ as
nesse ano. causas da inflação brasileira, eliminando a sangna fiscal
Mas os exportadores brasileiros não devem se entusiasmar provocada pelo elevado custo financeiro da dívida pública,
demais com essa proeza frente a seus parceiros latino-ameri- transformará com muita rapidez o quadro atual do setor
canos. Na verdade, eles escapam da vala comum dos subde- '
externo da economia. H avera uma rapi ' 'da diminuição do _
senvolvidos porque aqui ainda não foi aplicado um plano de d
superávit comercial, com a que d a as exp ortações e ace1eraçao
160 José Antônio Martins

da importações, evaporando-se com mesmo ímpeto as reservas NOVOS PESOS


internacionais.
Não é por acaso que medidas como unificação cambial E MEDIDAS
âncora cambial e, finalmente, dolarização da economia, estão ------+-----_.-
no centro de qualquer plano de estabilização previsto pela
atual equipe econômica. São medidas compatíveis com as
necessidades de reformas neoliberais preconizadas pelos or-
ganismos internacionais - FMI, Banco Mundial, etc. - e
com o papel que está reservado para o Brasil no atual quadro
de crise econômica mundial. Um papel que significa, entre
outras coisas, o fim das ilusões de que o Brasil tem capacidade
competitiva no turbulento comércio internacional. A
dolarização da economia é o complemento que falta para as
medidas de liberalização de tarifas já realizadas a partir do
governo Collor. Depois, é só presenciar a inundação de
As exportações brasileiras guardam alguns segredos que são
mercadorias e serviços externos, a disposição adequada do
importantes para pensar as próprias perspectivas desta
Brasil como mais um importante escoadouro para as monta-
economia, particularmente das possibilidades de um novo
nhas de capital - mercadoria que se acumulam nos estoques
relacionamento externo mais de acordo com os reais inte-
dos Estados Unidos, CEE, e Japão. Depois, é só verificar que
resses nacionais. Na verdade, não se trata exatamente de
na base do triunfalismo atual dos elevados superávits comer-
segredos, mas de mudanças estruturais que ocorrem na
ciais e de estoques de reservas internacionais, esconde-se uma
produção c no comércio da economia nacional no período
frágil produtividade nacional, tão incapaz de competir com
mais recente-
as grandes economias quanto o resto das economias depen-
A pauta de exportações brasileiras está extremamente
dentes e sub-desenvolvidas do Terceiro Mundo. Na base do
diversificada. Já vão longe os tempos em que o Brasil expor-
comércio externo esconde-se a miséria crescente dos assala-
tava mais de 50% apenas em grãos de café. O Mistério da
riados e a sangria dos recursos públicos.
Indústria e Comércio divulgou uma lista de produtos mais
[1993]
significativos da pauta de exportações. Os produtos dessa
tabela representam 54,46% do total exportado, em valor,
sendo portanto o bloco mais dinâmico e significativo para se
162 José Antônio Martins A riqueza do capital e a miséria das nações 163

pensar em uma política mais consistente de participação no Se o mundo não tivesse mudado nos últimos trinta anos,
mercado mundial. talvez as mudanças da economia e da sociedade brasileira não
Esses dados devem ser analisados, em primeiro lugar, tivessem também mudado. Pelo menos na dimensão e na
dentro de uma perspectiva histórica. Os produtos primários profundidade com que se apresentam essas mudanças. A
representam hoje 25% do total das exportações brasileiras e os mesma coisa aconteceu com os compradores das mercadorias
produtos manufaturados e sem i-manufaturados (ou industriali- exportadas pelo Brasil. O mesmo Ministério da Indústria e
zados) representariam 75% do total. Há trinta anos atrás, os Comércio divulgou a participação de cada um dos países
produtos primários representavam mais de 80% das exportações importados no total das vendas brasileiras.
e os produtos industrializados menos de 20% do total. O café Do mesmo modo que as mercadorias exportadas, os
em grão, que representava mais de 50% do total das exporta- compradores se diversificaram bastante nos últimos tempos.
ções brasileiras, agora não passa de 2,53% do total. Há trinta anos atrás, os Estados Unidos representavam sozi-
Essa mudança estrutural dos produtos exportados pelo nhos mais de 50% das compras das mercadorias vendidas pelo
Brasil exprime de alguma forma as profundas mudanças eco- Brasil. Agora, representam apenas 20%. Em termos de blocos
nômicas, sociais e políticas que se desenrolaram no interior econômicos, os Estados Unidos são superados pela Comuni-
da sociedade. Exprime, por exemplo, uma grande expansão do dade Econômica Européia, que consome 25% das exportações
capital industrial frente à velha propriedade agrária. O poder brasileiras e, finalmente, pela América Latina, que consome
econômico mudou de mãos dentro das classes dominantes, o mais de 23% dessas exportações. O bloco asiático consome
que significa uma potencial reversão do comando do Estado 15%, incluindo-se aqui o Japão, que consome 6,34% do total
e da representação política das diversas classes sociais (inclu- exportado pelo Brasil.
indo a classe trabalhadora) nesse mesmo Estado. Apenas A política externa brasileira pôde mudar radicalmente do
potencial, é bom que se diga, pois até agora permanece uma que era até os anos 60 e 70, levando-se em consideração os
predominância dos princípios políticos do velho latifúndio seus interesses econômicos nacionais. Em primeiro lugar com
improdutivo, para não dizer das pessoas, comandando a relação aos Estados Unidos, que perderam nesse período a sua
política do Estado nacional. Talvez essa permanência dos hegemonia na economia internacional frente à Europa e o
velhos métodos políticos não possa ser caracterizada como Japão. Esta queda do monopólio americano se reflete também
contradição, e muito menos como antagonismo, entre os na sua queda como principal comprador do Brasil. A política
interesses políticos e os interesses econômicos da burguesia externa brasileira deve se dirigir para uma multilateralidade
industrial no seio do Estado nacional, mas provoca, com muito mais clara, daqui para a frente, não cedendo aos apelos
certeza, a enorme crise e dilaceração do tecido social que se de volta ao alinhamento automático com aquela velha super-
aprofunda cada vez mais nos anos recentes. potência da época da Guerra Fria. Um retorno à velha
164 José An t n io
õ Marfins

geopolít:ca brasileira significaria também um grave erro eco-


o SALÁRIO MÍNIMO
nôrnico, na medida em que as transformações econômicas e
sociais ocorridas no Brasil não cabem mais no velho figurino
o E S M T H
--- -+-------~
Jgro-c~,:portador dos anos 50.
Quanto à adesão a qualquer dos blocos econômicos, vale
também c..análise acima, que mostra que não haveria nenhuma
vanragerr para o Brasil se integrar ao NAFTA (mercado
comum comandado pelos Estados Unidos, incluindo Canadá
e MéXiCO) Este próprio bloco encontra enormes dificuldades
de se realizar, com oposição dos trabalhadores e, agora, com
a ODOSíÇJO do novo governo elei to no Canadá. Resta para o
Brasil reconhecer a importância econômica da América Latina ,
que se exprime nos dados acima como o seu mais importante
e natural parceiro para um estreitarnento de relações políticas
De novo o salário mínimo. Ou melhor, nada de novo com
e integração econômica. A oposição dos Estados Unidos a
o salário mínimo no Brasil. A cada mensagem do governo,
uma autonomia econômica crescente do seu antigo quintal,
periodicamente enviada ao Congresso e aprovada, a realidade
pode ser melhor enfrentada com uma visão mais política,
continua a mesma: o Brasil é o país onde se paga um dos
popular e cultural nos objetivos da integração do Mercosul
menores salários mínimos do mundo. Nos últimos dez anos
, que pode perfeitamente ser ampliado para toda a América
o valor do salário mínimo brasileiro girou em torno de uma
do Sul e outras áreas e países da América Central e Antilhas.
média de 60 dólares por mês. Em países como Estados Unidos,
O Brasil não teria nada a perder, em termos econômicos, com
Alemanha e Japão este é o salário mínimo diário. Lá se paga
uma decidida política externa de maior integração e coope-
por dia o que aqui se paga por mês.
ração com a área latino-americana, cornplernentada por uma
Será que 1.200 dólares mensais, que se paga nas econo-
aproximação mais decidida com a Comunidade Econômica
mias industrializadas, é um salário muito elevado! Absoluta-
Européia e com a área asiática. E deixe Roberto Campos
mente. Aquele salário serve muito mal para que os trabalhadores
ralando o contrário para os incautos que ainda não foram
simplesmente se reproduzam em condições razoáveis. Isto
avisados que café e Estados Unidos deixaram há muito tempo
quer dizer que os trabalhadores recebem o salário necessário para
de ser importantes para a economia brasileira.
que possam se alimentar, se alojar em um imóvel simples, se
[1993]
166 José Antônio Martins A riqueza do capital e a miséria das nações 167

transportar, etc. Não serve para nenhum luxo, para nada além rica, na medida em que a teoria deve também justificar a
da compra dos bens necessários à sua reprodução física e, existência do capitalismo como modo de produção estável,
quando possível, também à sua reprodução mental, necessária capaz de reproduzir a espécie humana. É claro que um modo
para aprender e suportar a cadência infernal do trabalho na de produção incapaz de reproduzir economicamente a espécie
produção. humana perde a sua justificativa e instala a catástrofe, exigin-
Desde a época dos economistas clássicos, aqueles que do-se então a revolução por uma nova sociedade que possa
fundaram a ciência econômica, sempre foi muito difícil garantir aquela reprodução estável.
determinar o valor deste rendimento chamado salário. Para Historicamente, os capitalistas não foram tão racionais
Adam Smith, por exemplo, um dos pais da teoria econômica, quanto os seus ídeólogos da teoria econômica. Eles sempre
o salário do operário livre seria regulado pelo valor do tentaram, e continuam tentando, em todas as partes do
trabalho do escravo americano. O escravo, dizia aquele mundo, pagar salários abaixo daquele mínimo necessário. Mas
autor, fornece a seu dono o dobro dos bens necessários à a resistência econômica dos trabalhadores e a possibilidade de
sua subsistência. Isto seria uma norma válida igualmente para revolução obrigam os capitalistas a pagar o salário mínimo de
regiões onde se utilizava o trabalho assalariado, a Inglaterra Smith aos trabalhadores. Quando o livre mercado não é capaz
de Smith, por exemplo. Em resumo, naquele momento um de arbitrar este salário, o Estado liberal cede lugar a formas
salário correspondendo a uma taxa de mais-valia de t 00% mais organizadas das burguesias nacionais como a social-
seria o salário mínimo ou salário normal dos economistas. Os democracia , o stalinismo ou mesmo o fascismo. Na maior
economistas tinham a necessidade de uma medida positiva, parte das vezes esta organização estatal das burguesias aparece
objetiva, para se determinar o valor dos salários. Encontra- em formas híbridas de social-democracia, stalinismo, fascismo
ram no trabalho escravo. O salário justo seria, portanto, aquele ou liberalismo. A preponderância maior ou menor de uma ou
que fornecesse o mínimo necessário à reprodução dos tra- outra destas formas política depende de muitos fatores naci-
balhadores. onais e mesmo internacionais. Mas o que mais pesa é a própria
A partir do estabelecimento do salário mínimo os econo- situação de acumulação de um determinado país. As possibi-
mistas puderam desenvolver o restante da teoria econômica. lidades mais favoráveis ou mais difíceis para os capitalistas
Puderam contar, digamos assim, com uma medida racional acabam determinando a forma política em que os diversos
para o salário: uma quantidade de valor que correspondesse países se organizam.
a uma quantidade de bens necessários à manutenção e à Mas o sistema capitalista não se organiza apenas nacio-
reprodução dos proletários. Em nenhum momento da teoria nalmente. Quando a acumulação passa a ser comandada pela
econômica se supõe que o salário mínimo possa ficar abaixo expansão global, também o estabelecimento do salário mínimo
passa a ser determinado com enormes d esproporçoes- fr ente
deste mínimo necessário. Isto seria uma irracionalidade teó-
168 José Antônio Martins

àquele salário mínimo necessário. O que conta, neste nível de


acumulação mundial, é a forma como algumas economias IMPOSTOS, AGRESSÃO
dominantes se relacionam com a grande maioria de economias
dominadas dentro de uma ordem imperialista de produção e CONTRA O S
comércio. Nestas condições necessárias ao desenvolvimento
do ser capital, a catástrofe da reprodução da espécie não é
mais uma exceção, mas a regra reservada para a grande maioria
da população mundial, exatamente aquela que se amontoa em
TRABALHADORES
-_._--- •.-----

economias dominadas como o Brasil, a Índia, o México, a


Rússia, China, Egito, África do Sul, Argentina, Irã, Ucrânia,
Albânia, Polônia, etc.
O salário mínimo no Brasil, para permitir simplesmente as
condições que marcavam a reprodução dos escravos, deveria
ser hoje de mais ou menos 1.200 dólares por mês. Este salário
permitiria uma reprodução mínima para os trabalhadores e
seus filhos. O salário do DIEESE deve estar batendo hoje na Diga-me como é repartida a cobrança de impostos e te direi
metade daquele salário. Mas acontece que o DIEESE parte do que Estado te comanda. De um modo objetivo, as classes
salário mínimo de Getúlio Vargas, estabelecido em 1941, e dominantes sempre pagam menos impostos do que as classes
este foi um salário que significou um enorme arrocho salarial dominadas. Afinal, o Estado existe sempre para organizar a
frente aos salários da década de vinte e cõrneço dos anos dominação de algumas classes sobre outras. No regime
trinta. Não é um salário compatível digamos assim, com um capitalista não poderia ser diferente. Mas mesmo nesse
ideal social-democrata. Este ideal supremo dos escravos-assa- regime, as coisas não se passam de forma igual entre as
lariados só poderá ser alcançado quando o valor do seu diferentes economias. As diferenças estão justamente na
trabalho alcançar aquilo que corresponda à remuneração dos proporção dos impostos pagos pelas classes no bolo total
. escravos do século XVIII, que Adam Smith calculou, com uma arrecadado. Diferenças, em primeiro lugar, entre impostos
certa exatidão, como o salário justo do modo de produção .'
progressivos .
e Impostos regressivos P rog ressivos (ou dire-
capitalista. O resto é pura irracional idade e barbáric ca- tos) são aqueles cobrados sobre a renda, sobre o capital e
pitalista. sobre a propriedade. Quanto maior. a re nda , o capital o a
[1992 ] propriedade maior a proporçao- d o irnp
. osto cobrado das
, I - , 1 sses dominadas. Re-
classes dominantes, com re açao as c a
170 José Antônio Martins
A riqueza do capital e a miséria das nações 171

gressivos (ou indiretos), ao contrário, são aqueles impostos Na tabela acima, os principais impostos progressivos são
cobrados de maneira que atinge todos as pessoas, indiferen- os impostos sobre os Rendimentos, também chamado de
temente ao tamanho da sua renda, do seu salário ou da sua Imposto sobre a Renda, e o Imposto sobre a Propriedade. São
propriedade. Com os impostos progressivos participando em cobrados diretamente sobre o lucro, o capital e a propriedade.
maior proporção no total de impostos arrecadados, haveria Verifica-se então que o Imposto sobre os Rendimentos repre-
um grau maior de justiça tributária. Com os impostos regres- senta, no Brasil, apenas 9,1 % do Produto Bruto (PIB) e 35,8%
sivos, ao contrário, haveria um grau maior de injustiça do total de impostos arrecadados. Na OECD ao contrário,
tributária.
esse imposto representa 24,5% do PIB e 63,1 % do total de
Estas diferenças aparecem com maior clareza, quando se impostos arrecadados. Ou seja, a estrutura de impostos da
compara as diferentes estruturas tributárias do Brasil e as OECD é altamente progressiva, é uma estrutura com elevado
economias desenvolvidas. A Organização Econômica para o grau de justiça tributária. No Brasil, a estrutura é altamente
Comércio e Desenvolvimento (OECD) inclui as principais regressiva, com baixo grau de justiça tributária.
economias da Europa Ocidental, Estados Unidos, Japão e Isto fica mais evidente quando se compara os Impostos
Canadá.
sobre a Propriedade de um e outro. Na OECD cobra-se 2,1 %
do PIB com este imposto, que representa 5,5% do total de
Brasil e OECD: categoria dos tributos
impostos arrecadados. No Brasil não se cobra nada sobre a
propriedade. É claro que aqui existem o Imposto Territorial
Brasil 1990 OECD 1987 Rural (ITR), que incide sobre as propriedades rurais, Imposto
% PIB % Total % PIB % Total sobre Transmissão de Bens imóveis, o Imposto sobre Heran-
Impostos sobre Rendimentos 9, I 35,8 24,5 63, I ças, etc., mas na prática eles representam tão pouco efeti-
Impostos sobre pessoas físicos 2,6 10,2 12,0 30,9 vamente que nem aparecem na tabela. São sistematicamente
Imposto sobre pessoas jurídicas 1,4 5,5 3,0 7,7 sonegados, em sua quase totalidade.Os principais impostos
Contribuições sociais 5, I 20,0 9,5 24,4 regressivos, que atingem as pessoas indistintamente, são os
Impostos sobre Consumo 16,3 64, I 11,8 30,4 Impostos sobre Consumo. Quando um trabalhador que re-
Imposto sobre Propriedade
2, I 5,5 cebe salário mínimo compra uma caixa de fósforo, um quilo
Outros Impostos 0,4 1,0 de arroz um litro de leite um caderno, etc., ele está pagando
Total dos Impostos 25,4 100,0 38,8 100,0 o mes~o imposto que' Itamar Franco, Ronaldo Caiado,
Antônio Ermírio Olavo Setúbal, etc., etc., pagam quando
Fonte Gazeta Mercantil (09/09/93)
compram as mercadonas citadas. No Brasil, os Impostos
sobre o Consumo representam 16,3% do PIB e 64,1% do
A riqueza do capital e a miséria das nações 173
172 José Antônio Martins

sobre Heranças, etc. Tudo em nome do liberalismo econô-


total dos impostos arrecadados. Calcula-se que um trabalha-
mico e da diminuição do Estado na economia. Quer dizer,
dor que ganha salário mínimo, no Brasil, paga aproximada-
do aumento do subdesenvolvimento, da dependência ao
mente 30% deste salário em impostos (lCM, IPI, etc). Na . . I' mo e da pobreza da população trabalhadora.
Impena IS ]
OECD, ao contrário do Brasil, os Impostos sobre Consumo [i993
representam apenas 11,8% do PIB e 30,4% do total dos
impostos arrecadados. O total dos impostos pagos no Brasil
representa 25,4% do PIB e na OECD representa 38,8% do
PIB. Ou seja, aqui se paga muito menos impostos do que nos
países de centro capitalista. Isto quer dizer, em primeiro
lugar, que o Estado brasileiro é muito mais fraco do que lá,
aqui se intervém muito menos na economia do que lá. Mas
quer dizer também, como se viu anteriormente, que essa
fraqueza do Estado capitalista brasileiro é compensada por
uma proporção da carga tributária cobrada dos trabalhadores
e dos pobres muito maior do que a carga cobrada sobre as
classes prorietárias e ricas. Essa fraqueza do Estado brasileiro
frente aos Estados do centro capitalista é a causa do subde-
senvolvimento e dependência da economia brasileira frente
ao desenvolvimento e a dominação das economias centrais
da OECD.
As classes dominantes brasileiras estão ansiosas para
alterar a estrutura tributária na revisão constitucional, que
será realizada a toque de caixa. Essas classes dominantes
acham que se paga muito imposto no Brasil. A proposta da
FIESP, apresentada nesta semana, prevê uma redução dos
25% do PIB arrecadados atualmente, para 22,5% do PIB.
Querem também uma eliminação da Contribuição Social
sobre o Lucro, e a eliminação dos impostos sobre o patrimônio
e as propriedades, como Imposto Territorial Rural (latífún-
dio), o imposto sobre Transferência de Imóveis, o Imposto
FHC-2: O HAITI É AQUI

A forma como a grande imprensa tem veiculado os avanços


para o obscuro plano FHC-2 - as dificuldades e acordos para
a aprovação de algumas medidas fiscais no Congresso, as
indefinições quanto à natureza e a forma como será implan-
tada a URV, que deve ser transformada não se sabe quando
na nova moeda, etc., - esconde os verdadeiros objetivos da
política econômica comandada por FHC, o ministro que quer
ser presidente da República. A imprensa trata tudo isso como
se estivesse em curso apenas mais uma tentativa, relativamente
bem intencionada, de combater o grave quadro inflacionário
nacional. No entanto, o que está por trás de tudo isso são
poderosos interesses internos e externos, o que se pretende
fazer nos próximos meses é uma enorme modificação política
e econômica das classes dominantes sobre a economia e a
sociedade.
A riqueza do capital e a miséria das nações 177
176 José Antônio Martins

A inflação brasileira é a única que ainda teima em se dólares. É o suficiente para se imaginar uma nova moeda
manter em elevados níveis, quando todo o resto da América nacional atrelada ao dólar. Essa é uma medida que tem boas
Latina já implantou seus ajustes, não havendo mais nenhuma chances de reduzir e quase eliminar os elevados índices de
outra economia deste continente que tenha taxas de inflação inflação atuais. Na Argentina, no México, na Venezuela, a coisa
superiores a 20% ao ano. No Brasil, a taxa é de 40% ao mês. foi feita de uma forma bem parecida. Nesses países a inflação
No Brasil, ainda restam as mais lucrativas empresas estatais, não passa dos 20% anuais. Mas nesses países a dolarização da
enquanto nas outras economias latino-americanas tudo já foi economia significou também um enorme enrigecimento na
privatizado. O Brasil ainda tem uma política cambial que capacidade de se fazer políticas econômicas, fiscais e monetá-
promove exportações e de certo modo segura a explosão de rias. Nesses países, é quase impossível agir para promover o
importações, o que ainda produz enormes superávits comer- desenvolvimento econômico, combate à especulação, equilibrar
ciais. Nas outras economias, as importações inundam seus o comércio externo, fazer políticas de rendas para minimizar
mercados internos, gerando déficits comerciais crescentes e as enormes misérias sociais, etc. Em outra situação, mesmo com
de valores absurdos. moedas nacionais deterioradas, com inflação e desequilíbrios
Tudo isso junto significa que o Estado ainda está muito fiscais, ainda se pode influenciar as mais importantes variáveis
presente na regulação da economia, apesar das tentativas feitas macro-econômicas nacionais, como tem acontecido no Brasil
durante o curto período do governo Collor terem abalado em até agora. Mas quando se atrela a moeda nacional ao dólar,
alguns setores os alicerces da velha organização econômica quando todo o equilíbrio da economia passa a depender de um
nacional. Foi o caso da redução profunda das tarifa de impor- enorme e constante fluxo de capitais monetários externos,
tação, das desregulamentações para entrada e saída de capitais aliena-se ao mesmo tempo qualquer possibilidade de intervir
externos, etc. Entretanto, no fundamental, a burguesia brasi- nacionalmente no processo econômico. Fica-se passivamente a
leira ainda não foi capaz de organizar e executar uma decidida espera das decisões e acontecimentos do capital externo e dos
política de liberalização do mercado interno, não foi capaz organismos internacionais como o FMI, Banco Mundial, etc.
ainda de reorganizar o Estado, de acordo com as pressões e Instala-se uma rígida tutela da economia nacional aos movimen-
necessidades externas, para acompanhar o restante das eco- tos internacionais do capital. A dolarização da economia é
nomias dominadas e subdesenvolvidas da América Latina no condição básica, fundamental, para que a globalização do
tortuoso caminho do neoliberalismo. capital especulativo internacional navegue com liberdade e
Por trás das aparentemente ingênuas medidas do Plano desenvoltura no mercado interno das economias dependentes,
FHC-2 está a decisão de se agir para que essas tarefas tardias absorvendo como uma enorme esponja os recursos públicos, as
neoliberais sejam realizadas. rendas individuais, e desarticulando catastroficamente o apare-
As reservas internacionais já passam dos 30 bilhões de lho produtivo existente.
178 José Antônio Martins A riqueza do c ab ital e a miséria das nações 179

Em resumo, o ajuste monetário baseado na dolarização demanda em uma economia subdesenvolvida, estruturalmente
certamente provoca uma redução dos índices inflacionários - despreparada para concorrer de igual para igual no mar
o que não significa absolutamente uma solução definitiva para povoado de tubarões do mercado internacional, é o objetivo
a inflação - mas provoca ao mesmo tempo uma desorgani- das próximas manobras do congresso revisor. Querem que
zação muito maior da antiga economia, sem que se coloque tudo seja resolvido nos próximos dois meses, com a pressa de
nada em seu lugar. Nada que se assemelha a uma retomada quem tem que fazer a eutanásia do velho pai que teima em
do crescimento econômico e do emprego, nem no médio nem não morrer e não distribuir uma apetitosa herança para um
no longo prazo. No longo prazo, o único cenário da dolarização monte de aventureiros neoliberais, travesti dos de agentes da
é de terra devastada, indústria destruída e capacidade econô- modernização e da governabilidade dos mortos.
mica nacional reduzida a zero pela corrosiva especulação [i994]
financeira internacional. Tudo, evidentemente, com inflação
haitiana de no máximo 10% ao ano.
A dolarização é uma forma de se afastar o Estado da
economia. É a forma básica e necessária. Mas não é suficiente.
Restam outras formas de intervenção, como as empresas
estatais, as regulamentações do mercado, os incetivos fiscais
para determinadas atividades econômicas, como o comércio
exterior, a agricultura, os investimentos em ciência e tecnologia,
ete. Para completar o círculo do neolibralisrno, o plano FHC-
2 se articula com a revisão constitucional. Não foi por acaso
que a aprovação do pacote fiscal do plano acabou sendo feita
no âmbito da revisão, dando legitimidade a esta última e
comprometendo o governo com seu apoio para futuras me-
didas de mudanças na Constituição. Essas futuras medidas, que
a F1ESP pretende votar nos próximos dois meses, são justa-
mente aquelas que alteram os capítulos da ordem econômica
estatais, sistema financeiro, Banco Central, empresas estran-
geiras, estrutura agrária, mercado de capitais, sistema tribu-
tário, ete. O afastamento do Estado e a implantação do
liberalismo puro, do reino do livre jogo da oferta e da
URV: o SALTO NO
ESCURO DA BURGUESIA

FHC lançou a nova fase do seu plano de estabilização com


um discurso recheado de muitas mentiras. A primeira delas é
que "ninguém vai perder" com o pacote da URV baixado na
última segunda-feira. Só que ele não se esqueceu de indexar
apenas os salários dos trabalhadores à URV, deixando livres
os demais preços da economia. Os atos valem mais do que
as palavras. Fica a certeza que os trabalhadores não estão
incluídos entre aqueles que não vão perder com a implantação
do pacote.
A segunda mentira é que o volume de dólares que
atualmente abarrota os cofres do Banco Central - fala-se
em 35 bilhões de dólares de reservas internacionais -
asseguram um lastro confiável para se implantar a nova
moeda, o real, que deve substituir dentro de alguns meses
o cruzeiro real.
182 José Antônio Martins A riqueza do c ab i t al e a miséria das nações 183

Outra mentira é que o plano de estabilização se assenta passagem para a nova moeda, FHC está na verdade dizendo
em um orçamento equilibrado. Que a soma das receitas e que os salários são os verdadeiros vilões da orgia inflacio-
despesas vai caminhar de agora em diante sem qualquer nária. Os salários, na realidade, já estão agora congelados
sobressalto que possa obrigar o governo a gastar mais do que na nova moeda, aguardando, não se sabe por quanto tempo,
arrecada, o que desmontaria a veleidade monetária de garantir que os demais preços também sejam amarrados na camisa de
a estabilização apenas com o sacrossanto equilíbrio formal das força do novo indexador. Até lá tudo pode acontecer,
contas públicas. inclusive uma hiperinflação de cruzeiros reais, através de
Finalmente, outra grande mentira do perfumado candida- uma correção diária e generalizada dos preços.
to a presidente da República - que se propõe como alter- Mas FHC diz com todas as letras que o problema da
nativa burguesa para barrar a vitória das forças populares e inflação brasileira está no desequilíbrio das contas públicas.
operárias nas próximas eleições, representadas pela candida- Ele toma o cuidado de não qualificar esse desequilíbrio, ele
tura de Luís Inácio Lula da Silva - é o próprio diagnóstico não diz quem provoca esse desequilíbrio. Para o FMI são as
da inflação no Brasil. Para FHC todas as mazelas inflacionárias despesas correntes de custeio e de investimentos do governo,
se localizam apenas no setor público da economia, salvando quer dizer, despesas com saúde, educação, transporte, salá-
da responsabilidade toda a máfia de parasitas nacionais e rios dos funcionários públicos, aposentadoria, ete. Para o
internacionais que poderão continuar saqueando livremente a FHC, também. Nem o FMI nem FHC consideram o enorme
produção nacional e, simultaneamente, o dinheiro público. peso das despesas com a dívida interna e com a dívida
Seria muito difícil responsabilizar os salários, o consumo externa - aproximadamente 60% do orçamento da união
dos trabalhadores, como elementos geradores de inflação no - como o problema central do orçamento. Diagnóstico
Brasil. Afinal, o que se tem assistido nos últimos anos é um comum, remédio comum. Em primeiro lugar, cortar mais
rebaixamento sistemático dos rendimentos reais dos traba- fundo ainda as despesas sociais e de investimento do gover-
lhadores, acompanhado por um aumento avassalador dos no. Isso no lado das despesas. No lado das receitas, aumentar
demais preços da economia. É por isso que FHC não se os impostos do setor produtivo e, por último mas não menos
arrisca a cair no ridículo de afirmar que os trabalhadores são importante, acelerar as privatizações das empresas estatais
culpados pela inflação. Mas ele agiu como se fosse. Ao estratégicas - Telebrás, Eletrobrás, Vale do Rio Doce,
indexar (pela média, é bom não esquecer) apenas os salários Embraer, ete. Resultado da panacéia neoliberal e monetarista:
.' ntar
à URV, e portanto à inflação futura, à inflação da nova raspar o que puder do setor produtivo d a economIa, JU
. . ontoar
moeda que ainda está por vir, deixando os demais preços o que puder dos cortes nas despesas SOCIaIS, am ,
fluírem livremente para os picos imprevisíveis da inflação embalar e remeter todos esses recursos para os credores das
passada, sendo atrelados à URV só quando for feita a dívidas externa e interna.
184 José Antônio Martirls A riqueza do capital e a miséria das nações 185

Resumo dessa história: o diagnóstico da dupla FMI-FHC o Brasil, por exemplo, não passa de 30 milhões de dólares ,
não só isenta os parasitas nacionais e internacionais das um volume menor do que o IPTU arrecadado em apenas um
responsabilidades pelo estouro das contas públicas, como grande bairro de S. Paulo), enquanto as despesas são em sua
adota um remédio que beneficia apenas esses parasitas, que grande parte absorvidas pelos setores improdutivos e
vão poder encher ainda mais os seus cofres privados e bancar especulativos da economia (dívidas internas e externas , sub-
com mais desenvoltura a ciranda cada vez mais internaciona- sídios, transferências políticas, etc.).
lizada. Abre-se o caminho para um novo acordo com o FMI Mesmo que FHC conseguisse o fatalista equilíbrio orça-
para a renegociação da dívida externa nos moldes da Argen- mentário, a eliminação do déficit público, isso não significa
tina, México, Venezuela e outras desafortunadas economias a eliminação das instabilidade do setor público. Mas nem isso
latino-americanas. A Federação Brasileira dos Bancos _ vai acontecer. Na medida em que se estabelece o propósito
Febrabam - aplaude e pede apoio para o FHC-2. da equipe econômica em elevar ainda mais a taxa de juros da
O equilíbrio das contas públicas e a eliminação do déficit economia, com a desculpa também monetarista de controlar
público não são condições nem necessárias nem suficientes uma pretensa explosão do consumo, perpetua-se o aumento
para garantir uma estabilização sadia da moeda. Essa é uma das despesas financeiras do orçamento e, portanto, do déficit
visão errada dos economistas que seguem o receituário público. A causa fundamental do desiquilíbrio das contas
monetarista do FMI e que assessoram FHC. O que garante públicas não só permanece incólume no FHC-2, como vai ser
a estabilização da moeda de qualquer economia, no que diz crescentemente alimentada. Os beneficiados do déficit públi-
respeito ao orçamento, é a proporção que se estabelece na co criado pelas medidas econômicas serão os credores das
carga tributária (receitas), e na destinação dos recursos (des- dívidas públicas e, não menos importante, os ávidos investi-
pesas), entre setores produtivos e improdutivos da economia. dores externos que estão inundando a economia de hot-money
Pode até acontecer um déficit público, esse não é o problema. e elevando descontroladamente o estoque de reservas inter-
O problema é se a balança fiscal pende mais para os setores nacionais no Banco Central. O governo vai continuar gastan-
produtivos ou para os setores improdutivos da economia. Se do com os parasitas mais do que ele arrecada dos setores
pender para os setores produtivos, isso não significará insta- produtivos. Hiperinflação e desaceleração do nível de ativi-
bilidade nem pressão inflacionária. Se pender para os setores dade da indústria são o horizonte mais provável para a
improdutivos, certamente provocará mais instabilidade mone- economia brasileira.
tária, mais pressão inflacionária. A estabilização de FHC depende desesperadamente da
No caso do FHC-2, o peso da taxação (receitas), se manutenção do volume atual de reservas internacionais, no
concentra principalmente nos setores produtivos (toda a massa primeiro momento, e de uma rápida aceleração desse volume
de Imposto T erritorial Rural - ITR - arrecadada em todo à medida em que se desenrolar o plano. Se isso acontecer,
186 José Antônio Martins A riqueza do capital e a miséria das nações 187

pode-se prever uma ilusória redução das taxas inflacionárias, vas internacionais darão apenas um fôlego de curto-prazo
na medida em que se atrelar a nova moeda, o real, à taxa de para a estabilização dos preços. Na medida em que essas
câmbio. A redução das taxas inflacionárias vai depender do reservas se compõem primordialmente de entrada de recur-
grau de atrelamento da nova moeda ao valor do dólar. Se sos de curto-prazo, elas não poderão servir de suporte para
houver uma taxa fixa, imutável, da taxa de câmbio, como foi operações financeiras de longo-prazo do governo (pagamen-
feito na Argentina, que há três anos mantém a mesma cotação to de dívidas de longo-prazo, investimentos públicos, etc).
do peso com relação ao dólar, a possibilidade é de uma taxa Essas reservas só continuação estacionadas no Banco Cen-
de inflação muito próxima de zero. Mas os desiquilíbrios tral, enquanto as taxas de juros estiverem elevadas, as
produtivos e comerciais da economia apareceriam também privatizações dos setores estratégicos se acelerarem e a
com muita rapidez: recessão e déficit comercial externo. É o desregulamentação do mercado interno favorecer com mais
que está acontecendo no México, na Argentina e na Venezuela. profundidade o livre movimento do capital especulativo na
Essa é a hipótese da dolarização pura. economia. Nesse sentido, a manutenção do quadro atual das
Se o atrelamento da nova moeda ao dólar não for fixo reservas depende em grande parte de medidas que devem ser
e imutável, tomando o valor da moeda externa apenas como resolvidas no âmbito da revisão constitucional, o que é muito
um novo indexador informal, a possibilidade é de queda das provável que não aconteça.
taxas inflacionárias para níveis de 5 a 8% ao mês, talvez com Frente ao descalabro das finanças públicas e de uma grave
índices menores nos dois primeiros meses da nova moeda, desagregação do Estado nacional, a burguesia brasileira conta
mas se acelerando nos meses seguintes até voltar aos níveis com o plano FHC para recauchutar a situação e se manter no
atuais de inflação. Essa é a hipótese mais provável a ser comando do governo. Mas esse plano de se encaminhar no
adotada por FHC e Itamar. Seria um tipo de dolarização à sentido da dolarização e, ao mesmo tempo, garantir um
brasileira. candidato de centro para enfrentar a candidatura Lula, não vai
A manutenção dos atuais níveis de reservas internacionais ser de fácil administração, até as eleições de outubro-novem-
depende do acordo com o FMI e da assinatura de um novo bro. Não se trata apenas de um novo estelionato eleitoral, de
acordo da dívida externa. Essas coisas possivelmente aconte- um novo Cruzado, como alguns andam comparando com
cerão, a não ser que os fatores políticos internos e o estouro situações passadas. O plano FHC, da forma como está anun-
da hiperinflação em cruzeiros reais criem um ambiente de ciado, mexe profundalmente com o status-quo econômico in-
absoluto descontrole da situação, obrigando a saída de FHC terno e deve ser acompanhado por medidas de difícil consenso
e sua equipe do governo. para interesses da própria burguesia. Tudo isso porque um
De qualquer modo, mesmo que se consiga cumprir o aprofundamento de medidas neoliberais, mesmo que à brasi-
cronograma FMI-FHC, a manutenção e expansão das reser- leira, provoca mais incertezas e confrontos do que um mero
188 José Antônio Martins

congelamento de preços e salários. Osalto no escuro do atual A CIÊNCIA DA


plano de estabilização da burguesia abre o caminho também
para uma crítica mais radical e mais clara das forças populares MUDANÇA
e democráticas.

[1994J

Em todo o mundo capitalista está se operando uma profunda


reestruturação científica e tecnológica na produção de mer-
cadorias. O problema é que estas transformações, que poten-
cialmente poderiam ser incorporadas em uma perspectiva de
libertação da espécie humana, têm que se adaptar às condições
sociais de reprodução do capital. Para que este progresso
científicos e tecnológico se transforme em capital fixo e seja
mero instrumento de produção de lucro e de capital, toda a
população trabalhadora tem de sofrer a pressão do estrei-
tamento da demanda capitalista por trabalho vivo.
Na Europa e nos Estados Unidos, centro do sistema, as
condições de vida dos trabalhadores pioram com muita rapidez.
De um lado, aumento do desemprego. De outro, dimi-
nuição catastrófica da assistência social - seguro desempre-
go, saúde, educação, etc. A ilusão social-democrata, sempre
vendida aos trabalhadores como a solução capitalista para
190 José Antônio Martins A riqueza do capital e a miséria das nações 191

seus problemas, agora perde bases até em países como a sistema social, instala-se a ingovernabilidade e as formas
Suécia, Itália, Alemanha, Inglaterra, etc. O Estado capitalista políticas mais reacionárias. Para as classes dominantes bra-
é readaptado às novas condições produtivas de valores e de sileiras, o problema não é apenas o de superar seus atuais
lucro. O mercado mundial se desdobra em novas condições impasses econômicos, mas principalmente controlar politi-
de concorrência. No centro do sistema, as rivalidades eco- camente a maior parte da população trabalhadora em seus
nômicas entre as velhas potências tendem a se transformar eternos guetos de miséria e de destruição. Este é o sentido
em protecionismo, nacionalismo e guerras comerciais. da governabí/ídade tão apregoada pela burguesia nacional.
As economias da periferia e do Terceiro Mundo, que até Crise capitalista e governabílídade burguesa são dois
pouco tempo ainda conseguiam se isolar dos efeitos mais movimentos que obrigam os trabalhadores a se organizar
destrutivos da livre concorrência, já estão em sua quase autonomamente e a lutar contra as perspectivas econômicas
totalidade abertas para a desorganização do liberalismo catastróficas que estão embutidas nas propostas de se pre-
puro, imposto pelas potências centrais. O quadro atual é de servar a governabílídade do atual regime.
fragmentação de nacionalidades e guerras civis em várias As classes dominantes brasileiras estão sem perspectivas de
partes daquelas áreas e países despreparados para o livre- mudança da velha ordem para enfrentar aquela reestruturação
jogo do grande mercado internacional. científica e tecnológica na produção capitalista e nos mercados.
A análise concreta das condições internacionais e naci- Mas na perspectiva de uma solução dos trabalhadores, não se
onais, coloca os trabalhadores brasileiros diante de dois pode pensar em desenvolvimento científico e tecnológico da
movimentos. O primeiro é a perspectiva de uma nova rodada produção brasileira sem o pressuposto de uma profunda reforma
de destituição das forças produtivas nacionais, em que grandes de produção de alimentos, de habitação, do sistema de saúde,
contingentes de trabalhadores produtivos serão sacrificados do transporte coletivo e, finalmente, de uma revolução no ensino
para que a acumulação capitalista supere sua crise periódica. básico, universitário e nas pesquisas científicas. A ponta da ciência
O segundo movimento é que as classes dominantes de um país e do enriquecimento cultural de um país está imediatamente
dependente e dominado como o Brasil, não são capazes de ligada à ponta de condições econômicas e sociais que não
organizar seu Estado nacional com regras definidas marginalizem as grandes massas do processo social de produção.
As possíveis saídas para a crise econômica e social atual , Não é assim, entretanto, que pensam as classes dominantes do
propostas pela burguesia, jamais poderão reverter a situação Brasil e do mundo. É por isso que, nas condições atuais, a
de miséria da maioria dos trabalhadores brasileiros, que já necessária revolução produtiva brasileira não poderá ser coman-
se encontram há muito tempo desempregados e excluídos do dada pelas suas impotentes classes proprietárias, mas apenas por
mercado. Na medida em que as classes dominantes são uma nova forma de produtores associados.
incapazes de garantir a reprodução de um determinado [1993]

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