Está en la página 1de 296
MARTIN HEIDEGGER CONFERENCIAS E ESCRITOS FILOSOFICOS NoTA DO TRADUTOR Em nossa época observamos um proceso de despersonalizagdo do filosofar. Em consegiiéncia, a figura do pensador solitério, que empolga e arrasta as massas académi cas, perde em importancia ou tende a desaparecer. Em seu lugar aparecem os trabalhos coletivos e a filosofia assume o papel de regulador de um fecundo labor interdisciplinar. Heidegger tera sido uma das iiltimas grandes figuras que, contra sua vontade pes soal, fornou-se um ponto de partida para diversos debates decisivos no cendrio da filoso- fia académica do séeulo XX. E verdade, 0 fildsofo foi a testemunka de uma época; mais ‘pelo contetido de suas andllises, que pelo estilo pessoal de comportamento. Retirado na provincia, irradiou, através dos alunos de muitos patses do mundo, que o vinham procu- rar, una temédtica que se matizaria, de acordo com os ambientes para onde era levada. Situado entre as duas grandes guerras, envolveu o motivo central de sua interroga- ¢do com uma linguagem muito ao gosto da época e com andlises hist6ricas e existenciais, que pareciam refletir a angtistia do mundo de entao. O jargdo expressionista e o elemento patético de certos temas de sua obra capital, Ser ¢ Tempo. foram tdo rapidamente assimi- Jados que terminariam encobrindo a questéo, central que movia as intengdes do filésofo: 4 questdo do ser. Néo foi esta, mas aspectos existenciais, antropoldgicos, éticos que for. ‘maram a moldura em que foi recebido Ser e Tempo, antes e sobretudo, apos a Il Guerra Mundial. Para melhor compreender a posiedo do pensador e de sua obra, convém situd-lo na vertente de uma idéia que nasceu com Dilthey e Nohl, e se bifurcou em dois tracos anta- génicos, que ainda hoje correm paralelos, sem esperanca de uma confluéncia. De Dilthey e Nohl receberam Heidegger e Carnap a idéia da superacdéo da Metafisica. Tomada como tarefa, esta idéia desdobrou-se, de maneira bem diferente, nos dois filésofos, geran do, nos seus seguidores, duas tendéncias separadas por barreivas intransponiveis até hoje. Heidegger, por influéncia dos contatos com a erttica de Nietzsche ao platonismo e cristianismo e com a polémica de Kierkegaard com a filosofia reflexiva do idealismo especulativo, moldou uma forma muito original de superacdo da Metafisica. O filésofo convenceu-se de que, até 0 seu tempo, toda a histéria da ontologia ndo passara de uma teologia e que, com os neokantianos, caira numa teoria do conhecimento.A Metafisica era esta hist6ria da ontologia como onto-teo-logia. Heidegger propds uma ontologia fundamental que, através de uma analitica exisiencial, preparasse um modo de colocar a questdo do ser. Enido, conduzido pela andlise do tempo, procederia a uma destruigdo da ontologia da tradi¢do, superando, assim, a Metafisica. Num processo regressivo, o fil6- sofo realizou, utilizando-se de um método fenomenoldgico husserliano radicalizado ¢ transformado, um adentramento nas camadas da existéncia, de um lado, na hist6ria da filosofia, de outro. Ambas as incursdes revelaram a questdo esquecida: a questéo do ser. "A temporalidade como sentido da preocupagdo que constitui o ser do ser-at tornar-se-ia 202 NOTA DO TRADUTOR 0 horizonte para a interrogagdo do ser; e a questdo do ser fora precisamente esquecida por wna falsa solugao dada ao problema no tempo na hist6ria da Metafisica ocidental. Deste modo, Heidegger move-se sempre em dois niveis; ao nivel da andlise da exis- téncia e ao nivel da andlise da historia da filosofia. Seu método the permite este modo paralelo e reciprocamente imbricado de interrogagdo, Pois conduz-se no modelo bindrio de velamento e desvelamenio: hé um encobrimento radical, ao nivel da existéncia, ¢ outro, ao nivel da historia da Metafisica. Este encobrimento vela a questiéo do ser-no plano da existéncia e no plano da histéria. A superacdo da Metaffsica mostrard que 0 ser sempre se vela no ente e que o homem tende a esquecer este velamento. Importa pensar 0 ser velando-se sempre e ndo propriamente expd-lo a luz da objetivacdo, 0 que seria ‘Confiundi-lo com o ente. Carnap entenderia de maneira bem diferente a questiéo da superagdo da Metafisica. Props sua solugdo no conhecido ensaio de 1932: Superagao da Metafisica pela Andlise Légica da Linguagem. Todo 0 movimento neopositivista, inspirado em Frege, levado avante por Wittgenstein através do Circulo de Viena, encaminka-se nesta diregéo: a Metafisica constitui-se de proposigées destituidas de sentido. A anélise ldgica de suas proposi¢ées levard @ sua superagéo. Realizada esta tarefa, o pensamento neopositivista envereda pelo caminho fecundo do pensamento ldgico e da filosofia das ciéncias. Enquanto a filosofia das ciéncias pée todo 0 seu empenho em promover a atividade cientifica na era da técnica, através dos subsidios indispensaveis da reflexdo metodold gica, Heidegger vé, em todo este processo, um signo do esquecimento do ser. Sua erftica 4 inelutdvel invasiéo do planeta pelo dominio da técnica ndo deve ser vista como postura anticientifica ou simplesmerite reacionéria e pessimista; ele quer salvar um espaco essen- cial para 0 humano, que ndo pode ser dissolvido no processo tecnocratico, e nisto coin- cide singularmente com pensadores neo-hegelianos € neomarxistas. Quando afirma que “a ciéneia ndo pensa”, néo 0 faz como uma critica, mas como uma constatagao do que é a estrutura interna da ciéncia. Heidegger reconhece o fendmeno da autonomizagéo das ciéncias do ambito da filosofia como um acontecimento inevitével e que nao possui nada de negativo. O que ele quer impedir é que a razéo se instrumentalize inteiramente e perca a visdo do todo. Também para Heidegger esté morta a possibilidade de wma filosofia pri. meira, no sentido classico, ¢ com isto libertou ele o homem e a obra humana de modelos cosmolégicos superados. A recepedo das idéias de Heidegger, sobretudo na América Latina, lamentavel- mente se orientou no sentido de compreendé-lo como restaurador de uma filosofia pri- meira e dos mitos ontolégicos superados. Nao apenas pelas influéncias que recebeu, também pelo sentido de abordagem de sua temdtica, pelas vivéncias pessoais, pelo nivel de consciéncia politica e pelo contexto historico em que se situava, mas sobretudo pelas pretensées falsas de uma problemati- zagdo e tematizaedo certas, revela Heidegger tragos reaciondrios. Nao é sua passageira adeséo a0 nacional-socialismo, cujas implicagdes bem cedo reconheceu que deve ser vista como iinico elemento de peso no julgamento de sua posi¢éo politica. Hd uma certa sobranceria que the vem da consciéncia de ser “o pastor do ser que o torna vulnerdvel quando se-trata de fazer ju‘z0s histéricos que tém a ver com 0 aqui e agora. Move-se no plano do ser e, a quem se move apenas neste plano, a asticia da razdo mostra muito cedo que the faltard 0 senso da proporedo para as coisas humanas, senso que s6 poderé advir de um conhecimento cieniffico das diversas regides dos enies. A tentacéo de apresentar- fewla. E Heidegger nem se como profeta, enquanto se é fildsofo, além de absurda é rid BiBgiO NOTA DO TRADUTOR - 203 sempre consegue fugir a esta tentacdo. E 0 que muitas vezes mais chama a atencéo & encobre sua enorme coniribuigdo para o pensamento do século XX. Além de recolocar a questo do ser numa dimensdo que a libertou das ilusdes de uma ontoteologia; além de estabelecer uma distinedo clara entre as questées ontoldgicas € as questdes Gnticas; além de libertar definitivamente a filosofia e de separd-la das visdes de mundo; Heidegger destruiu o sentido ilusdrio da metéfora da reconciliagdo de historia e natureza, enquanto ela implica uma busca de identidade absoluta. Esta metéfo- ra, base de todas as utopias, retoma, nele, suas verdadeiras dimensdes: 0 homem deve assumir-se na finitude. E de lamentar que tudo isto tenha permanecido implicito em seu pensaniento, faltando-the 0 sentido da mediagéo, a impaciéncia do conceito, para dar-the forma na praxis histérica. _O pensamento do futuro, tdo visceral em Ser e Tempo, nunca chegou a ser conereti- zado em posstveis formas histéricas de reflexdo. Néo podendo superar Hegel — tendo, contudo, nas maos, 0 remédio para a cura da doenca do absoluto —, nunca 0 enfrentou deveras; sempre acabou contornando-o. Por isso tornou-se tao dificil 0 didlogo com 0 pensamento marxista ndo-dogmético e com os neo-hegelianos de Frankfurt. E neles que a idéia w6pica de uma reconciliagdo do homem com a natureza em sentido absoluto deu lugar & idéia da maioridade, do processo de emancipacdo, da convivéncia e comunicacéo sem repressividade. Heidegger abriu 0 caminho, mas demasiadamente fiel a si mesmo, néo chegou a dimenséo crttica, onde tomam forma as interrogagdes humanas no campo da ciéncia, da técnica, do proceso emancipatério, do humanismo, da praxis, enfim. Boa parte do caminho que at esté-se trithando foi antecipado in nuce pelo filésofo da Floresta Negra. Mas este néo péde saltar sobre sua sombra. Talvez nesta fidelidade a si mesmo esconda-se a grandeza de Heidegger; nela, porém, abriu ele os maiores flan- cos para a critica. Os textos reunidos neste volume, que cobrem meio século, devem ser vistos e compreendidos nesta perspectiva. Eles representam realmente todos os passos fundamen- tais do pensador. Séo apenas wna pequena parte do que escreveu; mas siio a concentra- a0 de todos os temas centrais que Heidegger desenvolveu desde a grande aurora de Set Tempo. A presenga de Sartre e Heidegger num s6 volume pode ser discutida, Mas sio pala- vras textuais deste: “Aprecio muito a Sartre”’ isto significa, certamente, também e sobre- tudo, sua obra. E na Carta sobre 0 Humanismo que se dé 0 confronto direto do mestre com um inconfundivel diseipulo que, na sua perspectiva, superou omissées do mestre. Deste confronto, langa-se uma luz que poderd dar a envergadura do debate e da anilise fecunda que poderd aproximar textos tao distantes. QUE E ISTO- A FILOSOFIA? Nota do Tradutor Longos anos de reflexdio sobre determinada questo concentram-se ¢ explodem nas conferéncias de Heidegger. Todas elas surpreendem pela densidade ¢ pelas afirmagdes compactas. $6 a andlise mais detida de sua obra revela 0 proceso mediador, 0 longo caminho discursivo, que precede tais manifestagdes. As leituras, as prelegdes, os cold: quios, os seminarios de varios niveis, centenas de folhas manuscritas representam 0 cui dadoso exercicio ao ver fenomenolégico cujo resultado apenas resume nas conferéncias. O que, a primeira vista, pode parecer uma passageira fulguragao na noite do pensamento € alimentado por um paciente trabalho clarificador. Heidegger somente 0 pensador obs- curo, 0 filésofo de sentengas grandilogiientes, para quem desconhece a escola de trabalho de Husserl ¢ nao penetrou nos bastidores onde se escondem os preparativos de certas aparigdes espetaculares do autor de Ser e Tempo. Que é Isto — a Filosofia? O Principio da Identidade ¢ A Constituigdéo Onto-teo- légica da Metafisica sio tais momentos de cerradas afirmagSes, de parada ao fim de rduo caminho. Sao trés conferéncias pronunciadas respectivamente em agosto de 1955. junho de 1957 ¢ fevereiro de 1957. Situam-se na constelagao dos grandes textos de Hei- degger apis a discutida viravolta; fazem parte da década mais fecunda em publicagdes para o fil6sofo. Nos anos 50 foram editados: Sendas Perdidas (1950), Introduedo a Metafisica (1953), Que Significa Pensar? (1954). Ensaios e Conferéncias (1954). O Prin- efpio da Razdo (1957). A Caminho da Linguagem (1959) ¢ outros textos menores. Ainda que escritos no horizonte terminolégico e tematico do segundo Heidegger, 0 trés trabalhos se iluminam quando compreendidos a partir da analitica existencial. Os problemas da correspondéncia ao ser, da relagao de ser e homem e da diferenga ontolé: gica que af sio tratados nascem do confronto com a tradigao, da intengao destruidora do filésofo, do deslocamento da questo do ser e da verdade para 0 ambito da finitude. A linguagem utilizada nao deve ser vista como um jargao sacralizado, como acon, tece na tradigao escolastica, nem como tentativa de clarificagao de uma linguagem obs cura ¢ confusa que serviu de instrumento de anlise de determinado objeto, como acon- tece nas correntes da analitica da linguagem. O filésofo procede experimentalmente. As palavras nao so definitivas, nem pretendem apresentar-se como melhores face a outr: A linguagem é comandada pela coisa mesma, por um determinado modo de ver — 0 mé- todo fenomenolégico — que clarificou um estado de coisas £, sobretudo, das atuais concepgdes da linguagem que se deve distinguir 0 compor- tamento heideggeriano em face do dizer. Se, para simplificar, dividirmos em dois campos as tendéncias que se ocupam com o problema da linguagem, temos, de um lado, a con- cepgao técnico-cientifica da linguagem (por exemplo, Carnap) e, de outro a experiéncia especulativo-hermenéutica da linguagem (por exemplo, Heidegger). Os primeiros procu: 208 HEIDEGGER ram colocar todo 0 pensamento e linguagem, mesmo os da filosofia, sob a competéncia de um sistema de sinais que a técnica e a logica podem construir, isto é, fixar como instrumento da ciéncia. Heidegger assume sua posigao a partir da questo que procura saber qual é a coisa mesma que o pensamento da filosofia deve experimentar ¢ como deve ele dizé-ta. Nestas duas posigdes nao se trata simplesmente de duas filosofias da lin guagem. Mas a linguagem é vista como 0 dominio em cujo interior o pensamento da filo- sofia e qualquer espécie de pensamento e discurso residem ¢ se movem. Trata-se de um confronto de duas posigdes em que o problema da existéncia do homem e sua definig&o esto em jogo (ver a analise que 0 filsofo faz desta questo em Archives de Philosophie, jutho-setembro de 1969, paginas 396-415) Nestas trés conferéncias realiza-se, portanto, um processo ambivalente e circular: questiona-se 0 objeto do pensamento e questiona-se a linguagem que procura dizé-lo. A coisa que se busca dizer e o dizer mesmo se entrelagam numa interagdo circular. Querer definir e separar uma e outro seria pretender romper o cfrculo, perdendo a coisa mesma e, com ela, a possibilidade da linguagem para dizé-la. A coisa mesma que Heidegger persegue aqui é a questo do ser no horizonte da diferenga ontol6gica. Em Que é Isto — a Filosofia?, esta questo torna-se o centro a par- tir do qual se procura dizer 0 que é filosofia; em O Principio da Identidade, esta questio € 0 ponto de partida para uma andlise da relagdo entre ser e homem: em A Constituigdo Onto-teo-l6gica da Metafisica, a mesma questao é analisada especificamente na perspec- tiva da diferenga, para se determinar a relagdo entre ser e fundamento (Deus). Examinando a estrutura dos trés textos, pode-se descobrir uma certa homogenei dade no tratamento das questdes. Hé um esquema que se repete: primeiro: langam-se algumas interrogagSes; segundo: realiza-se a destruigao da tradigdo; terceiro: esboga-se uma resposta, Na tentativa de responder, 0 fildsofo introduz termos novos que procuram expressar o estado de coisas. Na primeira conferéncia: a questo do ser na perspectiva da correspondéncia ao ser é posta a partir do termo “dis-posigdo” (que est na origem da correspondéncia). Na segunda conferéncia: a questo do ser na perspectiva da relagao entre ser e homem é posta a partir dos termos “arrazoamento” e “acontecimento-apro- priagao”. Na terceira conferéncia: a questéo do ser na perspectiva da relagio entre sere Deus (solugao dada pela tradigao 4 questo da diferenga ontolégica) é analisada a partir dos termos “sobrevento”, “advento” e “de-cisio”. Desta maneira, as questdes da filoso- . da identidade e da diferenga so discutidas através de uma linguagem nova que pro- cura aproximar-se da coisa mesma que nelas se mostra. Heidegger introduz os modos novos de dizer aquilo que persegue, através do horizonte hermenéutico. O confronto interpretativo com a historia da filosofia, a atitude violentadora de sua interpretagao (que jf justifica em Ser e Tempo, § 63), dio como resultado uma nova abertura para o ver fenomenol6gico e o que nela se Ihe mostra é expresso com uma nova “violéncia” termi- nolégica: uma etimologia forgada fornece novos semantemas. Quer discutindo sobre a filosofia, quer desdobrando o principio da identidade, quer langando a questio da diferenga, o fildsofo repete trés temas paraleios ¢ aparentemente secundarios: a) Hegel, idealismo, dialética e mediagdo; b) técnica: automagio, tecnolo. gia, cAlculo e planificagdo; c) linguagem. Através de Hegel. realiza-se 0 encontro com a tradi¢do na sua plenitude. Nele ja se anunciam o fim da filosofia ocidental e as possibi dades para um novo pensamento com nova tarefa. No problema da técnica se mostra a possibilidade de captar o mundo atual como totalidade. As questdes levantadas em torno da questo do ser nas trés conferéncias mostram sua forga questionadora na medida em que respondem as interrogagdes da era da técnica. Ao problema da linguagem se reduz, QUE E ISTO — A FILOSOFIA? 209 afinal, o caminho do questionamento porque por ela somos carregados e somente na me- dida em que tornarmos transparente este ser possuido pela palavra somos capazes de co-responder de maneira conveniente ao que a coisa mesma nos pde como tarefa. Ha, finalmente, ainda um outro elemento que se repete nas trés exposigdes do fil6so- fo: a questéo do fundamento, Na primeira: por que 0 ser chegou a ser determinado como fundamento no sentido de causa? Na segunda: por que o traco de identidade no ser se tomou o principio do fundamento? Na terceira: por que o ser tornou-se fundamento fundamentante, enquanto causa sui? Em sintese: por que entificou a tradigao metafisica © ser do ente, essencializando-o? Uma palavra de Hélderlin serve-nos de sugestdo para uma leitura ainda mais pro- funda da unidade destes trés textos de Heidegger. O poeta diz no Hypérion: “A grande palavra, 0 hén diaphéron heautd (traduzo: 0 uno que em si mesmo se diferencia), de Heréclito, somente um grego pade descobrir; pois é a esséncia da beleza e antes de ter sido encontrada nao havia filosofia”, O texto € tirado do Banquete (187 a) de Platio, onde se lé: “Hén diapheromenon auté auté symphéresthai”: “O uno”, diz Herdclito, “se eencontra consigo mesmo, ainda quando tende para a diferenga” A identidade na diferenga é para Hélderlin a esséncia da beleza. Beleza significa para 0 pocta, naquela época, ser. Antes que se descobrisse que o enigma do ser esta no fato de ocultar em si mesmo a identidade e a diferenga, nao havia filosofia. Ou, ainda, 0 ser somente é ser porque é em si mesmo identidade e diferenga; a tarefa da filosofia é questionar o ser nesta dimensao, porque dela brota sua propria possibilidade. Quando Heidegger pergunta: Que é isto — a filosofia?, ele acena imediatamente para a questo da diferenga ontoldgica. Somente na correspondéncia ao ser do ente 0 homem pode filosofar e isto é saber 0 que é filosofia. Na questo da diferenga ontolégica se impdem como pélos determinantes a questio da identidade e a questo da diferenga. Desta maneira, pode-se concluir que os trés trabalhos de Heidegger, aqui reunidos, devem ser meditados, ndo apenas nas questdes que isoladamente levantam, nem mesmo 36 nas quest6es que objetivamente abordam como comuns, mas também, ¢ talvez sobre- tudo, naquela unidade originaria que os funde num s6 bloco: Hén diaphéron heaut6. Par- tindo da pergunta da filosofia em geral, 0 fil6sofo vai ao principio de identidade e deste para a diferenga. A questo: que ¢ isto — a filosofia? recebe sua resposta na andilise das questdes da identidade e da diferenga. Como as questdes da identidade e da diferenga s6 podem ser respondidas pela interrogagao filos6fica, pode-se concluir que as trés questdes se imbricam numa relago circular. Uma pressupde a outra, Nao ha filosofia sem as questdes da identidade e diferenga ontoldgicas; mas também nio se levantam estas ques- t6es sem a filosofia. O fato de estas questdes sempre terem sido postas implicitamente pela humanidade aponta para a universalidade da atitude filos6fica. Somente quando ho- mens Se puseram a interrogar explicitamente em torno delas comegou a filosofia. Para Heidegger, entretanto, a metafisica se afastou deste comego, esquecendo a questiio da diferenga, dando, em conseqiiéncia, uma resposta equivoca & questo da identidade. Retomar a estas questdes pelo passo de volta é revolver 0 solo em que mergulham as rat- zes da metafisica ocidental. Os problemas da tradugao apresentados por estes textos so os mesmos de outros do filésofo. Mais dificil foi a escolha de determinados termos que trouxessem no verné- culo a carga e 0 poder evocador dos usados no original, quando o sentido Ihes ¢ imposto de fora. As notas que acrescentei a0 texto poderdo apontar para a diregiio de onde vem a tradugao. Estou convencido de que a tradugo de textos filosdficos nao garantida em sua qualidade pelo simples dominio das duas linguas em contato. E preciso saber colo: 210 HEIDEGGER car-se na situagdo hermenéutica adequada ao texto. Isto quer dizer: ¢ preciso saber ante- cipar e projetar um sentido sobre a totalidade do tema que o texto aborda, Muitas luzes para a tradugo adequada s6 nascem desta capacidade antecipadora com que se envolve © texto num sentido que a tradugdo das partes aos poucos confirma. A melhor tradugio sob 0 ponto de vista técnico pode despersonalizar completamente um texto. E, por outro lado, muitos textos filoséficos terminam apresentando na tradugao um carater diferente do original porque 0 tradutor nao assumiu a situagdo hermenéutica adequada ¢ projetou a obra num falso horizonte hermenéutico. E nisto que se concentra a responsabilidade e © risco do tradutor. Ele ndo ¢ apenas a ponte entre a lingua-fonte e a lingua-meta; ¢ tam- bém, por exceléncia, o mensageiro (Hermes) que veicula o sentido. Erlangen, Alemanha Ocidental 9 de dezembro de 1970 ERNILDO STEIN QU’EST-CE QUE LA PHILOSOPHIE? * Com esta questio tocamos um tema muito vasto. Por ser vasto, permanece indeter- minado. Por ser indeterminado, podemos traté-lo sob os mais diferentes pontos de vista e sempre atingiremos algo certo. Entretanto, pelo fato de, na abordagem deste tema to amplo, se interpenetrarem todas as opinides possiveis, corremos o risco de nosso didlogo perder a devida concentragio. Por isso devemos tentar determinar mais exatamente a questio. Desta maneira, levaremos o didlogo para uma diregiio segura. Procedendo assim, 0 didlogo & conduzido a.um caminho. Digo: a um caminho., Assim concedemos que este nao ¢ 0 tinico caminho. Deve ficar mesmo em aberto se 0 caminho para o qual desejaria chamar a atengio, no que segue, é na verdade um caminho que nos permite levantar a questio e respondé-la. Suponhamos que seriamos capazes de encontrar um caminho para responder mais exatamente a questio; entio se levanta imediatamente uma grave objegéio contra o tema de nosso encontro. Quando perguntamos: Que é isto — a filosofia?, falamos sobre a filo fia, Perguntando desta maneira, permanecemos num ponto acima da filosofia e isto quer dizer fora dela. Porém, a meta de nossa questo é penetrar na filosofia, demorar- mo-nos nela, submeter nosso comportamento as suas leis, quer dizer, “filosofar”. O caminho de nossa discussio deve ter por isso nfo apenas uma direcfio bem clara, mas esta diregGo deve, ao mesmo tempo, oferecer-nos também a garantia de que nos move ‘mos no Ambito da filosofia, e nfo fora e em torno dela. O caminho de nossa discussio deve ser, portanto, de tal tipo e diregdio que aquilo de que a filosofia trata atinja nossa responsabilidade, nos toque (nous fouche),? ¢ justa mente em nosso ser. Mas nao se transforma sentimental? “Com 08 belos sentimentos faz-se a mé literatura.” “C est avec les beaux sentiments que Von fait la mauvaise littérature." Esta palavra de André Gide nao vale sd para a lite- ratura; vale ainda mais para a filosofia. Mesmo os mais belos sentimentos nao pertencem a filosofia. Diz-se que os sentimentos so algo de irracional. A filosofia, pelo contrario, nao € apenas algo racional, mas a propria guarda da ratio. Afirmando isto decidimos sem querer algo sobre 0 que é a filosofia. Com nossa pergunta jé nos antecipamos & res- posta. Qualquer uma tera por certa a afirmago de que a filosofia é tarefa da ratio. E, contudo, esta afirmagao é talvez uma resposta apressada e descontrolada 4 pergunta: im a filosofia num objeto de nosso mundo afetivo Em francés, no texto original ® Palavras e citagdes gregas, latinas e francesas, que ocorrem no original alemio, sio mantidas no texto portugués, 212 HEIDEGGER Que é isto — a filosofia? Pois a esta resposta podemos contrapor novas questées. Que @ isto — a ratio, a raztio? Onde e por quem foi decidido 0 que é a razio? Arvorou-se a ratio mesma em senhora da filosofia? Em caso afirmativo, com que direito? Se negativa a resposta, de onde recebe ela sua missio e seu papel? Se aquilo que se apresenta como ratio foi primeiramente e apenas fixado pela filosofia e na marcha de sua historia, entdo nao é de bom alvitre tratar a priori a filosofia como negécio da ratio. Todavia, tio logo Pomios em suspeigio a caracterizagio da filosofia como um comportamento racional, toma-se, da mesma maneira, também duvidoso se a filosofia pertence & esfera do irracio. nal. Pois quem quiser determinar a filosofia como irracional, toma como padrio para a determinagao o racional, e isto de um tal modo que novamente pressupde como ébvio 0 que seja a razao. Se, por outro lado, apontamos para a possibilidade de que aquilo a que a filosofia se refere concerne a nés homens em nosso ser ¢ nos toca, entdo poderia ser que esta maneira de ser afetado nfo tem absolutamente nada a ver com aquilo que comumente se designa como afetos e sentimentos, em resumo, o irracional. Do que foi dito deduzimos primeiro apenas isto: é necessério maior cuidado se ousamos inaugurar um encontro com o titulo: “Que é isto — a filosofia?” Um tal cuidado exige primeiro que procuremos situar a questo num caminho cla- ramente orjentado, para nao vagarmos através de representagdes arbitrdrias e ocasionais @ respeito da filosofia. Como, porém, encontraremos 0 caminho no qual poderemos determinar de maneira segura a questo? O caminho para o qual desejaria apontar agora esté imediatamente diante de nds. E precisamente pelo fato de ser 0 mais préximo o achamos dificil. Mesmo quando 0 encon- tramos, movemo-nos, contudo, ainda sempre desajeitadamente nele. Perguntamos: Que isto — a filosofia? Pronunciamos assaz freqiientes vezes a palavra “filosofia”. Se, porém, agora ndo mais empregarmos a palavra “filosofia” como um termo gasto: se em vez disso escutarmos a palavra “filosofia” em sua origem, entio, ela soa philosophia. A palavra “filosofia” fala agora através do grego. A palavra grega é, enquanto palavra Srega, um caminho. De um lado, esse caminho se estende diante de nés, pois a palavra Jé foi proferida ha muito tempo. De outro lado, ele ja se estende atras de nbs, pois ouvi- mos ¢ pronunciamos esta palavra desde os primérdios de nossa civilizagdo. Desta manei ta, @ palavra grega philosophia é um caminho sobre o qual estamos a caminho. Conhece: mos, porém, este caminho apenas confusamente, ainda que possuamos muitos conhecimentos histéricos sobre a filosofia grega e os possamos difundir. A palavra philosophia diz-nos que a filosofia é algo que pela primeira vez e antes de tudo vinea a existéncia do mundo grego. Nao 86 isto — a philosophta determina também a linha mestra de nossa histéria ocidental-européia. A batida expressio “filosofia ociden- tal-européia” & na verdade, uma tautologia. Por qué? Porque a “filosofia” é grega em sua esséncia — e grego aqui significa: a filosofia é nas origens de sua esséncia de tal natureza que ela primeiro se apoderou do mundo grego e s6 dele, usando-o para se desenvolver, Mas a esséncia originariamente grega da filosofia é dirigida e dominada, na época de sua vigéncia na Modernidade Européia, por representagdes do cristianismo. A hege- monia destas representagdes é mediada pela Idade Média. Entretanto, nao se pode dizer que por isto a filosofia se tornow crist&, quer dizer, uma tarefa da fé na revelago e na autoridade da Igreja, A frase: a filosofia 6 grega em sua esséncia, no diz outra coisa que: 0 Ocidente e a Europa, e somente eles, so, na marcha mais intima de sua his originariamente “filoséficos”, Isto ¢ atestado pelo surto e dominio das ciéncias. Pelo fato ria, QUE E ISTO — A FILOSOFIA? 213 de elas brotarem da marcha mais intima da historia ocidental-européia, o que vale dizer do proceso da filosofia, sdo elas capazes de marcar hoje, com seu cunho especifico, a historia da humanidade pelo orbe terrestre. Consideremos por um momento o que significa o fato de caracterizarmos uma era da histéria humana de “era atémica”. A energia atémica descoberta e liberada pelas ciéncias € representada como aquele poder que deve determinar a marcha da histéria, Entretanto, a ciéncia nunca existiria se a filosofia nao a tivesse precedido e antecipado. A filosofia, porém, é: he philosophta. Esta palavra grega liga nosso didlogo a uma tradi- gio historial, Pelo fato de esta tradigao permanecer nica, ela é também univoca. A tra- digo designada pelo nome grego philosophta, tradigio nomeada pela palavra historial philosophia, mostra-nos a direc de um caminho, no qual perguntamos: Que é isto a filosofia? A tradigio nio nos entrega & prisio do passado ¢ irrevogavel. Transmitir, déli- vrer,? ¢ um libertar para a liberdade do didlogo com o que foi e continua sendo, Se esti- vermos verdadeiramente atentos 4 palavra e meditarmos o que ouvimos, o nome “filoso- fia” nos convoca para penetrarmos na historia da origem yrega da filosofia. A palavra philosophia esta, de certa maneira, na certiddo de nascimento de nossa propria historia podemos mesmo dizer: ela esta na certidfio de nascimento da atual época da hist6ria uni- versal que se chama era atémica. Por isso somente podemos levantar a questo: Que isto — a filosofia?. se comegamos um didlogo com o pensamento do mundo grego. Porém, nao apenas aquilo que esta em questao, a filosofia, é grego em sua origem, mas também a maneira como perguntamos, mesmo a nossa maneira atual de questionar ainda é grega. Perguntamos: que isto, . .? Em grego isto é: i estin. A questio relativa ao que algo seja permanece, todavia, multivoca. Podemos perguntar, por perguntar, por exem- plo: que @ aquilo 14 longe? Obtemos ent a resposta: uma rvore. A resposta consiste em darmos o nome a uma coisa que no conhecemos exatamente. Podemos, entretanto, questionay mais: que é aquilo que designamos “arvore”? Com, a quest@o agora posta avangamos para a proximidade do a estin grego. E aquela forma de questionar desenvolvida por Socrates, Plato e Aristoteles. Estes perguntam, por exemplo: Que é isto — 0 belo? Que é isto — o conhecimento? Que é isto — a natureza? Que é isto — 0 movimento? Agora, porém, devemos prestar atengZo para o fato de que nas questdes acima nio se procura apenas uma delimitagio mais exata do que é natureza, movimento, beleza; mas é preciso cuidar para que ao mesmo tempo se dé uma explicagao sobre o que signi- fica 0 “que”, em que sentido se deve compreender 0 tf, Aquilo que o “que” significa se designa 0 quid est, 16 qui diversamente nas diversas épocas da filosofia. Assim, por exemplo, a filosofia de Plato é uma interpretagdo caracteristica daquilo que quer dizer o 1. Ele significa precisamente a idéa. O fato de nds, quando perguntamos pelo 1, pelo quid, nos referirmos a “idéa nao & absolutamente evidente. Aristételes d4 uma outra explicagdo do que Plato. Outra ainda da Kant e também Hegel explica o tf de modo diferente. Sempre se deve determinar novamente aquilo que é questionado através do fio condutor que representa o Hf, 0 quid, © “que”. Em todo caso: quando, referindo-nos & filosofia, perguntamos: que é isto?, levantamos uma questio originariamente grega. |: a quidditas, a qiiididade. Entretanto, a quidditas se determina * Em francés, no texto, 214 HEIDEGGER Notemos bem: tanto o tema de nossa interrogagio: “a filosofia”, como o modo como perguntamos: “que @ isto, ..?" — ambos permanecem gregos em sua prove- nigncia. Nos mesmos fazemos parte desta origem, mesmo entiio quando nem chegamos a dizer a palavra “filosofia”. Somos propriamente chamados de volta para esta origem, reclamados para ela ¢ por ela, to logo pronunciemos a pergunta: Que é isto — a filoso. fia? nao apenas em seu sentido literal, mas meditando seu sentido profundo. [A questdo: que é filosofia? nao é uma questo que uma espécie de conhecimento se coloca a si mesmo (filosofia da filosofia). A questio também nao é de cunho historico; ndo se interessa em resolver como comegou e se desenvolveu aquilo que se chama “filo. sofia”. A questéo é carregada de historicidade, é historial, quer dizer, carrega em si um destino, nosso destino, Ainda mais: ela ndo é “uma”, ela & a questo historial de nossa existéncia ocidental-européia.} Se penetrarmos no sentido pleno ¢ originario da questo: Que ¢ isto — a filosofia? entéio nosso questionar encontrou, em sua proveniéncia historial, uma diregdo para nosso futuro historial. Encontramos um caminho. A questo mesma é um caminho. Ele conduz da existéncia prépria ao mundo grego até nés, quando nao para além de nés mesmos, Estamos — se perseverarmos na questio — a caminho, num caminho claramente orien tado. Todavia, nao nos dé isto uma garantia de que ja, desde agora, sejamos capazes de tilhar este caminho de maneira correta. J4 desde ha muito tempo costuma-se caracte- rizar a pergunta pelo que algo & como a questo da esséncia. A questo da esséncia tor- na-se mais viva quando aquilo por cuja esséneia se interroga, se obscurece ¢ confunde, quando ao mesmo tempo a relag&io do homem para com o que é questionado se mostra vacilante e abalada. A questo de nosso encontro refere-se a esséncia da filosofia. Se esta questo brota realmente de uma indigéncia e se ndo est fadada a continuar apenas um simulacro de questéo para alimentar uma conversa, entio a filosofia deve ter-se tornado para nés problematica, enquanto filosofia. E isto exato? Em caso afirmativo, em que medida se tomou a filosofia problematica para nds? Isto evidentemente s6 podemos declarar se ja langamos um olhar para dentro da filosofia. Para isso € necessario que antes saibamos que € isto — a filosofia. Desta maneira somos estranhamente acossados dentro de um circulo. A filosofia mesma parece ser este circulo. Suponhamos que nao nos podemos libertar imediatamente do cerco deste circulo; entretanto, é-nos permitido olhar para este Girculo. Para onde se dirigird nosso olhar? A palavra grega philosophia mostra-nos a diregio. Aqui se impe uma observagio fundamental. Se nés agora ou mais tarde prestamos atengdo as palavras da lingua grega, penetramos numa esfera privilegiada, Lentamente vislumbramos em nossa reflexdo que a lingua grega nao é uma simples lingua como as européias que conhecemos. A lingua grega, e somente ela, é /égos. Disto ainda devere- mos tratar ainda mais profundamente em nossas discussdes, Para 0 momento sirva a A palavra grega philosophia remonta palavra philésophos. Originariamente esta palavra é um adjetivo como philérgyros, o que ama a prata, como philétimos, 0 que ama a honza, A palavra phildsophos foi presumivelmente criada por Heraclito. Isto quer dizer indicagdo: 0 que é dito na lingua grega é, de modo privilegiado, simultaneamente aquilo que em dizendo se nomeia. Se escutarmos de maneira grega uma palavra grega, entio seguimos seu /égein, 0 que expde sem intermedidrios, O que ela expde € 0 que esté af inte de nés. Pela palavra grega verdadeiramente ouvida de maneira grega, estamos imediatamente sem presenga da coisa mesma, af diante de nés, e no primeiro apenas diante de uma simples significagdo verbal. QUE F ISTO — A FILOSOFIA? 215 que para Herdclito ainda no existe a philosophta. Um anér phildsophos nao & um homem ' filosdfico”. O adjetivo grego phildsophos significa algo absolutamente diferente que 0 adjetivos filosdfico, philosophique. Um anér philésophos & aquele, hos philet 10 sophén, que ama a sophdn; philein significa aqui, no sentido de Heraclito: homologetn, falar assim como o Légos fala, quer dizer, corresponder ao Légos. Este corresponder esti em acordo com 0 sophdn. Acordo harmonta. O elemento especifico de philein do amor, pensado por Herdclito, é a harmonia que se revela na reciproca integragao de dois seres, nos lagos que os unem originariamente numa disponibilidade de um para com o outro. 0 anér philésophos ama 0 sophdn, O que esta palavra diz para Herdclito ¢ dificil traduzir. Podemos, porém, elucida-lo a partir da propria explicagio de Herdclito. De acordo com isto, 16 sophén significa: Hén Panta “Um (@) Tudo”. Tudo quer dizer aqui: Panta té dnta, a toralidade, 0 todo do ente, Hén, o Um, designa: o que & um, 0 nico, 0 que tudo une. Unido é, entretanto, todo o ente no ser. O sophén significa: todo ente € no ser. Dito mais precisamente: o ser é 0 ente, Nesta locugdo, o “é" traz uma carga transi- tiva e designa algo assim como “recolhe”. O ser recolhe o ente pelo fato de que é o ente. O ser € 0 recolhimento — Légos. Todo o ente é no ser. Ouvir tal coisa soa de modo trivial em nosso ouvide. quando nao de modo ofensivo, Pois, pelo fato de o ente ter seu lugar no ser. ninguém precisa preocupar-se, Todo mundo sabe: ente é aquilo que é. Qual a outra solugo para o ente a ndo ser esta: ser? E entretanto: precisamente isto, que o ente permanega recolhido no ser, que no fendmeno do ser se manifesta o ente; isto jogava os gregos, a eles primeiro unicamente, no espanto. Ente no ser: isto se tornou para os gregos 0 mais espantoso. Entretanto, mesmo os gregos tiveram que salvar e proteger o poder de espanto deste mais espantoso — contra o ataque do entendimento sofista, que dispunha logo de uma explicagio, compreensivel para qualquer um, para tudo ¢ a difundia, A salvagao do mais espantoso — ente no ser — se deu pelo fato de que alguns se fizeram a caminho na sua diregdo, quer dizer, do sophdn. Estes tornaram-se por isto aqueles que fendiam para 0 sophén e que através de sua propria aspirag%io despertavam nos outros homens 0 anseio pelo sophdn eo mantinham aceso. O phileii 16 sophén, aquele acordo com 0 sophén de que falamos acima, a harmonia, transformou-se em drecsis, num aspirar pelo sophon. O sophén — 0 ente no ser — @ agora propriamente procurado. Pelo fato de o philefn no ser mais um acordo originario com 0 sophdn, mas um singular aspirar pelo sophén, 0 philein t6 sophén torna-se “philosophia”. Esta aspiragao é determinada pelo Eros. Uma tal procura que aspira pelo sophdn, pelo hén pdnta, pelo ente no ser, se arti- cula agora numa questo: que o ente, enquanto €? Somente agora o pensamento torna- se “filosofia”. Herdclito e Parménides ainda nao eram “fildsofos”. Por que naio? Porque eram os maiores pensadores. “Maiores” nao designa aqui 0 calculo de um rendimento, porém aponta para uma outra dimensio do pensamento. Herdclito e Parménides eram “maiores” no sentido de que ainda se situavam no acordo com 0 Légos, quer dizer, com 0 Hén Pénta. O passo para a “filosofia”, preparado pela sofistica, s6 foi realizado por Socrates e Plato. Aristételes entio, quase dois séculos depois de Heraclito, caracterizou este passo com a seguinte afirmacdo: Kai dé kai 16 pdlai te kai njin ka’ aet zetoiimenon kat ae? aporotimenon, tt t6 én? (Metafisica, VI, 1, 1028 b 2 ss.). Na tradugao isso soa: “Assim, pois, é aquilo para o qual (a filosofia) esta em marcha ja desde os primérdios, ¢ também agora e para sempre e para o qual sempre de novo nao encontra acesso (¢ que & por isso questionado): que € 0 ente? (tf 16 dn)”. 216 HEIDEGGER A filosofia procura 0 que é 0 ente enquanto é. A filosofia esti a caminho do ser do ente, quer dizer, a caminho do ente sob 0 ponto de vista do ser. Aristételes elucida isto, actescentando uma explicagio ao a 16 dn, que € 0 ente?, na passagem acima citada: toiit6 esti tis he ousta? Traduzido: “Isto (a saber, tf 16 dn) significa: que é a entidade do ente?” O ser do ente consiste na entidade. Esta, porém — a ousfa —. determinada por Plato como idéa, por Aristateles como enérgei De momento ainda nao ¢ necessario analisar mais exatamente 0 que Aristateles entende por enérgeia e em que medida a ousta se deixa determinar pela enérgeia. O importante por ora é que prestemos atengdo como Aristoteles delimita a filosofia em sua esséncia. No primeiro livro da Metafisica (Metafisica, I, 2, 982 b 9 s,), 0 filésofo diz 0 seguinte: A filosofia é epistéme 16n préton arkhn kat aition theoretiké. Traduz-se facil- mente epistéme por “ciéncia”. Isto induz ao erro, porque, com demasiada facilidade, per- mitimos que se insinue a moderna concepgao de “ciéncia”. A tradugio de epistéme por “ciéncia” € também, ent&o, enganosa quando entendemos “ciéncia” no sentido filosdfico que tinham em mente Fichte, Schelling e Hegel. A palavra epistéme deriva do participio epistémenos. Assim se chama 0 homem enquanto competente ¢ habil (comipeténcia no sentido de appartenance). * A filosofia é epistéme ws, uma espécie de competéncia, theo- retiké, que & capaz de theorein, quer dizer, olhar para algo e envolver e fixar com o olhar aquilo que perscruta. E por isso que a filosofia € epistéme theoretiké. Mas que é isto que ela perscruta? 2 Arristoteles di-to, fazendo referéncia as protai arkhai ka’ aitfai. Costuma-se traduzir: “as primeiras razdes e causas” — a saber, do ente. As primeiras razdes ¢ causas consti tuem assim o ser do ente. Apds dois milénios ¢ meio me parece que teria chegado 0 tempo de considerar o que afinal tem o ser do ente a ver com coisas tais como “raz” e“causa™s. Em que sentido é pensado o ser para que coisas tais como “razéo”’e “causa” sejam apropriadas para caracterizarem e assumirem o sendo-ser do ente? Mas nés dirigimos nossa atengao para outra coisa. A citada afirmagio de Aristé- teles diz-nos para onde esta a caminho aquilo que se chama, desde Plato, “filosotia”. A afirmagao nos informa sobre isto que € — a filosofia. A filosofia é uma espécie de competéneia capaz de perserutar o ente, a saber, sob 0 ponto de vista do gue ele é enquanto é ente, A questiio que deve dar ao nosso dialogo a inquietude fecunda ¢ 0 movimento e indicar para nosso encontro a diregao do caminho, a questo: que é filosofia? Aristételes Jé a respondeu. Portanto, néo é mais necessario nosso encontro. Esta encerrado antes de ter comegado. Revidar-se-4 logo que a afirmagdo de Aristételes sobre o que é a filosofia nao pode ser absolutamente a tinica resposta a nossa quest’io, No melhor dos casos, é ela uma resposta entre muitas outras. Com o auxilio da caracterizagao aristotélica de filoso: fia pode-se evidentemente representar e explicar tanto 0 pensamento antes de Aristdteles ¢ Plato quanto a filosofia posterior a Aristételes. Entretanto, facilmente se pode apontar para o fato de que a filosofia mesma, e a maneira como ela concebe sua esséncia, passou Por varias transformagSes nos dois milénios que seguiram o Estagitita. Quem ousaria nega-lo? Mas nao podemos passar por alto 0 fato de a filosofia de Aristételes e Nietzsche permanecer a mesma, precisamente na base destas transformagées e através delas. Pois as transformagdes so a garantia para o parentesco no mesmo. * Em francés, no texto, QUE £ ISTO — A FILOSOFIA? ae De nenhum modo afirmamos com isto que a definig¢&o aristotélica de filosofia tenha valor absoluto. Pois ela é ja em meio a historia do pensamento grego uma determinada explicagao daquele pensamento ¢ do que Ihe foi dado como tarefa. A caracterizagao aris totélica da filosofia nao se deixa absolutamente retraduzir no pensamento de Herdclito e de Parménides; pelo contrario, a definigao aristotél é de filosofia certamente é livre continuagdo da.aurora do pensamento e seu encerramento. Digo livre continuagao por- que de maneira alguma pode ser demonstrado que as filosofias tomadas isoladamente € as épocas da filosofia brotam uma das outras no sentido da necessidade de um processo dialético. Do que foi dito, que resulta para nossa tentativa de, num encontro, tratarmos a questo: Que é isto — a filosofia? Primeiramente um ponto: ndo podemos ater-nos ape nas A definigfo de Arist6teles. Disto deduzimos o outro ponto: devemos ocupar-nos das primeiras e posteriores definigdes de filosofia. E depois? Depois alcangaremos uma for mula vazia, que serve para qualquer tipo de filosofia. E entdo? Entdo estaremos 0 mais longe possivel de uma resposta a nossa questio. Por que se chega a isto? Porque, pelo processo ha pouco referido, somente reunimos historicamente as definigdes que esto af prontas ¢ as dissolvemos numa formula geral. Isto se pode realmente fazer quando se dis- poe de grande erudigao ¢ auxiliado por verificagdes certas. Nesta empresa nao precisa mos, nem em grau minimo, penetrar na filosofia de.tal modo que meditemos sobre a esséncia da filosofia, Procedendo daquela maneira nos enriquecemos com conhecimentos muito mais variados e sblidos e até mais titeis sobre as formas como a filosofia foi repre- sentada no curso de sua histéria. Mas por esta via nunca chegaremos a uma resposta auténtica, isto é, legitima, para a questio: Que é isto — a filosofia? A resposta somente pode ser uma resposta filosofante, uma resposta que enquanto res-posta filosofa por ela mesma. Mas como compreender esta afirmagio? Em que medida uma resposta pode, na medida em que é res-posta, filosofar? Procurarei esclarecer isto agora provisoriamente por algumas indicagdes. Aquilo que tenho em mente e a que me refiro sempre perturbara novamente nosso didlogo. Sera até a pedra de toque para averiguar se nosso encontro tem chance de se tornar um encontro verdadeiramente filoséfico. Coisa que nao esti absolutamente em nosso poder. Quando & que a resposta a questo: Que € isto — a filosofia” é uma resposta filoso: fante? Quando filosofamos nés? Manifestamente apenas entio quando entramos em d Jogo com os fildsofos. Disto faz parte que discutamos com eles aquilo de que falam. Este debate em comum sobre aquilo que sempre de novo, enquanto o mesmo, ¢ tarefa especi- fica dos fildsofos, € 0 falar, o légein no sentido do dialégesthai, 6 falar como dialogo. Se e quando o didilogo é necessariamente uma dialética, isto deixamos em aberto. Uma coisa é verificar opinides dos fildsofos edescrevé-las. Outra coisa bem dife- rente é debater com eles aquilo que dizem, e isto quer dizer, do que falam. Supondo, portanto, que os filésofos so interpelados pelo ser do ente para que digam o que o ente é, enquanto é, entZo também nosso didlogo com os filésofos deve ser interpelado pelo ser do ente. Nés mesmos devemos vir com nosso pensamento ao encon- tro daquilo para onde a filosofia esté a caminho, Nosso falar deve co-responder aquilo pelo qual 0s fildsofos so interpelados. Se formos felizes neste co-responder, res-pon- demos de maneira auténtica 4 questo: Que é isto — a filosofia? A palavra alem worten”, responder, significa propriamente a mesma coisa que ent-sprechen, co-respon- der. A resposta nossa questo nfo se esgota numa afirmagao que res-ponde a questo ‘com uma verificagdio sobre 0 que se deve representar quando se ouve 0 conceito “filoso fia”. A resposta nao 6 uma afirmagao que replica (n est pas une réponse), a resposta é 218 HEIDEGGER muito mais a co-respondéncia (la correspondance), que corresponde ao ser do ente. Imediatamente, porém, quiséramos saber 0 que constitui o elemento caracteristico da resposta, no sentido da correspondéncia. Mas primeiro que tudo importa chegarmos a uma correspondéncia, antes que sobre ela levantemos a teoria. A Tesposta a questo: Que € isto — a filosofia? consiste no fato de correspon- dermos aquilo para onde a filosofia esté a caminho. E isto é: 0 ser do ente, Num tal corresponder prestamos, desde 0 comego, atengao aquilo que a filosofia ja nos inspirou, a filosofia, quer dizer, a philosophia entendida em sentido grego. Por isso somente chega. mos assim a correspondéncia, quer dizer, a resposta A nossa questdo, se permanecemos no didlogo com aquilo para onde a tradigdo da filosofia nos remete, isto &, libera. Nao encontramos a resposta A questo, que é a filosofia, através de enunciados historicos sobre as definigdes da filosofia, mas através do didlogo com aquilo que se nos transmitiu como ser do ente. Este caminho para a resposta 4 nossa questo no representa uma ruptura com a historia, nem uma negagdo da hist6ria, mas uma apropriacdo ¢ transformagao do que foi transmitido. Uma tal apropriagio da histéria é designada com a expresso “destruigi0”, O sentido desta palavra é claramente determinado em Ser e Tempo (§ 6). Destruigio nao significa ruina, mas desmontar, demolir e pér-de-lado — a saber, as afirmagdes pura- mente hist6ricas sobre a historia da filosofia. Destruigao significa: abrir nosso ouvido, tomé-lo livre para aquilo que na tradigao do ser do ente nos inspira. Mantendo nossos ouvidos déceis a esta inspiragdo, conseguimos situar-nos na correspondéncia. Mas, enquanto dizemos isto, ja se anunciou uma objegdo. Eis o teor: sera primeiro necessario fazer um esforgo para atingirmos a correspondéncia ao ser do ente? Nao esta- mos nés homens ja sempre numa tal correspondéncia, ¢ nao apenas de fato, mas do mais intimo de nosso ser? Nao constitui esta correspondéncia 0 trago fundamental de nosso ser? Na verdade, esta é a situagio. Mas, se a situagdo é esta, entio nfo podemos dizer que primeiro nos devemos situar nesta correspondéncia. E, contudo, dizemos isto com Tazo, Pois nds residimos, sem diivida, sempre ¢ em toda parte, na correspondéncia ao ser do ente; entretanto, s6 raramente somos atentos inspiragao do ser. Nio ha divida que a correspondéncia ao ser do ente permanece nossa morada constante. Mas s6 de tem- Pos em tempos ela se torna um comportamento propriamente assumido por nés ¢ aberto a um desenvolvimento. $6 quando acontece isto correspondemos propriamente aquilo que concerne a filosofia que esta a caminho do ser do ente. O corresponder ao ser do ente € a filosofia; mas ela o somente ent&o e apenas entdo quando esta correspondéncia se exerce propriamente ¢ assim se desenvolve e alarga este desenvolvimento. Este corres. ponder se dé de diversas maneiras, dependendo sempre do modo como fala o apelo do ser, ou do modo como é ouvido ou nio ouvido um tal apelo, ou ainda, do modo como é dito e silenciado o que se ouviu. Nosso encontro pode dar oportunidade para meditar sobre isto. Procuro agora dizer apenas uma palavra preliminar ao encontro. Desejaria ligar o que foi exposto até agora aquilo que afloramos, fazendo referéncia a palavra de André Gide sobre os “belos sentimentos”. Philosophia é a correspondéncia propriamente exer- cida, que fala na medida em que é décil ao apelo do ser do ente. O corresponder escuta a voz do apelo. O que como voz do ser se dirige a nds dis-pde nosso corresponder. “Co- responder” significa entio: ser dis-posto. étre dis-posé, ° a saber, a partir do ser do ente. ® Disposicio (Stimmung) & um originarie modo de ser do ser-al, vineulado ao sentimento de situagio Gefindlichkei) que acompanha a derelicgio (Geworfenheit), Pela disposigao (que nada tem a vet com QUE E£ ISTO — A FILOSOFIA? 219 Dis-posé significa aqui literalmente: ex-posto, iluminado e com isto entregue ao servigo daquilo que é. O ente enquanto tal dis-pde de tal maneira o falar que o dizer se harmo- niza (accorder) com 0 ser do ente. O corresponder é, necessariamente e sempre e no ape- nas ocasionalmente e de vez em quando, um corresponder dis-posto. Ele esta numa disposigdo. E s6 com base na dis-posicio (dis position) o dizer da correspondéncia rece- be sua preciso, sua vocagao. Enquanto dis-posta e con-vocada, a correspondéncia é essencialmente uma dis-posi- go. Por isso 0 nosso comportamento é cada vez dis-posto desta ou daquela maneira. A dis-posigo no ¢ um concerto de sentimentos que emergem casualmente, que apenas acompanham a correspondéncia. Se caracterizamos a filosofia como a correspondéncia dis-posta, no é absolutamente intengdo nossa entregar o pensamento as mudangas for- tuitas e vacilagdes de estados de animo. Antes, trata-se unicamente de apontar para 0 fato de que toda precisio do dizer se funda numa disposigaio da correspondéncia, da correspondance, digo eu, a escuta do apelo. Antes de mais nada, porém, convém notar que a referéncia a essencial dis-posigao da correspondéncia nao ¢ uma invengao apenas de nossos dias. J4 os pensadores gregos, Plato e Aristételes, chamaram a atengdo para o fato de que a filosofia e o filosofar fazem parte de uma dimensdo do homem, que designamos dis-posigdo (no sentido de uma tonalidade afetiva que nos harmoniza e nos convoca por um apelo).. Plato diz (Teereto, 155 d): mdla gar philosdphou toiito (6 pathos, 16 thaundzein, ou gar dlle arkhé philosophtas hé haite. “E verdadeiramente de um fil6sofo este pathos — 0 espanto; pois nao ha outra origem imperante da filosofia que este”. O espanto é, enquanto pathos, a arkhé da filosofia. Devemos compreender, em seu pleno sentido, a palavra grega arkhé. Designa aquilo de onde algo surge. Mas este “de onde” no é deixado para tras no surgir; antes, a arkhé torna-se aquilo que é expresso pelo verbo arkhein, 0 que impera. O pathos do espanto nao esta simplesmente no comego da filosofia, como, por exemplo, 0 lavar das mos precede a operagao do cirurgifio. O espanto carrega a filosofia ¢ impera em seu interior. Aristételes diz 0 mesmo (Metafisica, 1, 2, 982 b 12 ss.): did gar 10 thaumdzein hoi Anthropoi kat nyn kat proton éresanto philosophein. “Pelo espanto os homens chegam agora e chegaram antigamente & origem imperante do filosofar” (Aquilo de onde nasce 0 filosofar e que constantemente determina sua marcha). Seria muito superficial e, sobretudo, uma atitude mental pouco grega se quisés- semos pensar que Plato ¢ Aristoteles apenas constatam que o espanto é a causa do filo- sofar. Se esta fosse a opinido deles, entao diriam: um belo dia os homens se espantaram, a saber, sobre 0 ente e sobre o fato de ele ser e de que ele seja. Impelidos por este espanto, comegaram eles 2 filosofar. Tao logo a filosofia se pds em marcha, tornou-se o espanto supérfluo como impulso, desaparecendo por isso. Pade desaparecer jé que fora apenas um estimulo. Entretanto: 0 espanto é arkhé — ele perpassa qualquer passo da filosofia, O espanto pathos. Traduzimos habitualmente pathos por paixio, turbilhao afetivo. Mas pathos remonta a paskhein, softer, agiientar, suportar, tolerar, deixar-se levar por, deixar-se con-vocar por. E ousado, como sempre em tais casos, traduzir pathos por tonalidades psicologicas).oser-no-mundo éradiealmente aberto. Esta abertura antecede oconhecere o querere € condigao de possibilidhue de yualyucr orientar se para prdiprns cit imtenciomalidde (veja se Ser e Tempo, § 29). Jogando com a riqueza semantica das derivagSes de Srinmung: bestimmt, gestion, abstieamen, Gestimmtheit, Bestimmntheit, Heidegger procura tornar claro coma esta disposigao é uma abertura que deter mina a correspondéncia ao ser, na medida em que ¢ instaurada pela voz (Stimme) do set. O filésofo toca aqui znas raizes do comportamento filosifico, da atitude originante do filosofar. 220 HEIDEGGER dis-posigio, palavra com que procuramos expressar uma tonalidade de humor que nos harmonizit ¢ nos con-voca por um apelo. Devemos, todavia, ousar esta tradugdo porque s6 ela nos impede de representarmos pathos psicologicamente no sentido da moderni- dade. Somente se compreendermos pathos como dis-posigao (dis-position) podemos tam- em caracterizar melhor o thaumdzein, o espanto. No espanto detemo-nos (étre en arrét). E como se retrocedéssemos diante do ente pelo fato de ser e de ser assim e nao de outra maneira. O espanto também ndo se esgota neste retroceder diante do ser do ente, mas no proprio ato de retroceder e manter-se em suspenso é ao mesmo tempo atrafdo e como que fascinado por aquilo diante do que recua. Assim o espanto é a dis-posigdo na qual e para a qual o ser do ente se abre. O espanto é a dis-posigdo em meio a qual estava garantida para 0s fildsofos gregos a correspondéncia ao ser do ente. De bem outra espécie é aquela dis-posigo que levou 0 pensamento a colocar a questo tradicional do que seja 0 ente enquanto é, de um modo novo, e a comegar assim uma nova época da filosofia. Descartes, em suas meditagdes, nao pergunta apenas e em primeiro lugar if 16 6n —~ que € 0 ente, enquanto é? Descartes pergunta: qual é aquele ente que no sentido do ens certum é 0 ente verdadeiro? Para Descartes, entretanto, se transformou a esséncia da certitudo, Pois na Idade Média certitudo nio significava certe za, mas a segura delimitagao de um ente naquilo que ele é. Aqui certitudo ainda coincide com a significagdo de essentia. Mas, para Descartes, aquilo que verdadeiramente é se mede de uma outra maneira. Para ele a divida se torna aquela dis-posigio em que vibra © acordo com o ens certum, o ente que & com toda certeza. A certitudo torna-se aquela fixagio do ens qua ens, que resulta da indubitabilidade do cogito (ergo) sum para 0 ego do homem. Assim o ego se transforma no sub-iectum por exceléncia, e, desta maneira, a esséncia do homem penetra pela primeira vez na esfera da subjetividade no sentido da egoidade. Do acordo com esta certitudo recebe o dizer de Descartes a determinagao de um clare et distinete percipere. A dis-posigio afetiva da divida é o positive acordo com a certeza. Dai em diante a certeza se torna a medida determinante da verdade. A dis-po- sigGo afetiva da confianga na absoluta certeza do conhecimento a cada momento acess vel permanece 0 pathos e com isso a arkhé da filosofia moderna Mas em que consiste 0 éélos, a consumagio da filosofia moderna, caso disto nos seja permitido falar? £ este termo determinado por uma outra dispo-sigio? Onde deve- mos nés procurar a consumagao da filosofia moderna? Em Hegel ou apenas .na filosofia dos tiltimos anos de Schelling? E que acontece com Marx ¢ Nietzsche? Ja se movimen tam eles fora da érbita da filosofia moderna? Se no. como determinar seu lugar? Parece até que levantamos apenas questées histéricas. Mas na verdade meditamos © destino essencial da filosofia. Procuramos pér-nos a escuta da voz do ser. Qual a dis-posigdo em que ela mergulha o pensamento atual? Uma resposta univoca a esta per- gunta é praticamente impossivel. Provavelmente impera uma dis-posigao afetiva funda- mental. Ela, porém, permanece oculta para nds. Isto seria um sinal para o fato de que nosso pensamento atual ainda ndo encontrou seu claro caminho. O que encontramos sio apenas dis-posigdes do pensamento de diversas tonalidades. Diivida e desespero de um lado ¢ cega possessio por princfpios, ndo submetidos a exame, de outro, se confrontam. Medo e angiistia misturam-se com esperanga e confianga. Muitas vezes ¢ quase por toda parte reina a idéia de que o pensamento que se guia pelo modelo da representagao e cal- culo puramente logicos ¢ absolutamente livre de qualquer dis-posiga0, Mas também a frieza do célcuto, também a sobriedade prosaica da planificagao sao sinais de um tipo de dis-posigao. Nao apenas isto; mesmo a raz&o que se mantém livre de toda influéncia das QUE E ISTO — A FILOSOFTA? 221 paixdes é enquanto razio, pre-dis-posta para a confianga na evidéncia logico-mate- mitica de seus principios ¢ regras. ® ‘A correspondéncia propriamente assumida e em processo de desenvolvimento, que corresponde ao apelo do ser do ente, é a filosofia, Que é isto — a filosofia? somente aprendemos a conhecer ¢ a saber quando experimentamos de que modo a filosofia é. Ela & ao modo da correspondéncia que se harmoniza e poe de acordo com a voz do ser do ente. Este co-responder é um falar. Esta a servigo da linguagem. O que isto significa é de dificil compreensio para nés hoje, pois nossa representagao comum da linguagem pas- sou por um estranho processo de transformagSes. Como conseqiiéncia disso a linguagem aparece como um instrumento de expresso. ’ De acordo com isso, tem-se por mais acer- tado dizer que a linguagem est a servigo do pensamento em vez de: 0 pensamento como co-respondéncia esta a servigo da linguagem. Mas, antes de tudo, a representago atual da linguagem esta tio longe quanto possivel da experiéncia grega da linguagem. Aos gre- gos se manifesta a esséncia da linguagem como o [dgos. Mas 0 que significa l6gos e lé- gein? Apenas hoje comecamos lentamente, através de miltiplas interpretagdes do légos, a descerrar para nossos olhos 0 véu sobre sua originaria esséncia grega. Entretanto, nds néio somos capazes nem de um dia regressar a esta esséncia da linguagem, nem de simplesmente assumi-la como heranga. Pelo contrario, devemos entrar em didlogo com a experiéncia grega da linguagem como légos. Por qué? Porque nés, sem uma suficiente reflexo sobre a linguagem, jamais sabemos verdadeiramente o que é a filosofia como a co-respondéncia acima assinalada, o que ela ¢ como uma privilegiada maneira de dizer. Mas pelo fato de a poesia, em comparagéo com o pensamento, estar de modo bem diverso e privilegiado a servigo da linguagem, nosso encontro que medita sobre a filoso- fia € necessariamente levado a discutir a relagao entre pensar e poetar. Entre ambos, pen- sare poetar, impera um oculto parentesco porque ambos, a servigo da linguagem, inter- yém por ela e por ela se sacrificam, Entre ambos, entretanto, se abre ao mesmo tempo um abismo, pois “moram nas montanhas mais separadas”. © 44 em Ser e Tempo (§ 29) se alude & disposigfo que acompanha a teotia e se afirma que “o conhecimento vido por determinages logicas se enraiza ontolégica ¢ existencialmente no sentimento de situagio, caracte- ristico do ser-no-mundo” (p. 138). Apontando para o fato de que a propria razio esta pre-dis-posta para con- fiar na evidéncia logico-matematica de sevs principios e regras, Heidegger fere um tabu que 05 sucessos da técnica ainda mais sacralizam. Mas, desc que Habermas, em seu livro Conhecimento e Interesse (Ed. Shut- amp, Frankfurt a. M. 1968), mostrou que atras de todo conhecimento existe 0 interesse que o dirige, que & teoria quanto mais pura se quer mais se ideologiza, pode-se descobrir, nas afirmagdes de Heidegger, uma antecipacio das razGes ontologico-existenciais da mistura do conhecimento ¢ interesse. Néo ha conheci- mento imune ao processo de ideologizago; dele n&o escapa nem mesmo 0 conhecimento cientifico, por mais exato, rigoroso e neutro que se prociame. 7” A critica da instrumentalizagao da linguagem visa a proteger o sentido, a dimenséo conotadora e simbé- lica, contra a redugo da linguagem ao nivel da denotagao, do simplesmente operativo. Nao se trata apenas de salvar a mensagem lingiifstica da ameaga da pura semioticidade, filésofo descobre na linguagem 0 poder do légos, do dizer como processo apofantico; entrevé na linguagem a casa do ser, onde o homem mora nas raizes do humano. Se lembrarmos as trés constantes que a tradigdo apresenta na filosofia da linguagem — a l6gica da linguagem, o humanismo da linguagem e a teologia da linguagem —, verificamnos que 0 filé- sofo assume a segunda, radicaliza-a pela hermenéutica existencial, carrega-a de historicidade ¢ transforma a Jinguagem em centro de discussao, pela idéia da destruigio da ontologia tradicional, a partir de sua tessitura ccategorial. Em Heidegger, uma ontologia ja impossivel & substitufda pela critica da linguagem, numa anteci- pagdo da moderna analitice da linguagem. Veja-se esta admoestagio do fikisofo que abre um texto seu, saido no jornal Neue Ziircher Zeitung (Zeicker, 21-9-1969): “A linguagem reptesentada como pura semioticidade (Zeichengebung) oferece © ponto de partida para a tecnicizagdo da linguagem pela teoria da informagio. A instauragao da relagao do homem com a linguagein que parte destes pressupostos realiza, da mancira mais inguietante, a exigéncia de Karl Marx: ‘Trata-se de transformar o mundo’ ”. 222 HEIDEGGER Agora, porém, haveria boas razées para exigir que nosso encontro se limitasse a questo que trata da filosofia. Esta restrigdo seria s6 entiio possivel e até necessria, se do didlogo resultasse que a filosofia no é aquilo que aqui lhe atribuimos: uma corres- pondéncia, que manifesta na linguagem o apelo do ser do ente. Com outras palavras: nosso encontro nao se propée a tarefa de desenvolver um pro- grama fixo. Mas ele quisera ser um esforgo de preparar todos os participantes para um recolhimento em que sejamos interpelados por aquilo que designamos 0 ser do ente, Nomeando isto, pensamos no que jé Arist6teles diz: “O sendo-ser torna-se, de miltiplos modos, fendmeno”. To dn légetai pollakhés. QUE E METAFISICA? NOTA DO TRADUTOR E tarefa primordial da filosofia conduzir 0 homem para além da pura imediatidade ¢ instaurar a dimensao critica. Superada a postura ingénua diante da realidade ¢ entdo possivel assumir responsavelmente a verdade como um todo. Pois somente a perspectiva que abre 0 comportamento filosdfico é capaz de antecipar os limites e as possibilidades das diversas areas em que se move a interrogago pela verdade. E por isso que o destino do homem e da historia depende da lucidez e distancia critica que so 0 apandgio da filosofia, Num momento de crise da sociedade brasileira, em que uma falsa seguranga é bus- cada com o sacrificio da liberdade; em que se elabora um projeto nacional comprimido dentro de uma visio tecnocratica, nada melhor que a serena meditagdo da filosofia, Ela nos ensina a paciéncia diante da historia e a coragem para apostar nas possibilidades que se escondem no risco da liberdade. Ela nos mostrar principalmente o verdadeiro lugar da ciéncia ¢ da técnica na construgao da historia humana, Todo o determinismo que se quer imprimir a sociedade brasileira e & consciéncia nacional, mediante a absolutizagio da tecnologia, deve ser desmascarado pela consciéncia critica instaurada pela filosofia. Ela é um instrumento de libertagdo das amarras deste novo positivismo teenocratico com que o sectarismo e 0 interesse nos querem prender. Que & Metafisica?, de Heidegger, ¢ um texto de grande penetragio e oportunidade. Os amplos horizontes que descerra garantem contribuigao segura para o despertar da verdadeira consciéncia critica. Com rara felicidade o filésofo desenvolve neste texto o horizonte metafisico em que o cientista antecipa a visio da totalidade e clarifica as con- digdes de sua propria existéncia de pesquisador. A luz da tanscendéncia exercida no comportamento concreto destacam-se as possibilidades e os limites da pesquisa cienti- fica, do cdlculo e da técnica, e prepara-se um novo pensamento, Dele Heidegger nos fala insistentemente como de uma terra onde o homem reencontra suas raizes. As notas que seguem procuram situar a obra em seu verdadeiro lugar. Antecipam elementos importantes para uma interpretagao adequada das idéias centrais. 1. Origem dos Textos — Depois de varios anos de atividades na Universidade de Freiburg im Breisgau, como livre-docente, Heidegger deixara a companhia de seu mestre Husserl e aceitara o convite para a catedra de Filosofia em Marburgo, até entéo ocupada por Nicolai Hartmann. Ali trabalhou de 1923 a 1928, Neste ano foi convidado para assumir a catedra de Filosofia em Freiburg, vaga com a aposentadoria de Edmund Hus- serl, Ao comegar ali suas atividades de professor ordinario, Heidegger pronunciou, como era de praxe, sua primeira aula diante de todo o corpo docente ¢ discente da Universi- dade. Esta aula inaugural piblica, que teve lugar no dia 24 de julho de 1929, trazia o tf tulo Que é Metafisica? Publicado no mesmo ano, 0 texto integral da prelegao obteve pro- 226 HEIDEGGER funda repercuss%io. Provocou também muitos mal-entendidos. Parecia vir reforgar suspeitas despertadas ja por Ser e Tempo. Heidegger era promotor do niilismo, da filoso. fia do sentimento da angiistia ¢ da covardia, do irracionalismo que combatia a validez da logica. Em resposta as objegdes que se multiplicavam o fildsofo acrescentou a quarta edi- go de 1943 um posficio que respondia As abjecdes ¢ elucidava aspectos da prelego que suscitavam diividas ¢ mal-entendidos. Em 1949 0 autor publicou, com a quinta edicdo do texto, uma introduce com o titulo “Retorno ao Fundamento da Metafisica”, 2. Posigiio no Contexto da Obra — Se prescindirmos dos dois livros de sua juven- tude — a tese de doutorado O Juizo no Psicologismo e a de livre-docéneia A Doutrina das Categorias e do Significado em Duns Scot — e levarmos em conta apenas as obras da maturidade, 0 texto da prelegfio Que é Metafisica? & 0 terceiro trabalho impresso por Heidegger. Depois de Ser e Tempo e Kant e 0 Problema da Metafisica, Que é Metaft- sica? foi publicada no mesmo ano em que surgia Sobre a Esséncia do Fundamento no volume complementar do Anuario de Filosofia e Investigagdes Fenomenoldgicas, come morativo dos setenta anos de Edmund Husserl. Em 1933 se editou seu discurso de toma- da de posse da Reitoria da Universidade de Freiburg i, B, A Auto-afirmagdo da Universi- dade Alema. Além dos comentarios sobre a poesia de Hoelderlin, os primeiros textos marcantes publicados aps Que é Metafisica? so Sobre a Esséncia da Verdade em 1943 € a carta Sobre o Humanismo em 1947. Os textos do posfacio e da introdugio acrescen- tados posteriormente ja sio manifestagdes nitidas do segundo Heidegger. Revelam o gio em que o filésofo analisa a metafisica como histéria do ser. Os dois volumes inti tuiados Nietzsche, que contém as prelegGes entre 1936 ¢ 1946, retratam 0 contexto te tico em que nasceram os dois textos. 3. Elementos Caracteristicos — Heidegger toma como ponto de partida para a pre- lego uma situagao conereta: a reunio de pesquisadores, professores ¢ estudantes. Reali tica da existéncia cientifica e a partir dela procura responder o que é metafi Nao define a metafisica, Um problema que emerge do proprio comportamento do homem de ciéncia € examinado. A questo do nada como questio metafisica envolve toda metafisica e a existéncia global daqueles que interrogam. Assim é possivel respon der a pergunta pela metafisica aprofundando uma questo metafisica Dentro do mais auténtico estilo heideggeriano, a prelegdo marcha para seu objetivo. Importa, porém, acompanhar a tessitura da interrogagdo que perseguir a meta que, desli gada do movimento problematizador, aparece despida de qualquer interesse. Este enca. deamento dialético visa a arrancar 0 ouvinte ou leitor da postura ingénua e imediatista para eleva-lo ao nivel em que se deve desdobrar a interrogagiio metafisica. Atingido tal nivel, a resposta é encontrada pelo esforgo pessoal Que é Metafisica? & um testemunho desta pedagogia heideggeriana que socratica- mente faz participar do processo interrogador aquele a quem se dirige. Mas ela nfio se reduz a isto. Ha uma particularidade que a faz uma pedagogia propria da filosofia. Hei degger arranca o ouvinte ou leitor da imediatidade da postura natural em face das coisas € 0 leva a postura transcendental. Torna reflexo no interlocutor o exercicio cotidiano e npensado da transcendéncia. Mostra, pelo proprio movimento da interrogagao, 0 Fato de que o homem nio esta ao lado da pedra, da flor ou da estrela, mas que as envolve pela compreensdo numa estrutura referencial, abre um espago antecipador a partir do qual tomam sentido. Isto é a caracteristica primeira da existéncia humana e que Ihe dé a dis- tancia do mundo natural ¢ a faz ser transcendentalmente na cotidiancidade. Assumir, no exercicio da interrogagao, esta condigéo transcendental é proprio do comportamento filoséfico. QUE E METAFISICA? 227 magistrais andlises fenomenoligicas de Que é Metafisica?, que tanto lembram Ser e Tempo, nao visam a outra coisa, A fenomenologia é precisamente a arte de desve- lar aquilo que, no comportamento cotidiano, nos ocultamos a nés mesmos: o exercicio da transcendéncia. Por isso Heidegger nao permanece aqui na analitica existencial. Até a maneira como ela ¢ realizada ja vem marcada pela finalidade a que se dirige: 0 pro- blema do ser, que em sua radicalidade é precisamente a revelagio da condigZo transcen. dental do homem. Mas no texto que estudamos o ser & buscado a partir do nada. O pos facio dira que este € 0 véu do ser. A questo do nada é a que foi desencadeada a partir da pesquisa cientifica. Esta diregao ontoligica de toda a fenomenologia heideggeriana ¢ que a distingue da orientacdo puramente antropol6gica de Max Scheler ou da orientagio légico-gnosiologica de Edmund Husserl A marcha da prelegao mostra como toda problematica metafisica deve ser colocada a partir do homem, ainda que nele ndo deva parar. E o que separa radicalmente Heideg- ger de Husserl. Este transformara a ontologia em fenomenologia. Aquele, sem voltar atrés de Husserl, procura antes radicalizar a fenomenologia para recolacar o problema da ontologia. E a radicalizagao da fenomenologia é a radicalizagdo da subjetividade. E a partir desta ele recoloca o problema da ontologia. Heidegger, portanto, nao rejeita as conquistas do pensamento moderno. Leva-o as suas tiltimas conseqiiéncias e, mediante a radicalizagao, 0 supera para instaurar uma ontologia que aproveita as conquistas do pensamento moderno e supera, assim, também a ontologia classica A ontologia classica é superada através do proprio ponto de partida antropoldgico da fenomenologia, No pensamento grego a ontologia constituia 0 ponto de partida da interrogagao metafisica. Isto se mostrou, de modo inequivoco, na divisio da filosofia apresentada por C. Wolif no século XVIII. A partir da ontologia ou metafisica geral se constituiam as metafisicas especiais: cosmologia, psicologia racidnal e teologia natural. Considerado o ser como evidente, era possivel nele fundar toda a interrogago posterior. ‘Mas, uma vez posta em diivida a auséncia de problematicidage do ser, a ontologia perdia © privilégio de ponto de partida indiscutivel. Assim, aos poucos, a antropologia foi tomando a si o privilégio de ponto de partida para toda a interrogagio filoséfica. Esta mudanga, que foi iniciada com o pensamento moderno, representa um momento decisivo na obra de Heidegger. A analitica existencial do homem em sua cotidianeidade torna-se © ponto de partida necessario para a discussio do problema do ser, do mundo e de Deus. Na prelegao 0 problema do nada (0 véu do ser) é levantado a partir do homem, Nao é, sem diivida, uma dimensdo qualquer do homem que serve de ponto de partida, mas aque- la em que ele se revela na sua cxisténcia, enquanto exercicio da transcendéncia (Heideg- ger da uma interpretagdo etimoldgica de existéncia escrevendo-a ek-sisiéncia, para acen- tuar sua forga de transcendéncia). Desta maneira o homem & considerado o lugar privilegiado para a manifestagao do ser, manifestagio que se realiza pela experiéncia do nada. Nem é preciso chamar particularmente a ateng3o para a seguinte conseqiiéncia 1o- gica: assim como 0 conceito de ser se modifica quando se toma o homem como ponto de partida, assim também o nada. O nada heideggeriano se distingue nitidamente do nada grego e do nada da tradi assim como no pode ser confundido com a negativi- dade da filosofia moderna. Pelo que vimos até aqui. compreende-se também por que Heidegger nao chama expressamente a atengdo para a necessidade de uma ruptura com a atitude natural do cientista para que assim se instaure o ambito transcendental, No pensamento do fil6sofo desaparece a epoche ¢ o processo de redugo que procurava instaurar metodicamente a Tuptura com o mundo natural para atingir a dimensio transcendental. Para Husserl tal procedimento se impunha pelo fato de, segundo ele, o homem movimentar-se, em seu cotidiano, na atitude natural. Para Heidegger no ha propriamente um comportamento 228 HEIDEGGER natural do homem. Em todo o comportamento humano ja é exercida a transcendenta- lidade. O que importa & mostrar tal comportamento pela analitica existencial. A fenome- nologia nao sera um método que busca a transcendentalidade pelo processo redutivo; para Heidegger ela consiste em desvelar o que propriamente sempre est em marcha. A transcendentalidade nao reside na intelectualidade do sujeito, mas na pré-compreensio. do ser pelo ser-ai no homem. O texto Que é Metafisica? deve, portanto, ser meditado na dimensio em que se apresenta, a transcendentalidade. Todas as objegdes que contra ela se levantaram nasce- ram da postura do objetivismo ingénuo. O ‘inico modo de o filisofo responder as obje- Ges era determinar a verdadeira dimens%o em que toda prelegdo se movimentava. Entio caiam as trés objegSes principais: 1 — o nada nada tem a ver com qualquer tipo de nii- lismo ou pessimismo. Ele se apresenta, na prelegao, como o véu do ser. Isto s6 com- preende quem se desprende da atitude do objetivismo e se eleva para a dimensao trans- cendental. E ali que se desdobra a fenomenologia heideggeriana; é ali que o nada é um nome para o ser; 2 — também a angistia deve ser compreendida na dimensio transcen- dental. Ela no representa algum estado psicol6gico ou sentimento. E um acontecer no ser-ai (na dimensdo transcendental) em que se realiza a experiéncia do ser como o nada; 3 — 0 mesmo acontece com a légica. Heidegger no the nega a validez. Mostra apenas que ha dimensdes, ¢ uma delas é aquela em que se manifesta o ser, em que se ultrapassa © ldgico do entendimento. A verdade do ser ou a manifestco do ser ou, ainda, a compreensio do ser ultrapassa a légica dos entes. A dimensio transcendental vai em busca das condigSes de possibilidade da logic: © posficio acrescentado a prelegio procura tomar claro como é preciso ler ¢ compreender tal texto, Mas quem pergunta Que é Metafisica? problematiza a propria metafisica. E proble- matizé-la é situar-se fora dela. E a partir deste fato que o filésofo elabora a sua introdu- gdo. Para compreender o que é metafisica, é preciso voltar aos seus fundamentos. A isto se destina toda a obra do pensador. Somente se compreende a pergunta Que é Metaft- sica? quando se descobriram as razées, os fundamentos da metafisica. E para Heidegger a metafisica mergulha num fundamento que ela mesma ignora, Assim, nao é ela que responder a pergunta Que é Metafisica?, mas um pensamento que a superou, isto & que penetrou em seus fundamentos. E este o pensamento que o fildsofo desenvolve desde 0 comego de sua obra Ser e Tempo. O pensamento originario que retorna ao fundamento da metafisica somente pode fazé-lo porque superou o objetivismo da metafisica que con- fundiu 0 ser com o ente e nao pensa o proprio ser. Este somente pode ser pensado quando se parte da transcendentalidade do ser-ai, isto ¢, quando se leva em consideragdo aquela dimensdo em que misteriosamente o ser se revela no ser-ai. Na dimens&o que se abre com © encontro do homem com o ser pode surgir a metafisica. Ela, entretanto, ndo é capaz de pensar esta dimensio que ¢ seu fundamento e esconde em si a resposta 4 pergunta Que é Metafisica? Com a introdugdo Heidegger recapitula toda a marcha de seu pensamento, para reinterpreta-la e nela inserir a questo do nada a partir da qual se procurou responder 0 que é metafisica. 4, A Tradugdo — Ha passagens dos textos que traduzimos em que o sentido filos6- fico esta estreitamente vinculado com a lingua alema. Certos “topoi”: palavras, expres- sdes, frases carregadas de contetido essencial, exigem circunlocugdes. Mas isto vem em prejuizo da beleza da linguagem e obscurece, por vezes, 0 sentido exato que 0 autor quer QUE £ METAFISICA? 229 dar. Procuramos fazer um solitério esforgo para atingir um nivel aceitével na tradugao, tornando-a ao menos um instrumento itil para leitores indulgentes e para o exercicio de anélise de textos na universidade. TradugSes como estas exigiram o trabalho combinado de fil6sofos e filélogos. Nao para carregar as paginas com notas, mas para elaborar um texto em que se transportassem com fidelidade os conteddos expressos em alemio para uma lingua romanica. Tempos melhores talvez permitirlio que se tratem com a seriedade exigida os textos classicos que devemos usar no Brasil. Temos presente as exigéncias ¢ nfio esquecemos as inconveniéncias de uma tradugio. O texto poderd ser aprimorado pelo auxilio que prestarem os estudiosos, apontando erros e sugerindo modos mais claros € menos equivacos de dizer pensamentos dificeis. Utilizamos para a tradugdo a redagao da sétima edigdo alema e nao fazemos alu- sdes a redagGes anteriores. A discussio de certas modificagdes seria interessante, mas no se faz necessaria para compreendermos o texto que traduzimos. ‘Alguns talvez estranhardo a distribuigo da matéria no volume que apresentamos. Colocamos a introdugdo no fim do volume, em primeiro lugar, porque quisemos respei- tar a ordem cronolégica do aparecimento dos textos; em segundo lugar, porque, ainda que interligados entre si, 0 texto da introdugdo tem sentido independente; em terceiro lugar, porque 0 texto que sera mais usado para o estudo é 0 da prelegao. Poderiamos acrescentar um quarto argumento: num volume editado pela Editora Vittorio Kloster- mann, em 1967, ¢ que contém grande parte dos trabalhos menores de Heidegger, os trés textos em questdo so apresentados na ordem cronoldgica de sua publicagio. ' Finalmente, sugerimos, para a compreensio deste volume, a leitura de Sobre o Pro- blema do Ser. Ha ali referéncias explicitas a Que é Metaffsica?, que constituem preciosas elucidagées. Porto Alegre, 25 de janeiro de 1969. * Heidegger, M. — Wegmarken, Vittorio Klosterman, Frankfurt am Main, 1967, A PRELECAO (1929) QuE E METAFISICA? — A pergunta nos da esperangas de que se falara sobre a metafisica. Nao 0 faremos, Em vez disso, discutiremos uma determinada questo metafi- sica, Parece-nos que, desta maneira, nos situaremos imediatamente dentro da metafisica. Somente assim lhe damos a melhor possibilidade de se apresentar a nés em si mesma. Nossa tarefa inicia-se com o desenvolvimento de uma interrogago metafisica, pro cura, logo a seguir, a elaboragao da questo, para encerrar-se com sua resposta. O Desenvolvimento de uma Interrogagio Metafisica Considerada sob 0 ponto de vista do so entendimento humano, é a filosofia, nas palavras de Hegel, o “mundo as avessas”. E por isso que a peculiaridade do que empreendemos requer uma caracterizagao prévia. Esta surge de uma dupla caracteristica da pergunta metafisica De um lado, toda questo metafisica abarca sempre a totalidade da problematica metafisica. Ela é a propria totalidade. De outro, toda questio metafisica somente pode ser formulada de tal modo que aquele que interroga. enquanto tal, esteja implicado na questo, isto 6, seja problematizado. Dai tomamos a indicagdo seguinte: a interrogagio metafisica deve desenvolver-se na totalidade e na situago fundamental da existéncia que interroga. Nossa existéncia — na comunidade de pesquisadores, professores e estudantes — é determinada pela ciéncia, O que acontece de essencial nas raizes da nossa existéncia na medida em que a ciéncia se tornou nossa paixdio? Os dominios das ciéncias distam muito entre si. Radicalmente diversa é a maneira de tratarem seus objetos. Esta dispersa multiplicidade de disciplinas é hoje ainda apenas mantida numa unidade pela organiza- go técnica de universidades ¢ faculdades e conserva um significado pela fixago das finalidades praticas das especialidades. Em contraste, 0 enraizamento das ciéncias, em seu fundamento essencial, desapareceu completamente. Contudo, em todas as cigncias nés nos relacionamos, déceis a seus propésitos mais auténticos com 0 préprio ente. Justamente, sob o ponto de vista das ciéncias, nenhum dominio possui hegemonia sobre o outro, nem a natureza sobre a histéria, nem esta sobre aquela. Nenhum modo de tratamento dos objetos supera os outros. Conhecimentos mate- maticos nao so mais rigorosos que 0s filolégico-historicos. A matematica possui apenas © cardter de “exatidiio” e este ndo coincide com o rigor. Exigir da histéria exatidao seria chocar-se contra a idéia de rigor especifico das ciéncias do espirito. A referéncia a0 mundo, que impera através de todas as ciéncias enquanto tais, faz com que elas procu- 234 HEIDEGGER rem 0 préprio ente para, conforme seu contetido essencial ¢ seu modo de ser, transfor- ma-lo em objeto de investigagao e determinagao fundante. Nas ciéncias se realiza — no plano das idéias — uma aproximagao daquilo que é essencial em todas as coisas. Esta privilegiada referéncia de mundo ao proprio ente é sustentada e conduzida por um comportamento da existéncia humana livremente escolhido. Também a atividade pré © extracientifica do homem possui um determinado comportamento para com o ente. A ciéneia, porém, se caracteriza pelo fato de dar, de um modo que Ihe € proprio, expressa € unicamente, & propria coisa a primeira e dltima palavra. Em téo objetiva maneira de perguntar, determinar ¢ fundar o ente, se realiza uma submiss&o peculiarmente limitada ao proprio ente, para que este realmente se manifeste. Este por-se a servigo da pesquisa e do ensino se constitui em fundamento da possibilidade de um comando proprio, ainda que delimitado, na totalidade da existéncia humana. A particular referéncia a0 mundo que caracieriza a ciéncia © 0 comportamento do homem que a rege, os entendemos, evidentemente apenas entio plenamente, quando vemos e compreendemos 0 que acon- tece na referéncia ao mundo, assim sustentada. O homem — um ente entre outros — “faz ciéncia”. Neste “fazer” ocorre nada menos que a irrupgdo de um ente, chamado homem, na totalidade do ente, mas de tal maneira que, na e através desta irrupedo, se descobre o ente naquilo que é em seu modo de ser. Esta irrupgdo reveladora é 0 que, em primeiro lugar, colabora, a seu modo, para que o ente chegue a si mesmo. Estas trés dimensdes — veferéncia a0 mundo, comportamento, irrupgdio — trazem, em sua radical unidade, uma clara simplicidade e severidade do ser-ai, na existéncia cien- tifiea. Se quisermos apoderar-nos expressamente da existéncia cientifica, assim esclare- cida, ent&o devemos dizer: Aquilo para onde se dirige a referéncia a0 mundo € o proprio ente — e nada mais. Aquilo de onde todo o comportamento recebe sua orientagio é 0 proprio ente — ealém dele nada, Aquilo com que a discussio investigadora acontece na irrupgdo € o proprio ente — e além dele nada. Mas 0 estranho é que precisamente, no modo como o cientista se assegura o que the € mais proprio, ele fala de outra coisa. Pesquisado deve ser apenas 0 ente e mais — nada: somente o ente ¢ além dele — nada; unicamente o ente e além disso — nada. Que acontece com este nada? E, por acaso, que espontaneamente falamos assim? E. apenas um modo de falar — e mais nada? Mas, por que nos preocupamos com este nada? O nada é justamente rejeitado pela ciéncia e abandonado como o elemento nadificante, E quando, assim, abandonamos 0 nada, nao o admitimos precisamente entio? Mas podemos nds falar de que admitimos algo, se nada admitimos? Talvez. ja se perca tal inseguranga da linguagem numa vazia querela de palavras. Contra isto deve agora a ciéncia afirmar novamente sua seriedade e sobriedade: ela se ocupa unicamente do ente. O nada — que outra coisa poderd ser para a ciéncia que horror ¢ fantasmagoria? Se a ciéncia tem razo, entdo uma coisa é indiscu- tivel: a ciéncia nada quer saber do nada, Esta 6, afinal, a rigorosa concepeao cientifica do nada. Dele sabemos, enquanto dele, do nada, nada queremos saber. A ciéncia nada quer saber do nada, Mas no € menos certo também que, justa- mente, ali, onde cla procura expressar sua propria esséneia, ela recorre ao nada, Aquilo que ela rejeita, ela leva em considerago. Que esséncia ambivalente se revela ali? Ao refletirmos sobre nossa existéncia presente — enquanto uma existéncia determi- nada pela ciéncia —, desembocamos num paradoxo. Através deste paradoxo ja se desen- volveu uma interrogagao. A questo exige apenas uma formulagio adequada: Que acon- tece com este nada? QUE E£ METAFISICA? 235 A Elaboragao da Questéo A elaboragtio da questio do nada deve colocar-nos na situagio na qual se torne possivel a resposta ou em que entio se patenteie sua impossibilidade. O nada € admitido. A ciéncia, na sua sobranceira indiferenga com relag&o a ele, rejeita-o como aquilo que “nao existe”. Nés contudo procuramos perguntar pelo nada. Que é o nada? Jé a primeira aborda. gem desta questio mostra algo insdlita. No nosso interrogar j4 supomos antecipada- mente 0 nada como algo que “é” assim ¢ assim — como um ente. Mas, precisamente, é dele que se distingue absolutamente. O perguntar pelo nada — pela sua esséncia e seu modo de ser — converte o interrogado em seu contrario. A questio priva-se a si mesma de seu objeto especifico. Se for assim, também toda resposta a esta questi é, desde o inicio, impossivel. Pois ela se desenvolve necessariamente nesta forma: 0 nada “é” isto ou aquilo. Tanto a per- gunta como a resposta so, no que diz respeito ao nada, igualmente contraditérias em si mesmas. Assim, ndo € preciso, pois, que a ciéncia primeiro rejeite o nada. A regra funda- mental do pensamento a que comumente se recorre, 0 principio da nio-contradigao, a légica” universal, arrasa esta pergunta. Pois o pensamento, que essenciaimente sempre & pensamento de alguma coisa, deveria, enquanto pensamento do nada, agir contra sua propria esséncia. Pelo fato de assim nos ficar vedado converter, de algum modo, o nada em objeto, chegamos ja ao fim com nossa interrogacdo pelo nada — isto, pressuposto que nesta questio a “légica” seja a tiltima instancia, que o entendimento seja 0 meio € 0 pensa: mento o caminho para compreender originariamente o nada e para decidir seu possivel desvelamento. Mas ¢ por acaso possivel tocar no império da “légica”? Nao é o entendimento real- mente 0 senhor nesta pergunta pelo nada? Efetivamente, é somente com seu auxilio que podemos determinar 0 nada e colocd-lo como um problema, ainda que fosse como um problema que se devora a si mesmo. Pois 0 nada é a negagao da totalidade do ente, 0 absolutamente nfio-ente. Com tal procedimento subsumimos 0 nada sob a determinagao mais alta do negativo e, assim, do negado. A negagdo é, entretanto, conforme a doutrina dominante ¢ intata da “logica”, um ato especifico do entendimento. Como podemos nds, pois, pretender rejeitar o entendimento na pergunta pelo nada e até na questio da possi bilidade de sua formulagio? Mas sera que € to seguro aquilo que aqui pressupomos? Representa o “nao”, a negatividade e com isto a negacao, a determinagao suprema a que se subordina o nada como uma espécie particular de negado? “Existe” o nada apenas porque existe 0 “nao”, isto é, a negagdo? Ou nio acontece o contrario? Existe a negagao € 0 “ndo” apenas porque “existe” 0 nada? Isto ndo esta decidido; nem mesmo chegou a ser formulado expressamente como questo. Nés afirmamos: o nada é mais originario que 0 “nao” e a negagao, Se esta tese € justa, entio a possibilidade da negagao, como atividade do entendi mento, e, com isto, o proprio entendimento, dependem, de algum modo, do nada, Como poder ento o entendimento querer decidir sobre este? Nao se baseia afinal o aparente contra-senso de pergunta e resposta, no que diz respeito ao nada, na cega obstinagao de um entendimento que se pretende sem fronteiras? 236 HEIDEGGER Se, entretanto, no nos deixarmos enganar pela formal impossibilidade da questio do nada e se, apesar dela, ainda a formularmos, entdo devemos satisfazer a0 menos Aqui- lo que permanece valido como exigéncia fundamental para a possivel formulagao de qualquer questo. Se o nada deve ser questionado — o nada mesmo —, entdo devera estar primeiramente dado. Devemos poder encontré-lo. Onde procuramos 0 nada? Onde encontramos 0 nada? Para que algo encontremos n4o precisamos, por acaso, ja saber que existe? Realmente! Primeiramente ¢ 0 mais das vezes 0 homem somente ent&o € capaz de buscar se antecipou a presenga do que busca Agora, porém, aquilo que se busca é 0 nada. Existe afinal um buscar sem aquela anteci pagdio, um buscar ao qual pertence um puro encontrar? Seja como for, nds conhecemos o nada, mesmo que seja apenas aquilo sobre o que cotidianamente falamos inadvertidamente, Podemos até, sem hesitar, ordenar numa “definigao” este nada vulgar, em toda palidez do dbvio, que to discretamente ronda em nossa conversa: O nada é a plena negagio da totalidade do ente. Nao nos dar, por acaso, esta caracteristica do nada uma indicagao da diregao na qual unicamente teremos possibili- dade de encontra-lo? A totalidade do ente deve ser previamente dada para que possa ser submetida enquanto tal simplesmente a negagéo, na qual, entéo, 0 proprio nada se deverd manifestar. Mesmo, porém, que prescindamos da problematicidade da relagdo entre a negagio ¢ o nada, como deveremos nés — enquanto seres finitos — tornar acessivel para nds, em sie particularmente, a totalidade do ente em sua omnitude? Podemos, em todo caso, pen- sar a totalidade do ente imaginando-a, ¢ entio negar, em pensamento, o assim figurado © “pensa-lo” enquanto negado. Por esta via obteremos, certamente, o conceito formal do nada figurado, mas jamais o proprio nada. Porém, entre 0 nada figurado, e 0 nada “auténtico” néio pode imperar uma diferenga, caso o nada represente realmente a abso- uta indistingdo. Nao é, entretanto, o proprio nada “auténtico” aquele conceito oculto, mas absurdo, de um nada com caracteristicas de ente? Mas paremos aqui com as per. Buntas. Que tenha sido este o momento derradeiro em que as objegdes do entendimento Tetiveram nossa busca que somente pode ser legitimada por uma experiéncia funda. mental do nada, Tao certo como & que nds nunca podemos compreender a totalidade do ente em.si € absolutamente, to evidente é, contudo, que nos encontramos postados em meio a0 ente de algum modo desvelado em sua totalidade. E esta fora de diivida que subsiste uma dife. renga essencial entre 0 compreender a totalidade do ente em si eo encontrar-se em meio ao ente em sua totalidade. Aquilo é fundamentalmente impossivel. Isto. no entanto, acon. tece constantemente em nossa existéncia. Parece, sem diivida, que, em nossa rotina cotidiana, estamos presos sempre apenas 2 este ou aquele ente, como se estivéssemos perdidos neste ou naquele dominio do ente, Mas, por mais disperso que possa parecer o cotidiano, ele retém, mesmo que vagamente, © ente numa unidade de “totalidade”. Mesmo entio e justamente entio, quando nao esta, mos propriamente ocupados com as coisas e com nds mesmos, sobrevém-nos este “em totalidade”, por exemplo, no tédio propriamente dito. Este tédio ainda esta muito longe de nossa experiéneia quando nos entedia exclusivamente este livro ou aquele espetaculo, aguela ocupagao ou este dcio. Ele desabrocha se “a gente esté entediado”. O profundo tédio, que como névoa silenciosa desliza para cé e para ld nos abismos da existéncia, ni- Vela todas as coisas, os homens e a gente mesmo com elas, numa estranha indiferen Este tédio manifesta o ente em sua totalidade QUE E METAFISICA? : 237 Uma outra possibilidade de tal manifestagdo se revela na alegria pela presenga — no da pura pessoa —, mas da existéncia de um ser querido. Semelhante disposigio de humor em que a gente se sente desta ou daquela maneira situa-nos — perpassados por esta disposigio de humor — em meio ao ente em sua tota- lidade, O sentimento de situagao da disposigao de humor nio revela apenas, sempre & sua maneira, 0 ente em sua totalidade. Mas este revelar é simultaneamente — longe de ser um simples epis6dio — um acontecimento fundamental de nosso set-ai. © que assim chamamos “sentimentos” ndo ¢ um fenémeno secundario de nosso comportamento pensante e volitivo, nem um simples impulso causador dele nem um es- tado atual com o qual nos temos que haver de uma ou outra maneira. Contudo, precisamente quando as disposiges de humor nos levam, deste modo, diante do ente em sua totalidade, ocultam-nos 0 nada que buscamos. Muito menos sere mos agora de opinido de que a negacao do ente em sua totalidade, manifesta na disposi gio de humor, nos ponha diante do nada. Tal somente poderia acontecer, com a ade- quada originariedade, numa disposigao de humor que revele o nada, de acordo com seu proprio sentido revelador. Acontece no ser-ai do homem semelhante disposicao de humor na qual ele seja leva- do a presenga do préprio nada? Este acontecer € possivel e também real — ainda que bastante raro — apenas por instantes, na disposig&o de humor fundamental da angiistia, Por esta angiistia ndo enten- demos a assaz freqiiente ansiedade que, em iiltima andlise. pertence aos fendmenos do temor que com tanta facilidade se mostram. A angiistia € radicalmente diferente do temor. Nos nos atemorizamos sempre diante deste ou daquele ente determinado que, sob um ou outro aspecto determinado, nos ameaga. O temor de... sempre teme por algo determinado, Pelo fato de o temor ter como propriedade a limitagdo de seu “de” (Wovor) e de seu “por” (Worum), 0 temeroso ¢ 0 medroso sao retidos por aquilo que nos ame- dronta. Ao esforgar-se por se libertar disto — de algo determinado —, torna-se, quem sente o temor, inseguro com relagao as outras coisas, isto é, perde literalmente a cabeca. A angistia nao deixa mais surgir uma tal confusfio. Muito antes, perpassa-a uma estranha trangililidade. Sem divida, a angistia é sempre angistia diante de. . ., mas nio angiistia diante disto ou daquilo. A angiistia diante de... @ sempre angistia por. ., mas nio por isto ou aquilo. O carater de indeterminago daquilo diante de e por que nos angustiamos, contudo, ndo é apenas uma simples falta de determinagao, mas a essencial impossibilidade de determinagio. Um exemplo conhecido nos ‘pode revelat esta impossibilidade. Na angiistia —~ dizemos nés — “a gente sente-se estranho”. O que suscita tal estra- nheza e quem € por ela afetado? Nao podemos dizer diante de que a gente se sente estra- tho. A gente se sente totalmente assim. Todas as coisas ¢ nds mesmos afundamo-nos numa indiferenga. Isto, entretanto, nao no sentido de um simples desaparecer, mas em se afastando elas se voltam para nés. Este afastar-se do ente em sua totalidade, que nos {stia, nos oprime, Nao resta nenhum apoio. Sé resta e nos sobrevém — na fuga do ente — este “nenhum”. A angistia manifesta o nada, stamos suspensos” na angustia. Melhor dito: a angiistia nos suspende porque ela pode em fuga o ente em sua totalidade. Nisto consiste 0 fato de nds préprios — os homens que somos — refugiarmo-nos no seio dos entes. E por isso que, em tiltima anélise, nao sou “eu” ou no és “tu” que te sentes estranho, mas a gente se sente assim. Somente con: tinua presente 0 puro ser-ai no estremecimento deste estar suspenso onde nada ha em que apoiar-se, 238 HEIDEGGER A angiistia nos corta a palavra. Pelo fato de o ente em sua totalidade fugir, e assim, Justamente, nos acossa 0 nada, em sua presenga, emudece qualquer dicgdo do “é". O fato de nds procurarmos muitas vezes, na estranheza da angtistia, romper o vazio siléncio com palavras sem nexo é apenas o testemunho da presenga do nada. Que a angiistia reve- la o nada é confirmado imediatamente pelo proprio homem quando a angiistia se afas- tou. Na posse da claridade do olhar, a lembranga recente nos leva a dizer: Diante de que © por que nds nos angustiavamos era “propriamente” — nada. Efetivamente: 0 nada mesmo — enquanto tal — estava af. Com a determinago da disposigio de humor fundamental da angistia atingimos 0 acontecer do ser-ai no qual 0 nada esta manifesto e a partir do qual deve ser questionado. Que acontece com o nada? A Resposta a Questao A resposta, primeiramente a tnica essencial para nosso proposito. ja foi aleangada se tivermos a precaugao de manter realmente formulada a questo do nada. Para isto se exige que reproduzamos a transformago do homem em seu ser-ai que toda angustia em nés realiza. Entdio captamos o nada que nela se manifesta, assim como se revela. Com isto se impde, ao mesmo tempo, a exigéncia de mantermos expressamente longe a deter- minago do nada que nao se desenvolven na abordagem do mesmo. O nada se revela na angistia — mas nao enquanto ente, Tampouco nos é dado como objeto. A angiistia nio € uma apreensio do nada, Entretanto, o nada se torna manifesto por ela ¢ nela, ainda que nao da maneira como se 0 nada se mostrasse separa- do, “ao lado” do ente, em sua totalidade, o qual caiu na estranheza, Muito antes, ¢ isto J€ 0 dissemos: na angiistia deparamos com o nada juntamente com o ente em sua totali- dade. Que significa este “juntamente com”? Na angiistia 0 ente em sua totalidade se torna caduco, Em que sentido acontece isto? Pois, certamente, o ente nio é destrufdo pela angiistia para assim deixar como sobra o nada. Como é que ela poderia fazé-lo quando justamente a angiistia se encontra nna absoluta impoténcia em face do ente em sua totalidade? Bem antes. revela-se propria- mente 0 nada com 0 € no ente como algo que foge em sua totalidade. Na angistia ndo acontece nenhuma destruigio de todo o ente em si mesmo, mas tampouco realizamos nds uma negagio do ente em sua totalidade para, somente entio, atingirmos o nada, Mesmo nao considerando o fato de que é alhieio a angtistia enquanto tal, a formulagao expressa de uma enunciagao negativa, chegariamos, mesmo com uma tal negago, que deveria ter por resultado o nada, sempre tarde. Ja antes disto o nada nos visita. Diziamos que nos visitava juntamente com a fuga do ente em sua totalidade. Na angiistia se manifesta um retroceder diante de. . . que. sem dévida, nfo é mais, uma fuga, mas uma quietude fascinada. Este retroceder diante de... recebe seu impulso inicial do nada. Este ndo atrai para si, mas se caracteriza fundamentalmente pela rejei- gio. Mas tal rejeigdo que afasta de si é , enquanto tal, um remeter (que faz fugir) ao ente em sua totalidade que desaparece. Esta remissio que rejeita em sua totalidade, reme- tendo ao ente em sua totalidade em fuga — tal é 0 modo de o nada assediar, na angéstia, 0 ser-ai —, é a esséncia do nada: a nadificagao. Ela ndo é nem uma destruigdo do ente, nem se origina de uma negagao. A nadificagdo também nio se deixa compensar com a destruigio e a negago. O proprio nada nadifica. QUE f METAFISICA? 239 O nadificar do nada nfo é um episédio casual, mas, como remissdo (que rejeita) ao ente em sua totalidade em fuga, ele revela este ente em sua plena, até entéo oculta, estra- nheza como o absolutamente outro — em face do nada, Somente na clara noite do nada da angistia surge a originéria abertura do ente enquanto tal: 0 fato de que é ente — e nao nada. Mas este “e niio nada”, acrescentado em nosso discurso, nao é uma clarificagao tardia e secundaria, mas a possibilitagao pré- via da revelagio do ente em geral. A esséncia do nada originariamente nadificante con- siste em: conduzir primeiramente o ser-af diante do ente enquanto tal. Somente a base da originaria revelagdo do nada pode o ser-ai do homem chegar ao ente ¢ nele entrar. Na medida em que o ser-af se refere, de acordo com sua esséncia, ao ente que ele proprio é, procede ja sempre, como tal ser-ai, do nada revelado. Ser-ai quer dizer: estar suspenso dentro do nada. Suspendendo-se dentro do nada o ser-ai ja sempre est além do ente em sua totali- dade. Este estar além do ente designamos a transcendéncia, Se o ser-ai, nas raizes de sua esséncia, nao exercesse o ato de transcender, ¢ isto expressamos agora dizendo: se 0 ser- ai no estivesse suspenso previamente dentro do nada, ele jamais poderia entrar em rela- 40 com o ente e, portanto, também nao consigo mesmo. Sem a originaria revelagdo do nada nao ha ser-si-mesmo, nem liberdade, Com isto obtivemos a resposta 4 questo do nada. O nada nao € nem um objeto, nem um ente. O nada nao acontece nem para si mesmo, nem ao lado do ente ao qual, por assim dizer, aderiria. O nada é a possibilitagdo da revelagio do ente enquanto tal para 0 ser-ai humano. O nada nao é um conceito oposto ao ente, mas pertence originariamente a esséncia mesma (do ser). No ser do ente acontece o nadificar do nada. Mas agora devemos dar finalmente a palavra a uma objegio j4 por tempo dema- siado reprimida. Se 0 ser-ai somente pode entrar em relag&o com o ente enquanto estd suspenso no nada, se, portanto, somente assim pode existir e se o nada somente se revela originariamente na angiistia, nao devemos nds entdo pairar constantemente nesta angis- tia para, afinal, podermos existir? Nao reconhecemos nds mesmos que esta angilstia originaria rara? Mas, antes disso, esta fora de divida que todos nds existimos ¢ nos relacionamos com o ente — tanto aquele ente que somos como aquele que no somos — sem esta angiistia, Nao é ela uma invengdo arbitraria eo nada a cla atribuido um exagero? Entretanto, o que quer dizer: esta angéstia origindria somente acontece em raros momentos? Nao outra coisa que: 0 nada nos é primeiramente ¢ 0 mais das vezes dissi- mulado em sua originariedade. E por qué? Pelo fato de nos perdermos, de determinada maneira, absolutamente junto ao ente. Quanto mais nos voltamos para o ente em nossas ocupagées, tanto menos nés o deixamos enquanto tal, e tanto mais nos afastamos do nada. E tanto mais seguramente nos jogamos na piblica superficie do ser-ai. E, contudo, é este constante, ainda que ambiguo desvio do nada, em certos limites, seu mais préprio sentido. Ele, o nada em seu nadificar, nos remete justamente ao ente. O nada nadifica ininterruptamente sem que nds propriamente saibamos algo desta nadifica- a0 pelo conhecimento no qual nos movemos cotidianamente. que testemunha, de modo mais convincente, a constante ¢ difundida, ainda que dissimulada, revelagéio do nada em nosso ser-ai, que a negagtio? Mas, de nenhum modo, esta aproxima 0 “néo”, como meio de distingdio e oposi¢do do que € dado, para, por assim dizer, colocé-lo entre ambos. Como poderia a negagao também produzir por si o “nao” se cla somente pode negar se Ihe foi previamente dado algo que pode ser negado? Como pode, entretanto, ser descoberto algo que pode ser negado ¢ que deve sé-lo enquanto afetado pelo “no” se no fosse realidade que todo 0 pensamento enquanto t 240 HEIDEGGER J de antemao, tem visado ao “ndo”? Mas 0 “no” somente pode revelar-se quando sua origem, o nadificar do nada em geral ¢ com isto o proprio nada foram arrancados de seu velamento, O “nao” ndo surge pela negag%io, mas a negagdo se funda no “no” que, por sua vez, se origina do nadificar do nada. Mas a negagao € também apenas um modo de uma relagao nadificadora, isto quer dizer, previamente fundado no nadificar do nada. Com isto esté demonstrada, em seus elementos basicos, a tese acima: o nada é a ori gem da negagio e nao vice-versa, a negagao a origem do nada. Se assim se rompe 0 poder do entendimento no campo da interrogagao pelo nada e pelo ser, entio se decide também, com isto, o destino do dominio da “légica” no seio da filosofia. A idéia da “I6- gica” mesma se dissolve no redemoinho de uma interrogago mais originaria. Por muito ¢ diversamente que a negagdo — expressamente ou nfio — atravesse todo o pensamento, ela, de nenhum modo, por si s6, é testemunho valido para a revela- gio do nada pertencente essencialmente ao ser-ai. Pois a negagaio ndo pode ser procla- mada nem 0 {inico, nem mesmo 0 comportamento nadificador condutor, pelo qual o ser- ai é sacudido pelo nadificar do nada. Mais abissal que a pura conveniéncia da negagio pensante é a dureza da contra-atividade e a agudeza da execrago. Mais esponsavel & a dor da frustragao e a incleméncia do proibir. Mais importuna é a aspereza da privagio. stas possibilidades do comportamento nadificador — forcas em que 0 ser-ai sus tenta seu estar-jogado, ainda que néo o domine — nio sio modos de pura negagdo, Mas isto nao as impede de se expressar no “nao” e na negasiio. Através delas 6 que se trai sem diivida, de modo mais radical, 0 vazio e a amplidao da negag3o. Este estar 0 ser-al totalmente perpassado pelo comportamento nadificador testemunha a constante e, sem divida, obscurecida revelagio do nada, que somente a angistia originariamente desvela, Nisto, porém, est: esta originaria angistia é 0 mais das vezes sufocada no ser-ai. A angistia esta ai. Ela apenas dorme. Seu halito palpita sem cessar através do ser-af raramente seu tremor perpassa a medrosa e imperceptivel atitude do ser-af agitado envol- vido pelo “sim, sim” e pelo “nao, nao”; bem mais cedo perpassa o ser-ai senhor de si ‘mesmo; com maior certeza surpreende, com seu estremecimento, o ser-ai radicalmente audaz. Mas, no tiltimo caso, somente acontece originado por aquilo por que o ser-af se prodigaliza, para assim conservar-Ihe a derradeira grandeza, A angistia do audaz nao tolera nenhuma contraposigio & alegria ou mesmo a agra- davel diversdo do trangiiilo abandonar-se a deriva. Ela situa-se — aquém de tais posi gdes — na secreta alianga da serenidade e dogitra do anelo criador. A angistia originaria pode despertar a qualquer momento no ser-ai. Para isto ela ndo necessita ser despertada por um acontecimento inusitado. A profundidade de seu imperar corresponde paradoxal. mente a insignificancia do elemento que pode provocé-la. Ela esta continuamente a espreita e, contudo, apenas raramente salta sobre nés para arrastar-nos que nos sentimos suspensos. O estar suspenso do ser- homem no lugar-tenente do nada, Tio finitos somos nds que precisamente nio somos capazes de nos colocarmos originariamente diante do nada por decisio e vontade pré- prias, Tao insondavelmente a finitizagao escava as rafzes do ser-ai que a mais genuina e profunda finitude escapa a nossa liberdade. © estar suspenso do ser-ai dentro do nada originado pela angiistia escondida ¢ 0 ultrapassar do ente em sua totalidade: a transcendéncia. Nossa interrogaco pelo nada tem por meta apresentar-nos a propria metafisica. O nome “metafisica” vem do grego: fd metd physikd. Esta surpreendente expressio foi mais tarde interpretada como caracterizagao da interrogagao que vai meté — rans “além” do ente enquanto tal. mas { no nada originado pela angistia escondida transforma o QUE E METAFISICA?” 241 Metafisica é o perguntar além do ente para recuperé-lo, enquanto tal e em sua totali dade, para a compreensio. Ne pergunta pelo nada acontece um tal ir para fora além do ente enquanto ente em sua totalidade. Com isto prova-se que cla é uma questo “metafisica”. De questdes deste tipo davamos, no inicio, uma dupla caracteristica: cada questo metafisica compreende, de um lado, sempre toda a metafisica. Em cada questo metafisica, de outro lado, sempre vem envolvido o ser-ai que interroga Em que medida perpassa e compreende a questio do nada a totalidade da metafisica? Sobre o nada a metafisica se expressa desde a Antiguidade numa enunciagao, sem divida, multivoca: ex nihilo nihil fit, do nada nada vem, Ainda que, na discussie do emunciado, 0 nada, em si mesmo, nunca se torne problema, expressa ele, contudo, a partir do respective ponto de vista sobre o nada, a concepedio fundamental do ente que aqui ¢ condutora. A metafisica antiga concebe o nada no sentido do nao-ente, quer dizer, da matéria informe, que a si mesma nao pode dar forma de um ente com cardter de figura, gue, desta maneira, oferece um aspecto (eidos). Ente é a figura que se forma a si mesma, que enquanto tal se apresenta como imagem. Origem, justificago e limites desta concep- de ser sio tio pouco diseutides como o é o proprio nada, A dogmatica crista, pelo contrario, nega a verdade do enunciado: ex nihilo nihil fit e d&, com isto, uma significa- do modificada ao nada, que entio passa a significar a absoluta auséncia de ente fora de Deus: ex nihilo fit — ens creatum. O nada torna-se agora 0 conceito oposto ao ente verdadeiro, ao summum ens, a Deus enquanto ens increatum, Também a explicagao do nada indica a concepgdo fundamental do ente. A discussio metafisiea do ente mantém- se, porém, ao mesmo nivel que a questo do nada, As questdes do ser e do nada enquanto tais nfo tém lugar. E por isso que nem mesmo preocupa a dificuldade de que, se Deus cria do nada, justamente precisa poder entrar em relago com o nada, Se, porém, Deus € Deus, no pode ele conhecer 0 nada, se é certo que 0 “absoluto” exclui de si tudo 0 que tem carater de nada, A superficial recordagdo histérica mostra 0 nada como conceito oposto ao ente verdadeiro, quer dizer, como sua negacao. Se, porém, 0 nada de algum modo se torna problema, entio esta contraposig4o nao experimenta apenas uma determinagdo mais clara, mas ento primeiramente se suscita a verdadeira questo metafisica a respeito do ser do ente. O nada nao permanece o indeterminado oposto do ente, mas se desvela como pertencente ao ser do ente. “O puro ser ¢ 0 puro nada so, portanto, o mesmo.” Esta frase de Hegel (Ciéncia da Logica, Livro 1, WW III, p. 74) enuncia algo certo. Ser e nada copertencem, mas no porque ambos — vistos a partir da concepso hegeliana do pensamento — coincidem em sua determinagio ¢ imediatidade, mas porque o ser mesmo é finito em sua manifesta- gio no ente (Wesen), e somente se manifesta na transcendéncia do ser-ai suspenso dentro do nada, Se, de outro lado, a questiio do ser enquanto tal é a questo que envolve a metafi- sica, entio esta demonstrado que a questo do nada é uma questo do tipo que com preende a totalidade da metafisica. A questéo do nada pervade, porém, ao mesmo tempo, a totalidade da metafisica, na medida em que nos forga a enfrentar o problema da origem da negagao, isto quer dizer, nos coloca fundamentalmente diante da decisdo sobre a legi- timidade com que a “I6gica” impera na metafisica. A velha frase ex nihilo nihil fit contém entdo um outro sentido que atinge 0 proprio problema do ser ¢ diz: ex sihilo omne ens qua ens fit. Somente no nada do ser-ai o ente em sua totalidade chega a si mesmo, conforme sua mais propria possibilidade, isto € de 242 modo finito. Em que medida entdo a questiio do nada, se for uma questo metafisica, jé envolveu em si mesma nossa existéncia interrogante? Nos caracterizamos nossa existén- cia, aqui e agora experimentada, como essencialmente determinada pela ciéncia. Se nossa existéncia assim determinada est colocada na questo do nada, deve entdo ter-se tornado problematica por causa desta questo. A existéncia cientifica recebe sua simplicidade e acribia do fato de se relacionar com o ente ¢ unicamente com ele de modo especialissimo. A ciéncia quisera abandonar, com um gesto sobranceiro, o nada. Agora, porém, se torna patente, na interrogagao, que esta existéncia cientifica somente é possivel se se suspende previamente dentro do nada. Apenas entio compreende ela realmente o que é quando nfo abandona o nada. A apa rente sobriedade ¢ superioridade da ciéncia se transforma em ridfculo, se nio leva a sério © nada, Somente porque o nada se revelou, pode a ciéncia transformar o proprio ente em objeto de pesquisa. Somente se a ciéncia existe gragas a metalisiea, é ela capaz de con- quistar sempre novamente sua tarefa essencial que nao consiste primeiramente em reco- Iher ¢ ordenar conhecimentos, mas na descoberta de todo o espago da verdade da natu- reza e da historia, cuja realizag&o sempre se deve renovar. Somente porque o nada esta manifesto nas raizes do ser-ai pode sobrevir-nos a absoluta estranheza do ente. Somente quando a estranheza do ente nos acossa, desperta € atrai cle a admiragdio. Somente baseado na admiragio — quer dizer, fundado na reve- lagdo do nada — surge o “porqué™. Somente porque é possivel o “porque” enquanto tal, podemos nés perguntar, de maneira determinada, pelas razdes ¢ fundamentar. Somente porque podemos perguntar e fundamentar foi entregue A nossa existéncia o destino do pesquisador. ‘A questo do nada pie a nés mesmos — que perguntamos — em questio. Ela é uma questo metafisica. ser-ai humano somente pode entrar em relagdio com o ente se se suspende dentro do nada. O ultrapassar 0 ente acontece na esséncia do ser-ai. Este ultrapassar, porém, a propria metafisica. Nisto reside 0 fato de que a metafisica pertence a “natureza do homem”. Ela nao é uma disciplina da filosofia “académica”, nem um campo de idéias arbitrariamente excogitadas. A metafisica ¢ acontecimento essencial no dmbito de ser- af, Ela € 0 proprio ser-af. Pelo fato de a verdade da metafisica residir neste fundamento abissal possui ela, como vizinhanga mais préxima, sempre A espreita, a possibilidade do erro mais profundo. E por isso que nenhum rigor de qualquer ciéncia alcanga a seriedade da metalisica. A filosofia jamais pode ser medida pelo padro da idéia da ciéncia. Se realmente acompanhamos, com nossa interrogagao, a questo desenvolvida em torno do nada, ent&o no nos teremos representado a metafisica apenas do exterior. Nem nos transportamos também simplesmente para dentro dela. Nem somos disso capazes porque — na medida em que existimos — j4 sempre estamos colocados dentro dela, Physei gar, o phite, énest tis philosophta te toil andrds didnoia (Platao, Fedro 279a). Na medida em que o homem existe, acontece, de certa maneira, o filosofar. Filosofia — 0 que nés assim designamos — é apenas 0 por em marcha a metafisica, na qual a filosofia toma consciéncia de si ¢ conquista seus temas expressos. A filosofia somente se pde em movimento por um peculiar salto da propria existéncia nas possibilidades fundamentais do ser-ai, em sua totalidade, Para este salto sfio decisivos: primeiro, 0 dar espago para 0 ente em sua totalidade; segundo, o abandonar-se para dentro do nada, quer dizer, o ibe tar-se dos {dolos que cada qual possui e para onde costuma refugiar-se sub-repticia mente; e, por iiltimo, permitir que se desenvolva este estar suspenso para que constante. mente retorne a questo fundamental da metafisica que domina o proprio nada: Por que existe afinal ente e no antes Nada? as POSFACIO (1943) A pergunta “Que € metafisica?” permanece uma pergunta. O seguinte posficio & para aquele que acompanha a questio, um prefacio mais originario. A pergunta “Que é metafisica?” interroga para além da metafisica, Ela nasce de um pensamento que jé penetrou na superagao da metafisica. A esséncia de tais transigdes pertence o fato de, em certos limites, terem que falar ainda a linguagem daquilo que auxiliam a superar A especial oportunidade na qual é discutida a questo da esséncia da metafisica no deve induzir & opinido de que tal questionar esteja condenado a tomar seu ponto de parti- da das ciéncias. A investigagio moderna esta engajada, com outros modos de represen- tagdo e com outras espécies de produgao do ente, no elemento caracterfstico daquela ver- dade, conforme a qual todo ente se caracteriza pela vontade de vontade. Como forma antecipadora, comegou a aparecer a “vontade de poder”. “Vontade”, compreendida como trago basico da entidade do ente, é, tio radicalmente, a identificagdo do ente com © que é atual, que a atualidade do atual é transformada em incondicional factibilidade da geral objetivagdo, A ciéncia moderna nem serve a um fim que lhe primeiramente pro- posto, nem procura uma “verdade em si”. Ela é enquanto um modo de objetivagio calculadora do ente, uma condigo estabelecida pela propria vontade de vontade, através da qual esta garante 0 dominio de sua esséncia. Mas pelo fato de toda objetivagio do ente se exaurir na produgao e garantia do ente, conquistando, desta maneira, as possibili- dades de seu progresso, permanece a objetivagao apenas junto ao ente e j4 0 julga o ser Todo comportamento que se relaciona com o ente testemunha, desta maneira, jé um certo saber do ser, mas atesta simultaneamente a incapacidade de, por suas proprias for- gas, permanecer na lei da verdade deste saber. Esta verdade é a verdade sobre o ente. A metafisica € a histéria desta verdade. Ela diz 0 que o ente €, enquanto ela conceitua a entidade do ente. Na entidade do ente pensa a metafisica o ser, sem contudo, poder consi derar, pela sua maneira de pensar, a verdade do ser. A metafisica se move, em toda parte, no ambito da verdade do ser que the permanece o fundamento desconhecido ¢ infundado. Suposto, porém, que ndo apenas o ente emerge do ser, mas que também, e ainda mais originariamente, o proprio ser reside em sua verdade e que a verdade do ser se desdobra (west) como o ser da verdade, entio, € necessiria a pergunta pelo que seja a metalisica em seus fundamentos, Este interrogar deve pensar metafisicamente e, 20 mesmo tempo, deve pensar a partir dos fundamentos da metafisica, vale dizer, no mais metafisica mente. Num sentido essencial, um tal questionar permanece ambivalente. Toda tentativa, portanto, de acompanhar a marcha da prelegdo se chocar4, por isso. com dificuldades. Isto é bom. O interrogar torna-se, com isto, mais auténtico, Cada per- gunta objetiva é ja uma ponte para a resposta. Respostas essenciais siio, constantemente, apenas 0 iiltimo passo das proprias questdes, Este passo, porém, permanece irrealizavel 246 HEIDEGGER sem a longa série dos primeiros passos ¢ dos que seguem. A resposta essencial haure sua forga sustentadora na in-sisténcia do perguntar. A resposta essencial & apenas 0 comego de uma responsabilidade, Nela o interrogar desperta mais originariamente. E também, por isso, que a questo auténtica ndo é suprimida pela resposta encontrada. As dificuldades para acompanhar 0 pensamento da prelegio sio de duas especies. Umas surgem dos enigmas que se ocultam no Ambito do que aqui é pensado. As outras se originam da incapacidade e também, muitas vezes, da mé vontade para pensar. Na es- fera do interrogar pensante podem ja ajudar objegdes passageiras, mas certamente, entre estas, aquelas que forem cuidadosamente meditadas. Também opinides grosseiras ¢ fal- sas frutificam de algum modo, mesmo que sejam proclamadas na raiva de uma polémica cega. A reflexdo deve apenas recolher tudo na serena trangiiilidade da longanima meditagao. Podemos reunir em trés proposigdes basicas as objegdes ¢ falsas opinides sobre esta prelegdo. Diz-se: 1 — a preleg&o transforma “o nada” em tinico objeto da metafisica. Entretanto, porque o nada é absolutamente nadificante, leva este pensamento & opinifio de que tudo é nada, de tal maneira que nao vale a pena, quer viver quer morrer. Uma “filosofia do nada” é um acabado “nillismo”; 2 — a prelegdo eleva uma disposi¢io de humor isolada e ainda por cima depri- mente, a angiistia, ao privilégio de nica disposigao de humor fundamental. Entretanto, porque a angistia é o estado de animo do “medroso” ¢ covarde, renega este pensamento a confiante atitude da coragem. Uma “filosofia da angistia” paralisa a vontade para a acho; 3 — a prelecdo toma posigao contra a “légica”. Entretanto, porque o entendimento contém os padrées de todo célculo e ordem, este pensamento transfere 0 juizo sobre a verdade para a aleatéria disposigao de humor. Uma “filosofia do puro sentimento” poe em perigo o pensamento “exato” e a seguranga do agir. A postura correta diante destas proposigdes surge de uma renovada meditagao da preleco. Ela deve examinar se o nada, que dispde a angstia em sua esséncia, se esgota numa vazia negacio de tudo o que é, ou se — o que jamais ¢ em parte alguma é um ente — se desvela como aquilo que se distingue de todo ente e que nds chamamos o ser. Em qualquer lugar ¢ em qualquer amplitude em que a pesquisa explore o ente, em parte algu- ma, encontra cla o ser. Ela apenas atinge sempre 0 ente porque, antecipadamente, ja na intengio de sua explicagdo, permanece junto do ente. O ser. porém, nao é uma qualidade 6ntica do ente. O ser nao se deixa representar ¢ produzir objetivamente a semelhanga do ente. O absolutamente outro com relagdo ao ente é 0 ndo-ente. Mas este se desdobra (ivest) como ser. Com demasiada pressa renunciamos ao pensamento quando fazemos passar, numa explicagdo superficial, o nada pelo puramente nadificador ¢ 0 igualamos ao que no tem substincia. Em vez de cedermos a esta pressa de uma perspiccia vazia e sacrificarmos a enigmética multivocidade do nada, devemos armar-nos com a disposigao tinica de experimentarmos no nada a amplidio daquilo que garante a todo ente (a possi- bilidade de) ser. Isto é 0 préprio ser. Sem o ser, cuja esséncia abissal, mas ainda nao desenvolvida, 0 nada nos envia na angistia essencial, todo ente permaneceria na indi- géncia do ser. Mas mesmo esta indigéncia do ser, enquanto abandono do ser, ndo é, por sua vez, um nada nadificador, se é certo que & verdade do ser pertence o fato de que 0 ser nunca se manifesta (vest) sem o ente, de que jamais o ente é sem o ser. A angiistia dé-nos uma experiéneia de ser como 0 outro com relagio a todo ente, suposto que — por causa da “angistia” diante da angiistia, quer dizer, na pura atitude QUE E METAFISICA? 247 medrosa do temor — nds no nos esquivemos, fugindo da voz silenciosa que nos dispde para o espanto do abismo. Se abandonarmos arbitrariamente 0 curso do pensamento desta prelegao, ao nos referirmos a esta angiistia fundamental, se despojarmos a angés- tia, enquanto disposigdo de humor instaurada por aquela voz, da referéncia ao nada, entio nos resta apenas a angiistia como “sentimento” isolado que podemos distinguir & separar de outros sentimentos, no conhecido sortimento de estados de animo vistos psicologicamente. Tomando como guia a simplista diferenga entre “em cima” e “embai- xo”, podemos registrar, entio, as “disposigdes de humor” nas classes das que elevam das que deprimem, Sempre havera presa para a caca entusiasmada de “tipos” e “antiti- pos” de “sentimentos”, de espécies ¢ subespécies destes “tipos”. Contudo, esta explora- ao antropolégica do homem nunca ter possibilidades de acompanhar o curso do pen- samento desta preleco: pois esta pensa a partir da atengfio A voz do ser; ela assume a disposigao de humor que vem desta voz; esta disposigo de humor apela ao homem em sua esséncia para que aprenda a experimentar o ser no nada. A disposigdo para a angiistia € o sim a insisténcia para realizar o supremo apelo, 0 unico que atinge a esséncia do homem. Somente o homem, em meio a todos os entes, experimenta, chamado pela voz do ser, a maravilha de todas as maravilhas: que 0 ente é Aquele que assim ¢ chamado em sua esséncia para a verdade do ser esta, por isso, continuamente envolvido, de maneira fundamental, na disposigio de humor. A clara coragem para a angiistia essencial garante a misteriosa possibilidade da experiéneia do ser. Pois, proximo 8 angisstia essencial, como espanto do abismo, reside o respeito humil- de, Ele ilumina e protege aquele lugar da esséncia do homem no seio do qual ele perma- nece familiar no permanente. ‘A “angiistia” em face da angistia, pelo contrario, pode enganar-se de tal modo que desconhega as simples referéncias na esfera essencial da angustia. Que seria toda core- gem se nao tivesse, na experiéncia da angistia fundamental, seu constante elemento de confronto? Na medida em que diminufmos a angistia fundamental e a referéncia do ser ao homem, nela iluminada, aviltamos a esséncia da coragem. Mas esta € capaz de supor- tar o nada. A coragem reconhece, no abismo do espanto, o espaco do ser apenas entre- visto, a partir de cuja iluminagio cada ente primeiramente retorna Aquilo que €e é capaz de ser. A prelecdo nem se compraz numa “filosofia da angéistia”, nem procura insinuar a impressio de uma “filosofia herdica”, Ela pensa apenas aquilo que apareceu ao pensa- mento ocidental, desde 0 comego, como aquilo que deve set pensado ¢ permaneceu, entretanto, esquecido: 0 ser. Mas o ser no & produto do pensamento. Pelo contrario, 0 pensamento essencial é um acontecimento provocado pelo ser. E por isso que também se torna necessaria a formulagao do que até agora foi silen- ciado: situa-se este pensamento jé na lei de sua verdade se apenas segue aquele pensa- mento compreendido pela “Iégica”, em suas formas ¢ regras? Por que pac a prelegao esta expresso entre aspas? Para assinalar que a “lgica” € apenas uma das explicagdes da esséneia do pensamento; aquela que ja, 0 seu nome o mostra, se funda na experiéneia do ser realizado pelo pensamento grego. A suspeita contra a W6gica — como sua conse- giiente degenerescéncia pode valer a logistica — emana do conhecimento daquele pensa- mento que tem sua fonte na experiéncia da verdade do ser endo na consideragao da obje- tividade do ente. De nenhum modo € 0 pensamento exato o pensamento mais rigoroso, se 6 verdade que o rigor recebe sua esséncia daquela espécie de esforgo com que o saber sempre observa a relagio com o elemento fundamental do ente. O pensamento exato se prende unicamente 20 cflculo do ente e a este serve exclusivamente. Qualquer céleulo reduz todo 0 numeravel ao enumerado, para utilizd-lo para a proxima enumeragdo. O 248 HEIDEGGER ~ $ ‘ilculo nao admite outra coisa que o enumerdvel. Cada coisa & apenas aquilo que se pode enumerar. O que a cada momento é enumerado assegura 0 progresso na enumera- go. Esta utiliza progressivamente os mimeros e é, em si mesma, um continuo consumir- se. O resultado do calculo com o ente vale como o enumerdvel e consome o enumerado para a enumeragdo. Este uso consumidor do ente revela o cardter destruidor do céleulo. Apenas pelo fato de o nimero poder ser multiplicado infinitamente e isto indistintamente na dirego do maximo ou do minimo, pode ocultar-se a esséncia destruidora do célculo atras de seus produtos ¢ emprestar ao pensamento calculador a aparéncia da produtivi dade, enquanto, na verdade, faz valer, j4 antecipando e nfo em seus resultados subse- giientes, todo ente apenas na forma do que pode ser produzido e consumido. O pensa- mento calculador submete-se a si mesmo a ordem de tudo dominar a partir da Kgica de seu procedimento, Ele ndo é capaz de suspeitar que todo 0 calculével do célculo j& & antes de suas somas € produtos calculados, num todo cuja unidade, sem diivida, pertence a0 incalculavel que se subtrai a si e sua estranheza das garras do célculo. O que, entre- tanto, em toda parte e constantemente, se fechou de antemdo as exigéncias do céleulo que, contudo, ja a todo momento, é, em sua misteriosa condiga0 de desconhecido, mais préximo do homem que todo ente, no qual ele se instala a si ¢ a seus projetos, pode, de tempos em tempos, dispor a esséncia do homem para um pensamento cuja verdade nenhuma “Ilégica” € capaz de compreender. Chamemos de pensamento fundamental aquele cujos pensamentos ndo apenas calculam, mas so determinados pelo outro do ente. Em vez de calcular com o ente sobre o ente, este pensamento se dissipa no ser pela verdade do ser. Este pensamento responde ao apelo do ser enquanto o homem entrega sua esséncia historial 4 simplicidade da énica necessidade que ndo violenta enquanto submete, mas que cria 0 despojamento que se plenifica na liberdade do sacrificio. E preciso que seja preservada a verdade do ser, acontega o que acontecer ao homem € a todo ente. O sacrificio € destituido de toda violéncia porque é a dissipacio da essén cia do homem — que emana do abismo da liberdade — para a defesa da verdade do ser para o ente. No sacrificio se realiza 0 oculto reconhecimento, nico capaz de honrar 0 dom em que o ser se entrega & esséncia do homem, no pensamento, para que o homem assuma, na referéncia ao ser, a guarda do ser, © pensamento originario € o eco do favor do ser pelo qual se ilumina e pode ser apropriado 0 tinico acontecimento: que 0 ente 6, Este eco é a resposta humana & palavra da voz silenciosa do ser. A resposta do pensamento é a origem da palavra humana; pala- vea que primeiramente faz surgir a linguagem como manifestagdo da palavra nas palavras. Se, de tempos em tempos, néo houvesse um pensamento oculto no fundamento essencial do homem historial, entio ele jamais seria capaz do reconhecimento, suposto que, em toda reflexdo e em todo agradecimento, deve existir um pensamento que pensa originariamente a verdade do ser. Mas de que outro modo encontraria, um dia, uma humanidade o caminho para o reconhecimento originario que no pelo fato de o favor do ser oferecer ao homem, pela aberta referéncia a si mesma, a nobreza do despojamento, no qual a liberdade do sacrificio esconde 0 tesouro de sua esséncia? O sacrificio é a des pedida do ente em marcha para a defesa do favor do ser. O sacrificio pode, sem divida, ser preparado ¢ servido pelo agir ¢ produzir na esfera do ente, mas jamais pode ser por ele realizado. Sua realizag%o emana da in-sisténcia a partir da qual todo homem historial age — também o pensamento essencia! endo o ser-af instaurado para a defesa da dignidade do ser. Esta in-sisténcia é a impassibilidade que nao permite que seja contestada a oculta disposigao para a despedida propria de cada sacrificio. O sacri- uma QUE E METAFISICA? 249 ‘cio tem sua terra natal na esséncia daquele acontecimento que é © ser chamando o homem para a verdade do ser. E por isso que o sacrificio nao admite célculo algum pelo qual seria calculada sua utilidade ou inutilidade, sejam os fins visados mesquinhos ou elevados. Tal cflculo desfigura a esséncia do sacrificio. A mania dos fins confunde a lim- peza do respeito humilde (preparado para a angistia) da coragem para o sacrificio, que presume morar na vizinhanga do indestrutivel © pensamento do ser nao procura apoio no ente. O pensamento essencial presta atengdo aos lentos sinais do que nao pode ser calculado e nele reconhece © advento do inelutavel, que ndo pode ser antecipado pelo pensamento, Este pensamento esté atento a verdade do ser ¢ auxilia, desta maneira, o ser da verdade para que encontre seu lu, que nao precisa de repercussdo. O pensamento essencial auxilia com sua simples in: téncia no ser-ai na medida em que nela se desencadeia o que lhe é semelhante, sem que ela, entretanto, disso pudesse dispor ou mesmo apenas saber. O pensamento, décil 4 vox do ser, procura encontrar-the a palavra através da qual a verdade do ser chegue a linguagem. Apenas quando a linguagem do homem historial emana da palavra, esta ela inserida no destino que Ihe foi tragado. Atingido, porém, este equilibrio em seu destino, entio Ihe acena a garantia da voz silenciosa de ocultas fontes. © pensamento do ser protege a palavra € cumpre nesta solicitude seu destino, Este é 0 cuidado pelo uso da linguagem. O dizer do pensamento vem do siléncio longamente guardado ¢ da cuidadosa clarificago do ambito nele aberto. De igual origem é 0 nomear do poeta. Mas, pelo fato de o igual somente ser igual enquanto é distinto, e 0 poetar e 0 pensar terem a mais pura igualdade no cuidado da palavra, estio ambos, a0 mesmo tempo, maximamente separados em sua esséncia. O pensador diz 0 ser. O poeta nomeia © sagrado, Nao podemos analisar aqui do acontecimento. _(Wesen) do do ser, 0 poetar e 0 reconhecer e 0 pensar estdo referidos um ao outro ¢ a0 mesmo tempo separados, Provavelmente o reconhecer e © poetar se ori- ginam, ainda que de maneira diversa, do pensamento originario que utilizam, sem contu: do, poderem ser, para si mesmos, um pensamento. Conhecemos, é claro, muita coisa sobre a relagdo entre filosofia e poesia. Nao sabe mos, porém, do didlogo dos poetas e dos pensadores que “moram préximos nas monta- nhas mais separadas”. Um dos lugares fundamentais em que reina a indigéncia da linguagem ¢ a angistia, no sentido do espanto, no qual o abismo do nada dispde o homem. O nada, enquanto 0 outro do ente, é 0 véu do ser. No ser j& todo destino do ente chegou originariamente & sua plenitude. A Altima poesia do iltimo poeta da Grécia antiga, Edipo em Colonos, de Séfocles, encerra com a palavra que incompreensivelmente se volta sobre a oculta historia deste povo e conserva seu comeco na ignota verdade do si All’apopayete med’ epi pleio thrénon egetrete pantos gar ékhet tade kro. “Mas agora cessai e nunca n O lamento suse Pois, em todos os quadrantes. 0 que ac [retém junto a si Guardada uma decisdo de plenitude.” ais para o futuro INTRODUCAO (1949) O RETORNO AO FUNDAMENTO DA METAFISICA Descartes escreve a Picot, que traduzira os Principia Philosophiae para o francés: “Ainsi toute la philosophie est comme un arbre, dont les racines sont a Metaphysiqu le trone est la Physique, et les branches qui sortent de ce tronc sont toutes les autres sciences. . .” (Oeuvres de Descartes, editadas por C. Adam e P. Tannery, vol. IX, 14.) Aproveitando esta imagem, perguntamos: Em que solo encontram as raizes da 4r- vore da filosofia seu apoio? De que cho recebem as raizes e, através delas, toda a Arvore as seivas e forgas alimentadoras? Qual o elemento que percorre oculto no solo, as rafzes que dio apoio e alimento a arvore? Em que repousa e se movimenta a metafisica? O que @ a metafisica vista desde seu fundamento? O que, em diltima andlise, é a metafisica? Ela pensa o ente enquanto ente, Em toda parte, onde se pergunta o que é 0 ente, tem-se em mira 0 ente enquanto tal. A representagdo metafisica deve esta visio a luz do ser. A luz. isto & aquilo que tal pensamento experimenta como luz, ndo é em si mesma objeto de andlise; pois este pensamento analisa ¢ representa continuamente ¢ apenas 0 ente sob 0 ponto de vista do ente, E, sem diivida, sob este ponto de vista que 0 pensa- mento metafisico pergunta pelas origens énticas por uma causa da luz. A luz mesma vale como suficientemente esclarecida pelo fato de garantir transparéncia a cada ponto de vista sobre o ente. Seja qual for 0 modo de explicagao do ente, como espirito no sentido do espiritua lismo, como matéria ¢ forga no sentido do materialismo, como vir-a-ser e vida, como representagao, como vontade, como substancia, como sujeito, como enérgeia, como eter- no retorno do mesmo, sempre o ente enquanto ente aparece na luz do ser. Em toda parte, se iluminou o ser, quando a metafisica representa o ente. O ser se manifestou num desve- lamento (alétheia). Permanece velado 0 fato ¢ 0 modo como o ser traz. consigo tal desve- lamento, 0 fato € 0 modo como o ser mesmo se situa na metafisica e a assinala enquanto tal. O ser no & pensado em sua esséncia desveladora, isto é, em sua verdade. Entretanto, a metafisica fala da inadvertida revelag&o do ser quando responde a suas perguntas pelo ente enquanto tal. A verdade do ser pode chamar-se, por isso, 0 cho no qual a metati sica, como raiz da arvore da filosofia, se apdia e do qual retira seu alimento, Pelo fato de a metafisica interrogar o ente, enquanto ente, permanece ela junto ao ente ¢ nfo se volta para o ser enquanto ser. Como raiz da arvore ela envia todas as seivas e forgas para o tronco ¢ os ramos. A raiz se espalha pelo solo para que a arvore dele sur- gida possa crescer ¢ abandoné-lo. A rvore da filosofia surge do solo onde se ocultam as raizes da metafisica. O solo é, sem divida, o elemento no qual a raiz da arvore se desen- volve, mas o crescimento da arvore jamais sera capaz de assimilar em si de tal maneira © chao de suas raizes que desaparega como algo arbéreo na Arvore. Pelo contrario, as raizes se perdem no solo até as ltimas radiculas. O chao é chao para a raiz; dentro dele 254 HEIDEGGER ela se esquece em favor da arvore. Também a raiz. ainda pertence & arvore, mesmo que a seu modo se entregue ao elemento do solo. Ela dissipa seu elemento e a si mesma pela arvore. Como raiz ela no se volta para 0 solo; ao menos nio de modo tal como se fosse sua esséncia desenvolver-se apenas para si mesma neste elemento. Provavelmente, tam- bém o solo nao é tal elemento sem que 0 perpasse a raiz. Na medida em que, constantemente, apenas representa o ente enquanto ente, a metafisica no pensa no proprio ser. A filosofia nao se recolhe em seu fundamento. Ela o abandona continuamente e 0 faz pela metafisica. Dele, porém, jamais consegue fugit Na medida em que um pensamento se pde em marcha para experimentar 0 fundamento da metafisica, na medida em que um pensamento procura pensar na propria verdade do ser, em vez de apenas representar o ente enquanto ente, ele abandonou, de certa maneira, a metafisica. Visto da parte da metafisica, 0 pensamento se dirige de volta para o funda: mento da metafisica. Mas, aquilo que assim aparece como fundamento, se experimen- tado a partir de si mesmo, é provavelmente outra coisa até agora nao dita, segundo a qual a esséneia da metafisica € bem outra coisa que a metafisica. Um pensamento que pensa na verdade do ser nao se contenta certamente mais com a metafisica; um tal pensa- mento também nao pensa contra a metafisica. Para voltarmos a imagem anterior, ele ndo arranca a raiz da filosofia, Ele the cava 0 chao ¢ Ihe lavra o solo. A metafisica permanece a primeira instancia da filosofia. Ndo alcanga, porém, a primeira instancia do pensa- mento. No pensamento da verdade do ser a metafisica esta superada. Torna-se caduca a pretensio da metafisica de controlar a referéncia decisiva com o ser e de determinar adequadamente toda a relagdio com o ente enquanto tal. Esta “superagdo da metafisica”, contudo, no rejeita a metalisica. Enquanto o homem permanecer animal rationale & ele animal metaphysicum. Enquanto 0 homem se compreender como animal racional, per- tence a metafisica, na palavra de Kant, & natureza do homem. Se bem sucedido, talvez fosse possivel ao pensamento retornar ao fundamento da metafisica, provocando uma mudanga da esséncia do homem de cuja metamorfose poderia resultar uma transfor- magio da metafisica. Quando se falar assim, no desenvolvimento da questo da verdade do ser, de uma superagdo da metafisica, isto entio significa: Pensar no proprio ser. Um tal modo de pen sar ultrapassa o pensamento atual que no pensa no chao em que se desenvolve a taiz da filosofia. © pensamento tentado em Ser ¢ Tempo pie-se em marcha para preparar a supe- ragdo da metafisica assim entendida, Aquilo, porém, a que este pensamento dé o impulso necessario somente pode ser aquilo mesmo que deve ser pensado. O fato e a maneira de ‘© ser mesmo abordar um pensamento nunca dependem primeira ¢ unicamente do pensa- mento, Se o ser atinge um pensamento e 0 modo como o consegue, pde-no em marcha para sua matriz que vem do proprio ser, para, desta maneira, corresponder ao. ser enquanto tal, Mas por que, afinal, é necessaria uma tal espécie de superagio da metafisica? Deve- 14, desta maneira ser apenas substituida e fundamentada através de disciplina mais origi naria aquela disciplina da filosofia que até agora foi a raiz? Trata-se de uma modificagao do corpo doutrinario da filosofia? Nao. Ou deverd ser descoberto, pelo retorno ao funda. mento da metafisica, um pressuposto da filosofia até agora esquecido para mostrar-lhe que ainda nao assenta sobre seu fundamento inconcusso, néo podendo, por isso, ainda ser a ciéncia absoluta Nao. Com o advento ou a auséncia da verdade do ser. esté em jogo outra coisa: nfio a constituigio da filosofia, no apenas a propria filosofia, mas a proximidade ou distanci daquilo de que a filosofia, como 0 pensamento gue representa 0 ente enquanto tal, recebe QUE E METAFISICA? 255 sua esséncia e sua necessidade. O que se deve decidir é se o proprio ser pode realizar, a partir da verdade que Ihe é propria, sua relagao com a esséncia do homem ou se a metafi- sica, desviando-se de seu fundamento, impedira, no futuro, que a relagao do ser com o homem chegue, através da esséncia desta mesma relagao, a uma claridade que leve o homem a pertenga ao ser. Ja antes de suas respostas & questo do ente enquanto tal a metafisica representou © ser. Ela expressa necessariamente o ser e, por isso mesmo, o faz constantemente. Mas a metafisica ndo leva o ser mesmo a falar, porque nao considera o ser em sua verdade e a verdade como o desvelamento ¢ este em sua esséncia. A esséncia da verdade sempre aparece 4 metafisica apenas na forma derivada da verdade do conhecimento e da enun- ciagio, O desvelamento, porém, poderia ser algo mais originario que a verdade no senti- do da veritas. Alétheia taivez fosse a palavra que da o aceno ainda nao experimentado para a esséncia impensada do esse. Se a coisa fosse assim, sem divida o pensamento da metafisica que apenas representa jamais poderia alcancar esta esséncia da verdade, por mais afanosamente que se empenhasse historicamente pela filosofia pré-socratica; pois no se trata de algum renascimento do pensamento pré-socratico — tal projeto seria vio e sem sentido —, trata-se, isto sim, de prestar ateng’io ao advento da ainda no enun- ciada esséncia do desvelamento que é 0 modo como o ser se anunciou. Entretanto, velada permanece para a metafisica a verdade do ser ao longo de sua historia, de Anaximandro a Nietzsche. Por que nao pensa a metafisica na verdade do ser? Depende uma tal omis dio apenas da espécie de pensamento que é 0 metafisico? Ou pertence ao destino essen- cial da metafisica, que se Ihe subtraia seu proprio fundamento, porque em toda a eclosao do desvelamento permanece ausente sua esséncia, 0 velamento, e isto em favor do que foi desvelado e aparece como o ente? Entretanto, a metafisica expressa 0 ser constantemente ¢ das mais diversas formas. Ela mesma suscita e fortalece a aparéncia de que a questio do ser foi por ela levantada e respondida. Mas a metafisica no responde, em nenhum lugar, & questio da verdade do ser, porque nem a suscita como questao. Ela nao problematiza por que é que somente pensa o ser enquanto representa o ente enquanto ente. Ela visa ao ente em sua totalidade ¢ fala do ser. Ela nomeia o ser e tem em mira o ente enquanto ente. Os enunciados da metafisica se desenvolvem de maneira estranha, desde 0 comego até sua plenitude, numa geral troca do ente pelo ser. Esta troca, sem divida, deve ser pensada como aconteci- mento e nao como engano. Ela, de maneira alguma, tem suas razdes numa simples negli- géncia do pensamento ou numa exatidio no dizer. Em conseqiiéncia desta geral troca, a representagdo atinge o auge da confusdo quando se afirma que a metafisica realmente poe a questdo do ser Até parece que a metafisiea, sem seu conhecimento, esti condenada a ser, pela maneira como pensa o ente, a barreira que impede que o homem atinja a originaria rela iio do ser com o ser humano. Que seria, porém, se a auséncia desta relagdo e o esquecimento desta auséncia desde h& muito determinassem os tempos modernos? Que seria, se a auséncia do ser entregasse ‘© homem, sempre mais exclusivamente, apenas 20 ente, de tal modo que o ser humano fosse abandonado pela relaco do ser com sua (do homent) esséncia, fieando, ao mesmo tempo, tal abandono velado? Que seria, se assim fosse e se desde ha muito tempo esti- vesse persistindo tal situagHio? Que seria, se houvesse sinais mostrando que tal esqueci- mento se instalard para 0 futuro ainda mais decisivamente no esquecimento? Existiria ainda ocasido para um pensador se deixar conduzir presungosamente por este destino do ser? Se as coisas estivessem neste pé, haveria ainda motivo para, em tal 256 HEIDEGGER abandono do ser, se fantasiar ainda outra coisa ¢ isto levado até por uma disposig&o de humor elevado mas artificial? Se esta fosse a situagdo em torno do abandono do ser, nao haveria motivo bastante para que 0 pensamento, que pensa no ser, caisse no espanto que © paralisaria de tal modo que no fosse mais capaz de outra coisa que sustentar na angiistia este destino do ser para, antes de tudo, levar a uma decisio 0 pensamento que se ocupa do esquecimento do ser? Mas seria disto capaz um pensamento enquanto a angiistia, herdada como destino, fosse apenas uma deprimente disposigo de humor? Que tem a ver o destino do ser com psicologia e psicandlise? Suposto, porém, que d superagiio da metafisica corresponda o esforgo de primeira- mente aprender a prestar ateng&o ao esquecimento do ser, para experimenta-lo, assumir esta experiéncia na relagdo do ser com o homem e nela @ conservar, entio a pergunta “Que € metafisica?” permaneceria na indigéncia do esquecimento do ser, talvez contudo © mais necessério de tudo 0 que é necessario para 0 pensamento. Assim, tudo depende de que, em seu tempo oportuno, 0 pensamento se tome mais Pensamento. A isto chega o pensamento se, em vez de preparar um grau maior de esfor- ¢0. se dirige para outra origem. Entdo, o pensamento suscitado pelo ente enquanto tal, que por isso representa ¢ esclarece o ente, sera substituido por um pensamento instau- rado pelo proprio ser e por isso décil a vor do ser. Perdem-se no vazio consideragées sobre 0 modo como se poderia levar a agir sobre a vida cotidiana ¢ pablica de modo efetivo ¢ itil, 0 pensamento ainda e apenas metafi sico. Pois, quanto mais o pensamento é pensamento, quanto mais se realiza a partir da telagio do ser consigo, tanto mais puramente encontra-se, por si mesmo, engajado no inico agir que Ihe ¢ apropriado: na ago de pensar aquilo que the foi destinado e que por isso j4 foi pensado. Mas quem pensa ainda no que foi pensado? Inventam-se coisas. O pensamento ten- tado em Ser e Tempo esta “a caminho” para situar 0 pensamento num caminho em cuja marcha possa aleangar 0 interior da relagio da verdade do set com a esséncia do homem; esta em marcha para abrir ao pensamento uma senda na qual medite consenta- neamente o ser mesmo em sua verdade. Neste caminho, e isto quer dizer, a servigo da questio da verdade do ser, torna-se necessaria uma reflexdo sobre a esséncia do homem; pois a experiéncia do esquecimento do ser, ainda nio expressa porque exigindo demons. tragao, encerra em si a conjetura da qual tudo depende, de que, conforme o desvelamento do ser, a relagio do ser com o homem pertence a0 préprio ser. Mas como poderia esta conjetura aventada tornar-se mesmo apenas uma pergunta expressa sem que antes se empenhassem todos as esforgos para libertar a determinagdo fundamental do homem da subjetividade e da definigio do animal rationale. . .? Para reunir, ao mesmo tempo, numa palavra, tanto a relagdo do ser com a esséncia do homem, como também a referéncia fundamental do homem a abertura (“ai”) do ser enquanto tal, foi escoihido para o ambito essenciai, em que se situa o homem enquanto homem, o nome “ser-ai”, Isto foi feito, apesar de a metafisica usar este nome para aquilo que em geral é designado existentia, atuelidade, realidade e objetividade, nao obstante até se falar, na linguagem comum, em “ser-ai humano”, repetindo o significado metafisico da palavra, Por isso obvia toda possibilidade de se pensar 0 que nos entendemos quem se contenta apenas em averiguar que em Ser e Tempo usa-se, em vez de “consciéncia”, a palavra “ser-al”. Como se aqui estivesse apenas em jogo o uso de palavras diferentes, como se niio se tratasse desta coisa tnica: da relagdo do ser com a esséncia do homem € com isto, visto a partir de nds, como se nao se tratasse de levar o pensamento primeira mente diante da experiéncia essencial do homem, suficiente para a interrogagdo decisiva. QUE E METAFISICA? 257 Nem a palavra “ser-ai” tomou 0 lugar da palavra “consciéneia”, nem a “coisa” chamada “ser-ai” passou a ocupar o lugar daquilo que ¢ representado sob o nome “consciéncia”. Muito antes, com o “ser-ai” € designado aquilo que, pela primeira vez aqui, foi experi mentado como Ambito, a saber, como o lugar da verdade do ser e que assim deve ser adequadamente pensado. Aquilo em que se pensa com a palavra “ser-ai” através de todo o tratado de Ser e Tempo recebe ja uma luz desta proposigo decisiva (p. 42), que diz: “A ‘esséncia’ do ser-af consiste em sua existéncia” Se se considera que na linguagem da metatisica a palavra “existéneia” designa 0 mesmo que “ser-ai”, a saber, a atualidade de tudo o que é atual, desde Deus até 0 grio de areia é claro que apenas se desloca — quando se entende a frase linearmente — a dif culdade do que deve ser pensado da palavra “ser-ai” para a palavra “existéncia”. O nome “existéncia” é usado, em Ser e Tempo, exclusivamente como caracterizagio do ser do homem, A partir da “existéncia” corretamente pensada se revela a “esséncia” do ser- ai,em cuja abertura o ser se revela ¢ oculta, se oferece e subtrai, sem que esta verdade do ser no ser-ai se esgote ou se deixe identificar com o ser-ai ao modo do prinefpio metafi- sico: toda objetividade &, enquanto tal, subjetividade. Que significa “existéncia” em Ser e Tempo? A palavra designa um modo de ser e, sem diivida, do ser daquele ente que esta aberto para a abertura do ser, na qual se situa, enquanto a sustenta. Este sustentar @ experimentado sob o nome “preocupagio”. A esséneia ekstatica do ser-ai é pensada a partir da “preocupagio” assim como, vice-versa, a preocupagao somente pode ser experimentada, de modo satisfatério, em sua esséneia ekstatica, O sustentar assim compreendido é a esséncia da ékstasis que deve ser pensada. A esséncia ekstatica da existéncia é, por isso. ainda entdo insuficientemente entendida, quando representada apenas como “situar-se fora de”, concebendo o “fora de" como o “afastado da” interioridade de uma imanéncia da consciéncia ¢ do espirito: pois, assim entendida, a existéncia ainda sempre seria representada a partir da “subjetividade” e da “substéncia”, quando 0 “fora” deve ser pensado como o espago da abertura do proprio ser. Por mais estranho que isto soe, a sidsis do ekstatico se funda no in-sistir no “fora” e “ai” do desvelamento que é 0 modo de o priprio ser acontecer (west). Aquilo que deve ser pensado sob o nome “existéncia”, quando a palavra é usada no seio do pensamento que pensa na diregdo da verdade do ser ¢ a partir dela, poderia ser designado, do modo is belo, pela palavra “in-sisténcia” Mas entdo devemos pensar em sua unidade e como plena esséncia da existénci sobretudo, o in-sistir na abertura do ser, o sustentar da in-sisténcia (preocupagio) e a per-sisténcia na situagdo suprema (ser para a morte). O ente que é a0 modo da existéncia é 0 homem. Somente o homem existe. O roche do é, mas nao existe. A arvore é, mas niio existe. O anjo é, mas nio existe, Deus 6, mas no existe, A frase: “Somente o homem existe” de nenhum modo significa apenas que o homem é um ente real, ¢ que todos os entes restantes sdo irreais e apenas uma aparéncia ou a representagdo do homem. A frase: “O homem existe” significa: 0 homem é aquele ente cujo ser é assinalado pela in-sisténcia ex-sistente no desvelamento do ser a partir do ser e no ser. A esséncia existencial do homem é a razio pela qual o homem representa 0 ente enquanto tal e pode ter consciéncia do que € representado. Toda consciéncia pressu- pOe a existéncia pensada ekstaticamente como a essentia do homem. significando entio essentia aquilo que ¢ 0 modo proprio de o homem ser (west) na medida em que é homem A consciéncia, pelo contrario. nem é a primeira a criar a abertura do ente, nem a pri meira que da ao homem o estar aberto para o ente. Pois, qual seria a meta, o lugar de ori 258 HEIDEGGER gem ¢ a dimensio livre para 0 movimento de toda a intencionalidade da consciéncia se ‘0 homem ja nao tivesse sua esséncia na in-sisténcia? Meditada com seriediade, que outra coisa pode designar a palavra “ser” (“sein”) na palavra consciéneia (Bewusstsein =ser consciente) ¢ auto consciéncia (Selbstbewusstsein = ser-autoconsciente) a nao ser a esséncia existencial daquele que € quando enquanto existe? Ser um si-mesmo caracteriza, sem divida, a esséncia daquele ente que existe; mas a existéncia nfo consiste nem no ser-si-mesmo, nem a partir dele se determina. Pelo fato, porém, de o pensamento metafi- sico determinar o ser-si-mesmo do homem a partir da substancia ou, o que no fundo é 0 mesmo, a partir do sujeito, o primeiro caminho que leva da metafisica para a esséncia ekstatico-existencial do homem, deve passar através da determinagiio metafisica do ser- si-mesmo do homem (Ser e Tempo, §§ 63 ¢ 64). Mas. pelo fato de a questo da existéncia sempre estar apenas a servigo da finica questo do pensaniento, a saber, a servigo da pergunta (a ser desenvolvida) pela verdade do ser, como 0 fundamento escondido de toda metafisica, o tratado Ser e Tempo, que tenta 0 retorno ao fundamento da metafisica, no traz como titulo Existéncia e Tempo, também n&o Consciéncia ¢ Tempo, mas Ser e Tempo. Este titulo. porém, também n&o pode ser pensado como se correspondesse a estes outros titulos de uso corrente: Ser € vir-a-ser, ser e aparecer, ser e pensar, ser ¢ dever. Pois em tudo o ser é ainda aqui repre- sentado de maneira limitada, como se “vir-a-ser”, “aparecer”, “pensar”, “dever”, ndo pertencessem ao ser; pois, evidentemente nao so nada e por isso devem pertencer ao ser. Em Ser e Tempo “ser” nao € outra coisa que “tempo”, na medida em que “tempo” é designado como pré-nome para a verdade do ser, pré-nome cuja verdade é 0 aconteci- mento (Wesende) do ser ¢ assim o proprio ser. Entretanto, por que “tempo” e “ser”? Relembrar o comego da histbria, em que o ser se desvela no pensamento dos gregos, pode mostrar que os gregos desde os primérdios experimentaram o ser do ente como a presenga do presente. Se traduzimos einai por “ser”, a tradugao é literalmente certa. Contudo, substituimos apenas uma palavra por outra, Se formos mais rigorosos, mostrar-se-4 bem logo que nao pensamos nem efitai no sentido grego, nem “ser” em sua determinagao convenientemente clara ¢ univoca. Que dizemos, portanto, quando dize- mos “ser” em vez de “efitai” einai e esse em vez de “sen”? Nao dizemos nada. Tanto a palavra grega quanto a latina e a portuguesa permanecem do mesmo modo sem vida. Repetindo 0 uso corrente, revelamo-nos exclusivamente como seguidores da maior inconsciéncia que um dia surgi no pensamento e que até agora continua dominando. Aquele efnai, porém, significa: presentar-se. A esséncia deste presentar esta profun- damente oculta no primitivo nome do ser. Para nés, pois, efttai ¢ ousfa enquanto parousta € apousta significam primeiramente isto: no presentar-se impera impensada ¢ oculta- mente 0 presente ¢ a durago, acontece (west) tempo. Desta maneira, o ser enquanto tal se constitui ocultamente de tempo. E desta maneira ainda o tempo remete ao desvela- mento, quer dizer, 4 verdade do ser. Mas o tempo, a ser agora pensado, no é extraido da inconstancia do ente que passa. O tempo possui ainda bem outra esséncia que néo ape- nas ainda nao foi pensada pelo conceito de tempo da metafisica, mas nunca 0 podera ser. Assim 0 tempo se torna o primeiro pré-nome que deve ser considerado para que se expe- rimente 0 que em primeiro lugar é necessario: a verdade do ser. Assim como nos primeiros nomes metafisicos do ser fala uma esséncia escondida de tempo, assim também no seu tiltimo nome: no “eterno retorno do mesmo”. Durante a época da metafisica, a historia do ser esté perpassada por uma impensada esséncia de tempo. O espago niio esté ordenado nem paralelamente a este tempo nem situado dentro dele. QUE £ METAFISICA? 259 Uma tentativa de passar da representagiio do ente enquanto tal para o pensamento da verdade do ser deve, partindo daquela representagao, também representar ainda, de certa maneira, a verdade do ser, para que esta, finalmente, se mostre como representagao inadequada para aquilo que deve ser pensado. Esta relagao que vem da metafisica e que procura penetrar na referéncia da verdade do ser ao ser humano é concebida como compreensiio. Mas a compreensio é pensada aqui, ao mesmo tempo, a partir do desvela- ‘mento do ser. A compreenso é 0 projeto ekstatico jozado, quer dizer, 0 projeto in-sis- tente no Ambito do aberto. O Ambito que no projeto se oferece como o aberto, para que nele algo (aqui o ser) se mostre enquanto algo (aqui o ser enquanto tal em seu desvela- mento) se chama sentido (cf. Ser e Tempo, p. 151). “Sentido do ser” e “verdade do ser” dizem a mesma coisa. O preficio de Ser e Tempo, na primeira pagina do tratado, encerra com as frases: “A elaboragdo concreta da questo do sentido do ‘ser’ é o objeto do presente trabalho. Seu fim provis6rio & fornecer uma interpretagio do tempo como horizonte de toda compreensio possivel do ser”. ‘A filosofia nao podia trazer facilmente uma prova mais clara para o poder do esquecimento do ser em que toda ela se afundou — esquecimento que, entretanto, se tor- nou e permaneceu o desafio herdado pelo pensamento de Ser e Tempo — do que a sondmbula seguranga com que ela passou por alto a auténtica ¢ tinica questo de Ser e Tempo. E por isso que também nao se trata de mal-entendidos em face daquele livro, mas de um abandono por parte do ser. ‘A metafisica diz 0 que € 0 ente enquanto ente. Ela contém um Idgos (enunciagao) sobre 0 6n (0 ente). O titulo tardio “ontologia” assinala sua esséncia, suposto. é claro, que 0 compreendamos pelo seu contetido auténtico ¢ nao na estreita concepgao “escoliis- tica”, A metafisica se movimenta no ambito do dn he dn. Sua representagao se dirige 20 ente enquanto ente, Desta maneira, a metafisica representa, em toda parte, 0 ente enquanto tal e em sua totalidade, a entidade do ente (a ousia do én). A metafisiea, porém, representa a entidade do ente de duas maneiras: de um lado a totalidade do ente enquanto tal, no sentido dos tragos mais gerais (6n kathdlow, koindn); de outro, porém, @ a0 mesmo tempo, a totalidade do ente enquanto tal, no sentido do ente supremo ¢ por isso divino (6n kathdlou, akrétaton, thefon). Em Aristételes 0 desvelamento do ente enquanto tal propriamente se projetou nesta dupla direedo (vide Merafisica, Livros XI, V eX). Pelo fato de representar o ente enquanto ente & a metafisica em si a unidade destas duas concepgdes da verdade do ente, no sentido do geral e do supremo. De acordo com sua esséncia ela é, simultaneamente, ontologia no sentido mais restrito ¢ teologia. A esséncia ontoteolégica da filosofia propriamente dita (préze philosophia) deve estar, sem diivida, fundada no modo como The chega ao aberto o dn, a saber, enquanto én. O car’- ter teol6gico da ontologia nao reside, assim, no fato de a metafisica grega ter sido assu- mida mais tarde pela teologia eclesial do cristianismo e ter sido por ela transformada. O carter teol6gico da ontologia se funda, muito antes, na maneira como, desde a Antigui- dade, 0 ente chega ao desvelamento enquanto ente. Este desvelamento do ente foi que propiciou a possibilidade de a teologia crista se apoderar da filosofia grega. Se isto acon- teceu para seu proveito ou sua desgraga, isto os tedlogos devem decidir baseados na experiéncia da esséncia do cristianismo, enquanto consideram o que esté escrito na pri- meira carta aos Corintios do apéstolo Paulo: Oucht eméramen ho theds tén sophian tout Késmou; Nao permitiu Deus que em loucura se transformasse a sabedoria do mundo? (1 Corintios, 1.20). A sophia toi késmou, porém, é aquilo que conforme 1, 22 os “Héllenes zetoiisin”, © que os gregos procuravam, Aristételes até designa a prose philosophia (a 260 HEIDEGGER filosofia propriamente dita) expressamente de zetouméne — a procurada. Serd que um ia a teologia crista se decidiré mais uma vez a levar a sério a palavra do apdstolo e de acordo com ela a filosofia como loucura? A metafisica tem, enquanto a verdade do ente enquanto tal, duas formas. Mas a azo destas duas formas e mesmo sua origem estio fechadas para a metafisica, ¢ isto, sem diivida, no por acaso ou como consegiiéneia de uma omissio, A metafisica aceita esta dupla face pelo fato de ser o que é: a representagio do ente enquanto ente. Para a metafisica no resta escolha. Enquanto metafisica ela est& exclufda pela sua propria esséncia da experiéneia do ser; pois ela representa o ente (én) constantemente apenas naquilo que a partir dele se mostrou enquanto ente (he dn). Contudo, a metafisica nao presta atengdo aquilo que precisamente neste dn, na medida em que se tomou desvelado, também ja se velou. Assim pode-se tomar necessario, em tempo oportuno, novamente meditar sobre aquilo que propriamente é dito com a palavra én, com a palavra “ente”, De acordo com isto foi retomada, pelo pensamento, a questio do dn (vide Ser e Tempo, prefacio). Mas esta repetigao nao recapitula simplesmente a questdo platénico-aristotélica, mas retorna, pela interrogagao, aquilo que se esconde no 6n. Se a metafisica realmente dedica sua representago ao dn he én, cla permanece fun- dada sobre este elemento velado no én. A interrogagao que retorna a este elemento vela- do procura, por isto, do ponto de vista da metafisica, o fundamento para a ontologia. E por isso que o procedimento em Ser e Tempo (p. 13) se chama “ontologia fundamental”. Mas a expresso se mostra, em pouco tempo, embaragosa, como, alias, qualquer expres sio neste caso. Ela diz. algo certo se pensava a partir da metafisica; mas, justamente, por isso induz a erro; pois trata-se de conquistar a passagem da metafisica para dentro do pensamento de ser. E enquanto este pensamento se caracteriza a si mesmo como ontolo: gia fundamental, ele se interpée, com tal designago, seu proprio caminho ¢ o obscurece. A expressio “ontologia fundamental” parece induzir & opiniao de que 0 pensamento que procura pensar a verdade do ser ¢ nfo como toda ontologia, a verdade do ente, é enquanto ontologia fundamental, ela mesma ainda uma espécie de ontologia. Entretanto, 44 desde seus primeiros passos, © pensamento da verdade do ser, enquanto retorno a0 fundamento da metafisica, abandonou 0 ambito de toda ontologia. Mas toda filosofia que se movimenta na representagao mediata ou imediata da “transcendéncia” permanece necessariamente ontologia no sentido essencial, procure ela preparar uma fundamen. tagdo da ontologia ou rejeitar ela a ontologia que para sua seguranga busca apenas crispagao conceitual de vivéncias, Se, entretanto, esta fora de divida que o pensamento que procura pensar a verdade do ser trazendo consigo é verdade, 0 peso do antigo costume da representagao do ente enquanto tal se perde até a si mesmo, nesta representagdo, ento nada mais se torna tao necessirio, seja para a primeira reflexdo, seja para a preparacdo da passagem do pensa- mento que representa para aquele que realmente pensa, quanto a pergunta: Que é metafisica? O desenvolvimento desta questdo pela prelegio que segue desemboca, por sua vez, numa pergunta, Ela se chama a questo fundamental da metafisica e diz: Por que é afinal ente endo muito antes Nada? Discutiu-se, entretanto, muito sobre a angiistia e 0 nada que foram abordados na prelegao. Mas ninguém teve a idéia de meditar por que a prele- 40 que procura pensar, partindo do pensamento da verdade do ser, no nada, e a partir deste, na esséncia da metafisica, considera a questo formulada como a questo funda- mental da metafisica. Sera que isto nao poria na cabega de algum ouvinte atento uma uma DRIVERSINS a QUE E METAFISICA? 261 suspeita mais grave que todo o zelo contra a angistia ¢ 0 nada? Pela questio final vemo-nos colocados diante da suspeita de que uma reflexiio que procura pensar o ser, seguindo o caminho do nada, retorne no fim novamente a uma questo sobre o ente, Na medida em que esta questo, ainda no estilo tradicional de questionar da metafisica, per- gunta causalmente conduzida pelo “porqué”, 0 pensamento do ser é totalmente negado em favor do conhecimento representador do ente a partir do ente. Para cimulo de tudo, a questdo final 6, sem davida, aquela que o metafisico Leibniz formulou em seu Principes de ta Nature e de la Grace: “Pourquoi il y a plutét quelque chose que rien?” (Edigao Gerhardt, tomo VI, 602, niimero 7). Nio fica, assim, a prelegdio aquém de seus propdsitos? Isto poderia acontecer visto a dificuldade da passagem da metafisica para 0 outro pensamento, Nao formula a expo: sigdo em seu final, com Leibniz, a questiio metafisica da causa suprema de tudo o que é? Por que, ento, o que seria conveniente, nio é citado o nome de Leibniz? Ou seré que a pergunta é formulada em sentido inteiramente diferente? Se ela no interroga pelo ente © nao esclarece a iltima causa éntica deste, entdo deve a pergunta partir daquilo que nio é o ente. Tal coisa a pergunta nomeia e o escreve com letra maitis- cula: O Nada que a prelegdo meditou como seu tinico tema. E preciso meditar o final desta prelegao a partir do ponto de vista que Ihe é proprio e que em tudo a orienta. Entdo aquilo que é citado como a questo fundamental da metafisica deveria ser formulado na perspectiva da ontologia fundamental, como a questo que brota do fundamento da metafisica e como a questo que por este fundamento interroga. Como devemos nés, entio, compreender a questo que encerra & prelegio, se esta mos de acordo que esta, no seu final, retorna a seu objetivo proprio? O teor da questo ¢ 0 seguinte: Por que é afinal ente e néo antes Nada? Suposto que no pensamos a verdade do ser mais no Ambito da metafisica ¢ metafisicamente como de costume, mas a partir da esséncia e da verdade da metafisica, entio o sentido da questéo que encerra a prelegao pode ser o seguinte: Donde vem, que, em toda parte, o ente tem a hegemonia e reivindica para si todo 0 “é”, enquanto fica esquecido aquilo que nao é um ente, o nada aqui pensado como o proprio ser. Donde vem que propriamente nada é com © ser e que o nada propriamente nao é (west)? Nao vem daqui a aparéncia inabalavel para a metafisica de que o “ser” é evidente e que, em conseqiiéncia disso, o nada se torna menos problematico que o ente? Tal é realmente a situago em torno do ser e do nada. Se as coisas fossem diferentes para a metafisica, entio Leibniz nao poderia dizer, na pas sagem referida, esclarecendo: “Car le rien est plus simple et plus facile que quelque chos © que permanece mais enigmatico, o fato de que o ente é ou o fato de que o ser é? Qu nao chegamos também, nem mesmo com esta reflexio, até a proximidade do enigma que aconteceu com o ser do ente? Seja qual for um dia a resposta, o tempo, entretanto, se ter tornado mais maduro para pensar a combatida prelego Que é Metafisica?, uma vez a partir de seu final, a par- tir de seu final, no a partir de um final qualquer imaginado. O FIM DA FILOSOFIA E A TAREFA DO PENSAMENTO’ Introdugaio Ha muitos modos de se falar em “fim da Filosofia”, Antes de Heidegger, sobretudo Marx ¢ Wittgenstein quiseram abrir duas portas para o fim da Filosofia, Em Marx ela deveria chegar ao fim através da transformago da Filosofia em mundo, de sua “supres- sio” na praxis. Em Wittgenstein a Filosofia deveria assumir, de uma vez, sua tnica fun- do: realizar a terapia da linguagem, Cumprido tal trabalho, ela “desapareceria”. Marx confundiu a Filosofia com as filosofias de seu tempo, e nas exigéncias que levantava no estava contida a supressio da Filosofia, mas o caminho para uma nova realizagao da Filosofia, Em Wittgenstein, a afirmagdo de que a Filosofia desapareceria, uma vez resolvidos os problemas da linguagem, revela, de um lado, a descoberta de uma nova tarefa para a Filosofia, mas de outro, também, a ignordncia de que de uma tal tare fa surgiriam questes de método das quais o proprio Filésofo nio mais tomou cons- ciéncia ¢ que precisamente implicam uma continuagao da Filosofia. Tanto Marx como Wittgenstein, um buscando a supressdo da Filosofia e outro seu desaparecimento, abritam novos horizontes para o pensamento cujo fim anunciaram, Para Heidegger o fim da Filosofia é 0 “fim” da Filosofia enquanto Metafisica. A Metafisica atingiu suas “possibilidades supremas” dissolvendo-se no surto crescente das ciéncias que esvaziam a problematica filos6fica. O Fildsofo reserva, porém, um novo co- mego para a Filosofia, superando a Metafisica. Heidegger afirma que no fim da Filosofia (como Metafisica) resta uma “tarefa para o pensamento”, Esta tarefa € a questdo do pensamento. “A iiltima possibilidade” — a dissolugio da Filosofia nas ciéncias tecnici- zadas — acaba revelando uma “primeira possibilidade”. A questo propria do pensamento para Hegel, tanto quanto para Husserl, foi a subjetividade e esta levada a seu momento supremo: o método. Heidegger, procurando superar os dois, afirma como nova questéo do pensamento a Alétheia. Com esta palavra compreende ele o sentido, a verdade, o desvelamento, o velamento, a clareira do ser, resumindo tudo na palavra-sintese: Ereignis. Se para Marx o fim da Filosofia deveria ser realizado definitivamente pela sua “supressiio” ¢ transformagao na praxis; se para Witigenstein o fim da Filosofia se daria mediante seu “desaparecimento”, uma vez cumprida sua fungdo terapéutica; para Hei- degger o fim da Filosofia como “acabamento” ((issolugo nas ciéncias da era da técnica) @ no entanto, compreendido como um novo comego. Heidegger tem consciéncia de que a afirmagio da auto-supressdo da Filosofia s6 pode significar sua renovada auto-afirma- edo. Esta auto-afirmagdo ¢ sintetizada pelo Fildsofo na expresso “questio do pensa- mento”. Nao discutiremos aqui até que ponto Heidegger tera razio quando critica e pro- cura superar Hegel e Husserl. E, sem ditvida, simplificagdo resumir a Filosofia de ambos na subjetividade e, conseqiientemente, na questo do método: como também é impossivel pensar em separar, na “questéo do pensamento”, método e questao. 266 HEIDEGGER Mostrando que 2 problematica filoséfica chegou ao fim enquanto problematica metafisica, Heidegger deve conceber uma nova problematica no bojo da expressiio “questio do pensamento”, Esta nova problematica devera ser compreendida sob dois an gulos fundamentais: 0 ponto de vista genético e ponto de vista sistemdtico. Formulamos as duas perguntas essenciais que deveria enfrentar a determinagdo da génese da “questdo do pensamento”: a) Quais as condigdes de possibilidade do surgimento desta nova questo do pensa- mento, no fim da Filosofia? b) Como se instaura, como se constitui e como se desdobra todo 0 campo possivel do correlato desta questio do pensamento? Nao nos deteremos nestas duas perguntas fundamentais. Elas so, no entanto, essenciais para apanhar o surto da nova problematica filoséfica implicita na “questo do pensamento”, A segunda perspectiva de abordagem da problematica filoséfica, contida na questo do pensamento, chamamos aqui de sistematica. Esta consistiria no enfoque sistematico da problematica filosofica visada com a expresso “questio do pensamento”, Esta expressio anuncia uma radical reflexdo autocritica que a problematica filosdfica deveria exercer sobre si mesma. E nisto que se esconde o sentido polémico da expresso “questo do pensamento”. Esta exprime uma postura que diretamente nao quer ser algo, a saber, uma pacifica enumeracao de problemas da Filosofia que nao problematizam 0 horizonte donde surgem. Quando Heidegger fala em “questo do pensamento”, no pressupde a descoberta de um espdlio esquecido do pensamento ocidental, uma totalidade previa- mente dada, mas somente agora descoberta. Seria, antes, uma totalidade relativamente 4 qual nosso trabalho se limitaria simplesmente a uma mudanga de lentes ou eventual- mente a uma mudanga de posigao. E precisamente em tais movimentos que se constitui a questo do pensamento e a eventual problematica nela contida. J4 conseguimos aqui uma fecunda antevisio da ambigilidade essencial da expressio heideggeriana, aparentemente simples e quase ingénua: “questio do pensamento”. Temos aqui, com efeito, simultaneamente um genitivo objetivo e um genitivo subjetivo. Para maior clareza, comegamos por dissociar estas duas possibilidades, para, em seguida, rearticulé-las, mostrando como justamente na wnidade de sua relagdo esta 0 seu fundamento e 0 seu tinico sentido viavel. a) Enquanto genitivo objetivo, “questio do pensamento” focaliza 0 pensamento como correlato de um espectador. No caso-limite a problematica filosofica contida na expresso poderia significar a pura objetividade. b) Enquanto genitivo subjetivo aquela expressio faz emergir um pensamento que se autoquestiona. Crispando este sentido do genitivo e cortando-0 do primeiro, teriamos uma queda na subjetividade, © que importa para o Filésofo é manter articulados entre si estes dois genitivos ocultos na expressio “questi do pensamento”. Teremos entio, no fim da Filosofia como Metafisica. nem apenas um novo questionamento do que é pensamento, nem ape- nas um novo voltar-se do pensamento sobre si mesmo para se autoquestionar, Resta, em sintese. a unidade de uma questo que se pensa e de um pensamento que se questiona. Nao teremos apenas uma questo do pensamento simplesmente dada, mas também, e tal- vez sobretudo uma questdo do pensamento, em que este desempenha uma fungao eminentemente ativa na constituigao da questo. E na unidade dialogal, no intimo espago entre os dois mencionados sentidos do genitivo. que se deve buscar a determinagdo das relagdes entre questo © pensamento. O FIM DA FILOSOFL. ‘Nem o pensamento é puro constituido, nem a questo é pura constituigdo, Nem o pensa- mento permanece exterior 4 questo, nem a questdo permanece exterior ao pensamento. Os nomes a que Heidegger recorre para designar esta unidade dialogal, este intimo espago, sio sobretudo aproximagées. Mas talvez na palavra Ereignis, enquanto tradu- zida por acontecimento-apropriacdo, 0 Filésofo mais se avizinhe do elemento nodal que se esconde na expressio “questo do pensamento”. A ambigiiidade essencial que per- passa todos os nomes fundamentais com que Heidegger procura dizer a “questo do pensamento” esta, porém, escondida e concentrada no nome Alétheia, lido filolégico-fi- losoficamente. Se em Marx o fim da Filosofia se anunciou como supressdo, e em Wittgenstein como desaparecimento, em Heidegger o fim da Filosofia é a “fltima possibilidade” que, enfrentada, torna-se a “primeira possibilidade”, a partir da qual se refaz toda a “questo do pensamento”. ERNILDO STEIN © titulo nomeia uma tentativa de meditagdo que se demora no questionamento, As questées so caminhos para sua resposta. Estas questdes deveriam, caso um dia real- mente tomem forma, consistir numa transformagao do pensamento ¢ nao se reduzir a simples enunciagao de um estado de coisas. O texto que segue faz parte de um contexto mais amplo. E a tentativa, sempre repe- tida desde 1930, de dar uma forma mais radical ao questionamento de Ser e Tempo. Isto significa: submeter 0 ponto de partida da questo articulada em Ser e Tempo a uma cri- tica imanente. Através disto deve esclarecer-se em que medida a questio erftica que per- gunta pela questéo do pensamento pertence necessaria e constantemente ao pensamento. Em conseqiiéncia disto se modificaré o titulo da tarefa Ser e Tempo. Levantamos duas questées: 1, Em que medida entrou a Filosofia, na época atual, em seu estgio final? 2. Que tarefa ainda permanece reservada para o pensamento no fim da Filosofia? Em que medida entrou a Filosofia, na época presente, em seu estgio final? Filosofia ¢ Metafisica. Esta pensa o ente em sua totalidade — 0 mundo, 0 homem, Deus — sob 0 ponto de vista do ser. sob o ponto de vista da reciproca imbricagio do ente e ser. A Metafisica pensa o ente enquanto ente ao modo da representagio fundadora. Pois o ser do ente mostrou-se, desde 0 comego da Filosofia, e neste proprio comego, como o fundamento (arché, aftion, principio). Fundamento é aquilo de onde o ente como tal, em seu tornar-se, passar e permanecer, é aguilo que é e como é, enquanto cognosci- vel, manipulavel e transformével. O ser como fundamento leva 0 ente a seu presentar-se adequado. O fundamento manifesta-se como sendo presenga. Seu presente consiste em produzir para a presenga cada ente que se presenta a seu modo particular. O funda- mento, dependendo do tipo de presenga, possui o cardter do fundar como causagao énti a do real, como possibilitago transcendental da objetividade dos objetos, como media- go dialética do movimento do espirito absolute, do processo histarico de producdo, como vontade de poder que poe valores. O elemento distintivo do pensamento metafisico, elemento que erige o fundamento para o ente, reside no fato de, partindo do que se presenta, representer a este em sua pre senga e assim o apresentar como fundado desde seu fandamento, Que dizemos nds quando falamos do fim da Filosofia? Temos a tendéncia de compreender 0 fim de algo em sentido negative como a pura cessagiio, como a cessagao 270 HEIDEGGER de um processo, quando néo como ruina e impoténcia, Pelo contrario, quando falamos do fim da Filosofia queremos significar o acabamento da Metafisica. Acabamento nao quer dizer, no entanto, plenitude no sentido que a Filosofia deveria ter atingido, com seu fim, a suprema perfeigao. Falta-nos nao apenas qualquer medida que permitisse estimar a perfeigdo de uma época da Metafisica em comparagao a outra. Nao ha mesmo nada que possa justificar tal maneira de proceder. O pensamento de Plato nao é mais perfeito que 0 de Parménides. A Filosofia hegeliana no € mais perfeita que a de Kant. Cada época da Filosofia possui sua propria necessidade. Que uma Filosofia seja como é, deve ser simplesmente reconhecido. No nos compete preferir uma a outra, como é possivel quando se trata das diversas visdes do mundo, O antigo significado de nossa palavra “fim” (Ende) é 0 mesmo que o da palavra “lugar” (Or): “de um fim a outro” quer dizer: “de um lugar a outro”. O fim da Filosofia €0 lugar, € aquilo em que se redine 0 todo de sua historia, em sua extrema possibilidade. Fim como acabamento quer dizer esta reuniao. Através de toda a Histéria da Filosofia, o pensamento de Plato, ainda que em dife- rentes figuras, permanece determinante. A metatisica é platonismo. Nietzsche caracte- rizou sua filosofia como platonismo invertido. Com a inversio da metafisica, que ja realizada por Karl Marx, foi atingida a suprema possibilidade da Filosofia. A Filosofia entrou em seu estagio terminal, Toda tentativa que possa ainda surgir no pensamento filoséfico nfio passard de um renascimento epigonal e de variagdes deste. Por conse- guinte, o fim da Filosofia sera uma cessago de seu modo de pensar? Tal conclusio seria muito apressada. Fim é como acabamento, a concentragao nas possibilidades supremas. Pensamos estas possibilidades de maneira muito estreita enquanto apenas esperarmos o desdobra- mento de novas filosofias do estilo até agora vigente, Esquecemos que ja na época da filosofia grega se manifesta um trago decisivo da Filosofia: 6 0 desenvolvimento das cién- cias em meio ao horizonte aberto pela Filosofia. O desenvolvimento das ciéncias 6, a0 mesmo tempo, sua independéncia da Filosofia e a inauguragdo de sua autonomia, Este fendmeno faz parte do acabamento da Filosofia. Seu desdobramento esti hoje em plena marcha, em todas as esferas do ente, Parece a pura dissoluedo da Filosofia; €, no entan- to, precisamente seu acabamento. Basta apontar para a autonomia da Psicologia, da Sociologia, da Antropologia Cul- tural, para o papel da Légica como Logistica e Semantica, A Filosofia transforma-se em ciéncia empirica do homem, de tudo aquilo que pode tornar-se objeto experimentavel de sua técnica, pela qual ela se instala no mundo, trabalhando-o das miltiplas maneiras que oferecem o fazer ¢ 0 formar. Tudo isto realiza-se em toda parte com base e segundo os padrées da exploragio cientifica de cada esfera do ente. Nao necessirio ser profeta para reconhecer que as modernas ciéncias que esto se instalando serio. em breve, determinadas e dirigidas pela nova ciéncia basica que se chama cibernética. Esta ciéncia corresponde a determinagdo do homem como ser ligado @ praxis na sociedade. Pois ela é a teoria que permite o controle de todo planejamento possivel e de toda organizagao do trabalho humano. A cibernética transforma a linguagem num meio de troca de mensagens. As artes tomam-se instrumentos controlados ¢ controladores da informagao. O desdobramento da Filosofia cada vez mais decisivamente nas ciéncias auténom , no entanto, interligadas, € 0 acabamento legitimo da Filosofia. Na época presente a Filosofia chega a seu estagio terminal. Ela encontrou seu lugar no carater cientifico com que a humanidade se realiza na praxis social. O cardter especifico desta cientificidade ¢ O FIM DA FILOSOFIA 271 de natureza cibernética, quer dizer, técnica. Provavelmente desaparecer4 a necessidade de questionar a técnica moderna, na mesma medida em que mais decisivamente a técnica marcar ¢ orientar todas as manifestagSes no Planeta ¢ 0 posto que o homem nele ocupa. As ciéncias interpretardo tudo o que em sua esirutura ainda lembra a sua origem na Filosofia, segundo as regras de ciéncia, isto , sob 0 ponto de vista da técnica. As catego- rias das quais cada ciéncia depende para a articulagao e delimitagao da area de seu obje- to, a compreendem de maneira instrumental, sob a forma de hipéteses de trabalho. A verdade destas hipoteses de trabalho nao sera apenas medida nos efeitos que sua aplicagio traz para o progresso da pesquisa. A verdade cientifica é identificada com a eficigncia destes efeitos. ‘Aquilo que a Filosofia, no transcurso de sua histéria, tentou em etapas, ¢ mesmo nestas de maneira insuficiente, isto é, expor as ontologias das diversas regides do ente (natureza, histéria, direito, arte), as ciéncias o assumem como tarefa sua. Seu interesse dirige-se para a teoria dos, em cada caso necessarios. conceitos estruturais do campo de objetividade af integrado. “Teoria” significa agora: suposigdo de categorias a que se reconhece apenas uma fung%o cibernética, sendo-lhe negado todo sentido ontolégico. Passa a imperar 0 ele- mento racional e os modelos préprios do pensamento que apenas representa e calcula. * ‘As ciéncias, ndo obstante, ainda falam do ser do ente ao sentirem-se obrigadas & suposig&io de suas categorias regionais. Apenas nao o dizem expressamente. Podem, sem davida, negar sua procedéncia, no podem, contudo, rejeité-la. Pois a cientificidade das ciéncias é a certiddo que atesta seu nascimento da Filosofia. CO fim da Filosofia revela-se como o triunfo do equipamento controlavel de um mundo técnico-cientifico e da ordem social que Ihe corresponde, Fim da Filosofia quer dizer: comeco da civilizagao mundial fundada no pensamento ocidental-europeu. Sera, no entanto, o fim da Filosofia, entendido como seu desdobramento nas cién- cias, a plena realizagdo de todas as possibilidades em que 0 pensamento da Filosofia apostou? Ou existe para o pensamento, além desta tiltima possibilidade que caracteri- zamos (a dissolugao da Filosofia nas ciéncias tecnicizadas), uma primeira possibilidade, da qual pensamento da Filosofia certamente teve que partir, mas que, contudo, enquanto Filosofia, nao foi capaz de experimentar e assumir propriamente? Seja este 0 caso, deverd ento estar reservada (ocultada), para o pensamento, na Histéria da Filosofia, de seu comego até seu fim, ainda uma tarefa ndo acessivel nem a Filosofia como metafisica, nem as ciéncias dela oriundas. Por tal motivo colocamos esta segunda questio: aa Que tarefa esté ainda reservada para o pensamento no fim da Filosofia? Jé a idéia de uma tal tarefa do pensamento deve desconcertar. Um pensamento que no pode ser nem metafisica nem ciéncia? Uma tarefa que se teria tornado inacessivel & Filosofia, no apenas desde 0 seu comego, mas por causa deste comego é que, em conseqiiéncia, se teria subtraido constan- temente e de maneira crescente nas épocas posteriores? Uma tarefa do pensamento que, a0 que parece, implicaria a afirmagao de que a Filosofia ndo est a altura da questio do pensamento e que. por isso, se tornou uma his toria da pura decadéncia? 272 HEIDEGGER Nao revela tal linguagem presungo de sobrepor-se mesmo i grandeza dos pensado- res da Filosofia? Esta suspeita realmente se impde. Pode, porém, ser facilmente eliminada. Pois qual- Quer tentativa e preparar um acesso & presumivel tarefa do pensamento depende de um retorno sobre o todo da Histéria da Filosofia. E nio apenas isto; uma tal tentativa vé-se na contingéncia de primeiro pensar sobre a historicidade daquilo que garante & Filosofia uma possivel historia, J por este motivo permanece o pensamento a que nos referimos necessariamente aquém da grandeza dos fildsofos. Ele é menos importante que a Filosofia. E 0 é também pelo fato de ser-Ihe recusada tanto atuacdo imediata quanto mediata sobre o dominio pi- blico da era industrial, caracterizado pela técnica e pela ciéncia. Menos importante, porém, permanece o pensamento em questo, sobretudo pelo fato de sua tarefa ter apenas carter preparatério, e de maneira alguma carater fundador, Satisfaz-se com despertar uma disponibilidade do homem para uma possibilidade cujos contornos permanecem indefinidos, e cujo advento, incerto. Como penetrar naquilo que até entio the esta reservado e aberto, o pensamento, de inicio, ainda deve aprender; nesta aprendizagem o pensamento prepara a sua propria transformagio. Aqui se tem em mira a possibilidade de a civilizagtio mundial, assim como apenas agora comegou, superar algum dia seu cardter técnico-cientifico-industrial como tinica medida da habitagdo do homem no mundo. ' Esta civilizagdo mundial certamente no 0 conseguiré a partir dela mesma ¢ através dela, mas, antes, através da disponibilidade do homem para uma determinagGo que a todo momento, quer ouvida quer no, fala no inte- rior do destino ainda nao decidido do homem. Igualmente incerto permanece se a civilizago mundial seré em breve subitamente destruida ou se se cristalizaré numa longa duragdo que nio resida em algo permanente, mas que se instale, muito ao contrério, na mudanga continua em que o novo é substituido pelo mais novo. O pensamento preparador em questo nio quer nem pode predizer um futuro. Pro- cura apenas ditar para o presente algo que ha muito, exatamente no comeco da Filosofia, J4 Ihe foi dito, e que, entretanto, nao foi propriamente pensado. De momento, deve ser suficiente apontar nessa diregd0 com a maior brevidade possivel. Para fazé-lo recorre- ‘mos a uma indicagao que a propria Filosofia oferece, Quando perguntamos pela tarefa do pensamento isto significa no horizonte da Filo- sofia: determinar aquilo que interessa ao pensamento, aquilo que para o pensamento ainda controverso, o caso em litigio. Isto é dito na lingua alema pela palavra “Sache” a “questo”. Ela designa aquilo com que, no caso presente, o pensamento tem de haver. seina linguagem de Platao, 16 pragma auté (ver a Sétima Carta, 341 c7). Ora, a Filosofia. nos tempos modernos, convocou. por propria iniciativa e expressa- mente, 0 pensamento para “a questo mesma”. Lembremos apenas dois casos a que hoje se dirige uma especial atengdo. Ouvimos esta chamada “para a questéio mesma” no “Pre- facio” que Hegel antepds a sua obra publicada em 1807, Sistema da Ciéncia, Primeira Parte: A Fenomenologia do Espirito. Este preficio nao € 0 prélogo 4 Fenomenologia mas ao Sistema da Ciéncia, a0 todo da Filosofia, © chamado “3 questo mesma” vale " Dizem respeito a esta questio varias das dltimas manifestagdes de Heidegger. Uma delas, que causou bas- fante impacto. foi feita numa pequena alocugdo, na passagem dos festejos de seus oitenta anos, a 26 de setembro de 1969. Ver também o final da carta ao Professor Kojima, O FIM DA FILOSOFIA. 273 em Ultima instancia, ¢ isto quer dizer: segundo a questo, em primeiro lugar, para “a cigncia da Wgica™. No chamado “8 questo mesma” a ténica cai sobre o “selbst”, “mesmo”. Em seu sentido superficial este chamado possui sentido defensivo, Rejeitam-se relagdes inade- quadas a questio da Filosofia. A elas pertence o simples falar sobre o fim da Filosofia; dela, porém, também faz parte o simples relatério sobre os resultados do pensamento filoséfico. Ambos jamais constituem 0 verdadeiro todo da Filosofia. O todo mostra-se, primeiramente ¢ apenas, em seu tornar-se, Tal ocorre no processo de exposic¢ao deta- Ihada da questo. Na exposigdo, tema e método tornam-se idénticos, Esta identidade chama-se em Hegel: o pensamento pensado. Com ele a questio “mesma” da Filosofia sta. Esta questdo é contudo determinada historialmente: a subjetividade. Com 0 ego cogito de Descartes, diz Hegel, a Filosofia pisou pela primeira vez terra firme, onde pode estar em casa. Se com 0 ego cogito, como subjectum por exceléncia, & atingido 0 fundamentun absolutum, isto quer dizer: 0 sujeito & © hypokermenon transfe- rido para a consciéncia, ¢ 0 que verdadeiramente se presenta, © que na linguagem tradi- cional se chama, de maneira mui poueo clara, de substancia, Quando Hegel deciara no prefacio (Ed. Hoffmeister, p. 19): “O verdadeiro (da Filo- sofia) néo deve ser concebido e expresso como substincia, mas do mesmo modo como sujeito”, isto significa: o ser do ente, a presenga do que se presenta, € somente entio manifesto, e com isto presenga plena, quando esta como tal se torna presente para si mesma na idéia absoluta, Desde Descartes, porém, idea quer dizer: perceptio, O tornat para si mesmo do ser acontece na dialética especulativa, Apenas 0 movimento do pensa- mento, 0 método, € a questio mesma, O chamado a “questio mesma” exige 0 método adequado da Filosofia, Todavia, 0 que € a questio da Filosofia se aceita ja por decidido previamente. A questio da Filosofia como metafisica é o ser do ente, sua presenga, na forma da substan- cialidade e subjetividade, Cem anos depois, ouve-se novamente © chamado “A questiio mesma”, no tratado de Husserl, A Filosofia como Ciéncia Rigorosa, publicado no primeiro volume da revista Logos, no ano de 1910/11 (p. 289 ss.). Novamente 0 chamado tem sentido defensivo. Mas aqui tem-se em mira outra diregao que em Hegel. O chamado procura precaver con- tra a psicologia naturalistica que pretendia ser 0 auténtico método para a exploragdo da consciéncia. Pois este método encontra ja, de antemdo, o acesso aos fendmenos da cons- ciéncia intencional. O chamado “& questo mesma” dirige-se, ao mesmo tempo, contra © historicismo que se perde nos debates sobre os pontos de vista da Filosofia e na divisio dos tipos de visio de mundo filoséficos. A isto se refere Husserl grifando a frase: “Nao é das filosofias que deve partir 0 impulso para a pesquisa, mas das quesiées e dos proble- mas” (op. cit., p. 340). E qual é a questo da pesquisa filosdfica? E para Husserl como para Hegel, de acordo com a mesma tradigdo, a subjetividade da consciéncia. As Meditagdes Carte- sianas nao foram para Husserl apenas o tema das conferéncias de Paris de fevereiro de 1929, mas, em seu espirito, acompanharam, desde os anos posteriores as Investigagdes Légicas, 0 caminho apaixonado de suas pesquisas filosoficas até o fim da vida. O chama- do “a questo mesma” visa, tanto em seu sentido negativo como positivo, A garantia e elaboragio do método, tem em vista o modo de proceder da Filosofia através do qual primeiramente a questio mesma chega a tornar-se um dado comprovavel, Para Husserl, ® Ver o texto mais adiante: Protocolo do seminario sabre a conferéneia Tempo e Ser. 274 HEIDEGGER “o principio de todos os principios” nao & em primeiro lugar algo referente ao contetido, mas aquilo que se relaciona com o método, Em sua obra publicada em 1973, Idéias para uma Fenomenologia Pura, Husserl dedicou & determinagio “do prinefpio de todos os principios” um pardgrafo proprio (24). Neste principio, diz Husserl, “nenhuma teoria imaginavel pode induzir-nos em erro”. “O principio de todos os prinefpios” é assim enunciado: “Toda intuigdo que originariamente da (8) uma fonte de direito para o conhect- mento; tudo que se nos oferece originariamente na ‘Intuigao (por assim dizer em sua rea- lidade viva) (deve) ser simplesmente recebido como aquilo que se da, porém, também somente no interior dos limites nos quais se dé...” “O principio de todos os principios” contém a tese do primado do método. Este principio decide qual a ti ica questo que pode satisfazer ao método. “O principio de todos os principios” exige como questdo da Filosofia a subjetividade absoluta, A redu- transcendental a esta subjetividade da e garante a possibilidade de fundar ne subjeti- vidade e através dela a objetividade de todos os objetos (0 ser deste ente) em sua estru: tura e consisténcia, isto ¢, em sua constituigéo, Desta maneira a subjetividade transcendental mostra-se como “o iinico ente absoluto” (Ldgica Formal e Transcen- dental, 1929, p. 240). O carater de ser deste ente absoluto, isto é, 0 carater da questo mais propria da Filosofia, vale, também, ao mesmo tempo para a reduco transcen- dental, como 0 método “da ciéncia universal” da constituigo do ser do ente. O método se orienta no apenas na questio da Filosofia. Nao faz apenas parte da questo como a chave da fechadura, Seu lugar € dentro da propria questéo, porque € a “questiio mesma” Se se perguntar: de onde recebe entio “o principio de todos os prineipios” seu direito inaliendvel, a resposta deveria ser a seguinte: recebe-o da subjetividade transcendental que ja é pressuposta como a questdo da Filosofia. Escolhemos como indicador de caminho a elucidagio do chamado “a questio mesma”, Dele esperavamos que nos levasse ao caminho no qual pudéssemos realizar uma determinagdo de tarefa do pensamento no fim da Filosofia. Onde chegamos? A con- viogio de que, no apelo “a questo mesma”, ja esta previamente decidido o que interessa a Filosofia como sua questo. Visto a partir de Hegel e Husserl, a questio de Filosofia &— endo sé para cla — a subjetividade. Para o apelo, 0 controvertido nao 6 a questo mesma, mas sua exposigio, através da qual ela mesma se torna presente. A dialética especulativa de Hegel € 0 movimento no qual a questao como tal chega a si mesma, atin- ge a presenga que é devida. O método de Husser! tem como finalidade levar a questo da Filosofia a seu dar-se originario e definitivo, isto é: A presenga que Ihe é propria. Ambos os métodos so radicalmente diferentes. A questdo como tal, porém, que devem representar, é a mesma, ainda que seja experimentada de maneiras diferentes. Mas que nos ajudam estas constatagdes para o nosso projeto de penetrarmos na ta- refa do pensamento? Nada nos ajuda enquanto nos satisfizermos com a simples elucida- gio do apelo. Trata-se, muito ao contrario, de perguntar pelo que permanece impensado no apelo “a questo mesma”. Perguntando desta maneira, € possivel que nos tornemos atentos a uma outra coisa: !é, onde a Filosofia levou sua questo até o saber absoluto e 4 evidéncia iiltima, oculta-se justamente algo que nao pode ser mais pensado pela Filoso- fia como questo que Ihe compete. Mas 0 que é que permanece impensado, tanto na questo da Filosofia como em seu método? A dialética especulativa ¢ um modo como a questio da Filosofia chega a apare- cer a partir de si mesma para si mesma, tommando-se assim presenca. Um tal aparecer acontece necessariamente em uma certa claridade, Somente através dela pode mostrar-se aquilo que aparece, isto 6, brilha. A claridade, por sua vez, porém, repouse numa geet ane O FIM DA FILOSOFIA 275 so de abertura e de liberdade que aqui ¢ acold, de ver. em quando, pode clarear-se. A claridade acontece no aberto e ai Iuta com a sombra, Em toda parte, onde um ente se pre- senta em face de um outro que se presenta os apenas se demora ao seu encontro: mas também ali, onde, como em Hegel, um ente se reflete no outro especulativamente, ali também ja impera abertura, ja est em jogo o livre espago. Somente esta abertura garante também & marcha do pensamento especulativo sua passagem através daquilo que ela pensa. Designamos esta abertura que garante a possibilidade de um aparecer e de um mostrar-se, como a clareira (die Lichtung). A palavra alem& “Lichiung” é, sob 0 ponto de vista da historia da ingua, uma tradugio do francés “Clairiére”. Formou-se segundo o modelo das palavras mais antigas “Waldung”¢ “Feldung”.? A clareira da floresta constrasta com a floresta cerrada; na linguagem mais antiga esta era denominada “Dickung”. * O substantivo “clareira”” vem do verbo “clarear”. O adjetivo “claro” (“‘licht”) & a mesma palavra que “leicht”. Clarear algo quer dizer: tornar algo leve, tornar algo livre e aberto, por exemplo, tornar a floresta, em determinado lugar, livre de arvores, A dimen- so livre que assim surge é a clareira. O claro, no sentido de livre e aberto, nao possui nada de comum, nem sob 0 ponto de vista lingiifstico, nem no atinente A coisa que € expressa, com 0 adjetivo “luminoso™ que significa “claro”. Isto deve ser levado em consideragao para se compreender a diferenga entre Lich- tung e Licht. Subsiste, contudo, a possibilidade de uma conexao real entre ambos. A luz. pode, efetivamente, ineidir na clareira, em sua dimensao aberta, suscitando af o jogo entre o claro ¢ 0 escuro. Nunca, porém, a luz primeiro cria a clareira; aquela, a luz, pres- supée esta, a clareira. A clareira, no entanto, o aberto, no esta apenas livre para a clari- dade e a sombra, mas também para a voz. que reboa e para 0 eco que se perde, para tudo que 50a ¢ ressoa e morre na distincia, A clareira é 0 aberto para tudo que se presenta € ausenta. Impde-se a0 pensamento a tarefa de atentar para a questo que aqui é designada como clareira. Ao fazer isto, no se extraem — como facilmente poderia parecer a um observador superficial — simples representagSes de puras palavras, por exemplo. “cla- reira”. Trata-se, muito antes, de atentar que a singularidade da questdo que é nomeada, de maneira adequada a realidade, com o nome de “clareira”. O que a palavra designa no contexto agora pensado. a livre dimensio do aberto, é para usarmos uma palavra de Goethe, um “fendmeno originario”. Melhor diriamos: uma questio originaria. Goethe observa (Maximas ¢ Reflexes, n.° 993): “Que nao se invente procurar nada atras dos fendmenos: estes mesmos sfio a doutrina”. Isto quer dizer: o proprio fendmeno, no caso presente, a clareira, nos afronta com a tarefa de, questionando-o. dele aprender, isto & Geixar que nos diga algo. ‘De acordo com isto, © pensamento provavelmente nao deverd temer levantar um dia fa questio se a clareira, a livre dimensio do aberto, nao é precisamente aquilo em que tanto 0 puro espago como 0 tempo estiitico e tudo o que neles se presenta e ausenta pos- sui o lugar que recothe ¢ protege. Da mesma maneira que 0 pensamento dialético-especulativo, também a intuicao originéria sua evidéncia ficam dependentes da abertura que jé impera, a clareira. O evi- 3 Waldung equivale a floresta, regio de florestas. Feldung: campo, zona de campo, ¢ expressao dialetal que rio mais consta nos léxicos, * Dickung: provem de dick, grosso, espesso, cerrado. * Licht: claro; leicht: leve. Li onde existe vegetagao leve (leicht), pode-se falar em lich (claro). A 276 HEIDEGGER dente é 0 imediatamente compreensivel. Evidentia é a palavra com que Cicero traduz a palavra grega endrgeia, interpretando-a na lingua romana. Endrgeia, em que fala a mesma raiz que em argentwm (prata), designa aquilo que brilha em si e a partir de si mesmo e assim se expe & luz. Na lingua grega nio se fala da ago de ver, de videre, mas daquilo que luz ¢ brilha. S6 pode, porém, brilhar se a abertura ja € garantida. O raio de luz nao produz primeira- mente a clareira, a abertura, apenas percorre-a. Somente tal abertura garante um dar e um receber, garante primeiramente a dimensio aberta para a evidéncia, onde podem demorar-se e devem mover-se. Todo o pensamento da Filosofia, que, expressamente ou nio segue o chamado “as coisas mesmas”, jé esté, em sua marcha, com seu método, entregue a livre dimensdo da clareira. Da clareira, todavia, a Filosofia nada sabe. Nao ha diivida que a Filosofia fala da luz da razdo, mas nfo atenta para a clareira do ser. O lumen naturale, a luz da razio, s6 ilumina 0 aberto, Ela se refere certamente a clareira; de modo algum, no entanto, a constitui, tanto que dela antes necessita para poder iluminar aquilo que na clareira se presenta. Isto ndo vale apenas para o método da Filosofia, mas também e até em pri meiro lugar para a questo que the é propria, a saber, da presenga do que se presenta. Em que medida também ja na subjetividade é sempre pensado 0 subiectum, 0 hypoketme non?, o que jé esta ai, portanto, 0 que se presenta em sua presenga, nao pode ser aqui mostrado em detalhe. (Veja-se a propésito disto Heidegger, Nietzsche, II vol., 1961, p. 429 ss.) Nossa atengiio volta-se agora para outra coisa. Quer seja experimentado aquilo que se presenta, quer seja compreendido e exposto os nao, sempre a presenga, como o demo- rar-se dentro da dimensio do aberto, permanece dependente da clareira ja imperante. Mesmo o que se ausenta nao pode ser como tal, a ndo ser que se desdobre na livre dimen- sio da clareira, Toda a Metafisica, inclusive sua contrapartida, 0 positivismo, fala a linguagem de Platio. A palavra fundamental de seu pensamento, isto é, a exposigao do set do ente, & efdos, idéa: a aparéncia na qual se mostra o ente como tal. A aparéncia, porém, ¢ um modo de presenga. Nenhuma aparéncia sem luz — Plato jé 0 reconhecera. Mas no ha Juz alguma, nem claridade sem a clareira, Mesmo a sombra dela necessita. Como pode riamos, de outra maneira, penetrar na noite e por ela vagar. Na Filosofia, contudo, per- manece impensada a clareira como tal que impera no ser, na presenga, ainda que em seu comego se fale da clareira. Onde acontece isto ¢ com que nome é evocado? Resposta: No poema filos6fico de Parménides, o qual, ao menos na medida de nossos conheci mentos, foi o primeiro a meditar sobre o ser do ente, 0 que ainda hoje, mesmo que nao se lhe dé ouvido, fala nas ciéncias, nas quais a Filosofia se dissolveu. Parménides ouve a exortagao: chreé dé se panta puthésthat emén Alethetes eukykléos atremes étor edé brotdn décsas, tais ouk éni pistis alethés (Fragmento I, 28 ss.) “tu, porém, deves aprender tudo: tanto 0 coragao inconeusso do desvelamento em sua esfericidade perfeita como a opinido dos mortais a que falta a confianga no desvelado. O FIM DA FILOSOFIA 217 Aqui é nomeada a Alétheia, o desvelamento. Ela ¢ chamada de perfeitamente esfé- rica porque girando na pura circularidade do circulo. na qual, em cada ponto, comego ¢ fim coincidem. Desta rotagao fica excluida toda possibilidade de desvio, de deformagao € de ocultagao. © homem que medita deve experimentar 0 coragiio inconeusso do desve- lamento? Refere-se a este mesmo no que tem de mais proprio, refere-se ao lugar do silén- cio que concentra em si aquilo que primeiramente possibilita desvelamento. E isto é a clareira do aberto. Perguntamos: abertura para qué? jé consideramos que 0 caminho do pensamento, tanto o pensamento especulativo quanto o intuitivo, necessita da clareira que pode ser percorrida. Nela, porém, reside também a possibilidade do aparecer. isto & a possibilidade de a propria presenga presentar-se. que o desvelamento, antes de qualquer outra coisa, garante, é 0 caminho no qual © pensamento persegue a este Ginico e para o qual se abre: hépos éstin, .. . efnai: 0 fato de que o presentar se presenta, A clareira garante, antes de tudo, a possibilidade do cami rnho em diregao da presenga e possibilita a ela mesma o presentar-se. A Alétheia, o desve- lamento, devem ser pensados como a clareira que assegura ser e pensar e seu presentar-se reciproco. Somente o coragao silente da clareira ¢ 0 lugar do siléncio do qual pode irrom- per algo assim como a possibilidade do comum-pertencer de ser e pensar, isto é, a possi- bilidade do acordo entre presenga e apreensio. Somente nesta alianga se baseia a possibilidade de atribuir ao pensamento verda deira seriedade e compromisso. Sem a experiéncia prévia da Alétheia como a clareira, todo discurso sobre a seriedade ou 0 descompromisso do pensamento permanece infun- dado. De onde recebeu a determinagao platénica da presenga como idéa sua legitima- do? De que ponto de vista é legitima a explicitagio aristotélica da presenga como enérgeia? Estas questées, das quais a Filosofia tio estranhamente se abstém, nem mesmo podem ser colocadas por nés, enquanto nao tivermos experimentado o que Parménides deveu experimentar: a Alétheia, o desvelamento. O caminho que conduz até la separa-se da estrada em que vagueia a opiniio dos mortais. A Alétheia nao é nada de mortal, assim como nao o é também a propria morte. Se traduzo obstinadamente o nome Alétheia por desvelamento, fago-o nao por amor & etimologia, mas pelo carinho que alimento para com a questio mesma que deve ser pensada, se quisermos pensar aquilo que se denomina ser ¢ pensar de maneira adequada a questo, O desvelamento & como que o elemento tinico no qual tanto ser como pensar seu comum-pertencer podem dar-se. A Alétheia @, certamente, nomeada no comego da Filosofia, mas nfo é propriamente pensada como tal pela Filosofia nas eras posteriores. Pois desde Aristételes a tarefa da Filosofia como metafisica é pensar o ente como tal ontoteologicamente. Se tal & 0 estado de coisas, ndo devemos condenar a Filosofia como se houvesse negligenciado algo, como se houvesse perdido qualquer coisa, como se houvesse sido por isso marcada por uma falha fundamental. O assinalar o que ficou impensado na Filoso- fia nao é nenhuma critica a Filosofia, Caso agora torne-se necessaria uma critica, ela se dirigira antes aquela tentativa que, desde Ser e Tempo, sempre se faz mais urgente: no fim da Filosofia perguntar por uma tarefa possivel para o pensamento. Pois j4 muito tarde levanta-se agora a questo: por que ndo mais se traduz aqui Alétheia pela palavra corrente “verdade”? A resposta s6 pode ser: Na medida em que se compreende verdade no sentido “natural” da tradigo como a concordancia, posta A luz ao nivel do ente, do conhecimento com o ente; mas também na medida em que a verdade é interpretada a partir do ser como a certeza do saber a res- peito do ser, a Alétheia, 0 desvelamento como clareira, nao pode ser identificada 4 verda- 278 HEIDEGGER de. Pois a verdade mesma, assim como ser € pensar, somente pode ser o que &, no ele- mento de clareira. Evidéncia, certeza de qualquer grau, qualquer espécie de verificagao da veritas, movem-se ja com esta no ambito da clareira que impera. Alétheia, desvelamento pensado como clareira da presenga, ainda nao é a verdade. £ a Alétheia entio menos que verdade? Ou é mais, j& que somente ela possibilita verdade como adaequatio e certitudo, ja que nio pode haver presenga e presentificagio fora do Ambito da clareira? Fique esta questéo entregue como tarefa ao pensamento. O pensamento deve consi- derar se é capaz de levantar esta questo como tal, enquanto pensa filosoficamente, isto é, no sentido estrito da metafisica, a qual apenas questiona o que se presenta sob 0 ponto de vista de sua presenga. Seja como for, uma coisa se torna clara: a questo da Alétheia, a questo do desve- lamento como tal, ndo & a questio da verdade. Foi por isso inadequado e, por conse- guinte, enganoso, denominar a Alétheia, no sentido da clareira, de verdade. O discurso sobre a “verdade do ser” tem seu sentido justificado na Ciéneia da Légica de Hegel, por- que nela verdade significa a certeza do saber absoluto, Mas tampouco Hegel como Hus- serl questionam, como também nao o faz qualquer metafisica, 0 ser do ente, isto é, ndo perguntam em que medida pode haver presenga como tal. $6 hd presenga quando impera clareira. Esta, nao ha divida, é nomeada com a Alétheia, com 0 desvelamento, mas no como tal pensada. © conceito natural de verdade nao designa desvelamento também na Filosofia dos gregos. Insiste-se em apontar, e com razdo. o fato de que jé em Homero a palavra alethés € apenas e sempre usada com os verba dicendi, com a enunciagao, € por isso no sentido da certeza e da contianga que nela se pode ter, e ndo no sentido de desvelamento, Mas esta observagao significa, primeiro, apenas que nem os poetas nem o uso ordinario da linguagem, nem mesmo a Filosofia, se veem colocados diante da tarefa de questionar em que medida a verdade, isto é, a retitude da enunciagao, sé permanece garantida no ele- mento da clareira da presenga. No horizonte desta questo deve ser reconhecido que a Alétheia, o desvelamento no sentido da clareira da presenca, foi imediatamente e apenas experimentada como orthd- tes, como a retitude da representagdo e da enunciagdo. Entéo também nao é sustentavel a afirmativa de uma transformagao essencial da verdade, isto é, a passagem do desvela- mento para a retitude, Em vez. disso, deve-se dizer: a Alétheia, enquanto clareira de pre- senga ea presentificagio no pensar e dizer, logo desemboca na perspectiva da adequa- 40, no sentido da concordancia entre o representar e 0 que se presenta. Mas este processo impde justamente esta questdo: onde esti a causa de, para a experigncia natural e o dizer do homem, a Alérheia, o desvelamento, s6 se manifestar como retitude © seguranga? Reside isto no fato de © morar ec-statico do homem na abertura do presentar-se s6 estar voltado para aquilo que se presenta e para a presentifi- cagio objetiva do que se presenta? Que mais significa isto sendo o fato de a presenga como tal, e com mais razdo ainda a clareira que a garante, ndo serem considerados? Experimentado e pensado é apenas aquilo que Alétheia como clareira garante, ndo aqui- Jo que ela como tal & Isto permanece oculto, Sera por acaso? Acontece apenas como conseqiléncia de uma negligéncia do pensamento humano? Ou acontece porque o ocultar-se, o velamento, a Léthe, faz parte da A-létheia, nao como um puro acréscimo, no como a sombra faz parte da luz, mas como 0 coragao da Alétheia. E néio impera neste ocultar-se da clareira da presenga até mesmo um proteger e conservar, ‘inico Ambito no qual o desvelamento pode ser garantido, podendo so assim manifestar-se. em sua presenga, aquilo que se presenta?

También podría gustarte