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NOSSA AMÉRICA E A DELES

Para onde vai a terceira onda nacionalista na América Latina

Eduardo Graeff
Brasília, julho de 2006

A escola de samba Unidos da Vila Isabel


ganhou o Carnaval do Rio de Janeiro de
2006 com o enredo "Soy loco por ti,
América", destacando a figura de Simon
Bolívar. O governo venezuelano
patrocinou a escola através da companhia
petrolífera estatal PDVSA. O ídolo do
futebol argentino Diego Maradona deu a
seguinte entrevista enquanto assistia ao
desfile:2

Folha - Você é amigo do [presidente


da Venezuela] Hugo Chávez. E o que
pensa do presidente Lula?

Maradona - Lulaaaa. Lulaaa. Eu amo o


Lula. [Apontando para a tatuagem de
Che Guevara que tem no braço, grita]:
Bolívar no Carnaval do Rio de Janeiro1 Lulaaaa.

Maradona - Lulaaaa. Lulaaa. Eu amo o Lula. [Apontando para a tatuagem de Che


Guevara que tem no braço, grita]: Lulaaaa.

Folha - Mas o Lula não é o Che Guevara...

Maradona - Se você não gosta do Lula, a mim não importa. Eu sim. [Abre os
braços]: Lulaaa, Lulaaa! Eu sou Chávez, Fidel Castro e Lula. Nós, que somos
Chávez, somos anti-americanos. Anti-americanos.

Maradona tampouco parece se importar com as diferenças entre Castro, Chávez e


Lula quando os junta na mesma alegoria político-carnavalesca. Castro, último
exemplar vivo de guerrilheiro libertário convertido em ditador comunista, congelado
1
Site do GRES Unidos da Vila Isabel, galeria de fotos do desfile 2006. Visitado em 25/06/06.
http://www.gresunidosdevilaisabel.com.br/sitenovo/galeriafotos.asp#
2
"Samba, Futebol e Política". Folha de S. Paulo, 28/02/06.
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2802200608.htm
nesse papel por falta de alternativa pessoal e pela desimportância estratégica de Cuba
no mundo pós-Guerra Fria. Chávez, um caudilho militar parecido com outros na
história da região, exceto que levado ao poder, não pelo golpe que ele tentou sem
sucesso, mas pelo voto popular de rejeição às decadentes forças políticas tradicionais
da Venezuela. Lula, o sindicalista eleito Presidente como expressão de forças políticas
e sociais emergentes no processo de democratização do Brasil, flagrado em relações
ambíguas com as instituições democráticas.

Com mais preocupação do que entusiasmo, como seria de esperar, The Economist
assinalou recentemente que, depois de duas décadas de adesão à democracia liberal e
ao capitalismo de mercado, o espectro do "nacionalismo esquerdista anti-americano"
paira sobre a América Latina. Mas a onda esquerdista teria duas frentes distintas,
segundo a revista: a dos "social-democratas moderados" e a dos "populistas radicais".
Lula ficaria na ala dos "moderados" junto com Michelle Bachelet do Chile e Tabaré
Vázquez do Uruguai. Chávez encabeçaria os "radicais", secundado por Evo Morales
da Bolívia.3

O ex-chanceler mexicano Jorge Castañeda foi mais ou menos na mesma linha num
artigo na revista Foreign Affairs:4

Com tudo que se fala sobre a guinada para a esquerda da América Latina, poucos
notaram que na verdade há duas esquerdas na região. Uma tem raízes radicais mas
atualmente é de mentalidade aberta e moderna; a outra é de mentalidade fechada e
estridentemente populista. Em vez de se alvoroçar com a ascensão da esquerda em
geral, o resto do mundo deveria se concentrar em dar força àquela em vez desta –
porque é disso exatamente que a América Latina precisa.

Em termos mais amplos, volta The Economist, a divisão relevante se daria entre
"liberais democratas", incluindo os esquerdistas já citados e direitistas como Álvaro
Uribe da Colômbia e Vicente Fox do México, empenhados em resolver os problemas
sociais da região pelo funcionamento regular da democracia; e os "populistas radicais"
ou "autoritários".

Lula evita o rótulo de anti-americano, assim como o de esquerdista, no sentido


socialista, embora com a dose de ambigüidade suficiente para dar alento aos
esquerdistas anti-americanos dentro de seu partido e aliados. Numa entrevista ao Le
Monde, perguntaram-lhe se a integração latino-americana visaria ao confronto com os
3
"The battle for Latin America's soul". The Economist, 20/05/06.
http://www.economist.com/displaystory.cfm?story_id=6943528
4
Castañeda, Jorge. "Latin America's Left Turn". Foreign Affairs, maio/junho 2006. Traduzido por E. Graeff.
http://www.foreignaffairs.org/20060501faessay85302/jorge-g-castaneda/latin-america-s-left-turn.html

2
Estados Unidos e se seria incompatível com tratados comerciais bilaterais, como
entende Chávez em relação aos países andinos. Resposta de Lula:5

Nós não devemos praticar uma ideologia com as nossas relações políticas e
comerciais. [Hugo] Chávez não deve pensar desta forma, uma vez que ele vende
85% do seu petróleo para os Estados Unidos. O Brasil tampouco deve ter este tipo
de pensamento, uma vez que nós temos consciência da importância das nossas
relações com os Estados Unidos. O que nós queremos é evitar nos encontrar numa
posição de dependência em relação a uma potência ou a um grupo de potências;
queremos construir nossa soberania a partir das nossas capacidades tecnológicas e
produtivas. Apesar de uma integração consolidada com a América do Sul e de um
estreitamento das nossas relações com a África, a China, a Índia e o Oriente
Médio, os nossos intercâmbios comerciais com os Estados Unidos e a União
Européia aumentaram. Eu não preciso brigar com ninguém para avançar rumo à
integração da América Latina. O desenvolvimento de relações mais numerosas e
heterogêneas consolida a democracia no mundo.

Um exemplo anedótico de ambigüidade foi a decisão brasileira de passar a fotografar


e tirar digitais dos turistas norte-americanos em represália à adoção desse
procedimento pelos Estados Unidos, depois do 11 de setembro de 2001, para os
visitantes de países dos quais exigem visto de entrada, entre eles o Brasil. Embora
Lula não a tenha determinado diretamente, e sim pego carona na ordem de um juíz de
primeira instância, a medida foi aplaudida por setores do PT e adjacências como um
desagravo ao orgulho nacional.6

O anti-americanismo de Chávez, embora eventualmente mais barulhento que o do


próprio Castro, não teve por ora o mesmo reconhecimento oficial dos Estados Unidos.
Estes continuam comprando petróleo venezuelano e mantêm embaixador em Caracas,
enquanto há décadas impõem bloqueio diplomático e comercial a Cuba – mais por
honra à tradição e pela pressão da comunidade cubana de Miami do que pela ameaça
que Castro possa representar para a segurança norte-americana.

Com a derrota de Ollanta Humala no Peru e López Obrador no México, o espectro


"radical" sobre a região não restaria, afinal, tão assustador. Será?

Nem tanto nem tão pouco. Para satisfação de Maradona, Lula provavelmente não se
recusaria a figurar no bloco dos nacionalistas latino-americanos junto com Chávez,
Evo Morales, talvez Nestor Kirschner, além dos "radicais" derrotados (mas por

6
"Portaria do governo mantém fichamento". Folha de S. Paulo, 11/01/04.
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1101200404.htm

3
pouco) nas últimas eleições. Esquerdistas, em termos. Anti-americanos, uns mais,
outros menos. Mas em todo caso nacionalistas: este parece um mínimo denominador
comum da maioria dos líderes que assumiram o primeiro plano na América Latina no
refluxo da onda democrático-liberal.

Dá para levar a sério um rótulo elástico bastante para se aplicar a personagens tão
diferentes entre si? Trata-se de um mero rótulo ou ele diz algo de específico sobre as
alternativas políticas da região? Qual a importância e o significado atuais, se é que
tem algum, do nacionalismo na cena política latino-americana?

Parece inegável que sim, o nacionalismo voltou a ser importante na América Latina –
um curinga na mão de vários jogadores em vez da carta fora do baralho que se chegou
a acreditar que fosse na década de 1990. Não tanto pelas alternativas políticas
específicas que possa contrapor ao neoliberalismo, à social-democracia ou ao velho
socialismo mas, bem ao contrário, por seu baixo teor de princípios (politicamente)
ativos.

O brasilianista britânico Kenneth Maxwell rejeita a divisão entre uma "boa" e uma
"má" esquerda como uma versão sofisticada da velha idéia do "eixo do mal". Em vez
disso ele vê na América Latina "um mosaico de respostas específicas a estruturas
políticas decadentes, cada vez mais altos níveis de desigualdade e exclusão social,
tendências crescentes de migração interna e externa, tudo misturado a uma
impressionante capacidade de comunicação através de regiões geográficas e de
classes e etnias".7

Na falta de remédios mais fortes para o mal-estar político e social que se espalha na
região, o nacionalismo seria a panacéia ideológica sempre à mão, inócua mas
reconfortante como um chazinho caseiro.

Não adianta descartar essa especialidade da farmacopéia regional como charlatanice


ou produto com prazo de validade vencido. Engano típico de policy makers
reformistas, eu inclusive: num mundo em que as ideologias deveriam ter se rendido à
racionalidade instrumental da técnica e do mercado, não paramos de nos surpreender
com a força desses supostos resíduos que não se deixam varrer para a lata de lixo da
história: a religião (ou seus fundamentalismos), a raça, a nacionalidade.

Se tantos líderes diferentes apelam para a retórica nacionalista, é porque ela fala ao
coração do povo. Precisamos entender direito por que isso acontece e como esse
sentimento pode influenciar a discussão da agenda de reformas da América Latina. O
7
Maxwell, Kenneth. "Fora do eixo". Entrevista à Folha de S. Paulo, 28/05/06
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2805200601.htm

4
que me parece fora de dúvida é que de algum modo ele influenciará, e tanto pior
quanto mais nos permitirmos subestimá-lo.

Trata-se, então, para começar, de reconhecer que conteúdos o nacionalismo afinal


veicula nesta parte do mundo, por baixo de seu aparente vazio de propostas políticas
específicas. O que se segue é uma tentativa de provocar essa discussão no âmbito do
projeto da nova agenda de desenvolvimento latino-americana. Faço-o a partir de
alguma reflexão exploratória que busca colocar em perspectiva histórica três
características típicas do nacionalismo na região: o estatismo, o anti-americanismo e a
busca de originalidade cultural.

O nacionalismo latino-americano é historicamente um nacional-estatismo, que coloca


o Estado antes e acima da nação.

O modelo do Estado-nação como unidade política, territorial e cultural surgiu nas


Américas em fins do século XVIII e começo do XIX, antes de se aplicar à Europa em
meados do século XIX. Com uma diferença importante entre o Novo e o Velho
Mundo.8

A formação dos Estados europeus modernos foi precedida em mais de quatro séculos
pela emergência de nacionalidades enquanto comunidades de língua amalgamadas
pela imprensa. A Europa tem até hoje nações ou fragmentos de nação sem Estado
convivendo mais ou menos precariamente com as fronteiras dos Estados-nação.

A língua nunca esteve em questão na formação dos novos Estados americanos. Os


funcionários, militares, profissionais e fazendeiros que lideraram os movimentos de
independência falavam a mesma língua das respectivas metrópoles. O que os levou a
pensar em si mesmos como nação foi a comunidade de destino marcada pela
discriminação e o isolamento. Madrid proibia o comércio entre seus vice-reinos
americanos e limitava a movimentação dos funcionários criollos (descendentes de
espanhóis nascidos na América) aos seus territórios de origem, bloqueando sua
ascensão aos cargos na metrópole. A própria geografia e a limitação dos meios de
transporte e comunicação isolavam essas unidades administrativas na imensidão do
continente. Isso explica por que, apesar da comunidade de língua, o Império Hispano-
americano se fragmentou no processo da independência, cada parte sua dando origem
a um Estado separado.

8
Ver Anderson, Benedict. Comunidades Imaginadas; Reflexões sobre a Origem e a Expansão do Nacionalismo.
Lisboa, Edições 70, 2005 (1ª edição em inglês, 1983; 2ª edição, 1991), caps. 3 e 4.

5
A América Portuguesa não seguiu o mesmo caminho por causa da fuga da corte de
Lisboa para o Rio de Janeiro em 1808 e porque o herdeiro do trono português, D.
Pedro I, tomou a frente da independência brasileira. Junto com o monarca, o Império
brasileiro herdou mais ou menos inteira a máquina administrativa-militar colonial.

Fragmentado na América Hispânica, mantendo a unidade na América Portuguesa, o


importante é que em ambas o Estado pré-existente, herdeiro de quatro séculos de
absolutismo e patrimonialismo das monarquias ibéricas, foi o berço dos novos
Estados-nação.

Pelos duzentos anos seguintes, o Estado continuou sendo o baluarte dos


nacionalismos latino-americanos. Sua vanguarda é a burocracia estatal, notadamente
os militares e os setores profissionais e intelectuais que gravitam na órbita do Estado.
Suas bases foram originalmente os setores da elite local ligados à propriedade
territorial. Sua visão da sociedade é essencialmente patrimonialista, afeita aos
privilégios cartoriais, avessa à competição e desconfiada da intermediação comercial e
financeira, sem ser abertamente anti-capitalista. Sua visão política é tendencialmente
paternalista, hostil à mobilização autônoma das camadas populares, mesmo quando
não abertamente anti-democrática. Sua grande bandeira econômica é o controle estatal
dos recursos naturais no território nacional como escudo contra os riscos, reais ou
imaginários, de pilhagem estrangeira. Sua versão desenvolvimentista pós-Segunda
Guerra Mundial teve no Estado protecionista-intervencionista, mais do que na
empresa privada, o motor da industrialização.

O nacionalismo latino-americano é ao mesmo tempo repelido e fascinado tanto pelo


poderio como pela dinâmica capitalista dos Estados Unidos.

Invenção da chancelaria francesa ou de escritores sul-americanos vivendo em Paris,


não importa, as primeiras referências a "América Latina" na década de 1860 tinham
conotações políticas alinhadas aos interesses estratégicos da França de Luis Napoleão.
Tratava-se por um lado de afirmar, como projeto mais que fato, a unidade dos países
americanos católicos e falantes das línguas latinas. Por outro, de resgatar para essa
parte do continente o nome América, capturado pelos Estados Unidos. Em ambos os
casos "nossa América" se definiria por oposição à "outra América", protestante e
anglo-saxã.

Na época o apelo à latinidade teve pouca repercussão. O próprio nome América


Latina, adotado por autores norte-americanos tanto quanto franceses, só se difundiria
na América Latina mesmo quase um século depois, na década de 1950, a partir da

6
tradução para o espanhol de obras de historiadores e economistas norte-americanos
sobre a região.9

A semente do anti-americanismo caiu em solo fértil, no entanto. Com ou sem


ressonâncias latinas, o nacionalismo hispano-americano, em especial, foi marcado
desde cedo pela percepção do poderio emergente dos Estados Unidos e da ameaça
representada por seu "destino manifesto" expansionista. A anexação de quase metade
do território do México pelos Estados Unidos na guerra de 1846-1848 fez soar o
alarme. A guerra hispano-americana de 1898, que reduziu Porto Rico e as Filipinas a
colônias e Cuba a um protetorado norte-americano, e a intervenção norte-americana
no Panamá em 1908 materializaram o fantasma do imperialismo ianque na cabeça de
seus vizinhos ao sul. "Panamá es el punto de apoyo que busca el Arquímedes yanqui
para levantar la América del Sur y suspender en el abismo para devorarla a pedazos",
gritou desde o Chile um dos precursores do "radicalismo anti-americano" (e anti-
clerical, diga-se de passagem), Francisco Bilbao.10

Também desde cedo, o temor ao expansionismo combinou-se com um misto de


fascínio e repulsa pelo dinamismo econômico dos Estados Unidos. José Martí,
apóstolo da independência cubana reverenciado tanto por castristas como anti-
castristas, registrou assim suas primeiras impressões de Nova York, onde aportou
exilado em 1880:11

Estoy, al fin, en un país donde cada uno parece ser su propio dueño. Se puede
respirar libremente, por ser aquí la libertad fundamento, escudo, esencia de la vida.
Aquí uno puede estar orgulloso de su especie. Todos trabajan, todos leen. ¿Pero
siente cada uno, en igual medida que lee y trabaja? [...] La actividad, dedicada a los
negocios, es ciertamente inmensa [...] Cuando noté que nadie permanecía
estacionado en las esquinas, ninguna puerta se mantenía cerrada un momento,
ningún hombre estaba quieto, me detuve, miré respetuosamente a este pueblo, y
dije adiós para siempre a aquella perezosa vida y poética inutilidad de nuestros
países europeos [...] ¿Pero esta actividad se dedica en la misma medida al
desenvolvimiento de esas altas y nobles ansiedades del alma, que no pueden ser
olvidadas por un pueblo que necesita salvarse de inevitable ruina, y estrepitoso y
definitivo desmoronamiento? [...] El poder material, como el de Cartago, si crece
rápidamente, rápidamente declina.

11
Martí, José. Obras completas. La Habana, Cuba, Editorial de Ciencias Sociales, 1991, T. 19, pp. 106-107. Apud
Meler, Exequiel. "Martí en los Estados Unidos: De la crítica cultural de la modernidad al antiimperialismo". Site
Rebelión, 5/03/06
http://www.rebelion.org/noticia.php?id=27761

7
As duas preocupações coexistiram na extensa obra literária, jornalística e panfletária
de Martí até sua morte em 1895. De um lado o sonho da libertação de Cuba do
domínio espanhol e o receio, que acabou se confirmando, da intervenção dos Estados
Unidos nesse processo. Do outro a crítica cultural ao capitalismo norte-americano em
contraposição aos valores espirituais de "Nuestra América", título de um artigo de
Martí de 1891.12

O uruguaio José Enrique Rodó levou ao extremo essa contraposição em Ariel, um


ensaio literário-filosófico publicado em 1900 que toma emprestados os personagens
centrais de A Tempestade de Shakespeare – o angelical Ariel, ligado à beleza, à
filosofia, às artes, às coisas do espírito e o disforme Caliban, ligado à matéria, ao
dinheiro, ao imediato e ao efêmero – como símbolos contrastantes da América
Hispânica e dos Estados Unidos. "Para Rodó, era preciso buscar no passado espanhol
as tradições culturais formadoras da América Hispânica e voltar à Grécia clássica com
seus valores de beleza e arte. O posteriormente denominado arielismo impregnou
muitas interpretações e muitas concepções sobre a América Latina".13

Nem todos na região pegaram essa primeira onda anti-americana. O Brasil


monárquico basicamente a ignorou, mais voltado para a Europa do que para seus
vizinhos americanos em geral. Em 1890 a nova república federativa adotou o nome
oficial de "Estados Unidos do Brasil" e se aproximou dos "outros" Estados Unidos,
vistos como um exemplo de progresso mais do que ameaça. Joaquim Nabuco e o
barão do Rio Branco, diplomatas com serviços prestados à monarquia, trabalharam a
favor dessa aproximação. Do lado oposto, outro monarquista, Eduardo Prado publicou
em 1895 A Ilusão Americana, defendendo os laços tradicionais do Brasil com a
Inglaterra, contra um tratado comercial firmado com os Estados Unidos em 1891.
Saudado retrospectivamente, com algum exagero, como um libelo anti-imperialista, o
livro teve pouca repercussão na época – apreendido por ordem do governo
republicano logo depois da publicação.14

Um contraponto ao anti-americanismo com ecos de nostalgia européia aristocrática


encontra-se em Domingo Faustino Sarmiento. Presidente da Argentina de 1868 a
1874, admirador do sistema educacional norte-americano e reformador da educação
pública em seu próprio país, ele escreveu em Conflicto y armonía de las razas en
América, publicado em 1884:15

14
Prado, Eduardo. A Ilusão Americana. Brasília, Senado Federal, 2003
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/sf000044.pdf
15
Sarmiento, Domingo Faustino. Conflicto y armonía de las razas en América. Buenos Aires, Imprenta y
Litografia Mariano Moreno, 1900, p. 421. Apud Prado, Maria Lígia Coelho. Op. cit.

8
No detengamos a Estados Unidos en su marcha: es lo que en definitiva proponen
algunos. Alcancemos a Estados Unidos. Seamos la América, como el mar es el
oceano. Seamos Estados Unidos.

Uma segunda onda de anti-americanismo se espalhou na região a partir da década de


1960, no contexto da Guerra Fria. Impulsionada pela simpatia para com a revolução
cubana e o repúdio às tentativas dos Estados Unidos de abafá-la, essa onda alcançou
os vários países, inclusive o Brasil, mais homogênea e rapidamente, na velocidade dos
novos meios de transporte e comunicação. E selou a aproximação entre nacionalistas e
esquerdistas latino-americanos mais ou menos nos termos em que ela se dá até hoje.

As afirmações de identidade latino-americanas avançam da tematização do exotismo


do Novo Mundo sob moldes europeus para a exploração do interculturalidade como
matriz de conteúdos e formas de expressão originalmente americanas.

Rodó era anti-americano e defensor da pureza dos valores culturais europeus.


Sarmiento era pró-americano e racista. Para a civilização européia fincar pé na
Argentina, ele pensava, teria que varrer do interior do país a barbárie dos caudilhos e
suas tropas irregulares de índios e gauchos mestiços. A limpeza étnica que ele anteviu
em Facundo, de 1845, foi completada por seu sucessor na presidência, Nicolas
Avallaneda, que deu sinal verde ao exército nacional para matar e aprisionar dezenas
de milhares de índios da Pampa e do norte da Patagônia nas Campanhas do Deserto,
entre 1876 e 1879.16

Martí era anti-americano e via na mistura de raças uma fonte de originalidade da


América Hispânica diante da Europa e dos Estados Unidos. Em "Nuestra América"
ele fustiga as elites locais hesitantes em assumir sua própria condição:17

El gobierno ha de nacer del país. El espíritu del gobierno ha de ser el del país. La
forma del gobierno ha de avenirse a la constitución propia del país. El gobierno no
es más que el equilibrio de los elementos naturales del país.

Por eso el libro importado ha sido vencido en América por el hombre natural. Los
hombres naturales han vencido a los letrados artificiales. El mestizo autóctono ha
vencido al criollo exótico. No hay batalla entre la civilización y la barbarie, sino
entre la falsa erudición y la naturaleza.

A exaltação das virtudes do "homem natural" – mestiço ou índio – prevaleceu sobre o


sentido de missão civilizatória europeizante na literatura latino-americana do século

17
Martí, José. Op. cit.

9
XIX. Vários escritores saíram na defesa das maneiras peculiares de falar e escrever
em seus países a língua herdada da antiga metrópole (inclusive Sarmiento, racista mas
não purista nessa matéria). No Brasil, valorizaram o extenso vocabulário tupi já
incorporado ao português falado e escrito. Alguns autores usaram o tema universal do
par romântico para falar da desigualdade das raças e da possibilidade da sua união na
formação das novas nações: Sab e Carlota da cubana Gertrudis Gómez de Avellaneda
(1841), Martim e Iracema do brasileiro José de Alencar (1865), Nicolas e Manuela do
mexicano Ignácio Altamirano (1888).18

Importante como possa ter sido, essa abertura à "voz do povo" foi de início obra de
letrados, talvez não artificiais, como dizia Martí, mas educados na tradição européia e
especificamente influenciados pelo romantismo europeu, a essa altura fascinado pelos
tipos humanos do Novo Mundo como encarnação do "bom selvagem".19

Quando e como a imagem idílica do nativo deu lugar à expressão mais informada dos
dramas populares numa perspectiva popular? Isso com certeza variou de um país para
o outro. No Brasil, deu-se já no fim do século XIX, a partir do movimento
abolicionista, que praticamente atropelou o romantismo, trocando o índio idealizado
pelo negro real como personagem e em alguma medida como autor jornalístico e/ou
literário.

Há razões para supor, em todo caso, que a entrada em cena do povo se deu em geral
mais cedo e de maneira mais vigorosa na música do que na literatura latino-
americana.

Alejo Carpienter, herdeiro legítimo de Martí (não para os cubanos anti-castristas, é


verdade), conta que no ano de 1608 o bispo da cidade cubana de Bayamo foi
sequestrado por piratas franceses e em seguida libertado por uma milícia de
moradores locais, com a participação decisiva de um escravo negro. O interesssante
vem a seguir:20

Na igreja de Bayamo, é oferecido um moteto em homenagem ao bispo libertado –


especialmente composto por um capelão versado na arte do contraponto –, os
moradores trazem suas vihuelas e arrabis, suas zampoñas e violininhos, e arma-se
um magnífico baile onde soam não apenas os instrumentos da Europa, mas
também se batem tambores africanos, tocam-se maracas e claves, e até aparecem
alguns instrumentos índios – aborígines, portanto –, entre os quais um chamado
'tipinagua'...

20
Carpentier, Alejo. "O anjo das maracas", Visão da América. São Paulo, Martins Fontes, 2005, p. 114-115.
Originalmente publicado em Unesco. El Correo. Paris, junho de 1973.

10
Um dos moradores, Silvestre da Balboa (1564?-1634?) assiste ao espetáculo e,
tomado por uma magnífica inspiração poética, escreve as épicas estrofes de um
Espejo de paciencia, que não apenas viria a ser um dos primeiros grandes textos da
literatura latino-americana (poema cujo herói, pela primeira vez, é um negro, que o
autor resolveu expor à admiração de todos os deuses da mitologia grega...) mas
constitui também a primeira crônica de um concerto religioso e profano reunindo
todos os elementos sonoros que caracterizarão a futura música do Continente,
música que, tanto em suas expressões cultas como nas populares e folclóricas, no
início deste século [XX], irromperá com dinamismo próprio no panorama da
música universal.

Também de Cuba, do fim do século XIX, vem o primeiro gênero musical que
realmente unifica a América Latina, o bolero. Abraçado pelo México, depois por
Porto Rico, ele caiu no gosto popular de toda a região no primeiro quartel do século
XX, difundido por artistas mexicanos e cubanos em excursão e cada vez mais pelo
disco e pelo rádio. No mesmo período e pelas mesmos meios, o merengue
dominicano, a cumbia colombiana, o tango argentino-uruguaio, o samba brasileiro se
firmam em seus países de origem e cruzam fronteiras para compor o pout-pourri
musical em que a América Latina reconhecerá a si mesma e será reconhecida no
mundo.21

Uma possível introdução a título de conclusão

O estatismo e o anti-americanismo são expressões de nacionalismo importantes como


páginas de um passado que a América Latina custa a virar. A busca de originalidade
cultural aponta para um futuro que pode e deve ser incorporado positivamente à
renovação da agenda latino-americana de desenvolvimento.22

Enquanto instrumento de legimitação do estado, o nacionalismo se tornou uma força


eminentemente conservadora nesta parte do mundo. Sua tarefa histórica básica – a
mobilização do povo para a consolidação da soberania dos novos estados-nação sobre
os respectivos territórios e recursos naturais – esgotou-se em geral no começo do
século passado. Disputas de fronteira subsistem muito marginalmente. Dois ou três
países têm problemas pendentes de unidade nacional. Dois ou três têm no controle
estatal do petróleo, não tanto um escudo contra a cobiça estrangeira, mas um trunfo no
jogo de poder doméstico.23 De resto, a retórica nacionalista tem se prestado sobretudo

22
As observações a seguir reportam-se à distinção entre identidades "de legitimação", "de resistência" e "de
projeto" proposta por Manuel Castels. Ver The Power of Identity, volume II de The Information Age; Economy,
Society and Culture. Malden/Oxford, Blackwell, 1997, pp. 8 e seguintes.

11
a simulacros de incorporação do povo à ordem estatal vigente sob chefias
clientelistas-autoritárias, em detrimento da participação democrática.

Com a América Latina fora do foco das preocupações estatégicas dos Estados Unidos
desde o fim da Guerra Fria, o imperialismo torna-se um fantasma difícil de
materializar, mesmo invocado por bruxos espalhafatosos como Castro e Chávez. O
anti-americanismo, nessas condições, tende a subsistir como um hábito arraigado e
uma senha de resistência ao capitalismo global, este sim cada vez mais presente e
perturbador, mas apenas ritualmente exorcizado nas marchas e fóruns anti-
globalização, anti-neoliberais etc.

Explica-se a ressonância atual do estatismo e do anti-americanismo na região. Ela


parece aumentar, por um lado, na razão direta do apelo simbólico-histórico vago mas
familiar do nacionalismo. Por outro lado, na razão inversa da capacidade das elites
dirigentes locais de oferecer alternativas políticas efetivas de inclusão das massas
populares dentro do raio de manobra reduzido que a globalização deixa aos estados
nacionais.

Serão os sinais de vitalidade cultural um mero consolo para a agonia das ilusões de
desenvolvimento econômico e social independente? Não se tivermos algum êxito nos
esforços de atualizar e levar adiante a agenda de reformas da região nas condições do
mundo globalizado. As expressões mais vigorosas da cultura latino-americana têm
aspectos que merecem atenção nessa perspectiva.

Embora ocasionalmente patrocinadas e instrumentalizadas pelo estado, essas


manifestações têm raízes profundas no solo do que hoje chamamos sociedade civil.
São nelas mesmas símbolo e veículo de mobilização autônoma e ascensão das
camadas populares. Algumas parecem ter florescido com tanto mais viço quanto
menos proteção oficial tiveram. Penso na música popular brasileira, cujas expressões
mais fortes, como o samba, carregaram o estigma da senzala, foram semi-proscritas
até o começo do século XX e ainda hoje dependem pouco da boa vontade dos
governos.

Vista pela lente da cultura, a "alma latino-americana" é um caleidoscópio. Dois


compassos e uma modulação de bolero e ela se põe de pé feito um só homem, como
vi Tom Jobim dizer e mostrar ao piano numa entrevista. Olhe de novo e a imagem de
unidade se fragmenta.

Considere a herança indígena: discreta na Argentina e Uruguai, onde cerca de 90% da


população se identificam como brancos; mais visível no Chile, onde dois terços se

12
identificam como mestiços; significativa embora diluída por quinhentos anos de
miscigenação no Brasil, onde poucas centenas de milhares se identificam como índios
e os mestiços se identificam como brancos ou pardos conforme o tom da pele, a
condição social e a preferência pessoal; predominante e bem resolvida no Paraguai,
onde 95% se identificam como mestiços, 90% falam guarani e 70% falam espanhol;
forte e problemática na América Andina, onde até hoje há barreiras para a
incorporação simbólica e efetiva das maiorias índias aos estados nacionais; marcante e
relativamente problemática na Guatemala e no México, onde os índios constituem
minorias de peso (40% e 30%, respectivamente) diante das maiorias mestiças.

Considere a herança negra: pouco visível no Uruguai, Argentina (embora sim,


também haja marcas africanas na origem do tango e na própria etmologia da palavra)
e nos países do Pacífico; forte no Brasil, Venezuela, Colombia, América Central e
Caribe, onde negros e mulatos são de 40% a 90%.

O que cola esses pedaços não são tanto as raízes ancestrais européias, indígenas e
africanas quanto os meios de comunicação de massa e sua capacidade de recolher,
difundir, modificar e misturar temas e estilos diferentes. Isso coloca o nacionalismo
diante de realidades perturbadoras.

Qualquer resquício de arielismo vira fumaça quando os valores do espírito e da


matéria, a alma da nossa América e o dinheiro deles, norte-americanos, se unem num
casamento conflituoso mas indissolúvel. Assim como a indústria da imprensa
amalgamou as nacionalidades européias desde o século XVI, a indústria do disco, do
rádio, do cinema e da televisão processa o que há de mais representativo da identidade
latino-americana, do ponto de vista nacional, regional e universal. Thomas Edison,
inventor e negociante norte-americano, mereceria ser o padrinho ou no mínimo
ocupar um lugar de honra no panteão da cultura latino-americana contemporânea.

A contradição se agrava no campo da música. Os guaranis catequisados por jesuítas


deixaram uma herança musical notável no Paraguai, principalmente, e em menor grau
no Uruguai, Argentina, sudoeste do Brasil e leste da Bolívia. Da música dos índios
dos Andes conheço pouco além da belíssima El Condor Pasa peruana (gravada, aí
está, por Simon e Garfunkel). Mas creio que não corro um risco muito grande de
passar por preconceituoso se afirmar que as expressões mais marcantes de música
popular latino-americana são na verdade afro-americanas. E as raízes africanas
enlaçam as três Américas no eixo musical Rio de Janeiro-Salvador-Havana-New
Orleans-Chicago. Para resumir e complicar mais um pouco, diria que o veio mais rico
da multibilionária indústria fonográfica mundial é música afro-americana embalada e

13
distribuída por negociantes judeus em Los Angeles e Nova York. Ai dos puros de
alma nesse mundo novo...

A grande pergunta é: como é que se faz de toda essa vitalidade cultural, não um
sucedâneo, mas uma força propulsora do desenvolvimento econômico e social latino-
americano?

Uma resposta imediata é: não se faz. O nacionalismo, claro, tem na manga a velha
carta do dirigismo estatal. É o que Chávez faz patrocinando a TeleSUR de parceria
com Castro, Kirschner, Tabaré Vasquez e Lula (e de quebra abrilhantando o Carnaval

5
"Comment Lula gère un futur géant". Le Monde, 25/05/06. Tradução UOL Mídia Global.
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/lemonde/2006/05/25/ult580u1985.jhtm
9
Ver Bruit, Héctor H. "A Invenção da América Latina". Anais Eletrônicos do V Encontro da Associação Nacional
dos Pesquisadores de História Latino-Americana e Caribenha – ANPHLAC, Vitória, 2003
http://www.ifch.unicamp.br/anphlac/anais/encontro5/hector5.htm
10
Bilbao, Francisco. La América en peligro. Evangelio americano. Sociabilidad chilena. Santiago de Chile,
Ediciones Ercilla, 1941, p. 155. Apud. Prado, Maria Lígia Coelho. "Identidades latino-americanas (1870-1930)".
Artigo inédito, 2006.
12
Martí, José. "Nuestra América". Obras completas. Cit., T. 6, pp. 15-23.
http://www.filosofia.cu/marti/mt06015.htm
13
Prado, Maria Lígia Coelho. Op. cit.
16
Sarmiento. Facundo. elaleph.com, 1999.
http://www.educ.ar/educar/servlet/Downloads/S_BD_LIBROSF/ALEPH022.PDF
A seguinte citação ou colagem de citações atribuídas a Sarmiento circula na Internet e foi acolhida na versão em
espanhol do artigo "Domingo Faustino Sarmiento" da Wikipedia em espanhol (visitado em 21/07/06). A fonte
varia, dependendo do local da citação, entre uma, algumas ou todas as seguintes referências: El Progreso,
27/09/1844, El Nacional, 19/05/1887, 25/11/1876 e 08/02/1879:
"¿Lograremos exterminar los indios?. Por los salvajes de América siento una invencible repugnancia sin poderlo
remediar. Esa canalla no son más que unos indios asquerosos a quienes mandaría colgar ahora si reapareciesen.
Lautaro y Caupolicán son unos indios piojosos, porque así son todos. Incapaces de progreso, su exterminio es
providencial y útil, sublime y grande. Se los debe exterminar sin ni siquiera perdonar al pequeño, que tiene ya el
odio instintivo al hombre civilizado".
http://es.wikipedia.org/wiki/Domingo_Faustino_Sarmiento
18
Prado, Maria Lígia Coelho. Op. cit.
19
Sobre o chamado "indianismo" na literatura brasileira, Sergius Gonzaga escreve:
"No 'bon sauvage' francês sedimenta-se o modelo de um herói que se deveria se tornar o passado e a tradição de
um país desprovido de sagas exemplares. O nativo - ignorada toda a cultura indígena - converte-se no herói
inteiriço, feito à imagem e semelhança de um cavaleiro medieval.
Assume-se a imagem exótica que as metrópoles européias tinham dos trópicos, adaptando-a ao ufanismo. Acima
de tudo, o índio representa, na sua condição de primitivo habitante, o próprio símbolo da nacionalidade. Além
disso, a imagem positiva do indígena fornece às elites o orgulho de uma ascendência nobre, que ajuda na
legitimação de seu próprio poder no Brasil posterior à Independência."
Portal Terra>Educação>Literatura Brasileira>Romantismo. Visitado em 23/07/06.
http://educaterra.terra.com.br/literatura/romantismo/romantismo_10.htm
21
Ver os artigos "Bolero", "Merengue", "Cumbia", "Tango" e "Samba" da Wikipedia em espanhol, português ou
inglês. Visitada em 23/07/06.
http://es.wikipedia.org/wiki/Bolero
23
Ver a respeito Coronil, Fernando. The Magical State; nature, money, and modernity in Venezuela. Chicago e
Londres, The University of Chicago Press, 1997.

14
do Rio de Janeiro) enquanto cuida de enquadrar a mídia privada venezuelana. Essa
obviamente não é uma alternativa para o reformismo democrático.

Mas isso não quer dizer que não se possam conceber políticas públicas condizentes
como uma visão reformista democrática da dinâmica cultural latino-americana.
Proponho, para terminar, quatro premissas gerais para se pensar no assunto.

Primeiro, parafraseando Clemenceau, a cultura é um assunto sério demais para ser


deixado nas mãos de artistas e literatos. A indústria cultural é em si mesma uma força
econômica e social de primeira grandeza, que gera bens e serviços (simbólicos) de um
lado e coesão social, emprego e renda do outro.

Segundo, como qualquer indústria que encadeia produtores de porte muito desigual,
de corporações multinacionais a empresas familiares e produtores individuais, ela
apresenta problemas importantes de regulação. O reverso do dirigismo estatal não
pode ser o laisser-faire. Entre um e outro há espaço para políticas que garantam o
pluralismo de valores e opiniões, a diversidade de formas de expressão e o equilíbrio
de direitos de autores, distribuidores e consumidores, contrabalançando as tendências
concentradoras e homogeneizadoras do mercado.

Terceiro, a infra-estrutura de telecomunicação e informação da indústria cultural


consiste de serviços públicos operados e/ou regulados pelo estado. Na era da Internet,
da convergência digital e dos megaconglomerados multimídia, a capacidade dos
estados nacionais de garantir o caráter público desses serviços, negociando com
outros estados e arbitrando conflitos entre grupos privados poderosos, é cada vez mais
necessária e ao mesmo tempo mais problemática.

Quarto, na medida em que a agregação de valor na economia da informação se


desloca da produção do suporte material para a criação do conteúdo simbólico, a
interculturalidade latino-americana tende a se tornar um ativo tão precioso quanto a
biodiversidade da região. O único jeito de defendê-las é explorá-las.

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