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Oscar Cornago Siloia Fernandes Julia Cuimarées corganieadores O teatro como experiéncia publica HUCITEC EDITORA Sao Paulo, 2019 © Diretos autora, da organiagdo, 2018, de ‘ar Cormago Sita Prnandes Julia Guimaraes © desta cdigt, de Heitee Bditora Leda Dicits de publieago reservados por Hucite Editor Ltda, Rua Dona Iniia Uo, 209 (4110-020 Sto Paso, SP “elefone (55 11 3892-772) swan haciteceditora coms be lereeler@nuciteceditoracom br Depésita Legal efersado. ‘Mariana Napa Assessoria editorial Karia Reis Circulagio ‘comercial@huciteceditora.com br ‘Tel: (11)3892-7776 Eat oh sidofnanciade pore proyecto Las prt exif ll aie ‘Una pranimais ete el ea de pertain one eda de lat demerit 421 Programs Esta de Fomento de lvestgaion Ciena y Tecnica dl Minister de Eeonomte 1 Competsividad del Gabi de Espasa (HARIOLIS7S85-P) (CP. Beal Cag ne Pb Sinnato Nacional Ete dion RL he reins comsergesésiepbi angina Oca Cag Sin Feanes, Jal Gaiman ed io Peo Hocee 2072 Sip ben, (eaeo 10) ISON F74 5-8400-181-7 1 Teaso~Ste XXL 2 Hatta 3 Represetapotental | Carag, Cnet, Urns Stn, Gurr ala 1 See issan7s cpp 7201 DU 792.0 ‘Ned ice Radia ds Soums~Biicisa CRE-T60 Sumario Apresentagio 1, Conrextos, Maxcos & SiTuacors La escena como marco piiblico, Ejercicio de reflexién en tres tiempos Oscar Cornago Teatro Ojo, fragmentos dispersos Héctor Bourges Entre lo que ya no esté ylo que todavia no esta Juan Dominguez Entre amadores, especialistas e espectadores Jiulia Guimardes A ficgao que nos mantém Leonards Moreira (entrevistado por Julia Guimaries) Reconectar la poesia al cuerpo. Poéticas posanarquistas en Clean Room, de Juan Dominguez Diana Delgado-Ureia Maneras de practicar la realidad Juan Dominguez u 7 42 48 64 86 94 11s 8 | Sumdrio Corpo ¢ conhecimento, histéria manifesta. Poéticas historio- grificas em Audicién para una manifestacién, de Lola Arias Daniele Avila Small Notaal pie Lola Arias Atos de uma operasao antropéfaga: permanecer, resistir e ocupar Paola Lopes Zamariala Serie Canival Tamara Cubas ‘Temporalidades complexas na cena do Grupo XIX de Teatro Maria Helena Werneck O Grupo XIX de Teatro, a vila e a cidade. Ocupar, (Con)viver, (Co)criar Janaina Fontes Leite Em caso de mal-estar, desconforto ou desejo de mudanga, preen- cha c deposite na urna mais préxima Cristiane Zuan Esteves 2. RELAGAO E AUTONOMIA ‘Teatro expandido em contexto brasileiro: o trabalho de Lia Ro- drigues Silvia Fernandes Para segurarocéu Lia Rodrigues O teatro atravessado: imagem, corpo e politica na cena contem- poranea José Da Costa ‘Atravessamentos Marcia Abreu 122 136 144 164 168 186 194 213 239 242 264 Sumario | 9 O hiato entre o que é proposto pelo artista ¢ 0 que é produzido pelo espectador 268 Flavio Desgranges Ensaios ignorantes: nem cena nem aula 283 Juliana Jardim ‘Movimentos aberrantes 303 Peter Pal Pelbart Autonomia 320 Jordi Claramonte Entre amadores, especialistas e espectadores Julia Guimaraes Oo” TO de aproximagio entre arte e vida — caracteristico tanto das vanguardas histéricas quanto das neovanguardas do século XX — en- controu novos desdobramentos a partir dos anos 1990, com a intensificagio de priticas participativas, relacionais, documentais e contextuais na arte con- temporanea. Se tais campos surgem intrinsecamente conectados 8 “virada performativa”® das artes, pouco a pouco parecem construir um territ6rio pré- prio, que dé continuidade e simultancamente desloca-se das questdes abertas pelos Bappenings e performances dos anos 1960-70. uma das caracteristicas mais No Ambito das chamadas “artes vivas” emblemiticas das criagdes atuais diz respeito A incozporagio crescente de pes- soas que nfo necessariamente passaram por formagio artistica, sejam elas es- pectadores ou convidados. Atrelado aesse aspecto, surge também um dilogo critico renovado com o campo da representagio, pensado a partir de uma aproximasdo com a realidade cotidiana, Com isso, é também o papel do artis- ta que passa por alteragées significativas, vinculadas a uma espécie de descen- tramento do seu lugar na eriagio. Algumas teorias formuladas nas tltimas décadas buscam analisar essas transformacdes a partir de diferentes éticas. Na vertente da arte contextual, a énfase recai na relag2o da obra com o espago que a cireunda. Aqui, o artista é pensado sobretudo como um “conector", mais do que “criador". Dentro dessa perspectiva, a realidade cotidiana deveria ser encarada como uma “oferta de acontecimentos”, a serem “anexados” diretamente a obra.“[. . .] parao artista, 1 Julia Guimardes€ pés-doutora em Artes Cénicas pela EBA/UFMG, onde atuow como professora colaboradora, com bolse CNPq. O presente artigo € um desdobramento de seu ‘doutorado em Artes Cénicas pela ECA/USP, com bolea Fapesp. 1 Erika Fischer-Licite, Butica de lo performative. Mar Abada Buitores, 2014 5 Aqui, o termo artes vivas pode ser entendido em um sentido armplo, como artes que acontecemn "20 vivo", ot sea, que 4 estruturam a partic da relasio coms o tempo e cam o cepectador. Entre amaderes, especialistas ¢expectadores 68 trata-se que a criago, como prioridade, deve encarregar-se da realidade, antes de trabalhar a0 lado do simulacro”, propée Ardenne.* Outros autores, por sua vez, ressaltam as transformagées no papel do ar tista quando pessoas externas 20 mundo da arte ocupam 0 epicentro da obra ‘Ao construir uma histéria da arte participativa nos tltimos cem anos, aexitica de arte Chiire Bishop avalia que, no contexto atual, o artista surgiria menos ‘como “um produtor de objetos discretos” e mais como "produtor de situasées”. Para a autora, uma caracteristica central da arte nas iltimas décadas seria o “uso de pessoas como meio”. Como exemplo, cita a estratégia que batiza como performance delegada, na qual ‘pessoas comuns” so contratadas para realizar agdes em nome do artista. Nas entrelinhas dessa particip, estaria, dentre outros aspectos,o interesse por “problematizar bindrios como 20 vivo emediado, espontineo ¢ ensaiado, auténtico e artificial” S Como vere~ ‘mos a seguir, é um interesse parecido que atravessa muitas das eriagdes cénicas contemporineas centradas na presenga de ‘pessoas reais”, Embora tena sido alvo de intimeras criticas e polémicas,¢ uma das pri- meiras teorias a identificar e mapear esse tipo de mudanga na fungi do artista foi a chamada estética relacional, formulada nos anos 1990. Nela, 0 curador francés Nicolas Bourriaud defende o ineditismo, na historia da arte, de um projeto artistico que estaria centrado na “invengio de modelos de socialidade”. A partir desse giro, o autor destaca a centralidade do espectador nesse contexto, a0 afirmar que “a aura das obras de arte deslocou-se para o seu puiblico”,? ‘Se nas artes visuais esses novos participantes muitas vezes ocupam espa~ {g0s antes preenchidos por objetos, no contexto das artes cénicas € 0 ator que perde parte do seu protagonismo na construsdo do acontecimento teatral ‘Como propse o pesquisador espanhol José A. Sanchez, uma caracteristica recorrente a diversas propostas cénicas atuais 6 0 desaparecimento dos atores “como presengas necessirias para a representasao”, 4 Todas as tradugbes foram feitas pla autora deste texto, No origial:“. ..]paracl artist, setrata de que la cteacibn, como priridad, se haga cargo de a realidad antes que trabajar del lado Gel simulaero [. |’. Paul Ardenne. Un arte contextual creacion atistca én medio urbano, en situacién, de interouncisn, de prticipaién, Mircia: Cendeae, D. L,, 2006, p. 11 5 No original:“[. | to problematise the binaries of five and mediated, spontaneous and staged, authentic and contrived [,. I". Claire Bishop, Afi Helle Participatory Art and the forsip. Londres: Verso, 2012, p. 238 (6 Para ver um compilado dar principais erica f 2 estétca relacional, ef Marcela Prado. Debate enitico alrededor de ia Estetica Relacional, Revita Distarbis. Publicagio do ‘Departamento de Filosofia da Universidad Autinoma de Barcelona, n.* 10, 2011 ‘7 Nicolas Bouttiand. Estetica relaional. Sao Paslo: Martine, 2009, pp. 40 ¢ 82. 66 | Julia Guimaraes Em algumas ocasides, os atores foram substituidos por participantes que ja nao interpretam, simplesmente fazem. Esses participantes po: dem ser convidados, extras ou espectadores convertidos em fazedores. Asvezes, nao é que nao haja atores, mas sim que os atores[. . .J ocupam uma posigio secundaria em relagio ao dispositive que condiciona suas ages e movimentos.* A partir do comentério de Sanchez, ¢ possivel levantarlinhas de conti- nusidade e ruptura do momento atual em relagio a0 paradigma performativo. No que se refere aos aspectos comuuns, o principal deles diz respeito a certa qualidade de presensa dos participantes, jé que nos dois casos, eles podem ser pensados como fazedores. Ou seja, como alguém que busca lidar com aso, 0 espago ¢0 tempo de maneira mais direta, tal como a figura do performer. No entanto, no contexto atual, as eriagdes ja no parecem surgir com 0 intuito de negar, oferecer resistencia ou superar a representagZo, como ocorria, por exemplo, em experiéncias vinculadas & body art. Atualmente, 0 didlogo critico com arepresentagio almeja, sobretudo, intensificar a reflexividade sobre seus mecanismos, a fim de dar a ver camadas menos evidentes de seu funcio~ namento. Na anilise do pesquisador espanhol Oscar Cornago, as transformagées entre os dois periodos corresponderiam a um deslizamento que vai da aso’ situagdo, Se o paradigma da a¢io, vinculado & performance, nasce como uma rea¢o a0 mundo do teatro (das xepresentagoes) e a0 mundo do espeticulo, a situagdo, por sua vez, busca tecer uma reflexao partilhada sobre os significa~ dos do acontecimento piiblico gerado pela obra. “O termo situagio nao éuma novidade do século XXI, mas sim o seu renovado interesse[. . .], como enfo~ que para sair do beco sem saida no qual havia caido a performance, convertida em outra forma de teatralidade’ 8 No orginal: “En ocasiones los actores han sid sustinos por participants queya no interpreta, sno gue saplemente hacen, Estos partiipantes pueden stnvitads, extaolos trpesadoceseconvestidosenacedoes En ocatones, tose trade que no aya atresino de Ge loractores[]ocupan una pon ecundara expect al diaponitve qu condciona eu etuaionyausmvimietor Joe A, Shnchen Ditonto etn exploration de na poradsia {Texto nto publcado, Cade do Mexico, Havana,2015,p. 1 9 No origina “El termino de stuacion noes ina ovedad del siglo XXI, pcos el orado ints por parte de tedrco historisdores como enfoguc para sali de allen in ‘aida en el quefubiacaido la performance, conreridaen otra forma de teatralidad™ Oxcar Connago ¥despis dela peformance, que>, Urdimento— Reva de Biter em Arte Conia, Pblicagio do Programa de Pos Graario cmv Tetro do Cento de Arte da Universidade do Estado de Santa Catarina n°26,vel. 1 2086, p23 Entre amadores, especialistas ¢espectadores 67 A partir dessas transformagées, a pergunta a ser feita diz respeito 20 tipo de visibilidade que surge quando a cena passa a ser habitada por espec tadores e convidados externos, a partir de uma légica cotidiana e autorrefe rencial. Que tipo de contextos esse deslocamento nos marcos tradicionais da atuagio é capaz de revelar? Como modifica a relagio entre o dizivel, o visivel 0 pensivel sobre os temas abordados nas eriagdes? De que modo problema- tiza a ideia de representagao e elabora suas constantes crises? Com quais propésitos criticos ¢ estéticos? Embora essas perguntas sejam amplas o suficiente para na ser plenamente respondidas aqui, elas servirio de eixo para.a an’ criadas neste inicio de século XXI, centradas na participacio de espectadores ‘eno atores, a quem cahmo de “atores do cotidiano”.” Para desenvolver essa anilise, gostaria de investigar dois modos de participago que tém sido recor~ rentemente explorados na cena contemporinea como meio de incorporar pes- soas externas ao mundo da arte. Naprimeira, 0 foco de interesse recai sobre 0 contexto de vida dos parti- cipantes, seja a partir de estratégias como as do testemunho/depoimento pes- soal ou de enquetes e questionirios respondidos coletivamente em cena por cessas pessoas. Ja em outra vertente, ¢ a importagio e/ou o reenactment de dispositivos sociais preexistentes — sejam esses artisticos, politicos ou sociais —que servem de eixo para a criagio. Como hipotese de pesquisa, vinculada 4s investigagbes levantadas no meu doutorado, argumento que essas participagdes colaboram para dar a ver algumas fungies sociais, simbdlicas e politicas da teatralidade e da performa- tividade que habitam o cotidiano. E, com isso, projetam sentidos espectficos a0 didlogo critico com o campo da representagio. noderem, ise de obras A teatralidade cotidiana eo mundo laboral em obras brasileiras do Rimini Protokoll A considerar o primeiro grupo, de obras nas quais as pessoas so convi- dadas a falar de si, € possivel identificar a presenga de tal mecanismo tanto em criagdes centradas na participacao do puiblico como de convidados externos. ‘Nesses trabalhos, 0 contexto de vida dos participantes pode surgir vinculado 10 julia Guimardes Mendes. Teatros de real, teatro do outra es atres do cetidiane em cna contemporinea.2017. Doutorado em Teoria ¢ Pritica do Teatro, Sio Paulo: Escala de Com cagbes e Artes, Universidade de Sao Paulo, 2017. Pesquisa realizada com suporte da balsa Fapesp, 68 | Julia Guimaraes ‘historias pessoais, memérias coletivas, opinibes, dados socioculturais ou ques tes relacionadas ao seu cotidiano. No que se refere ao trabalho com os nao atores, possivelmente a compa: nia de maior destaque vinculada.a essa vertente na atualidade seja o coletivo suigo-alemao Rimini Protokoll. Fundado oficialmente em 2002, a partir do encontro de estudantes" da Universidade de Giessen, na Alemanha, 0 grupo ficou conhecido por levar cena pessoas alheias ao universo do teatro, escolhidas pelo conhecimento e vivéncia que guardam em relacéo a um determinado tema, Por essa ra tais participantes foram batizados de “especialistas do cotidiano”” Em diversas obras do coletivo, ¢ contexto da vida laboral dos especialis tas que surge em cena, como ocorre nas trés eriagSes apresentadas no Brasil na primeira década deste século XI, sendo as duas mais recentes realizadas em parceria com a diretora argentina Lola Arias.!* Se em Matraca Catraca— Uma viagem REM (2002), situagio de uma viagem de Onibus pela cidade de Salvador surge emoldurada pelos relatos de um motorista e de um troca- dor, em Torers Pertero (2005), os espectadores contemplam as historias de seis porteiros, sendo trés brasileiros e trés argentinos. “Me dei conta de que sem- pre havia um porteiro protegendo as classes média e alta da classe & qual pertencia”, comenta Stefan Kaegi,* a respeito do seu interesse pelo universo dos porteiros na América Latina Por sua vez, a instalagao cénica Chdcara Paraiso— Mostra de Arte Policia (2007)' remete a um formato no qual a proximidade fisica entre especialistas ce espectadores é favorecida pelo espaco explorado. Nela, o piblico percorre di- vversas salas do edificio do Sesc Paulista para acompanhar o relato presencial (em alguns casos, por meio de dispositivos tecnol6gicos) de pessoas que em algum momento de suas vidas atravessaram o ambiente de trabalho da policia 11.0 Rimini Protokoll foi fundado pelos artistas Daniel Wetzel, Helgard Haug, Stefan Kacgi Bernd Ernst. Apenasoiltimo no permanece na companhia 12 Miriam Dreysse & Florian Maleacher (orgs). Experts ofthe everyday: The theatre of Rimini Probl Bes: Alexander Verlag, 2008, 1A diretora argentina Lola Aras redliatrabalhos docurnentais centrados na presenga de cxpectadore de eepecalstas do cotidiano, Nerte mesmo vr, ¢ possvel ler um depoimento da {isetora sobre algumas de sous obras recentese uma unilise da pesquiradora Daniele Avila Srall sobre oexpeticulo dudicisn para uma Manfetacin, também diigido por Lola Arias. “4 Porteizos viearnatores em encenagzo de dietor suigo em SP. Fatha de S.Paule, Si0 Paulo, 19 out. 2005, Instr, «p. 15 Mos contato com a obra se dew pelos registrar em video cedidos & Stefan Kaegi. Uma versio editads do espetéculo est di 138054492>, im pelo di ipeivimeo.com! Entre amadores, expecialistas ¢espectadores 69 Assim como ocorre em muitas outras criages do grupo, os participantes foram selecionados a partir de antincio de jornal. Entre cles, um investigador da Policia Civil, uma atendente do 190 que nao quis se identificar e um. policial que desenvolvia treinamentos na Chacara Paraiso —nome dado 20 maior centro de formagio de soldados da Policia Militar da América Latina, ocalizado em Sio Paulo, Na instalacao,a diversidade de pontos de vista surge ‘como uma estratégia cénica e politica para oferecer olhares distintos, por ve- zes contrastantes, acerca da controversa identidade da “instituigo Policia’. Em cada depoimento, aparecia uma forma especifica de contato entre cespectadores ¢ especialistas. Em alguns casos, eram propostos encontros indi viduais, nos quais os policiais nao apenas relatavam aspects de sua profissio, como também revelavam questoes intimas dessa vivencia — por exemplo, confissdes sobre o medo da morte. Em outros, o piblico era convidado a experimentar condutas treinamentos policiais. Enquanto observavam tran- seuntes da avenida Paulista por meio de bindculos, escutavam a explicagio de uum investigador da Policia Civil sobre qual deles poderia ser identificado ‘como um suspeito em potencial Chacara Paraivo — matra de arte pltia (2007). Desi: Stefan Kaegi ‘(Rimini Protokol)¢ Lola Arias. Crédito: Foto Caldas F Embora cada uma dessas obras brasileiras do Rimini Protokoll aborde contextos profissionais distintos, é a énfase no cotidiano da vivéncia laboral dos especialistas que surge como ponto comum entre elas.’Trata-se de um aspecto recorrente a intimeros espeticulos do coletivo, sobretudo os criados na primeira década do século XI, Na raiz do pensamento cénico do grupo, haveria nfo apenas uma curiosidade antropolégica sobre a rotina mais corri- queira— e por isso mesmo quase sempre invisivel — desses profissionais, como também ur interesse especifico pela dimensio de teatralidade presen- te nos diversos papéis sociais relacionados a0 mundo do trabalho. Como afirma 70 | Julia Guimaraes o diretor Stefan Kaegi, um dos interesses recorrentes do grupo ao lidar com 0 cotidiano é 0 de “[. . .] encontrar lugares da realidade que se paresam de alguma forma com o teatro ¢ enquadré-los". Em Chdcara Paraiso, os depoimentos dos especialistas, assim como ou- tros materiais explorados em cena, buscavam ressaltara forte dimensao teateal que existe por tras do papel do policial na sociedade. Em um dos depoimen- tos, 0 policial Amorim relata ja ter fingido ser bandido para infiltrar-se em grupos criminosos: “Para ser um agente secreto, vocé precisa de ter um pou- quinho do dom de ator na veia”, comenta. Em outra cena, a ex-policial Eliana explica ao piiblico que uma das regras exigidas as policiais femininas nos anos 1980 era a de manter o cabelo sempre curto, o que reforsa a ideia de uma identidade “masculina’ vinculada & profissio. Além disso, o apresentar uma série de treinamentos, regras, estratégias, metiforas, videos e canges motivacionais presentes na rotina laboral dos po- liciais,o espeticulo dava a ver, ainda que indiretamente, o modo como essa teatralidade colabora na construsio ideolégica da instituisio policial ‘Ao cruzar a abordagem do mundo do trabalho com certa perspectiva que busca dar foco & dimensio de teatralidade inerente a ele, as criagdes do Rimini Protokoll dialogam com o campo da representacao por um viés dis tinto daqueles que predominaram nas artes cénicas do século XX. Aqui, jé no se trata mais de apostar na representagio ficcional e dramiitica como forma de aproximar-se da realidade nem tampoueo de opor-se arepresenta- 0 por meio da aco performativa. E, sim, de projetara essas duas instancias —a agdo e a representag3o — uma perspectiva critica e reflexiva Nesse sentido, o que se pode inferir dos contextos revelados pela insta~ laséo Chacara Paratio caminha por duas perspectivas distintas. De um lado, busca-se subverter esterestipos e clichés identitarios, ao colocar em cena po- liciais de diferentes setores e seus respectivos relatos cotidianos, a fim de pro {jetar uma mirada mais complexa sobre esses universos. Por outro, hé intento de sublinhar a dimensio de repetisao e teatralidade inerente aos papéis so ciais vineulados ao mundo do trabalho, aspecto que acena, por sua vez, para os valores que atravessam suas construgies sociais. Nessa conjugagao, seria possivel encontrar ecos do paradoxo que Caro! Martin identifica como constitutivo dos chamados teatros do real. Para a pesquisadora, trata-se de um campo marcado por, simultaneamente, explorar 16 Entrevista disponivel em: Julia Guimaraes Mendes, Tetrer do rea, rates do outro: ters de ctidiane em ona contempordnea. 2017, Doutorado ern Teoria ePritiea do Teatro. S10 Paulo: Escola de Comunicagdes e Artes, Universidade de Sio Paulo, 2017 Entre amadores, especialistas ¢espectadores 71 c perturbar as nogées de autenticidade. “[. . .] 0 teatro do real muitas vezes colocao original em questao, mesmo quando emprega o que Benjamin cha mou de aura’ do original [.. .]". Nesse paradoxo, seria possivel também encontrar ecos das constatagées de Bishop a respeito da presenga de pessoas comuns’ na arte contemporanea, Trata-se de uma estratégia que tanto serviria, como foi visto antes, para pro- blematizar binarios como “auténtico e artificial”, mas também para “dar visi- bilidade a certos setores sociais e torné-los mais complexos”,"* tal como ocor- reem Chdcara Paraiso, A ficgio como conceito expandido no trabalho da Cia, Hiato E também um intento semelhante de sublinhar, e a0 mesmo tempo desconstruis,a dimensio de teatralidade presente no cotidiano que impulsio- na a brasileira Cia. Hiato (SP) a realizar trabalhos pautados pela autorrefe- rencialidade de quem ocupaa cena. Ao compreender fico como um con- ceito expandido — nio mais pensado em oposicao 4 realidade e sim como um de seus elementos constitutivos — o grupo explora criagées" que sublinham ‘a importincia das metiiforas, da relago eu-outro ¢ de modelos narrativos preexistentes para a construgio da subjetividade e da meméria, seja essa pes soal ou coletiva. No espeticulo Amadores (2016), so também as histérias de vida dos participantes que ganham relevo em cena, Na obra, tanto o formato do depo- {mento como também a existéncia de perguntas respondidas coletivamente colaboram para dar a ver aspectos diversos de suas biografias. Enquanto os relatos mais longos usualmente abordam conflitos e superagdes pessoais, as ‘enquetes curtas ressaltam uma perspectiva mais social, vinculada a perguntas sobre “quanto ganham por més”, “quanto tempo levam para chegar até o teatro”, “qual foi seu primeiro emprego” ou “o que pretendem fazer com 0 caché do espeticulo”. Se nas obras do Rimini Protokoll os néo atores ganham 0 nome de especialistas, no trabalho da Cia. Hiato eles so pensados como amadores, 0 17 Tradugio minba paras, . J theatre ofthe rel often cll even as it employs what Benjamin called the aura! ofthe original’ ‘Real, Basingstoke ¢ Nova Yorks Palgrave Macmillan, 2013, p10 18 Claire Bishop, op. cit, . 238. 19 Como exemplo, podemos citar o projeto Fie (2011), eriagio anterior do grupo ‘composta por solo biogrificos dos stores da Cia, Hato. Nele, ohn entre realidadee iegio surge problematizado, assim como a rlagio de interdependéncia entre metnéria natrativa © subjetvidade. be orginal into question, Carol Martin, Theatre ofthe 72 | Julia Guimaraes que surge ressaltado também no préprio titulo da montagem. Aqui, além dos depoimentos e das respostas coletivas, os participantes também apresentam no paleo pequenos niimeros artisticos amadores. Enquanto alguns dancam, outros tocam instrumentos, como violio e piano, ou ainda cantam trechos de cangoes de sua predilegio. Como afirma o diretor e dramaturgo do espeticu- 0, Leonardo Moreira,” 0 trabalho com amadores surge do interesse por compreender a funcio social da arte na vida cotidiana das pessoas. Alem dos participantes previamente selecionados, todos eles externos a0 mundo do teatro, o elenco é também composto por atores da Cia. Hiato.” No entanto, nao hi, no trabalho, diferenca de status entre amadores ¢ profis sionais. Isso porque é a autorreferencialidade dessas pessoas — e nao suas capacidades expressivas — que surgem como premissa para se estar em cena. A indiferenga em relagio a essas duas categorias deve-se ao fato de que todos os participantes esto submetidos a um mesmo conjunto de regrasa orques- trar sua participagio, Embora nao tenham existido critérios especificos para a selesio dos amadores, a premissa da diversidade é evidente na composigao do elenco, que inclui um jovem imigrante angolano; uma faxineira; uma dona de casa; um advogado em seu quinto ano sabitico; um bailarino atendente de telemarket- ing, um ator pornd; um téenico de som transexual; uma estudante de jorna- lismo; um cientista social ex-morador de rua; um lutador de boxe profissio nal; um eritico de cinema; uma professora de escola piblica; uma advogada, um senhor italiano e alguns atores da Cia. Hiato. Além das agbes especificas descritas acima, a “moldura cénica’ escolhida para entrelagar as distintas cenas do espeticulo foi o filme Rocky — um lutader (1976). Baseada em um modelo de roteiro tipico dos blockbusters estaduniden- ses, denominado “jornada do heréi”, a obra escrita e protagonizada pelo ator Sylvester Stallone foi escolhida como fio condutor da montagem no intuito de evidenciar o modo como muitas das histérias contadas em cena obedeciam a uma estrutura narrativa semelhante a do longa-metragem. Isso porque @ 20 Uma versio editada desta entrevista eta publica ne: capitulo, Acntrewrtana integra esta disponivel em alia Gi tres do cute; atores do cetidtano em cena contemperdnea, De to, Sio Paulo: Escola de Comanicagies e Artes, Univers lvro, na sequéncia do atual Mendes, Teatro de rea tra- trad enn Teoria Pratiea do Tea sde de Sio Paulo, Sio Paulo, 2017, 721 No clenco, esto o# amadores Chicio Parsizo, Dalva Cardoso, Dom Lino, Fabi de Farias, Giovanni Barontini, Mircia Nishitani, Mauricio Oliveira, Naim Bernardo, Neona Kaku Ardo Isdaro Jonge, Oswaldo Righi, Roberto Alves, Ronaldo de Morais e Rose Storcin, além dos atores da Cia Hiato Aline Fildcomo, Fernanda Stefansk, Maria Ameliz Farah, Paula Piearellie Thiago Amaral Entre amadores, especialistas e espectadores 73 maior parte dos relatos pessoais apresentados em Amadores poderiam ser igual mente pensados como hitérias desuperayéo. E 0 caso do depoimento do jovem imigrante angolano que diz ter en- contrado em Deus um conforto para a situagio de ter visto os pais se torna- rem presos politicos (Nsona Kiaku Arao Isidoro Jorge). Ou da faxineira que chegou a dormir dentro do necrotério da Santa Casa e hoje faz participages esporadicas como “atriz do cotidiano”® (Dalva Cardoso). Ou, ainda, do ad- vogado que encontrou na meditacao um meio de contornar a depressio (Gio: vanni Barontini) Amaderes (2016). Cia. Histo. Crédit: Ligi Jardimn Embora os efeitos de autenticidade vinculados a0 dispositivo do teste- munho se fagam notar por meio da reagao da plateia, recorrentemente muido~ sa, catartica e emotiva, sua “aura de originalidade” é contrastada pelos comen- titios tecidos pelo critico de cinema Roberto Alves, que também integra ala de amadores do elenco. Ao refletir sobre Rocky — um lutador, questiona a onipresenga das narrativas de superagdo no mundo contemporineo — que, 22. Em seu depoimnento, Dalva conta que também fez uma paticipagio especial ma obra site-specific do Teatto da Vertigem, Ultima Palavra¢apenaltima 2.0 (2018) 74 | Julia Guimaraes em suas palavras, nos desgasta “com sua insisténcia midiética e seu rango moralista” 2" Na peca, seus comentirios surgem com o intuito de problematizar as ficgdes hegemdnicas ¢0s “clichés” narrativos da sociedade do consumo, verifi- cados tanto no filme de Stallone como também nos depoimentos apresenta~ dos em Amadores. Roberto critica, por exemplo, a metéfora da superagio, a0 mencionar a incorporagao das chamadas “praticas motivacionais [. . .] por empresas em busca de maior lucro”. Além disso, sublinha um dos paradoxos centrais da montagem da Cia. Hiato, que consiste em, simultaneamente, as~ sumir e desviar-se dos “clichés”. “A questio é: fora a jornada do heréi no haveria outras estruturas que pudessem deixar intactos nossos cacos ¢ pedacos a0 invés de ordené-los de acordo com a légica e a moral dos filmes ameri canos?” indaga. ‘A partir desses tensionamentos, seria possivel propor que a reflexivida~ de construida na obra estaria sintetizada no seguinte paradoxo, proferido pelo cientista social Ronaldo de Morais: “De que estamos falando, de clichés? ‘Ou seria de estigmas que caem por terra a cada vida partilhada?”, Assim como ocorre em Chdcara Paratso, ha também alguns significados que poderiam ser entrevistos na opgio por trabalhar com pessoas externas 20 mundo da arte. Em um patamar, 0 que se projeta com os amadores é uma dimensio de alteridade, no apenas circunscrita 3 diversidade dos participan tes, mas também ao modo como seus depoimentos colaboram para tornar mais complexaa apreensio de suas identidades. A partir da revelagio de as- pectos menos dbvios de seus comportamentos, figuras como o “ator porno” ou o “transexual” deslizam da dimensao de tipos ou estereétipos categéri- cos para a de singularidades nao apreens Por outro lado, havia igualmente uma espécie de alteridade conceitual’a perpassar essas presengas, na medida em que funcionam — especialmente no contexto brasileiro — como uma excesao A propria tradigdo cénica, sobretudo quando aparecem em obras circunscritas 20 Ambito do teatro profissional, a partir de uma participagao cotidiana e autorreferencial Além disso, 20 propor paralelos entre os depoimentos dos participantes 0s modelos narrativos hegeménicos da indiistria cultural, Amadores busca evidenciar, por meios distintos, um aspecto semelhante ao identificado em Chacara Paraiso: a “natureza performativa ¢ teatral da vida cotidiana ea natu- 28 Trechos da pega Amadores— escrta por Leonardo Mareita endo publicada —exts: dor de gravasio de video do espeticulo Entre amadores, especialistas ¢espectadores 78 reza artificialmente construida da identidade”. Para as autoras Ulrike Gar dee Meg Mumford, trata-se de um interesse comum a muitos dos eriadores que exploram o campo batizado por elas como “teatro de pessoas reais” Alem disso, a estratégia de identificar uma estrutura narrativa que per~ passa tanto a esfera da vida como a do cinema, ¢ também a prépria decisao de algar os amadores A categoria de protagonistas da criagdo, poderiam ser enten- didas como operagées correlatas & definigao de fieydo desenvolvida pelo filéso~ fo francés Jacques Ranciére, no ambito do que ele nomeia de “regime estético das artes” * Para Ranciére, a “ficsio da era estética” estaria pautada justa~ mente pela “indefinigao da fronteira entre a razio dos fatos ¢ a razio da ficgo", ao definir “modelos de conexio entre apresentagio dos fatos e formas de inteligibilidade” que permitam tal indefinicdo. Trata-se de uma premissa que dialoga com a ideia de “ficgZ0 expandida”™ entrevista nos trabalhos da Cia, Hiato. Em ambas, a ficgdo ji ndo seria pensada em oposigao a realidade, e sim, como um de seus elementos constitutivos. Como ressalta Ranciere, nio se trata de dizer que “tudo é fics”, mas de ampliar esse conceito para além do mundo da arte e da imaginacio. Como exemplo, o filésofo francés cita 0 documentitio O tiimuls de Alexandre,” de Chris Marker, para propor que, alia fiego ndo consiste em contar histérias inventadas. E, sim, em “combinar diferentes tipos de rastros (entrevista [. ..] documentos de arquivos, trechos de filmes documentirios ¢ de fics30) para propor possibilidades de pensar essa historia”. Nesse sentido, aficgdo, em Amadores, poderia ser entendida como um modelo que dissolve fronteiras entre razio dos fatos e razio das ficsées justa- mente por pautar-se pela sobreposisio metarreflexiva entre narrativas biogr’- ficas e cinematogréficas. Ao combinar essas estruturas, permite pensar na dimensdo performativa que envolve a construsio de sie da meméria, muitas vvezes estruturadas em conexiio com modelos também encontrados nas ficgdes 24 No original:"An instance of perceived fabrication addressed by re Peoples the performative und theatrical natute of everyday life, and the artic ratte of identity”, Ulrike Garde &¢ Meg Mumford, Theatre of real people: dives encounters at beri bebbel am afer and beysnd. Londses ¢ Nova York: Bloomsbury Publishing, 2016, p. 48. 25 Jacques Ranciére. dl partidha do senivel. Sto Palo: Bditora 34, 2009, p59. 26 Juli Guimaries Mendes. Tatrordo real teator do outro: atores de cotidians em cena 78 | Julia Guimaraes autorreflexivo sobre o lugar que cada participante ocupa no ambito daquela comunidade efémera. No limite, erao préprio perfil coletivo dos espectado res que surgia evidenciado pela obra, ao propor uma reflexio nao apenas sobre os diversos comuns que atravessam 0 publico daquele museu — ow daquele tipo de obra — mas também sobre 0 papel que ele joga no ambito daquela instituigao. Ao propor uma participasao pensada como “coreografia social”, ativada por uma movimentasio no espaco, o dispositivo trabalhado por Cvejié rela- cionava-se ainda a uma hipétese mais ampla vinculada aquela experiéncia:a de que a esfera piblica, para exists, precisa ser “performada’, E essa a tese que estrutura o livro Public Sphere by Performance publi- cado por Cvejié, junto com a pesquisadora Ana Vujanovié norteador do programa Spatial Confessions. Nele, as autoras exploram os conceitos de “co- reografia social” e “drama social” para analisar manifestagoes politicas ¢artis- ticas advindas dos mais diversos contextos, seja o das performances de massa promovidas pelo poder estatal ou da crescente presenga de solos de danga no espaco dos museus. Uma das questées sublinhadas na pesquisa diz respeito justamente a compreensio sobre o modo como essas diferentes manifestaces colaboram para performar a ideologia e a esfera publica, além da pergunta sobre os papéis ¢ posigdes que assume o puiblico em cada caso. E também uma reflexio sobre as comunidades efémeras formadas em toro de uma obra artistica — e suas correspondéncias com a ideia de esfera piiblica — que impulsiona a eriag3o de Dominio Publico (2008), do diretor catalio Roger Bernat, da companhia FFF (The Friendly Face os Pacism). Assim como ocorre no projeto de Cvejié é igualmente a confissto coreografada de opinides e aspectos socioculturais dos participantes que terio destaque na obra. A partir das perguntas feitas ao espectador, surgem questdes basicas sobre os individuos que integram aquela experiéncia, do tipo: “Quem sio? De onde vém? Quis slo as relagées que os unem?”, Se em Spatial confessions o entorno com o qual a obra dialoga é um museu de arte contemporanea, na obra de Bernat, que ji foi apresentada em diversas cidades brasileiras, ¢ 0 proprio espago piiblico que surge como Jocus para a experiéncia coletiva, o que acena para uma aproximagio, cada vez mais explorada atualmente, entre espaso piiblico e esfera ptiblica, Usualmente realizado em prasas ¢ outros ambientes abertos da cidade, Dominio publice 531 Bojan Cvejié & Ana Vajanovie Public Sphere by Performance, Berlin: Boooks, 2012. Entre amadores, especalistas ¢expectaderes 79 se-vale dos fones de ouvido para transmitir perguntas e instrugdes aos par ticipantes. A agio central dos espectadores consiste em caminhar pelo espago, de modo que performe seu posicionamento sobre as questdes propostas. Pergun- tas do tipo: “vocé pensa em ter filhos2” ou “vocé ganha mais de R$ 3.0002” sto respondidas a partir da movimentagio dos participantes, que colabora para formar e dissolver efémeros micleos identitarios a cada nova enquete. Embora tampouco cxista aqui, assim como na obra de Cvejié uma si ‘tuagdo propriamente de palco-plateia, o piblico participante também fun ciona como espectador de si mesmo, 20 observar os grupos que compée junto aos demais participantes. Como analisa Dourado,” trata-se de um jogo que assume os “contomos de uma encenagio da vida em sociedade”, ao convidar os espectadores “a perceberem a dimensio performativa de suas identidades”. ‘Dominio Pablieo, Diresio: Roger Ber (FFF). Crédito: Blenda Conceitualmente, esse tipo de obra parece funcionar por reverberagio. Ao revelar 0 contexto mais imediato de seus espectadores, acaba por expor também, ainda que de modo indireto, o espago fisico onde a obra acontece, a instituigio que a acolhe, e, em muitos casos, caracteristicas da cidade e do pais que a abriga. Isso porque, 20 tomar conhecimento do contexto publico e 32 Rodrigo Dowrado, Cobertura Fiae: Dominio Pablieo, Dissio do farole os contratos teatrais, Revista Continente publicasio da Companhia Editora de Pernambuco, 2011 80 | Julia Guimaraes social daquela coletividade, outras conexdes tornam-se passiveis de ser feitas, sejam essas simbélicas ou sociolégicas, o que muitas vezes esti sugerido tam bém na estrutura de formulagio das perguntas feitas durante o espeticulo. A obra pensada como importagio de dispositivos Na parte final de Dominio Piiblico, a légica das enquetes é sobrepostaa um mecanismo de participagio diverso, Pelos fones de ouvido, os participan tes sio informados de que estio a participar de uma espécie de batalha, Al- guns pertencem a0 grupo dos policiais, outros dos prisioneiros. Uma musica dramatica projeta um tom de suspense fake e itsch A experiéncia, A partir desse momento, o jogo consiste em brincar com a representagao desse contex- to imaginatio, o que inclui ages como simular a morte, atender a um prisio- neiro ferido ou render-se diante de um policial. Como foi sugerido no inicio deste texto, um outro modo recorrente de criar obras participativas na atualidade diz respeito & importasa de estruturas ce dispositivos sociais preexistentes a serem ativados/performados por espectado- res ou convidados. Embora essa légica nao exclua a possibilidade analisada anteriormente, de se explorar o contexto de vida dos participantes, 0 foco recai sobre um principio diverso ‘Tal como os ready-mades de Duchamp, poderiamos pensar que a opera- 40 privilegiada nesse tipo de obra diz respeito a uma agio de deslocamento. Aqui, no entanto, o que se desloca néo é um objeto em si, e sim, uma deter- minada estrutura, uma organizacio especifica para que pessoas possam part cipar coletivamente de um acontecimento cénico. A partir dessa operagio, o que parece interessar é a construgao de um jogo reflexivo com os mecanismos de representagao social, no quala explora- fo de estruturas preexistentes surge, sobretudo, com o intuito de evidenciar sett modo de funcionamento. “O que se entrega 20 piiblico nao € uma repre- sentago, e sim um jogo para que se represente através dele, de forma indivi- dual e coletiva ao mesmo tempo”, analisa Cornago.** ‘Muitas das obras que se valem desse procedimento sio pensadas como reenactments, nos quais 0 piblico refaz diilogos e movimentos extraidos de 33 No original: “Lo que se entrega al pablico no es una repre para que te represente através de él, de forma individual y coleetva al mismo tiempo”, Osear Cornago. Eniayer de teoria excénisa Sobre teatvaldad, pulico y demecrasia, Madris Abada Ecditores, 2015, p. 286, Entre amadores, especialistas eexpectadores 81 contexts diversos, como filmes, coreografias, episSdios historicos, ete. Em ou ttos casos, tém-se a apropriacao de situagdes ou regras em funcionamento na sociedade, ativadas coletivamente pelo piblico. E embora se trate, quase sempre, de um jogo que envolve algum grau de representagio, a adogio de papéis raramente se confunde com a interpretagao de um personagem. Os partici- pantes seguem sendo simplesmente fazedores. Em cena, realizam ages con- «retas, como ler, escutar, conversar, dangar, lembrar, protestar, decidir, julgar Alguns exemplos poderiam ser encontrados no proprio conjunto de obras participativas de Roger Bernat. Coreografias de Pina Bausch (Sagrasao da Primavera, 2010), discussdes de casais importadas de filmes (We need to alk, 2015) ow regtas de um tribunal (Please, continue Hamlet, 2011) sto alguns dos materiais explorados na construgio dessas pegas. ‘Jiiem outros espeticulos, aparecem dispositivos que remetem a estrutu- ras de representagao politica. F. 0 caso de Pendente de voto (2012), que explora as regras de um parlamento; de Numax-Fagor-Plus (2014), centrado no dis- positivo das assembleias ou de Desplazamiento del Palacio dela Moneda(2014), voltado para o formato das manifestacbes. Ao deslocar os dispositivos de contexto ¢ explori-los sob a moldura artistica, o que se evidencia &, muitas vezes, sua prépria légica interna. “Os dispositivos artisticos sdo aqueles que se apresentam e se constroem como, tas, traindo seu préprio mecanismo ao denunciar sua condigao de dispositi~ vos", observa Cornago."* Nesse sentido, trata-se de obras que constroem suas “formas de inteligibilidade” na propria estrutura do dispositive criado. Nao mais de modo “semantico”, a partir de narrativas ou outros elementos discur- sivos. E, sim, de maneira “sintitica”, pela conjugagao entre regras e participa 40."O que fazemos € criar uma regra sintatica, uma linguagem’, sintetiza 0 diretor Roger Bernat.* Nesse sentido, 0 contato com os contextos abordados estaria atrelado a uma atitude performativa por parte do espectador, ao ativar seu funciona- mento. Na raiz dessa operacdo, o que surge ¢ uma forma original de se tragar 34 No original: “Los dispostivosartistcos son como tale, traicionando ni propio mecanismo a de Comnago. Enayos de teora ecenica. Sobre eatralidas ee, 2015, p. 286 35 Bernat apud Julia Guimaries, Cotidiano © imersio no teatro de Roger Bernat: a Lingvagem eénica reinventada, ARJ~ drt Revearch Journal, Revista de Pesquisa em Astes das assaciagdes Abrace, Anpap e Anppom, em pareeria com a UFRN, vol. 3,” 1, 20%6, p. 190. | pablicy democrasa. Mads: Abada Edito 82 | Julia Guimaraes “trajetérias entre o visivel, o dizivel e 0 pensavel” a respeito de um recorte especifico da realidade. 000 Ao refletir sobre participagio de espectadores e no atores no conjun- to das obras analisadas aqui, é possivel observar que essa estratégia cénica surge atrelada a uma investigasio de fundo comum a todas elas, Em sua base, haveria uma pergunta sobre as fangées sociais, politicas e simbélicas da tea- tralidade e da performatividade na vida cotidiana A pergunta em si no é nova e, no limite, remete & prépria metifora do theatrum mundi —ou seja, da vida como teatro. Trata-se de um campo que no apenas foi explorado por dramaturgos e te6ricos em diversos periodos histéricos, como também aparece, sob diferentes tratamentos, em influentes te- ses sociolagicas ¢ antropolégicas eiadas nos tltimos cem anos, a partir de autores como Erving Goffman, Victor Turner e Richard Sennett. No entanto, éjusta- mente a escolha por investigar essa funsio social da teatralidade e da perfor- matividade no interior do proprio marco artistico — sem, contudo, recorrer 20 drama ¢ & ficgio representativa — o que colabora para projetar, nessas " particular & essa antiga questio. ‘Tal aspecto, por sua vez, fz ecoar novamente o cariter de indefinigao entrea “razdo dos fatos” ea “razdo da ficgio” que estaria na raiz do chamado regime estético das artes. Nesse sentido, seria possivel propor que a operagio privilegiada nessas obras diz respeito a uma dupla mirada sobre a fiero Nelas, a ficso se localiza tanto na estrutura sensivel que organiza os materiais exibidos na obra como também naquilo que se revela a respeito desses materiais. Pois o trajeto entre o visivel, 0 dizivel e o pensivel trasado por essas criagdes é construido de modo a ressaltar certa dimensio de ficciona- Fidade que atravessa cada um dos contextos abordados, sejam esses vinculados aiinstituigdes, 20 mundo do trabalho, a processos de subjetivagio ou A cons trugdo da esfera publica Em Chdcara Parafso, por exemplo, ¢a combinagio de visibilidades da~ dasa diferentes tipos de rastros— depoimentos, demonstragies de treina~ mento, videos institucionais, cenografias, etc. — que sugere a existéncia de uma racionalidade e de uma ideologia especifica a organizagio social da ins- tivuigao policia responsivel nao s6 por influenciar os comportamentos apren- obras, um “sistema de evidéncias sensiveis” 36 Jacques Ranctre, op. eit, p59 37 Tider, p15. Entre amadores, especialistas ¢expectadores 88 didos e performados pelos policiais, como também por construir um imagi nario piblico especifico acerca da profissio. Jiem Amadores, o foco recai sobre as fides que estruturam a construgio da meméria e da subjetividade. A partir do modo como os depoimentos s30, exibidos em cena —seja pela edigio textual do contetido, pelos comentarios ‘metalinguisticos ou pelos paralelos tecidos com o filme Rocky —, & possivel pensar nessa construgéo como um processo complexo, fruto de atravessamen- tos miltiplos, influenciado tanto pela relacio eu-outro," como também pe- los filmes que vemos, as mtsicas que escutamos, os livros que lemos. Em resumo, pelas “ficgées” que nos perpassam ou que consumimos. Nesse sentido, a nogio de fic¢ao que se entrevé nessas obras colabora para aproximar e, por vezes, fundir, termos que num teatro estruturado, por ‘exemplo, com base em personagens, sio mais claramente delimitados, como 0 de teatralidade e performatividade, ou o de atuago" endo atuagao”” Quando ‘o que aparece em cena é vida cotidiana, a consequéncia pode ser uma com plexidade cada vez maior em delimitar as fronteiras sobre cada uma dessas instancias, o que pode resultar na projesdo de novos significados sobre elas. Finas criagdes pensadas como coreografias sociais — caso dos trabalhos de Bojana Cvejice Roger Bernat —a construgio cénica de uma correspondén- cia entre respostase movimentes projeta um entendimento performativo sobre ‘o que seria a esfera piblica. Nas obras, a formacio e dissolugio de comunida des efémeras — viabilizadas por essa logica das contfissdes espaciais — permi- te estabelecer uma percepedo particular sobre o lugar que cada participante ocupa naquela coletividade Aqui, nio se trata apenas de evidenciar, a partir desse jogo coletivo, 08 comuns que atravessam aquela comunidade eas configurasées especificas projetadas pelo perfil do piblico a cada apresentagio. Mas também de compre- ender que a construgio dessas comunidades efémeras obedece a uma légica relacional, vinculada a uma negociagio constante entre individuos ecoletivos. Sob uma perspectiva conceitual o que essa estrutura/modo de olhar sugere € a propria condigio instivel, hesitante e luida daquilo que se entende por es- fera publica, a0 sublinhar que os posicionamentos individuais se constroem sempre em uma relagio de dependéncia com o seu contexto de enunciagio. 38 Muitos dos depoimentorabordam o modo como comentiiosectcasinflenciaram cra deciva a construsioidentitiia dos patcipanter. Nas cntclnhas desea Ens, havetiauina nog de ujeto buseada enn una perspectivarelacional,vnelada 3 colagao entre a percep de se a projesio do outro, ~ 439 Michael Kirby. On acing and not-actng. The Drama Review~TDR, vol. 16,21, 1972, pp. 5-15. 84 | Julia Guimaraes Com isso, acena para a dimensio de performatividade na raiz da sua propria constituicio. Por sua vez, nos trabalhos pensados como importasio de dispositivos,o modo como a participacao do piiblico elaborada sugere um jogo duplo de desvelamento de papeis sociais. No caso dos reenactments, por exemplo, a situagdo a ser performada surge desconstruida pela logica de repetigao, cir- cunscrita ao seu funcionamento. De modo semelhante, ao ser deslocado para ‘o centro do acontecimento cénico, é 0 proprio papel do espectador que surge questionado, ao ser concebido cenicamente nos moldes de uma construgao. A partir desse jogo, simultaneamente pensado como experiéncia c como metit fora, & possivel rfleti sobre como nos relacionamos com a participagio ¢ com os dispositivos dentro e fora de cena Embora explorem procedimentos cénicos muito diversos— alguns de~ les mais evidentes em seu cariter de dispositivo, outros mais centrados em estruturas narrativas —as obras analisadas aqui permitem vislumbrar, como foi dito inicialmente, algumas transformagGes atuais sobre o modo como uma ctiagao é pensada e desenvolvida. Por um lado, a participagio de pessoas externas ao mundo da arte cola~ bora para projetar entendimentos renovados sobre as fungées sociais, simbé: licas e politicas da teatralidade e da performatividade que atravessam 0s con textos abordados nos espeticulos. Ao expor um cotidiano menor em cena, essascriagdes logram ir além das teatralidades estereotipadas acerca de grupos especificos, evidenciando contornos mais sutis acerca de sua construgao iden- titdria e social, Além disso, nas obras construidas como dispositivos, tais “fun- ‘ses sociais” muitas vezes aparecem na prépria estrutura da participagao pro- posta, o que projeta ao espectador uma reflexao sobre seu funcionamento a partir de uma vivencia performativa de suas regras. Por outro, €a propria funcao do artista que se amplia em suas possibi lidades, sobretudo no que tange 20s didlogos como real. Aqui, agdes como as de “encontrar”, “importar”, “conectar”, “reorganizar” e “sobrepor” surgem na base da operagio criativa proposta nas obras, o que resulta em uma tessitura complexa de significagdes, construidas a partir dessa premissa acerca da inde- finigZo entre a razao dos fatos e das fiegbes. No limite, 0 que essa concepgio artistica projeta é uma expansdo continua sobre aquilo que “a arte faz” ou aquilo que “faz ser arte”, central a logica do regime estético. um patamar mais amplo, essas transformagées podem ser pensadas como uma forma especifica de tecer reflexées sobre a propria crise das represen 56 Jacques Ranciéte, op. cit, p. 36, Entre amadores, especialistase espectadores 85 tages. Aqui, nao se busca mais elaborar essa crise pelo vies da negagiio, ao recusat/parodiar mecanismos como a teatralidade, a atificialidade e o regime de aparéncias.E, sim, pela construgio de obras que se apresentem como uma reflexio-jogo, voltada A intensificasio da consciéncia sobre seu funcionamento, ‘Trata-se de uma estratégia cénica que coincide com um momento no qual se pereebe, por vias distintas, as fragilidades politicas circunscritas 20 gesto de abster-se da representacao. Nesse sentido, nao se trata de aderir ple- namente ala, nem de recusicla. Mas de compreender como a representagio colabora na construgio do comum, a fim de que possa ser mais bem explora dg tanto dentro quanto fora do teatro Referéncias [ARDENNE, Paul, Un arte contestualcreain arta n medio urbane en itu deinteroen- tion, de partipacon. Murcia: Cendeae, D. 1, 2006 BISHOP, Claire. Artificial Helle Participatory Art and the Politics of Spectatorsbip. 2012. Lon- dee: Verso, 2012, BOURRIAUD, Nicolas. 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