Walter Ribeiro
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Desafios Teoricos e Praticos
ae das Psicoterapias RelacionaisDados Internacionais de Catalogagao na Publicagao (ciP)
(Camara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
Ribeiro, Walter F. R.
Existéncia ~> esséncia / Walter F. R. Ribeiro — Sao
Paulo : Summus, 1998.
Bibliografia.
ISBN 85-323-0668-3
1.Gestalt (Psicologia) 2.Gestalt-terapia 3. Relacionismo|
L. Titulo.
98-4440 cpp-150. 1982
Indices para catélogo sistematico:
1. Gestalt : Psicologia 150. 1982
2. Psicologia da Gestalt 150. 1982
er humano : Relagdes : Gestalt : Psicologia
150. 1982Qualquer enfoque teGrico ou pratica dele
decorrente, para ser compreendido, precisa ser
visto a luz do seu contexto e com ele harmonizado.
1
Ser-em-relacdao:
contextualizacao das terapias
fenomenolégico-existenciais ou
relacionais
Para compreendermos melhor 0 que esta acontecendo com a
evolugao das psicoterapias hoje, é indispensavel estudarmos a evolu-
¢ao dos paradigmas utilizados no entendimento do ser humano e,
como conseqiiéncia, as possibilidades, as dificuldades e as limita-
goes de atuar sobre ele.
Esse problema talvez seja maior nas abordagens inacabadas por
vocacao e esséncia, como as que abragamos e defendemos, cujo
paradigma cientifico-filos6fico, além disso, ainda luta com resistén-
cias cientificistas, essencialistas, apesar de o modelo desses cientifi-
cistas ter sido superado em quase todas as frentes cientificas, a
comegar pela fisica.
Fazemos parte do grande movimento artistico-cientifico-filos6-
fico que se acentuou na passagem do século x1x para 0 século xx e
que visava (visa) 4 superagdo do pensamento mecanicista do século
XIX; movimento ocorrido notadamente na Europa continental.
Esse movimento, surgido e profundamente enraizado na Europa
continental, espalhou-se e se desenvolveu por todo 0 mundo, tendo
23de enfrentar. por isso, muitos choques com culturas e pensamentos
diferentes e, com freqiiéncia, radicalmente opostos. Essa dificuldade
parece ter passado despercebida ou foi escamoteada por quase todos
os te6ricos que pensaram as novas formas de psicoterapia.
Na psicologia; Carl Rogers foi a grande excegao. A sua educa-
¢4o no positivismo légico americano nao conseguiu impedir (como
consegue com a esmagadora maioria dos outros psicdlogos) que a
sua excepcional sensibilidade percebesse diretamente 0 ser humano
(portanto, sem a intermediagao de preconceitos anteriores) ao longo
do seu extenso e intenso contato com as pessoas. Essa postura e esse
tipo de contato possibilitaram-lhe a percepgao de que tipo de relacao
leva as pessoas a se encolher, se disfargar, se defender, mantendo e/
ou acentuando as neuroses e que tipo de relago as leva para 0 outro
lado, o lado da cura.
Com essa invulgar capacidade — a partir de dados empiricos —
foi chegando a esséncia do comportamento humano que, nao por
acaso ou por mera coincidéncia, é a mesma esséncia a que chegaram
os grandes te6ricos europeus por caminhos te6ricos.
Assim, ja s bases de sua teoria e pratica assentadas, ao
entrar em contato com a existencial-fenomenologia, disse:
Fiquei surpreso ao constatar, ai pelo ano de 1951, que a diregao
de meu pensamento e os aspectos centraisyde meu trabalho
terapéutico poderiam ser acertadamente classificados como exis-
tenciais e fenomenolégicos. Parece estranho que um psicélogo
americano possa se encontrar em semelhante companhia.
In Amatuzzi (1989: 91)
Esse feliz encontro de uma pratica confirmada com a teoria nos
conforta e anima e, claro, nos preocupa a medida que vemos milha-
res de pessoas imitando Rogers sem a sua sensibilidade e sem 0 seu
génio, por um lado, e sem teoria nenhuma que dé alguma sustenta-
¢ao ao seu fazer, por outro. O desastre tem sido e é inevitavel porque,
afinal, os Rogers sao rarissimos.
A Gestalt-terapia, como todos sabemos, veio diretamente da ver-
tente te6rica alema: por isso, Laura Perls, por exemplo, chamava de
europeus ou homens da Renascenga os dois Paul (Goodman e Weiz),
rarissimos na América, segundo ela (Rosemblatt, 1991).
24Ainda, sabemos que esses génios enfrentaram (e enfrentam) uma
oposicao ferrenha, oposi¢o essa que se fundamenta em valores e
crengas profundamente encrustados em nés todos, 0 que nos faz, a
cada um, opositores mais ou menos inconscientes dessas idé
[Quando temos alguma idéia dessa resisténcia (comegamos a nos
tornar aware para os gestaltistas) e, vencendo a negacao, aceitamos a
existéncia da defensividade desse opositor interno, tiramos um pou-
co de sua forga.]
Outra agravante: nds, psicdlogos, por causa da énfase quase ex-
clusiva que se deu por tantos anos ao intra, pinda somos, em geral,
hegligentes ou pouco competentes aovconsiderar a forga das diferen-
cas e preconceitos Culturais Sambientais, apesar do muito que se tem
feito nos tiltimos anos em varias ciéncias e abordagens psicolégicas
para reparar esse exagero.
Com 0 objetivo de apenas pincelar 0 problema, voltemos aos
Ultimos anos do século passado e primeiros deste, quando se acirrou
a sistematizagao da luta contra as opiniGes que se dividiam (como
incrivelmente acontece até hoje) entre duas posigGes por igual essen-
cializadoras, que, de maneira simplificada, podemos chamar de po-
‘Ges subjeiivistas e de posigdes objetivistas, Guerra velha que se
acentuou na época.
A principal novidade de entao foi a sistematizac¢ao da visao que
mais tarde Maslow chamaria de Terceira Forga, efetuada_notada-
mente pelo matematico-filosofo Edmond Husserl, 0 “fundador da
Fenomenologia no sentido moderno” (Merleau-Ponty, M. 1973: 19),
movimento que de inicio influenciou todos os ramos da cultura euro-
péia e, claro, a psicologia, a psiquiatria e a neurologia e, em seguida,
espalhou-se por todo o mundo.
Essa influéncia atingiu, por exemplo, os primeiros criadores da
Gestalt-Terapia que se formaram nesse periodo, nesse clima; influén-
cia exercida diretamente pelos psicélogos da Gestalt e, talvez mais
ainda, por Kurt Goldstein; @, indiretamente, por toda a cultura euro-
péia continental da época.
Sobre esse clima de ebuligao cultural, diria mais tarde Maurice
Merleau-Ponty (1973: 20): “Podemos dizer que tudo 0 que se fez na
Alemanha, a partir de 1915-1920, estava, direta ou indiretamente,
sob a influéncia da Fenomenologia, e os cursos de Husserl bastavam
para explica-lo”. Ainda, Heidbreder (1964: 487), diz: “A compreen-
sao das mais importantes correntes psicolégicas contemporaneas e,
25por fim, toda tentativa de situar 0 problema psiquico dentro de pers-
pectivas claras e ordenadas, nao sera conseguida sem 0 conhecimen-
to da Fenomenologia tal como foi elaborada por Husserl”.
Nao levar a sério, portanto, o Gbvio dessa influéncia e dessa filia-
¢ao é perigosamente brincar de avestruz.
Uma das formas de negagao, talvez a mais perigosa, é a aceita-
cao rapida e superficial, apenas no nivel de opiniao racional. Por
exemplo, cada vez se acentua mais que somos fenomenoldgico-exis-
tenciais. Entretanto, a maioria dos autores dessa afirmagao tem uma
nocao muito superficial, quando a tem, do que é esse modo de pensar
e de conceber o ser humano. Enfim, nao volta as origens para real-
mente saber do que esta falando e, se volta, 0 faz apenas Com 0 pen-
samento racional, insuficienté)para entender as nossas abordagens.
Parte integrante-desse movimento, talvez 0 maior mérito, por
exemplo, da Gestalt-terapia seja a sua posigao de dentincia e comba-
te as-conflitantes dualidades; o seu firme posicionamento contra os
OU e adesao decisiva aos E: somos isso E aquilo, consciéncia E cor-
po;razie-E-emogao,-e-assim por diante-Dessa forma, toca de manei-
ra pratica no ponto crucial da nossa concepgao do conceito de
normalidade e, a0 mesmo tempo, em como opera 0 processo de des-
vio-e/ou interrup¢ao do crescimento normal; como, ainda, possibilita
acriagdo de poderosos instrumentos clinicos como a atitude de com-
preensao Clara € confirmadora que possibilita o trabalho pessoal de
integragao criativa de polaridadeS-¢onflitantes.
Felizmente para nés, nao precisamos nos tornar filésofos, ter-
mos 0 que necessitamos para desenvolver uma visao existencial-
fenomenolégica do ser humano e do mundo. Basta, inicialmente,
nao esquecermos que nado somos de geragao espontanea e que nin-
guém tem geniais insights a partir do nada. Nao existe isso; ninguém
extrai algo do nada. Todo movimento cultural, de qualquer espécie,
86 se desenvolve a partir de uma certa maturagio anterior, necessita
de um solo, de um determinado estado de prontidao propiciado pelo
seu momento histérico, pelo momento histérico da evolucao da cul-
tura, a fim de que possa ser intufdo, elaborado; enfim, para que possa
vir 4 luz. Sem falar na grande defensividade que geram.
Dessa forma, os pensadores s&o aqueles que captam as questdes
fundamentais do seu tempo histérico e refletem sobre elas, propon-
do, por vezes, algumas solugGes que, no momento de sua apresenta-
cao, dificilmente sao compreendidas e muito menos aceitas, por
26conflitarem com freqiiéncia com os preconceitos conservadores da
época.
O artista, geralmente por suas intuigGes, parece captar esse cli-
ma, essa prontidao, até mesmo antes dos cientistas e dos fildsofos. O
melhor exemplo que posso encontrar de uma visao do ser humano e
do mundo como a nossa, e de certa forma anterior 4 elaboragao, a
sistematizagao dos grandes pensadores, é a do poeta Fernando Pes-
soa. E tao marcante em sua obra a diferenga entre os mundos em que
cada um vive por causa das diferengas perceptivas e as conseqiientes
emogées eliciadas em cada um, em cada momento, e vice-versa, num
processo de constante retroalimentagdo, que o poeta se dividiu em
quatro para assinar a sua obra. Gostamos de dizer que os poemas
assinados por ele, quando se sentia Alberto Caieiro, foram escritos
quando a sua visao e emogao a respeito do Eu, do Outro e do mundo
estava ainda mais proxima da nossa.
E claro que ele também nao tirou isso do nada. Além de sua
impar vocagao poética, estava afinado com os problemas e as tentati-
vas de solucao propostas em seu tempo, enfim, com a prontidao do
seu momento hist6rico e, para estar a par do conhecimento de sua
época, leu, por exemplo, pensadores como Descartes, Kant. Niet-
zsche e outros (1985: 18).
Além dos pensadores, é claro que precisamos estar sempre aten-
tos as descobertas de outras ciéncias ou abordagens que evoluem
com rapidez crescente. Descobertas e achados que quase invariavel-
mente vém apontando para a importancia do contextual e da liberda-
de. Por exemplo, o recente livro do psicélogo americano Edward L.
Deci, com os seus corajosos e contundentes experimentos sobre os
diferentes efeitos da motivagao extrinseca e intrinseca, experimentos
que confrontam o classico pensamento autoritdério sobre 0 assunto
(Deci, 1996).
Ainda, como se trata de visao extremamente rica e atrativa do
ser humano e do mundo, essa nossa forma de ver se espalhou muito
depressa e meio desordenadamente por adeptos entusidsticos (e nao
raro brilhantes), mais ou menos afoitos, pouco convertidos e, por-
tanto, nada profundos, por todas as areas da cultura; e hoje apre-
senta-se com um sem-ntimero de nomes e caras, muitas delas
bastante deformadas, 0 que vem se constituindo em mais um grave
fator de dificultagao ou mesmo de impedimento para a compreen-
sao de sua ess€ncia.A atitude diante dessa postura e das descobertas que a apéiam é
radoxal: por um lado, anima os especialistas nos estudos e nas
possibilidades de intervengdo nas relagdes, pois Ihes di um poder
muito maior (se a maioria dos problemas advém das relagoes, elas
— por exemplo, a relagao terapéutica, também podem ter maior
influéncia sobre eles); e, por outro, um medo, uma negagao, diante
do aumento da responsabilidade (pela consciéncia de que somos os
fazedores de nossa historia) que esse mesmo acréscimo de poder
traz. Além, é claro, dos naturais medos e da evitagao de entrar em
contato com a hist6ria de nossas proprias relagdes e com os proble-
mas por elas causados em nos
Para nosso uso e protegao contra os labirintos em que podemos
nos embrenhar, evitamos o detalhamento das miiltiplas facetas com
que essa corrente se apresenta (0 que, para ser feito com competén-
cia e profundidade, talvez ocupasse o resto de nossa vida) e, com
essa postura de autoprotegdo, vamos tentar extrair desse movimento
global o que nos é essencial e nos interessa mais de perto, deixando
o detalhamento para os especialistas, os fildsofos.
E, indiscutivelmente, a grande marca dessa “novidade” e a que
mais nos interessa é 0 resgate tanto do subjetivismo que 0 objeti
mo nega, quanto do objetivismo, por sua vez, negado pelo subjeti-
vismo. Esse resgate nos obrigou obviamente a privilegiar de maneira
crescente a relagao. A sua contextualizagao é cada vez mais impres-
cindivel para entender o ser humano e os seus problemas. O dificil é
que essas relagdes comegaram muito cedo para delas termos mem6-
ria. MemGrias que, além disso, evitamos por freqiientemente serem
traumaticas e dolorosas. Por exemplo, se considerarmos que essas
relagGes se iniciaram na vida intra-uterina (Verny, 1989), entao po-
deremos imaginar a dificuldade do problema. Complicando um
pouco mais ainda: se pensarmos na possibilidade muito plausivel de
que, de alguma forma, houve e ha transmissao das experiéncias du-
rante toda a historia da humanidade, ai sim é que sentiremos a neces-
sidade absoluta de desenvolver as indispensdveis modéstia e
humildade para encarar esta nossa pretensiosa e, com freqiiéncia,
arrogante profissao.
Essa compreensao do ser humano como resultado, como
integragao criativa dos seus processos e dos ajustes possiveis nas
suas relagdes, nos levou a relativizar e rever alguns conceitos;
notadamente, a ver as coisas menos em termos de preto ou de bran-
p
28co, de céu ou de inferno. A “politica da certeza” passou a sofrer der-
rotas sucessivas e cada vez maiores.
Com isso, se estabeleceu, como ja dissemos, a substituigdo da
disjuntiva OU pela aditiva E. Nas terapias de hoje, essa substituigao,
essa visio globalizada do ser, é imprescindifvel tanto para os funda-
mentos te6ricos como para 0 trabalho clinico.
Por meio desse resgate, passou-se a encarar a verdade como pro-
duto do encontro. O ser s6 pode ser pensado em relagdo, em contato.
Obviamente, entdo, s6 pode ser entendido se contextualizado, uma
vez que é impensavel sem 0 seu meio, sem a sua historia, sem as suas
vivéncias passadas e sem os seus sonhos a respeito do futuro, embo-
ra, é claro. 1 0 a eles no presente, no aqui-e-agora.
aradigma@é visceralmente revoluciondrio porque afeta nao
apénas nossas-opinides racionais, mas nossos valores mais arraiga-
dos, nOssos preconceitos mais velhos é irredutfveis e, principalmen-
te, Hossa seguranca, nossa necessidade de controle € de estabilidade.
E por isso que até hoje causa reages, por vezes yiolentas, em quase
todos nds. Tao violentas Si muitas vezes, “escolhemos” nado
percebé-lo, nado entendé-lo na sua esséncia, apesar das contundentes
descobertas a seu favor em todas as ciéncias, em todos os campos.
As sociedades nao querem, e talvez nao possam, assumir esses
achados em sua radicalidade. Também nao queremos (ou nao pode-
mos); isso poderia nos tornar incomodamente co-responsdveis por
muito sofrimento, que preferimos atribuir a outras pessoas ou cau-
sas; a nossa auto-imagem poderia ser afetada ou, como tanto repete
Alice Miller, poderia nos pér em contato com nossas préprias hist6-
rias pessoais e, possivelmente, com muita dor reprimida, 0 que evita-
mos com tanto empenho.
O primeiro paradoxo com que nos defrontamos para entender
nao apenas racionalmente mas integrar e viver esses Conceitos € que,
conforme os préprios conceitos, somos seres de relagao e em rela-
¢4o; somos, repetimos, os ajustes criativos que fizemos nelas e, por
uma série de mecanismos de adaptagao, nos perdemos como os cria-
dores desses ajustes e passamos a ser geridos por eles sem conscién-
cia dessa outorga de poder. Portanto, produto e dependentes dela; no
entanto, precisamos desenvolver a nossa individualidade, a nossa
identidade prépria (logicamente as nossas diferengas) nessas rela-
¢Ges; em geral tendo de nos adaptar a contextos pouco favordveis,
29estranhos e até hostis. Como sermos diferentes numa sociedade coer-
citiva, controladora, mesmificadora, massificante?
Perls e outros (1997) dizem no Capitulo tv: “O conflito entre o
individuo ea sociedade é genuino”, e desenvolvem, a partir dai, a sua
contundente etiologia da neurose. Ou melhor, dos ajustes que fomos
obrigados a desenvolver e que, no contexto, sao criativos e, pelo
menos provisoriamente, “saudaveis”.
Somos, pois, inelutavelmente, seres-em-relagao: crescemos, nos
desenvolvemos, nos constituimos e nos formamos nela. Somos os ajus-
tes, a integragao criativa de nossas idiossincrasias em confronto com
as forgas e as possibilidades externas. Como essas relagGes jamais fo-
ram tranqiiilas ou ideais nesse mundo de guerras (e precisamos, nelas,
ser aceitos e amados), utilizamos toda a nossa gama perceptiva, toda a
nossa sabedoria e nossa criatividade para sobreviver 0 melhor que pu-
dermos e, assim, nos distorcemos, nos alienamos o quanto for neces-
sdrio para nos adaptar da melhor forma possivel a esses processos
relacionais. Nao é demais lembrar que esses ajustes, quando ocorrem,
sao sempre criativos e até “saudaveis”, tanto se os ambientes forem
favordveis ou desfavoraveis. Saudaveis porque foram o melhor dos
possiveis naquele momento e naquele contexto.
Para entender melhor esse drama, voltemos ao nosso problema
filos6fico: essa postura, esse resgate do subjetivismo e do objetivismo,
trouxe no seu bojo a inversao copernicana até hoje nado completamente
entendida (pelo menos por nds, psicdlogos) e muito menos digerida.
A EXISTENCIA ¢ anterior 4 ESSENCIA
Parece que essa inversao, nao tao dificil de entender no plano
racional, é dificilima de ser digerida por completo com todos os seus
desdobramentos, porque praticamente nos coloca “de cabega para
baixo” e muito mais responsdveis pelo processo do que queremos ou
podemos ser. Recorro novamente a Perls et al. (1997), que dizem no
Capitulo 1v: “os erros fundamentais ndo sGo de entendimento e sim
caracterolégicos...” (grifos meus). Af podemos vislumbrar a raiz das
dificuldades que temos vivido e visto por toda parte para uma com-
preensdo mais aprofundada dessas propostas relacionais.
Além dessas dificuldades, como todas as grandes revolugées,
essa nossa também € demorada, dolorosa ¢ lenta. Além, é claro, do
fato de estar em andamento e, principalmente, do inacabamento cons-
30tituir a sua esséncia. Nao estar em andamento 6 fixacao, é estagna-
¢ao. Isso também nos incomoda e dificulta porque gostamos de estar
mais seguros, de ter solos mais firmes, verdades mais prontas e ai
badas. De exercicios pré-programados que nos situem, nos déem
-controle da situagao (embora isso possa redundar em manipula
controle do outro). Em grande medida, somos prisioneiros da “Poli-
tica da Certeza”, verdadeira erva daninha que grassa em nossa cultu-
ra, alimentada pela ilusao e pelo mito de que as coisas exatas e
estdveis nos protegem e nos garantem. E isso é tao forte (apenas em
nossa cultura?) que, quando alguns de nds conseguem abandonéa-la e
adotar uma postura mais critica e de dtividas sistematicas, os demais
passam a chama-los de “confusos” ou, eufemisticamente, de “idea-
listas”. E claro que precisamos dizer isso com aquele conhecido ar
de certeza de quem “sabe das coisas”.
Por tudo isso, as implicagdes e desdobramentos dessa inversio, re-
pito, ainda nao estéo mais bem delineadas (0 velho vicio cultural quase
me fez escrever esgotadas), e isso tanto pelo choque revolucionario que
propée, como, principalmente, pelas resisténcias e defesas que provoca
em nosso conservadorismo e em nosso medo de nos considerar 0 produ-
to de nossas relagGes, 0 que nos forgaria a examinar em mais profundi-
dade a nossa propria historia individual para nos entender, e isso nos
apavora como tao bem provou Alice Miller em sua obra.
Esse resgate, essa valorizagao, tanto do subjetivismo como do
objetivismo e a sua conseqiiente inversdo copernicana, a existéncia
precede a esséncia ou, ainda, de acordo com Buber, a relagao é a
primeira coisa, € anterior ao Eu, ao Tu e ao Isso, € 0 que precisamos
ndo s6 entender racional como aceitar emocionalmente para ficar-
mos confortaveis e licidos em nossa postura. Para isso, repito, nao
temos necessidade de nos tornar filésofos. Precisamos apenas (ape-
nas?) entender a radicalidade da inversao que constitui essa forma j
velha mas, por muitos motivos, ainda revolucionaria de entender a
nos e ao mundo. Revolucionaria, é necessario reiterar sempre, por-
que confronta os padrdes e os medos vigentes em nossa cultura (oci-
dental?, branco-européia?, indoeuropéia? ou mais velha ainda?)
Foi nesse ambiente de dtividas, nesse clima de contestagdes do
institufdo, de reflexGes profundas sobre toda a cultura da época que
surgiram as figuras dos grandes filésofos. psicdlogos. psiquiatras e
neurologistas que langaram as bases daquilo que estamos tentando
entender e fazer.
31istemas vivos como as Terapias Relacion:
é ainda mais imperioso questionar sempre.
As respostas, necessarias para atender ao imperativo
do cotidiano, sao sempre parciais e contingentes.
2
A qualidade de nossas relacoées e as
suas conseqiiéncias
Se a existéncia precede a esséncia, é 6bvio que a relagdo é a
primeira coisa: é anterior ao EU, ao TU e ao ISSO, como tanto acen-
tuou Martin Buber.
Assim, seres humanos e sociedade constroem-se mutuamente
nas relag6es, e, portanto, 0 que somos e fazemos tem sentido em
nossos contextos existenciais, tenhamos ou nao nos apercebido de
nossa hist6ria e de nossos motivos.
Essa formagao comegou ha muito tempo. Estima-se que ha 3,8
milhGdes de anos nossos ancestrais “ja viviam em nticleos familia-
res” (Atlas, 1995: 32): portanto vivendo e desenvolvendo as pri-
meiras relagdes, os primeiros nticleos sociais, ou seja, fazendo-se
mutuamente, regidos pela primeira e maior das necessidades, a de
sobreviver e, logicamente, pelas demais necessidades dela hierar-
quicamente decorrentes.
E tudo que podemos imaginar dessas relagdes é que nao podiam
ser de tranqiiilidade, de paze de harmonia; havia dificuldades e ca-
réncias de toda
2
5nancia no grupo, gerando rivalidade entre os seus membros; pela
posse e consumo do alimento conseguido; e, claro, de todos em rela-
¢a0 aos outros grupos, aos inimigos e/ou predadores.
Nesse instavel clima de inseguranga e de desprote¢ao, desenvolve-
ram-se os primeiros habitos e preconceitos, os primeiros papéis, as primei-
ras crengas a respeito de quem somos, de quem 0 outro é e do que é este
mundo onde estamos (habitos e preconceitos que, obviamente, no mo-
mento do seu desenvolvimento, eram o melhor dos possiveis). Por exem-
plo, os de defender os mais préximos contra os mais distantes. Estes menos
dignos de confianga, mais imprevisiveis e quase sempre vistos como ini-
migos, pelo menos em potencial. O diferente, 0 novo nao podia ser
confidvel por ser uma possivel ameaga a precaria ordem estabelecida e &
conseqiiente e também precaria garantia de sobrevivéncia.
Dessa forma, as primeiras aliangas, as primeiras cumplicidades
jd aconteceram “contra” alguém ou contra alguma coisa: um inimigo
comum, um grupo rival, grandes animais ou simplesmente 0 outro
ou o diferente. Até hoje nao ha modificag6es fundamentais nesse
aspecto: somos instados desde muito cedo a desconfiar de estranhos
e/ou de diferentes.
Enfim, a harmonia, quando ha, vem-se fazendo “contra” alguma
coisa; “contra” os inimigos considerados maiores ou piores. A histé-
ria est4 cheia de exemplos da mais pura solidariedade dos povos du-
rante as grandes guerras ou diante de pi
Nesse ambiente de desconfianga e de lutas constantes pela sobre-
vivéncia imediata ou pela melhor forma de continuar vivendo, o ser
humano forjou-se, foi forjado e forjou a sociedade, da melhor forma
que péde, sempre dentro de grandes limitagdes contextuais e sempre
uns tentando formar (ou deformar) os outros 4 sua imagem e seme-
Ihanga, claramente para aumentar a propria garantia e seguranga.
Esse estado de coisas, essa forma de interagir nao mudou até
hoje, por incrivel que possa parecer aos menos atentos. E necessaria
muita atengao para perceber essa trama, primeiro porque sempre vi-
vemos nela (“‘o peixe nado sabe que a 4gua existe”, jd disse alguém); a
outra dificuldade em perceber essa trama é 0 seu camuflamento, 0
fato de essa pressao exercer-se de forma cada vez mais disfargada.
mais mentirosa; disfarces e mentiras desenvolvidos para manter 0
status quo da violéncia sem confrontar os crescentes, e com freqiién-
cia hipécritas, valores humanitarios. O que continua plenamente vi-
33sivel sao 2
violéncias abertas e assumidas como massacres. guerras.
estupros, conflitos manifestados aparentemente porque o outro torce
por uma equipe de futebol diferente ou outro motivo fuitil qualquer;
abusos de toda ordem e desrespeitos os mais variados; menos per-
ceptiveis sao as sutis e bem-camufladas violéncias, tao destruidoras
quanto as primeiras, principalmente por passarem despercebidas até
pelos agressores (que, assim, se livram da culpa consciente); desper-
cebidas mas sentidas por todos e, portanto, exercendo crucial influén-
cia nas relagdes.
Até no proprio titero, até tao pouco tempo alardeado como palco
de uma relagao paradisfaca e sem problemas, a luta é a constante
(Verni, 1989, e o psiquiatra infantil de Belo Horizonte, José Raimun-
do Lippi, entre outros, estudam e se preocupam com essa primeira
relagdo e as suas conseqiiéncias)
Com toda essa histéria, nao é de admirar que sejamos seres mais
para desconfiados e defensivos do que para seres propensos a confiar
ea ter fé em nds mesmos, nos outros e no mundo. Na guerra, todos
tém razao para desconfiar de todos. A brincadeira de que “em rio
que tem piranha, jacaré nada de costas” é uma boa metafora para o
clima da maioria de nossas relag&
A dura realidade é que somos 0 resultado, 0 produto, desse tipo
de relagdes. Desenvolvemos-nos, nos fazemos sabiamente geridos
pela necessidade de sobreviver, nessa luta inevitdvel e incessante,
a guerra sem tréguas. Constatagao que faria de nds amargos pes-
mos para o fato de que essa forma de ser e
4o de mundo se desenvolveram como o melhor das possiveis
em determinados tipos de contexto e de relagGes desfavoraveis e di
ficeis e que esses contextos e essas relagdes nao correspondem a
nenhuma “natureza” humana e podem, portanto, ser modificados,
embora com muito trabalho e sofrimento. Sofrimento que estamos
sempre evitando e, com isso, mantendo o status quo. Mais um pai
doxo existencial: a evitagao do sofrimento é saudavel em situagGes
emergenciais e muito perigosa como atitude geral e fixada.
Perls et. al., (1997) expuseram esses conflitos e ao que eles le-
vam, notadamente nos Capitulos !v, vill e Ix, uma visdo, como d.
mos, a primeira vista, pouco otimista. Para os mais polianicos, até
pessimista, pois se trata de uma visao desvestida de qualquer prurido
de romantismo utdpico ou de hipocrisia, calcada em uma sélida e
despreconceituosa forma de analisar a realidade.
34Alice Miller, no seu segundo livro (1984a), aborda o tema da
manipulagdo e dos maus-tratos na infancia, quando, baseando-se
em exemplos, expGe os seus achados sobre os motivos de chacinas.
ditaduras cruéis, crimes seriais e dependéncia de drogas.
Edward L. Deci (1996) demonstra experimentalmente a falacia de
valores que sao verdadeiros pilares de nossa sociedade, como a com-
peticao, o estimulo, a punigao. Enfim, de todos os valores que tém
como base 0 autoritarismo, a forga da motivacao extrinseca, valorizada
historicamente em detrimento da motivagao intrinseca, esta sim capaz
de nos levar a uma vida produtiva e feliz e que s6 surge quando ha no
ambiente 0 “suporte para a autonomia” (para a liberdade).
E importante ressaltar que essas idéias filosoficamente corretas
e exaustivamente comprovadas em experimentos clinicos, educacio-
nais e oganizacionais ha tanto tempo sao, também, objeto de com-
provagao em experimentos controlados. A importancia do valor desse
tipo de verificagao ja foi reconhecida por Carl Rogers (1985) ao apon-
tar como principal capitulo dessa sua obra exatamente aquele em que
suas idéias séo submetidas e comprovadas experimentalmente.
oO problema parece paradoxal porque, para nos situar em uma
“otimismo realista” em relagdo a viabilidade de um ser
humano mais feliz e produtivo, bem como as possibilidades de inter-
feréncia (terapia?) sobre ele, para melhorar a qualidade de sua vida
por meio de relagées mais sauddveis, é imprescindivel que ndo ne-
guemos (como € nosso hdbito) a realidade dura e aparentemente
pessimista dos fatos da nossa histéria e do nosso cotidiano. A nega-
¢ao ingénuo/romantica de fatos desagradaveis pode ser prazerosa e
até saudavel, se consciente e transit6ria, mas € geradora de proble-
mas sérios, se nela submergirmos como atitude existencial e, princi-
palmente, se reprimirmos a consciéncia dela, se a vivermos, como
tanto acontece, na dimensao do esquecimento: “esquecida sem sa-
ber-se esquecida”, como diria Bornheim (1983).
Clara e obviamente, esse ser humano, resultado dessa constante
luta, NAO PODE apenas ser aferido “de fora” por nenhum guru de
plantao. Por mais sdébios que sejamos com nossos psicologismos,
sociologismos, antropologismos ou filosofismos, somos ingénuos
aprendizes de feiticeiro diante da sabedoria nascida, forjada e desen-
volvida milenarmente nessas circunstancias vitais. E essa sabedoria
aponta para a direcdo oposta a das verdades prontas e acabadas.
35Aponta para a diregdo da sabedoria socratica, da dtivida permanente
e da consciéncia das préprias limitagdes.
Apesar da obviedade dessa constatagao, esse resultado (sabio)
que somos, esse nosso jeitao peculiar que desenvolvemos para so-
breviver melhor, para nos “virar”, est sempre na mira de criticas do
contexto, criticas que somos obrigados (por motivos de autopreser-
vacao e de reducao do conflito) a incorporar como nossas, em algum
momento de nossas vidas, geralmente muito cedo, e que passamos a
defender, como se nossa organizagao interna, nossos ajustes de so-
brevivéncia é que fossem sempre inadequados, incorretos.
A desconfianga de nossos préprios argumentos racionais (de
nossa fala falada ou fala segunda, chamada por Perls de fala “sobre”
ou “sobreismo”), do excesso de explicag6es e teorias é sempre um
bom antidoto para “nossas cataratas” pois, com uma freqiiéncia maior
do que possamos imaginar, esses argumentos, explicagGes e teorias
podem estar sendo inspirados, ditados e estabelecidos por nossa
defensividade, por nossa necessidade de evitarmos o préprio sof
mento, de evitarmos os conflitos externos e internos.
Porém, de alguma forma e em alguma instancia, esse mesmo sa-
bio que se reprimiu, que se “ausentou de nosso cotidiano” para melhor
adaptar-se (sem integragao), embora a consciéncia dessa rentincia tam-
bém tenha sido de igual modo reprimida por economia e para minorar
a dor do conflito. Nesse nivel, ele também sabe que € vitima de pre-
conceitos e que 0 que tem de mais intimo, legitimo e precioso foi alie-
nado. (Para maior aprofundamento dessa questo crucial e, assim, para
entendermos mais acuradamente a nossa posigao em relagao a etiologia
da neurose, ver Perls et al.,1997, Cap. 1v; bem como as obras mais
recentes de Alice Miller, notadamente, 1997, 1993 e 1984a.)
Por tudo isso, 0 nosso pobre sabio fica desacreditado por todos e
principalmente por néds mesmos, e sob o fogo cruzado de cri
externas e internas e, ainda e por isso mesmo, exposto a todo tipo de
salvador, de “iluminado”, de guru, sempre pronto a nos “salvar”, de
acordo com as suas pré-concepgdes, com os seus preconceitos cris-
talizados. Quando um tipo desses salvadores, desses ilusionistas do
atalho e do faz-de-conta se desgasta, se desmoraliza, sempre apare-
cem outros com algumas modificagdes na roupagem e no discurso,
mas sempre com a mesma proposta de atalho, de resolugGes facei
de manipulagao, de orientagao, de pedagogia negra, enfim, de reso-
36Jugao de problemas de superficie e de mais autoconquista e de auto-
anulagao do individuo (insisto na bibliografia citada no parégrafo
anterior € acrescento mais uma obra de Alice Miller, 0 seu livro,
1984b, em que explorou o tema da manipulagao em terapia)
O pior residuo que nos deixam é que com cada um com quem nos
decepcionamos, 0 nosso sabio interior, além de sair enfraquecido da-
quela relagao, se torna mais defensivo, mais desconfiado e menos pro-
penso ao desvelamento, porque esse desvelamento passou a ser mais
uma oportunidade de desrespeito, de palpites descuidados, enfim, de
invasao de sua intimidade, 0 que pode ter significado humilhagao, ver-
gonha ou mesmo simplesmente a sensagao de desconforto e inade-
quagao perante os outros e, ainda e sobretudo, a sensagao de solidao
por mais uma vez nao ser ouvido e muito menos entendido.
Enfim, abrimo-nos para sermos compreendidos e para nos com-
preendermos mais. No entanto e quase sempre somos desconfirmados
com brutalidade ou com sutileza. A sutileza e a pseudo-aceitagai io ‘Jo
piores porque desqualificam as nossas defesas, as nossas
, tao dura e sofridamente conquistadas e desenvolvidas.