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m ú s i c a / p o e m a de Chico
Buarque e Augusto Boal
(1989) ilustra idéias referentes
à condição submissa da mu-
Berenice Sica Lamas lher na sociedade grega. Transpos-
Psicóloga, escritora e e d u c a d o r a na
tas para o nosso tempo, reflete-se
PURSC. M e s t r e e m Psicologia Social e
da Personalidade PUCRS
na produção das mulheres no mun-
do do trabalho e das artes. A fina
ironia das entrelinhas de Chico e
Boal mostra que as mulheres de
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Atenas são universais no tempo e na
Geografia. Nos versos dos poetas,
S o f r e m pros seus maridos, poder e força de Atenas as mulheres na área das artes ape-
nas tecem longos bordados (e não
Q u a n d o eles embarcam, soldados profissionalmente).
Em texto de 1932, Freud (1976)
Elas tecem longos bordados também diz que as mulheres contri-
buíram muito pouco nas descober-
Mil quarentenas tas e inventos da história da civiliza-
ção. Mas descobriram ao menos
E quando eles voltam sedentos uma técnica: tecer e trançar, tendo
dado a natureza à mulher, o modelo
Q u e r e m arrancar violentos
para tal imitação, no crescimento
dos pêlos pubianos que ocultam
Carícias plenas
seus genitais.
Obscenas. A história mostra que a criação
na esfera cultural sempre foi privilé-
Chico Buarque/Augusto Boal gio dos homens, e à mulher restava
a esfera doméstica. Debruçando-
nos sobre a realidade das artistas,
revela-se que o papel pressuposto
da mulher restrito à esfera biológi-
ca, reposto continuamente pelos
principais agentes socializadores -
família e escola - tem que ser rompi-
do por elas, construindo-se na con-
dição de autoras/atrizes no social.
Apesar desta ruptura constituir-se
como uma história coletiva de lutas,
dificuldades e enfrentamentos, re-
fere-se à singularidade de cada tra¬
jetória.
Para tornar-se artista profissio-
nal, a mulher necessita superar uma
condição cultural adversa, adqui-
rindo espaços para seu processo
criativo além do destino biológico,
através de aprendizagem, trabalho
e aperfeiçoamento, e conquista do
saber-fazer, reapropriando-se de sua
Mulher ar
condição de sujeito. Fazer existir o sempre foi marcada pelo desdém Suas longas caudas luminosas são
que não existe, é arte (Lamas, 1993). ou pelo rótulo de diletantismo, pois como o rastro de mulheres pionei-
As mulheres estão construindo e consideradas de carências criativas ras, representantes de outras milha-
conquistando seus projetos profis- naturais. Este natural é advindo res: Camille Claudel, escultora; Anais
sionais no mundo das artes. A ativi¬ dos imperativos biológicos de mens- Nin, Clarice Lispector, Lygia
dade poética, que produz o poema truar, gestar e parir, que a exilaram Fagundes Teles e Virgínia Woolf,
antes que ele seja escrito, é também durante séculos de sua capacidade escritoras; Clara Schumann, pianista
concebida como um processo de de criar além do biológico. e compositora; Safo, Cecília Meireles
fabricação, como também qualquer A identidade de gênero é e Soror Juana Ines de la Cruz, poe-
outra obra de arte. Escultoras, escri- construída e situada social e histori- tisas; Tizuka Yamazaki, cineasta;
toras, pintoras, desenhistas, bailari- camente no tempo e no espaço. As Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e
nas, atrizes, cineastas, poetisas, fo- funções pré-conscientes oscilantes Frida Kahlo, pintoras; Ângela Maria
tógrafas contribuem hoje ativa e entre o consciente - ancoração na e Elis Regina, cantoras; Isadora
efetivamente no mundo do traba- realidade - e o inconsciente - simbo- Duncan, dançarina; Leila Diniz e
lho com suas produções artísticas, lismo - é que permitem a fluidez dos Sarah Bernhardt, atrizes. Reconhe-
publicações, livros, vernissages, fo- processos na atividade inventiva. cidas artisticamente, entretanto fo-
tos, pinturas, esculturas, filmes, es- As fantasias inconscientes são a ram rotuladas preconceituosamente
petáculos de dança e teatro. matéria-prima da mente criadora, por determinadas condições pes-
O tecido e a trança da opinião sendo a criatividade o exercício flui- soais.
freudiana hoje se transformam em do e espontâneo das funções pré- A arte se define como ofício em
metáfora texto, etimologicamente conscientes. seu aspecto de domínio da técnica
assemelhado a tecido: de idéias, de O corpo da mulher talvez esteja e do saber-fazer, constituindo-se
palavras e frases, de tintas e cores, aprisionado e sufocado pelo traba- em alternativa para assegurar auto-
de películas, de argilas, de papéis lho repetitivo e monótono da reflexão e crítica. O produto da arte
teatrais, de passos de balé... Nos domesticidade, porém sua criati- tem o objetivo de transcender a
bastidores destas carreiras, às vezes vidade não se consome neste labor, consciência e a experiência huma-
fluidas, às vezes cerceadas, até a e sim, pode alcançar vôos de imagi- nas, visando ao gozo estético, cum-
eclosão do talento trabalhado te- nação através do fluxo de associa- prindo uma função dialógica, repre-
mos lutas, barreiras, sofrimento de ções livres. O brilho de uma panela sentando a possibilidade de ampli-
preconceito, rompimento de casa- bem areada não pode originar a ar o horizonte da subjetividade e
mentos, brigas com familiares e cintilação de uma estrela? O cheiri- dos potenciais de comunicação dos
amigos. Quando o ser humano ado¬ nho de uma roupa enxaguada com seres humanos. Através da arte, a
ta uma perspectiva criativa em sua amaciante, gerar o aroma jardim de mulher devolve ao mundo, sua in-
vida, abre-se para novas possibili- frases delícia de um conto? Ou o satisfação e frustração, em forma de
dades e para a mudança. gosto de um molho bem preparado, cultura. Além de criar filhos, ela cria
A arte não nasce pronta, não se o paladar de uma tela de Frida cultura, valores e símbolos: o ato
constitui uma dádiva dos deuses Kahlo? político gerado em seu ambiente
aos humanos, sendo produto da A mulher artista ultrapassa a di- privado e em seu íntimo, no sentido
mão, da mente, da imaginação, do mensão de cidadã do mundo, pois de singular, expressão de subjetivi-
trabalho. Mesmo no mito de Prome- além de colocar os interesses da dade, construção individual. Apre-
teu, como criador da cultura, houve humanidade acima dos da pátria, sentado e comunicado ao público
o fogo como elemento de mediação alcança ser cidadã do universo, com generosidade. Trata-se de uma
entre deuses e humanos. As mulhe- comete(a)ndo -como Halley - ações fração da população excluída fora
res trazem todo o seu passado de heróicas e revolucionárias, nascen- do modelo de homem, branco, oci-
viver subalternidade e exclusão em do de novo, apesar de aparições dental que através da arte, resgata a
suas obras, produção do novo mas rápidas no céu da vida artística e si própria, na luta por uma mudança
também reprodução - crítica e política. Cometa do grego kométes, sócio-histórica-cultural.
dialética - do passado. astro de órbitas elípticas, parabóli- A cultura e a obra de arte apre-
Para Lamas (1994), a história da cas e hiperbólicas. Mulheres artistas sentam um caráter ambíguo: têm
criatividade e da arte da mulher cometas viajoras viajantes amantes. uma dimensão conservadora e
ção de gosto estético na infância, encolhem, nem se conformam ou LAMAS, Berenice Sica.Mulher: Processo
Criativo Para Além do Biológico. Porto
muito estudo, aperfeiçoamento, se recolhem. Alegre, 1993. Dissertação de Mestrado em
muito trabalho, resistência e uma E têm sonhos, sim, partindo em Psicologia Social e da Personalidade.
Instituto de Psicologia, PUCRS.
luta intensa contra os bloqueios busca de suas realizações como ar-
LAMAS, Berenice Sica. Processo Criativo
familiares e sociais. Na sociedade tesãs da sua arte. Substituíram pres- Feminino. In: CARDOSO, Reolina S. (Org.)
patriarcal, criar arte e cultura, além ságios e medos por denúncias, afir- É uma Mulher... Petrópolis: Vozes, 1994,
p.81-100.
de filhos, é provocativo e ameaça o mações, empreendimentos simbo-
OSTROWER, Fayga. Criatividade e
status quo. Sair da cozinha e do lizados por seus textos literários, Processos de Criação. Petrópolis: Vozes,
cuidado dos filhos e competir com contos, romances, pinturas, escul- 1987.