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ISSN 1518-7632

Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem - Unisul

Gêneros textuais e ensino-aprendizagem

Adair Bonini
Maria Marta Furlanetto
(Orgs.)

Tubarão - SC

v. 6, n. 3, p. 337-584, set./dez. 2006


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Ficha Catalográfica
Linguagem em (Dis)curso / Universidade do Sul de Santa
Catarina. - v. 1, n. 1 (2000) - Tubarão : Ed. Unisul,
2000 -

Quadrimestral
ISSN 1518-7632

1. Linguagem - Periódicos. I. Universidade do Sul de


Santa Catarina.
CDD 405
Elaborada pela Biblioteca Universitária da Unisul

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Sumário/ Contents

Apresentação 343

ARTIGO DE PESQUISA/ RESEARCH ARTICLE

Construindo propostas de didatização de gênero: desafios e possibilidades/


The construction of genre literacy proposals: challenges and possibilities
Ana Maria de Mattos Guimarães 347

Circuito de gêneros: atividades significativas de linguagem para o


desenvolvimento da competência discursiva/ Genre chain: significant
language activities for the development of discursive competence
Marcos Baltar, Fabiele Stockmans de Nardi, Luciane Todeschini
Ferreira e Maria Eugênia Gastaldello 375

Gêneros discursivos e conhecimento sobre gêneros no planejamento de


um curso de português instrumental para ciências contábeis/ Discursive
genres and genre knowledge in the planning of a course on Portuguese
for specific purposes for the accounting area
Orlando Vian Jr. 389

Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico: concepções de alunos


de mestrado sobre a escrita/ Discursive practices and the teaching of
academic writing: notions about writing presented by master students
Débora de Carvalho Figueiredo e Adair Bonini 413

341
Práticas discursivas em conclusões de teses de doutorado/ Discursive
practices in concluding chapters of PHD theses
Antonia Dilamar Araújo 447

As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos: o caso da


conferência acadêmica/ The relationship between orality/writing in
formal and public oral genres: the case of the academic conference
Roxane Rojo e Bernard Schneuwly 463

ENSAIO/ ESSAY

O ensino de produção textual com base em atividades sociais e gêneros


textuais/ The teaching of writing based on social activities and genres
Désirée Motta-Roth 495

Argumentação e subjetividade no gênero: o papel dos topoi/ Argumentation


and subjectivity in genre: the role of the topoi
Maria Marta Furlanetto 519

RETROSPECTIVA/ RETROSPECTIVE

A construção de modelos didáticos de gêneros: aportes e questionamentos


para o ensino de gêneros/ The construction of didactic models of genre:
constributions and questions to genre teaching
Anna Rachel Machado e Vera Lúcia Lopes Cristovão 547

342
Apresentação

A presente edição temática de Linguagem em (Dis)curso – com o tópico


Gêneros textuais e ensino-aprendizagem – é a concretização de uma das metas
traçadas para o biênio 2004-2006 pelo GT de Lingüística Aplicada (GT-LA) da
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística (ANPOLL)
– subgrupo “Teorias de gênero em práticas sociais”... O GT-LA é composto dos
seguintes subgrupos: (1) Ensino-aprendizagem de línguas, (2) Teorias de gênero e
(3) Formação de professores.
Com o presente tema, privilegia-se o lugar dos gêneros na ação pedagógica
de ensino/aprendizagem de línguas (LE e LM: leitura, produção textual, avaliação e
elaboração de material didático, etc.), reunindo substanciais experiências e reflexões
de pesquisa de estudiosos de várias instituições brasileiras. Espera-se que esses
trabalhos possam subsidiar atividades de professores de língua materna e de língua
estrangeira, bem como os trabalhos de professores e pesquisadores dos cursos de
pós-graduação e seus pós-graduandos.
A divulgação de tais trabalhos reflete a intenção do grupo de ir além da pura
elaboração teórica para pensar o modo como as teorias relacionadas ao conceito de
gênero textual podem ajudar a transformar o ensino de línguas e linguagem no
Brasil. Ao trazer a público essa produção acadêmica, o grupo também tem em conta
a necessidade de se aumentar a visibilidade da Lingüística Aplicada no país.
Neste número, o leitor encontrará seis artigos de pesquisa, dois ensaios e
uma retrospectiva.
Ana Maria Guimarães (UNISINOS) propõe uma reflexão sobre experiência
com seqüências didáticas baseadas em gêneros textuais, em um grupo de crianças
acompanhadas longitudinalmente da 3ª à 5ª série do ensino fundamental, mostrando
o que significa trabalhar com gêneros textuais segundo a proposta teórica do
interacionismo sociodiscursivo.
Marcos Baltar, Fabiele Stockmans De Nardi, Luciane Todeschini Ferreira e
Maria Eugênia Gastaldello (UCS), tendo como base conceitual o quadro do
interacionismo sociodiscursivo, analisam uma atividade de sala de aula que vem
sendo sistematizada no projeto de pesquisa-ação UCS-PRODUTORE, cujo propósito
é investigar a natureza da formação inicial e continuada de professores. aguardar

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Orlando Vian Jr. (PUC-SP/UniFECAP) relata uma experiência no planejamento
de um curso de português instrumental em um curso de Ciências Contábeis,
mostrando como foram operacionalizados, para sua implementação pedagógica,
certos conceitos adotados: gênero discursivo na perspectiva sistêmico-funcional de
linguagem, conhecimento sobre gêneros e conhecimento partilhado pelos usuários
ao utilizarem gêneros escritos. Apresenta ainda algumas atividades desenvolvidas,
bem como as percepções dos alunos sobre tais atividades.
Débora de Carvalho Figueiredo e Adair Bonini (UNISUL) relatam uma
experiência de ensino de produção textual acadêmica escrita, surgida a partir de
sua observação, como professores de pós-graduação, da dificuldade de mestrandos
em produzir textos que possam ser reconhecidos como gêneros do meio, entre eles
o “artigo de pesquisa”.
Antônia Dilamar Araújo (UECE) reflete sobre recursos discursivos utilizados
por escritores na redação de teses de doutorado nas línguas inglesa e portuguesa,
focalizando na análise o capítulo de conclusão de dez teses da área de análise do
discurso e lingüística de texto.
Roxane Rojo (UNICAMP) e Bernard Schneuwly (FAPSE/UNIGE*) propõem
um exercício de análise de um gênero oral formal e público – a conferência
acadêmica – em termos das relações entre oral-escrita, oral-oral e escrita-escrita
na constituição da conferência e em sua retextualização como transcrição. Defendem
a posição de que oralidade e escrita mantêm uma relação complexa de mútuo efeito
e interferência nos gêneros orais formais públicos.
Désirée Motta-Roth (UFSM) procura examinar o conceito de gênero textual
adotado nos Parâmetros Curriculares Nacionais, bem como analisar algumas
atividades de redação em língua portuguesa propostas na literatura, para encorajar
o debate sobre as possibilidades que uma concepção de gênero textual, pressupondo
o de atividade social, traz para o ensino de linguagem.
Maria Marta Furlanetto (UNISUL) focaliza o conflito entre ser impessoal e
defender um ponto de vista (opinião), tal como quando se propõe ao estudante
elaborar uma “dissertação” na escola, tentando demonstrar, do ponto de vista
discursivo, que há uma escolha para que certa direção seja indicada ao interlocutor,
sendo relevante o uso de certos operadores. Põe em contraste o modelo da dissertação
escolar e a caracterização dialógica do conceito de gênero em Bakhtin.

* Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação (FAPSE) da Universidade de Genebra (UNIGE), Suíça.

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Anna Raquel Machado (PUC/SP) e Vera Lúcia Lopes Cristovão (UEL) procuram
traçar um quadro ilustrativo de pesquisas brasileiras desenvolvidas para a construção
de “modelos didáticos de gêneros”, de suas respectivas seqüências didáticas e de
trabalhos didáticos de intervenção desenvolvidos, na perspectiva do interacionismo
sociodiscursivo (ISD).
Esperamos que os artigos aqui publicados tenham boa acolhida junho aos
pesquisadores e profissionais que se ocupam das questões de ensino e aprendizagem
de Língua Portuguesa (escrita, fala, leitura, escuta e metalinguagem).

Adair Bonini
Maria Marta Furlaneto
(Organizadores)

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Guimarães

CONSTRUINDO PROPOSTAS DE DIDATIZAÇÃO DE


GÊNERO: DESAFIOS E POSSIBILIDADES

Ana Maria de Mattos Guimarães*

Resumo: Desde a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, a noção de gênero como
instrumento de ensino-aprendizagem passou a ser um tópico freqüente no debate didático de como
ensinar Português. Este trabalho relata uma pesquisa longitudinal de um grupo de crianças
acompanhadas da 3ª à 5ª série do ensino fundamental. Nessa pesquisa, foi desenvolvida uma
experiência de ensino com seqüências didáticas baseadas em gêneros textuais. A análise dessa
experiência possibilita mostrar o que significa trabalhar com gêneros textuais dentro da proposta
teórica do interacionismo sociodiscursivo (BRONCKART, 1999, 2004, 2005).
Palavras-chave: gênero de texto; modelo didático; seqüência didática; ensino fundamental;
interacionismo sociodiscursivo.

1 INTRODUÇÃO

O desafio do trabalho com gêneros textuais tem sido motivo de muitos estudos
no campo de ensino/aprendizagem de língua materna, como bem mostra Bezerra
(2002). A publicação pelo MEC dos Parâmetros Curriculares Nacionais, em 1998,
em que as diretrizes curriculares para o Ensino Fundamental brasileiro apóiam-se
fortemente em concepções teóricas relativamente recentes e inovadoras, trouxe a
noção de gênero para o primeiro plano do debate didático. A noção de gênero como
instrumento de ensino-aprendizagem é central nessa proposição: “Todo o texto se
organiza dentro de determinado gênero em função das intenções comunicativas,
como parte das condições de produção dos discursos, os quais geram usos sociais
que os determinam” (BRASIL, 1998, p.21). O objetivo do presente artigo é refletir
sobre uma experiência didática com gêneros textuais na escola, tomando por base a
proposta teórica do interacionismo sociodiscursivo (BRONCKART, 1999).
Proponho uma reflexão sobre o desenvolvimento de seqüências didáticas
levadas a efeito em uma escola municipal da periferia da região metropolitana de
Porto Alegre, dentro da proposta do projeto por mim coordenado: “Desenvolvimento

*
Professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Doutora em Lingüística Aplicada.

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Construindo propostas de didatização de gênero...

da narrativa e o processo de construção social da escrita” 1. O objeto de investigação


da pesquisa foi o acompanhamento longitudinal de um grupo de alunos, da 3ª até a
5ª série do Ensino Fundamental2. O objetivo principal do projeto foi analisar o
processo de textualização da ordem do NARRAR sob dois ângulos: o do produto
texto (oral e escrito) e o da interferência da escola neste processo. Procurou-se
verificar o papel que desempenham as intervenções formativas3 (aquelas que se
desenvolvem em situações didáticas ou naturais), especificamente no desenvolvimento
da escrita, de forma a poder propor novas formas de intervenção didática no campo
do ensino-aprendizagem de língua materna. O presente artigo refletirá sobre esses
dois pontos: a aplicação de seqüências didáticas e a análise de textos produzidos
pelos alunos como resultado dessas seqüências.

2 DE QUE GÊNERO DE TEXTO ESTAMOS FALANDO?

A proposta do interacionismo sociodiscursivo (BRONCKART, 1999, 2004,


2005) analisa a linguagem como prática social, em que as condutas humanas
constituem redes de atividades desenvolvidas num quadro de interações diversas,
materializadas através de ações de linguagem, que se concretizam discursivamente
dentro de um gênero.
O ponto de partida para a discussão desta noção de gênero é estabelecido
por Bakhtin:

A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos)


[...]. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada
uma dessas esferas [esferas da atividade humana], não só por seu conteúdo
(temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos

1
Agradeço a colaboração da mestranda Daiana Campani, do PPG Lingüística Aplicada da UNISINOS, e dos bolsistas
de iniciação científica Rafaela F. Drey (UNIBIC) e Márcio Gerhardt (FAPERGS) no desenvolvimento deste projeto.
Agradeço ainda ao CNPq e à FAPERGS o apoio recebido nos projetos “A construção da escrita em ambientes
sociais diversos: o interacionismo sociodiscursivo em questão” e “Desenvolvimento de narrativas e a construção
social da escrita”, cujos dados foram essenciais para a elaboração deste artigo.
2
Foi escolhida a 3ª série como ponto de partida do estudo longitudinal, pois trabalho de pesquisa anterior da
autora já havia estudado o desenvolvimento da linguagem da criança em fase de letramento (dos 5 aos 8;11 anos
de idade), com ênfase em narrativas (Cf. GUIMARÃES, SIMÕES, COSTA E SILVA, 1998).
3
Ainda que a palavra ‘intervenção’ não me pareça apropriada quando se fala da situação escolar (prefiro utilizar
‘instrumentalização’ em seu lugar), vou empregá-la, pois, no caso do projeto, fica marcada essa possibilidade,
pelo fato de os professores da escola pedirem aos pesquisadores que assumissem o papel docente, em seu lugar,
durante as seqüências didáticas.

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Guimarães

da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais –, mas também, e


sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos
(conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se
indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela
especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado
considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização
da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo
isso que denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 1979, p. 279).

Bronckart recoloca a questão do gênero, sob o rótulo de gêneros de texto4,


perseguindo a idéia de que tais gêneros podem ser facilmente reconhecidos nas práticas
sociais de linguagem. Caracterizados por sempre apresentarem tema, construção
composicional e estilo específicos, os gêneros tornam a comunicação humana possível.
Embora a teoria oscile, por vezes, em seu tratamento (como bem mostra o artigo de
Machado (2004)), sua relação com a escola é reafirmada em artigo de Schneuwly e
Dolz (2004, p.74), quando consideram que “é através dos gêneros que as práticas
de linguagem materializam-se nas atividades dos aprendizes”. Essa releitura do
conceito de gênero, sistematizada, sob o ponto de vista da realidade escolar, por
Schneuwly e Dolz (1999), enfatiza a questão de sua utilização enquanto um instrumento
de comunicação em uma determinada situação, mas, ao mesmo tempo, um objeto de
ensino/aprendizagem. Tais autores desenvolvem a hipótese de que “quanto mais precisa
a definição das dimensões ensináveis de um gênero, mais ela facilitará a apropriação
deste como instrumento e possibilitará o desenvolvimento de capacidades de linguagem
diversas que a ele estão associadas” (id, p. 15). Ainda segundo eles (2004, p. 75), o
gênero “pode ser considerado como um megainstrumento que fornece um suporte
para a atividade nas situações de comunicação, e uma referência para os aprendizes”.

3 O QUE SIGNIFICA TRABALHAR COM


GÊNERO DE TEXTO NA ESCOLA?

Em primeiro lugar, é preciso considerar que a introdução de um gênero de


texto na escola depende de uma decisão didática, que precisa considerar os objetivos

4
Segundo este autor: “Chamamos de texto toda a unidade de produção de linguagem situada, acabada e auto-
suficiente (do ponto de vista da ação ou da comunicação). Na medida em que todo texto se inscreve,
necessariamente, em um conjunto de textos ou em um gênero, adotamos a expressão gênero de texto em vez de
gênero de discurso“ (BRONCKART, 1999, p. 75).

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Construindo propostas de didatização de gênero...

de sua aprendizagem, tratando-se, simultaneamente, de “um gênero a aprender, embora


permaneça gênero para comunicar” (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p, 81). Essa relação
estará na base de um modelo didático de gênero, que definirá os princípios (por
exemplo, o plano geral do gênero de texto escolhido), os mecanismos enunciativos
que se põem em ação e as formulações lingüísticas, ou seja, os mecanismos de
textualização que devem constituir os objetos de aprendizagem dos alunos. Três são os
aspectos a serem considerados nesta elaboração: os conhecimentos existentes sobre
gêneros de texto (teoricamente variados e heterogêneos); as capacidades observadas
dos aprendizes (daí a relevância de a própria docente da classe ser participante da
pesquisa) e os objetivos de ensino. Finalizado o modelo didático, estará definido, então,
o saber a ser ensinado. Este modelo didático, definido por Dolz e Schneuwly (2004),
assenta-se, pois, sobre um tripé, formado por:
- conhecimentos de referência;
- objetivos de ensino;
- capacidades observadas dos aprendizes.
A construção deste modelo é a primeira etapa a ser desenvolvida para o
trabalho com gêneros na sala de aula. Após é elaborada a seqüência didática referente
às diferentes atividades previstas para sala de aula.
A seqüência didática (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEWLY, 2004, p. 95-128) deve
partir de uma produção inicial, em que os alunos tentam elaborar um primeiro
texto do gênero escolhido, de forma a revelar as representações que têm dessa
atividade. Essa produção é realizada após discussão de um projeto coletivo de
produção de um gênero escrito, posto como um problema de comunicação a ser
resolvido, seguida de uma apresentação dos conteúdos deste gênero. Ela é a pista
para a preparação de diversos módulos, que darão conta dos problemas que
apareceram na primeira produção, de forma a dar aos alunos os instrumentos
necessários para atingirem o objetivo de produzirem o gênero de texto escolhido. A
seqüência será finalizada por uma produção final, que dá ao aluno a oportunidade
de praticar as noções e instrumentos trabalhados durante os módulos e permite ao
professor uma avaliação do processo.
Essa avaliação pode ser feita a partir da proposta de Bronckart (1999) para
análise de textos como atividades de linguagem, priorizando-se os aspectos mais
enfocados durante a seqüência didática. De acordo com Bronckart, um texto é
organizado de acordo com uma arquitetura interna, que pode ser vista como um
“folhado textual”. Tal folhado se organiza em 3 camadas superpostas, mas interativas:

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Guimarães

a infra-estrutura geral do texto, os mecanismos de textualização e os mecanismos


enunciativos. A primeira camada trata do plano geral do texto, onde se verificam os
tipos de discurso e suas articulações, a organização do conteúdo temático, através
da qual, enfim, pode-se caracterizar o gênero textual ao qual pertence. A segunda
camada verifica a progressão do conteúdo temático, apontando as grandes
organizações hierárquicas, lógicas ou temporais de um texto, dentro de três conjuntos:
conexão, coesão nominal e coesão verbal. Por fim, a última camada contribui para
a coerência pragmática do texto, apontando posicionamentos enunciativos,
articulação das vozes presentes e avaliações do conteúdo temático.

4 RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA EM 3 TEMPOS

O projeto “Desenvolvimento de narrativas e a construção social da escrita”


objetivou aproximar as pesquisas pensadas sob o prisma de aquisição e
desenvolvimento da linguagem para o contexto escolar, transpondo-as para uma
reflexão pedagógica, a partir do acompanhamento longitudinal de um grupo de
alunos, da 3ª até a 5ª série. A escola onde se desenvolveu é municipal5, na periferia
de uma cidade da região metropolitana de Porto Alegre, e a maioria dos alunos que
a freqüenta é de classes economicamente menos favorecidas. Trata-se de uma escola
pequena, em que funciona apenas 1 turma por série, do pré até a 5ª série. Os alunos
da 3ª série tinham pais alfabetizados, mas com nível escolar baixo, no máximo ensino
fundamental completo. Apenas 40% deles referiam ler em casa e 25%, usar
funcionalmente a escrita (para lista de compras, bilhetes aos pais, etc.).
A turma da 3ª série era considerada uma turma difícil, rotulada como
problemática. Em número de 20, os alunos eram turbulentos, de idades diferentes
(oscilando entre 8 e 13 anos). Até outubro de 2003, apenas 2 textos haviam sido
produzidos por esse grupo de alunos. Reuniões com a professora de classe permitiram
apresentar e discutir a teoria embasadora do trabalho pedagógico e analisar as
dificuldades dos alunos que os poucos textos deixaram entrever. A docente, entretanto,
alegou problemas pessoais como impeditivos para dar início a um trabalho
diferenciado. Até então no papel de observadora participante, pude constatar que as
5
É preciso referir que o projeto foi concebido sem que a escola onde seria desenvolvido estivesse escolhida. Essa tarefa
não foi fácil, em parte pela falta de interesse das escolas em desenvolver projetos de parceria, mas, sobretudo, pela
falta de estímulo do professor da turma, uma vez que entende que só terá mais trabalho e não consegue medir os
benefícios que possa vir a ter com a quebra de seu paradigma docente. Finalmente, quando se chegou a uma escola
receptiva, foi bastante difícil convencer o professor da turma escolhida a participar da intervenção pedagógica.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006 351


Construindo propostas de didatização de gênero...

interações da professora com a turma eram repletas de autoritarismo, evidenciado


pelo tom de voz muito elevado da docente e pela proposta de trabalhos sempre
individuais, com respostas óbvias. Ainda que transparecesse afetividade nas relações,
a docente não permitia que as crianças fossem interlocutoras do processo pedagógico.
Eram absolutamente passivas, expostas a longos trabalhos de cópia. O trabalho com
língua materna focalizava, sobretudo, aspectos gramaticais e ortográficos,
desvinculados do contexto de produção. Eram feitas leituras compreensivas de textos
curtos, muitas vezes copiados do quadro, e sempre seguidos por questionário com
perguntas de respostas fechadas e previsíveis. Quando perguntadas sobre o que
escreviam, mesmo nas entrevistas individuais, respondiam, invariavelmente,
“TEXTOS”, sem conseguir explicitar finalidade:

P: Hmmm! E me conta uma coisa, tu gostas de escrever?


A: Gosto.
P: Ah, é? Bah@d, isso é muito legal. Que é que tu gostas de escrever?
A: Eu escrevo [pausa] eu gosto, as coisas que eu mais gosto de escrever é
as coisas que a (profes)sora escreve no quadro: os textos, essas coisas.
P: E o que tu escreves?
A: O que eu escrevo?
P: O que é que tu gostas mais?
A: Fazer texto.
P: Que tipo de texto que tu fazes?
A: # Sobre os bichos, essas coisas, sobre, como vou dizer?...
(Menino C, 13 anos)

Por menos dogmático que pareça, conversa com a supervisora educacional


da escola em conjunto com a professora indicou a única saída. Cabia-me sair do
papel de observadora e encarar o de docente, com o objetivo de demonstrar que
mesmo crianças tidas como difíceis são capazes. A intervenção pedagógica
desenvolvida em 2003, com o grupo na 3ª série, foi desenvolvida dessa forma, mas
sempre planejada em conjunto com a professora.
O mundo discursivo constitutivo das atividades de linguagem a que se dedicou
o projeto situou-se no eixo de NARRAR6, mais especificamente relacionado à família
de gêneros vinculados à narração. Um dos aspectos envolvidos diz respeito a como
6
Para Bronckart (1999), dois arquétipos discursivos estão presentes no eixo do NARRAR: o relato interativo,
marcado pela disjunção ao referente, mas implicando uma interação social, e a narração (disjunta em relação ao
referente, mas autônoma em sua relação com a interação social).

352 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006


Guimarães

se estruturam as narrativas, o que significa ter em mente um esquema narrativo,


como apresentado por Adam (1985,1987) e Labov (2001). Esse último conceitua
narrativa mínima como aquela que tem uma complicação e uma resolução. Para
Adam (1987), uma seqüência narrativa deve reunir os seguintes constituintes: no
mínimo, um ator antropomorfo constante, que garanta a unidade de ação; mudança
de estado, através de acontecimentos encadeados; encadeamento desses
acontecimentos em uma sucessão mínima de um tempo t a t+n; processo de
construção de uma intriga pela integração dos fatos em uma ação única; causalidade
narrativa, em que o acontecimento que vem depois aparece como tendo sido causado
por um anterior; um fim sob forma de avaliação final. Uma seqüência narrativa
poderia ser reproduzida como segue:

Figura 1 – Seqüência narrativa.

O diagnóstico dos textos produzidos pela turma na 3ª série apontou que,


mesmo sob o rótulo de narrativa e a partir de título sugestivo: “Um passeio
inesquecível”, faltava a todos a característica mais marcante da ação complicadora.
Essa ausência também é sentida em grande parte das narrativas orais produzidas
durante entrevistas iniciais, em que aparece um relato de ações, sem uma ação
complicadora:

Ah, é a do Puff que eu me lembro, a do Patinho Feio não é tão boa assim. Ah
@ i , o Puff no livrinho dizia que ele era um ursinho que era muito feliz, que
ele pulava de um lado pro outro com seus amigos que era o Tigrão, o
Porco, se eu não me engano é o Coelho e eu não sei os outros que tem. Ah
@ i que ele era muito feliz, que ele pulava, no anoitecer ele ia pra casa, ele
tomava banho, fazia seus dever(es) de casa, e no outro dia, ele alevantava
de manhã, tomava banho, se arrumava e ia pro colégio e aí depois que ele
chegava do colégio ele ia brincar de novo e aí depois de noite ele www só
me lembro essa parte. (Menina S: 10 anos)

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006 353


Construindo propostas de didatização de gênero...

Uma primeira proposta de trabalho com gêneros textuais em seqüências


didáticas, com base em Schneuwly e Dolz (2004); Schneuwly (2002); Bronckart
(1999); Cordeiro, Azevedo e Mattos (2004), foi desenvolvida no final da 3ª série.
Foram, então, consideradas as regularidades do uso desse gênero em diferentes
atividades de linguagem, sob um triplo ponto de vista: a) dos conteúdos e
conhecimentos veiculados pelo texto; b) das estruturas comunicativas comuns aos
textos vistos como pertencentes ao gênero escolhido; c) das configurações específicas
das unidades lingüísticas que compõem o texto (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004), para
permitir a construção do modelo didático que seria utilizado.

4.1 Tempo 1: a experiência com contos de fadas7


O gênero escolhido foi o conto de fadas, pelo interesse que as crianças, na
entrevista, revelaram ter na leitura de títulos desse gênero. Inicialmente, caracterizou-
se o gênero de referência, para estudar como transformá-lo em objeto de
aprendizagem. Fica sempre marcante a necessidade de ultrapassar o que Schneuwly
(2002, p.238-9) caracteriza como gênero escolar, marcado pelo fato de pertencer,
simultaneamente, a dois lugares sociais: o da situação de referência que tenta
reproduzir o tema proposto e o da situação escolar da escrita, “definida notadamente
pelo fato de que o aluno deve escrever para mostrar que ele sabe escrever e por
aprender a escrever, de que escreve a mesma coisa e, ao mesmo tempo, que
numerosos outros de seus co-discípulos, de que ele sabe que seu texto corresponde
a uma ficção de situação à qual ele pode se identificar mais ou menos”, sem que se
efetive uma troca comunicacional. Para tal fim, procurou-se, inicialmente, refletir
sobre a “escolarização” do gênero de referência.
O gênero “conto de fadas” é considerado um gênero simples (CANVAT, 2003,
p.173-174), no qual pode operar uma relação de conformidade, isto é, de duplicação,
entre o texto e seu gênero, por se tratar de um gênero fortemente restringido por fórmulas
pré-determinadas pela tradição. O uso de recursos lingüísticos é simples e direto. Os
nomes de seus personagens representam as suas características (Bruxa Onilda). As palavras
formam uma imagem visual, principalmente na descrição de elementos fantásticos e
mágicos. A metamorfose das personagens, a magia, o encanto, o uso de talismãs e a força
do destino são também constantes neste gênero (JOLLES, 1993). Os contos de fada clássicos
apresentam o mesmo esquema narrativo, no qual as dificuldades materiais do personagem
são apresentadas na situação inicial. A partir do desenvolvimento da ação, esse cotidiano

7
Esta experiência encontra-se descrita com mais detalhes em Guimarães (2004).

354 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006


Guimarães

é alterado pela interferência do elemento mágico, o que permite a emancipação do herói


e o clássico final feliz na resolução e na situação final. As personagens são planas, geralmente
poucas e sem complexidade psicológica. São, na maioria, jovens em idade de casar. As
qualidades físicas ou morais são nítidas em cada personagem. O tempo e o espaço são
indeterminados, por isso, são comuns expressões genéricas do tipo: “era uma vez”, “há
muito tempo”, “num certo dia” e “num lugar distante” (ZILBERMAN, 1982). Observe-se
que se optou pelo uso de contos de fadas ditos renovados, em lugar dos tradicionais, para
permitir uma melhor inserção do mágico na realidade atual.
A seqüência didática sobre o gênero conto de fadas foi organizada em 7 oficinas,
a partir de uma ordem determinada para dar conta da dificuldade que se pretendeu
vencer (a ausência de complicação no texto narrativo). Foi explicado aos alunos que eles
teriam “oficinas de ESCREVER” por 2 meses. Nelas estudariam os contos de fada, sendo
desenvolvidas atividades para que refletissem sobre suas características e pudessem
produzir eles mesmos contos de fadas, com acontecimentos mágicos.
O primeiro texto produzido por eles não teve orientação específica, a não
ser que deveriam apresentar um personagem inventado que se encontraria com
uma bruxa. Na análise desse primeiro texto, foi possível verificar que a maioria
mostrou conhecimento sobre a magia como componente básico dos contos de
fada, mas em grande parte não foi possível caracterizar a mudança de uma situação
inicial, que se dá, sobretudo, por uma ação complicadora. Nas produções finais,
foi possível averiguar a reversão desta análise inicial.
Os módulos que compuseram as oficinas ficaram constituídos como segue:

Oficina 1 – O que é um conto de fadas?


Apresentação da personagem que acompanhará o trabalho, a partir da
distribuição do livro As memórias da Bruxa Onilda (LARREULA, E.;
CAPDEVILLA, R., 2002). Leitura comentada da história. Exploração das
principais características do gênero: a presença da magia e do encanto; os
personagens típicos, as características de tempo e espaço indeterminados;
os nomes típicos dos personagens; os momentos de apresentação dos
personagens e suas dificuldades na situação inicial; a presença de uma
complicação que atua sobre a situação inicial, a interferência do elemento
mágico para resolução deste problema; o final feliz.
Escolha pelas crianças de um personagem para os seus contos de fada,
que os acompanhará em todas as oficinas. Escrita de texto com a descrição
deste personagem e apresentação à classe. Distribuição da história: No

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006 355


Construindo propostas de didatização de gênero...

zoológico, com novas aventuras da Bruxa Onilda, para leitura em casa e


escrita de um conto semelhante com seu personagem.

Oficina 2 – Nós podemos escrever um conto de fadas.


A partir do sorteio de um dos personagens inventados, composição coletiva
de uma narrativa em que a Mulher Gata se encontra com a Bruxa Onilda,
mediante proposta oral de segmentos, seguida de escrita no quadro. O
objetivo da oficina foi entender o que é um conto de fadas (presença do
mágico) e sua característica de complexidade (vários acontecimentos) e
a obrigatoriedade de conflito (marca do enredo).

Oficina 3 – Um conto de fadas apresenta vários acontecimentos


(modificação da situação inicial e ações que respondem à nova situação)
Análise da história A guerra, sob o ponto de vista de seu enredo. Escrita no
quadro dos “grandes acontecimentos”. Em grupos de 4, elaboração de
uma história coletiva com grandes acontecimentos, que envolvam o
personagem da capa de seus cadernos (personagens galácticos, que
determinaram a separação dos grupos) e a Bruxa Onilda. Leitura e avaliação
dessas histórias realizadas pelo conjunto da turma, a partir do critério de
apresentarem vários acontecimentos, terem um enredo, um conflito.

Oficina 4 – É preciso reescrever o texto para que ele se aperfeiçoe.


Introdução do procedimento de reescrita dos textos. Foi escolhido,
aleatoriamente, um dos textos de cada grupo já analisado tematicamente na
aula anterior, que foi copiado tal e qual em folha especial. Cada aluno leu
individualmente o texto recebido e assinalou o que imaginava ser um erro,
escrevendo a forma certa ao lado. Essa mesma tarefa foi feita em conjunto8.

Oficina 5 – Colocando palavras, melhora...


A partir de duas histórias mudas em seqüência (FURNARI, 2002), leitura
oral dos quadrinhos e escrita posterior, sempre reafirmando os elementos
8
Ultrapassadas as questões de ortografia diagnosticadas pelos aprendizes (letra maiúscula e trocas), passei a outros
questionamentos. Nenhuma criança apontou questões de pontuação (blocos de oração estavam presentes em
todos os textos), mas foram capazes de identificar os casos de discurso direto e usaram as convenções para
marcá-lo. Mesmo a necessidade de ponto de interrogação não foi percebida e teve que ser assinalada por mim, a
partir de dramatização de leitura. O fenômeno descrito como blocos de oração (FRANCHI, 1990) mereceu um
estudo à parte, uma vez que nenhum leitor percebeu-o, tendo feito parte de seqüência didática desenvolvida
posteriormente, a respeito do gênero ‘peça de teatro infantil’.

356 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006


Guimarães

necessários para um conto de fadas, produção de textos no gênero. Foram


avaliadas algumas das histórias escritas sob o ponto de vista de terem (ou
não) reproduzido os acontecimentos dos quadrinhos e de apresentarem
os elementos necessários para gênero. A história mais complexa foi
dramatizada, como forma de avaliar sua compreensão.

Produção final: Produção de um conto de fadas, que trouxesse novas


aventuras da Bruxa Onilda e apresentasse todas as características
estudadas. Esse texto foi lido também por duas outras professoras: a
supervisora educacional e a professora da classe. Deles foram escolhidos
três contos que foram publicados como um livro infantil e distribuído a todos.

A avaliação das produções finais dos alunos demonstrou que o objetivo de


construção de um texto inserido no gênero de escolha foi atingido. Apresenta-se, a
seguir, uma análise dessas produções, a partir da proposta de Bronckart (1999),
tratando do que ele chama de “infra-estrutura geral”, ou seja, o nível mais profundo
do texto, de acordo com o gênero de texto escolhido, a pertinência do conteúdo
temático desenvolvido no texto e as seqüências que o organizam. Foram investigadas
as seguintes características:

Figura 2 – Análise da seqüência narrativa nos contos de fada.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006 357


Construindo propostas de didatização de gênero...

Comparando-se os resultados da produção inicial com a final, pode-se projetar


um gráfico, como o da figura 3, que mostra a grande diferença entre a representação
do escrever como “escrever texto”, verbalizada pelas crianças na entrevista individual
e manifestada na sua primeira produção, e a apropriação do gênero conto de fadas,
que ocorre após a realização das oficinas.

Figura 3 – Comparação entre as produções iniciais e finais no conto de fadas.

Esses resultados deram-nos alento para a continuidade do projeto, ainda mais


que, na primeira produção analisada, não havia mostras de que os alunos conheciam
os elementos da seqüência narrativa, muito certamente, em função de que não era
tratada adequadamente a questão de produção de qualquer tipo de texto. Nesse sentido,
a presença da seqüência narrativa se mostra muito evidente, pelos percentuais elevados
em todos os seus elementos. A escolha de um gênero considerado simples, como é o
caso dos contos de fada, certamente contribuiu para este desempenho.
Por outro lado, foi necessário trabalhar com elementos relacionados a ortografia
e pontuação, pois percebemos que os alunos não utilizavam com segurança algumas
dessas convenções. Para isso, foram planejadas novas seqüências didáticas voltadas
para uma aprendizagem da escrita que permita ir além do fato de que “escrever se
aprende escrevendo”. Este foi o ponto forte das experiências desenvolvidas na 4ª série.9

9
Foi desenvolvido, por uma bolsista do projeto, no ano seguinte, trabalho específico sobre questões de ortografia
que se mostraram recorrentes nas oficinas do conto de fadas. Em turno diverso do habitual, 10 crianças do grupo
foram acompanhadas por um semestre.

358 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006


Guimarães

4.2 Tempo 2: a seqüência didática com peça de teatro infantil


As tarefas propostas pela professora da classe da 4ª série não diferiam muito
das apresentadas na 3ª: ela trabalhava, geralmente, questões gramaticais e ortográficas
com os alunos, que copiavam muitos textos do quadro e não exploravam as situações
específicas de comunicação. Na observação participante realizada pelos bolsistas da
pesquisa, notou-se que os alunos vibravam com a possibilidade de participar de
atividades de teatro10. Ao mesmo tempo, entendeu-se que o gênero “peça de teatro
infantil” poderia servir também a uma atividade lingüística, relacionada às convenções
de pontuação, que os alunos ainda não haviam construído com segurança. Para isto,
partiu-se do pressuposto de que há “uma íntima relação entre o domínio da pontuação
e do formato gráfico do texto, tanto na formatação global (externa) quanto na
formatação interna”, conforme Rocha (1996, p.24)11.
A caracterização do gênero em questão mostrou que toda peça de teatro
para crianças (e adolescentes) deve apresentar um conflito bem delineado, com
personagens bem caracterizadas e uma solução clara (BELINKY; GOUVEIA, 1984).
Assim, o espectador, através da identificação com uma das personagens ou com
uma situação, sofrerá uma experiência, uma vivência pessoal com a correspondente
participação social. Além disso, uma peça teatral infantil, geralmente, apresenta
personagens maléficos, considerados “adversários” necessários. Da mesma forma,
para as crianças menores, deve aparecer o final feliz na peça. Para desenvolver
nossa seqüência didática, foi escolhida a peça teatral infantil O menino narigudo,
de Walcyr Carrasco, como uma adaptação da peça Cyrano de Bergerac, do francês
Edmond Rostand12. Foram realizadas onze oficinas, que exploraram o gênero
escolhido e permitiram diversas atividades, com ênfase no projeto de produzir uma
peça. Simultaneamente, foram explorados conhecimentos relacionados com a
pontuação, conforme as atividades a seguir discriminadas:

10
Naquele ano, a escola oferecia a oportunidade de curso extraclasse de teatro, o que despertou o gosto das
crianças pelas atividades cênicas. Elas só podiam, entretanto, ensaiar teatro fora da sala de aula, no turno oposto.
Trazer o teatro para a sala de aula foi algo visto pelos alunos como surpreendente e maravilhoso.
11
Segundo Rocha (1996), o desenvolvimento da pontuação – quantidade e variedade – está relacionado com o
domínio do formato gráfico do texto. A aquisição da pontuação segue uma ordem, é adquirida de fora para
dentro. Inicialmente, as crianças indicam os limites textuais externos, como o final do texto e de parágrafos.
Depois, detalham o texto internamente (frases e partes de frases), atentando para aspectos da fala e funcionais,
como diálogos presentes em narrativas. Assim como a pontuação externa aparece antes da interna, também a
organização gráfica externa é anterior às distinções internas mais específicas, como a diferenciação gráfica entre
narrativa e discurso direto.
12
Esta escolha foi conduzida pela facilidade de acesso ao livro, recebido pela escola através do Programa Nacional do Livro.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006 359


Construindo propostas de didatização de gênero...

Produção inicial: Os alunos produziram um texto, a partir do que imaginavam


ser uma peça de teatro, com duas personagens: eu e meu vizinho Sr. X.

Oficina 1 – Conhecendo uma peça de teatro


Leitura silenciosa e dramática de partes da peça teatral e depreensão das
características mais importantes do gênero. Transformação de um fragmento
retirado da peça em uma narrativa. Relação das diferenças encontradas com
o texto original, para fixação das características da peça de teatro.

Oficina 2 – Aprendendo a usar as marcas de diálogo


Ênfase na questão das marcas do diálogo, na comparação entre a narrativa
produzida na oficina anterior e o texto original. Continuação da leitura da
peça, com leitura dramática.

Oficina 3 – Aprendendo a pontuar


Pontuação coletiva e individual de partes da peça teatral, juntamente com
a continuação da leitura da peça.

Oficina 4 – Criação de falas


Retomada dos pontos de interrogação, exclamação e declaração e criação
de falas em situações de comunicação, usando os pontos estudados. Leitura
da poesia presente no ato da peça em análise e questionamentos sobre as
diferenças do gênero poesia. Continuação da leitura da peça e expectativas
sobre a próxima parte.

Oficina 5 – Crie você o final dessa peça


Criação do final da peça pelos alunos. Leitura dramatizada das criações,
usando as pontuações utilizadas para marcação das ênfases.

Oficina 6 – Dramatizando uma peça de teatro.


Aperfeiçoamento, em grupo, das histórias mais interessantes, tendo em vista
uma futura dramatização. Ensaio e dramatização das histórias aperfeiçoadas
pela turma. Leitura da parte final da peça e comentários sobre as semelhanças
e as diferenças entre o final do livro e o final criado pelos alunos.

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Guimarães

Oficina 7 – Proposta de uma peça teatral em grupo.


Construção conjunta e explicação das principais características de uma
peça de teatro infantil. Em grupos, definição de tema e de personagens
para uma peça teatral. Escrita de uma peça de teatro a partir da proposta
elaborada.

Oficina 8 – Aperfeiçoando a peça.


Retomada das características de uma peça de teatro infantil, ressaltando a
presença do conflito, das instruções de fala, das exigências para uma
representação. Aperfeiçoamento da peça criada em grupo.

Oficina 9 – Caracterizando personagens e ações.


Conclusão e aperfeiçoamento das peças de teatro dos alunos.

Oficina 10 – Dramatização de uma peça de teatro.


As peças produzidas pelos grupos foram reunidas em um “livrinho” de
teatro. Cada grupo escolheu uma peça, com a condição de não ser a sua,
e a apresentou ao conjunto da turma.

Produção final: Crie a sua peça teatral. Criação individual de um ato


teatral, para ser inserido na peça O menino narigudo, no qual o próprio
aluno deveria se inserir como um novo personagem e dialogar com os
personagens já existentes.

Dois pontos foram enfatizados na seqüência descrita: a questão do gênero


propriamente dito e a inclusão de uma questão relacionada a sua produção lingüística: a
pontuação. Com relação a este último aspecto, os progressos foram evidentes (figura 4).

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006 361


Construindo propostas de didatização de gênero...

Figura 4 – Comparação entre o uso de pontuação


nas produções iniciais e finais.

Com relação ao gênero peça de teatro infantil, a comparação entre a produção


inicial e a final apontou resultados significativos em dois aspectos, que se inter-
relacionam: a presença de discurso interativo e de diferentes vozes narrativas, com a
introdução das vozes dos personagens e não apenas a do narrador (figura 5).

Figura 5 – Produção inicial e final no gênero peça de teatro infantil.

A aceitação do trabalho motivou a docente a compartilhar outra seqüência


didática, tendo sido escolhido o gênero história em quadrinhos. Em todas as ocasiões
dessa seqüência didática com teatro, um bolsista de iniciação científica do projeto
esteve em trabalho conjunto com a professora da classe.

362 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006


Guimarães

Esta seqüência didática comprovou, também, os desafios do trabalho com


gêneros textuais em sala de aula. Se, por um lado, o desconhecimento das
configurações dos textos reconhecidos como pertinentes ao gênero, apresentado na
produção inicial, foi ultrapassado na produção final, em que os aprendizes mostraram
reconhecimento dos elementos das estruturas comunicativas e semióticas partilhadas
pelos textos reconhecidos como pertinentes às peças de teatro infantis, por outro
lado, os conteúdos e os conhecimentos que se tornam dizíveis através do gênero não
foram apropriados pelas crianças. Possivelmente, uma excessiva preocupação com
as marcas formais, também características do gênero, acabou atenuando ou
impedindo discussões do conteúdo temático e da posição enunciativa. A análise do
conteúdo temático veiculado nas produções finais parece mostrar que, em vez de
caminhar no sentido de abstrair, progressivamente, critérios da forma de um gênero,
para elaborar seus próprios critérios semântico-pragmáticos de escolhas temáticas,
o aprendiz acabou “copiando” a forma, utilizando frases simples bastante artificiais,
sem verdadeiramente compreender as diferentes situações dos jogos enunciativo e
temático envolvidos numa peça de teatro infantil.
A título de exemplo, vejam-se extratos das produções inicial e final de uma
mesma aluna, P., aos 10 anos:

[...] O teatro de bonecos acabou fui direto para o teatro de pessoas contava
a história do Senhor X. as cortinas se abrirão e eu me imprecionei quando
vi que o Senhor X era o meu vizinho seu José.Eu chegei em casa fui direto
no meu vizinho para ele me contar como é fazer teatro eu fiquei facinada
com o que ele me dizia ele me contou que fazer teatro é maravilhozo e
resolvi entrar no grupo de teatro da escola. Era muito divertido aconselho
a vocês entrarem no fantástico mundo do teatro. (Produção inicial)
Um dia Roxana e Cirano estavam conversando na escola.
O sinal bate eles dois entram e a professora fala:
- Hoje temos uma aluna nova na escola!
Mirtes pergunta:
- Qual é o nome dela?
A professora responde
- É Priscila
Gabi fala:
- Mande ela entrar professora [...] (Produção final)

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006 363


Construindo propostas de didatização de gênero...

4.3 Tempo 3: A seqüência didática com narrativas de detetive


Quinta série, nova docente, grupo básico dos alunos acompanhados
longitudinalmente bastante reduzido, pois eram, agora 11 alunos dos 20 iniciais13.
Foi possível, entretanto, sem restrições, continuar o trabalho com gêneros textuais.
A escolha de outro gênero do NARRAR foi motivada pelo grande interesse
demonstrado pelos alunos em histórias de mistério. A modelização do gênero
“narrativas de detetive” partiu de conceito desenvolvido por Todorov (1970) sobre
o que denomina de “história do suspeito-detetive”, que resulta da união de dois
“subtipos de romance de suspense”: o chamado romance negro, também conhecido
como “história do detetive vulnerável”, em que o detetive perde sua imunidade na
trama; e o romance de enigma, que analisa um crime pessoal.
A narrativa de detetive (ou de mistério) constitui-se “em uma dualidade
[...] esse romance contém não uma, mas duas histórias: a história do crime e a
história do inquérito” (TODOROV, 1970, p. 96). Essas “duas histórias”, segundo o
teórico russo, coexistem paralelamente dentro da narrativa. Enquanto as personagens
da história do crime “agem”, “contam o que se passou efetivamente”; as personagens
da segunda história, a do inquérito, “descobrem”.
A primeira história, a do crime, é uma espécie de “ponto de partida”, visto
que o interesse principal vem da segunda história, que trata do inquérito, da
investigação, e que se desenrola no presente.
Na narrativa de detetive, é indispensável a presença de um mistério a ser
solucionado, seja ele um crime, o sumiço de algo ou alguém, que garante a intriga, e o
perigo, a luta, a perseguição para o fim do mistério proposto na situação inicial da trama.
É interessante, ainda, observar o gosto dos alunos por estas histórias a partir
da pré-adolescência. As características básicas que as compõem e a necessidade de
criatividade e imaginação por parte do leitor na hora da leitura combinam exatamente
com as descobertas e mudanças enfrentadas pelos alunos nessa faixa etária, e a
união de todos estes elementos pode garantir um bom trabalho realizado com histórias
de suspense na escola.
O planejamento da seqüência didática sobre narrativas de detetive seguiu os
seguintes passos:

Produção inicial dos alunos: O professor fez uma breve introdução,


relatando os objetivos do projeto que vai iniciar e perguntando se os alunos

13
Os resultados que serão apresentados nesta seção referem-se aos alunos da 5ª série que freqüentaram todas as
oficinas, no total de 15.

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Guimarães

conhecem histórias de suspense, mistério, crimes, detetives. A seguir foi


solicitada a produção inicial sobre uma história de detetive, tendo sido
escolhido pela turma tema sobre “sumiço do meu colega ...”.

Oficina 1
Caracterização do gênero narrativa de detetive com os alunos, a partir de
perguntas como “Alguém aqui já leu histórias de detetives, já assistiu na TV, no
cinema?”, “Conhecem algum livro, filme, história ou mesmo um detetive
famoso?”, “Quais?”. Leitura de texto do gênero “O Misterioso Telefonema”
(Lourenço Cazarré). Proposição de questões sobre o gênero: levantamento de
vocabulário típico das narrativas de detetive, a presença de suspense, medo,
mistério; características do conto, relativas à sua estrutura, como tempo, espaço,
complicação, ações, resolução; análise dos personagens: o próprio detetive e o
possível antagonista; existência de duas histórias paralelas: uma que está no
passado e diz respeito ao crime ou mistério; e outra, no presente, que rege a
investigação do crime/mistério existente na primeira história. Análise da capa
da história com imagens e ilustrações que remontem à presença de
características de uma história de detetive, como suspense, mistério, investigação.

Oficina 2
A partir de três textos de gêneros diversos (conto de fada, narrativa de
detetive e narrativa de terror), identificação do texto que apresenta
características de narrativa de detetive.

Oficinas 3 a 7
Apresentação do livro “O vírus vermelho” (CARR, 1991), que acompanhará
o desenvolvimento das oficinas. Análise do título e da capa do livro, a partir
dos quais os alunos fazem uma série de inferências sobre o possível
desenvolvimento da narrativa. Leitura do livro em partes. Em cada oficina,
preenchimento de um “diário de leitura”, que auxilia na caracterização
do gênero, pela identificação das ações ocorridas no capítulo e mediante
o desafio de inferir as próximas. Após a leitura da narrativa em sua
totalidade, montagem de um cartaz, com a seqüência completa da narrativa
(situação inicial, a complicação, as ações decorrentes da complicação, a
resolução e a situação final). Na última dessas oficinas, os diários de leitura
foram reunidos, recebendo uma capa desenhada pelos alunos.

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Construindo propostas de didatização de gênero...

Oficina 8
Início da etapa de produção de narrativas de detetive. A primeira tarefa foi
realizada em duplas e consistiu na construção de um enigma. Os alunos
construíram as características que antes eram analisadas nas outras histórias
de detetive, como as duas histórias paralelas, uso do vocabulário e dos
tempos verbais adequados, presença de pistas, de mistério, seqüência de
ações, etc. Ao final desta oficina, o material produzido pelos alunos foi
recolhido para verificar o progresso da construção da história, que foi
continuada ao longo das oficinas seguintes.

Oficina 9
A partir da releitura dos mistérios produzidos na aula anterior, foi
preenchida uma ficha, que constituiu um roteiro para completar uma
narrativa de detetive. Neste roteiro, foram estabelecidas as principais
características que uma história de detetive deveria conter, como os
culpados, as vítimas, os investigadores, os motivos do mistério/crime, etc.
Tanto os mistérios quanto os roteiros foram recolhidos, para análise.

Oficina 10
A partir do mistério e do roteiro construídos anteriormente, a produção
final da narrativa de detetive é solicitada, de forma individual.

Oficina 11
Após a realização da produção final da narrativa de detetive e da análise da
professora, foi feito um trabalho de autocorreção, visto que os alunos
deveriam buscar soluções com o objetivo de melhorar sua narrativa de
detetive, sobretudo no tocante à organização textual e características do
gênero de texto em questão.

Oficina 12
As narrativas produzidas foram distribuídas a todos, para leitura e
comentários. Os próprios alunos escolheram três narrativas, para serem
“publicadas” em livrinho especial. Os critérios para esta escolha foram as
características do gênero.

366 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006


Guimarães

A tabela a seguir (figura 6) mostra que houve progresso entre a produção


inicial e a final, mas que nem todos os alunos atingiram as principais características
do gênero, ainda que todos apresentassem as marcas narrativas de complicação e
resolução em suas produções finais.

Figura 6 – Comparação entre a produção inicial e


a final nas narrativas de detetive.

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Construindo propostas de didatização de gênero...

Figura 7 – Comparação entre as produções iniciais e


finais das narrativas de detetive.

É possível observar que, desde a produção inicial, a grande maioria dos alunos
mobiliza o conteúdo temático típico das narrativas de detetives, com exceção das
subcategorias “elaboração da intriga” (40% dos alunos) e “referência temporal”
(20 % dos alunos). Após a realização da seqüência didática, o conjunto dos aprendizes
demonstra crescimento, criando situações típicas ao gênero.
Os resultados da figura 7 revelam que, já na produção inicial, os alunos
mostram conhecer os princípios de organização de uma seqüência narrativa. Estes
resultados confirmam a apropriação da seqüência narrativa, que ocorreu após a
primeira seqüência didática: os alunos habituaram-se a produzir textos orais e escritos
pertencentes aos gêneros do agrupamento narrar desde a intervenção didática
realizada na 3ª série. Todos conseguem montar uma narrativa com situação inicial,
complicação, ações dela decorrentes e resolução na produção final. No entanto,
eles apresentam dificuldades na elaboração de “avaliações”, uma vez que menos de
50% as apresentam (ainda que o percentual tenha crescido de 20% para 50%).

5 À GUISA DE CONCLUSÃO

O trabalho desenvolvido comprovou a afirmação de Schneuwly (2002) de


que se aprende a escrever a partir da apropriação dos utensílios da escrita, no sentido

368 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006


Guimarães

vygotskiano de que essa apropriação permite transformar a relação com o próprio


processo psíquico da produção de linguagem:

As pesquisas em didática mostram que o cacife da aprendizagem da escrita


– e, conseqüentemente, de sua aprendizagem – é a transformação do sistema
pela construção de um novo sistema que reorganize de outra forma os
diferentes componentes que intervêm na produção de um texto.
(SCHNEUWLY, 2002, p. 242)

A análise do produto texto, ao longo das 3 séries do Ensino Fundamental, mostrou


que um trabalho com seqüências didáticas em torno de gênero textual determinado
tem conseqüências muito produtivas nos textos dos alunos. As entrevistas realizadas
dois anos depois, com os mesmos alunos, revelaram duas questões significativas. Por
um lado, todas as narrativas orais mostraram-se disjuntas e autônomas em relação à
situação de produção, constituindo-se narrações14 (BRONCKART,1999). Por outro, a
avaliação dos alunos sobre as experiências com “oficinas de escrever” foram muito
interessantes, a começar pelo adjetivo usado por todos eles para expressar essa avaliação:
legal. Os motivos variam: “Porque antes eu não conseguia muito pensar assim pra
fazer as história(s). Agora eu (es)tou pensando melhor. Eu invento umas história(s)
melhor.” (Menina B, 11 anos, 5ª série); “Agora eu (es)to(u) escrevendo melhor.
Antes eu tinha, eu queria terminar tudo bem rápido, sabe? Daí fazia bem ligeiro.
Agora eu tenho mais calma de escrever. Eu não escrevo tão rápido” (Menina G, 10
anos, 5 série), mas todos referem o crescimento ocorrido. Retomando o exemplo da
menina S, agora com 11 anos:

S: Eu achei legais, diferentes... interessante. Eu achei legal as história(s), o


que eu mais gostei foi as histórias de detetive e as histórias em quadrinhos.
P: Hmhmm. Por quê?
S: Porque é uma coisa diferente, sei lá... as histórias em quadrinho(s) porque
eu, eu adoro ler. Eu faço minha mãe comprar pra mim todo mês uma revista
que tem uma história em quadrinho, sabe? E aí eu adoro ler história em
quadrinho. Sempre gostei de ler historinha em quadrinho. E de detetive
porque é uma história que daí tu tem que lendo, lendo, lendo cada vez mais
pra ti descobrir quem é o culpado do que aconteceu.
14
Para Bronckart, configuram-se como tipos discursivos da ordem do NARRAR, o relato interativo e a narração. A
maior diferença entre eles situa-se na sua relação com o ato de produção. Enquanto o relato apresenta marcas
lingüísticas de implicação na situação de produção (uso de dêiticos, por exemplo), a narração apresenta “caráter
disjunto-autônomo do mundo discursivo construído” (BRONCKART,1999,p.178).

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006 369


Construindo propostas de didatização de gênero...

P: Isso mesmo. E tu acha(s) que esse... esses projetos que a gente fez te
ajudaram em alguma coisa?
S: Ajudaram bastante.
P: Em...
S: No português.

Os resultados da análise das produções dos alunos, ao longo do


acompanhamento da 3ª até a 5ª série, após a aplicação das seqüências didáticas
correspondentes, revelam transformações importantes em suas capacidades de
linguagem. Os textos analisados mostram que as dificuldades relativas à organização
de seqüências narrativas foram praticamente resolvidas e que o domínio do conteúdo
temático próprio ao gênero conto de fadas e narrativa de detetive foi atingido. A
maioria dos alunos viu-se capaz de mobilizar o conteúdo temático compatível com o
gênero e de organizá-lo de maneira adequada, em função das diferentes fases de
uma seqüência narrativa, acrescentando o elemento mágico como encadeador das
ações, no conto de fadas, e encadeando as ações das personagens na progressão da
solução dos enigmas, no caso do gênero narrativa de detetive. Como comentado
anteriormente, no caso do gênero peça de teatro infantil, ainda que não tenha havido
com tanta propriedade a mobilização de conteúdo temático, ocorreu a apropriação
das estruturas semióticas características do gênero em questão.
Por outro lado, é preciso considerar que na elaboração de seqüências
didáticas, o papel do professor é fundamental. Essa foi justamente a maior dificuldade
encontrada na experiência relatada. Os resultados animaram os três docentes que
participaram dessa caminhada, mas não garantiram sua adesão como proponentes
de novas seqüências didáticas. Encontra-se, nessa questão, o obstáculo mais sério à
didatização do gênero, tal como vista pelo interacionismo sociodiscursivo. Há um
suporte teórico muito forte que deve respaldar a ação didática, mas que pode
permanecer distante do professor de ensino fundamental, se este não receber apoio
específico com este fim. Ao mesmo tempo, é preciso estar alerta para o que os
professores dizem ser trabalhar com gênero (GUIMARÃES, 2005), pois deve estar
presente a diferença entre trabalho sobre um gênero, enquanto unidade comunicativa
adaptada a uma dada situação, e trabalho sobre as seqüências15 que estão presentes
neste mesmo gênero de texto.
15
Bronckart (1999) propõe que uma das dimensões de análise da infra-estrutura textual seja a da organização
seqüencial ou linear do conteúdo temático. Enfatizando que as seqüências dialogam entre si, apresenta cinco
seqüências básicas: narrativa, descritiva, argumentativa, explicativa e dialogal.

370 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006


Guimarães

Recentes lançamentos didáticos (como BARBOSA, 2001; SOUZA, 2003;


MACHADO; LOUSADA; ABREU-TARDELLI, 2004) podem contribuir para ajudar a
caminhada docente nesta direção. O investimento no domínio desta prática e nos
sistemas formativos é longo e deve ser continuado. De qualquer modo, continuo
acreditando que o caminho para mudar a realidade da escola brasileira é um trabalho
de formação sério, que envolva prática docente e avaliação dessa prática, um fazer e
refazer das ações de linguagem, numa interação entre pesquisadores de ensino de
língua materna, preocupados em também serem formadores de docentes, e os
próprios professores da Escola Fundamental.

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Recebido em 31/10/05. Aprovado em 23/05/06.

Title: The construction of genre literacy proposals: challenges and possibilities


Author: Ana Maria de Mattos Guimarães
Abstract: Since the publication of the National Curricular Parameters (1998), the concept of genre
has become a frequent topic in the didactic debate on how to teach Portuguese in the Brazilian
school context. This work seeks to reflect about a three-year experience with didactic sequences
based on genres in an elementary school. The analysis of this experience illustrates a proposal of
how to work with genres from the perspective of socio-discursive interactionism (BRONCKART,
1999, 2004, 2005).
Keywords: genre; didactic models; didactic sequences; Brazilian school system; socio-discursive
interactionism.

Tìtre: Construisant des propositions de didactisation de genre: défis et possibilités


Auteur: Ana Maria de Mattos Guimarães
Résumé: Depuis la publication des Paramètres Curriculaires Nationaux, la notion de genre comme
instrument d’enseignement-apprentissage est devenue un point central dans le débat didactique
qui envisage l’enseignement du Portugais. Ce travail fait le rapport d’une recherche longitudinale
d’un groupe d’enfants accompagnés de la 3ème à la 5ème classe de l’enseignement fondamental.
Dans cette recherche, on a développé une expérience d’enseignement comme si c’étaient des
séquences didactiques centrées dans des genres textuels. L’analyse de cette expérience permet de
montrer ce qui signifie travailler avec des genres textuels dans la proposition théorique de
l’interactionisme sociodiscursif (BRONCKART, 1999, 2004, 2005).
Mots-clés: genre de texte; modèle didactique; séquence didactique; enseignement fondamental;
interactionisme sociodiscursif.

Título: Construyendo propuestas para la didáctica de género: desafíos y posibilidades


Autor: Ana Maria de Mattos Guimarães

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006 373


Construindo propostas de didatização de gênero...

Resumen: Desde la Publicación de los Parámetros Curriculares Nacionales, la noción de género


como instrumento de enseñanza-aprendizaje pasó a ser un tema frecuente en el debate didáctico
de cómo enseñar portugués. Este trabajo relata una investigación longitudinal de un grupo de
chicos acompañados del tercer hasta el quinto año de la enseñanza fundamental. En esta investigación
se desarrolló una experiencia de enseñanza con secuencias didácticas basadas en géneros textuales.
El análisis de esta experiencia ilustra una propuesta de trabajo con géneros textuales dentro de la
propuesta teórica del interaccionismo sociodiscursivo (BRONCKART, 1999, 2004, 2005).
Palabras-clave: género de texto; modelo didáctico; secuencia didáctica; enseñanza fundamental;
interaccionismo sociodiscursivo.

374 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 347-374, set./dez. 2006


Baltar, Nardi, Ferreira e Gastaldello

CIRCUITO DE GÊNEROS: ATIVIDADES SIGNIFICATIVAS DE


LINGUAGEM PARA O DESENVOLVIMENTO DA
COMPETÊNCIA DISCURSIVA

Marcos Baltar*
Fabiele Stockmans de Nardi**
Luciane Todeschini Ferreira***
Maria Eugênia Gastaldello****

Resumo: Este estudo, que tem como base conceitual o quadro do Interacionismo Sociodiscursivo,
é fruto da análise de atividades de sala de aula que vêm sendo sistematizadas no projeto de pesquisa-
ação UCS-PRODUTORE, cujo propósito é investigar a natureza da formação inicial e continuada de
professores de Língua Portuguesa. O principal objetivo desse artigo é discutir a potencialidade do
trabalho com a ensinagem de diversos gêneros textuais que circulam em diferentes ambientes
discursivos da sociedade, extrapolando a dimensão exclusivamente escolar, por meio de uma
atividade didático-pedagógica denominada Circuito de Gêneros, a qual busca desenvolver nos
usuários da língua a sua competência discursiva.
Palavras-chave: ensino; estratégia; gênero textual; atividade de linguagem; competência discursiva.

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho analisa a experiência oriunda de uma atividade de sala de aula,


que vem sendo sistematizada no projeto UCS-PRODUTORE, pesquisa-ação associada
à formação continuada de professores de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental,
desenvolvida na Universidade de Caxias do Sul. Trata-se de uma proposta de ensinagem
centrada na produção de textos que circulam em diversos ambientes discursivos, a
partir da leitura responsiva de um gênero, considerado como texto gerador para
outras produções.

*
Professor da Universidade de Caxias do Sul – UCS. Doutor em Lingüística. E-mail: <marbalta@ucs.br>.
**
Professora da UCS. Mestre em Letras. E-mail: <fabielestockmans@hotmail.com>.
***
Professora da UCS. Mestre em Comunicação e Semiótica. E-mail: <ltferrei@ucs.br>.
****
Professora da UCS. Mestre em Educação. E-mail: <maeu@terra.com.br>.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006 375


Circuito de gêneros ...

O quadro teórico de base é o Interacionismo Sociodiscursivo, teoria cujos


preceitos encontram-se em contínua construção e a partir da qual é possível postular
que o conhecimento e a apropriação dos gêneros textuais que circulam na sociedade
é uma condição basilar para o desenvolvimento da competência discursiva dos
usuários de uma língua.
O artigo inicia com a apresentação do quadro de referências teóricas, seguido
do relato e da análise do trabalho com o Circuito de Gêneros.

2 QUADRO TEÓRICO DO ISD

A proposta de ensinagem da leitura e da produção de textos em língua materna


(e, também, estrangeira), dentro do quadro teórico do Interacionismo
sociodiscursivo (ISD), permite estender a prática didático-pedagógica,
tradicionalmente circunscrita ao gênero textual redação escolar, na sua configuração
tradicional: dissertação, narração e descrição, para o trabalho com a diversidade
dos gêneros textuais produzidos ao longo do tempo que circulam na sociedade.
Trata-se de uma proposta de ensinagem que possibilita o acesso aos textos disponíveis
no inventário socioistórico – arquitexto – para serem atualizados à medida que os
usuários da língua entrem em interação por meio de uma atividade de linguagem.
O ISD define atividade de linguagem como um fenômeno coletivo de
elaboração e prática de circulação de textos, cujo objetivo é estabelecer uma
compreensão do contexto e das propriedades das atividades em geral; trata-se de
uma meta-atividade que (re) semiotiza as representações humanas no quadro das
possibilidades disponíveis de uma língua natural. Quanto à noção de ação de
linguagem, o ISD a define como uma parte dessa atividade, cuja responsabilidade
é imputada a um ator singular.
Como toda ação, a ação de linguagem apresenta ao mesmo tempo uma
dimensão comportamental ou física (ela requer um ato de tomada da fala ou da
escrita de um agente inscrito no espaço-tempo, eventualmente em co-presença com
outros agentes) e uma dimensão social (ela se inscreve em uma forma de interação
que pré-determina os objetivos que podem ser almejados e que consagra aos
emissores e receptores um papel social específico). Como as outras ações, igualmente
a ação de linguagem pode ser vista sob um ângulo externo, isto é o que acontece
quando uma situação física, papéis, objetivos, motivos são imputados ao agente/ator
verbal ou quando cientistas procedem à descrição-análise desses fatores (que é um

376 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006


Baltar, Nardi, Ferreira e Gastaldello

caso particular de avaliação social). Mas ela tem também um estatuto interno ou
internalizado que nunca é acessível diretamente ou enquanto tal (e que na investigação
é objeto de hipóteses): trata-se das representações de sua situação material e de seu
posicionamento social forjadas por esse agente/ator verbal.
As atividades e ações de linguagem são consideradas como pertencentes a
um nível de apreensão pré-lingüístico, visto que os fenômenos estudados e as noções
que correspondem a esses fenômenos devem sempre poder ser analisados e definidos
sem levar em conta ou sem prejudicar as propriedades lingüísticas das realizações
verbais efetivas que as semiotiza, num quadro de uma língua natural dada.
Os lugares ou instituições sociais em que se organizam diferentes formas de
produção com respectivas estratégias de compreensão, em que ocorrem as atividades
a as ações de linguagem, por meio de gêneros textuais e de textos empíricos, são
denominados ambientes discursivos. Determinadas atividades e ações de
linguagem, realizadas potencialmente por gêneros textuais específicos, ocorrem,
notadamente, mais em um ambiente discursivo do que em outro.
A noção de texto da qual se utiliza o ISD se assemelha à noção bakhtiniana
de enunciado/texto/discurso; ou seja, trata-se da unidade comunicativa verbal: oral
ou escrita, gerada por uma ação de linguagem, acumulada historicamente “no mundo
das obras humanas”, que os indivíduos utilizam para interagir uns com os outros
nos diferentes ambientes discursivos da sociedade. Os textos, de acordo com suas
características estruturais e funcionais, como unidades de interação verbal humana,
podem ser classificados em gêneros textuais, o que garante sua indexação no
inventário geral historicamente construído pela interação humana denominado
arquitexto. Nesse recorte do mundo das obras humanas estão os textos etiquetados
em gêneros de textos, que são atualizados cada vez que ocorre uma ação de linguagem,
e, portanto sempre suscetíveis de uma carga de novo aportada pelo estilo individual
dos interlocutores e pelas restrições contextuais das atividades e das ações de
linguagem produzidas historicamente. Se não fosse assim, como havia advertido
Bakhtin (1997), a cada nova interação seria necessário criar um novo gênero textual.
O reconhecimento e a escolha de um gênero que mediatiza o interagir verbal é a
primeira instância da interação verbal humana e é sempre dependente de uma ação
geral não verbal que se processa num determinado tempo e lugar social. Dito de
outra forma, onde há interação verbal há o exercício feito pelos interactantes de
mobilizar e atualizar um gênero indexado ao arquitexto, cujo produto será um texto
empírico, de extensão indeterminada: desde um pedido de “socorro” até um livro

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006 377


Circuito de gêneros ...

com centenas de páginas, dependendo da atividade interativa que está em jogo. A


duração do texto empírico é limitada pelo momento em que o locutor inicia a
interlocução até o momento em que a finaliza, na oralidade ou na escrita. Sua
textualização leva em conta mecanismos de coerência temática: conexão e coesão, e
posicionamento enunciativo (modalização e voz), categorias que estão a serviço da
interação verbal entre os interlocutores. A produção de um novo texto empírico
sempre modifica o inventário histórico já construído dos gêneros textuais,
denominado arquitexto, contribuindo para a sua constante renovação ao longo da
história da interação humana. Os avanços tecnológicos da sociedade e as
características de estilo de cada indivíduo ao mobilizar uma língua natural são
responsáveis pelo constante estado ad hoc do arquitexto.
O ISD considera que há espécies de textos, funcionando como unidades
relativamente estáveis1 disponíveis no arquitexto, criadas historicamente pela prática
social: atividades gerais e atividades de linguagem, circulando nos diversos ambientes
discursivos, que os usuários de uma língua natural escolhem e atualizam quando
participam de uma atividade de linguagem, de acordo com o efeito de sentido que querem
provocar nos seus interlocutores. É o trabalho de análise e de conceitualização dessas
espécies de textos que dá origem à noção empregada pelo ISD de gêneros textuais.
Ao propor o trabalho com a diversidade de textos que circulam nos mais
variados ambientes discursivos da sociedade, o quadro de ISD exposto em Bronckart
(1999) permite depreender um trabalho de ensinagem de textos a partir da análise
de suas dimensões cotextual (composição infra-estrutural, atitudes discursivas
predominantes, seqüências textuais a serviço da textualização) e contextual (os
ambientes discursivos, os suportes textuais em que ocorrem as atividades e ações de
linguagem, o papel dos interlocutores na interação e o funcionamento dos gêneros
nos ambientes discursivos), visando à apropriação dos gêneros como estruturas
relativamente estáveis à disposição dos usuários de uma língua para a interação
sociodiscursiva.
Nessa perspectiva, o conhecimento dos textos que circulam na sociedade, de
suas características e dos efeitos que produzem na interação social entre os usuários
da língua é condição indispensável para que os professores, na sua atuação como
mediadores dos trabalhos de leitura e releitura, de escrita e reescrita desses textos,
possam ajudar seus estudantes a desenvolverem sua competência discursiva (BALTAR,
2004). Ou seja, à medida que os usuários da língua constatam que determinados gêneros

1
Termo tomado de empréstimo a Bakhtin (1986).

378 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006


Baltar, Nardi, Ferreira e Gastaldello

textuais circulam em determinados ambientes discursivos e, paulatinamente, se


apropriam das estruturas relativamente estáveis em suas reais condições de produção
como leitores e produtores responsivos, desenvolverão sua competência discursiva
para poder transitar na sociedade. A Competência discursiva é um amálgama de
capacidades que o usuário de uma língua natural atualiza e concomitantemente
desenvolve, quando participa das atividades situadas de linguagem que ocorrem nos
diversos ambientes discursivos da sociedade. Além de capacidades lingüísticas, textuais
e sociocomunicativas, para viver de forma autônoma, esse usuário necessita
compreender as diferentes formações discursivas e os respectivos discursos que
compõem os ambientes discursivos dessa sociedade. Dominar a maior gama possível
de gêneros textuais, orais e escritos, disponíveis no inventário construído
socioistoricamente contribui para o usuário desenvolver sua competência discursiva,
já que é por intermédio dos gêneros textuais que se dá toda a interação sociodiscursiva.
A competência discursiva do usuário de uma língua abarca todas essas capacidades, é
dinâmica e está em constante desenvolvimento, pois é atualizada a cada momento em
que ele participa de uma atividade situada de linguagem, de forma ativa e responsiva.
Isso vai ao encontro da proposta de Bronckart (1985, 1999, 2004, 2006),
considerando a atividade de linguagem como uma característica própria da atividade
social dos homens. As atividades de linguagem podem ser também consideradas
como eventos discursivos (unidades sociológicas, coletivas) dentro de zonas de
cooperação social determinadas – os ambientes discursivos ou, ainda, os lugares
das formações sociais discursivas. Elas são o princípio constitutivo das ações de
linguagem (unidades psicológicas, individuais), imputadas aos usuários da língua
e organizadas em torno de unidades verbais2: os textos e os discursos.
Esse quadro teórico sugerido por Bronckart (1985, 1999, 2004, 2006) abre
grande possibilidade para os professores de língua materna e/ou estrangeira ajudarem
seus estudantes a desenvolver a competência discursiva por intermédio do trabalho
com textos, associando a leitura e a produção desses textos às atividades de linguagem
e aos lugares sociais/ambientes discursivos em que de fato ocorre a interação social.
Além disso, sob o prisma da ensinagem da produção e da recepção, o acesso
aos diversos gêneros de textos que estão circulando na sociedade, considerados por
Schneuwly e Dolz (2004) como megainstumentos de interação social, possibilita ao
professor quebrar o paradigma do trabalho monológico com a redação escolar,

2
Embora em Bronckart (1999) se leia ‘unidades verbais’, é conveniente ampliar a noção de textos e discursos para
unidades semióticas, extrapolando a noção do verbal.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006 379


Circuito de gêneros ...

gênero de circulação limitada ao ambiente discursivo escolar; e do uso do texto


como pretexto para os exercícios estruturais, quase sempre prescritivos, acerca da
gramática da língua.
Esse trabalho possibilita aos estudantes ler e escrever os textos que necessitam
saber para interagir socialmente: desde um bilhete até uma carta de pedido de
emprego; desde uma resenha até um artigo científico; desde uma receita até um
manual de instruções; desde um boletim de ocorrência até uma procuração; desde
um anúncio classificado até um conto.
Desse modo, no intuito de ampliar o universo conceitual dos sujeitos
envolvidos no processo de ensinagem, na perspectiva do ISD, cabe antes trabalhar
com o desenvolvimento da competência discursiva por meio de atividades e ações
de linguagem significativas e situadas nos variados ambientes discursivos, do que
com a língua apenas enquanto sistema. Essa abordagem permite potencializar a
escola e a sala de aula para o trabalho com todos os gêneros textuais possíveis,
podendo inclusive contar com a escolha conjunta dos sujeitos envolvidos (estudantes
e professores) acerca daqueles mais convenientes, segundo o programa de estudos
de cada série.

3 CIRCUITO DE GÊNEROS

A atividade que denominamos Circuito de Gêneros surgiu da necessidade de


criar um espaço propício para o vicejamento da versatilidade lingüístico-discursiva
dos estudantes ao trabalhar, em um curto espaço de tempo, com vários gêneros
textuais que circulam em ambientes discursivos diversos, com um grupo de estudantes
para quem o contato com esses gêneros serviria como uma forma de, não só
reconhecer a variedade dos gêneros com os quais interagimos, como também
experimentar sua produção, mobilizando os conhecimentos necessários para tanto.
Foi com tal propósito que desenvolvemos essa atividade didático-pedagógica, cujo
núcleo é a possibilidade de trabalharmos a produção de gêneros variados a partir de
um gerador (conto, carta, filme, entre outros), evitando, assim, que a atividade se
restrinja à descrição desses gêneros. Partimos, então, de um conto para propor a
produção de novos textos/gêneros, oriundos de atividades de linguagem plausíveis,
a partir do desvelamento do enredo da narrativa.
O trabalho com o Circuito de Gêneros inicia pela leitura do texto gerador, em
nosso caso, o conto de Calvino (1990) Marcovaldo e as estações na cidade, cujas

380 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006


Baltar, Nardi, Ferreira e Gastaldello

características possibilitam ao estudante construções operatórias reversíveis, uma vez


que seu enredo, revestido de uma aparente simplicidade, guarda uma rica complexidade
a ser explorada, tanto no que diz respeito à sua construção como um gênero do ambiente
discursivo literário quanto às possibilidades interpretativas que gera.
O processo heurístico que subsidia esse trabalho oportuniza um
monitoramento diferenciado, tanto por parte do professor, quanto por parte dos
estudantes, uma vez que envolve atividades metacognitivas de ambos, criando espaços
para atividades de ensinagem auto-reguladas que promovem o desenvolvimento da
autonomia interativa dos estudantes.
Assim, fica evidente que o reconhecimento da estrutura do gênero não pode,
de fato, ser a finalidade última dessa atividade, que precisa levar o estudante a um
trabalho interpretativo em que ele encontre a possibilidade de expressar o manancial
de cenários e representações criadas a partir da compreensão do funcionamento do
texto/gênero textual na atividade de linguagem que está em jogo. As imagens
construídas mobilizam os saberes por ele já interiorizados, criando a possibilidade
de conexões entre esse imaginário descortinado pelo texto literário e suas vivências
dentro do processo de interação sociodiscursiva.
A imersão no texto também permite a identificação do papel sociointerativo
das personagens no conto. Parte-se da imagem que o estudante tem dessas
personagens para o reconhecimento dos elementos lingüístico-textual-discursivos
que subsidiam tal construção, movimento que oferece ao estudante a possibilidade
de visualizar, também, o lugar ocupado por essas personagens no enredo e, portanto,
construir inferências sobre os espaços da esfera social que o texto reconstrói.
O tratamento com vespas, cujo enredo envolve, em síntese, uma personagem
chamada Marcovaldo, que descobre, por meio de uma notícia de jornal lida por um
amigo reumático, um possível tratamento para o reumatismo – doença que assola a
população de sua pacata cidade –, foi escolhido por ser altamente provocativo,
gerando cenários variados e podendo desencadear uma série de atividades e ações
de linguagem. O tratamento desenvolvido por Marcovaldo é um procedimento não
muito convencional que utiliza picadas de abelhas diretamente aplicadas no local da
dor. A invenção da personagem cria fama e Marcovaldo, envolvendo mulher e filhos
no negócio, transforma sua casa em um consultório, passando a atender ali toda a
população. Eis que de repente acontece um acidente na coleta das abelhas e um
enxame raivoso adentra sua casa, atacando os seus pacientes que, juntamente com o
“curandeiro”, terminam no hospital.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006 381


Circuito de gêneros ...

Como mencionamos acima, após a leitura do conto, o professor orienta a


classe no intuito de desencadear um processo criativo que remeta a atividades de
linguagem e a gêneros textuais passíveis de serem atualizados pelos envolvidos nesse
enredo. Algumas conjecturas são feitas, tais como a indignação dos pacientes de
Marcovaldo que, com o desfecho da história, resolvem dar queixa na polícia,
registrando, para isso, um Boletim de Ocorrência. O delegado resolve, então,
abrir um Inquérito e despacha uma Intimação para Marcovaldo, que deverá
comparecer na delegacia para prestar um Depoimento. Assustado, Marcovaldo
busca a ajuda de um advogado que lhe solicita uma Procuração. Na seqüência
podem surgir outros gêneros textuais do ambiente discursivo jurídico, os quais a
maioria dos estudantes ignora, o que indica a possibilidade de um trânsito por esse
ambiente discursivo muito pouco explorado na escola.
À medida que o professor estimula e legitima a mobilização do universo
imaginário dos leitores, a discussão do texto pode, também, encaminhar-se para
outras direções, como aquela em que Marcovaldo, apesar de reconhecer os
problemas da primeira experiência, não contém seu entusiasmo e decide ir adiante
com a produção de seu “emplasto milagroso”. Vai até a agência publicitária da
cidade e encomenda uma campanha para o lançamento de seu produto, o Vespol,
Abelhol, ou qualquer que seja o nome do remédio, escolhido pela turma. Surge a
necessidade de criar um Rótulo, uma Bula, um Fôlder, um Anúncio Publicitário
para publicar no jornal da cidade e até um “Outdoor”. Na cidade não se fala de
outra coisa, portanto, o editor do periódico local, depois de ter divulgado a Notícia,
na primeira capa do diário, encomenda ao seu repórter mais experiente uma
Reportagem completa sobre o evento. O repórter sai em busca de pesquisas acerca
de remédios dessa natureza; Entrevista especialistas, médicos, cientistas; pesquisa
na internet Artigos de divulgação científica; lê periódicos que publicam Artigos
científicos para com isso embasar sua matéria. A edição do jornal causou furor no
biólogo da cidade que, indignado, escreve uma Carta de leitor à redação do jornal,
protestando contra o uso de animais em práticas ilegais de curandeirismo. O
intelectual envia um Artigo de opinião, o jornal posiciona-se sobre o caso em seu
Editorial explicitando a matéria. Os comentários são gerais em todo canto da cidade.
Alguns moradores fazem Telefonemas, outros escrevem Cartas, outros ainda enviam
E-mails. Um internauta resolve criar um Fórum de Debates sobre o assunto, e o
Circuito está desencadeado.
Como é possível observar, essa proposta acaba propiciando um passeio por
ambientes discursivos muito diversos, fazendo com que os participantes realizem

382 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006


Baltar, Nardi, Ferreira e Gastaldello

atividades de linguagem variadas, percebendo as adequações necessárias à sua


atuação em cada uma dessas situações sociodiscursivas, modulações tais que
constituem etapas da dinâmica de auto-regulagem, potente recurso pedagógico no
que tange à conquista de destrezas sociointerativas dos sujeitos envolvidos.
É possível acrescentar, ainda, que essas estratégias didático-pedagógicas, de
caráter exploratório, são altamente significativas, visto que permitem acionar o
conhecimento prévio do estudante, criando um cenário legítimo de estímulo ao
processo inferencial, capaz de fazê-lo atualizar os diferentes gêneros que deveriam
ser mobilizados dentro de atividades de linguagem plausíveis, reconhecendo os
ambientes discursivos em que poderiam circular essas personagens. Oportuniza-se,
assim, a atualização da habilidade de construção-desconstrução-reconstrução
envolvendo diferentes níveis de complexidade operatória do estudante, e
potencializando seu trânsito entre múltiplas instâncias de saber, condição
indispensável à evolução do processo sociointerativo.
Além dos gêneros textuais anteriormente relacionados, são muitos os que
podem vir a ser produzidos em um Circuito de Gêneros, o que dependerá, diretamente,
do texto selecionado como gerador da atividade. Enquanto o conto de Calvino propicia,
por exemplo, que os estudantes cheguem à construção de um produto a ser colocado
no mercado, no caso o medicamento para a cura do reumatismo, o que os leva à
construção, por exemplo, de uma Embalagem, do Rótulo do medicamento, da
Bula que o acompanhará, etc.; outros contos, como é o caso de O gato preto, de
Edgar Allan Poe, levam os estudantes a buscar gêneros como o Boletim de
ocorrência, Participação de falecimento, etc., o que revela o potencial desafiador
da atividade proposta, no sentido de oferecer um alto grau de liberdade para a
manifestação da verve criativa dos estudantes. Muito produtivo, também, tem se
mostrado a proposição do circuito partindo do trabalho com um gênero do ambiente
discursivo jornalístico: Anúncios classificados, que funcionaria como gerador de
Reportagem, Entrevista, até de um gênero do ambiente discursivo literário como
o Conto, envolvendo personagens em um enredo que tenha como input o objeto
que está sendo anunciado. Considera-se produtivo esse trabalho não pelo fator
quantitativo de textos gerados a partir de um gênero, mas pela capacidade de
reconhecimento dos diferentes ambientes discursivos e pela possibilidade da
apropriação dos respectivos gêneros textuais que ali circulam. Em outras palavras, o
trânsito pelos diferentes ambientes discursivos e o domínio dos gêneros textuais são
componentes decisivos para o desenvolvimento da competência discursiva, uma vez

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006 383


Circuito de gêneros ...

que permitem aos usuários da língua interagir de maneira autônoma e potencialmente


resolutiva na sociedade.

3.1 A testagem da proposta na formação continuada


O trabalho com o circuito de gênero foi operacionalizado no primeiro
semestre de 2005, em duas instâncias sociais distintas: inicialmente na Universidade
de Caxias do Sul, com estudantes das disciplinas de Língua Portuguesa Instrumental
(doravante LPI) – de diversos cursos de graduação – e Estudo e Produção de Textos
II – curso de Letras e, num segundo momento, nas oficinas de ensinagem de gêneros
textuais, ministradas aos professores em formação continuada, das redes municipais
de ensino das cidades de Caxias do Sul e de Flores da Cunha, parceiras formais do
projeto de pesquisa-ação UCS-PRODUTORE. O trabalho com os estudantes de LPI
funcionou como “pilotagem” para a aplicação, subseqüente, junto aos estudantes de
Letras – formação inicial – e, posteriormente, junto aos professores envolvidos nas
oficinas de formação continuada. O foco de análise dos dados obtidos restringir-se-
á às experiências vividas junto aos professores que participaram das oficinas de
formação continuada.
As oficinas oferecidas, com duração de 20h cada, envolveram, por adesão
espontânea, uma média de 15 professores de Caxias do Sul e uma média de 10
professores de Flores da Cunha, atuantes no Ensino Fundamental, nas séries iniciais
e finais, em locais e momentos diferentes. Ao longo das oficinas, antes da atividade
envolvendo o circuito de gêneros foi feita uma explicitação acerca das potencialidades
de ensinagem a partir dos gêneros textuais, valendo-se das contribuições do
interacionismo sociodiscursivo de Bronckart (1985, 1999, 2005, 2006), da teoria
do discurso expressa em Bakhtin (1997), bem como do conceito de competência
discursiva proposto em Baltar (2004).
As oficinas enfatizaram que a apropriação de um gênero, para o
desenvolvimento da competência discursiva, é um processo envolvendo,
concomitantemente, a aquisição (o conhecimento do gênero e a apropriação da
sua estrutura relativamente estável), o refinamento (a implementação de um
processo de leitura e releitura, escrita e reescrita, que permita o trabalho do sujeito
sobre essa estrutura relativamente estável que é o gênero) e a orquestração de
habilidades (a capacidade de atualização desses conhecimentos adquiridos pelo
sujeito dentro de uma atividade situada de linguagem na interação social).
Constatou-se de início que os professores conheciam de forma incipiente
dinâmicas didático-pedagógicas envolvendo a noção de gêneros textuais e que suas

384 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006


Baltar, Nardi, Ferreira e Gastaldello

expectativas encontravam-se mais centradas em aspectos metodológicos do que em


questões epistemológicas, fatores levados em conta na operacionalização da oficina. É
possível dizer que esse trabalho provocou curiosidade, desencadeou motivação e gerou
envolvimento, acionando a imaginação dos professores para a amplitude das estratégias
de ensinagem a partir do trabalho com os gêneros textuais. Ao acionar a imaginação
foi deflagrado um clima de ludicidade entre os participantes, conferindo leveza à
experiência didático-pedagógica. Não obstante essa leveza oriunda do lúdico-prazeroso,
a equipe da pesquisa-ação atuou no sentido de sensibilizar os professores para
compreender a necessidade de dominar uma matriz teórica consistente a fim de que
possam fazer os desdobramentos e as adequações didático-pedagógicos de forma criativa
e inovadora, propondo outras atividades que envolvam a ensinagem de gêneros.
Se, por um lado, o contato do grupo de professores com essa atividade tornou
visível tanto os seus conhecimentos prévios e partilhados quanto suas dificuldades e
fragilidades em relação à ensinagem dos gêneros textuais, advindas de sua formação
inicial, por outro lado, esse contato descortinou para esses sujeitos a possibilidade
de ruptura de tradicionais procedimentos didático-pedagógicos os quais provocam
a varredura do prazer de aprender.
As atividades envolvendo o circuito de gêneros propiciaram a redescoberta
da dimensão laboratorial do processo de ensinagem, devolvendo à escola sua
verdadeira configuração: a de uma instância privilegiada de investigação e
experimentação. Sob essas circunstâncias, o grupo de professores foi provocado a
revitalizar sua ação didático-pedagógica que, não mais capitaneada apenas por
conteúdos pré-determinados, passaria a incorporar, de forma interativa, os interesses
e necessidades dos estudantes, delineando o mapeamento do programa de estudos,
em direção à competência discursiva.
Diante do interesse demonstrado e da intencionalidade declarada pelos
participantes da oficina do circuito de gêneros, a coordenadora pedagógica da SMED
de Flores da Cunha solicitou assessoria à equipe do UCS-PRODUTORE, visando
subsidiar o planejamento dos professores para o ano letivo de 2006, no tocante a
atividades equivalentes vivenciadas pelo grupo.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência aqui relatada, fruto da pesquisa-ação UCS-PRODUTORE,


procurou demonstrar a potencialidade de um trabalho didático-pedagógico de
ensinagem de gêneros textuais, a partir de atividades significativas de linguagem,

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006 385


Circuito de gêneros ...

possibilitando de forma lúdica e prazerosa o desenvolvimento da competência


discursiva dos usuários de uma língua, extrapolando o ambiente discursivo escolar
e viabilizando o trânsito dos estudantes em outras instâncias de interação. A atividade
do circuito de gêneros foi desenvolvida com os professores das redes municipais de
Caxias do Sul e de Flores da Cunha.
No tocante à formação continuada dos professores que atuam nessas cidades,
é possível dizer que o trabalho funcionou como sensibilização acerca dessa proposta
de ensinagem, o que demanda um monitoramento sistemático tanto por parte dos
órgãos gestores quanto por parte dessa equipe de pesquisa-ação. No caso de Caxias
alguns professores têm continuado o trabalho, mantendo interlocução sistemática
com essa equipe, produzindo projetos de ensinagem por meio de gêneros textuais,
como jornais e rádios escolares. Em Flores da Cunha, em decorrência dessa assessoria
para o planejamento da disciplina de Língua Portuguesa no ano letivo de 2006, a
convite da SMED, essa equipe de pesquisa-ação promoveu, no primeiro semestre,
uma segunda oficina de ensinagem de leitura de gêneros textuais de diversos
ambientes discursivos, que será monitorada, como dispositivo integrante dessa
pesquisa-ação, cuja meta é estender-se para outros municípios da área de abrangência
da Universidade de Caxias do Sul.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.


BALTAR, M. A. Competência discursiva e gêneros textuais: uma experiência com o
jornal de sala de aula. Caxias do Sul: EDUCS, 2004.
BRONCKART, J.P. et al. Le fonctionnement des discours: un modèle psychologique et
une méthode d’analyse. Lausanne: Delachaux & Niestlé, 1985.
______. Atividade de linguagem, textos e discursos. Trad. de Anna Rachel
Machado. São Paulo: EDUC, 1999.
CALVINO, I. O tratamento com vespas. In: ______. Marcovaldo e as estações na
cidade. Trad. de José C. Barreiros. Lisboa: Teorema, 1990. p. 33-38.
SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Trad. e org. de Roxane
Rojo e Glaís S. Cordeiro. São Paulo: Mercado de Letras, 2004.

Recebido em 24/10/05. Aprovado em 28/07/06.

386 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006


Baltar, Nardi, Ferreira e Gastaldello

Title: Genre chain: significant language activities for the development of discursive competence
Author: Marcos Baltar, Fabiele Stockmans de Nardi, Luciane Todeschini Ferreira, Maria Eugênia
Gastaldello
Abstract: This study, based on the conceptual framework of socio-discursive interactionism, results
from the analysis of school activities currently being systematized in the action-research project
UCS-PRODUTORE, which aims at investigating the nature of pre-service and in-service education
programs for teachers of Portuguese. The main objective of this article is to discuss the advantages
of teaching, beyond the school dimension, several textual genres which circulate in different discursive
environments, through a didactic-pedagogical activity called Genre Chain, which attempts to develop
the discursive competence of the language users.
Keywords: teaching; strategy; genre; language activity; discursive competence

Tìtre: Circuit de genres: activités significatives de langage pour le développement de la compétence


discursive
Auteur: Marcos Baltar, Fabiele Stockmans de Nardi, Luciane Todeschini Ferreira, Maria Eugênia
Gastaldello
Résumé: Cette étude, qui a comme base conceptuelle le tableau de l’Interactionisme Sociodiscursif,
est le fruit d’une analyse d’activités développées dans les salles de classe qui sont en train d’être
systématisées dans le projet de recherche-action UCS-PRODUTORE, dont la proposition est celle de
rechercher la nature de formation initiale et continue de professeurs de Langue Portugaise. L’objectif
principal de cet article envisage discuter la potentialité du travail avec l’enseignement de plusieurs
genres textuels qui circulent dans divers milieux discursifs de la société, dépassant la dimension
exclusivement écolière, par le moyen d’une activité didactique-pédagogique appelée Circuit des
Genres, qui cherche à développer chez les usagers de la langue leur compétence discursive.
Mots-clés: enseignement; stratégie; genre textuel; activité de langage; compétence discursive.

Título: Circuito géneros: actividades significativas de lenguaje para el desarrollo de la competencia


discursiva
Autor: Marcos Baltar, Fabiele Stockmans de Nardi, Luciane Todeschini Ferreira, Maria Eugênia
Gastaldello
Resumen: Este estudio, que tiene como base conceptual el cuadro del Interaccionismo
Sociodiscursivo, es fruto del análisis de actividades de clases que están siendo sistematizadas en el
proyecto de investigación-acción UCD-PRODUTORE, cuyo propósito es investigar la naturaleza de
la formación inicial y continuada de profesores de lengua portuguesa. El objetivo principal de este
artículo es discutir la potencialidad del trabajo como la enseñanza de diversos géneros textuales
que circulan en diferentes ambientes discursivos de la sociedad, excediendo la dimensión
exclusivamente escolar, por medio de una actividad didáctico-pedagógica llamada Circuito de
Géneros. Esta busca desarrolar en los usuarios de la lengua su competencia discursiva.
Palabras-clave: enseñanza; estrategia; género textual; actividad de lenguaje; competencia
discursiva.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 375-387, set./dez. 2006 387


Vian Jr.

GÊNEROS DISCURSIVOS E CONHECIMENTO SOBRE


GÊNEROS NO PLANEJAMENTO DE UM CURSO DE
PORTUGUÊS INSTRUMENTAL PARA CIÊNCIAS CONTÁBEIS*

Orlando Vian Jr.**

Resumo: Este artigo tem como objetivo relatar uma experiência de planejamento de um curso de
português instrumental na área de Ciências Contábeis. Meu ponto de partida está no conceito de
gênero discursivo da perspectiva sistêmico-funcional de linguagem (HALLIDAY; HASAN, 1989;
MARTIN, 1992; EGGINS, 1994; THOMPSON, 1996; EGGINS; MARTIN, 1997), no conceito do
conhecimento sobre gêneros (BERKENKOTTER; HUCKIN, 1995), associado ao conhecimento
partilhado pelos usuários ao utilizarem gêneros escritos (JOHNS, 1997), além de aspectos
relacionados ao planejamento de cursos instrumentais (ROBINSON, 1991; HUTCHINSON; WATERS,
1987). Relato, em um primeiro momento, como tais conceitos foram operacionalizados para sua
implementação pedagógica. Em seguida, apresento algumas atividades desenvolvidas, bem como
as percepções dos alunos sobre tais atividades.
Palavras-chave: gênero discursivo; aprendizagem; lingüística sistêmico-funcional; português
instrumental.

“But ‘glory’ doesn’t mean a ‘nice-knockdown argument’, Alice objected.


“When I use a word”, Humpty Dumpty said, in rather a scornful tone,
“it means just what I choose it to mean – neither more nor less”.
(Lewis Carroll, Through the looking-glass)

1 O ENSINO DE PORTUGUÊS INSTRUMENTAL EM CURSOS DE


GRADUAÇÃO

É típico para o professor de ensino superior no Brasil a situação de iniciar


um curso e deparar com alunos com uma formação deficitária, que chegam ao nível
superior com um embasamento fraco tanto em conhecimentos gerais como em
conhecimentos lingüísticos, principalmente devido ao fato de o ensino médio não

*
Agradeço aos alunos do 1º ano matutino de Ciências Contábeis de 2005 do Centro Universitário UniFecap pela
participação no projeto e disponibilização de suas atividades e exercícios.
**
Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da UniFECAP. Doutor em Lingüística aplicada. E-mail:
<orlandovianjr@uol.com.br>.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006 389


Gêneros discursivos e conhecimento sobre gêneros ...

preparar os alunos para a vida acadêmica e também pelo fato de o ensino ser
descontextualizado, não lidando com necessidades específicas relacionadas à vida
escolar em si, ao próprio aprender ou a estratégias de estudos requeridas de forma
mais constante no ensino superior que incite o aprender a aprender.
É claro que contribuem significativamente para esse contexto as
transformações pelas quais vem passando o ensino de língua portuguesa, além das
novas condições sociais de acesso à universidade, também em constante mudança
nos últimos anos. Esse panorama dá ao ensino da língua um novo referencial, como
aponta Soares (1998, p. 57):

O quadro referencial para o ensino da língua passa então a ser a teoria da


comunicação, e a concepção de língua é a de instrumento de
comunicação. O ensino-aprendizagem da gramática e do texto, este
considerado modelo de língua “bem escrita”, perde sua proeminência; os
objetivos são, agora, pragmáticos e utilitários: trata-se de desenvolver a
aperfeiçoar os comportamentos do aluno como emissor-decodificador e
como recebedor-decodificador de mensagens, pela utilização e
compreensão de códigos diversos – verbais e não-verbais. Ou seja: já não
se trata mais de levar ao conhecimento do sistema lingüístico – ao saber a
respeito da língua – mas ao desenvolvimento das habilidades de expressão
e compreensão de mensagens – ao uso da língua. [aspas e grifos da autora]

Este é o cenário que funciona como ponto de partida para o trabalho relatado
neste artigo: uma experiência desenvolvida juntamente a alunos de primeiro ano de
um curso de Ciências Contábeis em uma Instituição de Ensino Superior (IES, daqui
por diante) particular na cidade de São Paulo, que utilizam a modalidade escrita da
língua materna para desenvolver tarefas acadêmicas que não lhes foram previamente
ensinadas, uma vez que o ensino de língua materna, mais especificamente no ensino
médio, e principalmente pelo famigerado e desvirtuado vestibular, tende a focar na
forma e no produto e nunca no significado ou no processo. Os alunos simplesmente
não aprendem o processo da escrita, mas são apenas solicitados que produzam
textos de gêneros distantes daqueles que circulam em seu cotidiano, como, por
exemplo, editoriais de jornal, um gênero pouco provável de ser produzido em
contextos cotidianos por cidadãos comuns. Importante sinalizar, contudo, que os
editoriais podem, dependendo da maneira como abordados na sala de aula, ser
utilizados a partir de uma perspectiva prática, em que o professor o tome como
objeto de ensino para discutir a linguagem da mídia no ensino médio, por exemplo.

390 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006


Vian Jr.

No ensino superior, por seu turno, solicita-se aos alunos que produzam
monografias, relatórios, resumos, resenhas e outros gêneros; fazem-no sem nem
mesmo lhes dizerem do que se trata ou para que propósitos comunicativos tais gêneros
são destinados; isso ainda leva a uma severa crítica, por parte dos próprios
professores, de que os alunos não estão aptos a produzirem textos, sem ao menos
refletirem sobre o fato de que muitos jamais foram expostos a tais gêneros, ou seja,
exigem dos alunos algo a que não foram expostos ou que não lhes foi ensinado. E,
no mais das vezes, o comentário do professor está tão-somente no uso da norma
culta, relegando questões sociolingüísticas, de uso e de produção textual a outros
planos. O professor, por outro lado, não leva em conta a relevância da exigência de
tais tarefas, nem estabelece um vínculo entre a vida acadêmica e a vida profissional,
entre teoria e prática.
Com base em análise de necessidades desenvolvida em sala de aula e em
minha própria experiência como professor de português instrumental, optei pela
pilotagem e implementação de um curso no qual os gêneros do discurso fossem a
base, com o objetivo de tentar atingir dois objetivos: (a) trabalhar com gêneros
acadêmicos que os alunos supostamente necessitariam em sua vida acadêmica para
as demais disciplinas, baseado em levantamento prévio, assim como (b) gêneros
profissionais com que os alunos deveriam estar familiarizados para sua futura vida
profissional. Assumo como pressupostos, aqui, e também como apontado por Cintra
(1996), três aspectos importantes no ensino de português instrumental: o diagnóstico,
o planejamento e a avaliação.
Inicio pela apresentação dos conceitos de gênero discursivo, conforme
preceituado pela perspectiva sistêmico-funcional de linguagem, da noção de
conhecimento de gêneros, assim como outros tipos de conhecimento com os quais
os interactantes lidam quando desempenham determinados gêneros, além de discutir
questões de planejamento de cursos a partir do prisma instrumental e o tipo de
planejamento adotado para o curso em questão. Descrevo, em seguida, os gêneros
escolhidos para serem trabalhados no curso para atingir os objetivos na primeira
parte da experiência – uma vez que a segunda parte encontra-se em desenvolvimento
–, algumas atividades desenvolvidas e as percepções dos alunos sobre elas. Concluo
apontando alguns resultados preliminares, além de questões relacionadas à
operacionalização e à implementação pedagógica de uma proposta de ensino de
produção escrita com base na perspectiva sistêmico-funcional de linguagem.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006 391


Gêneros discursivos e conhecimento sobre gêneros ...

2 ENQUADRAMENTO TEÓRICO1

Três são os preceitos teóricos utilizados para a execução do projeto aqui


descrito: (1) o conceito de gênero do discurso na perspectiva sistêmico-funcional
(HALLIDAY; HASAN, 1989; MARTIN, 1992; EGGINS, 1994; THOMPSON, 1996; EGGINS;
MARTIN, 1997, dentre outros), (2) o conceito de conhecimento sobre gêneros
(BERKENKOTTER; HUCKIN, 1997) associado aos conhecimentos partilhados pelos
usuários ao utilizarem determinado gênero (JOHNS, 1997) e (3) questões
relacionadas ao planejamento de cursos instrumentais, conforme preceituado por
Robinson (1991) e Hutchinson e Waters (1987).

2.1 Gêneros do discurso


Posto de forma simples e direta, os gêneros são vistos como um sistema que
se estrutura em partes, através de meios específicos para fins específicos (MARTIN,
1992). Thompson (1996) sinaliza que o gênero pode ser visto como registro mais
propósito. Registro, aqui, está associado ao conceito de Halliday (HALLIDAY; HASAN,
1989), indicando a variação de acordo com o uso, sendo que essa variação se dá em
três níveis: campo (a representação das atividades sociais), relações (papéis
assumidos pelos participantes da interação) e modo (o papel simbólico e retórico
da linguagem). Resumiríamos, assim, gênero como sendo o que os usuários fazem
ao utilizar a linguagem em interações sociais específicas e como organizam suas
mensagens de modo a atingir seu propósito social.
Ao discutir a noção de Estrutura Potencial do Gênero (HALLIDAY; HASAN,
1989) para o ensino da produção oral em inglês como língua estrangeira, apontei
(VIAN JR, 2002) que, ao adotarmos uma postura didático-metodológica que tenha
os gêneros como ponto de partida, é necessário que tenhamos clara a distinção
entre teoria e prática, entre o tecnicismo terminológico e o contexto prático da sala
de aula, para que não corramos o risco de usar um jargão que seja incompreensível
para os alunos.
Ao adotarmos uma abordagem sociossemiótica (HALLIDAY, 1978), por outro
lado, devemos ter as noções de gênero, registro e linguagem bem claras e, ao mesmo
tempo, como elas podem ser co-construídas juntamente aos alunos.

1
Partes deste enquadramento teórico foram adaptadas de minha tese de doutorado (VIAN JR, 2002), na qual
discuto a questão da utilização dos gêneros do discurso – sob uma perspectiva sistêmico-funcional – para o
planejamento de cursos instrumentais de produção oral. no ensino de inglês instrumental.

392 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006


Vian Jr.

O questionamento que se nos apresenta é: como explorar o conhecimento


possuído pelo aluno como usuário da linguagem para o ensino da produção escrita
em língua materna?
A partir da experiência em seu próprio dia-a-dia, por utilizar gêneros
diariamente, a maioria dos aprendizes tem uma noção dos gêneros que circulam
nos meios escolares. Estudos sobre situações de atendimentos em serviços
desenvolvidos por Ventola (1984), e aplicados ao contexto de negócios no ensino da
produção oral para fins instrumentais (VIAN JR, 2002), adotam o uso de fluxogramas
para que se descreva a situação-alvo em que os alunos precisam interagir para que,
em um momento posterior, os mesmos fluxogramas sejam usados como subsídios
para elaboração do conteúdo do curso.
Minha premissa para a utilização de fluxogramas é a de que, se os eventos
são altamente previsíveis no contexto em que ocorrem, esses fluxogramas podem
ser produzidos pelos próprios alunos, uma vez que estes possuem o conhecimento
prático sobre a utilização dos gêneros. No mesmo trabalho (VIAN JR, 2002), apresento
alguns fluxogramas produzidos por profissionais em interações e como esse
conhecimento pode ser transferido para a sala de aula.
Ao utilizar o fluxograma, o professor estará, ao mesmo tempo, aumentando a
participação do aluno por ampliar seu papel no ensino e lidando com o seu
conhecimento prévio, ao contrário de abordagens que não levam em consideração o
papel participativo e colaborativo do aluno no processo de ensino-aprendizagem. Ao
tratarmos do ensino da produção escrita, estou me referindo especificamente a discutir
e a incitar os alunos a utilizarem seu conhecimento prévio sobre estrutura textual. A
experiência tem mostrado que pelo menos o conhecimento da estrutura Exórdio-
Desenvolvimento-Peroração proposta por Aristóteles (1941), em suas classificações
para a comédia e a tragédia, é demonstrado pelos alunos – é claro que com
nomenclaturas como começo-meio-fim ou introdução-desenvolvimento-conclusão.
A partir desse conhecimento, é possível desenvolver em sala de aula a prática
com os alunos para que possam fazer predições sobre o desenvolvimento do texto
que deverão produzir, focando, assim, o tão negligenciado processo de escrita e
suas fases, dentre elas a geração de idéias e o planejamento do texto.
Essa abordagem com foco na aprendizagem (HUTCHINSON; WATERS, 1987)
adaptada para o ensino de português instrumental, como será visto no item (c) a
seguir, e que toma como base os gêneros que os alunos precisam utilizar no contexto
acadêmico, incita à conscientização do aluno e de seu papel como participante do

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006 393


Gêneros discursivos e conhecimento sobre gêneros ...

processo social em situações comunicativas presentes em seu cotidiano e leva em


consideração, do ponto de vista teórico, os conceitos propostos por Hasan de gênero
de discurso e da Estrutura Potencial do Gênero (HALLIDAY; HASAN, 1989) do evento
comunicativo no qual estará engajado.

2.2 Conhecimento sobre gêneros e conhecimento partilhado


A expressão ‘conhecimento sobre gêneros’ (genre knowledge) refere-se ao
repertório individual que possuímos sobre respostas apropriadas a situações retóricas
recorrentes (BERKENKOTTER; HUCKIN, 1995, p. ix) em nosso cotidiano, ou seja, toda
vez que interagimos, acionamos determinados conhecimentos pertinentes àquela situação.
O conhecimento sobre gêneros, portanto, é sistemático. Por outro lado, por
estarmos tratando de algo abstrato, pois não se pode mensurar ou prever o
conhecimento de gênero de cada indivíduo, esse conhecimento é, ao mesmo tempo,
complexo e dicotômico, por implicar elementos cognitivos e sociais (JOHNS, 1997,
p. 21). Com base nessa sistematicidade, algumas características podem ser atribuídas,
entre as quais Berkenkotter e Huckin (1995) citam o dinamismo, uma vez que os
gêneros alteram-se em função das necessidades sociocognitivas; o posicionamento,
pois sempre que utilizamos um gênero estamos envolvidos em alguma situação em
nosso ambiente cultural; a forma e conteúdo, pelo simples fato de o gênero possuir
uma estrutura através da qual o conteúdo é desenvolvido; a dualidade de
estruturas, aqui referindo-se ao social que constituímos quando nos engajamos
em atividades profissionais e, finalmente, a ligação a uma comunidade, pois as
normas de um determinado gênero variam de acordo com as normas epistemológicas,
ideológicas e sociológicas de determinado grupo.
Johns (1997) adota uma perspectiva na qual relaciona o ensino da língua
escrita ao papel do produtor e do leitor do texto. Segundo a autora, a interação entre
leitores e escritores é marcada pela partilha de alguns conhecimentos sobre gêneros,
perspectiva semelhante à adotada por Berkenkotter e Huckin (1995) – apresentada
anteriormente –, ou seja, em ambos os trabalhos há a premissa de que, tanto na
linguagem oral quanto na linguagem escrita, há recorrência de elementos pertinentes
àquela situação. É claro que aqui emerge o ponto de que tais recorrências estão
ligadas à experiência do interlocutor em dado contexto, pois poderão ocorrer
situações em que o usuário depare com eventos para os quais não conheça as atitudes,
a linguagem ou os comportamentos esperados, o que nos permite, portanto,
questionar a partilha de tais elementos, como sinalizaremos mais adiante.

394 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006


Vian Jr.

Ao interagirmos socialmente, faremos uso obrigatório de um dentre os


diversos gêneros que circulam em nosso meio social. O simples fato de optar por
um deles resulta diretamente no pressuposto de que meu interlocutor também
conhece esse gênero e pode interagir comigo dentro das normas prescritas para o
gênero em questão.
A partir dessa perspectiva, Johns (1997, p. 22-37) afirma que os interlocutores
partilham os seguintes conhecimentos sobre o gênero:
a) nome do gênero que estão utilizando;
b) propósito comunicativo;
c) papéis desempenhados;
d) contexto;
e) convenções textuais;
f) conteúdo textual;
g) registro;
h) valores culturais;
i) intertextualidade.
Consideremos uma situação de interação cotidiana, como, por exemplo, fazer
um pedido de pizza para entrega em domicílio, pelo telefone. Ao fazer o pedido,
coloco em ação o meu conhecimento sobre o gênero que irei utilizar, geralmente
anunciado no início da conversa: ‘quero fazer um pedido’, e o meu interlocutor
partilha o mesmo gênero. Ao colocá-lo em funcionamento, tenho uma intenção, que
é o de receber a pizza em minha casa. Automaticamente, estão estabelecidos os
papéis de comprador e vendedor, usuário e atendente que cada um vai desempenhar
na interação e, conseqüentemente, essa interação acontece em um contexto
específico: eu em minha residência e o atendente na pizzaria, teoricamente em locais
próximos, geralmente no mesmo bairro, para que a entrega seja rápida, fazendo
parte, portanto, de uma esfera de atividade. As convenções textuais a serem utilizadas
nessa interação também são preestabelecidas e tanto eu quanto o atendente
partilhamos as mesmas convenções.
Diversos são os estudos que tratam dessa convenção textual, como é o caso
de Halliday e Hasan (1989) e Swales (1990), para quem os gêneros possuem
convenções recorrentes utilizadas pelos usuários e materializadas em seus textos.
Hasan (HALLIDAY; HASAN, 1989) utiliza os termos estágios obrigatórios, estágios
opcionais e estágios recursivos para tratar da organização textual, ao passo que
Swales utiliza a nomenclatura movimentos e passos. Se considerarmos o ponto de

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006 395


Gêneros discursivos e conhecimento sobre gêneros ...

vista de Halliday e Hasan, por exemplo, podemos dizer que, no exemplo que estou
utilizando, o cumprimento inicial e final são estágios obrigatórios da interação.
Os usuários do gênero em questão também partilham o mesmo registro2, ou
seja, as frases e o vocabulário que usarão na interação possuem características
informais, assim como as formas de tratamento que serão utilizadas. Associados a
esses elementos estão os valores culturais, uma vez que a linguagem cotidiana é
marcada por elementos do contexto; ao considerarmos, por exemplo, a escolha do
sabor da pizza, diversos valores culturais entram em funcionamento, que podem
estar ligados aos ingredientes locais disponíveis, por exemplo.
Finalmente, temos a consciência da intertextualidade, pois a linguagem
utilizada na interação traz consigo elementos de experiências discursivas anteriores.
Se considerarmos, por exemplo, uma pessoa que nunca tenha feito um pedido de
pizza por telefone e o faça pela primeira vez, talvez essa atividade possa ser marcada
pela ausência de elementos intertextuais, ao passo que alguém que é usuário assíduo
de determinado fornecedor vai se utilizar de elementos intertextuais desse contexto,
como em alguns casos de atendimento informatizado, em que somente dizer o número
do telefone aciona as demais informações, já armazenadas em um sistema.
Devemos levar em consideração, entretanto, que o trabalho de Johns refere-
se à utilização dos gêneros escritos no contexto acadêmico; logo, ao considerarmos
um meio social mais amplo, como o exemplo dado acima, alguns dos elementos
propostos pela autora tornam-se passíveis de questionamento, como é o caso da
partilha do nome do gênero utilizado, por exemplo. O trabalho de Freire (1998) –
em que a autora pesquisa a produção de textos mediada por computador – aponta
para o fato de que o nome do gênero que se está utilizando nem sempre é partilhado
pelos usuários na mesma comunidade, pelo menos para os profissionais no contexto
em que a autora pesquisou. Isso também é observável em sala de aula, principalmente
em atividades de produção escrita, nas quais se pede que os alunos produzam textos
e estes são materializados diferentemente do esperado, pois não há uma partilha em
relação ao nome do gênero. Outro questionamento que podemos levantar é o de
que o indivíduo, ao interagir socialmente, não realiza conscientemente operações
que o levem a definir que gênero irá utilizar e todas as convenções sociais e textuais
a ele relacionadas. Pensemos num caso oposto: se solicitássemos a um usuário que
2
O conceito de registro utilizado por Johns (1997) refere-se à predominância de determinadas características
lexicais e gramaticais em um gênero específico. Diferencia-se do conceito de registro utilizado na gramática
sistêmico-funcional, um conceito tripartite (campo, participantes e modo) relacionado ao contexto de situação
(HALLIDAY; HASAN, 1989).

396 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006


Vian Jr.

desempenhasse uma tarefa que nunca houvesse desempenhado, sua atitude seria
buscar, juntamente a outros usuários que utilizassem aquele gênero, pistas para a
sua utilização, ou seja, os conhecimentos propostos por Johns seriam inerentes ao
novo gênero aprendido, não havendo uma relação unívoca entre convenções textuais
e convenções sociais.
No ensino de língua materna, essas premissas também podem ser utilizadas.
Relato, especificamente, o problema recorrente que enfrento com os gêneros resumo
e resenha, já que muitos professores costumam confundi-los, solicitando a produção
de um gênero, mas indicando características do outro, colocando os alunos, muitas
vezes, num embate terminológico.
No contexto empresarial, esse fato também está presente. Os estudos de
Barbara et alii (1996) e de Celani e Scott (1997) revelam que os mesmos documentos
são utilizados por diferentes empresas com nomes diferentes. O que é memorando
em uma empresa, por exemplo, pode ser denominada comunicação interna em
outra, embora o propósito comunicativo, assim como outras características textuais
e formais, sejam idênticos.
A proposta de utilização dos conceitos de gênero e conhecimentos sobre gêneros
está associada, portanto, ao fato de os alunos, no ambiente acadêmico, produzirem
textos pertencentes a gêneros de situações extremamente ritualizadas, cuja linguagem
e conteúdo são previsíveis. Daí poder basear o ensino da produção escrita nos gêneros
do discurso que os alunos utilizam e usarmos o próprio conhecimento do aluno, como
usuário potencial do gênero em questão, como ponto de partida para as aulas,
reforçando, assim uma participação mais colaborativa do aluno, acentuando sua
participação nas aulas e aumentando, simultaneamente, sua motivação.

2.3 Planejamento de cursos instrumentais


Planejar um curso, na visão de Hutchinson e Waters (1987, p. 21), é
basicamente uma questão de elaborarmos perguntas de forma a fornecer uma base
razoável para os processos subseqüentes de planejamento, produção do material,
ensino e avaliação.
Três fatores são essenciais no planejamento de um curso instrumental: o
conteúdo, a metodologia e a situação-alvo. Conseqüentemente, o profissional
encarregado de planejar e desenvolver um curso deve ter consciência de todos os
elementos imbricados nesses três fatores, pois cada um deles traz consigo uma série
de outros.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006 397


Gêneros discursivos e conhecimento sobre gêneros ...

Ao falarmos em conteúdo, é necessária uma visão ampla de métodos de


ensino e descrição lingüística, para que se opte pelo tipo de método a ser utilizado
no curso, e, mais especificamente, neste caso, dos princípios da abordagem
instrumental. Ou seja, é necessário que se tenha uma visão macro da evolução
histórica dos métodos para que se utilize um critério claro e que atenda às
necessidades dos alunos. Ao falarmos em metodologia, questões sobre teorias de
aprendizagem vêm à tona, tendo em vista que se deve optar pela abordagem que
será utilizada no curso, e esta também pode variar de diversas formas, desde teorias
behavioristas até as humanistas ou afetivas. Finalmente, quando falamos da natureza
da situação-alvo, fatores como para quem o curso será planejado, o porquê, onde
será ministrado e quando são elementos que merecem atenção e que são solucionados
basicamente através da análise de necessidades.
Um conteúdo baseado em itens lingüísticos é o mais comum em cursos
instrumentais e baseia-se na análise da situação-alvo e na identificação dos itens
lingüísticos característicos dessa situação. No entanto, os autores apontam várias
deficiências inerentes a esse tipo de planejamento. A primeira delas diz respeito ao
papel do aprendiz, que não é considerado no decorrer do curso, mas é apenas
usado como um meio para se identificar a situação-alvo; outro problema está
relacionado à inflexibilidade: o curso é montado a partir da análise de necessidades
iniciais, podendo resultar em erros e incorreções, as quais, conseqüentemente,
deveria resultar em alterações no curso, mas que, nesse caso, não seriam possíveis.
Por fim, o conteúdo baseado em itens lingüísticos da situação-alvo está relacionado
apenas ao nível superficial, revelando muito pouco sobre a competência que subsume
o desempenho (HUTCHINSON; WATERS, 1987, p. 67-68).
O conteúdo baseado em estratégias é um dos mais tradicionais no Brasil,
como é o caso do Projeto Nacional Ensino Instrumental em Universidades Brasileiras
(CELANI et alii, 1988). Segundo o Projeto, a necessidade dos alunos em universidades
brasileiras está centrada na leitura de textos em inglês que não se encontram
disponíveis em língua materna.
Dois são os princípios apresentados por Hutchinson e Waters (1987, p. 69)
para a abordagem baseada em estratégias. O primeiro é teórico e objetiva focar a
competência que subjaz ao desempenho, apresentando, dessa forma, objetivos de
aprendizagem tanto em termos de desempenho como de competência. Pode haver,
por exemplo, a meta de fazer com que o aluno esteja apto a identificar e classificar
textos de acordo com seu objetivo (no nível de desempenho) e que esteja apto a
extrair informações específicas desses textos (no nível da competência). O segundo

398 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006


Vian Jr.

princípio é a base pragmática dos cursos centrados em estratégias. Portanto, o papel


da análise de necessidades em uma abordagem centrada em estratégias será duplo,
fornecendo uma base para se descobrir a competência subjacente ao desempenho e
permitindo descobrir o conhecimento prévio e as estratégias trazidas pelos alunos
para a sala de aula instrumental.
Por fim, os autores propõem uma abordagem centrada na aprendizagem,
pois as duas anteriormente apresentadas possuem limitações: a abordagem centrada
em itens lingüísticos considera o aluno apenas na identificação da situação-alvo e
dos itens lingüísticos pertinentes àquela situação, e uma abordagem centrada em
estratégias considera o aluno somente na análise da situação-alvo e na análise da
situação de aprendizagem. Todavia, a abordagem proposta pelos autores considera
o aluno em todos os estágios, desde a identificação da situação-alvo, sua análise,
análise da situação de aprendizagem, planejamento dos materiais e conteúdos, sua
produção, seu ensino e sua avaliação.
Os autores chamam a atenção para a complexidade desse processo, mas,
por outro lado, apontam para o fato de que o embasamento para sua adoção está na
complexidade do próprio processo de aprendizagem, daí ter optado, no planejamento
do curso aqui relatado, por uma abordagem centrada na aprendizagem, consideradas,
sem dúvida, as diferenças em se planejar um curso de inglês instrumental e um
curso de língua materna com fins instrumentais.

3 A PESQUISA E SEU CONTEXTO

A idéia para este projeto surgiu de minha experiência em uma IES na cidade
de São Paulo, onde ministro as aulas de Português Instrumental nos cursos de
Administração de Empresas e de Ciências Contábeis. Ocorreu, principalmente, em
função de minha frustração com o desempenho dos alunos, que por muito tempo –
mesmo a disciplina tendo a denominação de “instrumental” – foram expostos a
uma visão estruturalista de ensino de língua portuguesa. Considerei, ainda, as
reclamações dos próprios alunos da dificuldade de se aprender a língua, bem como
os comentários dos demais professores de que os alunos não eram competentes no
uso da língua. Vislumbrei, pois, a possibilidade de implementação de um curso em
que questões mais práticas fossem abordadas.
Esse cenário gerava um grande desconforto, uma vez que, em alguns
momentos, estava claro que a exigência dos professores estava centrada em suas

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006 399


Gêneros discursivos e conhecimento sobre gêneros ...

representações sobre a norma culta, carregadas de um tanto de preconceitos


lingüísticos, pois julgavam que o aluno deveria dominar com precisão a norma culta,
embora seja óbvio, pela prática cotidiana, que esta norma é dominada por poucos.
Além, é claro, de um desencontro entre o que se ensina e o que se pede em outras
disciplinas, não havendo preocupação alguma com a interdisciplinaridade, pois não
havia diálogo entre as disciplinas.
Com esse panorama em mente, associado à minha própria experiência com
o ensino da abordagem instrumental e também do ensino de língua materna, além
de meu envolvimento com a perspectiva sistêmico-funcional de linguagem, optei
pela experiência de planejar um curso que levasse em conta ambas as teorias e que,
ao mesmo tempo, pudesse ir ao encontro das necessidades tanto dos alunos como
dos professores, como o foco na aprendizagem.

3.1 Perfil do grupo


Como as turmas do período noturno na IES em questão possuem maior número
de alunos em sala, optei por uma turma do período matutino, composta de 25 alunos,
de modo que o material idealizado poderia ser preparado e pilotado, havendo, ainda,
a possibilidade de refacções, caso erros ou inconsistências fossem detectados.
O currículo para o curso de Ciências Contábeis prescreve quatro aulas semanais
de cinqüenta minutos para a disciplina Português Instrumental. O fato de ter quatro
aulas também reforçou minha opção, pois no curso de Administração de Empresas há
apenas duas aulas semanais, o que restringiria o escopo de minha pesquisa.

3.2 Os gêneros acadêmicos selecionados


Uma das tarefas árduas ao se trabalhar com gêneros do discurso no ensino
de língua materna é a de selecionar os gêneros a priorizar. Travaglia (2002, p. 203)
aponta que dois são os desafios a serem enfrentados pelo professor:

a) em primeiro lugar, decidir-se por um aparato teórico sobre tipologia


textual que dê sustentação à sua prática de sala de aula;
b) em segundo lugar, considerando o imenso número de tipos de textos
existentes em nossa cultura e tendo em vista a impossibilidade absoluta de
trabalhar com todos eles no pouco tempo disponível nas aulas, decidir
com quais trabalhar em sala de aula, de modo a “instrumentalizar” os alunos
para a interação comunicativa competente no maior número possível de
situações distintas de interação. [aspas do autor]

400 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006


Vian Jr.

Feita a opção pela perspectiva sistêmico-funcional como aparato teórico para


sustentar a minha prática de sala de aula, foi necessário, em momento posterior,
selecionar, dentre os gêneros necessários aos alunos e aqueles solicitados pelos
professores, os que atendessem mais eficientemente as necessidades de ambos. Dessa
forma, três foram os gêneros selecionados: 1) resumo; 2) respostas dissertativas; e
3) artigo acadêmico.
A opção pelo primeiro se dá em função de ser um gênero muito solicitado
pelos professores como atividade a partir dos textos que os alunos lêem. Considerei
também a importância dos resumos como uma estratégia de aprendizagem, uma
vez que poderiam ser usados mais tarde para estudos e referência.
Quanto à opção pelas respostas dissertativas, parti tanto da análise de
necessidades junto aos alunos como dos comentários de professores de que os alunos
apresentavam problemas ao responder a tais perguntas em provas. Utilizei, para
isso, os três exames do Exame Nacional de Cursos (popularmente referido como
“Provão”) dos anos de 2002, 2003 e 2004, bem como as experiências de Machado
(2000) – na qual se estudam as instruções de questões do “Provão” de Administração,
Odontologia, Direito, Letras, Jornalismo, Engenharia Civil, Engenharia Química e
Veterinária – e de Fonseca (2002), em que a autora desenvolve uma pesquisa com o
objetivo de caracterizar o gênero “questões dissertativas de provas” para os cursos
de Letras, História e Pedagogia e, a partir daí, propor uma abordagem visando ao
desenvolvimento de tal gênero na leitura e na produção escrita; ambas as pesquisas
tomam como base teórica o interacionismo sócio-discursivo.
A opção pelo artigo acadêmico, finalmente, deu-se em função de ser um
gênero muito freqüentemente utilizado nos meios universitários, principalmente para
leitura, sendo que, no caso específico da IES onde foi feita a pesquisa, no quarto ano
os alunos têm por tarefa a elaboração de um artigo acadêmico. Acrescento, no entanto,
que, na disciplina de Português Instrumental, seriam abordados apenas os aspectos
lingüísticos e textuais, pois os alunos cursam a disciplina Metodologia de Pesquisa,
momento em que serão abordados os aspectos metodológicos para a elaboração
dos artigos.

4 ALGUMAS TAREFAS DESENVOLVIDAS

Diversas tarefas foram planejadas com o objetivo de familiarizar os alunos


com os gêneros acadêmicos solicitados por professores de outras disciplinas dentro

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006 401


Gêneros discursivos e conhecimento sobre gêneros ...

do programa do curso. O foco inicial foi colocado nas sete disciplinas do currículo:
Contabilidade, Sociologia, Matemática, Psicologia, Direito, Economia, Teoria Geral
da Administração e Português Instrumental.
Apresentarei aqui, por uma questão de espaço, apenas três atividades, em
três momentos distintos, para que possa ilustrar como operacionalizei os conceitos
sistêmico-funcionais, num primeiro momento, e, em seguida, como os implementei
pedagogicamente, de forma que os alunos pudessem realizar as tarefas solicitadas.

4.1 Atividades de conscientização e familiarização dos alunos com


os conceitos
Após a seleção dos três gêneros, era necessário que se operacionalizasse o
conceito de gênero de discurso, bem como as noções de contexto de cultura e de
contexto de situação e demais conceitos relacionados, como registro, campo, relações
e modo (HALLIDAY; HASAN, 1989), fulcrais na abordagem sistêmico-funcional, e
que deveriam se tornar compreensíveis aos alunos, para que, em seguida, pudessem
utilizá-los em suas tarefas e também para que a nomenclatura pudesse ser usada
mais tarde em enunciados de tarefas.
Na primeira atividade de conscientização, com o objetivo de trabalhar tanto
o conceito de gênero como de indicar ao aluno o conhecimento que possui sobre os
gêneros que circulam em seu meio sócio-histórico, foram distribuídos aos alunos
diferentes tipos de textos, pertencentes a vários gêneros, dentre eles: horóscopo de
um signo para o dia, manual de um aparelho eletrônico, receita de um prato, bula
de remédio, trecho de um contrato de locação, trecho de um chat, bilhete da
empregada para a patroa comprar algum produto de limpeza, versículo da Bíblia,
recado para o chefe, recado para a mãe, email a um(a) amigo(a).
Foi solicitado, na seqüência, que os alunos analisassem os textos do ponto de
vista textual, discursivo e do gênero, e, para atingir tais objetivos, deveriam comentar
o vocabulário de cada texto, o layout e a estrutura de cada um, o produtor, o receptor/
consumidor, a fonte, a intenção, a idade do público a que se destina, aspecto
gramatical, diferenças em termos de linguagem e quaisquer outras informações que
chamassem a atenção do grupo, focando, acima de tudo, o porquê de reconhecerem
tais textos, indicando o conhecimento prévio que possuem sobre os gêneros que
utilizam em seu cotidiano.
Depois dessa atividade, os alunos deveriam apresentar seus resultados para
a sala e discutir as diferenças e semelhanças, com o objetivo de perceberem a
diferença entre as noções de texto e de gênero discursivo. Trabalhou-se, aqui, com o

402 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006


Vian Jr.

objetivo de mostrar aos alunos que todos, como usuários da língua, utilizam gêneros
cotidianamente e que, ao utilizá-los, colocam em funcionamento alguns
conhecimentos sobre aquele gênero, além de partilharem de alguns conhecimentos
com a comunidade discursiva em que interagem, conforme proposto por
Berkenkotter e Huckin (1995) e também por Johns (1997), além de dar aos alunos
novas ferramentas para seus estudos, levando-os a perceberem que os textos que
utilizam partilham características. Como atividade suplementar, os grupos também
analisaram um capítulo do livro didático que utilizam para cada uma das outras
disciplinas do currículo, como forma de compreender o funcionamento dos capítulos
e, ao final, produziram um quadro com as características de cada disciplina. Isso os
leva, ao mesmo tempo, a desenvolver estratégias de aprendizagem para utilização
dessas informações em outros gêneros, como o resumo, por exemplo e, ainda, a
perceberem que seu conhecimento prévio exerce grande influência em seu
desempenho acadêmico, além de também enfocar a interdisciplinaridade.
Subjazem a essas atividades, como indiquei anteriormente, do ponto de vista
teórico, os conceitos de gênero e de registro, bem como as noções de contexto de
cultura e de contexto de situação, uma vez que, do ponto de vista pedagógico, meu
objetivo era que os alunos compreendessem o papel do contexto e como os elementos
contextuais são imbricados no texto. E, do ponto de vista do planejamento, estou
fazendo a passagem da teoria para a prática, passando da operacionalização de um
conceito teórico e transformando-o em prática para, no momento seguinte, usá-lo
no ensino, tratando-se, assim, de sua implementação pedagógica.

4.2 Atividades de conscientização sobre texto e gênero


Outro tipo de atividade pilotada estava associado à conscientização e
manipulação do texto e da noção de seu pertencimento a um determinado gênero.
A título de ilustração, apresento a seguir uma atividade em que os alunos
trabalharam com um artigo acadêmico de sua área, cujo foco era, a princípio,
apresentar a contextualização da atividade que seria desenvolvida, explorando depois
as noções práticas, como mostra o exemplo abaixo:

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006 403


Gêneros discursivos e conhecimento sobre gêneros ...

O texto que você vai ler é a introdução de A auditoria da contabilidade criativa, de


J.P. Cosenza e I.R.G. Grateron, publicado na Revista Brasileira de Contabilidade no.
143. Trata-se de um artigo acadêmico. Leia o texto e, a seguir, responda as perguntas
que seguem.
Antes de ler o texto, responda às seguintes perguntas:

1. Qual a função social de um artigo acadêmico?


2. Você já leu um artigo acadêmico da área de contabilidade?
3. Quem lê artigos acadêmicos? Por quê?
4. Quem produz artigos acadêmicos? Por quê? Para quem?
5. Onde é mais comum a circulação desses artigos?

Agora leia o texto para responder às demais perguntas a seguir:

1. Como o texto está organizado do ponto de vista de seus parágrafos?


2. Qual o conteúdo de cada parágrafo?
3. Por que a auditoria tem papel importante no contexto internacional?
4. Os autores afirmam que “a atividade de auditoria está sendo amplamente
questionada”. A que se devem, em sua opinião, tais questionamentos?
5. Os autores explicitam 3 objetivos para o trabalho. Quais são?
6. Como eles pretendem atingir esses objetivos?
7. Os autores apontam 3 parâmetros para discutir as incidências que as práticas
de contabilidade criativa têm para o processo decisório. Enumere-os.

O objetivo dessa atividade está em conscientizar os alunos dos fatores sociais


e culturais relacionados ao gênero além das variáveis de contexto que também
influenciam o gênero, nomeadamente, em termos sistêmico-funcionais, o registro e
suas três variáveis: campo, relações e modo (HALLIDAY; HASAN, 1989).
O foco central, no entanto, está em incitar os alunos a refletirem sobre a
relação entre gênero e texto, dado que as perguntas do primeiro grupo, previamente
a leitura do texto, referem-se ao gênero e as demais ao texto.

4.3 Atividades com o gênero artigo acadêmico


Após a atividade somente com a introdução do artigo, foi solicitado que os
alunos lessem todo o artigo e a primeira atividade realizada tinha como meta explorar
o propósito social do gênero, que já havia sido explorado anteriormente e, além

404 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006


Vian Jr.

disso, desenvolver a idéia de que os gêneros estruturam-se em estágios, pois trata-se


de uma atividade sociossemiótica em que os significados são construídos
gradativamente, uma vez que não conseguimos transmiti-los simultaneamente; daí a
necessidade da estruturação em estágios, conforme preceituado por Martin (1992).
Eis a atividade:

A atividade é também uma preparação para o próximo passo, em que seriam


explorados os estágios componentes do gênero artigo acadêmico.
Em relação aos aspectos gramaticais, foram exploradas questões de estrutura
oracional e de elementos coesivos, com base no trabalho de coesão de Halliday e
Hasan (1976), retomando elementos estudados da estrutura dos parágrafos
dissertativos, gênero explorado anteriormente a este.

5 AS PERCEPÇÕES DOS ALUNOS

Após algumas das atividades, foi solicitado aos alunos que relatassem as suas
percepções sobre a experiência. Na apresentação da atividade sobre os capítulos
dos livros das outras disciplinas, por exemplo, solicitei aos alunos que respondessem
a duas perguntas:

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006 405


Gêneros discursivos e conhecimento sobre gêneros ...

a) O que você aprendeu sobre gêneros depois da análise dos textos e das
apresentações de seus colegas?
b) Como isso pode ajudar a sua vida acadêmica?
As respostas variaram de acordo com o conhecimento prévio dos alunos, outras
experiências escolares, conscientização e conhecimento partilhado. Em resumo, os
resultados foram muito positivos e sugerem a eficácia e a significância de tais atividades,
como podemos inferir pelas seguintes respostas escolhidas aleatoriamente:

(1) Percebemos que os gêneros são diferentes em cada assunto, e variam


de acordo com a necessidade de cada um. Com isso, melhoramos o
desempenho, entendendo mais dos aspectos de cada texto. (Alexandra B)
(2) É possível compreender que as matérias se complementam e deixam a
faculdade mais homogênea e facilitam o estudo, de forma que matérias
como Sociologia e Psicologia são muito parecidas e podem ser estudadas
com os mesmos princípios de leitura e compreensão. (Daniel)
(3) A partir da análise do quadro, podemos observar que cada gênero
estudado, apesar de possuírem características em comum, possui
particularidades distintas. Isso se evidencia nos diferentes mundos
discursivos em que são usadas expressões típicas de cada tipo textual. Para
exemplificar, vimos que o direito faz uso de termos técnicos, formalidades,
já os textos de TGA geralmente são mais explicativos e destinados a um
público diversificado. (Eduardo)
(4) A partir da análise do quadro, fazendo a comparação de uma disciplina
com a outra, conclui-se que algumas matérias são parecidas, quando
escritas, se valem da mesma estrutura e formatação. E também se interligam
uma com a outra como Sociologia e Psicologia ou Matemática, Contabilidade
e Economia, no seu contexto, o que facilita na hora do estudo, pois dá para
fazer associações que facilitam o entendimento. (Márcia)
(5) Temos que nos portar de acordo com as exigências do curso. Porém,
se por acaso, for em outro lugar, onde as exigências da Contabilidade não
se fazem necessárias, tenho que saber como me comportar de acordo, diante
de tal situação. Tenho que ter conhecimentos para saber sobre o assunto
que está sendo tratado, para entender o que será dito na ocasião e o que eu
posso dizer, para que as pessoas possam me entender também. (Rodrigo)

Como se vê, as respostas mostram diferentes percepções sobre o estudo dos


gêneros, mas é possível inferir, a partir de algumas citações, que as noções de gênero,

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Vian Jr.

de texto e da relação do texto com o contexto, bem como as exigências de cada


contexto de situação foram, aparentemente, assimiladas por alguns alunos para os
fins a que se destinam.
No início do primeiro semestre de 2005, solicitei aos alunos que resumissem
um texto de seu livro didático, sem dar nenhum insumo para que elaborassem a
atividade, pois meu objetivo era observar as produções e o conhecimento que
possuíam sobre o gênero. Ao final do semestre, depois do trabalho com o gênero
artigo acadêmico, solicitei aos alunos que resumissem o texto que foi objeto de
estudo e apontei que deveriam, após a elaboração dos resumos, relatar a experiência
comparando-a com a atividade realizada anteriormente. Eis algumas impressões:

(6) Fazer esse resumo foi mais fácil que o primeiro, porque adquiri
conhecimentos ao longo do semestre como os métodos de apagamento,
coesão, vocabulário, etc. (Alexandra B)
(7) Foi mais fácil elaborar o resumo por já ter conhecimento a respeito da
técnica de como fazê-lo. Por se tratar de um artigo acadêmico, de grande
interesse, tornou a leitura e o resumo mais agradáveis, fácil compreensão e
fixação da idéia. (Rejane)
(8) A elaboração do resumo é mais simples após compreender os
mecanismos de coesão do texto, pois podemos perceber quando o parágrafo
vai tomar uma idéia nova ou apenas retomar uma o raciocínio do parágrafo
anterior. (Éric)
(9) Não senti nenhuma diferença ao fazer este resumo com relação ao que foi
feito no início do semestre. Independente de tudo que eu tinha aprendido
esse semestre, continuei fazendo resumo da maneira que eu fazia antes. (Paula)

Pode-se perceber, pelas amostras, que a percepção dos alunos está


diretamente ligada às experiências anteriores de aprendizagem, pois, para alguns, a
abordagem não teve nenhum impacto, ao passo que para outros fez alguma diferença.
Isso pode estar associado à heterogeneidade do grupo, uma vez que comporta alunos
advindos de diferentes formações e com bagagens socioculturais extremamente
diversificadas.
Como se pode depreender pelos dois conjuntos de amostras, as atividades
atingiram em grande parte seu objetivo, despertando a conscientização dos alunos
para os gêneros e sua importância social, além de promover, ainda que de forma
sutil, a interdisciplinaridade, que geralmente é negligenciada em programas escolares.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006 407


Gêneros discursivos e conhecimento sobre gêneros ...

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Meu objetivo, neste artigo, foi o de ilustrar como tenho trabalhado os conceitos
da Lingüística Sistêmico-Funcional (LSF) como forma de operacionalizar o seu
uso, isto é, transformar o conceito teórico em prática para que seja compreensível a
alunos para, em seguida, desenvolver a sua implementação pedagógica, ou seja,
a utilização dos conceitos em atividades e tarefas de sala de aula, o que equivale a
dizer: preencher, mesmo que de forma tímida, a distância entre teoria e prática,
entre ensino e pesquisa.
Apresentei, especificamente, como o conceito de gênero do discurso,
conforme preceituado pela LSF, e o conceito de conhecimento sobre gêneros
(BERKENKOTTER; HUCKIN, 1995) podem ser utilizados no ensino de português
instrumental.
Em seu artigo sobre uma proposta para o ensino de língua estrangeira, Ramos
(2004) aponta que, embora haja muita teoria sobre o conceito de gêneros, “pouco
ainda foi feito no contexto brasileiro na área de planejamento de cursos baseados
em gêneros, principalmente para o ensino de línguas estrangeiras”, e posso
acrescentar, por experiência, que menos ainda tem sido feito na operacionalização
de conceitos da teoria sistêmico-funcional de linguagem no ensino de língua materna,
e uma quantidade mais exígua ainda no ensino de português instrumental.
O que se observa, com base nas atividades apresentadas neste artigo, é que o
ensino da produção escrita em língua materna deve levar em conta o conhecimento
prévio dos alunos, mas, por outro lado, deve, ao mesmo tempo, incentivar a
conscientização sobre seu papel social, para que não se insista na visão de linguagem
como algo dissociado do mundo ou como um conjunto de regras, mas como um todo
coeso, do qual fazem parte diversos elementos, dentre eles a gramática, não sendo ela
tomada como fim, mas como meio, dentre outros elementos co-textuais e contextuais
que colaboram para a textura de um texto e para a comunicação como um todo.
Outro aspecto importante é o papel da pesquisa no contexto de ensino-
aprendizagem de língua materna, pois urge que mais pesquisas sejam incentivadas e
desenvolvidas no sentido de suprir, como já apontei acima, o grande vácuo entre
teoria e prática, entre pesquisa e ensino, pois parece haver um diálogo muito incipiente
nessa área em nosso país.
Espero que as experiências aqui apresentadas possam auxiliar outros
professores ou profissionais envolvidos no planejamento de cursos e que delas possam

408 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006


Vian Jr.

usufruir e, em função de suas experiências e variáveis de contexto, possam aplicá-


las, adaptá-las e/ou ampliá-las às suas situações de ensino, levando-se em
consideração o caráter eminentemente sociológico da LSF e seu aspecto semântico-
funcional, o que imprime a ela um campo profícuo de estudos e aplicações.

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Recebido em 16/11/05. Aprovado em 22/06/06.

410 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006


Vian Jr.

Title: Discursive genres and genre knowledge in the planning of a course on Portuguese for specific
purposes for the accounting area
Author: Orlando Vian Jr.
Abstract: This paper aims at presenting an on-going experience based on the concepts of genre
and genre knowledge interactants share while using some genres. Focus is put on the education of
the pre-service professional in the Accounting area, by reporting how both academic and professional
genres were implemented at undergraduate levels so as to help students develop a more effective
performance in their academic life as well as in their future professional life according to the genres
they are supposed to use
Keywords: genre; genre knowledge; systemic-functional linguistics; Portuguese for Specific
Purposes.

Tìtre: Genres discursifs et connaissances sur les genres dans le projet d’un cours de portugais
instrumental pour les sciences comptables
Auteur: Orlando Vian Jr.
Résumé: Cet article a comme objectif de faire le rapport d’une expérience de projet d’un cours de
portugais instrumental dans le domaine des Sciences Comptables. Mon point de départ se trouve
dans le concept discursif de la perspective systémico-fonctionnelle de langage (HALLIDAY; HASAN,
1989; MARTIN, 1992; EGGINS, 1994; THOMPSON, 1996; EGGINS; MARTIN, 197), dans le concept
de la connaissance partagée par les employeurs quand ils s’en servent des genres écrits (JOHNS,
1997), au delà des aspects qui sont en rapport avec le projet des cours instrumentaux (ROBINSON,
1991; HUTCHINSON; WATERS, 1987). Je fais le rapport, tout d’abord, pour démontrer comment
tels concepts ont été operationnalisés visant leur emploi pédagogique. Ensuite, je présente quelques
activités développées, aussi bien que les perceptions des élèves sur ces activités.
Mots-clés: genre discursif; apprentissage; linguistique systémico-fonctionnelle; portugais
instrumental.

Título: Géneros discursivos y conocimiento sobre géneros en el planeamiento de un curso de


portugués instrumental para ciencias contables
Autor: Orlando Vian Jr.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo relatar una experiencia de planeamiento de un curso
de portugués instrumental en el área de Ciencias Contables. Mi punto de partida es el concepto de
género discursivo desde la perspectiva sistémico-funcional de lenguaje (HALLIDAY; HASAN, 1989;
MARTIN, 1992; EGGINS, 1994; THOMPSON, 1996; EGGINS; MARTIN, 1997), el concepto de
conocimiento sobre géneros (BERKENKOTTER; HUCKIN, 1995), asociado al conocimiento
compartido por los usuarios cuando utilizan los géneros escritos (JOHNS, 1997), además de los
aspectos relacionados al planeamiento de cursos instrumentales (ROBINSON, 1991; HUTCHINSON;
WATERS, 1987). Relato en un primer momento, como se operalizó tales conceptos en la práctica
pedagógica. En seguida, presento algunas actividades desarrolladas, así como las percepciones de
los alumnos sobre tales actividades.
Palabras-clave: género discursivo; aprendizaje; lingüística sistémico-funcional; portugués
instrumental.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 389-411, set./dez. 2006 411


Figueiredo e Bonini

PRÁTICAS DISCURSIVAS E ENSINO DO TEXTO


ACADÊMICO: CONCEPÇÕES DE ALUNOS DE MESTRADO
SOBRE A ESCRITA

Débora de Carvalho Figueiredo*


Adair Bonini**

Resumo: Este artigo investiga as concepções sobre o ensino-aprendizagem da escrita acadêmica,


a partir das respostas a um questionário sobre esse tema respondido por um grupo de alunos de
mestrado, após terem participado de uma oficina de produção textual acadêmica escrita. A análise
^
baseou-se no trabalho de Ivanic (2004) a respeito dos discursos sobre o ensino da produção
escrita na escola. Através da análise dos questionários, pudemos constatar, na fala dos alunos,
traços da pedagogia de letramento em gêneros e de uma visão social do discurso. Os resultados
indicam uma contribuição da experiência de ensino no sentido de familiarizar os mestrandos com
a noção de escrita como prática social inserida dentro de uma comunidade discursiva, mas também
que eles ainda estão no estágio de membros periféricos nessa comunidade.
Palavras-chave: discurso; gênero textual; produção textual; ensino; discursos sobre a escrita.

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo relatar e analisar uma experiência de ensino
de produção textual acadêmica escrita, surgida a partir de nossa observação, como
professores de pós-graduação, da dificuldade de muitos mestrandos em ingressar
no discurso acadêmico em termos práticos, isto é, em produzir textos que possam
ser reconhecidos como gêneros do meio, dentre eles o “artigo de pesquisa”. Em
outras palavras, detectamos que muitos de nossos alunos, embora já façam parte de
um programa de mestrado há algum tempo, mostram pouca (ou nenhuma)
familiaridade com e capacidade de utilização eficiente dos gêneros do discurso
científico.
No âmbito específico dos cursos de mestrado, temos observado que os textos
dos alunos apresentam problemas de organização micro e macroestrutural, refletindo

* Professora da Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL. Doutora em Inglês e Literaturas Correspondentes.
E-mail: <deborafigueiredo@terra.com.br>.
** Professor da UNISUL. Doutor em Lingüística. E-mail: <adbonini@yahoo.com.br>.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006 413


Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

um problema maior de circulação social, ou seja, nossos alunos têm dificuldade em


identificar o gênero “artigo de pesquisa” como uma prática social cujos propósitos
são o avanço dos diversos campos científicos e a circulação de conhecimentos dentro
da comunidade discursiva acadêmica. Muitos trabalhos produzidos por mestrandos
apresentam-se como uma “colcha de retalhos” composta de noções diversas (e
muitas vezes desconectadas) sobre um campo, como se o propósito da produção de
um artigo acadêmico fosse o mesmo de uma “prova”, isto é, o texto é produzido
para que o leitor/professor possa avaliar (e atribuir uma nota para) o conhecimento
do aluno sobre determinado campo.
A partir de observações e reflexões a respeito da produção textual escrita de
nossos alunos, sentimos a necessidade de realizar uma intervenção pedagógica no
sentido de identificar os problemas relacionados à aprendizagem (apropriação) da
prática escrita, principalmente do artigo de pesquisa, no ambiente acadêmico, e
discutir e construir com os alunos algumas estratégias de auxílio nessa aprendizagem.
Essa intervenção se deu na forma de uma oficina de produção textual acadêmica
escrita, cujos detalhes descreveremos na próxima seção. Após a oficina, enviamos
aos alunos um questionário com perguntas relativas a suas concepções sobre ensino-
aprendizagem de escrita. Com base nas respostas obtidas, neste artigo realizamos
uma breve investigação dos discursos sobre a escrita que subjazem à fala dos alunos.
O artigo subdivide-se nas seguintes seções: 2. A oficina de produção textual
acadêmica escrita, onde descrevemos a oficina propriamente dita e as tarefas
subseqüentes; 3. Fundamentação teórica, onde apresentamos alguns dos conceitos
discutidos com os alunos durante a oficina, e que representam nossa linha teórico-
metodológica; 4. Discursos sobre a escrita e sobre o aprendizado da escrita, onde
resumimos as principais visões sobre letramento e sobre o aprendizado da escrita
presentes na fala de alunos e professores; 5. Análise dos questionários, onde
procuramos, nas respostas dos alunos, traços dos distintos discursos sobre a escrita
discutidos na seção anterior; 6. Comentários finais.

2 A OFICINA DE PRODUÇÃO TEXTUAL ACADÊMICA ESCRITA

Em resposta às dificuldades apresentadas por nossos alunos de mestrado nas


tarefas relativas à escrita acadêmica, planejamos e oferecemos, em julho de 2003, no
programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Unisul (campus de Tubarão),
a primeira versão de uma Oficina de Produção Textual para alunos de mestrado. A
primeira etapa desse trabalho, que poderíamos chamar de pré-oficina, consistiu da:

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Figueiredo e Bonini

a) identificação dos problemas mais comuns presentes nos textos de alunos


que cursaram outras disciplinas conosco; e
b) criação de um material de apoio, com base nos dados mencionados
acima, para ser utilizado durante a oficina.
A segunda etapa consistiu da oficina propriamente dita, oferecida de forma
intensiva durante uma semana (40 horas em sala de aula, mais aproximadamente
40 horas de tutoria pós-oficina), procurando, numa vertente mais teórica, introduzir
e discutir conceitos como discurso, práticas discursivas, gênero, comunidade
discursiva, etc, e, numa linha mais prática, aplicar esses conceitos a textos reais
produzidos pelos próprios alunos ou por outros produtores textuais, discutindo e
identificando problemas em nível micro e macroestrutural. As atividades da oficina
seguiram o cronograma apresentado no quadro 1.

Quadro 1 – Roteiro das atividades da oficina de produção do texto acadêmico.

A terceira etapa consistiu de atividades pós-oficina. Da oficina participaram


13 alunos bastante heterogêneos em termos de formação prévia e habilidades de

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006 415


Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

escrita acadêmica. Desses 13, seis realizaram uma minipesquisa atrelada ao texto
(nas áreas de análise do discurso e estudos de gênero textual), sendo que quatro
deles desenvolveram essa pesquisa num processo de produção textual em etapas
que foi acompanhado, na forma de tutorias, pelos professores que coordenaram a
experiência, como podemos ver no quadro 2.

Quadro 2 –Etapas realizadas pelos alunos no processo de tutoria e resultado


quanto ao texto produzido.

Após essa fase de produção textual em etapas, enviamos aos alunos um


questionário com sete perguntas relativas ao texto e ao discurso acadêmico, com o
objetivo de investigar as concepções dos alunos sobre a escrita acadêmica, e como
eles avaliavam a influência da oficina em sua produção textual escrita1. Dos treze
alunos que originalmente participaram da oficina, apenas cinco responderam o
questionário. A análise dessas respostas encontra-se na seção 4 deste artigo.
1
Os questionários só foram enviados aos alunos dois meses após o término da oficina. Não realizamos um questionário
pré-oficina, que pudesse nos servir de comparação, e também não podemos, apenas a partir do questionário
aplicado, distinguir se as concepções expressas pelos alunos resultam das discussões realizadas durante a oficina,
se de leituras feitas em outras disciplinas, ou se de ambas as fontes. Ou seja, neste artigo não pretendemos traçar
um nexo causal direto entre a oficina e a forma como os alunos concebem a produção textual acadêmica escrita
em geral, ou seu próprio desempenho nessa área. Apesar dessas limitações, julgamos que nosso trabalho se
justifica por duas razões: primeiro, porque na fala dos alunos podemos identificar traços de diferentes concepções
sobre o que seja a escrita acadêmica, e sobre os discursos de onde essas concepções provêm; segundo, porque
esse trabalho pode servir como sugestão para futuras pesquisas sobre ensino e aprendizagem da escrita acadêmica,
especialmente com a aplicação de instrumentos (e.g. questionários, entrevistas) pré e pós-intervenção pedagógica.

416 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006


Figueiredo e Bonini

3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

3.1 Discurso e prática social


Durante sua formação de ensino superior, espera-se que os estudantes
universitários adquiram a capacidade de discutir e aplicar conhecimentos teóricos
adquiridos ao longo do curso (ou das disciplinas), e expor suas idéias sobre determinado
tema, de forma clara e convincente. Para tal, o aluno universitário deve utilizar-se do
discurso acadêmico, e dos gêneros aceitos para uso dentro deste discurso (na
modalidade escrita, podemos citar o artigo acadêmico, a resenha, o relatório).
Entretanto, muitos alunos demonstram dificuldade na produção de trabalhos escritos,
tanto no que se refere à forma do texto quanto à construção de uma linha argumentativa
e/ou expositiva que possibilite a exposição e discussão clara de teorias, fatos, idéias e
posições pessoais. Simões aponta duas razões que levam o aluno universitário ou de
pós-graduação ao estresse no momento de produção do texto acadêmico escrito: o
baixo conhecimento lingüístico e um quase total desconhecimento da forma que este
texto deve apresentar (2002, p. 31). Em suas palavras, “a produção do texto técnico-
científico, além do indispensável domínio específico do tema, requer conhecimento,
no mínimo, satisfatório da língua instrumental em que será produzido. Isto porque a
clareza – ou legibilidade – do texto é condição de seu aceite e credibilidade”. Tal
posição parece delinear a linguagem da ciência e da academia como um código
instrumental que pode ser ‘dominado’ pelo aluno, garantindo assim a aceitabilidade
de seu texto. O que nos parece ausente nesta noção é uma visão dinâmica e dialógica
das normas do texto científico, cujo conhecimento funciona como passaporte para que
o escritor-aprendiz ingresse na comunidade discursiva acadêmica. A ponte entre uma
visão instrumental da linguagem científica como mero código e uma noção de texto
como forma de interação (que pode ser aceito ou rejeitado pelo(s) interlocutor(es))
é justamente um aprofundamento dos conceitos de ‘discurso’, ‘práticas discursivas’ e
‘comunidade discursiva’.
Pensamos, nesse sentido, que o desconhecimento da forma dos textos
científicos apresentados por muitos alunos do ensino superior e de pós-graduação
se deve à sua pouca familiaridade com a noção de discurso, mais especificamente
com o que seja discurso científico ou acadêmico. No escopo deste trabalho, adota-
se uma visão de discurso como prática social, defendida pela linha anglo-saxônica
de análise do discurso conhecida como ‘Análise crítica do discurso’ (doravante ACD).
Uma premissa básica da ACD é que a linguagem é uma forma de ação social. Mas

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006 417


Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

quais são as implicações desta premissa? Primeiro, que a linguagem é parte da sociedade,
e não algo externo a ela. Segundo, que a linguagem é um processo social. E terceiro,
que a linguagem é um processo socialmente condicionado por outros elementos (não-
lingüísticos) da sociedade. Fairclough (1989) argumenta que não há uma relação
externa ‘entre’ linguagem e sociedade, mas uma relação dialética interna. A linguagem
é parte da sociedade; os fenômenos lingüísticos são fenômenos sociais de um tipo
especial, e os fenômenos sociais são (em parte) fenômenos lingüísticos.
Os fenômenos lingüísticos são sociais na medida em que, sempre que alguém
fala ou ouve ou escreve ou lê, essas ações são feitas de formas socialmente
condicionadas, e provocam efeitos sociais. Por outro lado, os fenômenos sociais são
lingüísticos na medida em que as atividades lingüísticas que ocorrem em contextos
sociais não são um mero reflexo ou expressão de processos e práticas sociais, na
verdade elas são parte desses processos e práticas.
Os analistas críticos do discurso acreditam que práticas sociais e práticas
discursivas se apóiam mutuamente, i.e., a linguagem é tanto fonte quanto receptora
de processos discursivos, sociais e ideológicos mais amplos. Devido a esta inter-
relação entre discurso e sociedade, as instituições sociais dependem profundamente
da linguagem. Nas palavras de Wodak (1996, p. 15):

A análise crítica considera o discurso – o uso da linguagem na fala e na


escrita – como uma forma de ‘prática social’. Descrever o discurso como
prática social implica numa relação dialética entre um evento discursivo
em particular e a situação, instituição e estrutura social que o cerca: o evento
discursivo é moldado por elas, e também as molda... [O discurso] é
constitutivo tanto na medida em que ajuda a sustentar e reproduzir o status
quo social, quanto na medida em que contribui para transformá-lo.

Assim, entende-se discurso como uma categoria que pertence à e provém da


esfera social. Em termos amplos, ‘discurso’ (substantivo incontável) é o uso da
linguagem visto como prática social. De forma mais específica, ‘discursos’ (substantivo
contável) são formas de criar significados a partir de uma perspectiva em particular
(e.g. discurso patriarcal, discurso feminista, discurso ecológico), formas de falar,
de ver e de pensar (FAIRCLOUGH, 1995). Os discursos materializam-se nos textos
(tanto falados quanto escritos), o que quer dizer que as características lingüísticas
presentes num texto são determinadas pelas características do(s) discurso(s) que
este texto exemplifica (KRESS, 1985; MEURER, 1997).

418 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006


Figueiredo e Bonini

3.2 O conceito de comunidade discursiva


O conceito de comunidade discursiva vem sendo utilizado por lingüistas e
professores que adotam uma visão de discurso como prática social, e de produção
textual como atividade socialmente situada, realizada dentro de comunidades que
possuem convenções específicas sobre a forma e o conteúdo dos textos. Dentro
desta visão, “o discurso mostra o conhecimento do grupo. As convenções discursivas
facilitam a iniciação de novos membros na comunidade, ou seja, os novatos são
estimulados a usar de forma apropriada as convenções discursivas reconhecidas
pela comunidade” (HEMAIS; BIASI-RODRIGUES, 2005, p. 115).
Swales (1990) aponta seis características que podem definir uma comunidade
discursiva: 1) o conjunto de objetivos públicos comuns; 2) a existência de mecanismos
para comunicação entre os participantes; 3) a função do feedback, ou seja, o uso
das comunicações recebidas pelos participantes, que funciona como forma de
participação na comunidade; 4) a capacidade que a comunidade tem para desenvolver
seus próprios gêneros; 5) o uso de um léxico específico; e 6) a existência de membros
que possuem um conhecimento profundo do discurso e dos conteúdos que circulam
na comunidade.
Em suas últimas publicações, Swales vem revisando seu conceito original de
comunidade discursiva, contemplando a existência de conflitos dentro dessas comunidades.
Ou seja, os textos são vistos como produzidos com base em princípios retóricos que
podem ser ambíguos e instáveis. Isso ocorre porque as comunidades discursivas, suas
convenções e seus textos estão inseridos em contextos históricos passíveis de mudanças.
As comunidades discursivas são vistas como ‘desorganizadas’, isto é, mal definidas e
instáveis. O que as define, segundo Porter, é o conjunto de seus textos, unificado por um
enfoque comum (apud HEMAIS; BIASI-RODRIGUES, 2005, p. 117).
A definição de comunidade discursiva de lugar proposta atualmente por Swales
nos parece particularmente apropriada aos propósitos deste artigo, uma vez que enfatiza
o caráter interativo, inclusivo e identitário das práticas discursivas utilizadas por
determinada comunidade. Referindo-se ao conceito desenvolvido por Swales, Hemais
e Biasi-Rodrigues definem a comunidade discursiva de lugar como (2005, p. 117):

Um grupo de pessoas que regularmente trabalham juntas e que têm uma


noção estável, embora em evolução, dos objetivos propostos pelo seu grupo.
Essa comunidade desenvolve uma gama de gêneros falados, falados-escritos
e escritos para orientar e monitorar os objetivos e as propostas do grupo.
Para os membros mais antigos, esses gêneros possuem características

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006 419


Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

discursivas e retóricas evidentes. Para tais membros, os gêneros compõem


um sistema ou rede interativa que tem a função adicional de validar as
atividades da comunidade fora de sua esfera.

Os membros centrais e proficientes da comunidade discursiva tentam levar


aos membros aprendizes o conhecimento das tradições de sua comunidade, e fazer
com que esses novos membros utilizem as práticas discursivas sancionadas e vistas
como apropriadas. Há, portanto, desequilíbrio de forças, divergências, falta de união
e até preconceito entre os membros das comunidades discursivas.
Swales (1998) afirma que há comunidades discursivas que ‘possuem’ gêneros,
no sentido em que impõem aos gêneros suas normas, convenções e ideologias, e
outras que são possuídas pelo gênero, na medida em que os membros da comunidade
procuram reproduzir os gêneros tal como os receberam da tradição e da ideologia
da comunidade. Sendo partidários da crença de que há uma relação bidirecional
entre linguagem e práticas sociais, cremos que ambos os fenômenos apontados por
Swales ocorrem em comunidades discursivas como a acadêmica. Os membros
seniores da comunidade criam e alteram gêneros, e imprimem nesses gêneros as
ideologias, normas e convenções de seu grupo social. Por outro lado, os membros
aprendizes, ou juniores, da comunidade tendem a utilizar os gêneros sancionados
de forma tradicional, reproduzindo padrões lingüísticos, retóricos, discursivos e
ideológicos. Essa ‘reprodução’ de gêneros funciona como uma forma de ingresso à
comunidade.

3.3 O conceito de letramento em gêneros


Em termos das pedagogias de letramento, entendem-se gêneros como as
diferentes formas que um texto pode assumir, dependendo dos diferentes objetivos
sociais que esse texto pretende alcançar. Segundo Cope e Kalantzis, “os textos são
diferentes porque fazem coisas diferentes. Assim, qualquer pedagogia de letramento
tem que se preocupar não apenas com as formalidades do funcionamento dos textos,
mas também com a realidade social viva dos textos em uso. O que um texto faz é
resultado do fim para o qual ele é utilizado” (1993, p. 7).
Assim, as causas das diferenças entre os textos podem ser encontradas em
suas funções sociais específicas. Nessa perspectiva, os gêneros são vistos como
processos sociais. Os textos assumem padrões estruturais relativamente previsíveis
de acordo com padrões de interação social dentro de determinada cultura. Em outras
palavras, a padronização textual se combina com a padronização social na forma de

420 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006


Figueiredo e Bonini

gêneros. Nas palavras de Cope e Kalantzis, “os gêneros são intervenções textuais na
sociedade; e a sociedade em si nada seria sem a linguagem, com seus padrões
previsíveis” (1993, p. 7).
Cope e Kalantzis lembram que, longe de filiar-se ao movimento de ‘volta ao
básico’, a abordagem do letramento em gêneros faz objeções tanto à pedagogia
tradicional quanto à pedagogia progressista. Ao contrário dos progressistas, os
pesquisadores que adotam essa linha acreditam na importância da metalinguagem e
da gramática na escola, alegando que a educação é o único espaço social onde a
gramática como metalinguagem tem importância real. Em oposição aos tradicionalistas,
os defensores do letramento em gêneros argumentam que a metalinguagem precisa
ser explicada em termos de suas funções sociais; se o projeto da escola é facilitar a
inclusão social dos alunos provenientes de grupos sociais marginalizados através do
acesso aos gêneros de uma variedade de âmbitos sociais, então é necessário estabelecer
uma conexão explícita entre estrutura e propósito dos gêneros ensinados, isto é, a
gramática ensinada na escola precisa ser obviamente relevante.
Em resumo, o conceito de ‘letramento em gêneros’ proposto por Cope e
Kalantzis (1993) se diferencia tanto das abordagens tradicionais ao ensino da escrita,
que davam ênfase à correção formal do texto, quanto das pedagogias progressistas
que enfatizam a aprendizagem ‘natural’ através da prática livre da escrita. Segundo
os autores, “o letramento em gêneros não significa progressismo liberal, nem é
parte do movimento que prega a ‘volta ao básico’ [ensino da gramática normativa].
O letramento em gêneros está tentando estabelecer um novo espaço pedagógico”
(1993, p. 1). Nas palavras dos autores:

O processo de desenvolver a familiaridade dos alunos com o texto é, por


um lado, lingüístico, passando da oralidade para formas de letramento que
progressivamente se distanciam da gramática da fala. Por outro lado, esse
processo é também epistemológico. Conforme os alunos são introduzidos
no discurso e nos [distintos] campos de conhecimento das disciplinas
escolares, eles se afastam do senso comum e se aproximam de um tipo de
senso não-comum – o senso não-comum que transmite conhecimentos
técnicos e especializados, e que possui formas próprias de criar significados
no mundo. (COPE; KALANTZIS, 1993, p. 11-12, nossa tradução)

Esses autores distinguem, dentro da pedagogia de letramento em gêneros,


duas posições: a da modelagem dos gêneros do poder (MARTIN, 1993), vista por

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006 421


Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

alguns como uma pedagogia de transmissão, próxima de um modelo assimilacionista


de educação (assimilação não reflexiva dos gêneros de poder), e a da geração de
gêneros, ou aprendizagem ativa (KRESS, 1993; COPE; KALANTZIS, 1993).
A pedagogia de letramento em gêneros apresenta vários aspectos inovadores,
dos quais vamos explorar apenas dois, por nos parecerem particularmente relevantes
para o trabalho que propomos na oficina de produção textual acadêmica escrita.
Primeiro, nessa perspectiva o professor é reinvestido como profissional, como um
perito em linguagem cujo status no processo de aprendizagem é de autoridade, mas
não de autoritarismo. A autoridade do professor resulta de sua relação com o
conhecimento, isto é, os professores são autoridades em suas disciplinas e em sua
profissão: a educação lingüística.
Segundo, a pedagogia de letramento em gêneros mantém os aprendizes num
movimento de mão dupla, entre processos de indução e de dedução, entre a linguagem
e a metalinguagem, entre as atividades de descoberta pessoal e os conhecimentos
transmitidos, entre a experiência e a teoria (COPE; KALANTZIS, 1993, p. 18).
Nosso objetivo, ao oferecer a oficina de escrita acadêmica, foi bastante
semelhante ao que se propõe a pedagogia de letramento em gêneros descrita por
Cope e Kalantzis (1993, p. 20): auxiliar os aprendizes do discurso acadêmico a
desenvolver uma metalinguagem e habilidades lingüístico-cognitivas que lhes
permitam fazer generalizações e abstrações a partir dos conceitos estudados e das
atividades desenvolvidas no curso de mestrado.

4 OS DISCURSOS SOBRE A ESCRITA E SOBRE O APRENDIZADO DA


ESCRITA

Para esse artigo, adotamos uma classificação dos discursos da escrita de


cunho crítico, influenciada pela Análise Crítica do Discurso, mais especificamente
pela abordagem conhecida como Conscientização Lingüística Crítica (Critical
Language Awareness), posição adotada por pesquisadores como Fairclough (1992),
^ ^
Clark e Ivanic (1997), Barton, Hamilton e Ivanic (1999), entre outros. De acordo
^
com Ivanic (2004), as políticas, as práticas e as opiniões sobre o desenvolvimento
do letramento na educação formal baseiam-se, de forma consciente ou inconsciente,
em certas formas de ver a escrita, e como se aprende a escrever. Essas diferentes
concepções sobre o letramento e sobre a aprendizagem da escrita encontram-se no
^
centro de certos discursos específicos. Ivanic entende discurso como “grupos de

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Figueiredo e Bonini

valores e crenças que geram formas particulares de ação social, decisões, escolhas
e omissões particulares, assim como certos tipos de estruturas lingüísticas” (2004,
p. 1). O que a autora propõe é que a forma como falamos sobre a escrita e sobre a
aprendizagem da escrita apresenta traços reconhecíveis de certos discursos sobre a
escrita. Como os textos e os eventos discursivos dos quais participamos são
heterogêneos, geralmente nossas concepções sobre a escrita, sua aprendizagem e
seu ensino, apresentam um amálgama complexo de mais de um discurso sobre o
tema. Por exemplo, ao analisar suas respostas escritas aos textos de alunos,
Christiansen (2004) concluiu que seu discurso se localizava em algum ponto entre a
abordagem do letramento acadêmico, uma proposta com a qual ele se diz teórica e
profissionalmente comprometido, o modelo das habilidades, resquício de sua
formação de ensino médio e universitário, e o modelo da socialização, que marcou
grande parte de sua pós-graduação na área de escrita acadêmica.
^
Ivanic identifica seis discursos sobre a escrita e sobre a aprendizagem e o
ensino da escrita. Esses discursos consistem de crenças sobre como se escreve e
como se aprende a escrever, assim como das práticas de ensino e de avaliação da
escrita associadas a essas crenças. Os seis discursos estão resumidos, de forma
diagramática, no quadro 3.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006 423


Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

Quadro 3 – Discursos da escrita e do aprendizado da escrita (adaptado de


^
IVANIC , 2004, p. 22).
^
A linha de pesquisa e teorização sobre letramento à qual Ivanic se filia (The
New Literacy Studies), distingue dois grandes grupos de concepções sobre letramento
em circulação: a visão não-social, que concebe o letramento como uma série de
habilidades autônomas e descontextualizadas localizadas no indivíduo; e a visão do
letramento como um grupo de práticas sociais, culturalmente situadas e
ideologicamente construídas (cf. STREET, 1984; BARTON, 1994; BAYHAM, 1995;
^
CLARK; IVANIC, 1997, 1998,1999; GEE, 1996).

424 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006


Figueiredo e Bonini

^
Ao usarmos a proposta de Ivanic , é importante lembrar que um professor de
produção escrita dificilmente se encaixa em apenas uma das linhas horizontais do
modelo, ou seja, suas crenças sobre o ensino, aprendizagem e avaliação da escrita
provavelmente envolvem a combinação de mais de um discurso sobre o tema.
Entretanto, em contextos específicos (ou atividades específicas de escritura), algumas
vezes é possível, pela forma como algumas crenças e práticas são postas em primeiro
plano, identificar um discurso dominante.

4.1 Os seis discursos sobre a escrita ^


i. O discurso das habilidades: Segundo Ivanic, muitas das políticas e práticas
sobre o desenvolvimento do letramento no contexto escolar estão calcadas na noção
de escrita como aplicação de conhecimentos sobre um conjunto de padrões e regras
lingüísticas às relações som-símbolo e à construção de sentenças. Em sua forma
mais extrema, esse discurso prega que a escrita é uma atividade unitária, independente
do contexto, na qual os mesmos padrões e regras se aplicam a todas as formas de
produção escrita, em qualquer gênero de texto. Essa crença leva a uma abordagem
de ensino de escrita também baseada em habilidades, focalizando habilidades
‘autônomas’ de escrita, ortografia, pontuação e estrutura frasal ‘corretas’. Dentro
dessa perspectiva, o ensino é explícito, envolvendo padrões de ortografia e regras
para a construção de sentenças ‘corretas’ do ponto de vista gramatical e de pontuação.
Na abordagem das habilidades, a escrita e a leitura são tratadas como habilidades
distintas, e os documentos curriculares e os materiais didáticos geralmente dedicam
seções separadas para cada uma delas.
O discurso das habilidades pode ser reconhecido pela referência a
habilidades, à pontuação e à gramática, e por expressões como ‘correto/a’, ‘preciso’,
“apropriado/a”, “os alunos devem/deveriam”. Os críticos do discurso das habilidades
não discutem que o conhecimento (ao menos implícito) dos padrões ortográficos
da língua, da gramática padrão em termos de linguagem escrita, e das convenções
de pontuação é uma parte essencial da escrita. O que se contesta é a primazia deste
conhecimento em relação a outros aspectos da escrita.
ii. O discurso da escrita como criatividade: Esta abordagem preocupa-se
mais com o conteúdo e o estilo da produção textual escrita do que com sua forma.
A escrita é valorizada como a produção criativa de um autor, sem outra função social
senão atrair ou entreter o leitor. Diferente da perspectiva anterior, nessa a escrita é
avaliada com base em seu conteúdo e estilo, ao invés de (ou em combinação com)

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Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

seu grau de acerto. Na abordagem criativa, aprender a escrever ‘bem’ é um processo


implícito, resultante do contato com ‘bons’ textos (modelo e estímulo) e da própria prática
da escrita sobre temas de interesse do autor, não podendo ser ensinado de forma explícita.
Os textos produzidos são avaliados em termos de estilo e conteúdo. Expressões
tipicamente encontradas nesse discurso são ‘escrita criativa’, ‘voz autoral’, ‘história’,
‘conteúdo interessante’. Nos debates polarizados sobre letramento, essa abordagem
é acusada de ‘elitista’, ‘leniente’, e incapaz de preparar os aprendizes para as
demandas do mundo do trabalho. Ela é apresentada como oposta ao ensino ‘básico’,
^
pé-no-chão, voltado para ‘o mundo real’. Ivanic (2004) argumenta, entretanto, que
essa polarização não é tão evidente nas práticas pedagógicas de desenvolvimento do
letramento, uma vez que muitos professores experientes procuram integrar o ensino
da escrita através de tópicos de interesse dos aprendizes – que permite a aprendizagem
implícita –, com o ensino explícito de regras e padrões lingüísticos.
iii. O discurso da escrita como processo: No final dos anos 70 e início dos 80,
os professores de produção textual escrita começaram a mudar seu foco de atenção
do produto para o processo da escrita, passando a se interessar mais por estágios
como o planejamento, o esboço e a revisão do que pelas características do produto
final. Um corolário inevitável dessa abordagem é que aprender a escrever deveria incluir
aprender os processos e procedimentos de composição textual. Essa visão engloba
tanto processos cognitivos, que podem ser aprendidos de forma implícita, quanto os
processos explícitos de ensino. A partir dos anos 80, muitos programas e materiais de
ensino em todo o mundo passaram a incorporar essa abordagem, e a incluir capítulos
ou seções sobre geração de idéias, esboço, revisão e edição de textos.
^
Ivanic, entretanto, se pergunta se este tipo de escrita pode ser avaliado. Uma
vez que o foco das práticas pedagógicas está no processo, parece injusto que a
avaliação se atenha ao produto. Por outro lado, o processo é apenas um meio para
atingir um fim: os alunos procuram aprender e aprimorar os processos envolvidos
na produção escrita como forma de melhorar a qualidade do resultado final, e não
como um fim em si mesmo.
Esse discurso pode ser identificado pela presença de termos como ‘planejar’,
‘esboçar’, ‘revisar’, ‘colaborar/colaboração’, ‘editar’. O discurso da escrita como
um conjunto de processos é bastante popular no meio educacional, tanto em posição
dominante quanto em várias combinações com outras abordagens.
iv. O discurso de gênero sobre a escrita: Tratar a escrita como um conjunto
de processos e não mais como um produto marcou uma grande mudança em termos

426 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006


Figueiredo e Bonini

de discursos sobre a escrita. Entretanto, a abordagem dos processos, além de traçar


distinções gerais entre a escrita narrativa, descritiva, expositiva e argumentativa, não
enfatiza as diferenças entre gêneros, contextos de produção e recepção textuais, e
objetivos textuais. A partir do final dos anos 80 surge uma nova visão da escrita como
um conjunto de gêneros moldados pelos contextos onde são produzidos, visão que
expande o conceito de escrita e passa a incluir aspectos sociais no evento de produção
textual escrita.
Um ponto-chave neste novo discurso é que os textos variam de acordo com
seu objetivo e contexto, o que permite identificar características lingüísticas de certos
gêneros de acordo com o meio no qual ocorrem (escrito ou falado), de acordo com
seus objetivos (relatar, descrever, informar, instruir), e de acordo com o grau de
formalidade e de certeza da situação. Essa abordagem está interessada no texto escrito,
mas também focaliza os fatores sociais envolvidos no evento de escrita. Nessa
perspectiva, o ‘bom’ texto é não só aquele escrito ‘corretamente’, mas aquele ^
lingüisticamente apropriado aos fins que se propõe (IVANIC, 2004).
Essa abordagem tem implicações claras para o ensino: os alunos precisam
aprender as características dos diferentes gêneros, de forma a poder reproduzi-los
apropriadamente para alcançar objetivos específicos em contextos específicos. Embora
seja possível adquirir esse conhecimento lingüístico de forma implícita, para a
abordagem de gênero a melhor forma de adquirir esses conhecimentos é através da
instrução formal explícita (cf. MARTIN, 1993; MARTIN, CHRISTIE; ROTHERY, 1994).
A abordagem de gênero surgiu na Austrália no final dos 1980. Ela envolve a
modelagem de gêneros-alvo, ou centrais, o ensino de terminologias lingüísticas, e o
uso dessas informações pelos aprendizes na construção de seus próprios exemplares
do mesmo gênero. Enfatiza-se o ensino daqueles que são vistos como ‘gêneros do
poder’, ou seja, os gêneros associados ao sucesso em ambientes escolares e no
mundo do trabalho (especialmente do trabalho burocrático), e que geralmente
envolvem um alto índice de nominalizações e de locuções nominais complexas.
Utilizando o trabalho de Lea e Street (1998)2 sobre as diferentes abordagens ao

2
Lea e Street (1998, apud CHRISTIANSEN, 2004, p. 3) apontam três abordagens gerais para o letramento que
influenciaram e influenciam as pesquisas e as práticas na área: 1) a abordagem das habilidades, na qual o letramento
é reduzido a um conjunto de habilidades que precisam ser adquiridas; 2) a abordagem da socialização acadêmica,
que procura aculturar os aprendizes no mundo da linguagem acadêmica; e 3) a abordagem do letramento
acadêmico, cujo foco são as práticas sociais envolvidas no processo de letramento. É importante notar que, nos
últimos anos, muitos autores têm tentado levantar as abordagens do ensino de escrita (JONHS, 1997; SCHNEUWLY;
DOLZ, 1997; HYLAND, 2002; BONINI, 2002; entre outros).

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006 427


Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

^
ensino da escrita acadêmica, Ivanic descreve a abordagem australiana de gêneros
como “‘socialização acadêmica’: o aprendizado das convenções estabelecidas para
os tipos de escrita que são valorizados na academia” (2004, p. 11).
A abordagem de gênero tem atraído tanto críticas quanto elogios, seja no
âmbito da escola, da pesquisa, ou da criação de políticas educacionais. Alguns a
vêem como lógica, sistemática, realista e ensinável. Outros, por outro lado, a
consideram prescritiva e simplista, baseada numa visão falsa dos gêneros como
unitários, estáticos e passíveis de especificação. Cope e Kalantzis (1993), por exemplo,
são contrários à modelagem por acreditarem que essa abordagem não só é uma
reencarnação da pedagogia da transmissão passiva, mas que também sacraliza os
gêneros do poder e os transmite de forma acrítica, pelo simples fato de que deveriam
ser ensinados para grupos de alunos historicamente à margem do letramento escolar.
Entretanto, vários pesquisadores e teóricos da área têm trabalhado no sentido de
integrar essa perspectiva com visões mais fluídas e ideologicamente estruturadas
dos gêneros textuais.
v. O discurso da escrita como prática social: Nessa visão da escrita, o texto e
os processos de composição são vistos como inseparáveis das interações sociais
complexas que formam o evento comunicativo no qual estão situados, sendo possível
^
isolar o sentido dos objetivos sociais da escrita. Como afirma Ivanic (2004, p. 12),

A escrita é concebida como uma série de práticas sociais: padrões de


participação, preferências de gênero social, redes de apoio e colaboração,
padrões de uso do tempo, espaço, ferramentas, tecnologia e recursos, a
interação entre a língua escrita com outros modos semióticos, os significados
simbólicos do letramento, e os objetivos sociais mais amplos que a escrita
desempenha na vida dos indivíduos e das instituições.

Nessa abordagem, o aprendizado da escrita é visto como um processo


implícito, que ocorre através da participação em eventos de escrita socialmente
situados, com objetivos relevantes e significativos para os aprendizes. Aprender a
escrever implica aprender não só a compor e construir um texto em termos
lingüísticos, mas entender por quem, onde, quando, em que condições, com que
recursos, e para que fins o texto é escrito. O conceito de ‘comunidades de prática’,
ou ‘comunidades discursivas’, é relevante para este tipo de discurso - os indivíduos
aprendem através da:

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Figueiredo e Bonini

‘participação periférica’ em eventos de letramento, e ao assumir a identidade


de membros de uma comunidade que usa o letramento de formas
específicas. A identificação é um termo chave para esse tipo de aprendizagem:
é mais provável que as pessoas comecem a participar de certas práticas na
medida em que se identifiquem com os valores, crenças, objetivos e
^
atividades de quem já realiza essas práticas. (IVANIC , 2004, p. 12) (cf.
FIGUEIREDO, 2004).

Uma das abordagens de ensino dentro desse discurso da escrita envolve


encorajar os aprendizes a fazer uma etnografia das práticas de letramento presentes
em uma determinada comunidade discursiva da qual gostariam de participar. Isso
envolve a observação e a investigação dessa comunidade, a documentação de suas
práticas e textos, a generalização do que é típico nesse contexto e, se possível, o
questionamento de o porquê as práticas discursivas dessa comunidade são como
são. Acredita-se que, através dessa abordagem, os alunos aprendem a partir da própria
pesquisa, descobrindo, com base nos exemplos que coletaram e analisaram, que
práticas precisam adotar e que textos precisam produzir para ingressar na
comunidade discursiva desejada. Isso foi, de forma mais restrita, o que tentamos
fazer através das discussões teóricas e das análises de textos reais durante a oficina.
O critério de avaliação da produção escrita dentro do discurso das práticas
sociais é a capacidade do texto de alcançar seus objetivos sociais, que só pode ser
efetivamente mensurada através dos efeitos que a escrita causa em outras pessoas. No
âmbito escolar, entretanto, é difícil implementar, ou mesmo quantificar, a eficácia como
um critério de avaliação, uma vez que grande parte das atividades de produção escrita
ocorre de forma descontextualizada, sendo avaliadas somente (ou basicamente) por
professores e examinadores. Assim, a eficácia da escrita acaba se tornando um critério
secundário em relação a outros critérios de avaliação pedagógica.
O discurso das práticas sociais pode ser identificado pela referência a eventos,
contextos, objetivos e práticas, a pessoas, tempos, lugares, tecnologias e recursos
materiais para a escrita, e a características visuais e físicas dos textos.
vi. O discurso sociopolítico sobre a escrita: Esse discurso, assim como o
anterior, também se interessa pelo contexto da produção escrita, porém enfatizando
aspectos mais amplos, gerais e políticos desse contexto. Essa abordagem parte da
crença de que:

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006 429


Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

A escrita, como a linguagem em geral, é moldada por forças sociais e relações


de poder, contribui para a construção das forças sociais que irão operar
^
no futuro (cf. Fairclough, 1992; Kress, 1994, Clark e Ivanic , 1997), e tem
^
conseqüências para a identidade do autor que nela está representado (Ivanic,
1998). A escrita lança mão de recursos socialmente construídos, tanto
‘discursos’, que significam representações particulares do mundo, quanto
‘gêneros’, que significam convenções específicas para tipos específicos de
^
interação social. (IVANIC, 2004, p. 14)

É importante ressaltar que esses recursos, longe de constituírem uma gama de


opções neutras disponíveis para o escritor, são socialmente e culturalmente estruturados,
de tal forma que o senso comum determina a escolha de alguns em detrimento de outros
em cada contexto específico, e essas escolhas geralmente representam os interesses dos
grupos que detêm mais poder social dentro do contexto em questão. As decisões
hierárquicas influenciam, ou até determinam, que recursos discursivos e genéricos estarão
ao alcance do escritor. Assim, “os autores não são inteiramente livres para escolher como
representar o mundo, como representar a si mesmos, que papel social assumir, como se
dirigir a seus leitores; esses elementos são, de certa forma, determinados pelo contexto
^
sócio-político no qual estão escrevendo” (IVANIC, 2004, p. 14).
A versão mais moderna dessa concepção ‘socioconstrutivista’ da escrita é menos
determinista, e vê o escritor como um agente social capaz de escolher discursos e gêneros
não privilegiados dentro do contexto no qual está atuando, produzindo, assim, textos e
práticas heterogêneos e não-conformistas, capazes de desafiar e subverter as normas e as
convenções estabelecidas. Os aprendizes teriam a capacidade de questionar o status quo
e contribuir para mudanças sociais e discursivas.
Entretanto, para tanto é preciso desenvolver uma consciência crítica de por que
os discursos e gêneros são como são, ou seja, que fatores históricos e políticos ajudaram
a moldar sua estrutura e seus conteúdos, e os padrões de desigualdade entre eles. Segundo
^
Ivanic (2004), essas questões precisam fazer parte do ensino para que os aprendizes
compreendam as conseqüências de certas escolhas em termos de escrita, e da participação
em certos gêneros, discursos e comunidades discursivas.
Essa visão da escrita e do aprendizado da escrita envolve o ensino (ou
discussão) explícito de teorias, construtos e explicações socioculturais, como
propõem as abordagens do letramento crítico ou conscientização lingüística crítica
^
(cf. FAIRCLOUGH, 1992b; CLARK, 1992; CLARK; IVANIC, 1991, 1998; COPE; KALANTZIS,
1993, 2000). Essas abordagens envolvem a discussão de como as escolhas lingüísticas
e semióticas posicionam escritores e leitores em termos de visões de mundo, papéis

430 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006


Figueiredo e Bonini

e relações sociais, e como outras escolhas teriam modificado a visão de realidade


que o texto representa e constrói, as conseqüências dessas escolhas para a identidade
do escritor, e a forma como a relação autor-leitor é estabelecida.
A noção de ‘bons’ ou ‘maus’ textos é fortemente criticada dentro desta
abordagem, uma vez que se baseia em relações de poder e de exclusão. Há, entretanto,
um critério não declarado de avaliação, de cunho basicamente político: a produção
escrita pode ser avaliada em termos de sua contribuição para a igualdade entre os
participantes do evento de escrita, e por sua responsabilidade social na forma de
representação dos atores sociais. Esse não é, entretanto, um critério facilmente adotável
no contexto pedagógico devido ao seu caráter inerentemente subjetivo.
Esse discurso pode ser identificado por referências à política, ao poder, à
ideologia, às representações, à identidade, à ação e à mudança social, pela adoção
da pedagogia explícita mencionada acima, e por um posicionamento crítico em
relação à avaliação pedagógica da escrita.
Em termos da nossa própria abordagem quanto ao ensino e aprendizagem da
escrita acadêmica, adotamos, tanto durante a oficina quanto neste artigo, uma posição
híbrida entre a concepção de letramento em gêneros (ver seção 3.2 acima), a concepção
da escrita como prática social, e a concepção sociopolítica sobre a escrita.

5 ANÁLISE DOS QUESTIONÁRIOS RESPONDIDOS PELOS ALUNOS

Como foi dito anteriormente, enviamos aos alunos um questionário com sete
perguntas sobre discurso, práticas acadêmicas, gêneros acadêmicos, e sobre como
eles avaliavam a influência da oficina em sua concepção de escrita acadêmica, e em
sua prática de produção escrita pós-oficina (artigo produzido). Cinco alunos
responderam ao questionário. Na análise abaixo, buscamos, nas respostas dos alunos
para cada uma das perguntas, evidências dos diferentes discursos sobre a escrita, a
^
partir do modelo de Ivanic .
Na resposta à pergunta “O que você entende por discurso?”, a fala dos
alunos traz marcas tanto do discurso das práticas sociais quanto do discurso
sociopolítico, através de referências ao contexto sociocultural de produção textual
escrita, e à presença de ideologias e relações de poder no discurso.

(1) [...] Nessa abordagem, discurso é algo mais que apenas uso da
linguagem: é uso da linguagem, falada ou escrita, como um tipo
de prática social, que está sempre inserida em um contexto. O

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Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

discurso traz consigo representações de mundo que podem ou não explicitar


alguma forma de poder ou de ideologia. (Aluno 1)
(2) Ele [o discurso] se relaciona com o social, visto as pessoas
representam a sua visão de mundo através do discurso, uma visão
influenciada por fatores sociais, econômicos, políticos, etc. Através dele
as pessoas demonstram atitudes, valores, crenças que muitas vezes
são inconscientes, por isso são ideológicas; a maioria das pessoas
não percebe que apresentam tais pontos no discurso e o usam para
obedecer ou exercer poder sobre outras pessoas. (Aluno 3)
(3) É o pronunciamento, oral ou escrito, que traz consigo marcas indicativas
de sua localização social, espacial e temporal. (Aluno 5)

O discurso de gêneros também se faz presente:

(4) Discurso é toda produção que trás em si uma marca ideológica,


produzida por uma comunidade discursiva, trás marcas de “ter” que
passar por um vinco inconsciente [...] Para mim o discurso é essencialmente
algo inconsciente e ideológico, no qual quanto mais você tenta transpor
mais estará preso nele. (Aluno 4)
(5) Para mim, discurso é um conjunto de enunciados, ou um texto que tem
sentido proposto para uma determinada comunidade discursiva. (Aluno 2)

Quanto à segunda pergunta, ‘Como você definiria o discurso científico?


Qual é/são seu(s) propósito(s), e quais são seus princípios básicos?’, as
respostas de alguns alunos indicam mais uma vez a presença de conceitos provenientes
do discurso de gêneros, provavelmente como resultado das discussões relacionadas
a esse campo realizadas durante a oficina.

(6) Gênero de discurso que atende a requisitos básicos do fazer científico,


busca faezr [sic] circular dentro da comunidade científica
experimentos, inovações, descobertas e tendências dentro dessa
área de conhecimento. É permeado pela sistematicidade, pela criticidade
e pela objetividade, entre outras, para prover o leitor de indícios que
permitam a verificação daquilo que se expõe. (Aluno 5)

Aqui, o critério de avaliação do discurso científico parece ser, claramente, a


eficácia dos textos escritos como forma de comunicação real e relevante entre os

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Figueiredo e Bonini

membros de determinada comunidade discursiva, remetendo também ao discurso


das práticas sociais (escrita como comunicação significativa).
Entretanto, associada ao discurso de gênero, aparece também uma
preocupação com a precisão da linguagem, que remete mais ao discurso das
habilidades. Nesses casos, é difícil traçar, na fala dos alunos, a fronteira entre o
discurso dos gêneros, que teria como critério de avaliação dos textos a adequação
a estruturas genéricas específicas, e o discurso das habilidades, cujo critério de
avaliação textual é a ‘precisão’ do texto em termos de normas gramaticais, de
pontuação e de coesão. Vejamos:

(7) Os discursos têm que ter um [sic] linguagem apropriada, que não
seja um linguajar vulgar, mas que também não seja uma linguagem pretensiosa,
que seja um [sic] linguagem clara, objetiva e precisa. (Aluno 2)
(8) Um discurso para ser classificado como científico precisa ter antes de
tudo uma linguagem apropriada segundo o meio acadêmico que irá
circular e que seja fruto de um estudo teórico e/ou prático do assunto.
(Aluno 3)

Uma outra resposta remete claramente ao discurso sociopolítico, com


menções à ‘ideologia dominante’, e à visão positivista do discurso da ciência como
produtor de ‘verdades’:

(9) O discurso científico [...] é falar de um lugar do saber, do


lugar da verdade sobre os outros [...] se há cientificidade e somos
cortados pela ideologia dominante, estamos fadados a pensar no
discurso científico como objetivo [sic] que eles [sic] tem que é o de
produzir verdades absolutas. O propósito do discurso científico [...] é
produzir verdades numa tentativa de desconstrução de outras e
construção da minha verdade (deste meio científico) e assim obter o
poder. (Aluno 4)

A terceira pergunta, ‘Quais são os gêneros acadêmicos e científicos


(pelo menos os principais)? Como eles se caracterizam em termos de
estrutura característica, produtor(es), leitor(es), forma de circulação?
gera respostas que também trazem evidências do discurso de gênero, através dos
conceitos de propósito comunicativo, comunidade [discursiva], e filiação a essa
comunidade. Vejamos:

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006 433


Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

(10) Estes gêneros têm toda uma organização textual (resumo,


introdução, revisão da literatura, resultados obtidos, conclusão,
referencias). [...] Entendo que para um produtor elaborar um texto
acadêmico, antes de mais nada, ele precisa planejar seu texto [...] Para ler
esses textos é necessário que o leitor seja membro da academia e que também
tenha conhecimento do assunto, outro fator importante, é necessário que
leitor saiba sobre o processo (sic) produção, contexto, etc, para o leitor poder
entender o propósito comunicativo do gênero. (Aluno 2)
(11) Os gêneros acadêmicos e científicos [...] são produzidos pelo meio
acadêmico da comunidade na qual o escritor está inserido, sendo
que este pode ser desde um aluno como até um pesquisador com
mais experiência, quanto maior for o conhecimento o assunto, maior
será a contribuição para o meio. (Aluno 3)
(12) [Os gêneros acadêmicos] têm sempre o compromisso de:
contextualizar/introduzir o leitor ao âmbito da pesquisa, indicando tema,
objetivos, importância da publicação, linha teórica, etc; fazer um breve
levantamento sobre a atual situação na qual o alvo da pesquisa encontra-se, por
meio da redação de breve pesquisa bibliográfica; indicar qual orientação
metodológica guia a produção do produto científico, seu recorte e eventual
adoção de instrumento; analisar os dados obtidos; relatar as considerações
finais acerca do estudo desenvolvido. O material costuma circular por meio de
revistas/publicações especializadas, voltadas a um público segmentado,
filiado àquela área de conhecimento ou linha de pesquisa. (Aluno 5)

Nos dois últimos exemplos vemos a noção de comunidade discursiva (“meio


acadêmico no qual o escritor está inserido”; “O material costuma circular por meio
de revistas/publicações especializadas, voltadas a um público segmentado, filiado
àquela área de conhecimento ou linha de pesquisa”), e da existência de membros
periféricos, ou novatos, e membros centrais, ou antigos, dentro de cada uma dessas
comunidades (“desde um aluno como até um pesquisador com mais experiência,
quanto maior for o conhecimento o assunto, maior será a contribuição para o meio”),
com diferentes graus de participação.
Apesar de podermos constatar que os alunos começam a compreender a
produção textual escrita como uma prática social realizada dentro de uma
comunidade com regras e propósitos próprios, apenas um aluno aponta para uma
posição reflexiva crítica dessas práticas discursivas realizadas dentro da comunidade
científica:

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Figueiredo e Bonini

(13) [Os gêneros acadêmicos e científicos] caracterizam-se por


uma estrutura rígida, já pronta e definida por leis da ABNT, e das
revistas a serem publicadas, o produtor é toda a comunidade, pois a
ordem é produzir (o que não precisa muito saber, mas tem que
produzir), seus leitores são os mesmos que produzem, pois a circulação
é dentro do meio acadêmico também, e assim um ciclo vicioso,
sem muita utilidade social. (Aluno 4)

Entretanto, como veremos em outros exemplos, essa posição crítica é


incipiente e fragmentada, não se caracterizando ainda como uma postura reflexiva
sistemática.
As respostas à quarta pergunta, “Qual é a relação entre as práticas
acadêmicas e os textos produzidos no ambiente da academia?” mantêm a
tendência de uma visão de práticas sociais do discurso, como podemos ver abaixo:

(14) Eu diria que as práticas acadêmicas precisam estar voltadas para a


pesquisa de forma geral. Como conseqüência disso, os textos nela
produzidos funcionariam como uma ponte entre o que se estuda na
academia e a contribuição que tais textos podem trazer enquanto
função social. (Aluno 1)

Embora o aluno 1 veja o discurso como parte do social, ele vê os temas


estudados na academia como dissociados do que ocorre fora dela, sem uma função
social específica.
O aluno 3 mostra uma visão mais orgânica, mais social, da prática de produção
textual acadêmica, ao vislumbrar sua construção identitária como parte do processo
de escrita. A visão política, entretanto, ainda não aparece, uma vez que o aluno não
questiona como essa identidade é construída, que identidade é essa, ou como ela se
encaixa num sistema hierárquico de pertencimento à comunidade discursiva
acadêmica3:

(15) Os textos também servem para o pesquisador se ver, há uma


relação dialógica entre as práticas do produtor e o seu texto,
pois ao mesmo tempo que o texto é construído, a identidade do
pesquisador também vai se formando. (Aluno 3)

3
Sobre as relações de poder na formação das identidades dos membros da comunidade discursiva acadêmica, ver
Figueiredo, 2004.

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Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

Um dado importante é que alguns alunos interpretaram o termo ‘prática’ de


uma forma instrumental, quase como tarefas ou atividades envolvidas no processo
de pesquisa, como podemos ver nas seguintes escolhas lexicais referentes às práticas
acadêmicas: desenvolvimento de inovações, testagem, atividades desenvolvidas
nos laboratórios, ler, escrever, pesquisar, participar de eventos. Embora todas
essas atividades de fato façam parte das práticas acadêmicas, esses alunos focalizaram
a natureza física, instrumental das práticas acadêmicas, descrevendo-as quase como
partes de um processo, e não seu aspecto social, seu caráter cultural e historicamente
situado, nem o impacto que essa ancoragem social possa causar na produção de
textos.
Com relação à pergunta 5, ‘Qual é o papel da norma, ou das convenções,
na produção dos textos acadêmicos?’, uma das respostas indica que o critério
de avaliação de um texto acadêmico escrito é a adequação ao gênero, no sentido de
mera modelagem, indicando assim um discurso de gênero sem uma dimensão
sociocognitiva:

(16) O papel da norma é estabelecer e informar sobre regras e


algumas estratégias de como elaborar os trabalhos acadêmicos, e
também informar mudanças se houver. (Aluno 2)

Já nas demais respostas o critério de avaliação é a adequação ao gênero como


padrão, como modelo, mas também a eficácia comunicativa dos textos, ou seja, a
noção de que a norma tem como objetivo tornar mais fácil para o interlocutor do
evento discursivo (o leitor) o acesso à e a compreensão dos textos produzidos. Vejamos:

(17) Eu acredito que seja estabelecer uma espécie de padrão para que
tanto produtores e leitores possam ter um acesso ágil e eficaz a esses
textos. E de forma alguma, isso seria estabelecer o que é certo ou errado,
mas sim o que seria mais conveniente para cada produção textual.
(Aluno 1)
(18) A norma serve para padronizar e para ajudar o leitor a entender
melhor o relato. (Aluno 3)
(19) O papel da norma é colocar os textos acadêmicos circulando de uma
forma uniformizada, para que o leitor tenha acesso a uma maior
quantidade de textos, as normas normatizam, as produções, padronizam
nos dão um modelo a seguir na tentativa de ter um controle sobre as produções,
bem como para “facilitar ao leitor e ao escritor”. (Aluno 4)

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Figueiredo e Bonini

(20) Criar indícios que padronizem, caracterizem e dêem


pertencimento à produção, inserindo-a em determinado gênero
textual, além de indicar sua linha teórica e permitir a verificabilidade do
que se expõe. (Aluno 5)

Embora as duas últimas respostas apresentem escolhas lexicais como


‘pertencimento’ e ‘controle sobre as produções’, não nos parece que essas escolhas
indiquem uma visão de comunidade discursiva nos moldes de Swales (1998) - o
pertencimento refere-se a um pertencimento de gênero, e não de grupo, e o controle
também se refere à aproximação do texto ao padrão genérico, ao modelo, e não a
uma visão de controle como relação de poder, realizado pelos membros antigos
sobre os membros novos da comunidade discursiva acadêmica.
As respostas à questão 6 (Pensando em sua produção acadêmica escrita
antes e depois da oficina na qual você participou, você acha que ocorreram
mudanças? Caso afirmativo, fale sobre elas.) são as que mais nos interessavam,
por dizerem respeito à oficina propriamente dita, e se os alunos estabeleciam alguma
relação entre essa intervenção pedagógica e suas práticas posteriores de produção
textual acadêmica escrita.
Nessas respostas vemos uma combinação dos discursos das habilidades, do
processo e do gênero. Vemos a noção dos gêneros acadêmicos mostrada como
possuindo características próprias, que podem ser ensinadas e aprendidas de forma
explícita. Ao se alinharem a essa perspectiva, os alunos indicam que a avaliação de
um texto deve ser pautada pelo critério de adequação ao padrão genérico
(modelagem). Outra noção que se faz presente neste discurso heterogêneo é a da
produção textual escrita como um processo, com etapas distintas. Vejamos:

(21) O ponto mais interessante é que eu posso seguir uma estrutura em


cada parte da minha produção. Através dos modelos (passos), sei o
que posso colocar ou não em cada parte da minha produção. (Aluno 3)

É importante notar como, no exemplo acima, os discursos de gênero e do


processo são combinados quase numa relação de sinonímia: a noção de modelo é
apresentada como equivalendo à (ou abrangendo) a idéia de passos.
Os dois próximos exemplos, além de ilustrarem o discurso de gênero e do
processo, apresentam também elementos do discurso das habilidades. A escolha de
expressões como ‘melhoria’ e ‘aprimoramento do ato de escrever’, ‘textos mais

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Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

precisos’, torna difícil distinguir se o aluno está focalizando o texto escrito como
produto final, ou o ato de escrever, se seu critério de avaliação é a precisão em
termos de normas e regras que regem a produção lingüística, ou a adequação a um
padrão genérico como forma de alcançar propósitos específicos.

(22) Entre outras, acredito que a mudança mais significativa diz respeito ao
aprimoramento da relação que existe entre forma e discurso
propriamente dito. [...] A oficina textual é de extrema relevância para o
entendimento dos procedimentos da escritura de um texto. É também
uma oportunidade prática, não só voltada a aprendizagem, mas também à
melhoria e ao aprimoramento do ato de escrever (Aluno 1)
(23) [...] antes elaborava meus textos sem nenhum planejamento não
tinha os objetivos claros em minha mente, e também não lia o suficiente
para poder ter uma boa argumentação, hoje percebo muitas mudanças em
meus textos, são mais coerentes e mais bem elaborados e talvez mais
precisos. (Aluno 2)

Nos dois últimos exemplos fica ainda mais clara a entrada do discurso das
habilidades lingüísticas na fala dos alunos, provavelmente como resultado de uma
formação escolar que os levou a ver a escrita como um processo baseado em
habilidades4. O primeiro (Aluno 5) combina o discurso de gênero com o das
habilidades, enquanto que o segundo (Aluno 4) identifica seus problemas apenas no
nível da falta de conhecimentos lingüísticos normativos que permitam alcançar a
‘perfeição’:

(24) Ao “dissecar”, observar, identificar componentes e manter


maior proximidade com a estruturação fina que permeia a
produção acadêmica [...] Rapidamente exemplificando: há maior
acurácia na produção de resumos e produção acadêmica textual em geral,
além de melhor alocação e encadeamento de citações no texto. (Aluno 5)
(25) [...] porém está longe, [sic] de ter uma escrita que tenha um
bom alcance, então mando corrigir meus trabalhos em uma
professora, escrevo e depois guardo por um tempo, depois leio novamente

4
A visão da escrita como o resultado de habilidades lingüísticas e textuais adquiridas na formação escolar está presente
não só no discurso da escola, mas também no discurso da mídia e até das políticas públicas, e pode ser detectada em
noções do senso comum como “A escrita é uma habilidade importante no mercado de trabalho” ou “Os professores
[de português] sabem [ou devem saber] tudo sobre gramática e ortografia” (CHRISTIANSEN, 2004).

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Figueiredo e Bonini

e percebo que estava muito ruim, dou a outras pessoas para lerem
meu trabalho, enfim, é um desgaste incomensurável, e que tenho a
impressão que não vou conseguir nunca chegar a perfeição [...]
(26) Estou escrevendo atualmente dois artigos, quando os releio, acabo
apagando tudo, acho pouquíssima coisa certa, etc...
(27) Este texto que aqui acabei de escrever, é uma grande frustração, pois
se eu reler, irei apagar ou nem mandar á [sic] vocês [...] (Aluno 4)

Sobre o discurso das habilidades, muitos alunos ainda parecem esperar dos
professores uma postura de instrução, controle e cobrança de habilidades lingüísticas,
assim como em muitas ocasiões nós, professores, também apresentamos um discurso
contraditório, e acabamos cobrando, embora de forma velada ou inconsciente, a
precisão lingüística ou a modelagem acrítica em nossas interações com os textos
dos alunos. Christiansen, por exemplo, ao analisar seus comentários aos textos
produzidos por seus alunos, afirma que:

Em vários momentos o discurso das minhas respostas escritas poderia


funcionar como uma forma de posicionar os alunos para ver meus
comentários como parte de uma abordagem baseada em habilidades, na
qual eu lhes digo o que fazer para “consertar” seus textos, ou como parte
de um modelo de socialização, no qual eu lhes digo o que fazer, só que
desta vez dentro do contexto complexo das formas fixas [aceitas] na
academia. (2004, p. 17)

A última pergunta, ‘Em sua história de produção do texto acadêmico


(desde a graduação ou mesmo antes), você provavelmente se defrontou
com problemas e momentos de êxito e superações. Você poderia descrever
quais foram estes momentos?’, nos dá várias pistas de como os alunos concebem
o processo de aprendizado da escrita acadêmica, apontando para posições
heterogêneas, às vezes dentro da fala de um mesmo aluno.
O exemplo que se segue traz marcas do discurso de gênero, expresso pela
noção da aprendizagem via assimilação de ‘bons’ exemplos de escrita, combinado
com uma visão da escrita como forma de comunicação com o leitor, na linha do
discurso das práticas sociais:

(28) Uma outra dica é seguir bons exemplos de escritura. Ou seja, ler
boas produções textuais e anotar boas formas de se expressar. Um terceiro

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006 439


Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

item seria entender que o você escreve será lido por alguém, e
portanto, precisa ser claro o suficiente para que haja compreensão por
parte do leitor. (Aluno 1)
^
Entretanto, comprovando a crença de Ivanic de que os diferentes discursos
da escrita não aparecem de forma isolada na fala e nas práticas de letramento de
professores e aprendizes, o mesmo aluno apresenta também a visão do aprendizado
da escrita como um processo implícito, resultante de grandes quantidades de leitura
e de produção escrita constante.

(29) Num primeiro momento, notei que produzir um texto não era
algo que se aprendia por meio de fórmulas ou regras a serem
seguidas. Era necessário escrever e escrever. Mas para que isso
acontecesse, a leitura também era um outro item bastante
importante. (Aluno 1)

E este não é um exemplo isolado. Apesar de várias menções à importância


da oficina no sentido de fazê-los refletir sobre a estrutura do texto acadêmico e de
seu processo de produção (através do ensino explícito), a fala dos alunos também
evidencia a noção da aprendizagem implícita da escrita acadêmica, via exposição a
‘bons’ textos, o uso da técnica de ensaio-e-erro, e a prática constante, como os
exemplos a seguir demonstram:

(30) Antes de fazer minha pós- graduação, não tinha o hábito de


escrever e nem de ler sobre assuntos acadêmicos. Fiquei muito
tempo parada, acho que perdi tempo com isto. (Aluno 2)
(31) O problema foi quando elas [professoras da minha cidade que faziam
pós-graduação] me pediram para que eu as ensinasse a fazer um projeto
de monografia e eu nem sabia o que era isso (não tive isso na minha
graduação, acho que a faculdade falhou), pois bem, tive que aprender a
fazer projetos sozinha e ensina-las [sic] ainda. Foi ótimo, fui atrás
de conhecimento, acabei fazendo um monte de projetos e as
monografias também.5 (Aluno 3)

5
Embora a prática de ‘venda’ de trabalhos acadêmicos seja considerada antiética e combatida dentro da comunidade
científica, ela ainda é corrente, e até mesmo naturalizada, entre muitos membros periféricos dessa comunidade,
como fica claro na fala desse aluno.

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Figueiredo e Bonini

6 COMENTÁRIOS FINAIS

A partir da análise dos questionários, podemos observar, na fala dos alunos,


traços da pedagogia de letramento em gêneros, e de uma visão social do discurso.
Em vários momentos suas respostas indicam uma visão de discurso como prática
social, situado em contextos históricos e culturais específicos. A partir dessa visão
socialmente situada do discurso, podemos ver a entrada em suas falas da noção de
que os textos acadêmicos são também socialmente estruturados, segundo convenções
determinadas pela comunidade onde são produzidos.
Outra evidência da influência do letramento em gêneros e da concepção
social do discurso da escrita presente na fala dos alunos é a noção de circulação dos
textos dentro da comunidade acadêmica, fazendo com que eles se mostrem
preocupados com um leitor para além das fronteiras da sala de aula. Isso parece
indicar que os alunos começam a compreender a produção textual escrita como
forma de comunicação dentro da academia, ou seja, passam a perceber o caráter
interacional das práticas discursivas.
A opinião de que a oficina contribuiu para a reflexão e a mudança em suas
práticas de produção textual escrita foi unânime entre os alunos que responderam o
questionário. Poderíamos argumentar, porém, que essas respostas positivas são
resultado da própria natureza do instrumento ‘questionário’, uma vez que quem
responde geralmente procura dar as respostas que conquistem a aprovação do
questionador, principalmente dentro de um quadro de relações assimétricas de poder
como o que caracteriza a interação professor-aluno. Apesar disso, a presença de
conceitos provenientes dos discursos das práticas sociais e do gênero na fala dos
alunos, em especial o conceito de circulação dos textos dentro de uma comunidade
acadêmica, nos leva a crer que a oficina serviu como um primeiro passo num processo
de reflexão e facilitação da apropriação de práticas discursivas relacionadas ao texto
escrito no ambiente acadêmico.
Entretanto, os questionários também evidenciam uma falta de reflexão crítica
sobre o processo de produção textual escrita acadêmica, apesar de algumas menções
a relações de poder e ideologia. As perguntas relativas à estrutura dos gêneros
acadêmicos e ao papel da norma, principalmente, não mostram sinais de criticidade
com relação à forma como os gêneros estão postos dentro da comunidade discursiva
acadêmica, como são criados e como são avaliados. Não há menção à possibilidade
de negociação das convenções, nem reflexão crítica sobre sua origem e

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Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

funcionamento. Outro elemento ausente na fala dos alunos sobre as normas de


produção dos textos acadêmicos é a função de filiação a uma comunidade que a
apropriação dessas convenções pode exercer, e a forma verticalizada como as normas
são impostas pelos membros antigos aos membros novatos.
Tudo isso parece indicar que, embora a oficina tenha contribuído no sentido
de familiarizar os alunos com a noção de escrita como prática social inserida dentro
de uma comunidade discursiva, com regras e propósitos estabelecidos dentro dessa
comunidade, nossos alunos ainda estão no estágio de membros periféricos (ou
novatos) na comunidade discursiva acadêmica, e, portanto não se sentem seguros
para (ou ainda não dispõem de uma metalinguagem que lhes permita) refletir
criticamente sobre o discurso, as práticas e os gêneros aceitos dentro da comunidade
na qual estão ingressando. Eles ainda apresentam uma forte preocupação com o
grau de precisão lingüística e de adequação seus textos a modelos, remetendo aos
discursos das habilidades e de modelagem de gêneros, porém numa dimensão
acrítica. ^
Quanto à melhor abordagem pedagógica de ensino da escrita, Ivanic defende
uma pedagogia holística e abrangente, que adote elementos dos seis discursos sobre
a escrita. Em suas palavras:

As formas mais tradicionais, normativas e práticas de pensar a linguagem


não deveriam dominar o currículo sem a ajuda das percepções e concepções
sociais e críticas que considero enriquecedoras – aquelas baseadas em
uma visão da escrita como interação socialmente situada e conduzida por
propósitos definidos, e como prática sócio-política. Por outro lado, as
concepções críticas não deveriam, em minha opinião, ser implementadas
sem a devida atenção ao papel das abordagens tradicionais no aprendizado
da escrita. (2004, p. 16)

Essa pedagogia holística teria ainda a vantagem, como apontam Cope e


Kalantzis (1993), de reinvestir o professor como autoridade em educação lingüística,
trabalhando a gramática e a forma como metalinguagem, e de propiciar a
aprendizagem tanto através de processos de descoberta pessoal quanto por meio da
exposição a conhecimentos teóricos.

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Figueiredo e Bonini

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444 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006


Figueiredo e Bonini

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Recebido em 15/12/05. Aprovado em 08/08/06.

Title: Discursive practices and the teaching of academic writing: notions about writing presented
by master students
Author: Débora de Carvalho Figueiredo, Adair Bonini
Abstract: This article investigates the notions about the learning-teaching of academic writing, based
on the answers to a questionnaire on this topic presented to a group of master students after they had
^
taken part of an academic writing workshop. The analysis is based on the work of Ivanic (2004) on the
discourses about the teaching of writing at school. Through the analysis of the questionnaires we
could identify, in the students’ discourse, traces of the genre literacy pedagogy and of a social view of
discourse. The results indicate that the workshop contributed to the students’ meta-language in the
sense that it familiarized them with a view of writing as a social practice located within specific discursive
communities. However, they also indicate that the students are still marginal members of the academic
discursive community.
Keywords: discourse; genre; writing; teaching.

Tìtre: Pratiques discursives et enseignement du texte académique: des conceptions des élèves du
cours de “master” sur l’écriture
Auteur: Débora de Carvalho Figueiredo, Adair Bonini
Résumé: Cet article recherche les conceptions sur l’enseignement-apprentissage de l’écriture
académique, à partir des réponses données à un questionnaire sur ce sujet répondu par un groupe
d’élèves du cours de “master”, après avoir pris part à un atelier de production textuelle académique
^
écrite. L’analyse s’est fondée dans le travail d’Ivanic(2004) à propos des discours sur l’enseignement
de la production écrite à l’école. À travers l’analyse des questionnaires on a pu constaté, dans la
parole des élèves, des traits de pédagogie d’alphabétisation en genres et d’une vision sociale du
discours. Les résultats indiquent une contribution de l’expérience de l’enseignement dans le sens
d’habituer ces élèves avec la notion d’écriture comme pratique sociale insérée dans une communauté
discursive, mais aussi qu’ils se trouvent encore dans le stage de membres périphériques de cette
communauté.
Mots-clés: discours; genre textuel; production textuelle; enseignement; article de recherche.

Título: Prácticas discursivas y enseñana de texto académico: concepciones de alumnos de maestría


sobre la escrita

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006 445


Práticas discursivas e ensino do texto acadêmico ...

Autor: Débora de Carvalho Figueiredo, Adair Bonini


Resumen: Este artículo investiga las concepciones sobre enseñanza-aprendizaje de la escrita
académica, a través de las respuestas a un cuestionario sobre este tema respondido por un grupo
de alunmos de la maestría. Estos habían participado anteriormente de un taller sobre producción
^
textual académica escrita. El análisis está basado en el trabajo de Ivanic (2004) acerca de los
discursos sobre enseñanza de la producción escrita en la escuela. A través del análisis de los
cuestionarios, se constató, en el habla de los alumnos, rasgos de la pedagogía de alfabetización en
géneros y de una visión social del discurso. Los resultados indican una contribución de la experiencia
de enseñanza en familiriazar los estudiantes con la noción de escrita como práctica social insertada
dentro de una comunidad discursiva y también mostrarles que todavía están en la fase de miembros
periféricos en esta comunidad.
Palabras-clave: discurso; género textual; producción textual; enseñanza; artículo de investigación.

446 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 413-446, set./dez. 2006


Araújo

PRÁTICAS DISCURSIVAS EM CONCLUSÕES DE TESES DE


DOUTORADO

Antonia Dilamar Araújo*

Resumo: O presente artigo tem por objetivo refletir sobre o papel das práticas discursivas na
redação de teses de doutorado nas línguas inglesa e portuguesa, considerando-se aqui apenas o
capítulo de conclusão. A pesquisa, que se caracteriza como uma investigação descritiva e
comparativa, analisou dez capítulos de conclusão de teses de doutorado na área de análise do
discurso e lingüística de texto. Duas práticas discursivas foram examinadas: a estrutura retórica do
capítulo, segundo o modelo de Swales (1990), e a forma como os escritores se projetam em seus
textos. Os resultados apontaram quatro unidades retóricas na redação dos capítulos conclusivos e
uma sensível diferença nas duas culturas quanto ao papel que o escritor escolhe para se projetar
no capítulo final das teses.
Palavras-chave: gênero acadêmico; tese de doutorado; prática discursiva.

1 INTRODUÇÃO

As pesquisas em gêneros acadêmicos têm focalizado, principalmente, artigos


de pesquisa, resumos, resenhas, mais do que teses e dissertações de mestrado. Os
poucos estudos realizados sobre dissertações e teses têm focalizado as seções de
introdução e discussão (cf. DUDLEY-EVANS, 1986, 1994) e a macroestrutura do
capítulo de conclusões de teses (cf. BUNTON, 2005). Partindo do pressuposto de
que pesquisadores iniciantes sentem dificuldades com o “fazer pesquisa” e são
desafiados com a escritura de artigos de pesquisas e de gêneros como dissertação
ou tese, este trabalho tem por objetivo refletir sobre as práticas discursivas na redação
do gênero tese de doutorado e, em especial, no capítulo intitulado “conclusão” tendo
em vista que as conclusões têm sido negligenciadas na literatura de estudos de gêneros
textuais, embora seja componente obrigatório na redação de qualquer texto
acadêmico.

* Professora da Universidade Estadual do Ceará. Doutora em Letras - Inglês e Literaturas Correspondentes. E-mail:
<dilamar@fortalnet.com.br>.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006 447


Práticas discursivas em conclusões de teses de doutorado

O estudo objeto desta reflexão foi realizado pela necessidade de se detectar


as práticas discursivas na redação de capítulos de conclusão de teses de doutorado
nas línguas portuguesa e inglesa e de se entender como se escreve o capítulo final
deste gênero textual. A minha experiência como professora de metodologia de
pesquisa e de redação acadêmica para alunos de mestrado em lingüística aplicada
tem apontado para as inúmeras dificuldades quanto à escritura dos diferentes capítulos
que compõem os gêneros dissertação, tese e artigo de pesquisa e muitas dúvidas
persistem quando necessitam escrever tais gêneros.
Dessa forma, analiso algumas das práticas discursivas detectadas no estudo
realizado, porém concentro a discussão na estrutura retórica e na questão da interação
do texto científico, que inclui a marca de voz do autor no texto acadêmico, problema
freqüentemente detectado pelos pares quando avaliam gêneros acadêmico-científicos.
Este trabalho se inicia com uma breve revisão de pesquisas sobre gêneros acadêmicos
ou gêneros de pesquisa, como Swales (2004) prefere denominar, descreve a
metodologia de coleta e análise do corpus e depois discute duas práticas discursivas
na redação do capítulo final das teses de doutorado.

2 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

O estudo de gêneros acadêmico-científicos ou gêneros de pesquisa (artigos


científicos, dissertações, monografias e teses de doutorado) tem atualmente merecido
a atenção de estudiosos da linguagem preocupados em compreender os processos de
construção de significados e em desvelar sua organização discursiva e as diferentes
formas de expressão lingüística que caracterizam esses gêneros através das diversas
áreas disciplinares. Como resultado desse entendimento, a análise de gênero da escrita
acadêmica tem focalizado diferentes aspectos de “artigos de pesquisa” ou “artigos
científicos” mais que os gêneros como dissertações e teses, que têm o objetivo de
obtenção de um grau universitário. Assim, os estudos sobre estes gêneros têm sido
ainda negligenciados devido à sua extensão e os poucos estudos realizados têm focalizado
a descrição da estrutura de partes ou seções destes gêneros, como os estudos de Dudley-
Evans (1986, 1994), Paltridge (2002); Hewings (1993) e Bunton (2005).
Convém salientar que, ao analisar a estrutura das dissertações e teses, observa-
se que, em geral, estes gêneros seguem a mesma estrutura dos artigos de pesquisa
conforme foi descrita no modelo IMRD (Introdução, Metodologia, Resultados e
Discussão) proposto por Hill, Soppelsa e West (1982, p. 335-338). No entanto, a

448 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006


Araújo

partir do modelo de Swales (1981, 1990), baseado em Introduções de artigos científicos,


os estudos sobre gêneros de pesquisa têm sido focalizados em sua macroestrutura e
aspectos léxico-gramaticais. Como este trabalho se propõe a analisar duas práticas
discursivas na redação de capítulos de conclusão de teses de doutorado, vou relatar o
entendimento de alguns pesquisadores sobre conclusão em estudos prévios.
Com relação às conclusões de dissertações de mestrado, Dudley-Evans (1994)
percebeu que esse capítulo nos trabalhos analisados continha os seguintes elementos:
resumo dos principais resultados, resumo das principais alegações e recomendações
para futuras pesquisas. No estudo desse autor, as conclusões não se constituíam em
uma única seção ou capítulo em separado. Elas fazem parte do capítulo de discussão.
Outros estudos têm mostrado que a distinção entre discussão e conclusão não tem
sido preocupação de escritores de artigos de pesquisa ou mesmo de dissertações de
mestrado. Em tais estudos, os escritores têm concluído seus textos enfatizando a
importância do estudo para outros pesquisadores ou profissionais do campo ou
área de conhecimento.
No entanto, o estudo de Hewings (1993) sobre Conclusões de dissertações de
MBA mostrou que as funções de Relato, Comentários e Sugestões operam em diferentes
domínios que incluem o mundo, a pesquisa prévia, a metodologia ou os resultados.
Bunton (2005), que analisou os traços genéricos de conclusões de 45 teses de doutorado
desenvolvidas em Hong Kong de áreas disciplinares como Artes, Educação, Arquitetura,
Engenharia, Medicina, Ciências Sociais, Odontologia, Comércio, Planejamento Urbano
e Gestão Ambiental e escritas por chineses (60%) e estudantes não falantes de chinês
(40%), mostrou quais as diferenças qualitativas dos resultados quando comparadas
com os estudos anteriores. O pesquisador também investigou nos exemplares das teses
se havia diferenças de forma como as Conclusões eram escritas por diferentes áreas de
conhecimento. Neste estudo, o autor examinou a estrutura do capítulo, porém observou
aspectos como título, extensão, referências, subtítulos nas seções e o foco do capítulo
de conclusão. Os resultados revelaram que o capítulo final das teses analisadas apresenta
resumo dos principais resultados, faz retomada das questões de pesquisas, hipóteses e
objetivos, aponta as limitações do estudo, discute as implicações teóricas e aplicadas e
apresenta sugestões para futuras pesquisas, além de uma conclusão geral mostrando
as contribuições do estudo. A pesquisa de Bunton serviu de motivação para a pesquisa
relatada no presente artigo.
Ao construir significados em seus textos acadêmicos, pesquisadores iniciantes
devem demonstrar competências lingüísticas e comunicativas, que pressupõem não

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006 449


Práticas discursivas em conclusões de teses de doutorado

só o domínio da língua enquanto sistema, mas também a habilidade de utilizar


estratégias discursivas, numa dimensão sociocultural da linguagem, que veicula
propósitos comunicativos à práticas discursivas específicas de um determinado
gênero. Neste sentido, se considerarmos a pesquisa científica e a escritura do relato
como um discurso institucionalizado baseado em um sistema de normas pautadas
por estratégias consagradas pela comunidade discursiva, necessário se faz definir o
que entendemos por estratégias discursivas na elaboração de um gênero acadêmico.
Práticas discursivas, em uma perspectiva interacionista, são processos de
produção, ações, seleções, escolhas, enfim uma variedade de estratégias adotadas
pelo escritor para dar expressão e sentido ao texto (SPINK; FREZZA, 1999, p. 38).
Para Bhatia (1999, p. 23), práticas discursivas são procedimentos, orais ou escritos,
estabelecidos por profissionais, que rotineiramente engajam-se como parte de seu
trabalho diário e como parte importante da cultura disciplinar de uma profissão ou
de uma comunidade acadêmica.
Na análise do capítulo final das teses que constituiu o corpus desta pesquisa,
algumas práticas discursivas, que fazem parte da cultura disciplinar e que dão sentido
ao gênero tese foram detectadas, mas para os propósitos deste trabalho examino
apenas duas: a estrutura retórica e a marca da voz do escritor no texto, uma vez
que estas práticas vão responder às seguintes questões: além de encerrar a tese, qual
a função do capítulo de conclusão? Qual a estrutura retórica do capítulo final da
tese? De que forma o pesquisador marca sua voz no texto científico? Ao responder
tais questões com as análises, entendemos ser possível desvelar pontos considerados
relevantes na elaboração do capítulo final.

3 METODOLOGIA

A presente pesquisa, que se caracteriza como uma investigação descritiva e


comparativa, analisou cinco teses de doutorado escritas em Inglês por nativos dessa
língua e cinco escritas em português nas áreas de análise do discurso e lingüística
do texto, defendidas no período de 1989 a 2002 na Inglaterra e no Brasil
respectivamente. As teses foram coletadas em bibliotecas das universidades britânicas,
particularmente Birmingham e Londres, e universidades brasileiras, particularmente
nas universidades federais de Pernambuco, Santa Catarina e São Paulo. A escolha da
tese de doutorado, como objeto de estudo, justifica-se por esse gênero ser um exemplo
típico de gênero acadêmico científico, de natureza expositivo-argumentativa e por
ter como autores profissionais experientes em desenvolver pesquisas.

450 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006


Araújo

Na análise dos dados, as orações e expressões léxico-gramaticais foram


examinadas como unidades de análise para se identificar as diferentes práticas
discursivas no capítulo de conclusão no corpus selecionado, que serão apresentadas
e ilustradas na próxima seção deste trabalho. Vale registrar que os textos foram
analisados com base nas regularidades de ocorrência e em como a informação é
distribuída e contribui para produzir sentidos. Da análise dos dados, pretendeu-se
identificar as diferentes práticas discursivas nos capítulos de conclusão das teses de
doutorado, bem como identificar a função que essas práticas desempenham no texto.
Para facilitar a compreensão das análises, cada tese foi numerada e codificada como
TLI (tese em língua inglesa) e TLP (tese em língua portuguesa). Nos exemplos, os
elementos identificados são destacados em negrito. Os exemplos são numerados e
sua fonte é indicada não pelo seu autor ou tópico, mas pela numeração que cada
texto recebeu durante o processo de análise, o número da unidade retórica
identificada e a página de onde foi extraído o exemplo. Por exemplo, a fonte (TLP 2,
UR 1, p. 547) significa que o exemplo em foco foi retirado da tese analisada em
língua portuguesa nº 2, unidade retórica 1, página 547.

4 ANÁLISE DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS

4.1 Estrutura retórica das conclusões


Antes de analisarmos a estrutura retórica dos capítulos conclusivos nas teses
de doutorado nas duas línguas, vale a pena comentar os títulos dos capítulos. Segundo
Bunton (2005), títulos são importantes porque eles dão uma idéia do papel ou função
considerada pelo escritor em um capítulo ou seção do capítulo. Os títulos dos capítulos
variaram nas duas línguas, porém a maioria dos autores os denominou Conclusion,
Conclusions ou Overall Conclusions em inglês e os termos correspondentes
Conclusão e Conclusões e Considerações Gerais em língua portuguesa (ver Tabela
1). Uma das teses escritas em inglês apresentou um título específico relacionado ao
tópico, porém este apresenta um papel ou função de conclusão.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006 451


Práticas discursivas em conclusões de teses de doutorado

Tabela 1 – Títulos dos 10 capítulos de conclusão:

Estes títulos, que confirmam os estudos de Bunton (2005) sobre capítulos


de conclusão de teses, sinalizam, como o próprio nome indica, o fechamento do
trabalho, mas também os papéis que os escritores consideram no capítulo final das
teses, como lugar de resumir os principais resultados, de demonstrar como as
hipóteses e objetivos foram alcançados, de discutir implicações teóricas e pedagógicas
e apresentar sugestões para futuras pesquisas.
Uma das perguntas mais freqüentes dos alunos de pós-graduação é como
encerrar o capítulo final da dissertação ou tese. Ou seja, que tipo de informação
devem veicular no capítulo de conclusão. Com relação às Conclusões, os resultados
apontaram que, embora o capítulo final de um texto acadêmico seja
convencionalizado, a recorrência de situações retóricas e dos propósitos
comunicativos compartilhados de uma comunidade discursiva particular e
identificados pela presença de aspectos relevantes do contexto sócio-retórico revela
uma versatilidade na descrição das informações desse capítulo em quatro movimentos
retóricos e uma tendência para a inovação no gênero em foco. Dessa forma, os
capítulos conclusivos escritos em língua inglesa apresentaram a seguinte estrutura
retórica, tomando-se como ponto de partida o modelo de Swales (1990):
Tabela 2 – Estrutura retórica dos capítulos de conclusões em língua inglesa:

Analisando a primeira unidade retórica nas teses escritas em língua inglesa


– Revisando a metodologia da pesquisa realizada –, percebe-se que os autores
começam identificando o tipo de metodologia adotada na pesquisa e informando os
tipos de sujeitos envolvidos e os procedimentos, especialmente nas teses em que foi
empregada uma metodologia experimental. Há uma tendência do autor em situar o
leitor no trabalho desenvolvido. Exemplos:

452 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006


Araújo

(1) Experimental studies such as those reviewed in chapter 4 have


repeatedly demonstrated that the concepts underlying certain logical
connectives are not adequately conveyed by the English language items with
which they are normally associated. This study constituted an
exploratory investigation to determine to what extent the results reported
for English linguistic connectives were generalisable to Japanese and Arabic,
two languages unrelated to English and to each other [TLI 2, UR 1, p. 254]
(2) The research perspectives explored in the study were both
etic and emic in type. The etic perspective depended on observation and
analysis of the conversations, while the interpretation of events as perceived
by the participants provided the emic perspective. My role as a researcher
also changed, depending on the perspective. The Conversation Analysis
was undertaken from the standpoint of an outside observer. [….] [TLI 5,
UR 1, p. 261]

Na segunda unidade retórica Sumarizando as principais conclusões, o autor


reafirma e sumariza as principais conclusões encontradas à luz do referencial teórico
estabelecido no trabalho. Essa unidade temática é a que constitui a maior parte do
capítulo e funciona com uma forma de consolidação do espaço de pesquisa. Exemplos:

(3) Perhaps the main conclusion from this study is that bringing any
one aspect of discourse meaning to the foreground will inevitably blur the
boundaries between any other set of linguistic or discourse categories. […]
Rather than distinguishing evaluation as a category, then, I have proposed
looking at a whole text as a single realization of evaluation. I have
proposed three parameters and three functions of evaluation, and also three
types of analysis. In the experimental research articles under discussion,
the sets of three are associated as follows. [TLI 1, UR 2, p. 355-356]
(4) In this study I have described and compared the behaviour, as exhibited
in the talk, of participants within two sets of feedback sessions, and offered
explanations for this behaviour. The findings can be summarized as
follows:…. [TLI 5, UR 2, p. 261]

Na terceira unidade retórica, Avaliando os resultados/dificuldades, os


autores sinalizam a unidade com termos como limitations of the study, difficulties
faced during the investigation. Exemplos:

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006 453


Práticas discursivas em conclusões de teses de doutorado

(5) I am aware of a number of limitations of this study which result


from the methodology and the restricted scope of the research. The study
was undertaken at a particular point in time:…The sessions took place
within only one organization – that of the Bell Educational Trust, although
the pre-service and in-service sessions took place in different schools or
departments. [TLI 5, UR 3, p. 262]

Em Discutindo as implicações para o ensino e apresentando sugestões


para futuras pesquisas, quarta unidade retórica, os autores vão além da presente
pesquisa e discutem as implicações do tópico para o ensino e sugerem futuras questões
de pesquisa. A seção final do capítulo de conclusão é sinalizada pelos escritores por
meio dos termos implications, recommendations e future research. Dessa forma,
a discussão final tende a ligar o tópico da pesquisa para o mundo exterior e aplicações
práticas. Exemplos:

(6) Whilst this study has added little to the ‘Whorfian debate’, it does offer
some contribution to the discussion of how linguistic connectives are
interpreted in a variety of languages and the implications for the teacher and
the learner of mathematics. It suggests that, in teaching mathematics, we should
be aware of the potential ambiguity in the interpretation of logical relationships
conveyed through natural language. [TLI 1, UR 4, p. 267-268]
(7) I hope that the findings of this research will be of interest to teacher
trainers and to those concerned with in-service training and development
within the ELT profession – both in the UK and overseas. The study may
even contain some points which are relevant to those interested in the training
and development of teachers of other subjects. [TLI 5, UR 4, p. 264]

Nas teses em língua portuguesa, os capítulos finais se diferenciaram apenas


na unidade retórica um. Os resultados da análise apontaram a seguinte estrutura:

Tabela 3 – Estrutura retórica dos capítulos de conclusões em língua portuguesa:

454 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006


Araújo

Ao se analisar as teses escritas em língua portuguesa, percebe-se que o capítulo


é iniciado com uma retomada do tema, dos objetivos e questões de pesquisa e
hipóteses. É uma forma de avaliar a problemática sendo investigada e o alcance dos
objetivos e questões de pesquisa. Exemplo:

(8) Acreditamos que cumprimos o nosso objetivo nesta pesquisa ao


respondermos, senão a todas, pelo menos às perguntas referentes à relação
da LVA (leitura em voz alta) com a construção de sentido das notícias pelo
telespectador e a interferência do letramento na compreensão [TLP 2, UR1,
p. 276-277]

A segunda unidade retórica, Sumarizando as principais conclusões, é a


que apresenta maior quantidade de informação e na qual os autores sumarizam as
principais conclusões alcançadas com a realização da pesquisa, resultado semelhante
aos das teses escritas em língua inglesa. Exemplo:

(9) A descrição dos noticiários de televisão – apresentada no capítulo 2 –


permitiu o estabelecimento dos aspectos constitutivos do Telejornal,
revelando a importância da prosódia na estruturação do evento, e sua
participação no jogo interacional promovido pelo texto, como uma das
estratégias de envolvimento características desse gênero comunicativo.
[TLP2, UR2, p. 271].

Avaliando os resultados/dificuldades do estudo é a terceira unidade retórica


e nela, os autores das teses apresentam em seu capítulo final sua avaliação dos
resultados ou dificuldades encontradas em realizar o estudo. Exemplo:

(10) Deixamos de considerar, nesta pesquisa, todos os outros anafóricos


que introduzem referentes novos para o discurso. Suas formas de realização
mereceriam, no entanto, ser colocadas em confronto com as expressões
que promovem a manutenção referencial, a fim de examinar o tipo de
motivação dos elementos indiciais. [TLP3, UR3, p. 195].

Em Discutindo as implicações e apresentando sugestões para futuras


pesquisas, última unidade retórica, percebe-se que os autores das teses enfatizam,
no capítulo de conclusão, as implicações para o ensino e sugerem futuras pesquisas
a serem desenvolvidas sobre o tema. As palavras em negrito nos exemplos mostram

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006 455


Práticas discursivas em conclusões de teses de doutorado

as contribuições do capítulo, sugestões de pesquisa e implicações pedagógicas da


tese com um todo. Exemplos:

(11) Uma das contribuições desta pesquisa no campo da lingüística


teórica é a nossa proposta de redimensionamento de um modelo de análise
de gêneros com dados empíricos em português, que vem preencher
parcialmente um nicho de estudos ainda incipiente no Brasil. Outra
colaboração se delineia com a possibilidade de fornecer base teórica
para se reformularem as instruções normativas para a redação de resumos
acadêmicos.... Numa perspectiva mais aplicada, nossa contribuição
consiste em mostrar a importância da seleção adequada do léxico básico
que concentra as informações mais gerais ou mais específicas de cada
unidade temática, dependendo do assunto e da área de conhecimento. Desta
pesquisa podem-se originar propostas de ampliar o conhecimento
dos gêneros em diferentes práticas sociais e de mostrar sistematicamente
como se dá o discurso normatizado, especialmente dentro da academia.
[TLP 1, UR 4, p. 197]
(12) Isto posto, torna-se conveniente abordar mais explicitamente as
implicações pedagógicas desta tese. Com efeito, essas implicações estão
envolvidas no ensino da chamada redação oficial, como já se disse na
introdução. [TLP 5, UR 4, p. 206].

Estas unidades retóricas constituem os capítulos, que variam de 6 a 30 páginas


na língua inglesa e de 10 a 15 páginas na língua portuguesa. É interessante observar
que de 5 capítulos conclusivos escritos em inglês, a última seção do capítulo tinha
como subtítulo a palavra ‘conclusão’, enquanto que as teses escritas em português
concluem com uma discussão sobre as implicações para o ensino e apresentando
sugestões para futuras pesquisas.
Percebeu-se uma diferença na ordem das unidades retóricas nas duas línguas.
A diferença reside na unidade retórica 1: na língua portuguesa, os escritores
preferiram iniciar o capítulo com a retomada do tópico, como os objetivos foram
alcançados, como as questões de pesquisa foram respondidas e os principais
resultados encontrados. Já na língua inglesa, os autores preferiram iniciar com a
revisão da metodologia de pesquisa adotada na pesquisa, especialmente quando a
pesquisa era de natureza experimental.

456 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006


Araújo

4.2 Marca da voz do autor no texto acadêmico


Segundo Halliday e Hasan (1989, p.12), a dimensão interpessoal da linguagem
se realiza através dos relacionamentos permanentes ou temporários de quem está
fazendo parte da interação comunicativa, da natureza de seus interlocutores, do
status e dos papéis desempenhados na construção de significados. Esta dimensão
interpessoal, no caso do discurso acadêmico escrito, pode ser expressa por diferentes
formas lingüísticas, tendo função essencialmente interacional, persuasiva e avaliativa,
ao expressar a perspectiva pessoal do escritor no ato da comunicação. Bakhtin (1992)
e outros estudiosos reconhecem a natureza social e dialógica da linguagem, na qual
escritores devem demonstrar habilidades no uso adequado dos recursos lingüísticos
para realizar a interação social. Hyland (1999, p. 99) também compartilha desse
pensamento ao afirmar que os escritores, ao apresentar informações nos textos,
adotam posições interacionais e avaliativas, nas quais eles se representam e se
projetam como também seus leitores.
Assim, na escrita acadêmica, as escolhas e práticas discursivas dependem
das relações entre participantes e do posicionamento do escritor, que é em parte
influenciado por práticas sociais de sua área disciplinar. Tais práticas são socialmente
definidas pela comunidade discursiva, que detém conhecimento especializado para
estruturar e comunicar um gênero acadêmico e para reconhecer e legitimar tais
usos por seus pares. O uso de tais formas ajuda a revelar para o leitor a atitude do
escritor, o aparente compromisso com as informações apresentadas e o grau de
envolvimento com o leitor, que funcionam como elementos de influência e persuasão
no texto. Os sentidos no texto são, dessa forma, socialmente mediados e influenciados
pelas comunidades às quais os escritores e leitores pertencem.
Há várias formas de o escritor estabelecer interação no texto. Uma delas é
por meio do uso das formas pronominais – os marcadores de referência pessoal –
que explicitamente marcam a presença do autor no texto. São marcas de subjetividade
no discurso científico, no dizer de Tang e John (1999), em oposição às vozes do
discurso dominante que se caracterizam como objetivas, distantes, impessoais. Na
busca da objetividade da ciência, o discurso se revela subjetivo e o pesquisador se
evidencia na sua capacidade de observar, de fazer inferências, imaginar, sugerir,
discutir, avaliar e justificar sua pesquisa.
Esta é uma das questões que tem gerado insegurança e dúvida nos
pesquisadores iniciantes quando precisam relatar resultados da pesquisa: De que
forma o escritor deve se manifestar no texto? De que forma ele deve dialogar com as

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006 457


Práticas discursivas em conclusões de teses de doutorado

teorias e com os resultados da pesquisa? Ao analisar o corpus percebi uma diferença


quanto ao uso das marcas de voz do autor nas teses nas duas línguas. As formas
pronominais, em geral, marcam como o autor se posiciona em relação ao que é
enunciado, ou seja, se o escritor se expõe a seus pares e assume a responsabilidade
das afirmações ou se estabelece um tom de intimidade com o leitor, compartilhando
os argumentos apresentados no trabalho. Dessa forma, percebe-se nas teses em
Inglês o uso da 1ª pessoa do singular (I/eu), enquanto que nas escritas em português
prevalece a 1ª pessoa do plural (nós/we). Exemplos:

(13) Throughout this thesis I have sought to develop notions of an ecology


of context and communication, of processes and constraints on meaning
negotiation in interaction. [TLI 4, p. 232]
(14) In this chapter I wish to summarize and extend the theoretical and
practical implications of the work that has been described in this thesis.
[TLI 2, p. 355]
(15) My findings might encourage trainers in different institutions to
conduct similar research into their own practice and procedures. [TLI 5,
p.264]
(16) When we consider the results for individual connectives, we find that
‘and’ statements are almost universally understood as logical conjunctions
and that this finding is independent of language group. [TLI 1, p. 259]
(17) Intitulamos este capítulo de ‘Conclusão’ com a autoridade que
nos confere a discussão sobre esta estratégia de condução de informações
em resumos de dissertações, no capítulo 5 desta tese,.... [TLP 1, p. 189]
(18) Finalmente, desejo concluir este trabalho com uma mensagem
positiva de que a pesquisa sobre os gêneros administrativos prospere nos
meios acadêmicos do nosso país.... [TLP 5, p. 207].

Os estudos já realizados sobre o uso dos pronomes pessoais na escrita


acadêmica (BUNTON, 1999, TANG; JOHN, 1999; HYLAND, 1999, 2002; HARWOOD,
2005) têm identificado várias funções. Os pronomes são considerados formas de os
escritores organizarem o texto e guiarem o leitor em relação ao argumento, afirmarem
opiniões pessoais, relatarem procedimentos metodológicos e reconhecerem as
contribuições dadas por instituições ou pesquisadores em alguma área de
conhecimento. Além dessas funções, os pronomes também ajudam a revelar como
os acadêmicos constroem seus relacionamentos com os leitores e sua comunidade

458 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006


Araújo

discursiva. Dessa forma, enquanto alguns usos de I/eu são exemplos discretos de
manifestação de autoridade no texto, outros usos são considerados formas de o escritor
dialogar com seus pares. O uso de “we” tanto pode ser inclusivo (sinaliza a interação
escritor – leitor) quanto exclusivo (sinaliza voz de autoridade no texto, mas de forma
polida e positiva). No caso dos capítulos de conclusão em análise, percebe-se que
ambos os usos de I e we (eu ou nós) marcam a voz de autoridade: o escritor apela para
o leitor para aceitar suas suposições, hipóteses ou conclusões alcançadas com os
resultados da investigação. A seleção e uso desses pronomes podem refletir relações
de poder, ou mesmo, a tentativa de provocar efeitos não pretendidos.
Nos exemplos de 13 a 18, percebe-se a presença do escritor, quando usa o
pronome pessoal “I” e a forma “we” (como sujeito universal e autoria coletiva),
revelando a autoridade do escritor no texto e seu domínio de um campo particular
de conhecimento, como também no sentido de ser “um construtor de significados
^
de seu texto” (IVANIC , 1994, p.12). O uso do pronome “we” ocorreu com mais
freqüência do que o pronome “I”, revelando que o escritor, embora interpretando e
argumentando, compartilha conhecimento com aqueles que de alguma forma
pertencem à comunidade científica, buscando, em última instância, a construção e
legitimação de um saber postulado pelo discurso científico. A seleção dos pronomes
“I” e “we”, numa dimensão interpessoal, tem por finalidade alcançar uma interação
entre escritor-leitor, através do texto, e revela-se como uma atividade de divulgar
ciência num verdadeiro fazer persuasivo.
Dessa forma, na construção da interação entre o escritor e seus pares
(leitores), o escritor expressa-se por meio de formas pronominais de referência
pessoal: o uso dos pronomes “I” e “we”, que, numa escala de maior ou menor grau,
revela a presença do escritor nos capítulos de fechamento das teses como uma forma
de convencer o interlocutor e ganhar adeptos ao longo do seu percurso discursivo.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, através de uma amostra limitada de teses na área de lingüística,


tentou-se descrever e mostrar as variações de duas práticas discursivas: a organização
retórica das informações do capítulo de tese e o posicionamento do pesquisador
iniciante ao relatar sua pesquisa de doutorado nas línguas inglesa e portuguesa, com
o objetivo de contribuir para a conscientização de novos pesquisadores que sintam a
necessidade de elaborar esse gênero, especialmente em entender como as práticas
acadêmicas e discursivas são recontextualizadas no fazer acadêmico nas duas culturas.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006 459


Práticas discursivas em conclusões de teses de doutorado

Os resultados revelaram que há diferença no papel que o escritor escolhe para se


projetar no capítulo de conclusão. Em Inglês, os autores preferem usar a primeira pessoa
do singular como marca de subjetividade, enquanto que em português, o pesquisador se
expressa na primeira pessoa do plural como forma polida de sinalizar a voz de autoridade
no texto. Essa diferença de uso mostra que as práticas discursivas, além de serem produtos
das regras estabelecidas por uma comunidade discursiva, revelam também que os
escritores têm liberdade de fazer diferentes escolhas organizacionais que são adequadas
na expressão do gênero em estudo. Além disso, a escolha dos pronomes como marca de
subjetividade e da presença do escritor no texto desmistifica a crença de que o relato de
pesquisa é monolítico e que deve expressar objetividade e neutralidade.
As características do capítulo de conclusão e as variações encontradas nas duas
línguas revelam que a convencionalidade do gênero nesta área disciplinar não é engessada
e que é necessário que pesquisadores iniciantes conheçam as práticas discursivas e se
conscientizem de que escrever uma tese ou mesmo uma dissertação não é um processo
fácil. Exige do pesquisador-escritor um nível de proficiência que inclui conhecimento
textual, de gênero e de práticas sócio-discursivas relacionadas ao gênero em foco. No
entanto, mais pesquisas são necessárias sobre as conclusões de teses na área de lingüística
para confirmar estes resultados e também em outras áreas disciplinares para se identificar
que variações são convencionais. Tais resultados servirão de conhecimento inicial para
os alunos poderem adquirir expertise, já que os manuais de metodologia de pesquisa
não ajudam os novos pesquisadores a se tornarem escritores competentes nesse gênero.

REFERÊNCIAS

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Araújo

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Recebido em 10/12/05. Aprovado em 07/03/06.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006 461


Práticas discursivas em conclusões de teses de doutorado

Title: Discursive practices in concluding chapters of PHD theses


Author: Antonia Dilamar Araújo
Abstract: The present paper aims to reflect on the role of discursive practices in the writing of
concluding chapters in PhD theses written in English and in Portuguese. The research, characterized
as a descriptive and comparative study, analysed ten concluding chapters covering the areas of
discourse analysis and text linguistics. Two discursive practices were examined: the rhetorical
structure of the chapters, according to Swales’ model (1990), and the way writers project themselves
in the texts. The results revealed that there are four rhetorical moves in the writing of the chapters
and that there is a considerable difference concerning the role writers choose to represent themselves
in the concluding chapters in the two cultures.
Keywords: academic genre; PhD thesis; discursive practice.

Tìtre: Des pratiques discursives dans les conclusions de thèses de doctorat


Auteur: Antonia Dilamar Araújo
Résumé: Cet article a comme objectif réfléchir sur le rôle des pratiques discursives employées
dans la rédaction de thèses de doctorat dans les langues anglaise et portugaise, tout en considérant
seulement le chapitre destiné à la conclusion. La recherche, qui est caractérisée par une investigation
à la fois descriptive et comparative, a analysé dix chapitres de conclusions de thèses de doctorat
dans le domaine du discours et de la linguistique de texte. Des pratiques discursives furent prises
en compte: la structure rhétorique du chapitre, selon le modèle de Swales (1990), et la forme
selon laquelle les écrivains se projettent dans leurs textes. Les résultats ont signalé quatre unités
rhétoriques dans la rédaction de chapitres conclusifs et une sensible différence dans les deux
cultures quant au rôle dont l’écrivain choisit pour se projeter dans le dernier chapitre des thèses.
Mots-clés: genre académique; thèse de doctorat; pratique discursive.

Título: Prácticas discursivas en conclusiones de tesis de doctorado


Autor: Antonia Dilamar Araújo
Resumen: El presente artículo tiene como objetivo reflexionar sobre el papel de las prácticas
discursivas en la redacción de tesis de doctorado en inglés y portugués. Se considera, en este
trabajo, sólo el capítulo de conclusión. En la investigación, que se caracteriza como descriptiva y
comparativa, se analizó diez capítulos de conclusión de tesis de doctorado del área de análisis del
discurso y lingüística de texto. Se examinó dos prácticas discursivas: la estructura retórica del
capítulo, según el modelo de Swales (1990), y la forma cómo los escritores se proyectan en sus
textos. Los resultados apuntaron cuatro unidades retóricas en la redacción de los capítulos
conclusivos y una sensible diferencia entre las dos culturas en cuanto al papel que el escritor elige
para proyectarse en el capítulo final de la tesis.
Palabras-clave: género académico; tesis de doctorado; práctica discursiva.

462 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 447-462, set./dez. 2006


Rojo e Schneuwly

AS RELAÇÕES ORAL/ESCRITA NOS GÊNEROS ORAIS FORMAIS


E PÚBLICOS: O CASO DA CONFERÊNCIA ACADÊMICA*

Roxane Rojo**
Bernard Schneuwly***

Resumo: A questão das relações de continuidade e de mútua constitutividade entre a linguagem


oral e a escrita é da maior relevância para a compreensão do funcionamento dos gêneros orais
formais e públicos e dos gêneros de texto escrito em nossas sociedades letradas, assim como dos
fenômenos dos letramentos e do ensino-aprendizagem de línguas nas escolas. Neste artigo,
pretendemos fazer um exercício de análise de um gênero oral formal e público – a conferência
acadêmica – em termos das relações entre oral-escrita, oral-oral e escrita-escrita na constituição
da conferência e em sua “retextualização” (MARCUSCHI, 2001a) como transcrição. Serão tomados
como dados os múltiplos textos orais e escritos em jogo numa conferência proferida por Bernard
Schneuwly. Ao final, defender-se-á a posição de que oralidade e escrita mantêm uma relação
complexa de mútuo efeito e interferência nos gêneros orais formais públicos, que pode ser melhor
compreendida em termos de “sistema de atividades” que colocam em circulação e em relação
“sistemas de gêneros” (BAZERMAN, 2005a, 2005b), entendidos no sentido bakhtiniano do termo.
Palavras-chave: gênero discursivo; oralidade; escrita; conferência acadêmica; ensino.

1 INTRODUÇÃO

Não existe ‘o oral’, mas ‘os orais’ sob múltiplas formas, que, por outro
lado, entram em relação com os escritos, de maneiras muito diversas: podem
se aproximar da escrita e mesmo dela depender – como é o caso da
exposição oral ou, ainda mais, do teatro e da leitura para os outros –,
como também podem estar mais distanciados – como nos debates ou, é
claro, na conversação cotidiana. Não existe uma essência mítica do oral
que permitiria fundar sua didática, mas práticas de linguagem muito
diferenciadas, que se dão, prioritariamente, pelo uso da palavra (falada),

*
Schneuwly é apresentado como co-autor deste texto por ser o autor da conferência nele analisada e, principalmente,
por ser, em grande parte, autor da visão sobre as relações entre oralidade e escrita que nele é adotada. A análise
em si da conferência, entretanto, é da autoria de Rojo, e os eventuais equívocos e imprecisões nela encontrados
são de sua exclusiva responsabilidade.
**
Professora do Departamento de Lingüística Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), UNICAMP.
Doutora em Lingüística Aplicada.
***
Professor titular da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação (FAPSE) da Universidade de Genebra (UNIGE),
Suíça. Doutor em Ciências da Educação.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006 463


As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

mas também por meio da escrita, e são essas práticas que podem se tornar
objetos de um trabalho escolar. (SCHNEUWLY, 2004, p. 135)

Muito se tem discutido, nos anos recentes, sobre as relações que se


estabelecem entre as modalidades oral e escrita no uso da língua1. As décadas de 70
e 80 testemunharam uma abordagem dicotômica dos dois fenômenos, que buscava
e, por vezes, mistificava, semelhanças e diferenças de um oral tido como puro e de
uma escrita tão transparente e pura quanto.
O quadro 1, montado a partir das discussões presentes em Marcuschi (2001a,
p. 27-31), mostra as qualidades tidas como privativas de uma ou de outra modalidade,
nos anos 802:

Quadro 1 – A perspectiva dicotômica das modalidades e de seu contexto de uso.

Ou seja, via-se a fala como desorganizada, variável, heterogênea e a escrita


como lógica, racional, estável, homogênea; a fala seria não-planejada e a escrita,
planejada e permanente; a fala seria o espaço do erro e a escrita, o da regra e da
norma, enquanto a escrita serviria para comunicar à distância no tempo e no espaço;
a fala somente aconteceria face a face; a escrita se inscreveria, a fala seria fugaz; a
fala é expressão unicamente sonora; a escrita, unicamente gráfica.
1
Ver, a respeito, a coletânea organizada por Signorini em 2001.
2
Ver a respeito os trabalhos de Bernstein (1971), Labov (1972), Goody (1977), Olson (1977), Ochs (1979), Scribner
e Cole (1981), Ong (1982), Tannen (1982), Halliday (1985), Lahire (1993) e Scribner (1997), por exemplo.

464 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006


Rojo e Schneuwly

Estas semelhanças e diferenças levantadas também teriam origem ou


decorrência para as culturas e os contextos de uso da linguagem oral ou escrita e,
logo, para os letramentos: a escrita levaria, por si só, a estágios mais complexos e
desenvolvidos de cultura e de organização cognitiva e daria acesso por si mesma ao
poder e à mobilidade social.

2 RELAÇÕES ENTRE LINGUAGEM ORAL E LINGUAGEM ESCRITA –


UM DEBATE EM ABERTO

Em muito devido às mudanças históricas decorrentes das novas tecnologias


eletrônicas e digitais da comunicação e da informação, que colocaram em causa,
com suas mídias, muitas dessas constatações – como a situação face-a-face da fala e
a distância da escrita; a fugacidade da fala e a preservação do escrito etc. –, da
década de 90 em diante, começou-se a pensar relações menos simplistas e dogmáticas
entre a fala e a escrita nas sociedades complexas e letradas. Duas posições ganharam
relevo nestas discussões mais recentes:
a) a existência de um contínuo ou gradação entre fala/escrita (lingüística
textual, análise conversacional, teorias de gêneros textuais); e
b) a existência de relações complexas de constitutividade mútua entre fala
e escrita em contextos específicos de uso (teorias da enunciação e do
discurso).
No Brasil, o proponente e articulador principal da visão do contínuo é
Marcuschi (2001a; 2001b, dentre outros). Antes dele, já Kato (1986) apresentava
uma visão de continuidade entre as construções de fala e escrita na criança em
desenvolvimento:

Figura 1 – Relações de continuidade fala/escrita na criança.

Ou seja, a criança desenvolveria uma fala inicial sem contato com a escrita
(F1). Quando de seus contatos iniciais com a escrita (E1), sua fala seria modificada
por efeitos de letramento (F2… Fn), assim como sua escrita (E2…En) também sofreria
impactos desses processos.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006 465


As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

Marcuschi (2001a, 2001b) apresenta visão mais sofisticada destas relações


de continuidade, fundada nos gêneros textuais. Para ele, “as diferenças entre fala e
escrita se dão dentro do continuum tipológico das práticas sociais de produção
textual e não na relação dicotômica de dois pólos opostos. Em conseqüência,
temos a ver com correlações em vários planos, surgindo daí um conjunto de
variações e não uma simples variação linear” (MARCUSCHI, 2001a, p. 37, destaque
do autor).

Figura 2 – Relações de continuidade fala/escrita em relação a gêneros


textuais (MARCUSCHI, 2001a, p. 38).

Os critérios principais de distribuição dos gêneros pelo contínuo seriam o


“meio de produção” (sonoro ou gráfico) e a “concepção discursiva” (oral ou escrita).
Assim teríamos, por exemplo, a seguinte distribuição de gêneros textuais:

Quadro 2 – Distribuição de quatro gêneros textuais de acordo com o meio de


produção e a concepção discursiva (MARCUSCHI, 2001a, p. 40).

Embora a concepção brevemente exposta acima apresente uma versão


bastante mais sofisticada das relações em oral e escrita nos usos sociais da língua,
esta ainda guarda um pendor tipológico e taxonomizante, e relações de semelhança
e diferença – enquanto múltiplas variáveis – operam no interior do contínuo.

466 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006


Rojo e Schneuwly

De outra natureza é a concepção de relações entre usos orais e escritos da


língua explicitada na epígrafe deste texto. Esta perspectiva é adotada por Corrêa
(2001), Rojo (2001), Schneuwly (2004, 2005) e Signorini (2001b), dentre outros.
Rojo (2001, p. 51-52) inicia seu texto distinguindo, com Barthes, “o escrito” – o
que, na escrita, refere-se ao traço, à grafia3 – e “a escrita”, “a que produz textos”
(BARTHES, 1981, p. 12). Ao longo do texto, a autora sustenta que a dicotomia entre
modalidades pode somente dizer respeito ao “escrito”, pois, na “escrita”, reinam
soberanos, sobre as relações complexas entre modalidades, o gênero discursivo e o
contexto ou situação específicos de produção do texto numa dada esfera social.
Já Signorini (2001b, p. 99-101) aponta para os “hibridismos da escrita”,
que se verificam “no/pelo imbricamento, conjunção, ou ‘mixagem’ – para usar um
termo de Street (1984) –, não só de formas percebidas como próprias das
modalidades oral e escrita, como também de códigos gráfico-visuais, gêneros
discursivos e modelos textuais”. Em direção semelhante caminha a noção de
“heterogeneidade da escrita” de Corrêa (2001, p. 142-156), quando insiste na
existência de um

[...] trânsito entre as práticas sociais do campo das práticas orais e do


campo das práticas letradas, como modo de justificar a presença de fatos
lingüísticos da enunciação falada (gêneros, recursos fônicos,
morfossintáticos, lexicais e pragmáticos) na enunciação escrita. Segundo o
que penso, é sempre o produto do trânsito entre práticas sociais orais/
faladas e letradas/escritas que nos chega como material de análise do modo
de enunciação falado e do modo de enunciação escrito, ambos – como se
sabe – manifestações de uma única e mesma língua.

Schneuwly (2005, s. p.), durante sua conferência analisada no presente artigo,


enfoca a questão agora do ponto de vista dos usos da língua e da linguagem na esfera
escolar. Diz o autor:

[...] A relação entre gêneros orais e gêneros escritos não é uma relação de
dicotomia. É antes uma relação de continuidade e de efeito mútuo, isto é,
gêneros orais podem sustentar gêneros escritos; gêneros escritos podem
sustentar gêneros orais. Eles estão em mútua interdependência, cada gênero
oral que entra na escola, em geral, pressupõe a escrita, assim como cada

3
Aos “meios de produção“, como diria Marcuschi (2001a).

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006 467


As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

gênero escrito trabalhado na escola pressupõe o oral. Então, de uma certa


maneira, esta é uma distinção relativamente artificial, pois há um
entrelaçamento contínuo. Além disso, cada gênero oral é sempre também
sustentado por um outro gênero oral, isto é, há sempre um gênero oral e
um gênero oral sobre o gênero oral, um discurso sobre. Cada gênero é
sempre também objeto de outros gêneros de alguma maneira. E então há
sempre o falar para escrever, o escrever para falar, o escrever para escrever
e o falar para falar, o que mostra que sempre um gênero é dependente de
outros gêneros, o que é um fenômeno evidente de intertextualidade, mas
que está sempre na base de nosso trabalho.

Esta é, pois, questão da maior relevância para a compreensão do


funcionamento dos gêneros orais formais e públicos e dos gêneros de texto escritos
em nossas sociedades letradas, assim como dos fenômenos dos letramentos e do
ensino-aprendizagem de línguas nas escolas.
Por isso, neste texto, pretendemos fazer um exercício de análise de um gênero
oral formal e público – a conferência acadêmica – em termos das relações complexas
e de mútuo efeito entre oral-escrita, oral-oral e escrita-escrita4 na constituição da
conferência e em sua “retextualização” (MARCUSCHI, 2001a) como transcrição.
Serão tomados como dados os múltiplos textos orais e escritos em jogo5 numa
conferência proferida por Bernard Schneuwly, em outubro de 2005. Eventualmente,
será também levada em conta a tradução (quase) simultânea feita durante a
conferência. Ao final, defender-se-á a posição de que oralidade e escrita mantêm
uma relação complexa de mútuo efeito e interferência nos gêneros orais formais
públicos, que pode ser melhor compreendida em termos de sistema de atividades
que colocam em circulação e em relação sistemas de gêneros (BAZERMAN, 2005a,
2005b), entendidos no sentido bakhtiniano do termo.

3 RETEXTUALIZAÇÃO – UM CONCEITO-CHAVE

Marcuschi (2001a, p. 46) também elabora o conceito de “retextualização”,


entendida como “um processo que envolve operações complexas [de passagem do
texto falado para o escrito e vice-versa] que interferem tanto no código como no

4
De acordo com Bovet (1999, p. 68), podemos conceber a conferência como “um texto oral cuja especificidade
diz respeito ao desenvolvimento progressivo e situado de sua escrita/leitura pelo orador e pelo público.”
5
O power point de base da conferência, a fala do professor, a tradução e a transcrição de sua fala.

468 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006


Rojo e Schneuwly

sentido e evidenciam uma série de aspectos nem sempre bem-compreendidos da


relação oralidade-escrita.”
Na verdade, o autor distingue entre “transcrição” (REY-DEBOVE, 1996) e
“retextualização”. Na “transcrição” ou “transcodificação” está envolvido o que
costumamos chamar de “o escrito”6, isto é, a materialidade fônica da fala e gráfica
da escrita, por meio de “procedimentos convencionalizados”. Neste nível, não há
introdução de transformações no texto produzido, apenas alteração na materialidade
(fônica-gráfica). No entanto, mesmo neste primeiro nível de operações relativamente
simples, já há uma neutralização do texto oral original: eliminam-se hesitações,
incorreções, reformulações, marcadores conversacionais, repetições e truncamentos;
introduz-se a pontuação. Há o que Marcuschi (2001a, p. 52) denomina uma espécie
de “idealização da língua pelo molde da escrita”.
Já na “retextualização” (MARCUSCHI, 2001a), entra em jogo o que
costumamos denominar “a escrita”, isto é interfere-se tanto na materialidade como
na forma e no conteúdo do texto, na passagem de um texto a outro. Refaz-se o textos
mudando sua formatação lingüística, por meio de uma série de operações que
Marcuschi (2001a, p. 69) sintetiza no quadro 3.

Quadro 3 – Aspectos envolvidos nos processos de retextualização.

Em seu livro, o autor detalha e exemplifica com abundância os processos


envolvidos nestas operações e faremos recurso aos conceitos e descrições do autor,
na medida em que for necessário na análise de nossos dados.

6
Ver Rojo (2001).

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006 469


As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

4 A CONFERÊNCIA ACADÊMICA – UMA FALA ENCADEADA A UMA


ESCRITA (OU MUITAS)

A conferência acadêmica é um gênero oral formal e público que apresenta


complexas relações entre textos orais e escritos em sua elaboração e apresentação.
Embora haja, em certos domínios de estudo e pesquisa, muitos conferencistas que
redijam um texto que será lido em público7, em nossa área, é mais comum o
procedimento de se elaborar inicialmente um resumo8 e depois um arquivo num
editor de apresentações (um “power point”, como se diz comumente9), com slides
contendo esquemas; enumerações; definições ou citações; quadros, tabelas e gráficos;
ilustrações e imagens, animados ou não. Sobre esses dois escritos10 e em relação
com eles, articula-se a fala do conferencista, que, depois, pode vir a ser transcrita
(ou transcodificada) e, por vezes, editada ou retextualizada para a elaboração de
um artigo acadêmico para publicação.
É esse gênero discursivo que estaremos analisando neste artigo, visando explorar
as relações entre oralidade e escrita nesta situação de comunicação. Mais exatamente,
trata-se da conferência intitulada Gêneros orais e escritos na escola11, proferida pelo
professor Bernard Schneuwly12 a um público de professores universitários e alunos de
graduação e pós-graduação das áreas de Lingüística, Lingüística Aplicada e Educação,
na UNICAMP, em 20/10/2005. A conferência foi proferida com tradução quase-
simultânea, feita pela mesma pessoa que depois elaborou a transcrição da conferência13.
Seguiram-se à conferência 45 minutos de debates.

7
Já Goffman (1981, p. 171-172) lembra que há três modos de apresentação pública em nossa sociedade:
“memorização”, “leitura em voz alta” e “fala espontânea”, esta última freqüentemente baseada em notas. O autor
aponta também para o fato de que a fala espontânea em conferências é ilusória, por suas relações com o texto
escrito.
8
Este resumo não é exatamente a apresentação de uma súmula do texto como quer o nome, pois, o mais das vezes,
o texto não se encontra redigido. Trata-se mais de um protocolo de intenções do que virá a ser dito ou um
“présumo”, se se quiser dizer assim.
9
Em nosso entender, estes (resumo e power point) são já dois gêneros de textos escritos que entram na elaboração
do texto oral da conferência. Detalharemos este ponto de vista ao longo da análise.
10
E, por vezes, também sobre outros tantos, como notas ou livros – em certas áreas, vídeos, imagens ou sonorizações
– que o conferencista traz para incluir citações e ler ou exibir para a platéia.
11
“Genres oraux et genres écrits à l’école.”
12
Prof. Dr. Bernard Schneuwly é docente em Didática do Francês L1 na seção de Ciências da Educação da Faculdade
de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra e coordena o grupo de pesquisa denominado
“Grafé – Groupe Romande de Recherche du Français Enseigné“.
13
Este dado nos será útil para investigar os processos e operações de compreensão do tradutor/transcritor.

470 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006


Rojo e Schneuwly

Para a elaboração da conferência foi dado ao professor apenas o título e não


uma ementa de conteúdo ou um resumo. Mas tratava-se do mesmo título de livro de
sua autoria (com sua equipe de pesquisa), traduzido e publicado no Brasil em 2004.
Portanto, ficava claro que se esperava uma síntese do trabalho do professor (e sua
equipe) nos últimos 10 anos, sobre a questão dos gêneros de texto na escola. Para a
conferência, o professor elaborou um power point, que será analisado juntamente
com sua fala. O professor também gravou sua fala (e as traduções e discussões)
diretamente no computador, por meio da ferramenta Audacity.app, gerando um
arquivo de som (.wav) para transcrição.
Goffman (1981, p. 176) chama a atenção para a existência, nas conferências,
de parênteses (brackets), muitas vezes acompanhados de rituais14, e qualifica a
“abertura” e “fechamento” da conferência como “parênteses que ocorrem na interface
entre espetáculo e jogo, neste caso, a situação e a conferência propriamente dita”.
O texto oral do gênero conferência acadêmica é, pois, aberto por um ritual
inicial de apresentação do conferencista convidado e de seu(s) tema(s), apresentação
das regras da conferência relativas a tempo e interação e de agradecimentos mútuos
pelo convite e pela aceitação do convite:

Mod.: Vamos abrir a conferência do Prof. Bernard Schneuwly que está numa
breve visita aqui e à Católica […] Esta primeira conferência de hoje é uma
conferência ligada ao trabalho dele dos últimos […] dez anos, sobre o ensino de
gêneros, primeiro escritos, não é?, na primeira fase, eles trabalharam, com foco
especial na produção, e, em seguida, gêneros orais na sala de aula, né?, e que teve
algum impacto nos nossos referenciais, né?, enquanto trabalho. Uma síntese deste
trabalho dos últimos dez anos está no livro que a gente traduziu ãn… o ano
passado, acabamos de traduzir o ano passado, da Mercado de Letras, que chama…
que tem o mesmo título da conferência, que é Gêneros orais e escritos na escola.
O professor/ Nós temos ãn… até meio dia para discussão e exposição […]/ vai
falar uma hora uma hora e pouquinho e aí a gente faz as discussões e… […]
Professor Bernard Schneuwly é da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação
da Universidade de Genebra e trabalha com o ensino de francês língua materna
[…] Eu passo a palavra então… Bernard…
Prof.: Merci. Ãn. C´est un grand plaisir de venir ici vous parler d’un thème que
me tient à coeur – Roxanne l’a dit – sur lequel je travaille depuis des très très
longues années. Et donc…15
14
Como acender um cigarro, sentar ou levantar, beber água etc.
15
“Obrigado. Ãn. É um grande prazer vir aqui falar-lhes de um tema que me é muito caro – como disse Roxane –
sobre o qual trabalho há muitos e muitos anos. Então…” (tradução nossa).

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006 471


As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

Embora tenhamos escolhido fazer para este artigo uma transcrição que
Marcuschi (2001a) qualifica como uma “idealização” da fala, isto é, já na forma do
português padrão (“vamos” por “vamo”, por exemplo), adotando a pontuação da
escrita e eliminando maiores digressões da fala, não procedemos a maiores re-
organizações do texto, para preservar, como exemplificação, já na fala inicial da
moderadora, as “descontinuidades” sintáticas da linguagem oral, por exemplo, no
enunciado “o trabalho dele dos últimos […] dez anos, sobre o ensino de gêneros,
primeiro escritos, não é?, na primeira fase, eles trabalharam, com foco especial na
produção, e, em seguida, gêneros orais na sala de aula, né?”. Além dos fáticos (“Né?”,
“Não é?”) e das hesitações (“ãn…”), os enunciados iniciais já apresentam
descontinuidades sintáticas (“gêneros, primeiro escritos, não é?, na primeira fase,
eles trabalharam, com foco especial na produção”), que, no texto escrito ou transcrito,
sofreriam re-organizações.
A partir deste momento, a fala do conferencista passa a relacionar-se
estreitamente e a constituir-se a partir do texto escrito do editor de apresentações,
como veremos logo mais. O power point organizado pelo conferencista constava de
16 slides, distribuídos conforme o quadro 4.
Mencionamos anteriormente que consideramos este esquema de apresentação
um texto num gênero presente na conferência e não, simplesmente, uma ferramenta
computacional. A própria ferramenta computacional – o editor de apresentações –
disponibiliza modelos (templates) de formato (layout) e de conteúdo (content) que
predizem alguns temas e finalidades possíveis dos textos (encontro empresarial,
apresentação de relatório técnico, visão geral de projeto, motivação de uma equipe,
recomendação de uma estratégia etc.) e permitem escolher entre formatos pré-prontos
(título, tabela, gráfico, organograma, lista com marcadores, texto, imagem ou mídia com
ou sem texto etc.). Podemos dizer que as ferramentas do software prevêem e predizem
tanto a forma composicional como alguns dos temas e estilos possíveis de textos no
gênero, além de possibilitarem um conjunto amplo de animações (de som e imagem).
Este gênero tem uma função planejadora da fala formal pública (no trabalho, no
espaço acadêmico) e exerce controle e apoio à execução desta fala, assim como apóia
também a compreensão da platéia. O texto dos slides esquematiza a fala e o número de
slides, por sua vez, serve de controle do tempo de execução da fala.
Vejamos dois tipos de desenvolvimento da fala em relação ao texto escrito dos
slides. No primeiro exemplo, a fala expande um pouco o texto do slide, apenas o suficiente
para qualificar o elenco de itens a serem desenvolvidos.

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Rojo e Schneuwly

Quadro 4 – Slides do editor de apresentações utilizado.

16
Tradução nossa.

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As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

Exemplo 1:

Je vais, dans un premier temps/ Donc, c’est un peu le plan que je vais suivre/
Je vais parler une heure, une heure et quart, quelque chose de ce type-là/
faire quelques brefs préliminaires; ensuite, vous parler très brièvement –
parce que ça vous connaissez – faire un petit rappell de la notion de genre,
puisque c’est “les genres écrits et oraux” et… évidemment, je ne peux pas
ne pas parler des genres, mais très brièvement. Ensuite, regarder l’école,
qu’est-ce/ l’école étant donné que c’est une institution sociale, il y a une
“sphere d’activité”, comme dirait Bakhtine; quel est le rapport entre, de
manière générale, l’école et les genres et je vais ici introduire la notion de
“forme scolaire” parce que, à mon avis, c’est cette “forme scolaire”, qui est
une forme sociale, […]17 Donc, l’école, la forme scolaire, parce que c’est,
pour moi, la forme scolaire qui définit les genres qui sont à l’intérieur de
l’école. Je vais, ensuite, […] regarder les genres en français, dans la langue
maternelle “français”, et adopter, dans un premier point/ dans un premier
temps, le point de vue de la transposition didactique et ensuite je vais revoir
les genres en français, mais, cette fois-ci, adopter le point de vue de
l’ingénierie – vous verrez un petit peu qu’est-ce que ça signifie tout-à-l’heure.
C’est deux manières de regarder la même realité de deux points de vue,

17
As interrupções aqui são devidas a comentários relativos a problemas técnicos com o equipamento, digressões
relativas à falta de alimentação elétrica para o computador, que optamos por não transcrever, dada a não pertinência
ao tema em desenvolvimento.

474 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006


Rojo e Schneuwly

précisement, quoi. Je vais terminer sur les genres pour enseigner, et ceci
fait le lien avec la conférence de demain. Et donc, voilà. Ça sera ‘un affaire à
suivre’.18

O texto do slide de abertura da conferência, que tem por função apresentar


um “organizador avançado”, uma meta-enunciação do que será desenvolvido, realiza-
se no formato de fala planejadora (VYGOTSKY, 1934), exibindo uma lista com
marcadores dos grandes tópicos que serão abordados na conferência, em número
de 6. Os tópicos são apresentados como frases nominais, nominalizações e apostos.
A fala da conferência expande um pouco, como dissemos, os tópicos desta
lista, constituindo uma descrição das ações discursivas que serão realizadas (“faire
quelques brefs préliminaires”; “ensuite, vous parler très brièvement”; “je vais, ensuite,
regarder”; “je vais terminer sur”). Além de organizar, na forma narrativa, a seqüência
temporal dos grandes temas da exposição, a fala inicial qualifica minimamente esses
tópicos para além das qualificações já apresentadas no slide:

- l’école à une institution sociale; une “sphere d’activité”, comme dirait


Bakhtine;
- la forme scolaire à qui définit les genres qui sont à l’intérieur de l’école;
- genres pour enseigner à ceci fait le lien avec la conférence de demain.

Ao retextualizar a lista de tópicos do slide, o orador, portanto, procede a


“reformulações por acréscimo” (MARCUSCHI, 2001a). Mas, ao fazê-lo, qualifica
apenas minimamente os tópicos, coisa que ocorre sempre que o orador passa
rapidamente – a elocução é também mais rápida – pelos itens de um slide, seja

18
“Eu vou, num primeiro momento/ Então, é um pouco o plano que vou seguir/ vou falar uma hora, uma hora e
quinze, algo assim/ fazer algumas breves preliminares; depois, falar-lhes muito brevemente – pois isso vocês
conhecem – fazer um pequeno apanhado da noção de gênero, pois é “os gêneros escritos e orais” e…
evidentemente, não posso não falar dos gêneros, mas muito brevemente. Depois, olhar a escola o que/ a escola
visto que é uma instituição social, uma “esfera de atividade”, como diria Bakhtin; qual é a relação entre, de
maneira geral, a escola e os gêneros e vou aqui introduzir a noção de “forma escolar”, porque, em minha
opinião, é esta “forma escolar” que é uma forma social […] Então, a escola, a forma escolar, porque é, para
mim, a forma escolar que define os gêneros que estão no interior da escola. Eu vou, depois […] olhar os gêneros
em francês, na língua materna “francês”, e adotar, num primeiro ponto/ num primeiro tempo, o ponto de vista da
transposição didática e depois vou rever os gêneros em francês, mas desta vez adotar o ponto de vista da engenharia
– vocês vão ver um pouquinho o que isso significa daqui a pouco. São duas maneiras de olhar a mesma realidade
de dois pontos de vista, precisamente. Vou terminar com os gêneros para ensinar, o que faz a ligação com a
conferência de amanhã. Então, é isso. Teremos ‘cenas dos próximos capítulos’…” (tradução nossa).

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006 475


As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

porque vai retomá-los um a um para comentá-los, como é o caso deste slide, seja
por questões de controle do tempo. O índice, neste caso é prosódico: uma fala de
ritmo mais rápido e muitas vezes com entonação de leitura. Certos itens podem ser
reconhecidos como aspados (citados ou lidos), pela entonação – pequena pausa
antes de iniciar o sintagma em tom e pitch mais alto e forte –, como é o caso, no
exemplo 1, de “genres écrits et oraix”, “sphère d’activité” e de “forme scolaire”.

Quadro 5 – Imagens espectográficas dos trechos falados.

Neste caso, o conferencista também escolhe um estilo interativo com a platéia


(“vous parler”, “vous connaissez”, “vous verrez”) e marcado por um registro
relativamente informal (“quelque chose de ce type-là”, “un petit peu qu’est-ce que ça
signifie tout-à-l’heure”, “quoi”, “et donc”, “voilà”, “ça sera”), estabelecendo uma
relação mais próxima e distensa com a platéia. Para Bovet (1999, p. 70), “o público
desempenha um papel importante na organização discursiva da exposição. Exemplos
de formulação recipient designed19 lembram a dimensão interativa da exposição, a
despeito de seu caráter monológico”. Isto é, por exemplo, o que acontece neste trecho,
quando, face a uma audiência de lingüistas que supõe conhecer e operar com o conceito
de gênero discursivo, o orador opta por justificar por que tratará esse item (gênero

19
Isto é, adaptadas à representação específica que o orador faz da audiência em questão, determinadas, segundo
Bakhtin/Volochínov (1929), pela “apreciação valorativa do locutor sobre o interlocutor“.

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Rojo e Schneuwly

discursivo) e tão rapidamente (“falar-lhes muito brevemente – pois isso vocês conhecem
– fazer um pequeno apanhado da noção de gênero, pois é ‘os gêneros escritos e orais’
e… evidentemente, não posso não falar dos gêneros, mas muito brevemente”).
Por outro lado, o texto oral constituído sobre os slides apresenta algumas
das características antes mencionadas de descontinuidade sintática, auto-correção
e retomada etc.

- Ensuite, regarder l’école, qu’est-ce/ l’école étant donné que c’est une
institution sociale, il y a une “sphere d’activité”, comme dirait Bakhtine;
quel est le rapport entre, de manière générale, l’école et les genres
- Donc, l’école, la forme scolaire, parce que c’est, pour moi, la forme scolaire
qui définit les genres
- Et adopter, dans un premier point/ dans un premier temps, le point de vue
de la transposition didactique

Uma maneira diferente de reformular por acréscimo o texto dos slides ocorre
no exemplo 2.

Exemplo 2:

Alors, maintenant, les rapports entre genres oraux et genres écrits, eh...
Dans un/ première/ distinction/ Donc la première defini// Pas
définition, le premier principe que nous définissons c’est que nous
nous limitons – mais ça fait déjà beaucoup – aux genres publiques, c’est-
à-dire, aux genres qui peuvent circuler, être accessibles à des groupes ou
des larges masses de gens, à l’opposée à des genres privés, que nous ne

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006 477


As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

traitons pas d’une certaine manière comme un objet à enseigner. C’est un


principe de base, mais qui est lié à notre conception de l’école comme un
lieu précisement publique, relativement pas coupé mais séparé de la
sphère privée etc. Donc, c’est ça un principe de base. Ce qu’évidemment,
pour les genres oraux, exclut tout une série de genres, mais également
pour les genres écrits.20
Le deuxième principe c’est que le rapport entre genres oraux et genres écrits n’est
pas un rapport de dicotomie. C’est plutôt un rapport d’une certaine manière de
continuité et d’effet mutuel, c’est-à-dire, des genres oraux peuvent soutenir des
genres écrits; des genres écrits peuvent soutenir des genres oraux. Ils sont en
mutuelle interdépendence, chaque genre oral traduit/ chaque genre oral
prêté à l’école, en général, présuppose de l’écrit, tout comme chaque genre
écrit travaillé à l’école préssupose de l’oral. Donc, d’une certaine manière c’est une
distinction relativement artificielle, ce qui ne veut pas dire qu’après, la production
à un certain moment est écrite de manière dominante, mais il y a un entrelacement
continuel. D’ailleurs, chaque genre est toujours aussi soutenu/ un genre
oral est toujours aussi soutenu par un genre oral lui-même, c’est-à-dire, il y
a toujours un genre oral et un genre oral sur le genre oral, ãn? un discours sur. Il
y en a donc, ici/ ãn…/ chaque genre est toujours aussi objet d’autres genres
en quelque sorte. Et donc il y a toujours le parler pour écrire, l’écrire pour parler,
l’écrire pour écrire, le parler pour parler, ce qui montre que toujours un genre est
dépendent d’autres genres, ce qui est un phénomène d’intertextualité évidente,
mais qui est à la base de notre travail toujours.21

20
“Então, agora, as relações entre gêneros orais e gêneros escritos, eh… Num/ primeira/ distinção/ Então a primeira
defini/ Não definição, o primeiro princípio que definimos é que nós nos limitamos – o que já é muito – aos gêneros
públicos, isto é, aos gêneros que podem circular, ser acessíveis a grupos ou grandes massas de pessoas, ao contrário
dos gêneros privados, que não tratamos de certa maneira como um objeto a ensinar. É um princípio de base, mas
que está ligado a nossa concepção de escola como um lugar precisamente público, relativamente não desligado, mas
separado da esfera privada etc. Então, é um princípio de base. Que, evidentemente, para os gêneros orais, exclui toda
uma série de gêneros, mas de igual maneira para os gêneros escritos” (tradução nossa).
21
“O segundo princípio é que a relação entre gêneros orais e gêneros escritos não é uma relação de dicotomia. É antes
uma relação de uma certa maneira de continuidade e de efeito mútuo, isto é, gêneros orais podem sustentar gêneros
escritos; gêneros escritos podem sustentar gêneros orais. Eles estão em mútua interdependência, cada gênero oral
traduz/ cada gênero oral que entra na escola, em geral, pressupõe a escrita, assim como cada gênero escrito trabalhado
na escola pressupõe o oral. Então, de uma certa maneira, esta é uma distinção relativamente artificial, o que não quer
dizer que, depois, a produção num certo momento não seja escrita de maneira dominante, mas há um entrelaçamento
contínuo. Além disso, cada gênero é sempre também sustentado/ cada gênero oral é sempre também sustentado por
um outro gênero oral, isto é, há sempre um gênero oral e um gênero oral sobre o gênero oral, ãn? Um discurso
sobre. Há então aqui/ ãn…/ cada gênero é sempre também objeto de outros gêneros de alguma maneira. E então há
sempre o falar para escrever, o escrever para falar, o escrever para escrever e o falar para falar, o que mostra que
sempre um gênero é dependente de outros gêneros, o que é um fenômeno evidente de intertextualidade, mas que
está sempre na base de nosso trabalho” (tradução nossa).

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Rojo e Schneuwly

Dada a extensão da reformulação feita sobre o texto deste slide, vamos


comentar apenas as reformulações e acréscimos propostos para os últimos dois
itens da lista com marcadores do slide, até porque estes dois tópicos expõem
conteúdos importantes para nossa discussão neste artigo. Neste ponto da conferência,
o orador expõe dois princípios de base para o tratamento dos “gêneros orais a
ensinar”, reproduzidos no slide, e que são definidos, exemplificados e sustentados,
por meio de acréscimos feitos ao texto primeiro:

Quadro 6 – Reformulações e acréscimos feitos oralmente aos dois últimos


itens do slide.

Vemos que, nesse segundo modo de reformulação por acréscimo, esta é bastante
mais extensa e, nele, o tópico do slide funciona como uma espécie de lembrete para o
desenvolvimento de toda uma fala que inclui, como vimos, (re-)definições, explicações,
reformulações, paráfrases do já-dito, exemplificações. Também aqui estão presentes
as formas de (des-)continuidade da fala, marcadas em negrito no exemplo, índices em
geral de busca e da seleção lexical mais adequada, que leva a reformulações responsáveis
pelo caráter “entrecortado” da produção oral.

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As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

Estas são, portanto, duas maneiras principais de reformular por acréscimo


os textos dos slides. É importante lembrar que, durante a conferência, para a platéia
como para o orador, o fluxo textual dos slides rege e organiza a produção textual da
fala, de tal maneira que descontinuidades no fluxo dos slides causarão
descontinuidades no fluxo da fala. O fluxo dos slides serve também para o controle,
por parte do orador, do tempo de fala.
Exemplo 3:
“On peut le montrer d’ailleur: cette sédimentation elle fonctionne. J’ai un
tout petit/ le prochain annonce/ oui/ c’est ça/ le prochain petit tableau là/
voilà/ dit juste ici /

Donc, on a fait un étude sur quelque chose comme 300, 400 enseignants
pour savoir quels sont les genres qu’ils enseignent.”22
Exemplo 4:
Bien, je termine ici ces quelques éléments de/ sur la refléxion sur les genres
enseignés du point de vue de la transposition didactique et je passe au
prochain point sur le point de vue de l’ingénierie. Alors, j’ai déjà utilisé une
heure, est-ce que vous m’accordez encore… (risos23 e interrupção da

22
“Além disso, podemos mostrá-lo: esta sedimentação, ela funciona. Eu tenho um pequenino/ o próximo
slide/ sim/ isso/ o próximo quadro lá/ ó/ aí, assim/ (slide) Então, fizemos um estudo com algo como 300,
400 professores para saber quais são os gêneros que ensinam” (tradução nossa).
23
Para Bovet (1999), o riso da platéia é um fenômeno de co-enunciação.

480 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006


Rojo e Schneuwly

moderadora concedendo tempo) Voilà, donc… Je vais encore faire un


quart d’heure ou dix minutes comme ça, si vous avez encore de la patience.
Alors…24

Conclui-se, desta primeira parte, que conferência e apresentação power point


são dois gêneros que, embora se materializem em modalidades diferentes (gráfica,
fônica), não podem ser considerados como separados num contínuo entre oralidade e
escrita, a apresentação mais alinhada com a escrita e a conferência mais alinhada com
a oralidade devido à materialidade de cada uma. Ao contrário, são gêneros secundários
mutuamente constitutivos, um fazendo parte do outro de maneira determinante. A forma
composicional e os temas da apresentação serão retomados e constituirão a forma
composicional e temas da conferência, que expande e re-organiza o texto escrito da
apresentação por meio do acréscimo de definições, explicações, reformulações etc. A
fala da conferência flexibiliza o estilo formal e público da apresentação, podendo adotar
registros relativamente mais informais e distensos. A relação entre um e outro não é de
semelhanças e diferenças entre textos prototípicos num continuum, mas de efeito
mútuo e de entrelaçamento. Uma relação dialógica no sentido bakhtiniano, em que
um enunciado da apresentação constitui “um elo (detonador de outros elos) na cadeia
de fala” da conferência. Cabe também lembrar que os enunciados da apresentação já
são eles próprios elos-síntese de outros textos e enunciados, escritos ou lidos pelo
orador produtor do texto da apresentação25.
Mesmo conceitos bakhtinianos forjados para explicar o dialogismo nos gêneros,
como os de “intercalação” e o de “hibridismo”26, não são exatos para explicar as
relações intertextuais e interdiscursivas aqui presentes, que se apresentam como partes
tramadas de um discurso cujo funcionamento é conjunto e mutuamente determinado.

24
“Bom, eu termino aqui estes alguns elementos de/ sobre a reflexão sobre os gêneros ensinados do ponto de vista
da transposição didática e eu passo ao próximo ponto sobre o ponto de vista da engenharia. Então, eu já utilizei
uma hora, vocês me concedem ainda… (risos e interrupção da moderadora concedendo tempo). Então, tá. Eu
vou ainda tomar um quarto de hora ou dez minutos assim, se vocês ainda tiverem paciência. Então…” (tradução
nossa).
25
Bovet (1999, p. 71) chama a conferência de “uma fase da ciência se fazendo”. Para ele, “a exposição não pode
ser reduzida a uma forma de divulgação da pesquisa. No seu próprio desenvolvimento, um saber é discursivamente
produzido e organizado”.
26
“Denominamos construção híbrida o enunciado que, segundo índices gramaticais (sintáticos) e composicionais,
pertence a um único falante, mas onde, na realidade, estão confundidos dois enunciados, dois modos de falar,
dois estilos, duas ‘linguagens’, duas perspectivas semânticas e axiológicas. Repetimos que entre esses enunciados,
estilos, linguagens, perspectivas, não há nenhuma fronteira formal, composicional e sintática [...]” (BAKHTIN,
1934-35/1975, p. 110). O contrário ocorre com os gêneros intercalados, cujas fronteiras são marcadas.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006 481


As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

5 A TRANSCRIÇÃO DA CONFERÊNCIA – NOVOS PROCEDIMENTOS


DE RETEXTUALIZAÇÃO

Na transcrição desta conferência operam muitos dos procedimentos já


discutidos em detalhe em Marcuschi (2001a) – sobretudo, procedimentos de
“idealização” e de “reformulação”. Comparemos as falas da conferência com as
transcrições efetuadas, no quadro 7.

Quadro 7 – Falas da conferência comparadas às transcrições.

482 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006


Rojo e Schneuwly

Como processos da operação de “idealização” da fala a partir da língua escrita,


destacam-se os de:

a) “regularização”, por meio de:


- uso da pontuação gráfica;
- estabelecimento da concordância verbo-nominal em termos de língua padrão
(substituição de “c’est” por “ce sont”; “genres comme des objets à enseigner”);
- eliminação ou substituição dos marcadores ligados a um registro informal
da língua (“de deux points de vue, précisement, quoi. Je vais terminer sur
les genres pour enseigner, et ceci ce qui fait le lien avec la conférence de
demain. . Et donc, voilà. Ça sera “un affaire à suivre”.”);
b) “eliminação” das hesitações, digressões, repetições e correções (“Je vais,
dans un premier temps / Donc, c’est un peu le plan que je vais suivre/ Je vais
parler une heure, une heure et quart, quelque chose de ce type-là/ faire
quelque; Ensuite, regarder l’école, qu’est-ce/ l’école étant donné que; forme
sociale, […] Donc, l’école, la forme scolaire, parce que c’est, pour moi, la
forme scolaire qui définit; genres écrits, eh... Dans un/ première/ distinction/
Donc la première défini/ Pas définition, La première distinction, le premier
principe que nous définissons; l’école comme un lieu précisement publique,
relativement pas coupé mais séparé de la sphère privée”);

e de “reformulação”, ainda que mínima, por meio de:

c) “Reordenação” sintática: “le rapport, de manière générale, entre,


de manière générale, l’école et les genres”;
d) “Substituição” e “acréscimo” de coesivos: “puisque, pour”;
e) “Substituição” de marcas prosódicas por sintagmas completos,
recuperando o sentido de maneira mais precisa: “puisque le thème ce
sont c’est “les genres écrits et oraux” et… évidemment; regarder les genres
à l’enseignement du Français langue maternelle en français, dans la
langue maternelle “français”, et adopter”.

Sendo a transcrição uma espécie de “discurso reportado”, estamos aqui no


domínio do que Bakhtin/Volochínov (1929, p. 149) trataram como o fenômeno do
“discurso citado”:

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006 483


As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

[…] Os esquemas lingüísticos […], as modificações desses esquemas e


as variantes dessas modificações que encontramos na língua, e que servem
para a transmissão das enunciações de outrem e para a integração dessas
enunciações, enquanto enunciações de outrem, num contexto monológico
coerente.

O autor lembra ainda algo fundamental para este nosso texto: o fato de que
“o discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é,
ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a
enunciação” (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 1929, p. 150, ênfase do autor).
Assim, tanto as relações discursivas entre os enunciados da apresentação e
os da conferência como os da conferência e os da transcrição seriam fenômenos de
discurso citado, de “discursos no discurso, de enunciações na enunciação”. Mas
com uma diferença básica: no caso da relação dos enunciados da apresentação com
os da conferência, estamos diante de um “estilo pictórico” de citar o discurso e, no
caso da relação entre a conferência e sua transcrição, estamos diante de um “estilo
linear autoritário”27 (“monumental”) de citar o discurso de autor.
O “estilo pictórico” tem “tendência para infiltrar o discurso citado com as
réplicas e os comentários do autor” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 159). É o
que faz o conferencista em relação aos enunciados dos slides da apresentação: glosa,
comenta, replica. O “estilo linear autoritário” tem tendência a tratar o discurso alheio
como um “monumento”, algo que não pode ser alterado e cuja pureza e integralidade
têm de ser preservadas – é o que tentam fazer o tradutor e o transcritor.
Marcuschi (2001a, p. 54) aponta como uma das variáveis relevantes para a
retextualização a “relação entre o produtor do texto original e o transformador”,
dizendo que, quando é o próprio autor que retextualiza, as mudanças são muito
mais radicais e, quando é uma outra pessoa, esta terá muito mais “’respeito’ pelo
original e fará menor número de mudanças no conteúdo, embora possa fazer muitas
mudanças na forma”.
É o que vimos ocorrer na transcrição: mudanças na forma para adequá-la a
uma idealização da língua que tem base na escrita, mais aceita como variedade
padrão, e mudanças no âmbito do conteúdo somente para torná-lo mais preciso.
Seria o que Bakhtin/Volochínov (1929, p. 165) chama de “variante analisadora de
conteúdo” do estilo linear. Para ele,
27
Na tradução das obras de Bakhtin e seu Círculo (1929, 1934-35/1975), a palavra “autoritário/a” está usada com
o sentido de “ligado às palavras de autor/autoridade”; authoritative, em inglês.

484 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006


Rojo e Schneuwly

A tendência analítica do discurso indireto manifesta-se principalmente pelo


fato de que os elementos emocionais e afetivos do discurso não são
literalmente transpostos ao discurso indireto, na medida em que não são
expressos no conteúdo mas nas formas da enunciação. [...] As abreviações,
elipses, etc., possíveis no discurso direto por motivos emocionais e afetivos,
não são admissíveis no discurso indireto por causa da sua tendência analítica.
Esses elementos só entram na sua construção sob uma forma completa e
elaborada.

No caso da variante analisadora de conteúdo do estilo linear, o discurso do


outro é apreendido como “uma tomada de posição com conteúdo semântico preciso
por parte do falante”, e busca-se transpor ou retextualizar de maneira analítica sua
composição objetiva exata (o que disse o falante). Para Bakhtin/Volochínov (1929,
p. 167),

A tendência a tematizar o discurso de outrem é incontestavelmente inerente


a essa variante, e assim ela preserva a integridade e a autonomia da
enunciação, não tanto em termos sintáticos mas em termos semânticos
(vimos como uma construção expressiva numa enunciação a ser citada
pode ser tematizada). Esses resultados, contudo, só são obtidos ao preço
de uma certa despersonalização do discurso citado.

Para o autor, isso é típico de certos contextos e esferas de atividade humanos,


que ele qualifica como “um contexto enunciador suficientemente racional e
dogmático”, em que se manifesta um “forte interesse pelo conteúdo semântico, e
onde o autor afirma, através de suas próprias palavras, com sua própria
personalidade28, uma posição de forte conteúdo semântico”.
Portanto, as apreciações de valor que levam o transcritor a retextualizar e
modificar um texto oral original são fortemente ligadas à propriedade da palavra, a
monumentalidade da palavra e disso decorre uma tendência a preservação do conteúdo.
São, no entanto, tendências diversas de “apreensão ativa” do discurso alheio
ou anterior que se manifestam na transmissão ou recepção do discurso: uma “relação
ativa” de uma enunciação a outra, uma “reação da palavra à palavra”.

28
Para Bakhtin/Volochínov (1929, p. 159), “o discurso retórico, diferentemente do discurso literário, pela própria
natureza da sua orientação, não é tão livre na sua maneira de tratar as palavras de outrem. Ele tem, de forma
inerente, um sentimento agudo dos direitos de propriedade da palavra e uma preocupação exagerada com a
autenticidade”.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006 485


As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

Também Marcuschi (2001a, p. 70) aponta que “para poder transformar um


texto é necessário compreendê-lo ou pelo menos ter uma certa compreensão dele”.
Por isso, o autor coloca como 4º bloco das operações de retextualização as operações
“cognitivas” de compreensão (“inferência, inversão, generalização”)29. Para Bakhtin/
Volochínov (1929, p. 154), no entanto, essas “operações cognitivas” seriam
movimentos do “discurso interno” e o autor dá especial atenção a dois desses
movimentos: o de “réplica interior” e o de “comentário efetivo” (termos tomados
por Bakhtin/Volochínov a JARUBINSKY, s.d.):

Aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo, privado


da palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores. Toda a
sua atividade mental, o que se pode chamar o ‘fundo perceptivo’, é
mediatizado para ele pelo discurso interior e é por aí que se opera a junção
com o discurso apreendido do exterior. A palavra vai à palavra. É no quadro
do discurso interior que se efetua a apreensão da enunciação de outrem,
sua compreensão e sua apreciação, isto é, a orientação ativa do falante.
Esse processo efetua-se em dois planos: de um lado, a enunciação de outrem
é recolocada no contexto de comentário efetivo (que se confunde em parte
com o que se chama o fundo perceptivo da palavra); na situação (interna e
externa), um elo se estabelece com a expressão facial, etc. Ao mesmo tempo
prepara-se a réplica (Gegenrede).

Em nossos dados sob análise, os movimento desta apreensão ativa por parte
da pessoa que elaborou a transcrição é revelado, em parte, pela tradução feita pela
mesma pessoa, no momento da conferência, exibida no quadro 8:

29
Ver quadro 3.

486 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006


Rojo e Schneuwly

Trecho da conferência Tradução Transcrição


“Je vais, dans un premier temps/ “Neste primeiro pedaço, ele “Je vais, dans un premier temps
Donc, c’est un peu le plan que je anunciou um pouco o que ele , faire quelques brefs
vais suivre/ Je vais parler une pretende fazer durante a préliminaires; ensuite vous
heure, une heure et quart, conferência/ ãn… que é fazer parler très brièvement – puisque
quelque chose de ce type-là/ alguma/ depois de algumas cela vous connaissez – pour
faire quelques brefs observações preli-minares, ãn… faire un petit rappell de la notion
préliminaires; ensuite, vous fazer algumas/ retomadas né? de genre, puisque le thème ce
parler très brièvement – parce teóricas da noção de gênero com sont les genres écrits et oraux et
que ça vous connaissez – faire a qual ele está trabalhando . évidemment je ne peux pas ne
un petit rappell de la notion de Como o gênero é algo ligado a pas parler des genres, mais très
genre, puisque c’est “les genres diversas esferas, passar em brièvement. Ensuite, regarder
écrits et oraux” et… seguida à escola como uma l’école , étant donné que c’est
évidemment, je ne peux pas ne esfera que gera ela mesmo une institution sociale, une
pas parler des genres, mais très gêneros, né?, criadora de gêneros sphere d’activité, comme dirait
brièvement. Ensuite, regarder e fazer um pouquinho uma Bakhtine; quel est le rapport, de
l’école, qu’est-ce/ l’école étant reflexão sobre o funcionamento manière générale, entre l’école
donné que c’est une institution dessa esfera, a forma de et les genres et je vais ici
sociale, il y a une “sphere funcionamento da escola. introduire la notion de formes
d’activité”, comme dirait Em seguida passar para o scolaires, parce que, à mon avis,
Bakhtine; quel est le rapport gêneros em francês, claro né?, c’est cette forme scolaire, qui est
entre, de manière générale, que é a cultura que ele vive, une forme sociale, qui définit
l’école et les genres et je vais ici né?, sob o ponto de vista da les genres qui sont à l’intérieur
introduire la notion de “forme transposição didática, ou seja de de l’école. Je vais, ensuite,
scolaire” parce que, à mon avis, como trabalhá-los na escola e regarder les genres à
c’est cette “forme scolaire”, qui do mecanismo de trans-posição. l’enseignement du Français
est une forme sociale, […] Donc, E ãn… quase finalmente, langue maternelle et adopter,
l’école, la forme scolaire, parce retomar do/ retomar a questão dans un premier temps, le point
que c’est, pour moi, la forme dos gêneros em francês, em de vue de la transposition
scolaire qui définit les genres qui francês, mas desta vez não do didactique et ensuite je vais
sont à l’intérieur de l’école. Je ponto de vista da transposição, revoir les genres en Français,
vais, ensuite, […] regarder les mas do ponto de vista de algo mais, cette fois-ci, adopter le
genres en français, dans la que ele está chamando “sua point de vue de l’ingénierie –
langue maternelle “français”, et engenharia”, né? Eu tô vous verrez un petit peu ce qui
adopter, dans un premier point/ imaginando seu funciona- cela signifie tout-à-l’heure. Ce
dans un premier temps, le point mento, sua estrutura, enfim, sont deux manières de regarder
de vue de la transposition “engenharia” aí deve estar la même realité de deux points
didactique et ensuite je vais fundindo as duas noções, de vue, précisement . Je vais
revoir les genres en français, suponho. Ãn… E aí, por fim, pra terminer sur les genres pour
mais, cette fois-ci, adopter le terminar, ele quer falar dos enseigner, ce qui fait le lien avec
point de vue de l’ingénierie – gêneros para ensinar, né?, ãn…, la conférence de demain. ”
vous verrez un petit peu qu’est- o que, segundo ele, faz a
ce que ça signifie tout-à-l’heure. conexão com a conferência de
C’est deux manières de regarder amanhã. ”
la même realité de deux points
de vue, précisement, quoi. Je
vais terminer sur les genres pour
enseigner, et ceci fait le lien avec
la conférence de demain. Et
donc, voilà. Ça sera ‘un affaire à
suivre’”.

Quadro 8 – Comparação de trechos da conferência, da tradução oral


concomitante e da transcrição.

No quadro 8, vemos que a tradução quase-simultânea – que podemos tomar


como indícios dos mecanismos de compreensão do discurso – adota um estilo menos
linear e mais pictórico de transmissão do discurso alheio, embora ainda analisador
de conteúdo e não de expressão. Ou seja, a tradutora se permite fazer uma série de
“comentários efetivos” sobre os enunciados do conferencista, que vão desde
comentários meta-enunciativos (“ele anunciou um pouco o que ele pretende fazer
durante a conferência”), até generalizações (“forma de funcionamento da escola”,

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006 487


As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

referindo a relação entre escola e gêneros e às formas escolares), interpretações


inferenciais (“claro né?, que é a cultura que ele vive, né?”; ou “’sua engenharia’, né? Eu
tô imaginando seu funcionamento, sua estrutura, enfim, ‘engenharia’ aí deve estar
fundindo as duas noções, suponho”) e marcações da responsabilidade de autoria (“algo
que ele está chamando ‘sua engenharia’”; “o que, segundo ele, faz a conexão
com a conferência de amanhã”). Além disso, a tradutora elimina do discurso todas as
marcas interativas com a platéia e os indícios de fala situada e implicada (“vous parler
très brièvement – parce que ça vous connaissez –”; “vous verrez un petit peu qu’est-ce
que ça signifie tout-à-l’heure”; “Et donc, voilà. Ça sera ‘un affaire à suivre’”).
Por que a mesma tradutora/transcritora adota estilos tão diferenciados na
tradução e na transcrição? Interferência da materialidade textual (oral na tradução,
escrita na transcrição)? Situação de produção de cada discurso? Para Bakhtin/
Volochínov (1929, p. 152),

[...] Há diferenças essenciais entre a recepção ativa da enunciação de outrem


e sua transmissão no interior de um contexto. É conveniente levar isso em
conta. Toda transmissão, particularmente sob forma escrita, tem seu fim
específico: narrativa, processos legais, polêmica científica, etc. Além disso,
a transmissão leva em conta uma terceira pessoa – a pessoa a quem estão
sendo transmitidas as enunciações citadas. Essa orientação para uma terceira
pessoa é de primordial importância: ela reforça a influência das forças sociais
organizadas sobre o modo de apreensão do discurso.

Embora sejam dois discursos de transmissão da palavra alheia, no caso da


tradução, esta se dirige a uma platéia especializada que a tradutora supõe desconhecer
a metáfora da “engenharia”, por exemplo, o que talvez a leve a comentá-la. No caso
da transcrição, esta foi feita para que o próprio autor a transformasse em artigo a ser
traduzido. Portanto, esta busca preservar ao máximo a fidelidade ao conteúdo do
dito, num estilo linear autoritário.

6 SISTEMAS DE ATIVIDADES E SISTEMAS DE GÊNEROS

A análise aqui desenvolvida visou exemplificar as relações complexas e de


mútua constituição que escritas e fala apresentam nos gêneros orais formais públicos.
Foi realizada sobre uma conferência acadêmica – assim como Marcuschi (2001a)
dedica espaço à análise de entrevistas transcritas e publicadas –, mas pode inspirar

488 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006


Rojo e Schneuwly

a análise de outros gêneros orais formais e públicos tão complexos quanto a


conferência acadêmica, mas que apresentam outros tipos de relação entre escritas e
falas e outros rituais: notícia televisiva, encenação de peça teatral, seminário,
apresentação empresarial etc.
Evidentemente, as restrições de espaço deste artigo permitiram somente uma
análise grosseira do material. Haveria ainda, por exemplo, a necessidade de uma análise
prosódica detalhada desses eventos (uma análise do ponto de vista do oral ele próprio),
assim como uma análise dos processos de referenciação no desenvolvimento da fala
poderia trazer elementos importantes sobre os acréscimos que o conferencista faz ao
texto previamente escrito (a apresentação). Além disso, seria também interessante
enfocar as relações intergenéricas e intermodais do ponto de vista da audiência, por
meio, por exemplo, de uma análise das notas que a platéia toma durante uma
conferência. Processos intergenéricos, intertextuais e interdiscursivos de retextualização
de uma escrita para outras escritas poderiam ser verificados no cotejamento entre
transcrição da conferência, artigo resultante e sua tradução.
No entanto, a análise foi suficiente para podermos verificar que,
paradoxalmente, a própria noção de “retextualização” (MARCUSCHI, 2001a) é um
argumento a favor – e uma ferramenta de análise – dos processos de mútua
constitutividade escrita/oral no gênero e não do continuum de gêneros. A proposta
de “continuum fala/escrita” (MARCUSCHI, 2001a) exige uma certa fixação do gênero
num ponto do gradiente, mais próximo da escrita ou da oralidade, que leva a ignorar
o processo pelo qual escritos e fala se tornam elos de uma cadeia de enunciados, de
maneira dinâmica.
Um enfoque promissor e dinâmico dessas relações complexas entre escritas
e textos orais em gêneros orais formais públicos talvez possa tomar como base as
noções de “sistema de gêneros” como parte de um “sistema de atividades”30 propostas
por Bazerman (2005a, p. 32-33). O autor, tematizando as relações intergenéricas
em atividades de sala de aula, afirma que

Um sistema de gêneros compreende os diversos conjuntos de gêneros


utilizados por pessoas que trabalham juntas de uma forma organizada e
também as relações padronizadas que se estabelecem na produção,
circulação e uso desses documentos. Um sistema de gêneros captura as
30
Para Bazerman (2005a: 34), “levar em consideração o sistema de atividades junto com o sistema de gêneros é
focalizar o que as pessoas fazem e como os textos ajudam as pessoas a fazê-lo, em vez de focalizar os textos como
fins em si mesmos”.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006 489


As relações oral/escrita nos gêneros orais formais e públicos ...

seqüências regulares com que um gênero segue um outro gênero, dentro


de um fluxo comunicativo típico de um grupo de pessoas. (BAZERMAN,
2005a, p. 32)

Vimos, na análise, que um gênero não somente segue a outro no sistema de


atividades e gêneros da conferência, mas toma os textos do outro como parte de si
próprio, em permanente dialogia, intertextualidade e interdiscursividade, e que isso
demanda certas capacidades lingüístico-enunciativas e de ação, como a de incorporar
o discurso alheio e reportá-lo de diferentes formas.
Encarar as relações entre escritas e falas públicas de forma dinâmica e
mutuamente constitutiva talvez possa nos levar, no campo aplicado, a novas propostas
para análise e ensino das formas bi ou multimodais de fala, tão relevantes para o
exercício da cidadania no mundo contemporâneo.

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Recebido em 02/12/05. Aprovado em 13/07/06.

Title: The relationship between orality/writing in formal and public oral genres: the case of the
academic conference
Author: Roxane Rojo, Bernard Schneuwly
Abstract: The relations of continuity and mutual constituency between oral and written language
are central to the understanding of how formal and public oral genres function in educated discursive
communities, as well as to the understanding of the phenomena of literacy and the teaching-learning
of languages at school. In this article we analyse a formal public oral genre – the academic conference
– in terms of the relationship between orality-writing, orality-orality, and writing-writing in the
constitution of the conference and its “retextualization” (MARCUSCHI, 2001a) as a transcription.
The bases for this analysis are several oral and written texts produced by/around a conference
given by Bernard Schneuwly. Finally, we argue that, in formal public oral genres, there is a complex
relation of mutual effect and interference between orality and writing, a relation that can be better
understood in terms of the “activity systems” which put into circulation and in contact “genre systems”
(BAZERMAN, 2005a, 2005b).
Keywords: genre; orality; writing; academic conference; teaching.

Tìtre: Les relations oral/écrit dans les genres oraux formels et publics: le cas de la conférence
académique
Auteur: Roxane Rojo, Bernard Schneuwly
Résumé: La question qui concerne les rapports de continuité et d’une mutuelle constitutivité entre
le langage oral et l’écrit constitue la plus grande importance pour la compréhension du
fonctionnement des genres oraux formels et publics et des genres de texte écrit dans nos sociétés
lettrées, de même que des phénomènes d’alphabétisations et de l’enseigenement-apprentissage

492 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006


Rojo e Schneuwly

des langues dans les écoles. Dans cet article, on entend faire un exercice d’analyse d’un genre oral
formel et public – la conférence académique – dans les termes des relations oral-écrit, oral-oral et
écrit-écrit dans la constitution de la conférence et dans sa «retextualisation» (MARCUSCHI, 2001a)
comme transcription. On adoptera comme données divers textes oraux et écrits mis en jeu dans
une conférence présentée par Bernard Schneuwly. À la fin, on fera la défense de la place que
l’oralité et l’écrit maintiennent une relation complexe d’un effet mutuel et d’interférence dans les
genres oraux formels publics, qui peuvent se faire mieux comprendre dans des termes de « système
d’activités » qu’ils mettent en circulation et en rapport des « systèmes de genres » (BAZERMAN,
2005a, 2005b), entendus dans le sens bakhtinien du terme.
Mots-clés: genre discoursif; oralité; écriture; conférence académique; enseignement.

Título: Las relaciones oral/escrita en los géneros formales y públicos: el caso de la conferencia
académica
Autor: Roxane Rojo, Bernard Schneuwly
Resumen: La cuestión de las relaciones de continuidad y de mutua constitutividad entre el lenguaje
oral y el escrito es de gran impotancia para la comprensión del funcionamiento de los géneros
orales formales y públicos y de los géneros de texto escrito en nuestras sociedades alfabetizadas,
así como de los fenómenos de los alfabetizados y de la enseñanza-aprendizaje de lenguas en las
escuelas. En este artículo, pretendemos hacer un ejercicio de análisis de un género oral formal y
público - la conferencia académica - en términos de las relaciones entre oral-escrita, oral-oral y
escrita-escrita en la constitución de la conferencia y en su retextualización (MARCUSCHI, 2001a)
como transcripción. Como datos se usó los múltiples textos orales y escritos en una conferencia
proferida por Bernard Schneuwly. Al fin, se defenderá que la oralidad y escrita mantenien una
relación compleja de mutuo efecto e interferencia en los géneros orales formales públicos, que
puede ser mejor comprendida en términos de “sistema de actividades” que ponen en circulación
y en relación “sistemas de géneros” (BAZERMAN, 2005a, 2005b), entendidos en el sentido bajtiniano
del término.
Palabras-clave: géneros discursivos; oralidad; escrita; conferencia académica; enseñanza.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 463-493, set./dez. 2006 493


494
Motta-Roth

O ENSINO DE PRODUÇÃO TEXTUAL COM BASE EM


ATIVIDADES SOCIAIS E GÊNEROS TEXTUAIS*

Désirée Motta-Roth**

Resumo: O objetivo deste ensaio é encorajar o debate sobre as possibilidades pedagógicas da


concepção de gênero textual para o ensino de produção textual. Nesse sentido, busca-se aqui
discutir o tratamento dado a essa noção nos PCN+ (BRASIL, 2000) e, em decorrência dessa
discussão, refletir sobre o ensino de linguagem. As reflexões expostas no texto estão ancoradas em
dois princípios práticos, quais sejam: 1) o ensino de produção textual depende de um realinhamento
conceitual da representação do aluno sobre o que é a escrita, para quem se escreve, com que
objetivo, de que modo e sobre o quê; e 2) as atividades de produção textual propostas devem
ampliar a visão do aluno sobre o que seja um contexto de atuação para si mesmo.
Palavras-chave: gênero textual; produção textual; ensino.

1 INTRODUÇÃO

Nos anos 2000, surgiu, especialmente no sul do país, uma variedade de


trabalhos na área de Lingüística Aplicada dedicados ao estudo de gêneros textuais
(MOTTA-ROTH, 2000a, 2000b; MEURER; MOTTA-ROTH, 2002; BONINI, 2002;
MEURER, 2003; CRISTÓVÃO; NASCIMENTO, 2004, 2005; KARWOSKI; GAYDECZKA;
BRITO, 2005; MEURER; BONINI; MOTTA-ROTH, 2005). Esses trabalhos têm
enfatizado o papel da linguagem em constituir as atividades sociais, as relações
interpessoais e os papéis sociais em contextos específicos. As atividades sociais podem
ser definidas como ações por meio das quais as pessoas tentam alcançar determinados
objetivos e que foram motivadas por outras ações do próprio sujeito ou de outros
em um processo histórico dinâmico (KOZULIN, 1986, p. xlix). Essas atividades podem
ser recorrentemente mediadas pela linguagem, o que as qualifica como gêneros
textuais. Exemplos de gêneros são: a entrevista de emprego (para o candidato
conseguir uma colocação no mercado de trabalho), a lista de discussão via Internet
*
O presente trabalho, realizado com apoio do CNPq (Bolsa de Produtividade em Pesquisa no. 350389/98-5), é uma
versão do texto “Gêneros textuais, atividades sociais e ensino de linguagem”, apresentado em 02/09/2005, no II
Congresso Nacional de Ensino de Leitura, Literatura e Língua Portuguesa, realizado na Universidade de Caxias do
Sul - Campus Universitário da Região dos Vinhedos, Bento Gonçalves, RS, 31/08 a 03/09/2005.
**
Professora da Universidade Federal de Santa Maria. Doutora em Letras – Inglês e Literaturas Correspondentes.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006 495


O ensino de produção textual com base em ...

(para o internauta trocar informações e conseguir esclarecimentos acerca de um


determinado tema) e a resenha (para o leitor conhecer um livro lançado
recentemente).
Nesses termos, um gênero textual é uma combinação entre elementos
lingüísticos de diferentes naturezas – fonológicos, morfológicos, lexicais, semânticos,
sintáticos, oracionais, textuais, pragmáticos, discursivos e, talvez possamos dizer
também, ideológicos – que se articulam na “linguagem usada em contextos
recorrentes da experiência humana, [e] que são socialmente compartilhados”
(MOTTA-ROTH, 2005, p. 181) ou ainda:

formas recorrentes e significativas de agir em conjunto, que põem alguma


ordem no contexto da vida em coletividade (nos termos de Clifford Geertz,
1983:21); como formas de vida que se manifestam em jogos de linguagem,
de tal sorte que a linguagem é parte integral de uma atividade (nos termos
de Ludwig Wittgenstein ([1953] 1958:88, § 241) a ponto de o gênero tornar-
se um fenômeno estruturador da cultura. (Idem, p. 184)

Gêneros se constituem como tal em função da institucionalização de usos da


linguagem, portanto emergem a partir da recorrência de usos da linguagem, com
diversos graus de ritualização, por pessoas que compartilham uma organização social.
Utilizando a descrição de Meurer (2004, p. 137-144) acerca dos princípios da teoria
sociológica de Anthony Giddens, podemos dizer que o sistema social se organiza em
termos de atividades socialmente reconhecidas (práticas sociais como o atendimento
aos clientes de um banco, a aula na universidade, a consulta médica, a entrevista de
emprego) e papéis sociais (e as relações de poder entre gerente e cliente, professor
e aluno, médico e paciente, empregador e candidato ao emprego), desempenhados
pelos participantes de cada atividade. As atividades e os papéis sociais são constituídos
por um terceiro elemento, a linguagem (regras e recursos de significação). A
linguagem funciona como elemento estruturador dos dois primeiros elementos. Os
três se articulam em gêneros – práticas sociais mediadas pela linguagem,
compartilhadas e reconhecidas como integrantes de uma dada cultura. Tal conceito
de linguagem, que articula a vida social e o sistema da língua, carrega em si
pressupostos acerca do ensino de linguagem: ensinar uma língua é ensinar a agir
naquela língua.
No Brasil, as propostas de ensino sofreram um impacto ao final da década de
90, quando foram publicados os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino

496 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006


Motta-Roth

Médio - Linguagens, Códigos e suas Tecnologias (BRASIL, 2000). Para muitos, os


Parâmetros Curriculares Nacionais, apesar das controvérsias sobre sua adequação
ou mesmo legitimidade, “se constituem como o guia maior das diferentes atividades
educacionais no Brasil” (BRONCKART; MACHADO, 2004, p. 140). Sem querer discutir
as controvérsias surgidas, gostaria de defender a idéia de que esse documento, ao
recorrer ao conceito de gênero para elaborar a proposta pedagógica de ensino de
linguagem (Línguas Portuguesa e Estrangeira), se constitui em uma contribuição
importante no que tange à pesquisa e à prática pedagógica em linguagem.
A perspectiva da linguagem adotada nos Parâmetros Curriculares Nacionais
(doravante PCN’s) é orientada para a vida social e se configura em um avanço, se
comparada à visão estruturalista amplamente adotada na escola até bem recentemente,
em que se definia um programa de curso em termos de categorias da gramática
normativa a serem trabalhadas de modo descontextualizado, tais como a concordância
verbal e o emprego dos advérbios; ou mesmo em relação às propostas resultantes da
perspectiva discursiva dos anos 80, que viam no “discurso e no texto [...] as unidades
de estudos à medida que se esgotavam as possibilidades de explicação dos fenômenos
com base no enunciado”, conforme sintetizado por Geraldi (1997, p. 18).
Para discutir a perspectiva sobre linguagem e gênero dos PCN’s (http://
www.mec.gov.br/sef/sef/pcn.shtm), analiso aqui os PCN+ (http://
cenp.edunet.sp.gov.br/Ens_medio/em_pcn.htm), o documento complementar aos
Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, subdividido em três áreas:
Linguagens Códigos e suas Tecnologias, Ciências da Natureza, Matemática e suas
Tecnologias e Ciências Humanas e suas Tecnologias. O objetivo deste é oferecer
“Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais”
(conforme explicitado por seu subtítulo) “ao professor, ao coordenador ou dirigente
escolar do ensino médio e aos responsáveis pelas redes de educação básica e pela
formação profissional permanente de seus professores” (p.7).1 Tomarei por base,
portanto, a visão dos PCN’s refletida nesse documento adicional.
Ao adotar uma perspectiva social da linguagem, os PCN’s propõem que:

para além da memorização mecânica de regras gramaticais ou das


características de determinado movimento literário, o aluno deve ter meios
para ampliar e articular conhecimentos e competências que possam ser

1
Agradeço a Adair Bonini por me chamar a atenção para essa questão.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006 497


O ensino de produção textual com base em ...

mobilizadas nas inúmeras situações de uso da língua com que se depara,


na família, entre amigos, na escola, no mundo do trabalho. (p. 55)

Essa visão sócio-interacionista da aprendizagem reconhece que é por meio


do engajamento em atividades socialmente compartilhadas que desenvolvemos a
metaconsciência e as habilidades lingüísticas (KOZULIN, 1986, p. xxiv, xlvi). Portanto,
a escola deve oferecer ao aluno um contexto em que este possa articular
conhecimentos e competências por meio de usos da linguagem em situações
específicas, para realizar determinadas atividades sociais. No presente trabalho, ao
tomar como referência essa perspectiva teórica da linguagem e de seu ensino e
aprendizagem, busco examinar o conceito de gênero textual adotado nos PCN’s,
discutindo trechos coletados no documento, e analisar algumas atividades de ensino
de produção textual em língua portuguesa propostas na literatura da área.
O objetivo deste trabalho é, portanto, encorajar o debate sobre as
possibilidades pedagógicas da concepção de gênero textual para o ensino de produção
textual, uma vez que essa concepção pressupõe que os usos da linguagem sejam
vistos como atividades sociais, que ocorrem em um dado contexto imediato de
situação, dentro no âmbito mais amplo do contexto de cultura.

2 PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS PARA O ENSINO MÉDIO


- LINGUAGENS, CÓDIGOS E SUAS TECNOLOGIAS

Nos PCN’s de Língua Estrangeira, Arte e Informática, gênero textual também


é ponto de referência para o estudo de linguagens e códigos, mas é na parte de
Língua Portuguesa que vemos o termo sendo usado mais recorrentemente e sob
diferentes perspectivas, pois há flutuação no conceito de gênero nessas referências.
Dentre essas diferentes perspectivas, é possível definir três orientações para
o uso do termo ‘gênero’ nos PCN’s. Gênero aparece freqüentemente no sentido de
tipo de texto (“ficcional ou não-ficcional”), mais raramente como estratégia
retórica (“texto argumentativo, dissertativo, etc”) e, em alguns momentos, como
evento comunicativo institucionalizado em um grupo social (“o debate em
sala de aula”), conforme indica a figura 1 (ao final deste texto, no anexo, a tabela 1
traz trechos coletados ao longo de todos os PCN’s, onde é usado o termo “gênero”
com referência à linguagem).

498 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006


Motta-Roth

Figura 1 – Diferentes concepções de gênero nos Parâmetros Curriculares


Nacionais para o Ensino Médio - Linguagens, Códigos e suas Tecnologias.

Gênero é tratado como “tipo de texto” por suas características formais como
tema e estrutura composicional:

Como os textos ganham materialidade por meio dos gêneros, parece útil
propor que os alunos do ensino médio dominem certos procedimentos
relativos às características de gêneros específicos, conforme sugerem as
Matrizes Curriculares de Referência do SAEB:
• reconhecer características típicas de uma narrativa ficcional (narrador,
personagens, espaço, tempo, conflito, desfecho)... (BRASIL, p. 78-79)

Nesses termos, a referência ao conceito de gênero é feita sem alusão ao


contexto social ou à atividade em que a linguagem desempenha uma função simbólica
constitutiva. Em outros momentos, gênero é tratado como “estratégia retórica”:

Uma aula da disciplina Língua Portuguesa, que integra a área de Linguagens


e Códigos, ao tratar dos gêneros narrativos ou descritivos, pode fazer uso
de relatos de fatos históricos, processos sociais ou descrições de
experimentos científicos. Na realidade, textos dessa natureza são hoje
encontráveis em jornais diários e em publicações semanais, lado a lado
com a crônica política ou policial. (BRASIL, p.18)

Aqui a definição de gênero se pauta por características associadas a modalidades


retóricas tradicionais, tais como a narrativa (encadeamento de eventos), descrição
(enumeração de características) e exortação (apresentação de argumentos persuasivos).

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006 499


O ensino de produção textual com base em ...

Há ainda um terceiro emprego do termo “gênero” como “evento comunicativo


institucionalizado”:

Ser falante e usuário de uma língua pressupõe:


• a utilização da linguagem na interação com pessoas e situações,
envolvendo:
– desenvolvimento da argumentação oral por meio de gêneros como o
debate regrado;
– domínio progressivo das situações de interlocução; por exemplo, a partir
do gênero entrevista [...] (BRASIL, p. 61-62)

Nesse caso, o gênero é identificado pela atividade social que o constitui e que
por ela é constituído. Esse terceiro emprego do termo “gênero” parece ser o mais
adequado, pois identifica os usos da linguagem pela atividade social que lhes dá
visibilidade, ampliando a concepção da linguagem para além das regras
morfossintáticas, para concebê-la como uma forma de estar no mundo, um modo
de agir sobre si e sobre os outros e, assim, produzir significado.
Vejamos como os PCN’s tratam dessa terceira perspectiva da linguagem que
incorpora a noção de contexto.

3 LINGUAGEM COMO GÊNERO: UM EVENTO COMUNICATIVO


INSTITUCIONALIZADO EM UM GRUPO SOCIAL

Ao mencionar o gênero entrevista, por exemplo, é possível que meu


interlocutor acione significados sociais histórica e socialmente compartilhados
relativos a: os temas que recorrentemente se tratam em uma entrevista (fatos da vida
ou idéias e opiniões do entrevistado sobre determinados temas ou eventos), um
motivo para se fazer uma entrevista (a curiosidade da sociedade sobre a pessoa
pública entrevistada), um objetivo (levantar informações acerca dessa pessoa), os
papéis e relações sociais dos envolvidos (ao entrevistador cabe elaborar questões e,
ao entrevistado, respondê-las dentro de regras de polidez aceitas na comunidade a
que pertencem ou ao menos demonstrar disposição em observá-las).
Enfim, há inúmeros aspectos constitutivos dos gêneros ou das situações e
ações sociais das quais a linguagem é parte integrante. Os estudos da linguagem
fazem referência ao contexto como “situação enunciativa”, ou, na definição de
Bazerman (1988, p. 8), como o conjunto de “todos os fatores [...] que dão forma a

500 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006


Motta-Roth

um momento no qual uma pessoa se sente chamada a estabelecer trocas simbólicas”.


Os PCN’s fazem referência à necessidade de o aluno ser educado no sentido de fazer
a relação e a adequação que se estabelece entre texto e contexto: entre as escolhas
que são postas a seu dispor pelo sistema léxico-gramatical da língua e o contexto de
uso da linguagem, isto é, a situação social em que se encontra. A referência ao
contexto é feita de diferentes maneiras: seja quando o documento enfatiza que o
aluno deve ter “oportunidade de – individualmente, em duplas ou em grupos –
participar de situações dialogadas” (p. 76) e “produzir um texto oral [...] de acordo
com [...] o nível de formalidade exigido para a situação enunciativa” (p. 84); seja
quando sugere ao professor, como trabalho em sala de aula, “desde bate-papos
mais informais a propósito de uma obra literária até o julgamento da atitude de uma
personagem do texto literário num debate regrado”, pois exigem dos interlocutores
“um grau maior de formalidade e de consciência do texto argumentativo que estão
produzindo na fala” (p. 76).
Os PCN’s alertam ainda que “a escola deve incorporar em sua prática os
gêneros, ficcionais ou não-ficcionais, que circulam socialmente” (p. 77) para
encorajar “o domínio progressivo das situações de interlocução” (p. 61). Também
chamam atenção para os locais e as situações em que os gêneros, enquanto unidades
semânticas e funcionais da linguagem, são encontráveis: “relatos de fatos históricos,
processos sociais ou descrições de experimentos científicos [...] em jornais diários
e em publicações semanais; [...] na literatura, o poema, o conto, o romance; [...]
no jornalismo, a nota, a notícia, a reportagem, a carta do leitor; nas ciências, [...] o
verbete, o ensaio; na publicidade, a propaganda institucional, o anúncio; no direito,
as leis, os estatutos [...] (p.77).
O foco da educação lingüística, portanto, recai sobre o ensino da
interlocução. Ensinar linguagem passa a ser mais do que ensinar as estruturas da
língua, pois se concentra em levar o aluno a desenvolver competências analíticas
dos contextos de uso da linguagem de modo a se tornar capaz de analisar
discursos. Os contextos, como situações recorrentes na sociedade, são constituídos
na linguagem e pela linguagem e se estruturam como partes da cultura. Como construtos
intersubjetivos da coletividade, os contextos são aquilo que são reconhecidos como tal
pelos que participam do grupo social. Nesse sentido, o contexto passa a ser critério
para se escolher o que e como dizer ou escrever. O ensino de gramática deve estar a
serviço dessa capacidade de analisar o contexto e de escolher as possibilidades a partir
das ofertas do sistema da língua e não o contrário.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006 501


O ensino de produção textual com base em ...

Se concordarmos que participar de uma “atividade” e se engajar na


“interação” com o mundo são componentes centrais no desenvolvimento das
habilidades de leitura e de redação, então gêneros passam a ser também um construto
teórico útil para o ensino de produção textual.
Uma definição para gênero que enfatiza o papel do contexto é oferecida por
Carolyn Miller em seu trabalho seminal de 1984 (p.159), no qual define gêneros
como interações “retóricas típicas com base em situações recorrentes” num
determinado contexto de cultura. Há aqui o pressuposto de que as pessoas
reconhecem similaridades entre situações recorrentes e assim elaboram
representações de ações tipificadas. Essa representação é um construto social,
intersubjetivo, baseado em esquemas mentais das situações, que, por sua vez, são
construídos a partir da experiência social, em termos de linguagem pertinente, eventos
e participantes relevantes. Para Miller, essa tipificação, a que chamamos de gênero,
é um aspecto central na estrutura comunicativa da sociedade (1984, p. 156-157),
um elo estruturador, ligando, a meio caminho, a mente individual à vida grupal
(MILLER, 1994, p. 71).
Se a linguagem é um fenômeno social e não individual, então a aquisição da
linguagem é um processo orientado para as condições e as interações sociais
(HALLIDAY, 1994, p. xxx). Assim, a criança experimenta a linguagem nos textos
produzidos e consumidos à sua volta; ela vivencia a cultura de seu grupo social nas
situações que são engendradas no dia-a-dia (p. xxxi). Ao prestar atenção ao “texto-
na-situação”, a criança elabora o sistema da língua e, ao usar esse sistema para
interpretar o texto, ela elabora a cultura. Nesses termos, para o indivíduo, o código
da língua é um o sistema sócio-semiótico, pois é socialmente compartilhado para
significar, para engendrar a cultura (idem). A criança aprende a língua porque
aprende a participar da vida social e, à medida que cresce, a recíproca passa a ser,
cada vez mais, verdadeira: ela pode participar melhor da vida social porque sabe
mais sobre como usar os recursos lingüísticos. Nesses termos, “os significados são
criados pelo sistema social e são trocados pelos membros [da sociedade] na forma
de textos”, de tal forma que os textos se constituem no “processo semântico da
dinâmica social”, pois “a situação constitui o texto” (HALLIDAY, 1978, p. 141).
É possível extrapolar essa máxima em termos de ensino, afirmando que o
aluno de língua materna precisa aprender a agir em diversas situações de interação
social, especialmente aquelas em que a interação se dá por intermédio do texto
escrito. Sabemos falar português, mas, muitas vezes, não sabemos o que dizer por

502 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006


Motta-Roth

não sabermos como agir em uma dada situação2, que papel é estipulado para nós e
para os outros, que tipo de relações estão pressupostas. No caso da língua escrita, a
dificuldade fundamental talvez seja de levar o aluno a lembrar ou projetar um contexto
em que ele precisa escrever para realizar coisas. O ensino de produção textual em
língua materna, portanto, deve passar por desconstrução e análise do contexto, da
situação comunicativa, para que o aluno possa perceber a configuração social de um
momento e como a língua como sistema sócio-semiótico constitui esse momento. Em
última instância, escrever só faz sentido se houver espaço para isso na vida pessoal e/
ou social da pessoa e se a sociedade desenvolver instituições letradas num processo de
letramento social, isto é, não há razão para saber ler ou escrever um contrato se não há
condições econômicas para se comprar/alugar uma casa ou se não houver instituições
que garantam a validade do texto escrito como ato (OLSON; TORRANCE, 2001, p.12).
Autores conhecidos como Lev Vygotsky, Alexander Luria e Mikhail Bakhtin,
na Rússia, Basil Bernstein, na Inglaterra, Paulo Freire, Magda Soares, Luiz Antônio
Marcuschi, Wanderley Geraldi, apenas para citar alguns colegas no Brasil, parecem
ter em comum uma visão social da linguagem que enfatiza a importância do
engajamento em atividades socialmente relevantes para o desenvolvimento da
linguagem. A consciência individual se amplia na interação com os outros, na
interação com uma realidade idealizada, mediada pela cultura: a participação em
atividades no mundo medeia o individual e o social (KOZULIN, 1986, p. xxiv; xlvi).
Assim, escrever só é importante na medida em que nos possibilita desempenhar
determinados papéis em uma sociedade (industrial e ocidentalizada, no nosso caso)
(TRIEBEL, 2001, p. 32). Sob essa perspectiva, achar lugar para a escrita na vida do
aluno não é suficiente. Como educadores da linguagem, devemos ampliar a
perspectiva do aluno sobre situações vivenciáveis por ele. Em outras palavras, devemos
ampliar o leque de possibilidades de experiências, trazendo o mundo para a sala de
aula e levando o aluno a vivenciar o mundo “lá fora”.
A contribuição da noção de gêneros textuais para o ensino de linguagem,
portanto, é chamar atenção para a importância de se vivenciar na escola atividades
sociais, das quais a linguagem é parte essencial; atividades essas às quais, muitas
vezes, o aluno não terá acesso a não ser pela escola. O mundo letrado deve ser
desmitificado, deve se tornar algo real, palpável.

2
Dependendo de condições econômicas e geográficas, exemplos de agir são: solicitar que seja religada a luz cortada
por falta de pagamento, obter um habite-se da prefeitura, pedir empréstimo no banco, fazer uma consulta no
psicanalista, abrir uma conta no banco, reclamar de um cano quebrado na sua rua.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006 503


O ensino de produção textual com base em ...

Ensinar linguagem sob a perspectiva de gênero não é o mesmo que ensinar


“tipos de texto”, mas sim, trabalhar “com a compreensão de seu funcionamento na
sociedade e na sua relação com os indivíduos situados naquela cultura e suas
instituições”, “com as espécies de textos que uma pessoa num determinado papel
[na sociedade] tende a produzir” (MARCUSCHI, 2005, p.10-12).

4 O ENSINO DE PRODUÇÃO TEXTUAL COM BASE EM ATIVIDADES


SOCIAIS E GÊNEROS TEXTUAIS

Na minha própria prática de ensino e pesquisa sobre processo e produto de


escrita no contexto acadêmico universitário desde 19943, há dois princípios que têm
feito sentido e que encontram apoio na discussão teórica proposta por autores como
^
Swales & Feak (2004; 2000), Ivanic(1998) e Gale (1996): 1) o ensino de produção
textual depende de um realinhamento conceitual da representação do aluno sobre o
que é a escrita, para quem se escreve, com que objetivo, de que modo e sobre o quê;
e 2) as atividades de produção textual propostas devem ampliar a visão do aluno
sobre o que seja um contexto de atuação para si mesmo. Evidentemente, guardadas
as diferenças entre a universidade e a escola, entendo que esses princípios são
suficientemente gerais e valem para ambos os contextos acadêmicos.
O primeiro princípio é de que o entendimento do ato de escrever como uma
prática social pressupõe a diferenciação entre escrever como grafar e escrever como
produzir texto e construir significados sócio-compartilhados. O segundo é de que,
para que a produção textual seja uma prática social, é necessário ter uma visão mais
rica do ato de escrever em si: escrever não pressupõe apenas a produção do texto,
mas também seu planejamento (antes), sua revisão e edição (depois) e seu
subseqüente consumo pela audiência-alvo, para que autor e leitor possam atingir
seus objetivos de trocas simbólicas.

3
A pedido de meu revisor, incluo exemplos de trabalhos de ensino e pesquisa que me apontaram esses princípios:
projetos de Produtividade em Pesquisa/CNPq n°350389/98-5: “Discursos de investigação: Uma análise de gênero da
construção discursiva da ‘Seção de Metodologia’ em artigos acadêmicos de Lingüística” (2002-2005), “Gêneros
discursivos acadêmicos, construção de conhecimento e pluralidade de acesso: Análise de Gênero da publicação
acadêmica impressa e eletrônica e sua relação com os processos discursivos na construção do conhecimento científico”
(2000-2002), “Os processos sociais de construção de conhecimento: Um estudo contrastivo de características retóricas
e disciplinares no discurso acadêmico em português e inglês” (1998-2000); cursos e oficinas de redação acadêmica
que tenho ministrado na UFSM e em outras instituições (sendo a primeira “Academic Writing”. Oficina ministrada na
XVII Semana de Letras e III Seminário Internacional de Língua e Literatura. 21 a 25 de novembro. Santa Maria, RS:
UFSM, 1994); e publicações (Motta-Roth 1998a; 1998b; 1999; 2000a; 2000b; 2001; 2002; 2005).

504 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006


Motta-Roth

Esses princípios se demonstram na escolha dos gêneros a serem trabalhados


em sala de aula. No contexto acadêmico, faz sentido a opção pela resenha (se for na
área de Educação ou na área de Letras, especialmente nos Estudos Literários), o
abstract e o artigo experimental (se for na Lingüística Aplicada, Veterinária ou
Medicina). Na escola, Celis (1998, p.159-163) sugere alguns gêneros escritos como
a carta, a receita, o cartão postal, a historinha, o cartaz ou o rótulo.
Em ambos os casos, é importante que o aluno conheça (ou aprenda a
conhecer) a situação social desses gêneros. Para tanto, é fundamental fazer
questionamentos tais como: para que serve esse gênero? Como funciona? Onde se
manifesta? Como se organiza? Quem participa e com que papéis (quem pode ou
deve escrever e quem pode ou deve ler)?
Há, pelo menos, duas propostas relevantes para o ensino de produção textual
na escola que se pautam por uma concepção do escrever como prática social, ambas
desenvolvidas em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. A primeira, publicada por Zatt e
Souza (1999) na forma de livro, apresenta o projeto desenvolvido por essas duas
autoras com seus alunos de sexta série, em duas escolas das comunidades de Morro
Alto e Morro da Polícia, na periferia de Porto Alegre. Consiste na troca de impressões
dos alunos sobre si mesmos, sua vida, o lugar onde moram, para se conhecer e
mapear as variadas vidas em pontos diferentes da cidade de Porto Alegre. A princípio,
a publicação do livro foi artesanal e custeada pelas comunidades atendidas pela
escola. O livro traz as cartas trocadas entre as professoras-amigas e entre seus alunos.
A proposta das professoras foi encorajar em seus alunos práticas sociais de se
reconhecer, se descrever, narrar a experiência vivida e conhecer outras pessoas cursando
a mesma série em uma escola diferente, tudo isso por meio de cartas (evidentemente,
em vista de os alunos não terem telefone, isso se torna ainda mais significativo).
As cartas das professoras são uma espécie de desabafo sobre o desafio de
tornar significativa a aprendizagem de produção textual dos seus alunos. Conforme
expresso na correspondência entre elas, a prática pedagógica baseada no gênero carta
pessoal transformou a tarefa, criando uma rede interdiscursiva entre os textos, que
pode ser percebida pela alusão a contextos, fatos ou textos compartilhados por eles:

Jane, querida:
Tudo bem? Aqui nas 6as séries do Gilberto tudo deu ótimo. O clima é de
muita euforia com o recebimento da carta coletiva de vocês e com o convite
para a publicação conjunta e o anúncio da correspondência eminente [...].
Jane, querida, tu podias me dizer quando chegam as cartas?! Socorro!
Da tua desesperada colega
Cláudia

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006 505


O ensino de produção textual com base em ...

Amiga Ana:
Acho que já posso ousar te chamar assim a essas alturas dos acontecimentos.
Afinal estou enternecida e entusiasmada com a resposta positiva tua e dos
teus 42 companheirinhos de viagem ao nosso convite para mapearmos esta
cidade com as histórias ímpares que cada um de nós vem carregando por
nossas vidas afora. [...] Chegou. Finalmente chegou a resposta de vocês a
nossa carta coletiva, e eu posso dizer que o dia aqui foi de muita festa, pois
[...] ficaram sabendo o nome dos correspondentes...
Um grande abraço drummoniano igual-desigual pra ti e pra tua gurizada,
Jane

Os alunos, por sua vez, produziram textos sobre temas como: “A história do
meu nome”, “O que eu gosto de fazer”, “O que eu sei, mas não gosto de fazer”, “O
que eu mais gosto e o que menos gosto do lugar onde moro”, “Eu e os outros”.
Assim, vão se constituindo no texto e conhecendo pessoas e lugares fora do seu
contexto imediato, função primeira do texto escrito.
No fluxo da correspondência, foram criando textos para interagir com os colegas,
como nas cartas dos alunos após se encontrarem pessoalmente pela primeira vez:

Débora:
Que pena que a chuva atrapalhou um pouco o nosso plano de ficar mais
tempo...Ouvi falar que você me chamou de balaqueiro. Débora, eu juro,
juro, juro que tentei ser tri legal com você. Mas pelo jeito não deu. Débora,
eu queria falar também que mesmo você tendo me chamado de balaqueiro,
eu achei você muito, muito, muito, muito, tri. Queria falar também que vou
tentar não ser mais balaqueiro.
Deoclides (p.155)

Esse é um caso em que a avaliação do aluno demonstra a medida em que as


atividades de produção textual propostas materializam os princípios de validade que
enumerei anteriormente:

- ocorre uma mudança na representação do aluno sobre o que é a escrita,


para quem ele escreve, com que objetivo, de que modo e sobre o quê:
...Escrevendo carta eu fiz vários amigos, como o Mairo, Luiz Fernando,
Gilson, Débora, Luciane, Vanessa, Rodrigo Longaray, Victor e outros mais...
Darlene

506 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006


Motta-Roth

Escrevendo um livro a gente mexe no passado, descobrimos coisas que


aconteceram quando nós não éramos nem nascidos, descobrimos coisas
importantes sobre nossas famílias...
Débora

- e amplia-se a perspectiva do aluno sobre o que seja um mundo possível,


no qual possa efetivamente atuar:
Uma das coisas mais importantes que aprendi é escrever e reescrever o
mesmo texto várias vezes, até ele ficar bom para ser datilografado, impresso
e até, se der, ir para a Feira do Livro.
Luiz

Assim, nessa perspectiva pedagógica, criam-se autores que produzem textos


para circulação/publicação, onde antes existiam alunos que escreviam textos para
serem entregues à professora, com o único fim de serem avaliados por ela.
A outra proposta, também descrita em livro (NEVES, SOUZA, SCHÄFFER,
GUEDES, KLÜSENER, 1998), se traduz em atividades de produção textual diferentes
daquelas propostas por Zatt e Souza (1999), tendo em vista que não podem ser
associadas à vida particular, tal como escrever uma carta. A proposta é explicitamente
voltada ao contexto educacional, pois trabalha com a produção de texto no gênero
acadêmico relatório de pesquisa, com o objetivo de produzir conhecimento.
Professores de várias disciplinas integrantes do currículo do Ensino
Fundamental, tais como Matemática, Educação Física e Ciências, assumem co-
responsabilidade pela produção textual dos alunos. Atividades da vida social do dia-
a-dia, como ir ao supermercado e praticar atividade física, tornam-se objeto de
reflexão. O gênero escrito escolhido está relacionado ao contexto escolar e pode ser
chamado de relatório de pesquisa. Funciona como um relato de uma experiência,
compreendida de observação e reflexão, organizadas de maneira metódica, como
um embrião da prática de pesquisa e de reflexão crítica que realmente é feita por
pesquisadores de diversas áreas. É, assim, uma preparação para a prática de
investigação científica profissional.
A atividade descrita no Quadro 1 foi elaborada pelos professores de Ciências
e consiste em propor aos alunos uma visita ao supermercado para observar os
produtos nas prateleiras, fazer anotações.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006 507


O ensino de produção textual com base em ...

Quadro 1 – Atividade de Produção textual em Ciências (LOPES; DULAC, 1998,


p. 40-41).

Mais tarde, com base nessas anotações, os alunos escreverão um relatório


para esclarecer a turma sobre questões muito em voga na televisão, mas nem sempre
compreendidas como ciência, tecnologia e ecologia. Nesse caso, o texto a ser
produzido será informativo, pois trará de fato informações novas e cumprirá assim
uma função no contexto da classe.
Outro exemplo de atividade explora o âmbito da estética e da percepção. O
ato de observar a obra de arte ou sua reprodução é desnaturalizado pela professora
de Artes de modo a levar o aluno a fazer uma observação consciente, exercitando
sua capacidade analítica. Ao mostrar um quadro de um pintor brasileiro famoso, a
professora introduz a discussão sobre uma peça de arte e possibilita ao aluno a
vivência estética. Talvez esse aluno não se aperceba de que uma observação dessa
natureza pode ocorrer na rua (no caso de uma escultura, mural ou outdoor), na TV
ou em um filme (no caso da filmagem em um museu), numa mostra em vários
locais públicos (como a Bienal do Mercosul em Porto Alegre), ou ainda em casa, se
houver obras de arte.

508 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006


Motta-Roth

Quadro 2 – Atividade de Produção textual em Artes (KEHRWALD, 1998, p. 25-26).

A atividade de Artes tem por objetivo levar o aluno a fruir uma obra de arte,
a propor um exercício de leitura de imagem. Posteriormente ocorre a produção
escrita sobre essa vivência intersubjetiva que depende da observação, da análise e
do debate entre os alunos.
A terceira atividade diz respeito à atividade física na aula de Educação Física.
O professor propõe ao aluno que ele próprio (o aluno) seja o objeto de investigação.
Ao fazer isso, o professor orienta a atenção do aluno para uma observação metódica.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006 509


O ensino de produção textual com base em ...

Quadro 3 – Atividade de Produção textual em Educação Física (GONÇALVES;


SANTOS, 1998, p. 57-59).

A atividade de Educação Física talvez seja a que mais se assemelha a um


processo de investigação e ao gênero relatório de pesquisa, por combinar observação
contínua do objeto de estudo ao longo de um semestre, anotação detalhada de dados,
reflexão e análise sobre eles e finalmente uma tentativa de explicação de suas causas
com vistas a um possível avanço no conhecimento acerca do objeto de pesquisa (o
desempenho do aluno no atletismo).
Essas duas linhas de trabalho apontam caminhos para levar o aluno a se
engajar em uma atividade de produção textual como uma forma de estar no mundo,
de agir com um objetivo e com um motivo. Algumas sugestões surtirão mais efeito
do que outras. Evidentemente será preciso educar o aluno para que ele encontre
modos de olhar uma obra de arte ou para que ele encontre a relevância de desenvolver
sua condição física. Mas a escola é o âmbito da experimentação e da educação e,
afinal, alguém disse que educar era fácil?

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ensino de produção textual com base em gêneros demanda uma descrição


detalhada de contextos específicos, a consideração de elementos lingüísticos, que
mantêm relação sistemática com o comportamento ou eventos sociais que desejamos
explicar (DAVIS, 1995, p. 434). Ao aprender os gêneros que estruturam um grupo
social com uma dada cultura, o aluno aprende maneiras de participar nas ações de
uma comunidade (MILLER, 1984, p.165). Descobrir como fazer isso
consistentemente na sala de aula parece ser o nosso desafio. A sala de aula de línguas
talvez seja o lugar onde devemos analisar, criticar e/ou avaliar as várias instâncias de
interação humana de culturas localizadas, nas quais a linguagem é usada para mediar
práticas sociais. Concordo com McCarthy & Carter (1994) quando afirmam que

510 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006


Motta-Roth

ensinar línguas é ensinar alguém a ser um analista do discurso, portanto creio que
as discussões em sala de aula devem enfocar as práticas linguageiras nas ações
específicas do grupo social relevante.
Ao discutir a flutuação de uso do termo “gênero” nos PCN’S tentei demonstrar
a necessidade de discutirmos e refletirmos mais acerca das categorias que usamos
para estudar a linguagem acima do nível da sentença para que possamos elaborar
um patamar teórico comum que nos faça avançar na pesquisa e na descrição da
linguagem como sistema simbólico que medeia atividades sociais. A prática
pedagógica nesses termos pode contribuir para o desenvolvimento, no aluno e no
professor, da consciência crítica dos aspectos contextuais e textuais do uso da
linguagem. Essa consciência é central para o desenvolvimento das competências
lingüísticas e discursivas que podem empoderar a todos que participam da vida
contemporânea, em uma sociedade cada vez mais constituída nos e pelos textos que
produzimos. Além disso, vale ressaltar que, embora os PCN’s apresentem flutuação
em relação ao conceito de gênero, a proposta de educação lingüística que apresentam
enfatiza a importância da relação entre texto e contexto no ensino da linguagem e
propõe que sejam utilizados gêneros do contexto do aluno em sala de aula.4

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Haubert Rodrigues. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.

4
Agradeço a Patrícia Marcuzzo por chamar minha atenção de volta a esse ponto na conclusão. Agradeço ainda por
sua leitura da primeira versão deste texto e por suas sugestões de alteração. Os problemas que ainda persistem
são de minha inteira responsabilidade.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006 511


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514 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006


Motta-Roth

ANEXO - DIFERENTES CONCEPÇÕES DE “GÊNERO TEXTUAL” NOS PCN’S:


“Gênero” como “tipo de texto” “Gênero” como “Gênero” como “evento
“estratégia retórica” comunicativo institucionalizado”
p.18 = Da mesma forma, ao tratar dos gêneros literários, pode p.18 = Uma aula da p. 61-62 = Ser falante e usuário de uma
trazer a discussão de modelos explicativos, de análises críticas e disciplina Língua língua pressupõe:
de hipóteses de relações causais, do contexto das Ciências Portuguesa, que integra • a utilização da linguagem na interação
Humanas ou das Ciências Naturais, encontrados com facilidade a área de Linguagens e com pessoas e situações, envolvendo:
no material didático das disciplinas das referidas áreas. Códigos, ao tratar dos – desenvolvimento da argumentação
gêneros narrativos ou oral por meio de gêneros como o debate
p.60 = O texto verbal pode assumir diferentes feições, conforme descritivos, pode fazer regrado;
a abordagem temática, a estrutura composicional, os traços uso de relatos de fatos – domínio progressivo das situações de
estilísticos do autor – conjunto que constitui o conceito de gênero históricos, processos interlocução; por exemplo, a partir do
textual. sociais ou descrições gênero entrevista [...].
de experimentos
p.61-62 = Ser falante e usuário de uma língua pressupõe: [...] científicos. Na p. 63 = Os múltiplos gêneros, escritos e
orais, apresentam pontos que os
• a leitura plena e produção de todos os significativos, implicando: realidade, textos dessa
aproximam e que os distanciam. A
– caracterização dos diversos gêneros e seus mecanismos de natureza são hoje
cantiga medieval apresenta pontos em
articulação; encontráveis em jornais
comum com o cordel; é inegável, porém,
– leitura de imagens; diários e em que esses dois gêneros carregam
– percepção das seqüências e dos tipos no interior dos gêneros. publicações semanais, marcas próprias, capazes de os
lado a lado com a diferenciar e singularizar, explicadas
p.64= A metalinguagem da gramática, os estilos de época na crônica política ou prioritariamente por suas características
literatura, as denominações dos diversos gêneros textuais são policial. históricas.
algumas das classificações recorrentes na disciplina.
p. 71 = • Finalmente, propõe-se que a
p.77= Quando se pensa no trabalho com textos, outro conceito disciplina Língua Portuguesa abra
indissociável diz respeito aos gêneros em que eles se materializam, espaço para diferentes abordagens do
tomando-se como pilares seus aspectos temático, composicional conhecimento. Ainda que a palavra
e estilístico. escrita ocupe um espaço privilegiado na
disciplina, é possível que a produção de
p. 77 = Deve-se lembrar, portanto, que o trabalho com textos textos falados ganhe uma sistematização
aqui proposto considera que: maior, por meio de gêneros orais como
• alguns temas podem ser mais bem desenvolvidos a partir de a mesa-redonda, o debate regrado, o
determinados gêneros; seminário, o programa radiofônico,
• gêneros consagrados pela tradição costumam ter uma estrutura para citar apenas alguns exemplos.
composicional mais definida;
• as escolhas que o autor opera na língua determinam o estilo do p. 77 = Essa abordagem explicita as
texto. vantagens de se abandonar o tradicional
esquema das estruturas textuais
p. 78-79 = Como os textos ganham materialidade por meio dos (narração, descrição, dissertação) para
gêneros, parece útil propor que os alunos do ensino médio adotar a perspectiva de que a escola deve
dominem certos procedimentos relativos às características de incorporar em sua prática os gêneros,
ficcionais ou não-ficcionais, que
gêneros específicos, conforme sugerem as Matrizes Curriculares
circulam socialmente:
de Referência do Saeb:
• reconhecer características típicas de uma narrativa ficcional
• na literatura, o poema, o conto, o
(narrador, personagens, espaço, tempo, conflito, desfecho); romance,..., entre outros;
• reconhecer recursos prosódicos freqüentes em um texto • no jornalismo, a nota, a notícia, a
poético (rima, ritmo, assonância, aliteração, onomatopéia); reportagem,..., a carta do leitor;
• reconhecer características típicas de um texto de análise ou • nas ciências, o texto expositivo, o
opinião (tese, argumento, contra-argumento, conclusão) bem verbete, o ensaio;
como analisar a estratégia argumentativa do autor; • na publicidade, a propaganda
• reconhecer características típicas de um texto informativo institucional, o anúncio;
(tópico e hierarquia de informação, exemplificação, analogia). • no direito, as leis, os estatutos [...]

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006 515


O ensino de produção textual com base em ...

“Gênero” como “tipo de texto” “Gênero” como “Gênero” como “evento comunicativo
“estratégia retórica” institucionalizado”
p. 79 = O trabalho com a diversidade de gêneros permite que se p. 76 = • No transcurso das aulas, os
estabeleçam diferentes relações entre textos e que se proponham alunos devem ter oportunidade de –
alguns procedimentos: individualmente, em duplas ou em grupos
• comparar paráfrase, avaliando sua maior ou menor fidelidade – participar de situações dialogadas que
ao texto original; implicam graus de formalidade variáveis.
• avaliar a intenção da paródia de um texto dado; Nessa linha de trabalho, pode-se propor
• identificar referências ou remissões a outros textos; desde bate-papos mais informais a
• analisar incoerências ou contradições na referência a outro propósito de uma obra literária até o
texto ou na incorporação de argumento de um outro autor; julgamento da atitude de uma personagem
• estabelecer relações temáticas ou estilísticas (de semelhança do texto literário num debate regrado,
ou de oposição) entre dois textos de diferentes autores ou de gênero oral que exige de seus interlocutores
um grau maior de formalidade e de
diferentes épocas.
consciência do texto argumentativo que
estão produzindo na fala.
p. 80 = De acordo com as possibilidades de cada gênero,
empregar:
p. 84 = Em Língua Portuguesa,
• mecanismos de coesão referencial (retomada pronominal, considerando-se o desenvolvimento das
repetição, substituição lexical, elipse); competências interativa, textual e gramatical,
• mecanismos de articulação frasal (encaixamento, podem-se propor diversos formatos de
subordinação, coordenação); avaliação:
• recursos oferecidos pelo sistema verbal (emprego apropriado • aferição das habilidades dos alunos de
de tempos e modos verbais, formas pessoais e impessoais,...); produzir um texto oral, em apresentação
• recursos próprios do padrão escrito na organização textual individual ou em grupo, de acordo com um
(paragrafação, periodização, pontuação sintagmática e gênero pré-estabelecido e com o nível de
expressiva, e outros sinais gráficos); formalidade exigido para a situação
• convenções para citação do discurso alheio (discurso direto, enunciativa;[...]
indireto e indireto livre): dois-pontos, travessão, aspas,...;
• ortografia oficial do Português, desconsiderando-se os casos p. 89-90 = O docente de Língua Portuguesa
idiossincráticos e as palavras de freqüência muito restrita; certamente poderá se beneficiar muito se
• regras de concordância verbal e nominal, desconsiderando- investir no desenvolvimento das dez
se os chamados casos especiais. competências propostas. Elas estão, de uma
forma ou de outra, inevitavelmente ligadas
p. 82 = Outros procedimentos relativos ao desenvolvimento da à implementação das habilidades que o
competência gramatical, dessa vez mais relacionados à professor dessa disciplina deve ter em
competência textual, e particularmente às noções de coerência e relação a:
coesão no processamento do texto, são: [...]
• comparar textos de diferentes gêneros quanto ao tratamento • saber explorar as potencialidades de um
temático e aos recursos formais utilizados pelo autor;[...] texto, nos diversos gêneros, e transpô-las
para os alunos [...]

Recebido em 20/02/06. Aprovado em 02/05/06.

Title: The teaching of writing based on social activities and genres


Author: Désirée Motta-Roth
Abstract: The aim of this essay is to further the debate on the pedagogical advantages of using the
concept of genre for the teaching of writing. In that sense, we carry out a discussion of the treatment
given to this concept by the PCN+ (BRASIL, 2000) and, as a consequence, a reflection on language
teaching. The reflexions presented here are based on two basic principles: 1) the teaching of writing
depends on a conceptual realignment by the student about the meaning of writing, to whom we
write, with what objectives, how and about what; 2) the writing activities proposed by teachers must
enlarge the student’s view of a possible context for her/himself

516 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006


Motta-Roth

Keywords: genre; writing; teaching.

Tìtre: L’enseignement de production textuelle centré dans des activités sociales et genres textuels
Auteur: Désirée Motta-Roth
Résumé: L’objectif de cet essai est celui d’encourager le débat sur les possibilités pédagogiques de
la conception de genre textuel pour l’enseignement de production textuelle. Dans ce sens, on cherche
à discuter à propos du traitement donné à cette notion dans les PCN+ (BRASIL, 2000) et, en
conséquence de cette discution, réfléchir sur l’enseignement du langage. Les réflexions exposées
dans le texte sont ancrées dans deux principes pratiques, selon ce qui suit: 1) l’enseignement de
production textuelle dépend d’un nouvel alignement conceptuel de la représentation de l’élève sur
ce qui constitue l’écriture, à qui elle sert, avec quel objectif, de quelle manière et sur quoi; 2) les
activités de production textuelle proposées doivent étendre la vision de l’élève sur ce qui veut dire
un contexte de représentation pour soi-même.
Mots-clés: genre textuel; production textuelle; essai.

Título: La enseñanza de produción textual basado en actividades sociales y géneros textuales


Autor: Désirée Motta-Roth
Resumen: El objetivo de este ensayo es estimular el debate sobre las posibilidades pedagógicas de
la concepción de género textual para la enseñanza de producción textual. En este sentido se discutirá
aquí el tratamiento dado a esta noción en los PCN+ (BRASIL, 2000) y, por consecuencia de esta
discusión, reflexionar sobre la enseñanza del lenguaje. Las reflexiones expuestas en el texto están
basadas en dos principios prácticos: 1) la enseñanza de producción textual depende de una revisión
conceptual de la representación del alumno sobre qué es la escrita, para quién se escribe, con qué
objetivo, de qué manera y sobre qué se escribe, y 2) las actividades de producción textual propuestas
deben ampliar la visión del alumno sobre qué sería un contexto de actuación para sí mismo.
Palabras-clave: género textual; producción textual; enseñanza.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 495-517, set./dez. 2006 517


518
Furlanetto

ARGUMENTAÇÃO E SUBJETIVIDADE NO GÊNERO: O PAPEL


DOS TOPOI

Maria Marta Furlanetto*

Resumo: Quando se propõe uma “dissertação” na escola, espera-se do estudante que apresente
um problema e pontos de vista, argumentando para dar uma resposta satisfatória ao problema.
Exige-se dele, contudo, impessoalidade. Tento demonstrar, do ponto de vista discursivo, que sempre
há na produção textual uma escolha para dirigir a interpretação do interlocutor, sendo relevante,
para isso, o uso de certos operadores. Focalizo, então, o conflito entre ser impessoal e defender
um ponto de vista (opinião) – pondo em contraste o modelo da dissertação escolar e a caracterização
dialógica do conceito de gênero em Bakhtin, e os efeitos resultantes em um caso e no outro, com
vistas a uma alternativa de ensino.
Palavras-chave: argumentação; gênero; produção textual; subjetividade.

1 INTRODUÇÃO

Quando se pede a um estudante que elabore uma dissertação, espera-se dele


a apresentação ou o desenvolvimento de um problema, de pontos de vista e de
argumentos inteligentes e criativos para dar uma resposta ao problema. Exige-se
dele, contudo, impessoalidade, o que se supõe seja conseguido evitando-se
estrategicamente o uso da primeira pessoa. Para argumentar, entretanto, é importante
empregar certos elementos de articulação (conetivos) e operadores de argumentação,
para imprimir coerência ao que é exposto, produzindo sentido e eficácia.
Defendo neste trabalho que, apesar da impessoalidade na argumentação, e
do uso de conetivos previstos na língua, há escolhas a processar (tributárias do
projeto discursivo do locutor, de seu “querer-dizer”) para que certa direção seja
mostrada, e que deverá provocar uma reação no interlocutor (o outro). Essa direção
– ou “intencionalidade”1 – conduz a uma busca de autoria na defesa de um ponto de
vista, ainda que este ponto de vista não seja individual e único, refletindo em geral

*
Professora da Universidade do Sul de Santa Catarina. Doutora em Lingüística Aplicada.
1
Apesar da dubiedade do termo, mantenho-o para indicar que a consciência se apresenta sempre como consciência
de, portanto direcionada para, implicando a produção de um sentido e condicionando a compreensão de um
fenômeno, sem estar necessariamente implicado um desejo ou vontade da mente individual.

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Argumentação e subjetividade no gênero ...

valores que um grupo tem como legítimos. O que aparece aí, como resultado, é um
efeito de pessoalidade, de subjetividade – portanto, de posição ou lugar social ocupado.
O ponto de vista reflete uma posição, lugar de emergência de uma enunciação.
Pode parecer estranho pôr foco na “dissertação” escolar quando as pesquisas
em Lingüística Aplicada e as motivações político-pedagógicas (propostas curriculares)
levam pesquisadores e professores a preocupar-se com a compreensão, a descrição
e a metodologia de ensino de gêneros de discurso. Justifico esse “retorno” e a
preocupação que persiste relativamente aos procedimentos usados: não poucos
trabalhos recentes voltados para a produção de textos focalizam os “textos
dissertativos” (em vários níveis de ensino) objetivando analisar uma variedade de
processos, por exemplo: reescrita do texto dissertativo (KÖCHE; PAVANI; BOFF, 2004),
sustentação de pontos de vista (FISCHER, 2003), explicitação da relação entre
linguagem e poder (HEINIG, 2003).
A despeito de não haver aí um trabalho específico com gêneros2, ressalta-se
o aperfeiçoamento obtido na produção de texto, pelo uso de estratégias que se
enquadrariam como interativas, enunciativas. Nos artigos pode-se observar uma
mixagem que, no fundo, é compreensível: teoricamente, a abordagem sócio-interativa
é privilegiada, aparecendo regularmente no corpo dos textos os conceitos de
dialogismo, interlocução, gêneros discursivos, enunciação, atitude responsiva ativa,
produção de sentido. É compreensível que haja conflitos, quando se está numa fase
de revolução teórica e de campo. Em todos esses casos, depreende-se que tem havido
um grande esforço no sentido de transformar, aos poucos, a “cultura da redação”
em “cultura do discurso”3, como se vê mais especificamente no relato de Conceição
(2000), que conduziu um trabalho escolar (com iniciantes do curso superior) para
tentar desconstruir “as formalidades da redação escolar” e construir a discursividade
na escrita4, através da reescrita de textos.
A reflexão sobre esse fenômeno mostra que estamos sempre em transição,
com um pé no passado e um pé direcionado para diante. Nos trabalhos, por exemplo,
podem aparecer, alternativamente, as expressões “gêneros dissertativos”, “gêneros
discursivos”, “texto dissertativo”, “texto argumentativo”.

2
Pode-se ainda argumentar que há situações e circunstâncias, nas esferas da sociedade, em que não é possível
pretender, em curto prazo, uma virada radical de conceitos e métodos. Nesses casos, dar um passo de cada vez é
a atitude mais prudente e proveitosa.
3
É também por isso que o termo ‘redação’ tem sido preterido em favor de ‘produção textual’.
4
A autora usou, para desenvolver a produção e a reescrita, não gêneros, mas temas, que remetiam, em suma, aos
tipos tradicionais (um dos blocos de temas refere-se a “textos dissertativos”). O objeto de trabalho sempre foi
tratado como “redação escolar”, apesar da tentativa de “construir a discursividade”.

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Um exemplo do esforço de profissionais em promover mudanças, ainda que


não radicais, consta no relato de Silveira (1998) sobre uma experiência piloto de
prova seletiva do concurso vestibular (UFRGS). Embora o texto a produzir ainda
fosse uma dissertação, nela os candidatos deviam fazer uma reflexão a partir de
vivência pessoal – estratégia que objetivava “suplantar o caráter ‘artificial’ da redação
em um vestibular”, dando algum espaço para que o aluno pudesse aparecer como
“sujeito do seu texto”, fugindo às generalizações tão comuns nessas circunstâncias.
As instruções ao candidato salientavam que ele devia “redigir uma dissertação”
(implicando uma reflexão racional) valendo-se de sua experiência pessoal, que
precisava, portanto, estar inserida em um “texto argumentativo” organizado
“dissertativamente”. O interesse de Silveira era o estudo do processo de elaboração
dos textos; assim, os alunos deviam entregar o rascunho da redação que, “passada a
limpo”, resultaria na versão final. Silveira conclui que o “passar a limpo” não se faz
por simples ato mecânico, mas “aponta para a consideração de aspectos discursivos”.
Do ponto de vista do concurso vestibular, poder-se-ia dizer que se tratava de um
avanço; por outro lado, pode-se argumentar que ser “sujeito de seu texto” não se
resume na possibilidade de descrever uma situação pessoal utilizando a forma “eu”.
Como, na prática, em muitos casos ocorrem todos esses conflitos, e o ensino
sistemático de gêneros de discurso, de modo geral, está longe de ser uma realidade,
a reflexão que proponho estará centrada:

a) em um dos procedimentos para o “ensino” de dissertação (orientado


para o vestibular ou não): ser impessoal e ao mesmo tempo apresentar
e defender ponto de vista pessoal. Discuto o conflito entre ser impessoal
e defender uma opinião, buscando um efeito particular. O foco para isso
serão os “operadores de argumentação” (especificamente as conjunções),
associados ao que se chama topoi (lugares de argumentação) (cf.
ANSCOMBRE, 1995; DUCROT, 1989), que, na evolução da teoria da
Semântica Argumentativa, representaram um passo largo em direção à
“exterioridade” da língua, à sua função discursiva;
b) a título de comparação e contraste, paralelamente, na configuração do
gênero tal como se tem discutido, entendido e aplicado conforme a teoria
sócio-interacional de Bakhtin (1979, 1992), atendo-me à relação
interlocutiva, especificamente quanto à questão indicada acima: defender
uma opinião pessoal de modo impessoal.

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Tenho em vista, em conclusão, as aproximações para passar de um gênero


escolarizado a um gênero plenamente discursivo, pensando na alternativa para a
substituição daquele modelo.

2 UM MANUAL TÍPICO

A obra Desmistificando a redação (LOCKS; OLIVEIRA; OLIVEIRA, 1997) –


que uso como exemplo de parâmetros para redação de vestibular – é um manual
dirigido aos alunos de nível médio, potenciais candidatos ao concurso para ingresso
na Universidade. Esse manual traz algumas técnicas para redigir “dissertação”,
pretendendo “desmistificar o medo e a angústia que precede o ato de escrever”, ao
lado da análise de algumas “boas redações” (com nota mínima oito) produzidas em
vestibulares da Universidade Federal de Santa Catarina (1996-1997). Segue uma
síntese da orientação fornecida para a organização dissertativa do texto.

1. Por dever de objetividade, ao transmitir sua mensagem (aos professores


corretores), o vestibulando, não pode usar a primeira pessoa. Assim, os
estudantes não são orientados a se dirigirem a interlocutores, ainda que
virtuais, e não associam a escritura, nesse contexto, a funções interacionais
em esferas específicas da vida social.

2. Dissertar seria apresentar uma seqüência de idéias, juízos, conhecimentos


etc., examinando-se um assunto, argumentando com provas, exemplos etc.,
devendo explicitar-se uma posição (uma opinião) do redator. Embora se
reconheça o caráter dissertativo do editorial de um jornal, do texto didático,
do político, do científico, do religioso, o que se pede ao candidato ao vestibular
é uma dissertação, um tipo idealizado tornado didaticamente independente.
Aí ele deve explicitar sua posição, mas deixar de lado sua pessoalidade.
Se considerarmos o princípio de que toda produção textual é constitutivamente
argumentativa, a dissertação escolar seria apenas uma organização abstrata,
“útil” apenas para o treinamento de habilidades lógicas. Mas, conforme o
manual, a dissertação preencheria todas as condições para apontar o
candidato intelectualmente maduro para um curso universitário: o que
demonstra habilidades de linguagem envolvendo o raciocínio lógico; conhece
as normas de uso de sua língua e compõe textos formais.

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3. Algumas recomendações focalizam o que deve ser evitado numa


dissertação; de modo especial, um candidato não pode expressar seu
descontentamento com instituições ou pessoas públicas. Ora, é difícil
imaginar como tratar um tema valendo-se apenas de uma intertextualidade
difusa, abdicando do próprio julgamento das questões a debater, para
alinhar-se a um julgamento que supostamente será aceito nas
circunstâncias. Nesse caso, o que se recomenda é que haja um apagamento
do que Bakhtin chamou “acento apreciativo”.

O julgamento “pessoal” do redator não deveria, também, valer-se de certas


formas verbais: o candidato não pode achar (atitude humilde demais para um
julgamento positivo), mas apenas asseverar, tirar conclusões lógicas de suas premissas.
Obrigados a generalizar, pressionados a não polemizar com instituições nem
com figuras públicas, os estudantes escrevem (impessoalmente) “a humanidade”,
“o homem”, “as pessoas”, “o mundo”, “todos”, “pouca gente”. Ainda assim, a
construção subjetiva deixa traços. Apesar do controle e da submissão aparente, é
possível detectar estratégias subjetivas que se sobrepõem ao apagamento.
Ao explorar metodologias de ensino da produção de textos, Bonini (2002)
considerou os seguintes métodos5, de 1960 até hoje: retórico-lógico, textual-
comunicativo, textual-psicolingüístico e interacionista. Importa-me aqui delinear
apenas o primeiro, que apresenta estas características (cf. p. 28-30):

a) a produção se restringe à escrita, tratada como forma de organizar o


pensamento;

b) aprender a escrever corresponde a conhecer regras da gramática de


uma língua;

c) o modelo do produtor de textos é o escritor de literatura;

d) o “dom” para escrever é um atributo fundamental do redator;


e) o essencial no ensino é a correção feita pelo professor, que imprimirá
ao texto a direção apropriada;

5
O autor propõe essa divisão sem determinismo, apenas como possibilidade de refletir sobre o assunto.

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Argumentação e subjetividade no gênero ...

f) a técnica específica para ensino é a apropriação de esquemas (modelos)


de texto (narração, descrição, dissertação).
g) o objetivo na produção de textos é o treinamento de estruturas.

Esta abordagem, como lembra Bonini, continua presente na prática docente


atual, embora apareça mesclada com teorias mais recentes. No caso de “vestibular-
padrão”, como caracterizado acima, é o que se observa. Há que notar também que
o esquema usado no ensino ainda é o da retórica antiga (mas quem aprende retórica
no ensino médio?).

3 RETÓRICA(S)

Se vivemos numa época em que a retórica retoma sua força, embora


permaneça na palavra uma ressonância negativa de palavreado pomposo e inútil
(que tem raízes bem distantes), é notável como o esquema defendido para a
apresentação de um “texto argumentativo” reflete aquele que aparecia na retórica
antiga (a partir de Aristóteles6): a estrutura do discurso7 judiciário tem uma
introdução (o exórdio), segue com a narração dos fatos, feita do ponto de vista de
uma das partes em causa; a narração constrói fatos sobre os quais será desenvolvida
a argumentação, completada pela refutação de posições contrárias. O discurso
fecha com uma conclusão (peroração), que recapitula os pontos essenciais e
reafirma a posição do narrador-argumentador (v. PLANTIN, 1996, p. 9).
Os procedimentos para a construção desse discurso abrangiam cinco etapas:

a) invenção – busca, pelo pensamento, de argumentos pertinentes no


exame de uma causa;

b) disposição – ordenação textual dos argumentos, com base em certos


critérios;

c) elocução – a argumentação pensada é posta em frases;


6
Por questão de justiça, segundo explicita Plantin (1996), não se pode esquecer o trabalho dos sofistas, que já no
século V e início do IV a.C. submetiam a uma crítica corrosiva as concepções éticas e sociais que prevaleciam em
sua época, objetivando o exercício da cidadania. Contudo, por força das deformações impostas a seu pensamento
e a sua prática, eles ficaram com má reputação. É assim que, para Platão, retórica se confunde com sofística.
7
Entenda-se discurso no sentido tradicional do termo, conforme explica Plantin (1996, p. 8): “[...] um conjunto
de atos de linguagem planificados, finalizados, dirigindo-se a um público num quadro institucional preciso”.

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d) memorização do discurso, que será exposto em público;

e) ação – a apresentação pública do orador (gesto e voz são elementos


centrais).

Fazendo um retorno à história da constituição da disciplina Língua Portuguesa,


é possível entender por que, no ensino de língua portuguesa, persistem os esquemas
que consideraríamos “ultrapassados”. Soares (2000) explica que só a partir da
Reforma de Pombal (1759) o ensino do português se tornou obrigatório, mas,
seguindo a tradição do latim, realizou-se como ensino de gramática, ao lado do
ensino da retórica e da poética – até o final do Império. Quando o conteúdo gramatical
da disciplina ganhou o rótulo de Português, isso não significou nova postura teórica
ou metodológica: até os anos 40 do século XX não houve mudança substancial nos
estudos de língua. O conhecimento sobre a língua “[...] era aquele transferido do
conhecimento da gramática do latim, da retórica e da poética aprendidas de e em
autores latinos e gregos” (SOARES, 2000, p. 213). Essa sólida tradição, como se
percebe, ainda não foi superada pelas teorias desenvolvidas principalmente a partir
da década de 80, ainda que várias disciplinas das ciências da linguagem tenham sido
introduzidas nos currículos de formação de professores e muitas de suas propostas
estejam sendo aplicadas ao ensino de português.
Essa busca de novas orientações não invalida, contudo, o estudo da
argumentação, que impregna todas as práticas sociais. As tendências mais recentes
no estudo da argumentação inscrevem-se no campo da Pragmática, como disciplina
que focaliza o uso dos enunciados em contexto. Vou ressaltar aqui a Semântica
Argumentativa, pela importância que atribuiu aos operadores de argumentação e
aos conetivos oracionais (conjunções), associados, posteriormente, à teoria dos
topoi (cf. ANSCOMBRE, 1995).

4 SEMÂNTICA DA ARGUMENTAÇÃO

É pressuposto da Semântica Argumentativa que a orientação argumentativa já


se encontra na “língua” – ou melhor, aparece primeiramente na língua. Assim, o sentido
é entendido como a orientação que a enunciação (do enunciado) fornece ao interlocutor
para que a interpretação se processe e se produza eficácia. Ou seja: não se deve
compreender o sentido como correspondência a uma realidade, física ou mental, mas
como a orientação que certos elementos fornecem para que se obtenha certa conclusão.

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Argumentação e subjetividade no gênero ...

“Significar, para um enunciado, é orientar. De modo que a língua, na medida em que


contribui em primeiro lugar para determinar o sentido dos enunciados, é um dos
lugares privilegiados onde se elabora a argumentação” (ANSCOMBRE; DUCROT, 1983,
prefácio; tradução minha). No caso dos elementos que articulam seqüências
enunciativas, ver-se-á que eles estão a serviço de uma “intenção” argumentativa
específica, remetendo ao conjunto de elementos de um texto.
Um caso típico, e dos mais estudados por Anscombre e Ducrot, é aquele do
mas argumentativo, cujo uso muda a orientação de argumentação. Temos
enunciações argumentativamente diferentes no caso de:
a) Esse restaurante é bom (= P), mas é caro (= Q)

b) Esse restaurante é caro (= P), mas é bom (= Q)

Em (a), a construção pode levar à interpretação (conclusão) de que não se


recomenda o restaurante a quem não tenha dinheiro disponível (restrição); a
construção também pode ser interpretada como uma insinuação ao interlocutor de
que o restaurante não pode ser freqüentado por “qualquer um”; em (b), apresenta-
se uma restrição inicial (alerta) que se torna secundária em seguida, podendo-se
interpretar o enunciado como uma recomendação (eventualmente insistente) para
ir ao restaurante. É pelo sentido de restrição que aparece aí que tradicionalmente
(re)conhecemos o mas como uma conjunção adversativa – o que, no entanto, diz
muito pouco de suas possibilidades enunciativas.
Mais recentemente, retomando a análise do conector mas, Ducrot (1998)
enfatiza que, mantendo o quadro geral de sua explicação, há vários modos de mas Q
contrariar P. Vou apenas sublinhar que os efeitos de sentido são múltiplos, e Ducrot,
atentando para as condições de produção do discurso, assinala:

[...] os valores semânticos que eu atribuo às palavras consistem somente


em “orientações argumentativas”. O sentido das palavras consiste
simplesmente em instruções sobre o tipo de continuação a dar ou a não
dar aos enunciados em que as palavras aparecem, sobretudo o modo como
se pode ou não se pode concluir a partir delas. [...] O valor lingüístico [das
palavras] consiste inteiramente, do ponto de vista semântico, em um apelo
à interpretação. O sentido lingüístico não é feito, se se pode dizer, senão de
buracos, acompanhados de diretivas quanto ao modo de preenchê-los.
(1998, p. 35, tradução minha)

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Furlanetto

A visão da argumentação com base nos operadores é matizada e desdobrada


com o aporte da teoria polifônica da enunciação, que permite relacionar as seqüências
articuladas pelos operadores a posições ou perspectivas (pontos de vista) captáveis no
interior dos enunciados, explicitando as relações tensas entre eles, na medida em que,
a partir de um locutor8, é possível mostrar vários enunciadores, com os quais o locutor
não concorda necessariamente, podendo, mesmo, estar em confronto direto com eles.
Assim, retomando os exemplos anteriores

a) Esse restaurante é bom (= P), mas é caro (= Q)

b) Esse restaurante é caro (= P), mas é bom (= Q),

pode-se interpretar as seqüências P, enunciadas por um locutor (L), como


perspectiva de um enunciador (E) que será marginalizada por L, que defende a
posição correspondente à perspectiva de outro enunciador (E2), que coincide com
a do próprio locutor. Pode-se supor que um modo de refinar a percepção das
perspectivas que podem estar presentes em um texto é, pedagogicamente, identificá-
las e levar os alunos a trabalhar melhor com elas na argumentação, orientando para
atitudes possíveis relativamente a essas perspectivas.
O conceito de topos, que aparece como um elemento regulador “entre a
língua e o discurso”, matizou e deu maior consistência à teoria da argumentação (v.
DUCROT, 1989, 2002). Os valores argumentativos estariam vinculados a certos
elementos da estrutura lingüística que são desencadeadores de topoi, legitimando a
aplicação de um ou vários topoi, que conduzem a outro enunciado implicando novo
conteúdo – envolto em valores.
Compreender a argumentação na língua implica admitir que ela funciona
sob o princípio do topos: nesse sentido, os “operadores” em geral (não apenas
conetivos, mas também nomes substantivos, adjetivos e advérbios) são partículas da
língua que remetem aos topoi (manifestando pontos de vista de enunciadores),
que, implícitos na enunciação do enunciado, possibilitam a passagem a uma
conclusão. O topos aparece, pois, como princípio do encadeamento argumentativo.
Isso também significa que se está dialetizando o interior (da língua) e o exterior:
não são apenas condições internas à língua que determinam as possibilidades
argumentativas.
8
O “sujeito empírico”, como figura externa ao discurso, não tem lugar na teoria.

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Argumentação e subjetividade no gênero ...

O sentido não se constrói diretamente pela relação linguagem/mundo, mas


pelos encadeamentos discursivos formulados, apontando para o outro (sujeito). Há,
pois, uma atitude deslocada do processo de referência em direção às possibilidades
de formulação discursiva, o que qualifica como discursiva a semântica argumentativa.
O fenômeno enunciativo passa a ser, antes de mais nada, um exercício de produção
de realidade(s).
Para encontrar a orientação argumentativa é preciso, então, explorar os topoi
convocados. A argumentação, com base nisso, se descreve a partir dos enunciadores
apresentados no discurso. Os topoi pressupõem sempre um enunciador, virtual ou
não. Eles representam “evidências”, vozes na sombra, algo que é fundamento sem que
disso, em geral, o locutor se dê conta; funcionam como uma espécie de acordo que
serve de premissa (de caráter cultural) – uma memória discursiva. Assim é que o
operador argumentativo funciona de modo suplementar durante o percurso
enunciativo realizado. As indicações primárias de interpretação são fornecidas pelos
topoi, que impõem, no contexto, relações e trajetórias possíveis para o “acabamento”
do texto, dando-lhe um tom menos ou mais polêmico.
Dada a sua função para os antigos (cf. os Tópicos de Aristóteles), os lugares
(topoi), premissas de ordem muito geral, podiam ser vistos como “lojas de argumentos”.
Eles constituem “um arsenal indispensável” para qualquer processamento discursivo.
Aristóteles distinguia lugares comuns (aptos a funcionar para qualquer ciência) e
lugares específicos (de uma ciência particular ou de um gênero oratório).
Nos Tópicos Aristóteles estuda todos os lugares capazes de fundar silogismos
dialéticos ou retóricos. Os lugares mais gerais são aqueles que mais atraem a atenção
dos estudiosos, por seu pretenso caráter de universalidade (seriam menos discutíveis),
mas os mais particulares podem fornecer características de uma sociedade ou mesmo
de regiões de uma nação. Por outro lado, mesmo aos lugares considerados mais gerais
se poderia opor um lugar adverso: quanto mais se trabalha mais se ganha x quanto
mais se trabalha menos se ganha. Essas “verdades” subterrâneas e desencadeadoras
de pensamentos e ações também têm uma história e fazem parte de uma cultura.
Ducrot (1989, p. 38) afirma: “[...] a mesma língua pode ser utilizada por coletividades
que admitem topoi contrários [...]. O que é necessário é a existência de topoi
reconhecidos pela coletividade”.
Com os topoi “algo fala” em nossa fala, mas é a situação argumentativa que dá
o tom e o estilo às vozes convocadas para funcionar como cenário. Ducrot (cf. MOURA,
1998) tende a ver nos topoi “conjuntos sem limites precisos” de relações complexas

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Furlanetto

(entre palavras); ele também usa a expressão “fontes de discurso”, que faz lembrar o
conceito de interdiscurso, tal como concebido na Análise do Discurso. As estruturas
frásticas e os elementos lexicais exercem coerção sobre os encadeamentos
argumentativos na medida em que é ali que estão os topoi: entre a língua e o discurso.
Como cada topos corresponde a uma perspectiva, a um enunciador possível,
aqui está implicada a teoria polifônica. A palavra gratidão, por exemplo, evoca um
topos como “um favor feito merece reconhecimento”. Mas, se a argumentação pode
estar já no léxico, as palavras trazem apenas potencialidade para significar; elas só
funcionam efetivamente, produzindo sentido, quando se materializam em enunciados.
Assim é que as palavras passam a ser encaradas, na teoria, como “feixes de topoi”
(v. ANSCOMBRE, 1995), o que remete a multiplicidade significativa, abertura
constitutiva para a formulação discursiva, polifonia que atravessa o texto. Serão os
encadeamentos, em última análise, que permitirão um relativo fechamento para a
obtenção de certa eficácia argumentativa, num jogo em que a língua, de um lado,
pressiona o sujeito locutor, e em que o locutor se vê jogando com a língua, observando
suas potencialidades e fazendo suas opções (nem sempre com sucesso).
Retornando mais uma vez aos dois exemplos estudados antes,

a) Esse restaurante é bom (= P), mas é caro (= Q)

b) Esse restaurante é caro (= P), mas é bom (= Q)

ver-se-á que nas duas seqüências P um enunciador formula um ponto de vista


que convoca topoi. Para (a): “um restaurante bom é um local onde se deve ir”; é
possível entender a seqüência enunciada como um convite ou uma recomendação
para ir ao restaurante; dado que o locutor enuncia a seqüência, há uma concordância
quanto ao topos; dado que o mesmo locutor enuncia também Q (“é caro”), ele enuncia
outro ponto de vista, que se vincula a outro topos (“um restaurante caro deve ser
mantido à distância”); dado que cada topos nas seqüências aponta para conclusões
diferentes, o locutor resolve o impasse da des-orientação optando pelo mas que introduz
Q, que marginaliza, na argumentação, o primeiro topos. A partir dessa escolha,
restringem-se as possibilidades de conclusão para o que é enunciado. Para (b), basta
inverter o processo, e se terá uma orientação diferente no processo argumentativo9.

9
Não vou fazer intervir aqui a propriedade de gradualidade dos topoi, nem aquela, correlata, das formas tópicas.

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Argumentação e subjetividade no gênero ...

É perceptível, na argumentação tecida até aqui, que a (inter)subjetividade é


um elemento-chave na produção de texto. É o fator subjetivo que estabelece a própria
possibilidade de um efeito objetivo e impessoal. Exploro, na próxima seção, facetas da
subjetividade, deslocando-me para o campo da Análise do Discurso, pensando a
textualidade em seu caráter de discursividade, tendo como meio e tema a argumentação.

5 SUBJETIVO E SUBJETIVO

Bréal (1992), no clássico Ensaio de semântica, afirma que é da natureza da


linguagem permitir que às reflexões sejam associados os sentimentos pessoais, fazendo
uma analogia com o que acontece no sonho: quem sonha é, ao mesmo tempo, autor
dos acontecimentos e espectador interessado – o sonho que sonha lhe diz respeito.
Assim, o sujeito é, desde o início, clivado: é autor e espectador, e esse fenômeno subjetivo
está no campo mesmo da semântica (não é acrescentado através de outro componente).
A posição de Bréal prenuncia as teorias da enunciação, através da percepção do
“desdobramento da personalidade humana” (p. 160). Ele procura mostrar, pela tessitura
histórica das palavras, o atravessamento subjetivo, referindo-se também ao tom da voz,
ao aspecto da fisionomia e à atitude do corpo (cf. p. 60). Hoje, através do conceito de
ethos10, também se fala em tom do texto escrito. Até mesmo na formulação de um
silogismo, diz Bréal, “[...] as conjunções que marcam os diferentes membros do meu
raciocínio dizem respeito à parte subjetiva” (1992, p. 158).
Encontro, nessa releitura que faço de Bréal, um argumento para a tese sobre
a subjetividade que atravessa um “texto argumentativo”, ainda que ele se formule de
modo aparentemente neutro, impessoal.

10
A palavra ethos vem da Retórica de Aristóteles: imagem que um orador dá de si através de seu modo de falar
(tom, gestos, comportamento geral). A noção foi explorada na análise do discurso por Maingueneau, que entende
que qualquer discurso pressupõe um ethos, implicando certa representação do corpo do enunciador (v.
Maingueneau, 1997). São palavras de Maingueneau, num artigo específico sobre o ethos: “Na minha opinião, a
noção de ethos é interessante pelo elo crucial que entretém com a reflexividade enunciativa, mas também porque
permite articular corpo e discurso para além de uma oposição empírica entre oral e escrito. A instância subjetiva
que se manifesta através do discurso não se deixa conceber somente como um estatuto, mas como uma ‘voz’,
associada a um ‘corpo enunciante’ historicamente especificado. Enquanto a retórica ligou estreitamente o ethos
à oralidade, em lugar de reservá-lo à eloqüência judiciária ou mesmo à oralidade, pode-se afirmar que todo texto
escrito, ainda que ele a negue, possui uma vocalidade específica que permite remetê-lo a uma caracterização do
corpo do enunciador (e não, bem entendido, do corpo do locutor extradiscursivo), a um aval que, através de seu
tom, atesta o que é dito; o termo ‘tom’ apresenta a vantagem de valer tanto para o escrito como para o oral”
(tradução minha). Disponível em <http://perso.wanadoo.fr/dominique.maingueneau/contents2.html>.

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Furlanetto

O que quero salientar é o conflito que deve ser discutido, estabelecendo-se,


a par da noção de impessoalidade que se dá como padrão no “texto dissertativo”, a
compreensão do caráter de subjetividade tal como tem sido discutida na Análise do
Discurso (AD), a tensão que se cria no jogo objetivo/subjetivo e a qualidade possível
de particularidade para o (tradicional) texto dissertativo, contraposto à conformidade
que marcaria o “assujeitamento”.
Sem entrar em detalhes sobre a história da evolução do conceito de sujeito
11
na AD , diga-se que, dado o princípio de interpelação ideológica adotado por Pêcheux
(cf. 1988), com base em Althusser (Aparelhos ideológicos de Estado, de 1970) (cf.
ALTHUSSER, 1996), e a idéia de clivagem, de divisão subjetiva, por influência da
psicanálise, chegou-se a uma concepção de sujeito que se marca principalmente
pelo lugar social ocupado – por uma posição material lingüístico-histórica, que terá
peso substancial na produção de sentidos. “[...] ao enunciar ‘eu’ (ou então o seu
nome próprio, seja ele qual for) o sujeito já se encontra assujeitado, mostra uma
inserção na língua que é, também, uma inserção na história enquanto processo de
produção de sentidos” (MARIANI, 2003).
Entretanto, esse “eu” (que se dá como ego-imaginário), essa instância que é
tida como ilusória porque sua representação seria um simulacro de unidade (ilusão),
também é aquele que permite sustentar e direcionar o discurso, e é nessa instância
que pode construir-se como autor, pondoem parginalizar nar como autor.tor.ionar o
discurso, e à margem (“esquecendo”) sua fraqueza, seus lapsos, sua dependência
àquilo que desconhece12.
É nesse sentido que, para analisar a subjetividade, retomo em síntese o que
Souza (2003) discrimina como “assujeitamento” e “subjetividade”. Souza mostra que
o processo de assujeitamento também é o lugar em que é possível resistir, mediante
um deslocamento da ordem discursiva em que se dá a dominação – daí que ele afirme
a simultaneidade de atividade e passividade no processo discursivo relativamente a
uma formação discursiva13. Souza debate o problema apelando para a idéia de
“diferentes temporalidades enunciativas” de constituição subjetiva, ou seja, diferentes
possibilidades de manifestar a subjetividade, por formas plurais de “transgressão”.

11
Isso tem sido amplamente discutido na área; v., por exemplo, Indursky (2000).
12
Para defender esta tese, estou revertendo a argumentação a respeito do “assujeitamento” ao simbólico e ao
ideológico, sem, contudo (também por coerência), eliminar essa instância. Trata-se de dar um lugar, agora re-
significado, ao estatuto do ego-imaginário.
13
Ou seja, um “espaço“ discursivo ordenado por certas regras que restringem o que dizer e como dizer.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006 531


Argumentação e subjetividade no gênero ...

O que entendo por “subjetivo e subjetivo”, nesta seção, corresponde à


distinção que Souza faz entre assujeitamento e subjetividade14. Fique descartada,
desde logo, a imagem de que exista “[...] um eu verdadeiro reduzido ao nicho
originário de sua existência” (SOUZA, 2003, p. 38). Comentando Foucault, o autor
está interessado em fixar-se nas práticas de autoformação do sujeito, que configuram
uma “estética da existência”. Lembra que, para isso, é impraticável partir de um
sujeito pré-conformado, socialmente já rotulado (negro, sem-terra, louco...), visto
que tais identificações são já o resultado de relações e práticas, “quer de dominação,
quer de libertação”. Assim, Souza estabelece que uma operação dominadora
produzirá o assujeitamento (ser sujeito a), e que uma operação libertadora
produzirá a subjetivação (ser sujeito de). É aqui que está implicada a categoria de
resistência, e a questão relevante é saber qual “a dinâmica das práticas que podem
ser lidas como resistência” (p. 41), resultando em formas novas de ser sujeito.
O apelo ao “eu” é apenas um sintoma lingüístico da resistência. Resistir,
como define Souza, é deixar-se afetar por outras forças que não o modo atual/presente
de reconhecimento de si, que é efeito do assujeitamento. Se não há como não estar
(de algum modo) assujeitado, há formas outras que podem delinear-se como modos
(novos) de exercer a subjetividade, de projetar a construção de si.
Voltando ao problema delineado na introdução deste trabalho, pode-se
perguntar: o que acontece na formulação da dissertação escolar? Os estudantes se
submetem às fontes normativas que regulam sua manifestação de linguagem,
respeitando as regras do jogo? Há, certamente, a imposição de certas diretrizes, e,
ainda que inconscientemente, um estudante pode romper a barreira da imposição –
mesmo que isso signifique reprovação (por sua rebeldia ou “má sorte”). Quando os
critérios são rígidos, pouca tolerância será encontrada. O conflito é visível.
Pode-se mostrar esse conflito (que não existe apenas para os estudantes)
através da seguinte síntese, que apresento a partir de Faïta (1997), quando explora
a noção de gênero em Bakhtin. Ele diz: “A mola fundamental do processo paradoxal
de produção do sentido reside na soma das contradições que asseguram a motricidade
do diálogo” (p. 173).
Essas contradições são:

14
Quando se diz, em outros contextos, que se deve ser sujeito de seu discurso, penso que o que se propõe é levar
a uma atitude de forçar para além do condicionamento em busca de algo particular.

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Furlanetto

a) individualidade da produção x dimensão social do ato: o locutor deixa


suas marcas no enunciado, mas ele é apenas um dos atores do drama;

b) pregnância incontornável das normas x liberdade do projeto discursivo:


os gêneros são recursos para pensar e dizer, mas têm características de
formulação (que podem ser desviadas para a criação de novas formas sociais);

c) liberdade de criação x implicação do sujeito na relação triádica: o si


mesmo, o outro, as vozes todas que se enunciaram antes: isso se reflete na
relação entre o acabamento do enunciado e a materialização da posição
do locutor.

As regras do jogo (procedimentos) para compreender e trabalhar essas


contradições na construção dos textos – mesmo aqueles conformados aos tradicionais
gêneros escolarizados, como a dissertação – não têm sido expostas francamente.
Em vez delas, o que se vê ainda são instruções rígidas que tendem a sufocar a
manifestação subjetiva, apenas submetida a coerções. Isso quer dizer, por extensão,
que a “liberdade” de projetar discurso se reduz a um dom ou a uma feliz casualidade.
Essa questão, que envolve o conceito de bipolaridade em Bakhtin, será esmiuçada
na próxima seção (análise de uma “dissertação”).

6 APONTANDO A SUBJETIVIDADE

O relato de Silveira (1998) que comentei na introdução deste trabalho é um


bom exemplo da forma conflituosa com que um tema para dissertar é apresentado
aos estudantes. No caso, tratava-se de uma estratégia para dar espaço à subjetividade
e evitar que o redator permanecesse em generalizações. Era um convite para narrar
e refletir a partir da narração. Uma vez que narrar pode ter soado aos estudantes
como algo literariamente subjetivo, a ser embutido numa dissertação, suponho que
eles tenham experimentado grande tensão. Seria como expor e equilibrar dois
“gêneros” num único texto.
Porém, independentemente desse cuidado de inserção explícita da
subjetividade, os traços que permitem uma leitura, ainda que relativamente apagados
ou des-orientadores – na medida em que se considere que há lacunas ou má
condução –, estão ali a indicar, no mínimo, a ansiedade, a falta de recursos, a distância

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006 533


Argumentação e subjetividade no gênero ...

de um interlocutor, o exercício de uma língua que aparentemente só os outros


parecem conhecer. Será sempre complicado estabelecer conversa com uma não-
pessoa (a secretária eletrônica, representante de um ausente, é desconcertante).
Admitindo o princípio da alteridade subjetiva, situações semelhantes provocam
uma falta crucial que deixará marcas nos textos – e elas não são necessariamente
aquelas que, por imposição, aparecem separando o sujeito de seu dizer. O que tolhe
a escritura é o peso da simulação e a perene sensação de estar no vazio; é a forte
impressão de que se forja a argumentação (imprime-se uma direção) para nada e
ninguém. O efeito global de textos produzidos em tais condições é de exposição: o
jogo da argumentação com efeitos contrastantes típicos comumente não aparece
(“a que ponto de vista estou me opondo?” “Com quem me alinho?” “De que poderei
lançar mão para direcionar este e não aquele interlocutor?”).
Isso tudo, entretanto, não impede a escolha – a boa ou a má, nas
circunstâncias. Em Desmistificando a redação, manual que comentei anteriormente,
aparece transcrito um texto de estudante que tematizou justamente sua
impossibilidade (resistência?) de levar a sério as exigências do concurso vestibular,
optando por dirigir-se (eu diria que realmente e ficcionalmente) a quem fosse o
corretor de seu texto, tratado como “caro PHD”: “Posso ver teu rosto cansado pelo
trabalho exaustivo de correção de nossas ‘preciosidades literárias’”. O texto da “carta-
desabafo” (assim categorizado) foi considerado bem elaborado, mas a reprovação
era fatal: seu autor fugiu ao esquema da dissertação e não havia o número necessário
(?) de linhas. Talvez essa tenha sido a forma exemplar de resistência de quem tinha
o que dizer a um interlocutor real. Sua criatividade não foi legitimada, mas é possível
que a argumentação tenha sido reconhecida e tenha feito pensar.
Emmanuel Lévinas, que trata filosoficamente a relação intersubjetiva numa
abordagem ética, diz:

O discurso impessoal é um discurso necrológico. [...] a transcendência do


interlocutor e o acesso a outrem pela linguagem manifestam que o homem
é uma singularidade. [...] A generalização é a morte. Ela faz o eu entrar e o
dissolve na generalidade de sua obra. A singularidade insubstituível do eu
decorre de sua vida. (LÉVINAS, 1997, p. 49, 49-50, 51)

No âmbito da obra de Bakhtin, o que corresponde a isso seria: “A língua


penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através
dos enunciados concretos que a vida penetra na língua” (1992, p. 282).

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Furlanetto

Para explorar o que foi discutido acima, trago uma dissertação de aluno de
ensino superior (8º período de Letras)15 elaborada segundo o esquema tradicional,
mas no contexto de uma disciplina em que foram focalizadas as noções de texto e de
discurso, de coesão e de coerência, de operadores de argumentação – que
objetivavam fornecer elementos que estimulassem o uso mais crítico da linguagem.
Procedi a uma marcação diferenciada das várias expressões (sublinhado
simples, sublinhado duplo, e negrito para as palavras ‘progresso’, ‘mas’ e ‘aliás’),
que será explicada no curso da análise.

O problema do desemprego nos centros urbanos


Desde Getúlio Vargas o Brasil tem sido o país do emprego. Nestes anos
todos, investimentos massiços foram construindo um grande parque de
manufaturas e transformação de matéria prima. O Brasil deixou de ser um país
agrário e tornou-se um país industrializado. [INTRODUÇÃO]
Em torno desse progresso um novo horizonte se delineava. Uma sociedade
nova se formava com deslocamento do homem do campo para os centros
industriais; um homem urbano, os operários, surge para acionar as máquinas.
[INTRODUÇÃO]
Junto com este progresso acelerado vem a promessa de um país poderoso
e sem problemas, mas [CONETIVO-CHAVE] nos últimos anos o sonho acabou.
Aliás virou pesadelo. Agora a máquina dispensa o homem. O homem tão
dependente de máquinas é dispensável. Elas fazem melhor e sozinhas.
[DESENVOLVIMENTO]
Nestas circunstâncias = um homem
==== desolado
=============== vai para casa, porque só sabia
apertar botões. = Viciou-se
=================== em ligar e desligar botões. Seu cérebro tornou-se
extensão desse processo e agora ele vive uma = orfandade
========desesperadora
=========== como
um bebê=arrancado =================== do seio da mãe. Não há mais lugar para este homem, ele se
mecanizou
==================== e a máquina tornou-se autônoma. [DESENVOLVIMENTO]
São conseqüências graves das quais não nos damos conta. A industrialização
==================== o homem a um ponto de deixá-lo submisso à sua própria criação,
imbecilizou
=bestificado
===================ante sua obra. A maquinização cresceu, automatizou-se superando
a razão humana, e no mesmo processo, inversamente, o homem = se infantilizou
===================
ao limite da vassalagem.==================== [DESENVOLVIMENTO]
Como diz Ferreira Gullar no seu Poema: “Não ========há
=====vagas”.
======= O homem urbano
está no = olho da rua
=================== e quem o demite é sua própria criação: a máquina, que
cresceu e se multiplicou. [CONCLUSÃO]

15
O texto faz parte do corpus analisado por Helena Cristina Lübke (2000) em sua dissertação de Mestrado. A
professora autorizou-me o uso de seus dados para pesquisa.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006 535


Argumentação e subjetividade no gênero ...

O texto se apresenta em cinco parágrafos, dos quais dois para a introdução,


três para o desenvolvimento, um para a conclusão. Esse texto não parece diferir
muito de dezenas de outros produzidos em situação de vestibular, e há que se destacar
aqui que faltava apenas um semestre para o estudante concluir a licenciatura. Os
estudantes foram conduzidos a produzir a tradicional “dissertação”, embora se
pretendesse orientar para a produção de sentidos em vários contextos de uso,
permitindo a reflexão sobre os modos de formulação discursiva. Penso que, nas
circunstâncias do acontecimento que foi a produção para esses alunos, a virtual ou
real liberdade na produção não funcionou de fato. Às vezes a prática da liberdade
não é reconhecida, e então trilha-se o caminho mais batido.
Retomando Souza (2003), tal como discutido anteriormente, a questão
relevante é saber qual “a dinâmica das práticas que podem ser lidas como resistência”
(p. 41), resultando em um modo de subjetivação, não de mero assujeitamento. O
autor entende que formas novas de subjetivação só são possíveis em regime de
liberdade (p. 42). Passo, então, a algumas considerações sobre as possibilidades de
leitura analítica que o texto abre.
Nessa dissertação, embora não haja muitos elementos de conexão explícitos
– o que, no fundo, não é necessário –, e embora o tratamento seja impessoal, há um
elemento-chave: o conetivo mas, que divide o texto em duas partes, e dá, considerando
o papel dos topoi associados aos vários segmentos, duas direções à argumentação –
positivo (P) mas negativo (Q) –, predominando a segunda para a conclusão. Isso
significa que até a ocorrência de mas tudo conduz a uma interpretação em que
progresso é o termo-chave para idealizar um país (amarrando (cf. sublinhado
simples) país do emprego, investimentos, grande parque, país industrializado),
através de etapas sucessivas que criam um novo sujeito – o operário, até aqui com
uma ressonância positiva –, culminando na visão de um país com poder e sem
problemas (promessa).
Para enfatizar a mudança, que se dá discursivamente num relance, o aluno,
num crescendo, diz: “mas nos últimos anos o sonho acabou. Aliás virou pesadelo”.
O pesadelo se contrapõe ao sonho, e passa a conduzir a formulação discursiva, sem
nenhum retorno a matizar o processo. Subjetivamente, houve um deslocamento: no
passado de que fala e no qual a posição subjetiva é de concessão, o estudante admite
o sonho e se alinha com ele. Terminado o sonho, é preciso mostrar por que se trata
agora de um pesadelo: o operário (aquele que trabalha, que opera) perde o emprego
e recebe o rótulo de “desempregado”; mais que isso, se desumaniza na “convivência”

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Furlanetto

com a máquina, é imbecilizado, e vai além: fica órfão, abandonado (cf. as expressões
com sublinhado duplo: homem dependente, homem desolado, orfandade
desesperadora, etc.).
O estudante disse apenas o que podia dizer, sem alternativa? Não só. Há aqui o
imprevisível; um exemplo marcante é a associação de Getúlio Vargas (para estabelecer
um movimento) a Ferreira Gullar (para estabelecer o movimento contrário).
Para além desses contornos do jogo subjetivo, o estudante não segue o
esquema da argumentação tal como idealizado pelos manuais: foco sobre o tema,
enfoques (apresentados em parágrafos distintos), interpretação, explicitação através
de opiniões, exemplos, provas, analogias, dados... O que pode justificar essa pouca
variação de pontos de vista a discutir é a ausência de uma posição explícita com a
qual o estudante pudesse debater16. Sem opção, ele não vê por que se debater tanto;
além do mais, é lugar-comum (topos) conceber que a industrialização gera
desumanização 17. Diria que esse topos coordena o texto, apesar de que
industrialização, na parte introdutória, convoque preferencialmente um topos
associado a progresso.
Ainda assim, é preciso fazer escolhas. E, consciente ou não do processo, o
estudante produziu um texto com uma simetria que talvez não se perceba facilmente:
na primeira parte apela ao personagem Getúlio Vargas para introduzir um país que
tinha futuro; na segunda, fecha com um poeta que tristemente anuncia a
marginalização do operário, vencido pela máquina: “Não há vagas”. No trânsito entre
essas duas partes emblemáticas do país, o estudante joga constantemente com a
reversão homem/máquina. É assim que, sem dizer “eu”, ele exerce a singularidade.
Preso à posição de onde deve argumentar, ele mostra, contudo, rupturas, ainda que
a mais visível – os erros gráficos e gramaticais – possa, através de um outro olhar (o
do professor, também refletindo uma posição), receber condenação. E note-se que
a ruptura na linha de argumentação ocorre dentro de um parágrafo, o terceiro do
texto e primeiro do desenvolvimento, onde aparece o mas.

16
Lembremos os jogos em sentido estrito: os opositores estão presentes, do outro lado, e é preciso saber quais os
melhores lances para vencer, presumindo os lances do adversário.
17
Nas outras 14 dissertações do mesmo corpus, das quais 10 têm o mesmo tema (desemprego nos centros urbanos),
a avaliação (e a conseqüente direção escolhida para argumentar) é semelhante, embora encontremos matizes
como: esperança, crítica à globalização e às elites, propostas de solução (reforma agrária, atenção aos jovens,
reformas estruturais), necessidade de estudo para enfrentar a competição. A preferência pelo tema “desemprego”
parece indicar a preocupação dos estudantes com o próprio futuro.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006 537


Argumentação e subjetividade no gênero ...

Há estilo aqui? Sim (pensemos em estilo como componente do gênero


discursivo na teorização de Bakhtin). Se dermos menos atenção aos erros
(representantes de desvio da norma padrão), eis uma manifestação de estilo não
desprezível. Há um modo de “fabricar” a subjetividade, talvez sem que o estudante
tenha explicitado a estrutura que pudesse desejar – mesmo porque, teoricamente,
todos sabem o que se espera de uma dissertação. A tessitura desta, em suma, mostra
um esquema muito simples, em que as conexões foram feitas através de meios
variados, mas especialmente pela escolha de um conjunto lexical distribuído nos
dois movimentos que o texto atesta – conjunto que, mais ou menos nitidamente,
joga com um conjunto análogo de topoi (lugares).
Devo admitir que este texto, a partir de sua aparência imediata muito comum,
passou a ser visto como algo interessante e singular só depois que, em análise, procurei
entender sua elaboração, a “intencionalidade” presente nele – independentemente do
esforço controlado de seu autor. Talvez ele se tenha dado conta disso como leitor
necessário na atuação de revisor, como segundo ego. Sobre esse ponto, entretanto, não
há nada que se possa dizer, já que não houve controle de reescritura.
Resta que o acontecimento (discursivo) que os sujeitos promovem é resultado
de um trabalho, ainda que nem sempre seja realizado passo a passo por estratégias
explícitas. Faltam, contudo, no contexto escolar, respostas (reais ou virtuais) de co-
enunciadores, que são os elementos de monitoração para a motivação inicial de um
discurso que se constrói, construindo por isso mesmo a própria imagem dos sujeitos
(num jogo de pontos de vista).

7 O GÊNERO EM BAKHTIN: QUESTÕES DE BIPOLARIDADE

É nesse contexto de lacunas pedagógicas que se pode promover um desvio


no caminho metodológico e passar às possíveis transformações, dando sentido à
produção de textos. Limitarei o tema, nesta seção, às questões que remetem ao
conceito complexo de bipolaridade em Bakhtin (1992), que reflete sobre o problema
(evidente na escola) de como conciliar a exigência de estabilidade das sociedades
com a necessidade de adaptar-se a novas condições históricas.
A bipolaridade do texto implica o uso da língua como sistema convencional
– com unidades relacionais portadoras de significação – e como enunciado, ou
seja, irreproduzível e individual, construindo sentido (tema, em Bakhtin (1979)) –
“seu desígnio, aquele para o qual foi criado” (1992, p. 331). Para Bakhtin, além de

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Furlanetto

levar a compreender melhor noções acerca da vida verbal (“fluxo verbal”,


“comunicação”), “o estudo do enunciado, em sua qualidade de unidade real da
comunicação verbal, também deve permitir compreender melhor a natureza das
unidades da língua (da língua como sistema): as palavras e as orações.” (1992, p.
287). Só com relação ao enunciado é que se pode falar em verdadeiro, bom, belo,
assustador, incrível... Este segundo pólo é inseparável do autor.
Clark e Holquist (1998) destacam a idéia de complementaridade entre sistema
e fala (discurso) em Bakhtin e o conflito incessante entre “canonização e
heteroglossia” – pela vitória de uma padronização (norma prescritiva) sobre as
variedades regionais e individuais do ponto de vista político. Mas, como o território
da linguagem é compartilhado entre locutor e interlocutor, Bakhtin trabalha no sentido
de mostrar como se dá essa repartição, como mostrar o jogo entre o um e o múltiplo.
Bakhtin reconhece a existência como uma atividade incessante, uma enorme energia
se produzindo no processo de forças por ela impulsionadas.

Tal energia pode ser concebida como um campo de força criado pelo embate
ininterrupto entre forças centrífugas, que se empenham em manter as coisas
variadas, separadas, apartadas, diferenciadas umas das outras, e centrípetas,
que se empenham em manter as coisas juntas, unificadas, iguais. (CLARK;
HOLQUIST, 1998, p. 35)

Assim, as primeiras levam ao movimento, à deriva, ao devir; as segundas resistem


ao devir, à história; levam à repetição, à idéia de ordem. Trata-se de uma constante
dinâmica entre a língua (que se constrói) a partir do discurso e do discurso (que se
constrói) a partir da língua. É, aliás, nesse entremeio que se produzem os topoi.
O lugar para o estudo dessa atividade conflitiva (dialógica) é a elocução (ou
enunciação, ou o enunciado)18. Estudar as forças centrífugas da linguagem
representava, no contexto em que Bakhtin viveu, uma tentativa de preencher a lacuna
criada pela tendência ao estudo estruturalista das sistematicidades.
O enunciado, tal como tematizado por Bakhtin, é unidade de interação
discursiva (diferente de palavras e orações), traduzindo vida social e experiências
singulares. Para entender o acabamento (sempre relativo) do enunciado, o que
permite a identificação de um texto, três fatores estão ligados: o tratamento exaustivo
do objeto do sentido; o querer-dizer do locutor (seu projeto enunciativo, dirigido a

18
É a esse estudo filosófico que se tem chamado translingüística.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006 539


Argumentação e subjetividade no gênero ...

outrem); a escolha e estruturação de um gênero, com a utilização de recursos


lingüísticos. Só isso proporciona a possibilidade de resposta (cf. 1992, p. 299). Se o
enunciado é individual e concreto, em algum grau isso implica o uso de um estilo
individual, embora seja difícil delimitar o que é uso corrente e o que é do indivíduo.
A diversidade dos gêneros presume a delimitação de um estilo geral (de uma esfera)
em relação a um individual – o que pressupõe que haja um estudo dos gêneros em
sua diversidade (cf. BAKHTIN, 1992, p. 284).
Há um terceiro aspecto no jogo discursivo implicado pelo gênero: a questão
da “terceira pessoa”. Bakhtin afirma que compreender é tornar-se o “terceiro” num
diálogo, numa posição bem específica. Se um enunciado sempre tem um destinatário,
de quem o locutor espera uma resposta, esse destinatário é um segundo; mas além
dele o locutor-autor pressupõe um superdestinatário (o terceiro), cuja compreensão
absolutamente exata é pressuposta19, podendo adquirir uma identidade concreta
dependendo do tempo e da cultura (Deus – como ocorre na filosofia de Descartes –
, a verdade absoluta, o bom senso, o povo, a ciência...). Então, a enunciação se
desenrola como se houvesse um terceiro personagem presenciando tudo e tudo
compreendendo. Não é uma entidade mística ou metafísica, mas, como explica
Bakhtin, “um momento constitutivo do todo do enunciado” (1992, p. 356). Essa
posição especial é vista como abstrata, identificada com a “posição objetiva”, o
conhecimento científico (p. 384). Neste ponto, Bakhtin (1992, Apontamentos 1970-
1971), diz que se justifica essa posição quando os indivíduos são intercambiáveis
(assumindo, então, que sujeitos diferentes podem ocupar as mesmas posições nas
formações, o que acontece no caso das especializações – quando há abstração do
eu e do tu, ou o eu se resume a um cargo específico: o professor de X, o engenheiro,
o físico), ou seja, expressa uma parte separada do todo de sua pessoa.
Isto posto, permito-me dizer que, frente ao desafio de construir uma
dissertação, nos moldes apresentados em meu exemplo, o estudante pode estar
sendo assimilado a uma figura abstrata homogeneizada nomeada estudante, cuja
posição na academia se resume em repetir as formulações a partir de um modelo.
Provavelmente é por isso que seu texto não é tomado como enunciado, mas como
língua, unidade de signos. Nesse caso, como ressalta Bakhtin, tais signos “não podem
ser verdadeiros, nem falsos, nem belos” (1992, p. 353); em conseqüência desse

19
Suponho que ele funcionaria como a forma-sujeito correspondente ao saber de uma formação discursiva no
contexto da Análise do Discurso.

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Furlanetto

pressuposto, eles não serão lidos e apreciados simultaneamente de modo centrípeto


(em direção à ordenação, à prescrição) e centrífugo (em sua relação de abertura
para a realidade, para os enunciados alheios, para destinatários identificáveis,
explorando a abertura dos sentidos).
Assim, observando nas dissertações em geral a precariedade da relação
interlocutiva, quanto à questão formulada na introdução deste trabalho, é visível que
defender uma opinião pessoal de modo impessoal é emblemático de um problema
que a escola e a academia não podem resolver de forma direta e simples, e retrata esse
jogo conflituoso de tentar equilibrar a força centrífuga e a força centrípeta, sabendo de
antemão o estudante que o prato da balança vai pesar mais do lado desta última.
Isoladamente ou no conjunto do corpus, e ao olhar mais prescritivo (que
isola erros sem explorar adequadamente as qualidades), o texto analisado acima
não será considerado satisfatório, sobretudo por ter sido produzido por um estudante
quase licenciado. A pesquisadora que trabalhou com esse corpus (LÜBKE, 2000),
tentando oferecer meios para estimular a produção, considerou que os estudantes
não foram muito além do preenchimento de um esquema, e que na maioria dos
textos analisados não houve um real posicionamento na discussão.
Reiterando o que explicitei na seção anterior (análise), a constatada frouxa
manipulação de pontos de vista se deve, pelo menos em parte, à ausência de uma
posição explícita com a qual o estudante possa debater. Se um real problema for
exposto, com especificação de posições que tenham de ser debatidas, talvez haja
mais empenho dos estudantes em refletir sobre e defender uma posição com
estratégias mais apropriadas. Com efeito, ao se ler essas redações, ainda que sejam
bem elaboradas, cabe perguntar: elas respondem a quê, se no fluxo real dos discursos
o que temos é uma sucessão de perguntas e respostas (palavra e contrapalavra)?
Geralmente elas “respondem” apenas a um comando para escrever, com uma
sugestão feita através de recortes selecionados. Há que lembrar, também, que tais
procedimentos têm de ser ensinados e aprendidos. Da mesma forma que não basta
saber a lista e a função específica de elementos de conexão para usá-los
convenientemente, também não basta explicar que certos operadores têm um papel
importante na argumentação.
Neste ponto, caberia pensar como passar de um gênero escolarizado ainda
tão cultuado a um outro que guardasse semelhanças e representasse uma alternativa
promissora para o ensino. Neste momento, considerando as descrições e explorações
de que tenho conhecimento, o melhor exercício enunciativo para substituir a abstrata

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006 541


Argumentação e subjetividade no gênero ...

dissertação escolarizada me parece ser o artigo de opinião, tal como explorado em


Rodrigues (2002) e em Maieski (2005).

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A julgar pelo que mostrei com a desmontagem e recomposição do texto O


problema do desemprego nos centros urbanos, deve haver mais do que se está
comumente considerando quando se avaliam os textos escritos, e esse “mais” poderia
ser também tema de debate nas aulas de língua portuguesa. Talvez aquele estudante
ficasse espantado se tomasse conhecimento da forma como estruturou seu texto, e
da legitimidade daquela arquitetura, bem como do que ali se pode apreciar como
toque de autoria, essa parte subjetiva que permite que a ilusão de unidade apareça
no texto, tornando-o inteligível, válido para leitura.
Dadas as condições de produção que necessariamente atravessam seu texto,
vê-se ali a tentativa de enquadramento, de bom comportamento; sua posição subjetiva
de candidato a uma licenciatura, no contexto universitário, demandava um mínimo
de reconhecimento à tradição da cultura da redação, ainda que, em perigosa
transição, se esperasse dele “transgressão”, cujo resultado, no entanto, poderia não
ser satisfatório.
O efeito de singularidade, que responde, em algum grau, ao efeito de autoria,
é, em última análise, a grande aposta para quem ensina e para quem aprende, em
qualquer nível de ensino; mas, se os discursos que atravessam esses espaços têm o
selo da novidade, a prática que deles emana por vezes responde a outro discurso, de
autoridade outra, inflexível. Não é o caso de que devam confrontar-se, senão que
suas especificidades precisam ser negociadas para que um não desapareça em
proveito do outro, em práticas que não se sustentem e que não façam efetivamente
sentido. Aí, carece deixar tanta liberdade quanto possível para que a construção
subjetiva se reflita nos muitos diálogos do cotidiano, e também nos muitos textos.
É nesse sentido que, explorando a perspectiva sócio-interacional e dialógica
que atravessa toda a obra de Bakhtin, Faraco (2003, p. 83) pode dizer:

O sujeito tem [...] a possibilidade de singularizar-se e de singularizar seu


discurso não por meio da atualização das virtualidades de um sistema
gramatical (como quer a estilística tradicional), ou da expressão de uma
subjetividade pré-social (como querem os idealistas), mas na interação
viva com as vozes sociais.

542 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006


Furlanetto

A interação com as vozes sociais presume, para o exercício da autoria, uma


intensa circulação que definirá, em algum momento e sempre como algo a renovar,
uma identificação autoral. É ainda Faraco quem afirma que “autorar”, entre outras
possibilidades, é “assumir uma posição estratégica no contexto da circulação e da
guerra das vozes sociais” (FARACO, 2003, p. 83).

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Recebido em 20/01/06. Aprovado em 16/06/06.

Title: Argumentation and subjectivity in genre: the role of the topoi


Author: Maria Marta Furlanetto
Abstract: When a school teacher ask their students to write a “composition”, the students are
expected to present a problem and their points of view, and to develop a line of argumentation that
leads to a satisfactory answer to the problem. However, it is also expected that the student should be
impersonal. In this article I argue, from a discursive perspective, that writing always implies a choice
which directs the writer’s interpretation, and that this choice depends on the use of certain operators.
I then focus on the conflict between being impersonal and defending a point of view (opinion) –
contrasting the model of school composition and the dialogic characterization of Bakhtin’s concept
of genre, and the resulting effects on both cases, in the hope of presenting a teaching alternative.
Keywords: argumentation; genre; writing; subjectivity.

Tìtre: Argumentation et subjectivité dans le genre: le rôle des topoi


Auteur: Maria Marta Furlanetto
Résumé: Quand on propose une «dissertation» à l’école, on attend que l’étudiant présente un
problème et des points de vue, tout en argumentant pour donner une réponse satisfaisante au
problème. On exige qu’il soit, cependant, impersonnel. J’essaie de démontrer, du point de vue
discursif, qu’il y a toujours dans la production textuelle un choix qui conduit l’interprétation de

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Argumentação e subjetividade no gênero ...

l’interlocuteur, se faisant important, ainsi, l’emploi de certains opérateurs. Je fais ressortir, alors, le
conflit entre être impersonnel et défendre un point de vue (opinion) – tout en cherchant à mettre
en contraste le modèle de la dissertation écolière et la carctérisation dialogique du concept de
genre chez Bakhtin, et les effets qui en résultent dans un cas comme dans l’autre, ayant le but
d’offrir une alternative d’enseignement.
Mots-clés: argumentation; genre; production textuelle; subjectivité.

Título: Argumentación y subjetividad en el género: el papel de los topoi


Autor: Maria Marta Furlanetto
Resumen: Cuando se propone una “disertación” en la escuela se espera que el estudiante presente
un problema y puntos de vistas, argumentando para dar una respuesta satisfactoria al problema. Se
exige, sin embargo, impersonalidad. Intento demostrar, desde del punto de vista discursivo, que
siempre hay en la producción textual una elección para direccionar la interpretación del interlocutor,
siendo relevante, para ello, el uso de determindados operadores. Luego, focalizo el conflicto entre
ser impersonal y defender un punto de vista (opinión) – poniendo en contraste el modelo de la
disertación escolar y la caracterización dialógica del concepto de género en Bajtín, y los efectos
resultantes en un caso y en el otro, visando una alternativa de enseñanza.
Palabras-clave: argumentación; género; producción textual; subjetividad.

546 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 519-546, set./dez. 2006


Machado e Cristovão

A CONSTRUÇÃO DE MODELOS DIDÁTICOS DE GÊNEROS:


APORTES E QUESTIONAMENTOS PARA O ENSINO DE
GÊNEROS
Anna Rachel Machado*
Vera Lúcia Lopes Cristovão**

Resumo: O objetivo central do artigo é o de traçar um quadro ilustrativo de pesquisas brasileiras


desenvolvidas para a construção de “modelos didáticos de gêneros”, de suas respectivas seqüências
didáticas e de trabalhos didáticos de intervenção desenvolvidos nessa perspectiva. Entretanto, limitar-
nos-emos às que assumem a perspectiva do interacionismo sociodiscursivo (ISD), desenvolvidas
no Programa de Estudos Pós-graduados em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL/
PUCSP), mas, sobretudo, às que foram desenvolvidas e/ou orientadas por Machado e às que,
posteriormente, foram desenvolvidos de forma autônoma por diferentes pesquisadores. Nesse
levantamento, mostraremos a validade da utilização dos pressupostos teórico-metodológicos do
ISD que foram assumidos por esses pesquisadores, quais foram os gêneros trabalhados, os diferentes
objetivos perseguidos, as conclusões teóricas, metodológicas e/ou didáticas a que eles conseguiram
chegar e as questões que ainda deixam em aberto.
Palavras-chave: interacionismo sociodiscursivo; gênero textual; modelo didático; seqüência
didática; pesquisa educacional.

L’ISD se conçoit comme un cadre de référence en permanence en


chantier, [...] un projet qui se construit collectivement...
(BRONCKART, J.-P., 2004)

1 INTRODUÇÃO

O objetivo central que temos neste artigo é o de traçar um quadro ilustrativo


de algumas das pesquisas brasileiras e os trabalhos didáticos desenvolvidas no quadro
do interacionismo sociodiscursivo, inicialmente no LAEL – PUC/SP – foco pioneiro
da introdução dessa abordagem no Brasil, desde o início da década de 90. Serão
enfocados especificamente os que foram desenvolvidos para a construção de “modelos
didáticos de gêneros”, de suas respectivas seqüências didáticas e de outras formas

* Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutora em Lingüística Aplicada.


** Professora da Universidade Estadual de Londrina. Doutora em Lingüística Aplicada.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006 547


A construção de modelos didáticos de gêneros...

de intervenção no ensino com base nesses modelos. De acordo com Machado (2005),
esses estudos começaram com mais força nesse Programa, por volta de 1995
(portanto, antes da edição dos PCN, em 1998), com pesquisas desenvolvidas por
Rojo, Magalhães e Machado, mesmo que com diferenças de abordagem e de objetivos.
A partir daí, expandiram-se para diversos outros núcleos de pesquisa e de intervenção
didática, sobretudo após a edição dos PCN, o que lhes conferiu maior legitimidade e
valorização no interior de nossa comunidade científica, quer seja pela adesão aos
princípios que os guiam quer seja pela oposição a eles.
Entretanto, neste artigo, limitar-nos-emos ao levantamento de pesquisas
inicialmente desenvolvidas e/ou orientadas por Machado1 e, posteriormente, de forma
autônoma, por diferentes pesquisadores que seguiram a mesma orientação em
núcleos espalhados pelo Brasil. Esses estudos, em geral, têm-se caracterizado por
investigar diferentes gêneros em grande variedade de contextos sociais, tendo como
ponto comum a sua característica intervencionista, no seu sentido mais amplo2 e,
em especial, no campo do ensino de línguas. Uma outra característica comum é o
fato de tomarem aportes desenvolvidos sobretudo por Dolz e Schneuwly (1998), no
quadro da Didática de Línguas e da intervenção direta na educação suíça, em estreita
relação com a reflexão teórico-metodológica de Bronckart (1999 e ss.) sobre as
questões referentes ao desenvolvimento humano e sobre o papel da linguagem nesse
desenvolvimento.
Para atingirmos nosso objetivo, o artigo apresenta a seguinte configuração:
em primeiro lugar, apresentamos os pressupostos teóricos mais amplos do ISD
que orientaram as pesquisas e os pressupostos propriamente didáticos sobre o
ensino de gêneros. Em segundo lugar, discutiremos os problemas que a
transposição didática de qualquer objeto de conhecimento científico pode nos
trazer. Em terceiro, enfocaremos a questão da necessidade da construção de
modelos didáticos de gênero para a transposição adequada do conceito de gênero
para o ensino, os fundamentos que guiam essa construção e os passos que seguimos
para chegar a ela. Em quarto lugar, apresentaremos as pesquisas e as intervenções
didáticas que têm-se desenvolvido, mostrando sua relevância e originalidade em

1
Para um levantamento mais exaustivo, teríamos de desenvolver uma pesquisa muito mais ampla, que poderá ser
efetivada em outro momento.
2
Consideramos que elas se caracterizam por serem “intervencionistas” em um sentido mais amplo, uma vez que
não necessariamente elas estiveram direcionadas por uma intervenção direta nas escolas, mas como um trabalho
preparatório para possíveis intervenções.

548 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006


Machado e Cristovão

relação aos que foram desenvolvidos pelo Grupo de Genebra. Finalmente, nas
conclusões gerais, apontaremos os aportes dessa abordagem e os problemas que
ainda deixam em aberto.

2 O INTERACIONISMO SOCIODISCURSIVO E O ENSINO DE LÍNGUAS


CENTRADO NOS GÊNEROS TEXTUAIS

O interacionismo sociodiscursivo baseia-se em, integra e desenvolve a teoria


psicológica de Vygotsky, assumindo e defendendo cinco princípios básicos
(BRONCKART, 2005), que, resumidamente, são os seguintes:

a) as ciências humanas teriam como objeto as condições de


desenvolvimento e funcionamento das condutas humanas;

b) todos os processos de desenvolvimento humano se efetivariam com


base nos pré-construídos humanos, isto é, nas diferentes construções sociais
já existentes em uma determinada sociedade;

c) o desenvolvimento humano se efetuaria no quadro do agir, isto é, todos


os conhecimentos construídos são sempre produtos de um agir que se
realiza em determinado quadro social;

d) os processos de construção dos fatos sociais e os processos de formação


das pessoas individuais seriam duas vertentes complementares e
indissociáveis do mesmo desenvolvimento humano;

e) a linguagem desempenharia um papel fundamental e indispensável no


desenvolvimento, considerando-se que é por meio dela que se constrói
uma “memória” dos pré-construídos sociais e que é ela que organiza,
comenta e regula o agir e as interações humanas, no quadro das quais são
re-produzidos ou re-elaborados os fatos sociais e os fatos psicológicos.

Defendendo esses princípios de base, Bronckart (2004) enumera uma série


de objetos de pesquisa que deveriam ser considerados e caracterizados pelos estudos
do ISD, constituindo-se assim um verdadeiro programa de pesquisa para os
pesquisadores que assumem essa abordagem. Esses objetos seriam os seguintes:

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006 549


A construção de modelos didáticos de gêneros...

a) os pré-construídos sociais, dentre os quais teríamos as atividades sociais,


as formações sociais, as línguas naturais e os gêneros de uma determinada
sociedade;
b) as características dos sistemas educacionais e formativos,
institucionalizados ou não, que permitem a transmissão dos pré-construídos
sociais às novas gerações;

c) os mecanismos de apropriação e de interiorização por meio dos quais


os indivíduos constroem seus conhecimentos e sua identidade como pessoa.

Em relação aos gêneros de texto, Bronckart (2003) considera, como inúmeros


outros autores, que todo indivíduo de uma determinada comunidade lingüística, ao
agir com a linguagem, é confrontado permanentemente com um universo de textos
pré-existentes, organizados em “gêneros”, que se encontram sempre em um processo
de permanente modificação e que são em número teoricamente ilimitado. Desde o
momento do nascimento, a exposição contínua aos gêneros vai construindo nos
leitores e nos produtores um conhecimento intuitivo das regras e das propriedades
específicas de diferentes gêneros, mesmo que de forma não consciente ou sistemática.
Essas regras e propriedades acabam por ser apropriadas e, como em todos os
processos de aprendizagem social, acabam por sofrer modificações contínuas,
conforme Bakhtin (1992) assinala, quando define os gêneros como “formas
relativamente estáveis de enunciados”. Desse modo, estando em permanente
modificação, derivada não só das transformações das atividades sociais, mas também
das transformações introduzidas pelos próprios produtores, é só de um ponto de
vista teórico que podemos falar em “modelos de gênero”.
Por seu lado, trabalhando mais intensamente nas questões da Didática de
Línguas, Schneuwly (1994) mobilizou a noção de gênero para seus objetivos de
pesquisa, fornecendo-nos uma das concepções mais vigorosas para a questão do
ensino-aprendizagem de gêneros e para a elaboração de materiais didáticos
adequados. Em primeiro lugar, o autor nos relembra que, no quadro da epistemologia
marxista, que é assumida pelo grupo de Genebra, a atividade humana é concebida
como sendo constituída por três pólos, envolvendo um sujeito que age sobre objetos
ou situações, utilizando-se de objetos específicos, sócio-historicamente elaborados,
que se constituem como ferramentas para o agir. Essas ferramentas determinariam
o comportamento do indivíduo, guiando, aperfeiçoando e diferenciando sua
percepção da situação em que se encontra e dos objetos sobre os quais atua. Em

550 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006


Machado e Cristovão

segundo lugar, o mesmo autor estabelece uma analogia entre o uso dos instrumentos
materiais nas atividades não verbais com os gêneros textuais, defendendo a tese de
que esses gêneros se constituem como verdadeiras ferramentas semióticas
complexas que mediatizam a ação de linguagem, permitindo a produção e a
compreensão de textos.
Na verdade, conforme mencionado pelo autor, ele parte dos estudos
desenvolvidos por Rabardel (1993) sobre “a gênese instrumental”. Partindo também
desse último autor, Clot (1999) assinala que a sociedade sempre disponibiliza um
conjunto de artefatos sócio-historicamente construídos, materiais ou simbólicos,
que, se apropriados pelo indivíduo por si e para si, se constituem em verdadeiros
instrumentos para seu agir3. Assim, de nosso lado, concluímos que os gêneros de
texto se constituem como artefatos simbólicos que se encontram à disposição dos
sujeitos de uma determinada sociedade, mas que só poderão ser considerados como
verdadeiras ferramentas/instrumentos para seu agir, quando esses sujeitos se
apropriam deles, por si mesmos, considerando-os úteis para seu agir com a
linguagem. Portanto, podemos pensar que, no ensino de gêneros, se os aprendizes
não sentirem necessidade de um determinado gênero para seu agir verbal, haverá
muito maior dificuldade para sua apropriação.
Ainda segundo Schneuwly (1994), no processo de desenvolvimento dos
indivíduos, sua participação em diferentes atividades sociais vai lhes possibilitando a
construção de conhecimentos sobre os gêneros e sobre os esquemas para sua
utilização. Entretanto, se os gêneros mais informais vão sendo apropriados no decorrer
das atividades cotidianas, sem necessidade de ensino formal, os gêneros mais formais,
orais ou escritos, necessitariam ser aprendidos mais sistematicamente, sendo seu
ensino uma responsabilidade da escola, que teria a função de propiciar o contato, o
estudo e o domínio de diferentes gêneros usados na sociedade.
Entretanto, conforme aponta Bronckart (2003), a diversidade teoricamente
ilimitada dos gêneros e a variabilidade de sua manifestação concreta nos textos
introduz um problema de ordem metodológica, que é o da definição particular de
cada um deles, de sua classificação e da identificação de suas características centrais.
Para o autor, estamos sempre diante de uma certa circularidade metodológica
inevitável, uma vez que, para conceituar os gêneros, devemos primeiro ter algum
conhecimento sobre o que eles são. Mesmo assim, seria possível efetuar um estudo

3
Por exemplo, em uma fábrica, instrumentos materiais disponibilizados podem ser considerados inúteis pelo
trabalhador, que não se apropriará deles facilmente.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006 551


A construção de modelos didáticos de gêneros...

dessas características a partir de um conjunto de textos intuitivamente classificados


em gêneros diferentes, levantando suas características e construindo “modelos” que
os caracterizariam. A comparação de diferentes modelos poderia nos fornecer pistas
para encontrarmos semelhanças e/ou diferenças que podemos não perceber de início,
o que nos levaria a reformular os “modelos de gêneros” ou os “gêneros teóricos”
inicialmente construídos.
Nessa mesma linha de raciocínio, em relação ao ensino de gêneros, seria
necessário construirmos materiais didáticos adequados, que propiciassem a
transposição didática dos conhecimentos científicos sobre os gêneros para o nível dos
conhecimentos a serem efetivamente ensinados, de acordo com o nível das capacidades
dos alunos, isto é, que efetivássemos uma transposição didática adequada, cujos
problemas abordaremos a seguir, apontando uma possível via para sua superação.

3 PROBLEMAS DA TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA E A EMERGÊNCIA DAS


SEQÜÊNCIAS DIDÁTICAS COMO FORMA DE SUPERÁ-LOS

Segundo os pesquisadores de didática de disciplinas escolares, corrente


conhecida como “Escola de Didática” francesa, de cujas reflexões o grupo de Genebra
também se serve e reelabora (BRONCKART; PLAZAOLLA GIGER, 1998), o termo
transposição didática não deve ser compreendido como a simples aplicação de
uma teoria científica qualquer ao ensino, mas como o conjunto das transformações
que um determinado conjunto de conhecimentos necessariamente sofre, quando
temos o objetivo de ensiná-lo, trazendo sempre deslocamentos, rupturas e
transformações diversas a esses conhecimentos.
Em um primeiro momento, podemos considerar que há três níveis básicos
nessas transformações: no primeiro, temos o “conhecimento científico” propriamente
dito, que sofre um primeiro processo de transformação para constituir o
“conhecimento a ser ensinado”, que, finalmente, ainda se transforma em
“conhecimento efetivamente ensinado” e que, inevitavelmente ainda se constituirá
em “conhecimento efetivamente aprendido”. A nosso ver, pesquisas voltadas para o
estudo da transposição didática poderiam ainda detectar outros sub-níveis
entremeados a esses três níveis básicos.
Aplicando essas concepções à transposição didática da noção de gênero,
podemos dizer que, desde os PCN de LP de quinta a oitava série, nos defrontamos
com o primeiro nível de transposição. Nesse primeiro nível, na passagem do

552 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006


Machado e Cristovão

conhecimento científico para conhecimento a ser ensinado, uma série de injunções


determina o que, dentre os inúmeros objetos do conhecimento científico, pode ser
considerado como objeto a ser ensinado. A escolha desses objetos sofre um controle
social, que é exercido oficialmente pelas autoridades do ensino e, cientificamente,
pelos especialistas que atuam junto às instituições governamentais, como por exemplo,
aqueles que trabalharam para o MEC na elaboração dos PCN.
De acordo ainda com a teoria da transposição didática, em relação ao ensino
de línguas, já nesse primeiro nível podem surgir alguns problemas. O primeiro deles
diz respeito à própria seleção dos conteúdos a serem ensinados, uma vez que essa
seleção leva em conta, ao mesmo tempo, tanto o conhecimento científico quanto as
práticas sociais de linguagem. O problema é que essas práticas sociais, como qualquer
outro fenômeno, devem ter sido objeto de leitura, de compreensão, de explicação
anterior e, se a construção do conhecimento sobre elas ainda não tiver sido
desenvolvida no campo científico, a sua abordagem no ensino pode ficar submetida
ao senso comum e/ou à ideologia. A nosso ver, esse foi um dos problemas enfrentados
para a consolidação do ensino de gêneros na escola brasileira, uma vez que o
conhecimento sobre esse objeto, se não era incipiente, não era – nem é – consensual
em nossa comunidade científica.
Outro problema que pode surgir a partir desse primeiro nível de transposição
didática é o processo de autonomização de determinados objetos do conhecimento
científico, que, inevitavelmente, são separados da teoria global e da problemática
científica em que surgiram e em que ganham seu sentido específico. Em razão disso,
quando transpostos para serem conhecimentos a serem ensinados, é muito comum
que outras significações lhes sejam atribuídas. Não é de se estranhar, portanto, as
diferentes significações que foram – e ainda são – atribuídas, nos diferentes níveis
de ensino, à noção de gênero de texto ou de discurso.
Além disso, certas noções, que no quadro da ciência de base aparecem com
o estatuto de hipótese ou de proposta de estudo, podem ser apresentadas nos
documentos oficiais de modo assertivo, como verdades absolutas já estabelecidas e
consensualmente aceitas no campo científico em questão. Esse seria o fenômeno
clássico da reificação ou da dogmatização de noções que são selecionadas para o
ensino. Exemplo clássico dessa reificação foi o conceito de esquema narrativo, que,
oriundo dos estudos estruturalistas para a análise dos contos russos, começou a ser
utilizado para qualquer gênero de texto que apresentasse relato de ações, o que nem
sempre, como sabemos, é adequado ou pertinente.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006 553


A construção de modelos didáticos de gêneros...

Outro problema em relação à transposição didática, desde o seu primeiro


nível, é o da compartimentalização dos conteúdos/noções selecionados e o risco de
se chegar a uma incoerência global na proposta oficial. Por exemplo, como sabemos,
atualmente não temos uma teoria de linguagem única, capaz de dar conta de todas
as questões de linguagem ou das línguas no conjunto de seus aspectos. Não temos
um paradigma conceitual estável e consensualmente reconhecido, mas sim, vários
sistemas teóricos em concorrência, estando nosso campo científico cindido em
numerosas subdisciplinas que tratam de objetos limitados a priori (aspectos sociais,
fonológicos, sintáticos, semânticos, pragmáticos, textuais, discursivos etc.). Além
disso, como sabemos, as comissões de especialistas reunidos para a construção de
diretrizes gerais para o trabalho dos professores são constituídas por pesquisadores
com diferentes posicionamentos teóricos e didáticos, o que leva, inevitavelmente, a
soluções de compromisso entre as partes.
De todos esses aspectos, surgem problemas sérios para a transposição
didática: Por exemplo, como desenvolver atividades de reflexão gramatical úteis e
adequadas para a produção textual, sem efetuar uma separação dos conhecimentos
gramaticais dos textuais ou discursivos? O que temos observado, nas diferentes
reformas levadas a cabo, é que aqueles especializados em ensino de línguas têm
sido obrigados, no primeiro nível da transposição, a se servirem de elementos
provenientes de diferentes teorias ou de diferentes subáreas, tentando construir um
mínimo de coerência no próprio campo didático, que, infelizmente, nem sempre
pode ser atingida.
Ora, foi justamente a observação desses problemas e, principalmente, o da
compartimentalização dos conhecimentos no campo do ensino de línguas que levou
os pesquisadores francofones a uma tentativa de sua superação com a construção
do conceito de “seqüência didática”, em 1996, oficialmente assumida nas instruções
oficiais para o ensino de línguas na França. Nesses documentos, a seqüência didática
(SD, de ora em diante) é definida como uma abordagem que unifica os estudos de
discurso e a abordagem dos textos, implicando uma lógica de
descompartimentalização dos conteúdos e das capacidades: elas deveriam englobar
as práticas de escrita, de leitura e as práticas orais, organizadas no quadro de
seqüências didáticas. Observe-se que, nessas instruções para o ensino francês, não
se tratava ainda de “seqüências didáticas de gêneros”, mas sim, de seqüências abertas
a diferentes objetos de conhecimentos.
A SD é ainda considerada como um conjunto de seqüências de atividades
progressivas, planificadas, guiadas ou por um tema, ou por um objetivo geral, ou

554 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006


Machado e Cristovão

por uma produção de texto final. O interesse desse procedimento didático


normalmente é justificado pelas seguintes razões:

- a SD permitiria um trabalho global e integrado;

- na sua construção, considerar-se-ia, obrigatoriamente, tanto os conteúdos


de ensino fixados pelas instruções oficiais quanto os objetivos de
aprendizagem específicos;

- ela contemplaria a necessidade de se trabalhar com atividades e suportes


de exercícios variados;

- ela permitiria integrar as atividades de leitura, de escrita e de conhecimento


da língua, de acordo com um calendário pré-fixado;

- ela facilitaria a construção de programas em continuidade uns com os


outros;

- ela propiciaria a motivação dos alunos, uma vez que permitiria a explicitação
dos objetivos das diferentes atividades e do objetivo geral que as guia.

Em Genebra, segundo Bronckart (2006), as primeiras seqüências didáticas


foram construídas pela Commission pédagogie du texte, em 1985 e 1988. Entretanto,
só na década de 90 é que elas começaram a centrar-se no ensino de gêneros,
sobretudo com trabalhos que visavam ao ensino de gêneros da linguagem escrita; e,
só posteriormente, ao de gêneros formais do oral (DOLZ; SCHNEUWLY, 1998). Essas
seqüências teriam as seguintes características:

- o objeto do trabalho escolar seria a atividade de linguagem relacionada a


um gênero utilizado em uma determinada situação de comunicação;

- o trabalho se faria no interior de um projeto de classe que circunscrevesse


os elementos que caracterizam a situação de comunicação em foco;

- o ponto de partida da seqüência seria constituído, na medida do possível,


da observação das capacidades e das dificuldades dos alunos;

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006 555


A construção de modelos didáticos de gêneros...

- os diferentes componentes que entrariam na atividade de linguagem


relacionada ao gênero em estudo seriam trabalhadas isoladamente, por
meio de atividades diversas, desenvolvendo-se uma metalinguagem sobre
esses componentes e abordando-se o gênero em seus diferentes aspectos
(estrutura, unidades lingüísticas particulares, elementos do conteúdo etc.);

- as diferentes capacidades trabalhadas nas atividades seriam reinvestidas


em uma atividade mais complexa, isto é, na produção de um texto final
pertencente ao gênero, efetuando-se novas observações, análises e a
avaliação dos progressos conseguidos e das dificuldades ainda não
superadas.

Ora, para cumprir toda essa proposta de ensino de gêneros, logo se tornou
evidente, para os pesquisadores de Genebra, a necessidade da elaboração de um
material didático que propusesse atividades constitutivas da seqüência. No Brasil,
após a promulgação dos PCN de língua portuguesa (BRASIL, 1998), que já prevê
esse tipo de estudo e de atividades, a obediência aos Parâmetros também passou a
ser uma exigência para a aprovação dos livros didáticos submetidos à avaliação do
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Assim, nos dois casos, estamos diante
de um subnível da transposição dos conhecimentos científicos a conhecimentos a
serem ensinados, sendo ele talvez o mais importante, pois, no caso brasileiro, as
prescrições dos documentos e o trabalho real do professor são mediados pelos livros
e materiais didáticos. Surge daí a relevância dos trabalhos científicos e didáticos que
visem a efetivar essa transposição.
Ainda em Genebra, para a construção das seqüências didáticas, logo se tornou
evidente a necessidade da construção prévia de um “modelo didático de gênero”, que
pudesse guiar a elaboração das atividades das SDs, tal como mostraremos a seguir.

4 A NECESSÁRIA CONSTRUÇÃO DO MODELO DIDÁTICO DE GÊNERO

De acordo com os pesquisadores do Grupo de Genebra, para que os objetivos


de ensino-aprendizagem de gêneros possam ser atingidos, as práticas escolares de
produção textual devem ser norteadas pelo que chamam de modelo didático do
gênero a ser ensinado, isto é, por “um objeto descritivo e operacional, construído
para apreender o fenômeno complexo da aprendizagem de um gênero” (DE PIETRO
et al., 1996/1997, p. 108). A construção desse modelo de gênero permitiria a

556 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006


Machado e Cristovão

visualização das dimensões constitutivas do gênero e seleção das que podem ser
ensinadas e das que são necessárias para um determinado nível de ensino.
Segundo os mesmos autores, tendo objetivos explicitamente didáticos e sendo
a transposição didática um processo com determinadas características que não podem
ser evitadas, a construção desses “modelos” não precisa ser teoricamente perfeita e
“pura”4, abrindo-se a possibilidade da utilização de referências teóricas diversas, de
diferentes estudos sobre o gênero a ser ensinado, além de referências obtidas por
meio da observação e da análise de práticas sociais que envolvem o gênero, junto a
especialistas na sua produção.
Além de levar em conta todas essas referências, a construção do modelo
didático implica a análise de um conjunto de textos que se considera como
pertencentes ao gênero, considerando-se, no mínimo, os seguintes elementos:

a) as características da situação de produção (quem é o emissor, em que


papel social se encontra, a quem se dirige, em que papel se encontra o
receptor, em que local é produzido, em qual instituição social se produz e
circula, em que momento, em qual suporte, com qual objetivo, em que
tipo de linguagem, qual é a atividade não verbal a que se relaciona, qual o
valor social que lhe é atribuído etc.);

b) os conteúdos típicos do gênero;

c) as diferentes formas de mobilizar esses conteúdos;

d) a construção composicional característica do gênero, ou seja, o plano


global mais comum que organiza seus conteúdos;

e) o seu estilo particular, ou, em outras palavras:


- as configurações específicas de unidades de linguagem que se constituem
como traços da posição enunciativa do enunciador: (presença/ausência
de pronomes pessoais de primeira e segunda pessoa, dêiticos, tempos
verbais, modalizadores, inserção de vozes);

4
Nesse sentido, podemos dizer que os modelos didáticos podem apresentar falhas ou lacunas, quando vistos do
ponto de vista de uma teoria de texto ou discurso qualquer. Mas, na verdade, os pesquisadores que se envolvem
na sua construção não estão preocupados em esperar a construção científica ideal, pois têm uma preocupação
social imediata, que é a de trazer subsídios para o trabalho docente e para a aprendizagem.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006 557


A construção de modelos didáticos de gêneros...

- as seqüências textuais e os tipos de discurso predominantes e subordinados


que caracterizam o gênero;
- as características dos mecanismos de coesão nominal e verbal;
- as características dos mecanismos de conexão;
- as características dos períodos;
- as características lexicais.

Em relação a essas categorias de análise, queremos observar, em primeiro


lugar, que elas se encontram delineadas no modelo de produção de texto exposto
por Bronckart (1999). Em segundo lugar, salientamos que essa análise não pode
ser enquadrada nos limites de uma análise textual estrutural. Todos os níveis textuais
que elencamos devem ser vistos em seu valor dialógico, como traços não só do agir
do produtor, mas das restrições genéricas relacionadas às atividades e às interações
no quadro das quais esse agir se realiza. Em terceiro lugar, queremos deixar claro
que nossa enumeração dos elementos a serem analisados não é ser exaustiva nem
rígida. Admitimos que, no próprio decorrer da análise, ao encontrarmos outros
elementos que sejam fundamentais para a caracterização de um determinado gênero,
eles têm de ser necessariamente considerados. Finalmente, não consideramos que
devamos nos ater apenas ao que a teoria de linguagem do ISD nos propõe via seus
autores principais, mas que conceitos de outras teorias, que sejam compatíveis, podem
e devem ser incorporados nessa análise, assim como nós mesmos nos outorgamos o
direito de criar novos conceitos, quando isso se faz necessário. Em suma, o que
queremos dizer é que não admitimos que os dados concretos sejam “ajustados”
para que caibam dentro do modelo de análise.
Sintetizando essa seção, afirmamos que, para a construção de um modelo
didático do gênero, deve-se conhecer o estado da arte dos estudos sobre esse gênero;
as capacidades e as dificuldades dos alunos ao trabalharem com textos pertencentes
ao gênero selecionado, as experiências de ensino/aprendizagem desse gênero, assim
como as prescrições presentes nos documentos oficiais sobre o trabalho docente
(DOLZ; SCHNEUWLY, 1998). Esses pontos nos ajudariam a definir o tipo de
intervenção didática a ser desenvolvida e a construir o modelo, com a definição dos
objetivos de ensino do gênero adaptados ao nível dos alunos e a organização das
categorias que serão exploradas em uma determinada seqüência didática.
Assim, essas seqüências serão guiadas por um número limitado e preciso de
objetivos e serão constituídas por um conjunto de atividades organizadas em um
projeto global de apropriação de algumas das dimensões constitutivas de um gênero,

558 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006


Machado e Cristovão

de acordo com o nível dos aprendizes. Finalmente, as próprias atividades efetivamente


desenvolvidas poderão exigir um retorno ao modelo didático para modificá-lo no
que for necessário, considerando-se, assim, que esse modelo jamais é definitivo,
mas sim, que se encontra em um processo contínuo de transformação.

5 OS MODELOS DIDÁTICOS DE GÊNEROS EM PESQUISAS E


TRABALHOS DIDÁTICOS

Conforme exposto na seção acima, o grupo de Genebra elaborou a noção de


“modelo didático de gênero” e os procedimentos destinados à sua construção,
objetivando subsidiar o ensino de língua materna e o aprendizado do aluno por
meio de atividades destinadas ao desenvolvimento das capacidades necessárias para
a produção de textos pertencentes a diferentes gêneros. Já nas pesquisas e atividades
didáticas desenvolvidas por nosso grupo, a utilização dessa noção e os objetivos que
nortearam a construção de modelos didáticos de gênero foram muito além do objetivo
de desenvolver as capacidades de produção textual em língua materna, conforme
veremos nas duas próximas seções.

5.1 Pesquisas desenvolvidas pelo grupo


A primeira pesquisa que foi desenvolvida, no quadro do ISD, foi a tese de
doutorado de Machado, em 1995, posteriormente publicada em livro (MACHADO,
1998). Embora a autora não tenha trabalhado explicitamente com a construção de um
modelo didático de gênero, mas sim, avaliado uma experiência didática realizada para
o desenvolvimento das capacidades de leitura de alunos universitários, a noção de
gênero e o levantamento das características do gênero “diário de leituras”, a partir dos
próprios textos dos alunos, abriu caminho para outras pesquisas mais diretamente
baseadas na noção de modelo didático. Depois dessa primeira publicação e, sobretudo
com a publicação dos PCN de Língua Portuguesa, as pesquisas do grupo se multiplicaram
em diferentes direções, podendo elas ser divididas em três grandes tipos.
No primeiro tipo, encontramos todas as pesquisas que mostram claramente a
necessidade da construção de modelos didáticos de gêneros, não só para o ensino de
produção textual, mas também para atingir outros objetivos, tal como elencamos a seguir:

a) para a construção de SD para o ensino de produção textual em LP


(dentre outros, MACHADO, LOUSADA; TARDELLI, 2004a e 2004b;) e de
SD para leitura em LE (CRISTOVÃO, 2005b; CRISTOVÃO et al., prelo);

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006 559


A construção de modelos didáticos de gêneros...

b) para a avaliação de SD para ensino de produção textual em LP


(MACHADO, 2001) e para ensino de leitura em LE (CRISTOVÃO, 2002a;
FREITAS, 2003);
c) para a avaliação de experiências didáticas e do desenvolvimento de
capacidades de linguagem durante o processo de letramento inicial (SOUZA,
2003);

d) para a análise do nível de capacidades de linguagem do aluno em


produção textual (MACHADO, 2003);

e) para a formação inicial e continuada de professores (dentre outros,


MACHADO; MAGALHÃES, 2002; CRISTOVÃO, 2002b e 2005a).

No segundo tipo, encontramos pesquisas que buscaram contribuir, de


diferentes formas, para a elaboração posterior do modelo didático de um determinado
gênero e de seqüências didáticas voltadas sobretudo para o desenvolvimento das
capacidades de leitura. Para isso:

a) desenvolveram uma descrição global do gênero estudado (dentre outros,


COELHO, 2003; CRISTOVÃO, 2002c; POMPÍLIO, 2002);

b) analisaram um aspecto mais típico de um determinado gênero (dentre


outros, MUNIZ-OLIVEIRA, 2005);

c) analisaram diferentes tipos de textos utilizados nas escolas, em diferentes


disciplinas (LUCA, 2000).

Finalmente, no terceiro tipo de estudos, o objetivo foi a explicitação do quadro


teórico que guia a construção de nossos modelos didáticos e nossa própria posição
sobre esse quadro e sua utilização no ensino de línguas, como se pode ver, por
exemplo, no artigo de Machado ( 2005).

5.1.1 Características mais específicas das pesquisas


Nas pesquisas desenvolvidos para a construção de SDs para o ensino de
produção textual e compreensão, os modelos didáticos de gêneros constituíram-se

560 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006


Machado e Cristovão

como o fundamento para a seleção de objetos de ensino e das operações de linguagem


a serem desenvolvidas que pudessem efetivamente contribuir para os objetivos
estabelecidos.
Já os estudos desenvolvidos para a construção de modelo didático de um
determinado gênero para a avaliação de seqüências didáticas se dividem em dois
grandes subgrupos. No primeiro, encontramos o de Machado (2001), em que a
autora apresenta essa construção como necessária para a descrição e a avaliação de
materiais didáticos voltados para o ensino de produção textual em LP, apresentando,
como exemplo, a avaliação de uma SD para o ensino da resenha crítica. A autora
defende que as atividades propostas por um determinado material didático destinado
ao ensino de um gênero podem ser analisadas e avaliadas de acordo com as
capacidades de linguagem que essas atividades permitem desenvolver: ou as
capacidades de ação, ou as discursivas e/ou as lingüístico-discursivas. Para isso, as
diferentes atividades propostas são analisadas, verificando-se que tipo de capacidade
cada uma delas pode desenvolver nos alunos, o que seria possível a partir do modelo
didático do gênero em questão. Segundo a autora, o material adequado seria aquele
que trabalhasse, pelo menos em parte, com todas as capacidades, de forma integrada.
Assim, o uso do modelo didático como instrumento de avaliação dos materiais
permitiria maior reflexão sobre eles e também uma melhor orientação para a
formação inicial e continuada de professores, já que forneceria critérios para a
seleção, a elaboração e a adaptação do material didático em função das reais
necessidades do contexto em que serão utilizados. Fica evidente a originalidade desse
trabalho em relação aos trabalhos desenvolvidos pelo grupo de Genebra e de outros
que se desenvolvem sobre a avaliação de material didático, uma vez que, em relação
aos primeiros, amplia-se a utilização do modelo didático para o campo da avaliação
do material didático e, em relação aos segundos, fornece um novo instrumento
objetivo e coerente para a avaliação.
Nessa mesma linha de pensamento e de objetivos, a pesquisa de doutorado
de Cristovão (2002a) foi totalmente inédita e inovadora, no sentido de que, pela
primeira vez, buscou-se utilizar os pressupostos teóricos e didáticos do interacionismo
sociodiscursivo para o ensino-aprendizado de LE, e especificamente para o ensino
de leitura. Esse trabalho teve como objetivo defender o uso dos modelos didáticos de
gêneros como um instrumento de avaliação mais amplo para materiais didáticos em
geral que visem ao ensino de leitura em LE.
Outros objetivos mais específicos foram os seguintes: a) apresentar uma
concepção de ensino de leitura que esteja de acordo com os princípios gerais do

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006 561


A construção de modelos didáticos de gêneros...

ISD; b) demonstrar que, de acordo com essa concepção, os materiais didáticos


destinados ao ensino de leitura em LE podem ser construídos em torno da noção de
gênero objetivando o desenvolvimento de capacidades de linguagem; c) demonstrar
que a descrição das características a serem ensinadas do gênero a ser trabalhado
com os alunos permite avaliar a pertinência dos conteúdos e as capacidades de
linguagem que podem ser desenvolvidas; d) aplicar os princípios de ensino de leitura
na visão do ISD como critérios que permitam avaliar a proposta de prática pedagógica
subjacente aos materiais didáticos.
As contribuições trazidas por essa pesquisa foram de ordem prática, teórica
e metodológica. Em relação às de ordem prática, Cristovão demonstrou a possibilidade
de organizar o ensino de LE com base em gêneros de texto como instrumentos que
constituem nossas ações de linguagem. Do ponto de vista teórico, a autora desenvolveu
um decálogo para o ensino de leitura em LE, cujos “mandamentos” podem ser
seguidos com sucesso como princípios gerais para as atividades em aulas de leitura.
Finalmente, como contribuição metodológica, a autora corroborou outras pesquisas
do grupo que acentuaram a validade do uso dos modelos didáticos de gêneros como
instrumento para a avaliação de material didático.
Assim como na pesquisa supracitada, Freitas (2003) utilizou modelos
didáticos como instrumento de avaliação/produção de materiais didáticos para o
ensino leitura de textos em português como Língua Estrangeira para refugiados de
guerra no Brasil, tendo, portanto, um grande valor de ordem social, dadas a
necessidade de integração social desses refugiados, para a qual o uso efetivo da
linguagem é fundamental. O objetivo da pesquisa foi o de não só analisar, mas também
propor a reformulação de um material didático baseado em gêneros – no caso
alguns gêneros do falar de si em situação de trabalho (entrevista de emprego e
currículo), absolutamente necessários para esses imigrados. Já os objetivos
específicos foram os seguintes: a) levantar algumas das características centrais dos
gêneros entrevista de emprego e currículo; b) caracterizar as capacidades de
linguagem que podem e devem ser desenvolvidas para o falar de si mesmo em LE,
utilizando esses gêneros; c) a partir desse levantamento e dessa caracterização, efetuar
uma análise avaliativa mais consistente sobre a seqüência didática inicial e sugerir
modificações para um trabalho efetivo voltado para o desenvolvimento da capacidade
de “falar de si mesmo” em situações públicas como essas. Ao final da pesquisa,
Freitas (2003) também concluiu que o modelo didático se configura como sendo
fundamental para a elaboração/análise de materiais didáticos baseados em gêneros.

562 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006


Machado e Cristovão

Já os trabalhos desenvolvidos para a análise e avaliação de uma experiência


didática para o letramento inicial têm o seu melhor exemplo na pesquisa para tese
de doutorado de Souza, que foi extremamente inovadora. O método de análise de
textos de Bronckart (1999) foi utilizado para a análise dos textos produzidos pelas
crianças, que a pesquisadora acompanhou durante dois anos. Foram examinadas as
diferentes situações de produção dos textos e o desenvolvimento da produção de
textos de opinião em suas dimensões argumentativas e lingüístico-discursivas, no
decorrer da experiência didática. Outra grande contribuição inovadora foi a
demonstração de que o letramento inicial pode perfeitamente ser desenvolvido, sem
que o professor se limite a trabalhar com os gêneros de texto que são tradicionalmente
utilizados na educação infantil, os gêneros da ordem do narrar. A experiência didática
levada a cabo por Souza centrou-se em gêneros do eixo do argumentar, com a
utilização de textos e situações reais do cotidiano das crianças, o que as levou a um
desenvolvimento excepcional, não só de suas capacidades de linguagem, mas também
de suas capacidades críticas diante dos textos e dos fatos. O valor dessa tese logo foi
reconhecido por pesquisadores da área, o que levou à sua rápida publicação (SOUZA,
2003). Prosseguindo nessa mesma linha de pesquisa, a autora continua desenvolvendo
diferentes experiências didáticas voltadas para o letramento escolar inicial, relatando
e avaliando novas experiências de ensino-aprendizagem de novos gêneros de texto,
confirmando continuamente a validade de sua abordagem.
Em relação às pesquisas que se voltaram para a análise do nível de capacidades
de linguagem do aluno em produção textual com a utilização de um modelo didático
de gênero, podemos dar como exemplo o trabalho de Machado (2003), que nos
demonstra essa possibilidade por meio da análise de resenhas produzidas por alunos
universitários.
Quanto à utilização da noção de modelo didático de gênero nos processos
de formação inicial e continuada de professores, temos como exemplo o estudo
desenvolvido por Machado (2000) e por Cristovão (2002b e 2005b). O primeiro
consistiu na análise de um trabalho de formação continuada, desenvolvido junto a
professores universitários de Língua Portuguesa, no qual a construção de modelos
didáticos do gênero artigo de opinião e do gênero resenha crítica e de seqüências
didáticas correspondentes ocuparam o centro das atividades de formação. Em um
primeiro momento, a pesquisadora e os professores discutiram os pressupostos
teóricos que guiam essa construção e modelos e seqüências foram construídas
conjuntamente. Em um segundo momento, Machado atuou mais como leitora e

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006 563


A construção de modelos didáticos de gêneros...

comentadora dos materiais produzidos pelos próprios professores, que adaptaram


as seqüências iniciais aos diferentes cursos em que ministravam aulas.
Por sua vez, voltada para formação inicial de professores de inglês, Cristovão
(2002b) desenvolveu uma investigação enfocando a necessidade de se criarem
instrumentos que ajudem o professor a ampliar, aperfeiçoar e adaptar seus
conhecimentos em seu desenvolvimento, de forma reflexiva e crítica. Passo
fundamental para essa pesquisa é a discussão sobre o uso de modelos didáticos de
gêneros como instrumento para a formação inicial de professores. Os resultados da
análise dos dados apontam que os alunos (futuros professores de inglês como língua
estrangeira) foram beneficiados por meio do estudo de gênero como um instrumento
para a reflexão, reforçando a posição de que uma abordagem baseada no estudo
dos gêneros é adequado à formação inicial. Já para a formação continuada de
professores, Cristovão (2005b) desenvolve uma experiência de coordenação de um
projeto de extensão com a participação de professores de inglês da rede pública de
ensino e de alunos do curso de Letras para a elaboração de seqüências didáticas em
torno de gêneros textuais para a Educação Básica. Além de pesquisarem para a
produção dos materiais (grupos de estudo de textos teóricos e prescritivos,
estabelecimento de objetivos, seleção de conteúdos, escolha de textos, análise do
contexto, levantamento das características dos gêneros selecionados), os professores
envolvidos têm desenvolvido atividades de pesquisa-ação. Quase todos já apresentaram
comunicações em evento(s) e se envolveram com congressos, cursos (de extensão
e/ou de especialização) e Programa de Pós-Graduação.
No segundo grupo de pesquisas, encontramos, em primeiro lugar, as que se voltam
para a descrição global de um determinado gênero, como é o caso da de Machado
(2002); de Cristovão (2002 c); de Pompílio (2002) e de Coelho (2003). A primeira, a de
Machado (2002), voltou-se para a análise do gênero resumo, distinguindo esse gênero
de segmentos de textos em que também se efetiva um processo de sumarização, mas que
não podem ser definidos como gênero resumo propriamente dito. A autora discute e
reinterpreta as regras de redução de informação tal como já foram propostas e analisa
corpora de resumos publicados em diferentes veículos de comunicação. Finalmente, a
autora conclui que, quando os resumos se constituem como textos autônomos, eles podem
ser considerados como pertencentes a um gênero e não quando estão inseridos em outro
gênero (resenhas, contracapas e reportagens, por exemplo).
Já Cristovão (2002c) desenvolveu uma descrição do gênero quarta capa de
livro em inglês e aponta algumas sugestões didáticas para seu ensino. Nesse artigo, a
autora chama a atenção para a questão de que, uma vez contempladas as

564 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006


Machado e Cristovão

características típicas dos textos pertencentes a um gênero tomado como instrumento


de ensino em sala de aula de língua, mais condições e possibilidades podemos
fornecer ao aluno para que ele se constitua como um cidadão consciente e crítico.
Pompílio (2002), por sua vez, voltou-se para a caracterização do gênero
cartas de leitor, o que lhe permitiu identificar a complexidade da situação de produção
dessas cartas e a variabilidade textual dela decorrente.
Finalmente, Coelho (2003), em sua tese de doutorado, se voltou para a
caracterização do que costumeiramente chamamos de lendas e, mais especificamente,
de lendas da Amazônia. Do ponto de vista teórico-metodológico, a relevância desse
trabalho se deve ao fato de que, partindo de um conjunto de textos considerados como
lendas, no decorrer de seu processo de análise, a autora conseguiu visualizar e
demonstrar que os procedimentos metodológicos que o grupo utiliza são instrumentos
eficientes para a discriminação de gêneros, sobretudo quando não nos esquecemos de
estabelecer relações estreitas entre as características textuais e as contextuais. Assim,
esses procedimentos permitiram que a autora discriminasse dois gêneros diferentes: o
que se pode chamar de lendas propriamente ditas e as histórias dos índios. Do ponto
de vista didático, a autora traz uma grande colaboração para que esses gêneros possam
ser objetos de ensino, sobretudo para o desenvolvimento de capacidades de leitura,
contribuindo, assim, para a preservação da cultura original dessa região.
Quanto às pesquisas que se voltaram para a descrição de um aspecto particular
de determinado gênero, temos como exemplo típico, a de Muniz-Oliveira (2005), que
se voltou para o levantamento dos diferentes verbos de dizer utilizados para inserir as
vozes do autor resenhado em resenhas acadêmicas produzidas por especialistas da
área de lingüística e para uma classificação desses verbos. Essa pesquisa, sem dúvida,
teve o grande mérito de efetuar essa classificação de uma forma totalmente original,
com base nas operações de linguagem propostas por Dolz & Schneuwly (1998). A
conclusão importante da autora para o ensino de produção desse gênero e de outros
semelhantes é a de que a dificuldade para empregar os verbos adequados para relatar
a voz dos autores resenhados não deriva do simples fato de não saberem utilizar os
verbos de inserção de vozes, mas sim, do fato de que ela deriva da dificuldade que os
alunos têm para interpretar as diferentes operações desenvolvidas pelo autor resenhado
durante o processo de produção textual. Fica claro, assim, que, o ensino da produção
desse gênero implica, necessariamente, um longo trabalho com a leitura e, mais
especificamente, com a identificação dessas operações.
Finalmente, em relação ao terceiro grupo de pesquisas, que se voltaram para
a análise de diferentes tipos de textos que são utilizados regularmente em outras

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006 565


A construção de modelos didáticos de gêneros...

disciplinas, o exemplo maior é a de Luca (2000), que, em sua dissertação de


mestrado, teve por objetivos: a) analisar textos de gêneros usados no ensino de
História (textos didáticos, historiográficos e documentos de época); b) antecipar
dificuldades por parte dos alunos; c) apresentar procedimentos de leitura para que
os problemas de compreensão pudessem ser superados. Em suas conclusões, a autora
ressalta que a análise de unidades lingüístico-discursivas não deve ser mecânica e
dissociada da análise do contexto de produção e também alerta para a necessidade
de se desenvolverem pesquisas e de se construírem modelos didáticos de gêneros
específicos para cada contexto de ensino.
Elencados os trabalhos de pesquisa mais relevantes, vejamos a seguir alguns
dos materiais didáticos que foram produzidos também com base na construção de
modelos didáticos de gêneros.

5.2 O desenvolvimento de materiais didáticos com o auxílio da


noção de modelo didático de gênero
Ao lado das pesquisas desenvolvidas pelo grupo, todos esses pesquisadores
têm também desenvolvido um grande número de materiais didáticos, com apoio na
construção de modelos didáticos de variados gêneros. Como pequeno exemplo,
apresentamos alguns dos que foram publicados no quadro abaixo.

Quadro 1 – Exemplos de publicações didáticas com suporte na


construção de modelos didáticos de gêneros.

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Machado e Cristovão

Além dessas publicações, tanto esses pesquisadores, quanto professores e


alunos por eles formados têm desenvolvido uma intensa atividade didática nas salas
de aula e em cursos de extensão5, tomando os mesmos pressupostos teóricos para a
construção de seqüências didáticas para o ensino de língua materna e língua
estrangeira.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como afirmamos de início, buscamos aqui apresentar um levantamento


parcial, mas significativo, das pesquisas que se desenvolvem no Brasil no quadro do
ISD6, investigando os procedimentos de construção de modelo didático de gênero,
quer seja de forma explícita, quer seja de forma implícita. Mesmo parcial, esse
levantamento já nos possibilita delinear as diferentes contribuições de ordem teórica,
metodológica e didática que esses estudos têm trazido.
Para o desenvolvimento do próprio quadro teórico-metodológico, diferentes
atividades científicas e didáticas têm sido desenvolvidas, o que nos levou a enriquecer
o próprio modelo de análise, ou com a utilização de conceitos de outros autores
compatíveis com o modelo ou com a (re)-elaboração dos procedimentos de análise.
Em relação à contribuição para a didática, também foi ampliado o escopo do quadro
original em que surgiu o uso de modelos didáticos de gêneros, pois os pesquisadores
brasileiros estenderam sua utilização a novos campos, ao desenvolvimento de outras
capacidades de linguagem e a outras línguas. Para os processos de mediação formativa,
a contribuição se deu em relação aos processos de ensino-aprendizagem nas escolas,
em diferentes níveis de ensino, para a produção textual e para a leitura, assim como
para o desenvolvimento dos processos de formação inicial e continuada de professores.

5
Por exemplo, um trabalho sistemático sobre a elaboração e avaliação de materiais didáticos tem sido desenvolvido
há algum tempo, com grande eficácia, em cursos de extensão da COGEAE – PUC/SP, dirigidos a educadores em
geral e ministrados pelas doutorandas Eliane Lousada e Lilia Abreu-Tardelli. Nesses cursos inúmeras seqüências
didáticas têm sido trabalhadas em conjunto com os professores, tais como: testes de personalidade em revista
para adolescentes, narrativas de cordel, regras de jogos, debate público regrado, entrevista, apresentação pessoal
em recrutamento e seleção, crônicas, carta argumentativa de leitor, folhetos informativos, verbete de dicionário
de língua portuguesa, charges políticas, regulamento, notícia, sinopse de filme, editorial, tiras (de jornal e revistas
em quadrinho), propaganda, quarta capa de livro infantil. Também os cursos desenvolvidos por Baraldi, enfocando
a leitura, têm trabalhado com essas noções.
6
Para uma visão mais global desses trabalhos, assim como para a avaliação que deles faz Bronckart, veja-se o
número especial da revista Calidoscópio (2004), que reúne trabalhos da maioria dos participantes do Grupo
ALTER/CNPq, apresentados no primeiro simpósio do grupo, durante o XIV INPLA (2004). Outra importante
publicação que reúne contribuições de nosso grupo é a revista Signum (2005).

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006 567


A construção de modelos didáticos de gêneros...

Entretanto, apesar de estamos conscientes dessas contribuições, retomando


nossa epígrafe, temos a convicção de que o ISD é um quadro teórico-metodológico
que se encontra em contínua transformação e que é construído coletivamente. Dessa
forma, os méritos que nossas pesquisas podem apresentar não podem ocultar muitas
das lacunas que o próprio Bronckart (2004) assinala. Algumas delas derivam das
próprias lacunas do quadro teórico-metodológico, mas outras derivam do fato de a
maioria dos pesquisadores brasileiros que adotam esse quadro teórico ainda não
terem se apropriado das modificações já introduzidas pelo próprio autor no modelo
proposto em 1997/1999 (cf. BRONCKART; GRUPO LAF, 2004). Assim, conforme
sugestões do próprio Bronckart (2004), outros estudos e reflexões devem ser
desenvolvidos para cobrir essas lacunas. Dentre elas, salientamos as seguintes:

- a necessidade de não nos esquecermos do aprofundamento nos estudos


sobre as propriedades lingüísticas dos gêneros e sobre a relação entre
tipos de discurso, gêneros e formações sociais;

- a necessidade de rediscutirmos o conceito de “ação de linguagem” –


pelo caráter estático e pelo esquecimento de suas dimensões afetivas/
emocionais com que se mostra no modelo de 1997;

- a necessidade de buscarmos procedimentos consistentes de análise dos


conteúdos dos textos, que têm sido abandonados na descrição dos gêneros
e na conseqüente construção do modelo didático7.

Quanto às pesquisas de intervenção no campo didático, consideramos que


elas também devem se voltar para o estudo do trabalho real do professor, tal como já
estão sendo desenvolvidos atualmente, com o auxílio dos trabalhos das chamadas
Ciências do Trabalho (em especial, da Ergonomia e da Clínica da Atividade). Para
isso, segundo Bronckart (2004), seria necessária uma reflexão séria sobre os
processos de desenvolvimento, não só no que se refere ao desenvolvimento dos
diferentes conhecimentos e práticas quanto, sobretudo, no que se refere ao
desenvolvimento global das pessoas e dos diferentes fatores que nele intervêm. Além
disso, considerando que nossas ações e nossas atividades científicas, como quaisquer
outras, de uma forma ou de outra, produzem efeitos sobre o outro e sobre o mundo
7
As primeiras tentativas para essa análise de conteúdos podem ser vistas em Bronckart e Machado (2004 e 2005a
e b) e em Machado e Bronckart (2005).

568 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006


Machado e Cristovão

social e que, portanto, elas são, por princípio, inerentemente intervencionistas e


políticas, no sentido maior desses termos, temos a consciência clara da dimensão
ética de nossas intervenções no campo educacional. Com essa consciência,
acreditamos firmemente que é o respeito a essa mesma dimensão ética que nos
obriga a um aprofundamento teórico constante, sem o qual, mesmo com as melhores
intenções, podemos facilmente resvalar para intervenções inconseqüentes, que
poderão produzir os mesmos efeitos que queremos evitar.

REFERÊNCIAS

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criação verbal. Tradução: Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Martins
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Católica de São Paulo, São Paulo, 2003.

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Recebido em 21/11/05. Aprovado em 20/06/06.

Title: The construction of didactic models of genre: constributions and questions to genre teaching
Author: Anna Rachel Machado, Vera Lúcia Lopes Cristovão
Abstract: The objective of this paper is to present an overview of Brazilian research studies aimed
at building “didactic models of genres”, of their didactic sequences, and of didactic intervention
works developed under this perspective. However, we will limit ourselves to the perspective of
socio-discursive interactionism (SDI), focusing especially on those works carried out under the
supervision of Machado, and which were developed autonomously by different researchers. In this
paper we will indicate the validity of using the theoretical and methodological concepts of the SDI,
the genres analysed, the different objectives established and the theoretical, methodological and
pedagogical conclusions which these works managed to arrive at, as well as the questions they left
answered.
Keywords: socio-discursive interactionism; didactic model of genres; didactic sequences;
educational research.

Tìtre: La construction de modèles didactiques de genres: apports et questions pour l’enseignement


de genres
Auteur: Anna Rachel Machado, Vera Lúcia Lopes Cristovão
Résumé: L’objectif central de cet article est celui de tracer un tableau illustratif de recherches
brésiliennes développées pour la construction de «modèles didactiques de genres», de leurs
respectives séquences didactiques et des travaux didactiques d’intervention développés dans cette
perspective. Cependant, on se limitera à celles qui assument la perspective de l’interactionisme
sociodiscursif (ISD), développées dans le programme d’Études Postgraduées en Linguistique
Appliquée et Études du Langage (LAEL/PUCSP), mais, surtout, à celles qui furent développées et/ou
orientées par Machado et à celles que, après, furent développées de façon autonome par divers
chercheurs. Dans cette étude, on montrera la validité de l’utilisation des présupposés théorico-
méthodologiques de l’ISD qui furent assumés par ces chercheurs, quels ont été les genres travaillés,
les différents objectifs poursuivis, les conclusions théoriques, méthodologiques et/ou didactiques
auxquelles ils sont arrivées et les questions qui sont encore sans réponses.
Mots-clés: interactionisme sociodiscursif; genre textuel; modèle didactique; séquence didactique;
recherche éductionnelle.

Título: Construcción de modelos didácticos de géneros: aportes y cuestionamientos para la


enseñanza de géneros

572 Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006


Machado e Cristovão

Autor: Anna Rachel Machado, Vera Lúcia Lopes Cristovão


Resumen: El objetivo central de este artículo es trazar un cuadro ilustrativo de investigaciones
brasileñas desarrolladas para la construcción de “modelos didácticos de géneros”, de sus respectivas
secuencias didácticas y de trabajos didácticos de intervención desarrollados en esta perspectiva.
Sin embargo, nos limitaremos a las que asumen la perspectiva del interaccionismo sociodiscursivo
(ISD), desarrolladas en el Programa de Estudos Pós-graduados em Lingüística Aplicada e
Estudos da Linguagem (LAEL/PUCSP). Sobretodo, nos limitaremos a las desarrolladas y/o
direccionadas por Machado y a las que, posteriormente, se desarrollaron de forma autónoma por
distintos investigadores. En esta recompilación, mostraremos la validad de la utilización de los
presupuestos teóricos metodológicos del ISD que usaron estos investigadores, con cuáles géneros
se trabajó, los distintos objetivos perseguidos, las conclusiones teóricas, metodológicas y/o didácticas
que lograron alcanzar y las cuestiones que todavía están sin contestar.
Palabras-clave: interaccionismos sociodiscursivo; género textual; modelo didáctico; secuencia
didáctica; investigación educacional.

Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 3, p. 547-573, set./dez. 2006 573


574
POLÍTICA EDITORIAL

Linguagem em (Dis)curso é uma publicação quadrimestral, aberta a colaboradores


do Brasil e do exterior que estejam interessados em questões relativas ao campo textual-
discursivo. Os trabalhos nela publicados, portanto, estão circunscritos aos objetos texto e
discurso, separadamente ou em sua intersecção, e às teorias pertinentes a tais objetos.
Dá-se preferência a trabalhos que contemplem pesquisa original, podendo estes vir em
forma de artigo, ensaio (questões e problemas), debate, retrospectiva (estado da arte) e
resenha. Serão considerados apenas os textos que não estejam sendo submetidos a outra publicação.
As línguas aceitas para publicação são o português, o inglês, o espanhol e o francês.
Os trabalhos recebidos são avaliados em duas etapas. Na primeira, realizada pelos
editores, o texto pode ser desqualificado se: a) não estiver de acordo com as normas da
ABNT; b) for apenas uma revisão de literatura sem posicionamento crítico; c) tiver redação
inadequada (problemas de coesão e outros); e d) tiver problemas de formatação (parágrafos
feitos na barra de espaços e outros). Na segunda etapa, os textos selecionados na primeira
são enviados a dois consultores anônimos que avaliam as suas qualidades de escrita e de
conteúdo. Dois pareceres negativos desqualificam o trabalho, de modo que, havendo
discordância, é solicitado um terceiro.
Se a matéria for aceita para publicação, a revista permite-se introduzir ajustes de
formatação. Modificações de estrutura ou de conteúdo, sugeridas pelos pareceristas, só
serão incorporadas mediante a concordância dos autores. Artigos aprovados com restrições
serão encaminhados para a reformulação por parte dos autores. Nesses casos, a comissão
editorial se reserva o direito de recusar o artigo, caso as alterações neles introduzidas
não atendam às solicitações feitas pelos pareceristas.
O autor deve ser comunicado do recebimento da sua colaboração no prazo de até
oito dias e do resultado da avaliação do seu trabalho em até noventa dias após a data da
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em avaliação.
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autorais a ele referentes, devendo a revista ser consultada em caso de republicação. A
publicação de artigos não é remunerada. Serão remetidos a cada autor 2 (dois) exemplares
do fascículo em que for publicada a sua colaboração.
Os artigos de Linguagem em (Dis)curso, tanto em meio impresso quanto em meio
eletrônico, são publicados mediante a autorização expressa de seus articulistas, sobre os quais
recaem as respectivas responsabilidades legais relativas às informações neles veiculadas.
A revista pode ser reproduzida parcialmente ou no todo, desde que citada a fonte.

575
NORMAS PARA SUBMISSÃO DE TRABALHOS

1) Os trabalhos deverão ser enviados:


a) Via e-mail, como attachment, em formato “.doc” ou “.rtf (opção Word for
Windows)”. Enviar também um arquivo com: nome do(s) autor(es); filiação
institucional; última titulação; endereço de correspondência; telefone; e e-mail.
Obs: Autores com titulação inferior a mestre só poderão publicar trabalho em co-
autoria com um autor de titulação mais alta.
2) O trabalho deve incluir:
a) A expressão “TÍTULO:” seguida do título do trabalho;
b) A expressão “AUTORIA:” seguida do(s) nome(s) do(s) autor(es) e dos dados de
sua(s) procedência(s) – titulação, Universidade, e-mail – entre parênteses;
c) A expressão “RESUMO:” seguida do respectivo resumo em língua portuguesa
(entre 100 e 150 palavras). Sugere-se que os resumos explicitem: o tema e/ou
o(s) objetivo(s) do artigo, a orientação teórica e as conclusões mais relevantes.
Nos resumos de artigos de pesquisa, citar também dados da metodologia (corpus,
sujeitos, procedimentos, etc.);
d) A expressão “PALAVRAS-CHAVE:” seguida de até 5 palavras-chave em língua
portuguesa. As palavras-chave devem ser, na medida do possível, as correntes na
área, devem vir no singular e ser ordenadas do geral para o específico. Pede-se
que o autor procure contemplar palavras isoladas de modo que, somente em
casos extremos, apareçam expressões de duas palavras;
e) A expressão “ABSTRACT:” ou “RÉSUMÉ:” ou “RESUMEN:” seguida de resumo em
língua inglesa ou francesa ou espanhola (entre 100 e 150 palavras);
f) A expressão “KEY WORDS” ou “MOTS-CLÉS:” ou “PALABRAS CLAVE:” seguida de
até 5 palavras-chave em língua inglesa ou francesa ou espanhola;
g) O texto do trabalho;

3) O texto do trabalho deve ser digitado em Times New Roman, corpo 12, entrelinha 1,5 e
sem sinalização de início de parágrafo;
4) Para citações longas ou exemplos de corpus que exijam recuo de margem, basta usar
Times New Roman corpo 10, sem fazer qualquer alteração gráfica. Se a citação for feita no
interior do parágrafo, usar apenas aspas duplas inicial e final;
5) Tabelas, quadros, ilustrações (fotografias, desenhos, gráficos, etc.) e anexos devem vir
prontos para serem impressos, dentro do padrão geral do texto e no espaço a eles destinado
pelo(s) autor(es). Para anexos que constituem textos originais já publicados, incluir referência
bibliográfica completa, bem como permissão dos editores para publicação;
6) As referências no corpo do trabalho (ou chamadas) devem ser apresentadas entre
parênteses, feitas por intermédio da data identificadora do trabalho, seguida de vírgula,
espaço, da expressão “p.” de página, espaço e do(s) número(s) da(s) página(s) citada(s),
quando for o caso. A norma utilizada para a padronização das referências é a da ABNT
que estiver em vigência. Exemplos de referências:
STUBBS, M. Disourse analysis: the sociolinguistic analysis of natural language.
Chicago: The University of Chicago Press; Oxford: Basil Blackwell Publisher, 1983.
PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso. In: GADET, F.; HAK, T. (Orgs.). Por
uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux.
Campinas: Ed. da Unicamp, 1990. p. 61-161.
FURLANETTO, Maria Marta. Os caminhos de “onde” no português do Brasil: instrumentos
lingüísticos e deriva. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, SC: Editora Unisul, v. 4, n. 2,
p. 249-279, jan./ jun. 2004.
Obs: Pede-se atenção especial dos articulistas para que verifiquem se as referências citadas
no corpo do trabalho (chamadas) estão apresentadas na lista final e vice-versa.
7) A seções do texto devem ser numeradas, a começar de 1 (na introdução);
8) As notas de rodapé são destinadas a explicações complementares, não devendo ser
utilizadas para a citação de referências bibliográficas;
9) A revista publicará os seguintes textos:
a) Artigos de pesquisa – textos com o mínimo 5.000 e o máxímo 10.000 palavras,
contendo o relato de uma pesquisa empírica;
b) ensaios (questões e problemas) – textos com o mínimo de 5.000 e o máximo de
10.000 palavras, contendo discussão de um problema teórico relevante ao campo
em que se insere;
c) debates – textos com o mínimo de 5.000 e o máximo de 10.000 palavras, contendo
diálogo crítico com outro texto publicado na revista;
d) retrospectivas (estado da arte) – textos com o mínimo 5.000 e o máximo de
10.000 palavras, contendo histórico analítico e crítico de teorias, abordagens ou
tradições de pesquisa (relativos ao campo textual-discursivo);
e) resenhas – textos com o mínimo de 1.000 e o máximo de 1.500 palavras, contendo
o registro e a crítica de obras, livros, teses, monografias, etc., publicados
recentemente.
Obs: Os resenhistas, em geral, são indicados pelos editores.

DADOS POSTAIS:
Revista Linguagem em (Dis)curso
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem
A/C Comissão Editorial
Avenida Marcolino Martins Cabral, 39
Centro – 88.701-000 – Tubarão/SC
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separately or in their intersection, and to the theories related to these two objects.
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it amounts to a review of literature with no critical stance; c) it is poorly written (e.g. it
presents cohesion or other micro-level problems); and d) it presents formatting problems
(non-tabulated paragraphs, etc.). After that, the texts selected by the editors are sent to two
anonimous readers who evaluate them in terms of form and content. Two negative opinions
result in the text being disqualified. In case of differing opinions, the text is then sent to a
third reader.
If the work is accepted for publication, the journal reserves itself the right to make the
necessary formatting adaptations. Changes concerning the structure or the content of the
text, suggested by the reviewers, will only be incorporated under acceptance by the author(s).
In such cases, the Editorial Board reserves itself the right to refuse the article if the
changes do not meet the reviewers’ suggestions.
The author must be informed of the arrival of his/her contribution within eight days,
and of the results of the assessment within ninety days after the first notice. In those cases in
which the ninety-day period is not enough for the assessment process, the author(s) will be
informed that their work is still under evaluation.
It is assumed that the authors´ copyright related to each work is yielded to Linguagem
em (Dis)curso, and the journal should be informed in case of a re-publishing. The
publication of articles is not paid. The author will be sent 2 (two) copies of the number in
which his/her work was published.
All works appearing in Linguagem em (Dis)curso, both in print and on-line, are
published with the explicit authorization of its contributors, who are legally responsible for
the information presented in their works.
The journal might be partially or entirely reproduced, provided that the sources are
mentioned.
NORMS FOR PUBLICATION

1) Works must be sent:


a) By e-mail, as an attachment. The files must be “.doc” or “.rtf (option of Word for
Windows)”. The author(s) must also send another file with the following data:
author(s) name(s); institutional affiliation; degree; full address; phone; and e-mail.
OBS: Authors who not have at least a master’s degree (undergraduate students, master’s
candidates, etc.) can only publish works in co-authorship with an author holding
a higher degree.
2) Works must include:
a) The phrase “TITLE:” followed by the work’s title;
b) The phrase “AUTHORSHIP:” followed by the name(s) of the author(s) and including
institutional affiliation – title, university and e-mail – between parentheses;
c) The phrase “RESUMO:” followed by the respective abstract in Portuguese (between
100 and 150 words). It is suggested that the abstract specify: the theme and/or the
objective(s) of the article, the theoretical framework and the most relevant
conclusions. In the case of a summary of a research article, aspects of the
methodology should also be included (corpus, subjects, procedures, etc.);
d) The phrase “PALAVRAS-CHAVE:” followed by up to 5 key words in Portuguese. The
keywords should be, as far as possible, the current ones in the area; should be
ordered from the most general to the most specific. It is advised that authors try to
use single words, thus avoiding, save in exceptional cases, the use of expressions;
e) The phrase “ABSTRACT:” or “RÉSUMÉ:” or “RESUMEN:” followed by an abstract in
English, French or Spanish (between 100 and 150 words);
f) The phrase “KEY WORDS” or “MOTS-CLÉS:” or “PALABRAS CLAVE:” followed by up to
5 key words in English, French or Spanish;
g) The text of the work itself.
3) The work must be typed in Times New Roman, font 12, 1.5 spacing and with no indentation.
4) For long quotations or corpus examples that need to be indented, just use Times New
Roman font 10, without any other graphic change. If the quotation is made inside the text, you
shoul use only doulbe inverted commas;
5) Tables, charts, illustrations (pictures, drawings, graphics, etc.) and attachments must be
sent ready to be printed according do the general pattern of the text and in the space prepared
for them by the author(s). Attachments which involve original texts previously published should
include complete bibliographical reference, as well as the authors´ permission for publication.
6) Bibliographical references in the text should come between parentheses, including date
of publication, followed by coma, space, the word “p.” (for page), space, and the number(s)
of the quoted page(s), when it is the case. The style sheet used for referencing purposes
is the current version of the Brazilian ABNT. Exemples:
STUBBS, M. Disourse analysis: the sociolinguistic analysis of natural
language. Chicago: The University of Chicago Press; Oxford: Basil Blackwell
Publisher, 1983.
PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso. In: GADET, F.; HAK, T.
(Orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à
obra de Michel Pêcheux. Campinas: Ed. da Unicamp, 1990. p. 61-161.
FURLANETTO, Maria Marta. Os caminhos de “onde” no português do Brasil:
instrumentos lingüísticos e deriva. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, SC:
Editora Unisul, v. 4, n. 2, p. 249-279, jan./ jun. 2004.
OBS: We strongly recommend that the authors check if the works cited within the text are
included in the reference list, and vice-versa.
7) The sections of the text must be numbered, starting from “1” (the introduction).
8) Footnotes should include only complementary information, and should not be used for
referencing purposes;
9) Linguagem em (Dis) curso accepts for the following texts publication:
a) research articles – texts ranging from 5,000 words (minimum) up to 10,000 words,
containing the report of one empiric research;
b) essays (questions and problems) – texts ranging from 5,000 (minimum) to 10,000
words, including the discussion of a theorectical issue relevant to the field to
which it belongs;
c) debates – texts ranging from 5,000 (minimum) to 10,000 words, which involve a
critical dialogue with another text published in Linguagem em (Dis)curso;
d) retrospectives – texts ranging from 5,000 words (minimum) up to 10,000 words,
including a critical and a historical approach to theories, approaches or research
traditions (in the areas of text and discourse);
e) reviews – texts ranging from 1,000 words (minimum) up to 1,500 words, involving
the indication and the critical review of recently published works, books, theses,
monographs, etc.;
OBS: Reviewers are, generally, indicated by the editors.

MAILING ADDRESS:
Revista Linguagem em (Dis)curso
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem
A/C Comissão Editorial
Avenida Marcolino Martins Cabral, 39
Centro – 88.701-000 – Tubarão-SC, Brasil
e-mail: lemd@unisul.br
Site: http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/revista/revista.htm
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