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Liberdade: um mito?
1
Tereza Maria Sério
Maria Amalia Andery 2
Por trás da questão da liberdade se encerra uma questão básica para qualquer
proposta de explicação do homem e de suas ações: a concepção de homem.
Queremos dizer que qualquer teoria ou sistema explicativo funda-se em vários
supostos, entre eles uma concepção de homem. E a questão de liberdade — que
se refere à questão da determinação do comportamento humano — é central.
a) Em 1948, Skinner publicou uma "novela" intitulada Walden II. Neste livro
descreve a vida em uma comunidade utópica, organizada segundo os princípios de
análise do comportamento. O tema da liberdade é recorrente no livro.
O livro teve uma trajetória interessante. As 3000 ou 5000 cópias da primeira edição
ficaram encalhadas por quase 20 anos. Surpreendentemente, mais de um milhão
de cópias foram vendidas nos EUA na década de 60. A extraordinária venda do
livro nessa época coincide com um momento em que o mundo vivia e discutia a
questão da liberdade: é a década do movimento estudantil na Europa, nos EUA e
na América Latina, a década do movimento pelos direitos civis nos EUA, do
movimento hippie, da reação contra a Guerra no Vietnã, de grandes movimentos de
trabalhadores ...
O livro foi visto de duas maneiras antagônicas. De um lado, foi lido como uma
proposta libertária — quase anarquista — possivelmente por retratar uma
sociedade que enfatizava a variabilidade, a escolha individual — do trabalho, da
quantidade de trabalho, dos laços afetivos, do lazer. De outro lado, foi lido como
uma proposta totalitária — fascista mesmo — possivelmente por abolir a família
como forma de organização social, por envolver toda comunidade na educação das
crianças, por abolir a propriedade privada e a hierarquia no trabalho e por propor o
planejamento sistemático da cultura.
Esses três aspectos nos permitem fazer várias perguntas: Qual a concepção de
homem de Skinner? Qual a relação entre sua concepção de homem e o conceito de
liberdade? É possível compatibilizar liberdade e controle, liberdade e planejamento?
Se a resposta a estas perguntas parecer simples, se forem respostas do tipo ‘claro
que controle e planejamento se opõem a liberdade’, então podemos, como tantas
vezes já se fez, simplesmente descartar Skinner como arauto do homem autômato,
do homem robô.
c) Em 1971, Skinner publicou um livro cujo título original era Beyond Freedom and
Dignity que poderia ser traduzido como ‘Para Além da Liberdade e da Dignidade’.
Entretanto, o livro foi traduzido para o português como O Mito da Liberdade. E é
desta tradução que se originou o título deste artigo. Por que recorreríamos a um
título que consideramos mal dado? Esta não teria sido uma má escolha?
Em nossa opinião, não. Isto porque acreditamos que qualquer diálogo com a
análise behaviorista radical da noção de liberdade supõe pelo menos duas coisas.
Em primeiro lugar, supõe a possibilidade de que se supere uma reação emocional
inicial, quase incontrolável, do tipo: ‘liberdade um mito?! vai dizer que liberdade não
existe?! que o homem não é livre?!’ Em segundo lugar, supõe a possibilidade da
pergunta: seria liberdade um mito? Contando com estas duas possibilidades é que
propomos este artigo.
Para isto, se tivéssemos o talento necessário teríamos começado citando, com toda
veia artística que o verso exige, Raul Seixas: "prefiro ser essa metamorfose
ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo." O que queremos
dizer é que fazer a pergunta já supõe abrir mão de crenças muito bem arraigadas,
de "opiniões bem formadas". Envolver-se na busca de respostas supõe um certo
gosto pela mudança. Talvez o mais correto fosse afirmar que mais que um certo
gosto pela mudança, envolver-se na busca de respostas supõe ser desafiado para
a mudança.
Devemos alertar que mudança, neste caso, significa muitas coisas. Mudar significa,
por exemplo, numa época neo-liberal afirmar:
Economia livre não quer dizer ausência de controle econômico, porque nenhuma
economia será livre enquanto os produtos e o dinheiro permanecerem como
reforçadores. Quando nos recusamos a impor controle sobre salários, preços e a
utilização de recursos naturais, a fim de não interferir na iniciativa individual,
deixamos o indivíduo sob controle de contingências econômicas não planeja-das.
(Skinner,1971, p.93)
Podemos dizer que toda a proposta behaviorista para a psicologia se insere numa
perspectiva anti-mentalista. Visto sob este prisma, o behaviorismo é um programa
de combate ao mentalismo. É neste contexto que devemos inserir a análise da
questão da liberdade:
O que estamos enfatizando aqui é que a análise da noção de liberdade deve seguir
este percurso: analisar compor-tamentalmente a luta do homem pela liberdade e
analisar se há oposição entre esta luta e o conhecimento científico acerca do
homem.
Grande parte da tecnologia física resulta dessa espécie de luta pela liberdade. Com
o correr dos séculos, trilhando caminhos desordenados, os homens construíram um
mundo em que se acham totalmente livres de muitas espécies de estímulos
ameaçadores ou prejudiciais — temperaturas extremas, fontes de infecção, trabalho
pesado, perigo — e até daquele estímulos aversivos secundários genericamente
chamados desconforto. (Skinner, 1971, p.25)
Que problemas, então, uma análise comportamental revela, com relação a esta
literatura?
Embora todos nós possamos nos rebelar quando alguma sanção é imposta
contingentemente a uma ação individual, não costumamos sentir nossa liberdade
ameaçada quando recebemos algo em troca de nossa anuência. Certamente, os
cristãos em Roma, perseguidos e atirados ao circo não se sentiam livres. Mas o que
dizer dos romanos que "escolhiam" ir ao circo? Quase com certeza identificamos
nossos opressores e repressores, mas sequer nos perguntamos sobre o pão e o
circo que quotidianamente nos são ofertados (ou impostos). Como diz Skinner:
Aquilo de que o escravo deve ser consciente é sua miséria e a verdadeira ameaça
é o sistema de escravidão concebido de modo a não produzir revolta. A literatura
da liberdade teve em mira tornar o homem consciente do controle aversivo, mas na
sua escolha de métodos deixou de libertar o escravo feliz. (Skinner, 1971, p.35)
c. É necessário ainda destacar uma outra história de reforçamento que pode estar
atrás do trabalho árduo e que não permite falar em liberdade: se o reforçador for
muito poderoso, como é o caso em histórias de privação intensa, as pessoas não
são livres. Diz Skinner:
Podemos não nos sentir livres também sob refor-çamento positivo se ele for tão
poderoso a ponto de nos impedir de fazer coisas que gostaríamos de fazer.
Escravos obviamente não se sentem livres, mas trabalhadores também não se
sentem livres se tiverem que trabalhar tão longa e duramente a ponto de não terem
energia para nada mais. (Skinner, 1971, p.39)
Em que medida este processo trilhado pela luta pela liberdade comprometeria uma
análise científica do homem? Para responder esta pergunta, dois aspectos
precisam ser considerados:
a. as próprias teorias científicas, fruto que são desta luta pela liberdade, acabam
por refletir traços / marcas das concepções de homem defendidas pela literatura da
liberdade.
a1) Em primeiro lugar, assumindo os determinantes da ação humana como algo tão
distante da própria ação que as relações de determinação parecem quase
inexistentes. Nenhum de nós parece ter sua liberdade/ autonomia ameaçada
quando consulta o mapa astral, o horóscopo, ou se sente integrado nos sistema
total de energia do universo. Na realidade, o que estas teorias fazem é distanciar o
homem da ação. A inacessibilidade dos determinantes da ação torna o sujeito mero
espectador de seu destino.
Se até aqui a resposta a esta pergunta ainda não está clara não queremos correr o
risco da ambigüidade. Temos duas respostas para a pergunta.
Mito aqui tem o preciso significado de uma explicação mítica: um tipo de explicação
que pode ter tido um papel na construção do pensamento racional; papel que se
cumpriu exatamente na medida em que o pensamento racional se expande,
estrutura e difunde e que hoje na defesa da não-razão (des-razão ou pós-razão)
acaba hoje por ocultar a realidade cumprindo agora o papel de manutenção e não
de trans-formação da realidade. E o apego a este mito é um problema. Ele indica
que :
nossas práticas atuais não representam uma posição teórica bem definida ... não
abandonamos totalmente a filosofia tradicional da natureza humana, ao mesmo
tempo que estamos longe de adotar sem reservas um ponto de vista científico.
Aceitamos em parte o pressuposto do deter-minismo, mas permitimos que nossa
simpatia, nosso primeiro compromisso e nossas aspirações pessoais se levantem
em defesa da visão tradicional ...Se este fosse apenas um problema teórico não
teríamos razão para alarme, mas teorias afetam práticas. Uma concepção científica
do comportamento dita uma prática, uma filosofia de liberdade pessoal, uma outra.
Confusão na teoria significa confusão na prática. As infelizes condições atuais do
mundo podem ser devidas em grande parte à nossa vacilação (Skinner, 1953, pp.
8,9)
Referências
Skinner, B.F. (1948) Walden II. New York: Macmillan
Skinner, B.F. (1953) Science and Human Behavior. New York: Macmillan
Skinner, B.F. (1971) Beyond Freedom and Dignity. New York: Bantam Books
http://www.ufba.br/instituicoes/ufba/faculdades/psicologia/liberdad.html
26/09/2003