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| Introdugéo inhas leituras, pesquisas e reflexdes sobre a chamada psicologia moral ciéncia ‘ocupada em desvendar por que processos mentais uma pessoa chega a inti- mente legitimar, ou nao, regras, principios e valores morais - levaram-me, cabo de praticamente duas décadas de trabalho, & necessidade de apresen- 1 uma sintese dos dados que fui paulatinamente coletando e das idéias que | pacientemente burilando. Muitos desses dados e idéias foram publicadas \juie ali, seja em revistas cientificas, seja em capitulos de livros, seja ainda em Ivros. Mas faltava-me escrever um texto no qual o eixo central de meu traba- ho estivesse presente. fesse texto que, hoje, submeto ao leitor. No primeiro capitulo, debrugo-me sobre os conceitos de moral ¢ ética, endo que a primeira refere-se & dimensao dos deveres, e a segunda, sobre a ilimensao da “vida boa’, da “vida com sentido”. Como o sublinharei varias ‘eres, a disting&o que estabelego entre moral e ética nao é a tiniea posstvel,, Inas creio firmemente que ela € essencial para a compreensio psicol6gica das Condutas morais. Mais ainda: creio que nos permite articular, sem reduzi-las uma & outra, as dimensdes intelectuais e afetivas presentes na moralidade. No segundo capitulo, abordo a dimensao intelectual da ago moral, ow Scja, © aspecto do saber fazer, ou, se quiserem, da competéncia cognitiva. Co- eco por sublinhar a impossibilidade de dissociacao da razo e da moral, Em seguiida, sublinho 0 fato de a moral ser um objeto de conhecimento social, objeto este que pode ser dividido em trés grandes classes: as regras, os princi. bios e os valores. Na seqiténcia, abordo dltas competéncias intelectuais neces- siitias ao juizo € & agio moral: 0 equacionamento e a sensibilidade morais. Techo o capitulo falando do desenvolvimento do jutzo moral, com destaque para as abordagens de Piaget e de Kohlberg, terceiro capitulo é dedicado & dimenstio afetiva da aco moral, ou seja, ‘i dimenstio motivacional que corresponde ao querer fazer. Apés insistir sobre o eq ever moral corresponde a um certo tipo de voligio, trato de RNs tase dtceetolvimento afetvo da moralidade. A primeira contesponde| to que chamo de “despertar do senso moral’. Nessa fase, destaco os sentimens {os de medo, amor, simpatia, confianea, indignacio e culpa. A segunda fase do desenvolvimento afetivo é aquela que chamo de “personalidade ética”. Nela, é enfatizada a importdncia do sentimento de vergonha ¢ seu papel na articula- {io entre moral e ética, Termino o capitulo com consideracoes @ respeito das possibilidades e probahilidades de uma pessoa construir uma personalidade titica, personalidade na qual o sentimento do aito-respeito é a motivacao ética hecessdria ao respeito moral por outrem. Tais considerag6es levam-nos inevi- tavelmente 2 questo educacional. Como essa questo nao se confunde com’ ‘aquelas colocadas pela psicologia, mas pede tratamento especial, reservo-me a perspectiva e a tarefa de elaborar outro liv a esse respeito, que empregaré os blementos tedricos aqui apresentados para refletir sobre a moral e a ética pelo prisma das dimenses educacionais. Moral e ética objetivo deste capftulo & o de apresentar conceitos que sejam titeis para 0 Inpreendimento psicolégico de compreenséo das agées morais. Para tanto, ipresentarel definigGes diferentes e complementares de duas palavras que tém a ver. mais freqiientado nossas conversas cotidianas: moral e ética. Peco, portanto, ao leitor, que faca 0 esforco de, momentaneamente, se despir das Uefinigdes que ele habitualmente atribui aos dois vocdbulos, e que aceite me seguir nos meancros de minha argumentago. Mas por que falar em argumenta- ilo, se se trata apenas de dar definigSes? Nao seria mais simples tao-somente lipresenté-las? Nao, porque definir implica fabricar conceitos, e conceitos so ctiados para responder a perguntas. Acho que foi Edgard Morin que disse que erro da edueagéo (em todos os niveis) ¢ o de ensinar as respostas que a filosofia e a ciéncia deram, sem deixar claro para os alunos quais eram as per- juntas que as motivaram. Nao queto aqui cair em erro parecido e me limitar a ar definigées sem minimamente demonstrar em que medida sao titeis, até hnecessérias, para tratar o tema deste livro, a saber: dimensOes psicolégicas da moralidade. Para tanto, comecemos por avaliar um problema central das abordagens pstcolégicas da moral (étea chamada de psicologia moral): as relacoes entre razdo e afetividade, Serd justamente para tentar langar luzes sobre tal relag&o que diferenciar moral e ética ser, penso, proficuo. RAZAO E AFETIVIDADE Seja qual for a formaggo de quem Ié estas linhas, certamente no fiears espantado se cu lhe disser que 0 fenémeno da moralidade recebeu e recebe diferentes interpretagées psicolégicas. Haver algum tépico sobre o qual esta- tio cle acorsdo ps @ esta espécie de didéspora conceitual que caracteriza a psicologia, e as mudangas de paradigmas em to pouco tempo. A psicologia moral nao foge a regra: ela é palco da diversidade teérica, & também de modismos, em geral, decorrentes de demandas malformuladas de no privilegiam os experimentos de laboratéria, outros hé que preferem o empre- yo de questiondrios. Como era de se esperar, a esta diversidade de método corresponde uma diversidade de abordagens tedricas e de conceitos decorren- tes: falaro uns em superego, outros em construcdio, outros ainda em instinto; ali fala-se em condicionamento, acold em representagées sociais. Assim, o adulto preocupado com educacéo moral ter na sua frente uma vasta gama de opedes pedagégicas, freqiientemente contraditérias entre si: enfatizar relagées afetivas entre os filhos e os pais, apelar para a reflexio, confiar na “sabedoria” biolégi- ca do ser humano, disciplinar as criangas, dar-Ihes um “banho” de cultura, e outras mais. No seio dessa diversidade te6rica - que seria benéfica, se houvesse diélo- {go entre as varias correntes, o que raramente acontece -, proponho que esco- ihamos duas linhas de demarcacZo. A primeira: énfase na razéo ou na afetividade; a segunda: definigdo de o que é a moral. Aparentemente estranhas uma a outra, vveremos que essas clas fronteiras coincidem na separacéo dos territérios ted. ricos. Para mostré-lo, vou escolher quatro abordagens representativas da psi- cologia moral: a de mile Durkheim (1902/1974), a psicandlise de Sigmund Freud (1929/1971) e os construtivismos de Jean Piaget (1932) e de Lawrence Kohlberg (1981). As duas primeiras enfatizam a dimensio afetiva dos compor- tamentos morais e nao definem um contetido preciso para a moral, as duas \iltimas enfatizam a dimensio racional ¢ assimilam a moral a principios de igualdade, reciprocidade e justica. Analisemos essa afirmacio, comeganco pe- las dimens6es afetivas (energética da ago: pulsdes ¢ sentimentos)! ¢ racionais (operagies da inteligéncia). Durkheim, preocupado com a viabilidade de uma educaco moral laica (comeso do século XX)? publicou, em 1902, um belo e consistente livro sobre 0 tema, no quel ele analisa o processo psicolégico que leva um individuo a pau- tar suas condutas pela moral. O socidlogo francés identifica tal process 20 sentimento do sagrado, fuséo de dois outros: 0 medo decorrente do reconheci ‘dlogos de diferentes abordagens tedricas? Certamente niio, na das ciéneias humans em geral, é bem conhecida de todos. Alguns chegam a dizer que no existe Psicologia, mas sim “psicologias”. Tal diversidade é, as vezes, baseada em reflexdes epistemoldgicas conscientes, como & 0 caso, Por exemplo, da psicandlise freudiana e do construtivismo piagetiano. Porém tam him é, as vezes, decorréncia de laxismo intelectual e de modismos, 0 que faz Ira{ Carone (2003) perguntar-se como uma eiéneia pode acreditar ter tido tan= iatizago dos comportamentos alheios, notadamente das criancas. Encon- tramos diversidade no que tange aos métodos de pesquisa, baseando-se uns ‘¢m estudos de casos clinicos, outros em entrevistas clinicas desencadeadas por dilemas, outros ainda em observagdes de comportamento; ha os que ————— 16 de uma forga imensamente superior & desejabilidade despertada por yer portador de qualidacley aprectivels e indispensdveis. Durkheim, coe- om BUNA aborelagem socioldgica, pensa que tum “ser” capaz de despertar iimento do sagrado ¢ 0 "ser coletivo, isto ¢, a sociedade. Cada individuo pode contra ela, que obedece a leis préprias irredutiveis Aquelas que Ses membros: ela é essa forga imensamente superior. E cada individuo lt seria, nenhuma qualidade ow riqueza possuiria, se nao fosse gracas & iedacle em que vive: ela é este ser portador de qualidades apreciaveis Iypensiiveis. Logo, um trabalho de formacéo moral consiste em desenvolver, trlangas e nos jovens, 0 sentimento do sagtado em relagio & sociedade, a {a, sentimento do qual decorrerd o respeito devido as normas morais. No 40 caso apresentar os passos didaticos de tal educacéio, mas sim de subli 10 fato de o essencial do trabalho pedagégico proposto por Durkheim ter (0 alvo a dimensio afetiva, um sentimento. E a racionalidade? Tem ela um 1? Durkheim, longe de ser um “obscurantista” ou um adorador do “culto emogiio”, tem grande estima pelas faculdades da razo, todavia nao reserva Ha papel preponderante no processo de legitimacao da moral. Para ele, 0 ividuo deve fazer uso de sua inteligéncia néo para construir uma moral, Ws sim para conhecer e compreender aquela imposta pela sociedade, e me- aplicé-la, Assim como seria absurdo querer legislar no Ambito da nature- | seria também pura fantasia cada um pretender legislar normas morais, pois is, como as leis da natureza, tém sua fonte em uma esfera supra-individual. suma, para Durkheim, ser moral é obedecer aos mandamentos de um “ser etivo” superior que inspira o sentimento do sagrado por ser temido ¢ dese- |. Bis 0 que, em linhas gerais, pode-se dizer da abordagem de Durkheim. jamos agora a dle Freud. © grande mérito do pai da psicandlise foi certamente o de ter sublinhado bardter conflitivo da telacdo do indivfduo com a moral, Por um lado, o indi- luo quer a ela se submeter, pois sabe que esse ¢ o preco a ser pago para viver n sociedade e se civilizar. Por outro, ele reluta fortemente em fazé-lo, pois tal bmissio implica perda de liberdade e, portanto, rentincia a saciagao de dese- i, F por essa razsio que o porvir moral de cada um ¢ incerto. Freud observa ive grande némero de adultos segue as leis morais apenas por medo das san- Wes. Ele observa também que, mesmo quando a formacao moral for bem- ieedida, nada garante que, em determinados momentos, forcas primitivas No possam voltar a dirigir as ages dos homens. O escritor austriaco Stefan Weig, que o encontrou na Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial, Jata que Freud, embora muito triste, nao se mostrava surpreso com a explo- ho de ddio e violéneia que assolava a Europa: seu esquema te6rico admitia “oltas &s trevas” e & barbdrie, mesmo em povos de longa tradigo moral. O Id, pécie de vuleéo em constante atividade e fonte inconsciente de desejos, pre- {a ser vigiado e controlado a todo instante para que nao faca destruidoras INuupgées no cotidiano dos homens: essa é a tarefa da consciéncta moral. Mas Ie outra forga psfquica pode desempenhar papel tao dificil? A razdo? Na linguagem comum, a nogéo de consciéncia remete a ela, Mas niio Para ele, a consciéncia moral ¢ expressiio dos mandamentos ce outra instéine) psiquica inconsciente, & qual deu o nome de superego (ou ideal do ego)’, Dit de outra forma, lexicalmente paradoxal: a consciéncia moral tem raizes incon clentes. Suas leis aparecem inteligiveis & razdo, mas nao todos os motivos cl stia legitimacao, e nem as fontes energéticas de sua forca coercitiva. Em rest mo, para Freud, a aco moral explica-se por um jogo de forcas afetivas, cul _yénese 6, ela mesma, fruto de pulsdes e sentimentos experimentados pela crianca ¢m relagio as figuras maternas e paternas (0 Complexo de Edipo). Lembremos gue Freud, assim como Durkheim, no despreza o papel emancipador da razio (senio, por que ele mesmo teria refletido e publicado tanto?), todavia suas observagées o levaram a limitar ~ e muito ; seu aleance. Vimos brevemente duas abordagens tedricas que privilegiam o papel da afetividade para explicar os comportamentos morais dos homens. Notemos que ambas inclinam-se a considerar o individuo como um ser moralmente heterénomo. Em Durkheim, a heteronomia traduz-se pela obediéncia a algo remediavelmente exterior 20 sujeito: os mandamentos da sociedade. Cada (duo recebe um sistema moral pronto, 20 qual deve adaptar-se. Logo, no hd desenvolvimento moral propriamente dito, com diversas fases, mas sim a aprendizagem ce um modelo: antes do despertar do sentimento do sagtado, a crianga é pré-moral; depois, ela é moral. Em Freud, a heteronomia traduz-se por uma ilusGo: 0 individuo pode até acreditar que seus comportamentos mo- rais so devidos exclusivamente a sua “vontade boa”, mas essa vontade é, na verdlade, profundamente determinada por processos que escapam a seu con- trole, por serem inconscientes. Pode-se praticamente dizer que 0 sujeito age moralmente “A sua revelia”, que ele obedece, portanto, a algo irredutivel a suas decisées conscientes. E, como para Durkheim, nao se pode dizer que a psicandlise nos apresente um modelo de desenvolvimento moral, pois a histé- tia de cada um de nés limitar-se-ia a duas fases: uma pré-moral, antes das peripécias do complexo de Edipo; e outra, moral, depois delas. {As posicSes tedricas de Piaget e Kohlberg nos apresentam um quadro to- talmente diferente. Nelas o papel da razo ¢ privilegiado e a autonomia é possfvel ~ 0 que, alids, é coerente, uma vez que a nocio de autonomia sé faz sentido na esfera racional. Comecemos por lembrar as idéias mestras do cons- trutivismo piagetiano. Nunca ¢ demais lembrar que Piaget dedicou apenas um livro a questo do desenvolvimento moral e que, portanto, para entender suas idéias a respeito da moralidade é preciso situd-las no contexto maior de sua epistemologia ge- nética. Destaco quatro eixos comuns a todas as suas teorizacées, sejam elas aplicadas a estruturas da inteligéncia, a0 conhecimento fisico, & meméria, as imagens mentais, etc., e & moral. Os quatro eixos so: 1, 0 “sujeito epistémico”; 2. a genese; 3. f construgio; 4, 1 interagio, A preoeupagiio de Piaget nunca foi a de desvendar os meandros do desen- Ivimento psicoldgico, mas sim de identificar aquilo que seria comum a todos \lividuos. Daf a dificuldade de empregar os seus conceitos para dar conta liversas individualidades (os conceitos elaborados por Freud, pelo contré- permitem dar conta de diversos casas, notadamente psicapatelégicos — sua Hii) ¢ clinica). O chamado “sujeito epistémico”, ou sujeito do conhecimento, iduclo por Piaget, é aquele que, se ele tiver razo, encontra-se em todos nés clo elaboramos conhecimentos sobre o mundo e sobre nés mesmos, Dito puitra forma, o epistemédlogo sufco somente se interessou pelas condigdes coldgicas necessétias & elaboracao do conhecimento, mas nunca afirmou i {ossem suficientes. Exemplo: sem operagbes légicas, o conhecimento cien- ico ¢ impossivel, todavia, hé mais aspectos que intervém na construgao des- Piaget limitou-se a estudar o porvir das estruturas légicas. Ele formulou a hipétese de que as caracteristicas psicoldgicas do adulto ip fruto de uma génese, de um desenvolvimento, e que este passa por diver- fases, sendo cada uma delas superacio da anterior. Logo, ele nunca pensou termos bindtios do tipo: nfo ha pensamento légico e depois h4, nao tem inhecimento fisico, e depois ha, etc. As estruturas ldgicas e o conhecimento iiico comecam a ser elaborados desde 0 nascimento e 0 que faz a diferenca hire uma crianca ¢ um adulto nao é presenca ou auséncia de certas capacida- ie}, mas sim o nfvel de sofisticacao de cada uma delas. ‘Tal desenvolvimento € naturalmente fruto de maturacio biolégica, de iaclas experiéncias de vida e de ensinamentos formals (o que se aprende na wola, por exemplo), mas esses trés fatores, diferentes entre si, so harmoni Klos por um processo psicoldgico ao qual Piaget dé o nome de equilibracéo. processo de equilibragéo ¢ devido a uma capacidade inerente a todos os \lividuos: a capacidade de auto-regulacao, ou seja, de auto-organizacao. E ‘jesse sentido que a teoria piagetiana é construtivista: as estruturas da intel séncia e o conhecimento sto fruto de um trabalho individual, de uma labuta psiquica de auto-organizacéo, € ndo de mera cépia de modelos externos. 0 processo de construcéo dé-se na interacao com o meio, essa interagio } mediada pelas ages do sujeito sobre esse meio. Se houver pouca interacao, haverd pouca construcéo, e se a interacéo deixar pouco espaco as atividades pstruturantes do sujeito, haverd pouca construcdo, ou construcao parcial. Isto posto, podemos compreender como Piaget pensou a moralidade. Em primeiro lugar, ele se interessou pelo que seria comum a todos os \ndividuos. Poderiamos dizer que estudou o sujeito moral (correlato do sujeito epistémico). F formulou a hipdtese de que o sujeito passa, se as interagdes com 6 meio forem favordveis, de uma fase de anomia (pré-moral) a uma fase de ‘autonomia, pasando por uma fase de heteronomia. E quando ele diz que ado- Jescentes apresentam caracteristicas de autonomia moral, nZo esté afirmando gue sho totalmente auténomos, mas que o fato de serem capazes de legitimar filgumas regras morais sem qualquer referéncia ao prestigio das figuras dk Auiloridade, mostra que, de fato, a autonomia corresponde a um potencial hu Mano universal. Jim segundo lugar, a teoria piagetiana fala em desenvolvimento moral, hilo em apenas duas fases, uma pré-moral e outra moral, como o fazer Durkheim e Freud, Piaget identificou dois estagios que merecem o nome da Morais (ele fala em duas morais da crianca): a heteronomia e a autonomia, A hheteronomia moral é, em linhas gerais, a fase que Durkheim considera como a moralidade propriamente dita: respeito incondicional por figuras de autorida. Ue, pelo grupo ou pela sociedade. A autonomia ¢ a superacéo dessa moral day obediéneia a algo exterior ao sujeito, superagio essa que se traduz tanto pela hecessidade de reciprocidade nas relages (respeito muituo, e nao mais unila- Joral) quanto pela necessidade subjetiva de passar, para legitims-los, os princt= plos © normas morais pelo crivo da inteligéncia. Vemos aqui o papel Incontorndvel da razo na fase auténoma do desenvolvimento moral. Logo voltaremos a ele. im terceiro lugar, 0 desenvolvimento moral, assim como os demais, 6 Visto por Piaget como fruto de uma construgio, de uma constante auto-orga- nizacio. Em quarto e tiltimo lugar, essa construgio acontece em contextos de Interagdo, no caso da moral, de interagio social (no caso do conhecimento, a Interacdo com os objetos cumpre papel importante). Se esta for, como queria Durkheim e como avaliava Freud, baseada na coagéo, ou seja, em uma rela- glo hierdrquica de mandamentos e de obediéncia, a heteronomia sai reforca- dy, Em compensagao, se 0 convivio social permitir relagées simétricas de coo- peracao (0 “fazer junto”, sem lideres ¢ liderados), a autonomia moral torna-se possivel Em vista do que foi dito, impde-se notar que a raz4o ocupa lugar central, dla teorizagio piagetiana sobre a moral, e isso por varias razées, das quais estaco duas. Comecemos por lembrar que o objetivo explicito de Piaget em seu livro 0 Juutzo moral na crianga, publicado em 1932, é 0 de estudar, como o titulo 0 indica, o jufzo moral. Nas primeiras paginas dessa obra ele previne o leitor de que este ndo encontrard um estudo das acées e sentimentos morais, mas sim da evolugéo dos critérios empregados pela crianga para julgar 0 certo e o erra- (lo, o bem e o mal, Porém tal opgdo testemunha a grande importineia atribut da por Piaget ao papel da racionalidade. Gom efito, ele nao teria dedicado todo um conjunto de pesquisas & dimensdo racional da moralidade se pensasse que tal dimenso tem pouco peso nas acdes morais dos homens. Mais ainda: m seus escritos pedagégicos, Piaget nao hesita em inspirar-se na sua teoria para aconselhar estratégias educacionais para o desenvolvimento da autono- Inia moral, e nelas a reflexo ocupa um lugar central — 0 que prova, portanto, que ele acredita firmemente nas virtudes da inteligéncia no campo moral jgamos lembrando também que Piaget falou de afetividade, mas de yma forma que permite avaliar 0 quanto a razio é, para ele, dimenstia moral {neontornével, No livro ao qual acabamos de nos referit, ele mostra concordan- tin com Durkheim ao explicar uma das razes pelas quais, em fase de Hieteronomia, a crianca obedece por assim dizer cegamente: trata-se de uma fustio dos sentimentos de amor e medo. Porém, ¢ isso é importante, referéncias ji afetividade desaparecem quando ¢ analisada a fase da autonomia. Nela, 0 sentimento do clever moral é assimilado a uma necessidade Iégica. Endo & por jicaso que sua teoria é vista como de inspiragéo kantiana: a sede da moral juténoma est na razo (para Kant, somente a moral auténoma, livremente stabelecida e consentida pelo individuo merece 0 nome de moral). Porém, iliferentemente de Kant, Piaget reconhece que a questao da motivagao das figdes humanas, entre elas as morais, no pode ser tratada sem uma teoria da iietividade, sem a referéncia a uma energética, Em 1954, ele dedica todo um cuurso na Sorbonne (Paris) as relagdes entre a inteligncia e a afetividade no lesenvolvimento mental. Nele, Piaget volta & questo da moralidade, conside- rando a hipétese de que ha um paralelo entre o desenvolvimento intelectual e iMfetivo, ambos objetos de reorganizacdes ao longo da evolucao psicolégica. O curso traz. pistas valiosas para pensar a moralidade tanto do ponto de vista facional quanto afetivo, mas trata-se antes de um grande modelo para pensar limbas as dimensGes, e nao uma teotia dos sentimentos morais. Piaget conven- ce ao dizer que, sem operacdes ldgicas, 0 ideal moral da reciprocidade (tipico la autonomia) ndo seria posstvel, uma vez que a crianga pequena, por falta de pensamento reversivel, ainda nao concebe operatoriamente a reciprocidade (que permanece parcial e fugaz). Piaget convence também ao lembrar que a moral pressupde conservacao de valores e nao apenas investimentos afetivos passageiros (fazer uma promessa e cumpri-la, por exemplo, pressupde a con- servagio; do contrério, a promessa nao passaria de um arroubo afetivo mo- mnenténeo, e nunca seria, portanto, cumprida), ou seja, que a propria afetividade modifica-se na medida em que se modificam as estruturas do pensamento. Mas tudo isso ainda nao nos traz uma teoria do querer agir moralmente. Com relacéo a esse ponto, Lawrence Kohlberg procurou completar € sofisticar a teoria moral de Piaget. 0 fez acentuando ainda mais a énfase no papel da razo. Podemos ser aqui bastante breves nos comentarios sobre a \eoria do psiedlogo americano gracas ao qual a psicologia moral consolidowse como Area nobre da psicologia, pois ela se inspira nos quatro eixos eleitos por Piaget como nodais para uma teoria da mente humana. Desnecessério, portan- ‘to, voltar a falar deles. Importante € saber que Kohlberg debrugou-se sobre 0 sujeito psicoldgico, e nao sobre este sujeito abstrato que chamamos de “sujeito moral”. Vimos que Piaget considerou a hipétese de que o rumo do desenvolvi- mento moral é 0 da autonomia, e que, tendo encontrado nas suas pesquisas indfcios dessa autonomia em sujeitos de 12 anos, mostrou-se satisfeito € pas- sou a pesquisar outros temas: sua hipétese estava confirmada, e no lhe inte- ressava entrar na complexidade do universo moral concreto dos individuos. Mas tal foi o interesse de Kohlberg. a, ¢ Piaget também, aids, que ‘alguns Indicios de autonomia nao bastayaih para afirmar-se que, de fato, um. sadolescente é moralmente auténom®, E. a experiéncia ¢ as observacbes Hidianas eram suficientes para convene@:lo de que a autonomia moral era ‘um fendmeno raro na populagio,* Assim, guardou de Piaget a idéia de que 0 ‘eaminho clo desenvolvimento moral vai da heteronomia para a autonomia, ‘uly mostrow que esse caminho é bastante longo e que a majoria das pessoas jpirn no meio dele. Com efeito, o referica caminho corresponde a seis estdgios Ue desenvolvimento, e o grosso da populagao nao ultrapassa 0 quarto (cha- ‘indo de convencional) . Abordaremos mais detalhadamente a teoria de Kohlberg {io Capitulo 2. Para o presente propésito, basta lembtar que, para ele, a evolugio, noral deve-se essencialmente ao desenvolvimento da razo, Tanto verdade jue tuma das decorréncias pedagdgicas centrais de sua abordagem & a discussdo dh ilemas morais, poranto um exeretcio racional. Estamos Tonge do apelo ao senlimento do sagrado ou das peripécias amorosas da pequena infincia, ‘Acabamos de recapitular quatro teorias marcantes da psicologia moral, € yyimos que duas delas, em varios pontos semelhantes (Piaget e Kohlberg) ele- om a razio como fator central, e que as duas outras, embora de inspiragdes pistemolégicas bem distintas (Durkheim e Freud), tém em comum o fato de (olocarem no centro o debate da dimensao afetiva (sentimentos e pulsdes). Alguém poderd afirmar que se alguns elegem a razio ¢ outros a afetividade, nota-se apenas de énfases diferentes, de opgdes tedricas privilegiadas, e que abe a terceiros procurar junté-las, articul-las para dar conta do fenémeno moral com um todo. Sim, a tarefa de elaborar uma abordagem teérica que juticule o “querer fazer” (energética) ¢ 0 “saber fazer” (Fazio) € necesséria, para nao dizer urgente; porém trata-se de uma tarefa delicada, e que esbarra mn variados obstdculos. Um deles é a extrema dificuldade, para nao dizer a Impossibilidade, de assimilar uma & outra teorias de bases epistemoldgicas diversas, para nao dizer contraditérias. £ claro que se pode, por exemplo, “apro- ar” um pouco de Piaget na psicandlise, ou um pouco de Freud no constru- smo, mas tal nao equivale a fundir as duas teorias; nao se realiza o sonho igo de juntar Freud e Piaget, sonho do qual, aids, a maioria j& acordou. Salpicar conceitos de uma teoria em outra ndo resolve a questo, e mais fre~ glientemente obscurece os problemas do que os resolve.* Outro obstéculo é, reio, de extrema relevancia: a definigao do que seja 0 objeto da moral. Trata- se da segunda linha de demarcagéo de cada lado da qual encontraremos a mesma repartigio das teorias analisadas: as de Durkheim e Freud de um lado, fis de Piaget e de Kohiberg cle outro, As primeiras nao elegem um contetdo moral especifico e séo relativistas, as segundas o fazem ¢ sao universalistas. Mas antes de abordarmos tal oposicio, notemos que as quatro concep- {goes tém algo em comum em suas definigdes da moralidade: todas elas a co Cebem como um conjunto de deveres, e, portanto, procuram estudar a génese do sentimento de obrigatoriedade experimentado pelo sujeito moral (0 sagrado para Durkheim, a expresstio do superego para Freud, a vor. da razao para Piaget # Koliberg, no easo dos individtios que conquistaram a autonomia). Portanto, pura Nos¥os quatro autores, moral implica prinejpios e regras que devem ser brigatorlamente observados. A pergunta da moral, para eles, é “como deve-se ‘ugir?”, Pego ao leitor que fixe esta definigo, pois serd também a minha para a moral, mas niio para a ética. Por enquanto, basta destacar o fato de a definigéo de moral como conjunto de deveres corresponder aquela filosoficamente do- Mninante atualmente, € também dquela que costumamos adotar no dia-a-dia fim uma palavra, os quatro pensadores aqui apresentadas concordam em um specto fundamental; moral diz respeito a deveres. Eles concordam, portanto, do ponto de vista formal. E do ponto de vista do contetido? Os quatro falam dos Thesmos deveres? E aqui que encontramos o tema do relativismo e do universa- lismo antropolégicos. Comecemos pelo relativismo. Hé pelos menos dois tipos, o relativismo axioldgico e o relativismo antropoldgico, e penso ser titil distingui-los para que se evitem confusées perigosas. O relativismo axiolégico, como o seu nome o indica, implica afirmar que todos os sistemas morais, que se encontram nas diversas culturas, nos diversos ‘srupos e em diversas pessoas, tm o mesmo valor, nfo sendo portanto legitimo condenar uns em nome de outros. Conseqiientemente, essa forma de relativismo implica a auséncia total de juizo sobre o valor dos diversos sistemas assumidos como morais por diferentes pessoas. Cada um teria seus préprios valores mo- ris e ponto final. Tal relativismo as vezes encanta os menos avisados pela sua aparente relac&o com essa bela virtude que é a tolerdincia, Digo aparente por- que o tolerante que toleraria tudo, e portanto a prépria intoleréncia, estaria com flagrante contradi¢do (ver Speamann, 1999 e Tugendhat, 1998). A tolerin- cia € um valor que leva quem o cultiva a procurar compreender os comporta- mentos alheios ~ em vez de julgé-lo de chofre, com base em um sistema moral fechado -, tendo em vista o estabelecimento de um jufzo mais abalizado. A tolerdncia € um valor que inspira o respeito das diferencas pessoais e culturais, contanto que algumas fronteiras morais ndo sejam ultrapassadas. A chamada moral sexual pode servir de exemplo. Uma pessoa tolerante que, para si, possa legitimar a proibigao de certas priticas (relagdes fora do casamento, por exem- plo), mas que aceite que outros as sigam, néo deverd ser, por isso, levada a validar 0 estupro como forma de punicéo para mulheres que transgrediram normas convencionais, ou a lapidagao de mulheres adtlteras (ambos os exem- plos correspondem 4 realidade em alguns lugares). O tolerante visa a um en- tendimento planetério das variadas culturas, condena a colonizagéo moral de uma cultura sobre outra, mas nem por isso pensa que tudo é valido, aceitavel. Considerd-lo assim representaria, justamente, a impossibilidade concreta do exercicio da tolerancia, levaria a confundi-la com a mais profunda indiferenca ¢ falta de solidariedade. Do ponto de vista psicolégico, o relativista axiolégico assemelha-se mais a uma pessoa sem senso moral. Serd possivel uma pessoa que, por exemplo, valoriza prineipios de justica e de benevoléncia, no se re- voltar ao saber que em nome de principios religiosos, costumes locais ou cddi- idglens atrwenten. para com o "ser coletiva” &, por definigio, eapar de leva-lo a legitimar quer sistema moral, contanto que swja lei na sociedade em que ele vive — para a teoria de Durkheim, © superego que, da penumbra do inconsciente, ibmete o individuo as suas exigeneias morais, dita regras cujos contetidos m interiorizados gragas a processos de identificagéo com figuras paternas, 11 quais forem as op¢des morais destas eis para a teoria de Freud. Como jé liontamos, ambas as abordagens sio bem diferentes uma da outra, mas 0 ie importa frisar aqui é que além de elegerem a dimensio afetiva como cen- |, elas também sio coerentes como relativismo antropolégico: para elas 0 lito recebe a moral, nao a constri. Ora, as teorias construtivistas de Piaget Kolilberg desafiam o relativismo antropoldgico. Vejamos de que forma. Hi claro que nem Piaget nem Kohlberg negavam a diversidade de sistemas jorais e que tinham consciéncia da consisténcia do aforismo de Pascal, segun- lo 0 qual o que é verdade de um lado dos Pireneus € falso do outro. E por essa inio, alids, que suas respectivas teorias prevéem um fase do desenvolvimento ‘oral individual na qual domina a heteronomia, ou seja, a submissto do indi- {c|uo a variados ditames oriundas de fontes de autoridade, sejam elas perso- jalizadas (0 der carismético, por exemplo), sejam clas institucionalizadas (0 rupo, 0 Estado, a religiao, etc.). Como vimos acima, 0 heterénomo, assim tomo descrito pelos dois autores, corresponde bem ao sujeito moral das teo- tas de Durkheim e Freud. Porém, para Piaget e Kohlberg, a heteronomia & Jipenas uma fase do desenvolvimento moral, tendo cada individuo o potencial ile superé-la pela autonomia, Ora, a autonomia nfo comporta quaisquer con- {otidos morais, mas sim alguns claramente definidos. Piaget afirma que o ser juténomo somente legitima principios e regras morais inspiradas pela recipro- cidade, pela igualdade, pela eqiidade e pelo respeito miituo. Kohlberg é ainda Inais preciso: afirma que o desenvolvimento moral segue em diregéo ao ideal tle justica, e que na fase superior de evolucao a moral é necessariamente pen- jada em termos universais, pois 0 sujeito vé antes a si préprio como membro (ja humanidade, nfo apenas de determinada sociedade. Portanto, para Piaget Kohlberg, os Diretos Humanos no sfo apenas um sistema moral entre ot {ros, mas 0 sistema para o qual tende a evolucéo moral dos individuos e das sociedades. Ora, se aceitamos que um determinado sistema € visto como po- tencialmente legitimvel por todos, estamos longe do relativismo antropol6gi- ¢o, que no contempla a hipstese da identificacéo de uma moral virtualmente universal. Insisto: tal relativismo nao somente afirma que hé, de fato, uma pluralidade de sistemas morais (e ninguém o contesta), como afirma que no ha sistema algum para o qual todos tenderiam (0 que € contestado pelos construtivistas). Vé-se que Piaget e Kohlberg sao herdeiros do otimismo das Luzes (século XVIII), que eles acreditam no progresso da humanidade (mesmo sabendo que ele ocorre de maneira caética e com uma lentidéo exasperante). Mas cuidado: eles nfo se contentaram em reafirmar valores filos6ficos, pois fizeram pesquisas e mais pesquisas, e os dados que encontraram, em variadas yor jurtdieos particulates, tals prineiplos so solenemente ignorados? Com pode um ser moral jamais experlmentar o sentimento de indignagio? B vere le que certas pessoas defendem um relativismo axiolégico por assim diz mls restrito; elas dizem no tolerar certas condutas por parte clos membros dl qomunidade ou nagio na qual vivem, mas toleré-las em outras culturas. Met mo com essa ressalva, permaneco céptico acerca do possivel sincero “respeit por agées que contrariam frontalmente prineipios morais que adotamos, se} {quem for o agente dessas acdes. Parece-me mais um excrelcio de retédrica d que a real expresso dos sentimentos morais, E tenho certeza de que ne Durkheim nem Freud permaneceram absolutamente “frios” ao tomarem conhe: cimento de atos, para eles barbaros, cometidos dentro ou fora da Franca, den- {ro ou fora da Austria, dentro ou fora da eivilizacéo ocidental. Em compensa: suas abordagens teéricas s4o coetentes com outro tipo de relativismo, 0 rismo antropoldgico. Para o relativismo antropoldgico, nao se trata de aceitar moralmente to-, dos os sistemas de valores, mas de afirmar que, de fato, eles existem e que néo hd jenhuma tendéncia humana universal a legitimar um era detrimento de outros. lim uma palavra, hd uma pluralidade de sistemas morais (ver Tugendhat, 1998), Logo, o relativismo antropoldgico corresponde a uma teoria geral que afirma nlio haver moral universal possivel. ‘Com efeito, os conhecimentos que hoje temos de diversas épocas histéri- cas e cultures depdem fortemente a favor da tese do relativismo cultural. Tal hnio significa dizer, é claro, que nao reencontremos alguns temas morais co- muns a todos os sistemas. E 0 caso, por exemplo, da condenagio do assassina- to, [0 caso também da condenaco da mentira. Podemos também verificar a generalizada moralizacao dos comportamentos sexuais. Todavia, mesmo em. Se verificando que, em todas as sociedades, é dado valor a vida, & verdade e & feprodugéo humana e que, portanto, os comportamentos relacionados a esses yalores s40 objeto de regras, somos forcados a reconhecer que tais regras va- iam, € muito, de uma sociedade para outra, notadamente em relacao ao uni verso de sua aplicabilidade. Em um lugar o “nao matar” aplica-se a todos os seres humanos, em outro apenas aqueles que pertencem a comunidade (pode- se matar o estrangeiro, 0 inimigo, 0 ateu) e que ndo cometeram infracdes morais e/ow legais (ha pena de morte para assassinos, mulheres aduilteras, Jadtdes, etc.). Fm um lugar, o “néo mentir” é mandamento absoluto, em outro apenas € vélido para relagdes com superiores ou com membros de status social igual. E quanto & moral sexual, inttil lembrar o quanto ela comporta variagbes, de uma época para outra, de uma comunidade para outra, de uma religid para outra, para nao dizer de um cla para outro (com a excecio da pro do incesto, presente, de uma forma ou de outra, em todas as morais sexuais). Em resumo, nao hé duivida de que o relativismo antropolégico encontra exem- plos e mais exemplos passiveis de fortalecé-lo como teoria convincente. Para as pessoas convencidas de que a moral é um fenémeno que varia no tempo e no espaco, as abordagens de Durkheim ¢ Freud apresentam hipéteses culturas, levaram-nos a constantemente identificar um desenvolvimento ral cujo vetor é a autonomia, a moral da reciprocidade, da justiga, da eqild) de, Em suma, segundo eles, os dados da psicologia moral desmentemt telativismo antropolégico. Eis mais um tema sobre o qual se distinguem posicées de Durkheim e Freud. Podemos, entéo, resumir o que vimos até agora. Optei por uma primelf linha de demarcacao entre teorias: explicar psicologicamente o comportami¢} to moral, seja pela dlmensto afetiva, seja pela dimeusiv cacioual. De ut la desta linha, encontram-se as abordagens de Durkheim e Freud, que afirmai primazia da afetividade ¢ a inevitével heteronomia dos individuos. Do outff Jado, encontram-se as abordagens de Piaget e Kohlberg, que afitmam a impof tincia da razao e a possivel autonomia dos seres humanos. Em segitida, defi uuma segunda linha de demarcagio, que diz respeito ao objeto da moral, cold cando de um lado as teorias que pensam no ser possivel encontrar uma defiy igo universal da moral (relativismo antropoldgico) ¢, de outro, aquelas au identificam no ideal de justiga, baseado na eqiiidade e reciprocidade um cori tevido moral universal para o qual tende o desenvolvimento de todos os sere} humanos. E verificamos que as “dobradinhas” se mantém, com Durkheim Freud de um lado da fronteira, e Piaget e Kohlberg do outro. ‘0 quadro geral das constatagées que até agora fizemos & 0 que segue. Um grupo de teorias tem como caracteristicas: explicar a moralidade peld ajetividade, afirmar a incontorndvel heteronomia dos individuos e ndo definir unt contetido para a moral sustentando o relativismo antropoldgico. Outro grupo tem caracteristicas diferentes: explicar a moralidade pela ra: so, afirmar a virtual autonomia dos individuos e sustentar 0 universalisimo mo ral definido-o por intermédio dos ideais de justiga Sera coincidéncia que as caracteristicas que acabo de arrolar unam-se dois blocos? Penso que no. Nao quero dizer com isso que levar em conta a afetividade conduza necessariamente & hipdtese da heteronomia e do relativismo moral, nem que a op¢io pelo estuco do juizo moral implique sempre a hipéte- se da autonomia e do universalismo. Todavia, ha ligdes a serem retiradas da andlise feita nas paginas anteriores para ousar empreitadas tedricas sobre a relagio entre afetividade e razo na moralidade, Duas me parecem essenciais, 'A primeira refere-se ao fato de as teorias que do prioridade & dimensio ‘ano moralmente heterdnomo, fato que néio acontece com aquelas que enfatizam a razo. Impossivel aqui nio lembrar Kant (1797/1994), para quem o bindmio afetividade/heteronomia era uma evidéncia, E como ele pregava que a tinica moral que merece este nome ¢ a moral auténoma, néo via como néo baseé-la na razdo, assim como o fariam Piaget e Kohlberg. A desconfianga de Kant em relagao a afetividade decorria do fato de nao podermos dominar nossos sentimentos, néo podermos decidir quais experimentar, ou seja, de sermos prisioneiros de nossa vida afetiva. Dito de outra maneira, Kant via na afetividade uma fonte incontornavel de depen- afetiva nos mostrarem um ser hut Jogo, de heteronomia, a en implica o usufruto da liber- 1 A qual nlo ha responsabilidnde, ele rechacava a participacéo da Adude na vida moral, A razio seria a tinica fonte legitima dos deveres, a (iugio moral que nos faz agir O argumento kantiano € forte. Nao é por acaso que as teorias psicolégicas i debrucam sobre o papel da afetividade associam-se facilmente & gnomia. E néo é a toa também que nfo se encontra praticamente texto Hin de filosofia moral contempordinea que nio cite Kant (ver, entre outros, julhat, 1998, Williams, 1990, Canto-Sperber, 2002, Macintyre, 1981, Taylor, | Ricocus, 1990), As erfticas kantianas sobre a razio prética permanecem mtorniveis. Isso nao significa dizer que todos concordam com elas, mas que fazer parte de nosso universo moral. Entre varias objegSes que po- fy her feitas a Kant, interessa-nos diretamente a seguinte: como pode a razao onte energética da acfio? Como pode ela ter poder motivador? A pergunta slp ser colocada no plano filoséfico, mas também no plano empirico da psi- jogia: algumas revis6es de literatura mostram que nao se encontram evidén- ‘laras da correlagio entre niveis de jufzo moral auténomo (medidos por jurmédio das categorias de Kohlberg) € acao condizente com tais niveis (ver ‘i, 1989, e Biagio, 2002). E claro que nao se vé como alguém poderia agit forma moralmente autdnoma se néo concebesse racionalmente prinefpios aliidade e reciprocidade, mas tudo leva a crer que concebé-los nao ¢ sufi- ile para garantir uma aco fiel a tais princfpios. Uma referéncia & dimensaio Joliva permanece, portanto, também incontorndvel. Se permanecermos com {ose kantiana, e se aceitarmos a sensata idéia de que nao hd aco sem uma mola” afetiva que a desencadeia, seremos obrigados a dizer que nao existe {utonomia possivel. Essa opeao seria até coerente do ponto de vista filoséfico, jis empobrecedora do ponto de vista psicoldgico, pois equivaleria a fazer hula rasa das diferencas encontradas entre individuos, notadamente aquelas lwctadas por Piaget € por Kohlberg. Sera que podemos colocar no mesmo Plono alguém que age apenas por obediéncia a figuras de autoridade, ou a ‘presses de grupos sociais, e aquele que prefere mesmo a morte a trait os undamentos de sua consciéncia, que se ergue contra conformismos morais, {jhe prefere o isolamento social & tranqitila adesio a regras tradicionais? Sera jue podemos juntar na classe dos heterdnomos o cidadao cuja honestidade lio vai além da obediéncia a certas regras sociais e o reformista moral que fransgride essas regras em nome de ideais superiores? Creio que nao. Creio que é necessdrio construir uma abordagem teérica que relacione afetividade e juzio, sem relegar essa tiltima 4 mera superficie de fenémeno moral. Todavia, yolto a insistir sobre o fato de uma elaboracéo desse tipo ser extremamente Ulolicada, pois a relagio afetividade/heteronomia € conceitualmente forte. E se gostei algumas paginas discorrendo a respeito dela, & justamente para nos prevenirmos de associagées bem-intencionadas, mas ingénuas, entre a afetivi ade e a vida moral. ‘As paginas passadas tém ainda o objetivo de nos fazer pensar sobre out lipo que as andlises nos trouxeram: a estreita relagdo entre a opsiio por tt feoria afetiva ou racional e o objeto da moral. Nao ¢ de se estranhar o fato de as teorias psicolégicas cujos autores op am por uma abordagem cognitiva precisarem contetidos para a moral. Piaget Yt na justiga a mais racional das nogées morais. Como seus estudos visavam dosenvolvimento do juizo moral, entende-se que tenha optado por essa virtud komo objeto de pesquisa. O mesmo se pode dizer de Kohlberg, todavia cou lima ressalva importante. Enquanto Piaget elegeu a justica como objeto d pesquisa, mas sem afirmar que ela é a virtude maior da moral, Kohlberg fechot fh questao: a justica é a virtude moral por exceléncia, e no apenas uma ent oulras. Mas, mesmo na perspectiva piagetiana, praticamente impée-se a just 0 como a virtude primordial, pots corresponde & tradu¢do moral das opera bes mentais. Piaget afirmava que a moral é uma légica das acées. E claro qui uma abordagem racionalista poderia eleger outras virtudes morais como obje- to de estudo genético, mas nao se vé muito bem de que modo poderia despre: ‘nat a justiga como nogio incontornével da moralidade. Pesquisas sobre a géne« se da generosidade, por exemplo, no permitiram identificar etapas precisas, de desenvolvimento, diferentemente do que se verificou para a justiga (ver nenberg, 1979). © problema do contetido da moral coloca-se de forma bem diferente para as teorias que elegem a afetividade como elemento psicol6gico central da moralidade. HA, porém, como no caso das teorias racionalistas, intima relagio entre o referido contetido e os sentimentos eleitos como essencial- mente morais. Nos casos de Durkheim e Freud, vimos que eles identificaram elementos afetivos que relacionam quem os experimenta com a fonte dos mandamentos morais. Para Durkheim, o individuo € movido pelo sentimento do sagrado e este € inspirado pela sociedade. Como é a sociedade o objeto do sentimento, € nao wm contetido moral em si, a tese do relativismo antropolégico impée-se. Para Freud, uma vez que os ditames do superego sio frutos de identificacées, com figuras de autoridade, o relativismo antropolégico também é decorréncia natural: para a psicandlise freudiana, a crianga nao é vista como tendendo a valorizar este ou aquele contetido moral, mas aqueles que compdem o univer- so simbélico de figuras paternas, seja elas quais forem. Em suma, explicar a moralidade a partir da hipétese de que ela depende de sentimentos experi- mentados em relacéo aos agentes que impGem as regras, por um lado, transfe- te a histéria ow a sociologia a tarefa de explicar os fundamentos concretos da moral (fatores individuais so descartados), e, por outro, leva a conceber 0 individuo como definitivamente aberto a legitimar todo e qualquer sistema ‘moral. Portanto, nesta perspectiva psicoldgica, nao hé porque eleger um deter- minado contetido para a moral. Em compensacao, se os sentimentos eleitos como fundamentais para ex- plicar a moralidade tiverem como objeto no a fonte dos contetidos, mas um ietido expecifico, o relativismo delxa de fazer sentido, tf 0 caso da teoria de Gilligan (1982, 1988) que identifica duas orientagées morais universai para ax mulheres =a orlentagio para 0 cuidado ~, outra para os homens — lentaglo para a justiga. Gilligan, portanto, como Piaget e Kohlberg, define {etidos para a moral, Mas ela o faz. nao em decorréncia de uma abordagem Jonalista, mas sim em funcao de uma leitura afetiva do desenvolvimento da janga: as meninas desenvolveriam mais do que os meninos 0 apego para com Doutras pessoas, donde sua tendéncia a privilegiarem, quando adultas, virtu- 4 morais de cuidado generosidade, enquanto os homens privilegiariam tudes cujo exercfcio é independente de aspectos relacionais, como é 0 caso stig. im restimo, verificamos que a opsdo por explicagdes psicoldgicas da moral ide que levern em conta a razdo ou a afetividade tem implicagdes sobre a escolha objeto da moral, assim como sobre o diagnéstico a respeito da heteronomia 11 da possivel autonomia moral dos individuos. O eitor ter compreendido a razdo pela qual, ao pretender analisar as imens6es afetivas e intelectuais da moral, devo me debrucar sobre a definicao jossa iiltima: como acabamos de ver, a definigéo do objeto de estudo tem mas relagdes com os conceitos elaborados para o referido estudo e com juns decorréncias tedricas. Minha hipétese é a de que, para explicar a moralidade, notadamente do ponto de vista da afetividade, é preciso analisar se ela nao estaria relacionada algo que nfo se reduz. a um conjunto de deveres. Dito de outra maneira, é preciso verificar se as motivagées que levam um individuo a dar respostas & pergunta moral “como devo agit?” nao seriam em parte as mesmas que o le- ‘yom a responder & outra pergunta: “que vida quero viver?”. As teorias que acabamos de rapidamente revisitar procuraram explicar psicologicamente 0 ‘ever moral sem referéncias a outras dimensdes existenciais. Penso que isso é (um erro, e que, para compreendermos os comportamentos morais dos homens, Hlevemos conhecer quais as opces éticas que eles assumem. Mas para mostré- Jo, preciso, naturalmente, deixar claro que sentidos vou dar aos conceitos de noral e de ética. MORALE ETICA Moral ¢ ética sto conceitos habitualmente empregados como sindnimos, jnmbos referindo-se a um conjunto de regras de conduta consideradas como brigatérias. Tal sinonimia perfeitamente aceitavel: se temos dois vocabulos (porque herdamos um do latim (moral) e outro do grego (ética), duas culeu- fas antigas que assim nomeavam 0 campo de reflexao sobre os “costumes” dos homens, sua validade, legitimidade, desejabilidade, exigibilidade, Note-se desde {ii que a exigibilidade das condutas, os deveres portanto, tema central da gran- {le maioria das reflexes modernas, nao era o tinico que dominava os campos ees oe Nae moral ¢ ético, A questiio da felicidade era central nas filosoftas da Antigtlidadl ‘Yoltaremos a essa diferenca dever/felicidade mais adiante. Por enquanto, {hsistir sobre o fato de que os dois conceitos que nos ocupam podem ser leg mamente considerados sin6nimos, logo, de emprego intercambidvel. Algui autores, como Canto-Sperber (2002), costumam deixar claro, no inicio de se! {extos, a sinonimia assumida. No entanto, por que certos autores se preocupam em deixar clara um sinonimia cléssica? A fildsofa que acabamos de citar comenta que podera ca sar clecepgao ao seu leitor ao no fazer diferenga de sentido entre moral ética, Essa precaugao retérica explica-se pelo fato de que, hoje, muitas pesso véem na palavra “ética” um conceito cheio de promessas filoséficas, um camp\ de reflexdo prenhe de riquezas, uma referérteia a atitudes “nobres”, qualidad ‘estas de que a “pobre” e “seca” palavra moral careceria inapelavelmente. Fi cche-se a boca para pronunciar “ética”, e olha-se de esguelha ao se fazer ref réncia A moral. Estao portanto em foco possiveis diferencas de sentido ent moral ¢ ética, Com efeito, diferencas poclem exist, e podem ser empregadai contanto que se as explicite claramente, e que se reconheca, com Paul Ricoet (1990), que se trata de convengées. ‘A convencéo mais adotada para diferenciar o sentido de moral do de éti: & reservar 0 primeiro conceito para 0 fendmeno social, e o segundo para rellexdo filoséfica ou cientifica sobre ele. O fendmeno a que estou me referin: lo €0 fato de todas as comunidades humanas serem regidas por um conjun: to de regras de conduta, por proibicdes de varios tipos cuja transgresséo. acarreta sangées socialmente organizadas. Vale dizer que toda organizagio social humana tem uma moral. Mas, evidentemente, como todo fendmeno so: ial, a moral suscita indagacdes, Como ela trata de normas de conduta, uma primeira indagacao incide sobre suas origens, seus fundamentos, sua legitimi= dade: tem sido 0 trabalho dla filosofia analisar essas questdes. No entanto, a ‘moral também pode ser objeto de um estudo cientifico: pode-se procurar tra= cara histéria dos diversos sistemas morais (trabalho da histétia), pode-se procu- rar compreender as condigées socials que os tornam possiveis ou até necessé- tios, (trabalho da sociologia), pode-se procurar desvendar os processos men tais que fazem com que os homens os legitimem (trabalho da psicologia), assim por diante. A esse trabalho de reflexao filoséfica e cientifica costuma se dar 0 nome de ética. Essa diferenca de sentido entre morale ética ¢ interessante. Por um lado, permite nomear diferentemente 0 objeto € a reflexao que incide sobre ele; portanto, demarcar niveis de abstra¢do. E, por outro, permite sublinhar o fato de se poder viver uma moral sem nunca ter se dado ao trabalho da reflexio ética, Aqui reencontramos uma possivel oposi¢ao entre heteronomia e autono- mia: para o heternomo, assim como definido por Piaget, basta a obediéneia autoridade, a tradigio; para o auténomo, sempre segundo a defini¢ao piagetia- na, é necesséria a reflexo, a busca de prinefpios que expliquem e legitimem a ‘moral, Embora nem Piaget nem Kolberg empreguem, a meu conbecimento, a os diferenga de sentido entre moral ¢ ética que estamos apresentando, ela serve ara clescrever niveis de desenvolvimento moral. Mas, voltamos a lembré-lo, a diferenciagéo que acabamos de descrever & jpenas uma convencio, E nao é a tinica possivel. Outra que vale a pena consi- lerar 6a que estabelece uma fronteira entre as esferas privada e publica: reser- jir-se-ia o conceito de moral para regras que valem para as relagées privadas (os comportamentos que devem ter um bom pai ou uma boa mie, por exem- plo), ¢ o conceito de ética para aquelas que regem o espago piiblico. Daf as foleréncias aos “cddigos de ética” de variadas profissées, ou da presenca de xpressées como “ética na politica”, os “comités de ética para a pesquisa em {ores humanos”. Nao faria muito sentido falar em “ética na familia’, Note-se fiue a diferenciaeo entre espacos privado e publico nao implica diferencas de tontetido: por exemplo, o nao roubar ou o nao mentir valem para os dois. Em ‘ompensagao, os cédigos de ética (que inspiram os diversos comités, em cada {nstituigao profissional) implicam um trabalho de elaboragéo intelectual, fato {jue nos reaproxima da definigdo de ética como reflexo sobre a moral. De fato, pra elaborar-se um eédigo desse tipo é preciso néo apenas conhecer a moral in sociedade em que se vive, mas também pensar as particularidades da profis- lo contemplada. E é de se esperar que os professores dos cursos universitérios {)ie apresentam aos alunos 0 cédigo de ética da profisséio que escolheram exercer hilo cometam o erro de reduzi-los a uma lista de regras a serem decoradas. ‘Acabamos de ver duas possiveis diferencas de sentido entre os conceitos ue nos interessam aqui, mas certamente nao séo elas as responsiveis pela Vercladeira “inflagéo” contemporinea do emprego da palavra ética. Antes de ptesentar as definig6es que assumirei, e que séo diferentes das duas citadas ficima, vale a pena comentar a atual “febre” ética, nem que seja para mostrar jue nao estou acometido por ela. Em primeiro lugar, deve-se observar que 0 sucesso do yocdbulo “ética” ‘pst: em parte relacionado ao fracasso seu irmio etimolégico: “moral”. # 0 que |\pontam autores como Spitz (1995) e Blondel (2000): moral lembra imediata- jnente “moralismo”, “moralista”, ou seja, lembra, respectivamente, normatizacéo {ncessante, dogmatica, de abrangéncia excessiva, de legitimidade suspeita e Jeu militante, esse normatizador e vigia contumaz da vida alheia. Devemos Jembrar aqui que a palavra “moralista” nao tem, na origem, a conotagio nega- liva que adquiriu. O moralista, no sentido primeiro, é simplesmente alguém preacupado por questdes morais. Por exemplo, Albert Camus, escritor francés, bra considerado um moralista, pois sua obra nos apresenta temas como o jul- yamento de alguém que cometeu um assassinato (O estrangeiro), ou as refle- xoes de alguém que surpreendeu-se com a prépria covardia (A queda). Porém, p tratamento dado por esse Prémio Nobel de Literatura nada tem de dogmatico, {le estreito; muito pelo contratio. Se ele foi um moralista no sentido antigo, ertamente nao o foi no sentido pejorativo, que pode assim ser resumido: 0 noralista é alguém que interpreta, e portanto julga, a maioria das acdes huma- has por intermédio de critérios normativos, notadamente com uma clara voca- La uma “trania dtlen®, segundo a feliz expresstio da mesma autora, Em resumo, vale a pena perguintar-se se & moda atual dos empregos da palavra ética nao {raduz, por um lado, a fantasia intelectual de erer que se esté falando em algo profundo, cientifico, muito mais nobre do que a moral, e, por outro, uma espé- tle de volta para 0 passado, de volta para um fundamentalismo moral, agora om ares de sofisticagao filoséfica, Eis a pergunta. Minha resposta é a de que, por pensarem que seguem a nobre ética, muitas pessoas inconscientemente folapam a liberciade e a antonomia, por intermédio de um dogmatismo que hilo se assume enquanto tal. ‘Mas vamos agora as definigdes de moral e de ética que, por convengio, you assumir daqui para frente e que s4o bem diferentes daquelas que acabo de Comentar. Nao se trata de niveis de abstragio, nem de fronteiras entre as esfe- tas privada e publica, muito menos de vergonha de falar em moral. Reservo & cada palavra respostas a duas perguntas diferentes. A indagacéo moral corresponde & pergunta: “como devo agit?”. E & reflexao ética eabe responder js outra: “que vida eu quero viver?”. ‘Nao sout 0 tinico a reservar os dois conceitos para referir-me a dimensdes intas da vida humana. Os filésofos Comte-Sponville (Comte-Sponville € Ferry, 1998) e Bernard Williams (1990) também o fazem. Na mesma linha, Paul Ricoeur (1990) reserva a palavra ética para 0 que diz respeito ao tema da ‘vida boa” e a palavra moral para as normas caracterizadas pela pretensao & lniversalidade e com efeitos de coaco. Canto-Sperber (2002), embora empre- ue ética e moral como sin6nimos, aceita que a diferenca entre a esfera das leis (a busca de uma “vida boa” é relevante, e pondera que essa diferenca € a tinica que realmente pode dar algum sentido a busca de definigdes distintas para Inoral e ética, A sta aceitagio provavelmente vem do fato de as duas pergun- Ios, uma relacionada a deveres, a outra a objetivos e a qualidade da vida, jerem temas tratados pelas reflexdes filosdficas, sejam elas denominadas de moral ou de ética. Grosso modo, pode-se dizer que as reflexdes sobre a “vida boa” foram Jominantes até o século XVIII. As diversas teorias sobre a definigao da felicida- tle ea stta conquista respondem pelo nome de eudemonismo. Algumas consice- yam que os homens sabem o que é a felicidade, devendo a filosofia dar-lhes as Iéenieas apropriadas para conquisté-la. E 0 caso do utilitarismo de Stuart Mill (1861/1988), para quem a felicidade consiste em prazer e auséncia de dor ~ coisa que todo ser humano, segundo ele, sabe muito bem, mesmo que intuiti- yamente. Outras teorias debrucam-se sobre a problematizagao do que seja a |elicidade, negando-Ihe um status natural. Aristételes é um ilustre represen- fante dessa corrente, ¢ sabe-se que ele afirma que nao hé felicidade posstvel jem 0 cultivo das virtudes, por intermédio do qual os homens podem atingir a jlevagdo.® Os tedricos do eudemonismo n&o desconhecem a dimensio tJeontolégica (deveres) ¢ sua importdncia fundamental para o convivio, mas a colocam no segundo plano de suas reflexdes, reservando 0 primeiro plano pergunta “que vida eu quero viver?”. Esse nao € 0 caso de pensadores como io a normatizar condutas sexuais ou a elas associadas (jeito de se vestir, df J, etc.); ¢ alguém rigido, com pouca vocacio para a compreensio psicol6g} fen das aces, é alguém extremamente vigilante das condutas alheias, em ger mnnis do que em relacao as préprias (dal a aproximacao de sentido entre mort lista e hipécrita). Aceitando, linhas gerais, a definicao pejorativa que acabo dl dar cle “moralista’, entende-se que quem vé esse tipo de pessoa como legitim Tepresentante da “moral”, procura fugir deste antipdtico conceito, preferinda Ihe outro, livre de associagées negativas. Um evento social que contribuiu para empurrar 0 vocabulo “moral” pa 19 linhas de fundo do discurso foi a onda libertéria dos anos de 1960, durant ‘9 qual clamou-se que era “proibido proibir” (lema de maio de 1968, na Frans ‘oa). No Brasil, a investida pedagégica do gdverno militar que levou o nome dk Iidutcaggo Moral e Civica ajudou a empurrar a palavra “moral” para os calabou os semanticos da Educacéo.” Entdo, hoje, fala-se em ética, e ndio mais em moral. Mas cabe perguntar: essa migracdo trouxe consigo alguma novidade, do ponto de vista do conteti do. Blondel e Sptiz afirmam que nao, e precisamos hes dar razdo. A palavre moral & suspeita porque fala em normas: ora, as atuais referéncias a “ética” si tiio normativas quanto aquelas associadas & moral. Longe de traduzir os ideais do “proibido proibir” juvenil, da época dos ‘meninos e das meninas que ama~ vam os Beatles e os Rolling Stones, as constantes referéncias atuais & ética parecem mais relacionadas a uma demanda quase que desesperada por nor Inas, por limites, por controle. Fala-se em ética na politica: trata-se de regras. Jaboram-se eédigos de ética nas empresas: mais uma vez, declinam-se regras de conduta. Criam-se comités de ética na pesquisa: mais regras. Note-se que os valores em nome dos quais tais investidas éticas se realizam so os mais no- bres: respeito pelo eleitor, pelo consumidor, pelo sujeito das pesquisas cientifi- cas (seres humanos e animais), e outros mais, todos inspirados pelos Direitos Humanos. Todavia, 0 fato é que as referéncias a ética tratam de deveres, assim ‘como a moral o faz. Nenhuma real novidade, portanto. Ou melhor, ha uma: a proliferagio de diversas “éticas” sao o sintoma de uma espécie de ftiria hormatizadora, & qual assistimos hoje, e que as estreitas balizas do “politica- mente correto” traduzem com perfeicao. Tal firia néo seré, na verdade, decor- réncia de uma erescente desconfianga em relagéo & consciéncia moral dos indi- viduos? Responder afirmativamente a essa indagagao faz sentido, haja visto 0 inimero assustador de medidas de controle a que somos cotidianamente sub- metidos. Como j4 o sinalizaram alguns autores, fala-se muito em ética — na verdade, pensa-se muito na moral, mas com medo de empregar o terrivel voc4- bulo ~ porque julga-se que algo vai mal nas relacdes sociais, que a desonestidade se banaliza, assim como se banalizam as incivilidades e a violencia, que a hon- ra se esvai e que reina a desconfianga. Todo o problema consiste em saber se a multiplicagao das normas resolve 0 problema, ou se niio estamos caindo no que Canto-Sperber chama de “fetichizacéo da regra”, decorréncia de uma falta de reflexio sobre os principios de onde derivam, se nio estamos assistindo a ‘om nuns reflext Kant, 0 qual elege a dimenstio do di feliclclade: para ele, tleigho, porém, nio o impede de fl urela da moral nio é a de ensinar come ms como merecer 6:10, suima, 08 dois temas, o da moral ~ deverws = #0 da ética = “vida boa =, ene fram-se em todas as reflexdes sobre as condutas humanas ¢ 0 porvit de § Vidas, Néo somente se encontram, como fiegitentemente se articulam. Aca nos de vé-lo segundo Kant (0 merecer ser feliz &, na verdade, a tinica formal ké-lo), e 0 vemos também segundo Stuart Mill, que deriva as regras morals d husca do prazer € do evitamento da clot. O utilitarismo, segundo o qual a bg Tegra moral é aquela cuja aplicago resulta no maior bem para a maioria pessoas, ilustra bem a possivel interdependéncia entre a reflexio sobre as ins cle conduta e a busea da felicidade individual ¢/ou coletiva. Para nds, portanto, falar em moral ¢ falar em deveres, e falar em étic falar em busea de uma “vida boa”, oti se quiserem, de uma vida que “vale pena ser vivida’, Peco ao leitor que fixe essas definigées. Mas alguém pode perguntar agora qual a razdo da distingdo de sentido. Nosso trabalho, daqil para frente, serd justamente o de responder a essa pergunta, mostrando quel papel da dimenséo afetiva da agao moral tem suas raizes nas opgGes éticas dd individuos. Para tanto, precisamos aprofundar um potico a andlise das esferas mori © ética, comecando por distinguir forma de contetido, distinguindo portanto que chamarei de “plano moral” e “plano ético” (Formas) e os possiveis conte! dos que podem ocupé-los. 0 PLANO MORAL Impoe-se distinguir forma e contetido, quando se trata de moral. Como vimos no inicio deste capitulo, nfo ha como nio reconhecer, como 0 afi ‘Tugendhat (1998), que existe uma diversidade de sistemas morais. Logo, despeito de se encontrarem alguns temas presumivelmente universais (como 0 cuidado com a vida e a verdade) ou de se teotizar um desenvolvimento moral ‘que caminharia em diregao a legitimagio de principios inspirados pela recipro: cidade e a justiga, deve-se reconhecer que se encontram, nas diversas épocas, nas diversas culturas, e até nos diversos individuos, um leque de contetido: sociados & moral. Os préprios tedricos da virtualidade de um univers: moral, Piaget e Kohlberg, observaram que a maioria das pessoas vé na moral ndo um guia para a sociedade, mas sim a garantia de que ela se mantenha coesa em torno de prinefpios e regras herdados da tradicéo; essa maioria assu- me, sem maiores erfticas, a moral de seu tempo. Nao parece, portanto, apre- sentar muitas dificuldades reconhecermos a pluralidade de sistemas morais, Porém, se falamos em “forma”, distintamente do contetido, é porque assumi- ‘mos que hé algo em comum a todas as expressGes cla moralidade. Esse algo em comum é 0 sentimento de obrigatoriedade. Temibremos que defini como questio moral a pergunta “como devo agi bo “dever" precisa ser entendido no seu sentido de obrigatoriedade (e fb no sau! vantilo de probabilidade, como na expressio “ele deve estar che- filo”), Do ponto de vista cultural, nfo hd duivida de que a exigéncia coloca- Fos Individuos de agir segundo certas leis é uma realidade universal. Existi- gum grupo humano sem a imposicio de deveres? Certamente, nao. Por- {10, a exigéncia social clo cumprimento do dever corresponde & “forma”, que ile receber variaclos contetidos (o que é dever aqui nao o é ali). Do ponto de vista psicolégico, a questo resume-se em saber se existe 1) auto-imposigio, ou seja, mandamentos da consciéncia que impelem 0 djividuo a agir de determinadas formas, e nao de outras. Se existir, podemos firmar que se identifica nos homens um plano moral, ow seja, um sentimento ‘obrigatoriedade que pode receber diversos contetidos. Se nao acreditarmos existéncia psicoldgica do plano moral, é porque pensamos que os homens linea agem por dever, mas sempre conforme o dever, para retomar termos WWianos. Se negamos a existéncia de um sentimento de obrigatoriedade, ¢ jue fazemos a hipétese de que cada um segue regras oriundas dos sistemas rais, ndo por dever, mas em razo de um calculo de interesses, por medo do {igo ou por esperanga de recompensa. Nesse caso, a moral, com sua referéncia cleveres e ao Bem, nao passaria de um discurso, pois nao teria realidade ‘icoldgica. Moral e hipocrisia seriam sinénimos. Em compensagao, se pensar- oy que, de fato, hd pessoas que agem por dever, isso porque intimamente invencidas de que assim agindo fazem o bem, é porque acreditamos na exis- incia de um sentimento de obrigatoriedade, de um plano moral psicoldgico. Embora possamos ser extremamente céticos em relacdo as virtudes hu- nas, é dificil afirmar que as acées realizadas por dever moral nao existem. mos sempre em volta de nés exemplos de atitudes dificilmente explicdveis it um céleulo de interesses pessoais (sacrificar-se por outrem, como a mae jie sacrifica muito de seu tempo e interesses para cuidar dos filhos), por um huuclo do castigo (que castigo real recairia sobre essa mie, se agisse de forma ferente?) ou por esperanca de recompensa (que recompensa ela esperaria?). ‘{emos exemplos hist6ricos de personagens cuja abnegacao pessoal em nome prinefpios morais pode dificilmente ser colocada em diivida. Penso em Gandhi sua luta pela liberdade, em Martim Luter King em sua luta pela justica, nos istentes franceses que arriscavam suas vidas (e a se verem submetidos As ores torturas) para ajudar judeus a escapar dos campos de concentragéo istas, nos médicos que abandonam seu conforto civilizado para, em lugares jdspitos e perigosos, ajudar necessitados em varias regiées do mundo. E ha uitos outros exemplos. Penso, alids, que se a moral fosse apenas discurso yio, hé tempos que a humanidade nao falaria mais nela. Ou nao haveria Himites para a ilusdio? No campo da psicologia, o fato de haver pesquisadores - ¢ dos melhores — ebrugando-se sobre o fendmeno moral, atesta que eles acreditam e provam ica moralidade € uma realidade psicoldgica, Durkheim, assim como Piaget e ea TY UE arene temo: Kolberg, nfo duvida da realidade do sentimento de abrigattriedade, costtimeitamente céptico Freud tampouco: ele chegava # eonipHrir as ore do superego ao imperativo categdrico kantiano, ao sentimiento do ever inco! dicional, Pata o filésofo, a fonte desses deveres ¢ a raziioj pain Mrewd, ¢ {nstincia inconsciente, mas o que importa notar é que, part ambos, o sen| mento cle obrigatoriedade corresponde a uma realidade humana, Levy-Br (1902/1971), Dupréel (1967), Flanagan (1996) e outros conclamam os cies tistas sociais a explicar 0 fendmeno do respeito pela regras morais, fendmel jaro, talvez, mas cuja realidade é inegavel. I’m resumo, podemos afirmar a existéncia de um plano moral: do pon| de vista sociolégico, pelo fato de nao se conhecer cultura sem sistema moral, lo ponto de vista psicolégico, pelo fato de ds seres humanos serem passiveis experimentar o sentimento de obrigatoriedade, o sentimento do dever moral Algumas observacies complementares so necesstirias. ‘A primeira delas refere-se a uma possivel confusiio entre os registr axlolégicos e psicoldgicos. No campo da filosofia moral, costuma-se fazer distingéo entre as teorias deontoldgicas € aquelas teleoldgicas. As primeirs rezam que os deveres morais devem ser obedecidos incondicionalmente pd} serem bons em si mesmos;? as segundas afirmam que o valor moral de umi aciio mede-se a partir de suas conseqiiéncias concretas no mundo. f por es razlio que quando se fala em deveres morais, costuma-se pensar que a perspet tiva deontolégica é adotada, Mas nao & 0 caso aqui. Vejamos por que, pol intermédio do debate em torno do valor moral da regra “nao mentit”. A abot dagem kantiana é 0 exemplo mais notério da viséo deontolégica, Para ele, moral é composta de imperativos categéricos, logo, de cleveres absolutos cu} valor néo depende das conseqiiéncias dos atos (os imperativos cujo valor relativo a alguma coisa exterior a eles so chamados de hipotéticos). Assim, imperativo eategérico “néio mentit” seria hom em si mesmo, sendo portanto mentira sempre condendvel moralmente, mesmo que a revelacdo da verdad se prejuizos a quem a proclama, ot a terceiros. Para os chamados conse giiencialistas, como Benjamin Constant (ver Berten, 2004), nao somente a re: usa de levar-se em conta as conseqiiéncias de um ato tornaria a vida ei sociedade impossivel como, em certos casos, levaria a injusticas, portanto, imoralidade. Imaginemos estar escondendo em nossa casa uma pessoa perse: guida por agentes policiais a servico de uma ditadura sangiindria. Se ele hatem & nossa porta e perguntam pelo fugitive, é moralmente correto revelat onde ele esta escondido? Para a perspectiva kantiana, sim, por que néo mentir & um imperativo moral absolutamente bom. Para Constant, néo, porque as conseqiiéncias do ato seriam moralmente condendveis (levar um inocente & morte). O senso moral comum costuma dar razo ao pensador francés, mas isso ndo basta para encerrar a questéo e sempre dar raz&o As teses conse- qiiencialistas. Em alguns casos, parece mesmo haver a necessidade de deveres’ absolutos, que no dependem, portanto, para ser seguiclos, das conseqiiéncias dos atos. Imaginemos agora que, pata salvar um grande niimero de pessoas, sojamos obrigados, por algum grupo de mentalidade perversa, a torturar uma crianga, Imaginemos portanto que se néo obedecermos a essa orcem cruel, eondenaremos & morte mil pessoas ou mais, pois serio assassinadas pelo refe~ Fido grupo que nos coage, Ora, a clespeito da conseqiiéncia nefasta de levar sores humanos ao timulo, é moralmente defensével afirmar que nada neste mundo justifica torturar-se uma crianca. Bis o debate axiolégico entre perspec livas deontoldgicas ¢ teleoldgicas.2” Como vinios, seria um erro pensar que o fato de definirmos o plano moral pela sua relagiio com o dever traduz nossa concordéncia com a abordagem eontoldgica. Como seria um erro chegar conclusao contréria, E isso por uma razio psicoldgica tao simples quanto importante: tanto 0 sujeito pressu- posto pela moral deontolégica quanto aquele pressuposto pela moral teleol6gica experimenta o sentimento de obrigatoriedade. Nos dois casos temos um sujei- to moral, inspirado, portanto, pelo sentimento do dever. Isso € dbvio para a perspectiva deontolégica, Mas também ¢ claro para a outra perspectiva: 0 onseqliencialista pensa nas conseqiiéncias de seus possiveis atos, pois se sente obrigado a decidir qual deles traduz 0 Bem, Portanto, ele néo somente se de- pruga sobre variadas alternativas de aco porque se sente obrigado moralmen- te a fazé-lo, como, uma vex tomada a decisio, age coerentemente com sett yeredicto porque, para ele, agir de tal forma é um dever moral. Em resumo, do ponto de vista psicoldgico, o sentimento de obrigatoriedade é pressuposto tan- {0 pelos adeptos da moral deontoldgica quanto por aqueles da moral teleoldgica, permanecendo 0 debate entre eles no nivel da filosofia moral, néo no nivel, psicolégico. ‘A segunda observacio 6, de certa forma, complementar A primeira, Falar om sentimento de obrigatoriedade pode dar a pensar que quem 0 experimenta sempre sabe perfeitamente como agir. O sujeito moral nunca teria duvidas e yeguiria o caminho do dever como se esse fosse uma estrada desimpedida de bstdculos. Ora, esse nao é sempre 0 caso. Hé, é verdade, situacdes nas quais 0 lever aparece claramente. Por exemplo, que sujeito moral haverd de ter diivi- Ulas a respeito do cardter condendvel do estupro, ou do cardter louvavel da ajuda a pessoas que tudo perderam em razao de um maremoto? Nesses dois (isos, 0 dever aparece claramente, e 0 individuo por ventura indeciso aparece- Ha como moralmente suspeito. Em uma palavra, em ambos os casos nao hd dilema moral. Mas pode haver dilemas, como no caso do suicidio, do aborto, la eutandsia, das clonagens para fins terapSuticos, e outros mais. Tomemos 0 oxemplo do suiefdio. Para alguns, o clever exige que se o condene em nome do Valor absoluto da vida. Para outros, o dever exige que nao se 0 condene em nome do valor da liberdade de escolha dos destinos da propria vida. Para ou- ros ainda, a divida permanece, pois nfo encontram argumentos que os con- ‘yengam a tomar posicao. Ora, podemos dizer desses tiltimos que, pelo fato de (starem indecisos, ndo sao inspirados pelo sentimento do dever? Certamente io, pois sua indecisao nao € decorréncia de indiferenca ou desleixo, mas sim Je uma busca sincera e criteriosa de argumentos fortes. Aliés, pode até aconte- cor de serem sujeitos morais mais sofisticados que aqueles que ja tomam po} (ilo, be estes o fizeram sem maiores reflexoes, adotando dogmas ou limitan fie a seguir ficlmente as decisées de autoridades politicas ou religiosas, fesimo, 0 sentimento de obrigatoriedade moral nao implica sempre o saber qual o dever a ser seguido. O sdbio é &s vezes aquele que diz sinceramentet tio sei”, Voltaremos a esse tema no capitulo seguinte, quando forem apresel tados os conceitos de equacionamento e sensibilidades morais. ‘A peniiltima obscrvagéo complementar que desejo fazer se refere rel lo entre dever moral e exigibilidade social. Alguns deveres morais corre pondem a exigéncias ‘sociais, as vezes consagradas pelo Poder Judiciario, por exemplo, 0 caso das normas “néo matar” e “no roubar”. Flas sio justifi thas moralmente (respeito & vida e propriedade de outrem), e sua transgrd filo acarreta sangées penais (cadeia, multas). Outros deveres morais ndo efi contram traduc&o juridica, mas, mesmo assim, a obediéncia a eles é exigid) socialmente (por exemplo, nao trapacear no jogo, cumprir uma promessa) € transgressao acarreta medidas de controle social privado, como a excluséo transgressor do circulo de convivio ou a demissio do emprego sem justa call sa."' Porém, algumas pessoas podem colocar a si mesmas deveres morais nad exigiveis pela sociedade. Imaginemos que alguém se sinta moralmente obrigil lo a gastar parte importante de seu tempo em obras assistenciais: os membro tla sociedade costumam admirar tal atitude, consideré-la moralmente elevadi mnas nao a exigem. E pode também acontecer que uma pessoa se sinta obrigadi fh agit de forma contréria Aquilo admitido como moralmente justificado. Jf Citel em outro livro (La Taille, 2002) o exemplo do escritor francés Vercors, que, durante a ocupacdo alema da Franca, sendo obrigado e receber em st ttasa um oficial alemao e podendo dar-Ihe sinais de desprezo, nao o faz por na Suportar a idéia de se humilhar alguém, nem mesmo um adversério. Ora, tll dever nao somente era experimentado por poucas pessoas, no calor da guerra ‘como 0 ato de humilhar 0 adversdrio era considerado por muitos moralment@ aeeitével, Em suma, setia um erro pensar que o sentimento de obrigatoriedadé {que caracteriza o piano moral seria apenas despertado por exigencias socials ‘certo que tais exigéncias dao visibilidade as normas morais cuja transgresséi acarteta sangées: costumam ser estas que a educacéo moral prioritariament trabalha. Mas o fendmeno moral nao se limita a elas, embora seja provavel quel a consciéncia moral de muitas pessoas seja mero espelho das exigéncias sociais Fisse comentirio nos leva & ultima observagio que julgo necessério fazer para a anélise do plano moral, : ‘A iltima observacéo diz respeito a “freqiéncia” do sentimento de obtigatos riedade. Tal freqiéncia pode ser pensada do ponto de vista populacional: serd! ‘© sentimento do dever moral experimentado pela maioria das pessoas? ou 07 sera apenas por uma minoria? Naturalmente, é impossivel responder a esta pergunta com niimeros. Apenas indfcios podem nos permitir fragmentos de resposta. Freud, por exemplo, pensava que 0 referido sentimento era raroy permanecendo um grande niimero de homens e mulheres inspirados pelo medo Castigo, Piiget meloeinava de forma diferente, mas chegava a uma conclu- 6 semelliante; para ele, o heterdnomo moral, pelo fato de as regr {ima niio terem sido elaboradas pela sua inteligencia, comporta- mveritict, freqlentemente desobedecendo, na pritica, as leis que ele mesmo Wut Serer "sagradas”, Como Piaget fazia a hipdtese de que a heteronomia é {moral socialmente dominante, nao se espantava de observar tantas trans- sroyses cotidianas. Se formos interrogar nossos contemporineos, certamente ptaremos que eles tém mais queixas do que elngins a respeito da moralidade Hhela, Fraqueza inerente aos homens ou sinais de nossa época? Para Gilles jpovetsky (1992), sao sinais culturais, Em seu livro, cujo titulo, O creptisculo i dlever, nfo delxa dhividas sobre o diagnéstico do autor, o intelectual francés Ima que vivemos uma época “pés-moralista”, sendo a rarefacéio do senti- jonto cle obrigatoriedade decorréncia da atual ordem social individualista que loriza o prazer em relacio ao dever. Deixo ao leitor a tarefa de avaliar se o sentimento de obrigatoriedade é Hip rara ou trago psfquico comum & maioria das pessoas. Pessoalmente, penso 6 trago psiquico freqiiente. E penso também que os “eclipses” morais — fiubituais, infelizmente — nao se devem 4 uma suposta falta total de senso jpral que acometeria a quase todos, mas sim ao simples fato de o sentimento obrigatoriedade ser &s vezes mais fraco do que outros sentiments, Dito de tra forma, penso que a questo nao esta na freqiiéncia do referido sentimen- na populagao, mas sim na fregiiéneia com que as pessoas o experimentam forma o bastante forte para serem por ele inspiradas. O conceito-chave para juacionar a questo parece-me ser 0 de conflito. Quem ja nao observou pes- oils fidis e atenciosas com seu amigos, mas que os esquecem ou até mesmo os jom assim que interesses pessoais entram em jogo? Quem j4 n&o observou jsoas que costumeiramente se comportam de forma honesta, mas que um roubam, trapaceiam ou mentem, quando uma tentacdo se apresenta a elas? qguntaria mais: quem jé nao observou fendmenos parecidos, de menor e até maior gravidade, na sua propria histéria de vida? Se o leitor me concede jie 0 que acabo de deserever cortesponde, as vezes, & realidade, cabe nos ijguntarmos se tais pessoas, a quem atribulmos hipoteticamente transgres- do desprovidas do sentimento de obrigatoriedade, ou se esse sentimento ijenas nfo foi o bastante forte para impedir agdes contrétias a moral. Ora, nso que seria exagerado jogar para o campo da imoralidade, para 0 campo “mal”, todos os individuos que, um dia, agiram contra a moral. Somente brariam herdis e santos no campo do “bem”, o que certamente no represen- ia muita gente. Com efeito, os chamados heréis e santos séo aquelas pessoas pazes dos maiores sacrificios pessoais em nome de certos valores morais. ies, 0 sentimento de obrigatoriedade de agir de forma justa ou generosa rie o bastante para dominar quaisquer outras vontades. No conflito entre ntades diversas, a vontade moral predomina, Mas tais casos nao somente (0 raros como seus protagonistas ndo costumam ser pessoas totalmente virtu- ys: Schindler, que arriscou sua vida para salvar judeus das garras dos nazis- — ns, era, segundo o relata Flanagan (1996), péssimo marido, ¢ juther Kin] ue corajosamente dedicou sua vida ao ideal de justiga, um adultero reine lente, Fim suma, no me parece ser, do ponto de vista da psicologia, wma b Dpgilio tedrica dividir os seres humanos em morais € nio-morais, © problel Mnior nfo est em detectar a presenga ou a auséncia do sentiment brigatoriedade, mas sim a sua forga. (1a, falar em “forca” implica assumir uma teoria energética das ag6 humanas, portanto, de uma teorla da afetividade. # justaimente para dat con dossa questi que diferenciamos moral de ética. Vamos entio analisar 0 4 chamamos de plano ético. 0 PLANO Tico Reservamos a questdo ética para as respostas existenciais referentes pergunta: “que vida eu quero viver?”. De passagem, vale a pena notar que ess pergunta tem sido, ultimamente, objeto de variadas publicacées ou re-publici ges no mundo ocidental. Os problematicos livros de “auto-ajuda” nfo deixa de levar seus leitores a reflexo sobre o como “viver bem”, O tema das virtud: intimamente relacionado & ética, tal como a definimos aqui, também tem sid objeto de renovadas reflexes: autores contempordineos como Comte-Sponvill (1995), MacIntyre (1981), Sentis (2004), Tugendhat (1998), entre outros, té escrito sobre elas, e sabe-se do sucesso editorial dos “Livros das Virtudes" ‘otganizados por Bennett (1995). Nao deixam de ser sintométicas as reedigde: de antigos textos sobre a felicidade (como o de Bertrand Russell, 1962) ¢ 0 ‘empenho de outros autores em equacionar esse mesmo tema, como o fizerai Ferry (2002) na Franca, Seligman (2004) nos Estados Unidos, e Giannetti (2002) no Brasil. Neste inicio de século XI, encontrar respostas para levar uma “vid: boa” parece corresponder a uma urgéncia existencial. Porém, é de certa forma preocupante notar que, quase sempre, a reflexao ética contemporanea, dife- rentemente do que se fazia na Antigitidade, nao faz. referéncias & moral, nao se articula com a questio dos deveres, embora haja excecées, como Ricoeur (1990), Comte-Sponville (1995), Collin (2003) e Macintyre (1981). Considerando 0 que foi dito, € inevitével notar que as respostas a pergun- ta “que vida eu quero viver?” formam um amplo leque de contetides: dinheiro, ‘mot, sexo, sucesso profissional, paixées, gléria, poder, ataraxia, emogGes for- tes, virtudes, serenidade, vida familiar, aventuras, reputagdo, temperanca, paz, isolamento, amigos, trabalho, lazer, autenticidade, auto-estima, auto-supera- 0, religito, beatitude, etc. A lista talvez nao tenha fim. Encontramos pratica- Mente tudo ¢ seu contrério, A dificuldade de um tratamento objetivo do tema explica, ao menos parcialmente, a stia pouca exploracao por parte da psicolo- 4yia, o que deixou o campo livre para os “vendedores de sonhos” que abarrotam as livrarias com seus optisculos. Mas para definirmos um “plano ético”, deve- mos fazer um esforco de objetividade e procurar encontrar algo que seja co- ‘um a todos esses conteridos, Fzemo-lo para defini o plano m ral: identifice 198 0 sentimento de obrigatoriedade como elemento comum a todas as mo- is; Gonsidlerando que exista, qual sera o elemento comum a todas as opgées cas? Como fazemos uma anilise psicoldgica, melhor formular a pergunta de wineira mais precisa: que elemento psicoldgico estaria necessariamente contem- ado para que se possa de fato viver uma vida boa? Se encontrarmos tal ele- yento, se encontrarmos algo de incontornavel para todas as respostas éticas Fealmente satisfatérias para os seres humanos (podem haver ilusées de felici- luce, que mais trazem sofrimento que bem-estar), teremos como definir o ‘plano ético para, em seguida, articula-lo com 0 plano moral. ‘A tarefa é delicada. Séculos de filosofia, de busca da sabedoria estdo af, junto para mostrar-nos que o tema da “vida boa” ou “felicidade” é incontomné- ‘vol — se nao o fosse, porque seria ele recorrente? - quanto para provar-nos jue € de dificil abordagem — nunea houve unanimidade de opinides. No ema- thnhado de teses sobre definigdes e meios de atingir este “supremo bem” que é {\felicidade, & preciso provermo-nos de um método de anélise, de pasos que Jogrem nos aproximar de caracteristicas minimamente convincentes para defi- nir o plano ético, O primeiro passo consiste em avaliar se a “vida boa” é decorréncia de condi- jes objetivas e mensurdveis, ou se ela corresponde a uma experiéncia subjetiva. A Fesposta a essa indagacdo parece clara: a “vida boa” é da alcada da subjetivida- de, do “sentir”. Parece-me dificil discordar de Canto-Sperber (2004) quando pla lembra que nao é possivel ser feliz sem se sentir feliz. Nao rao dizemos de pessoas que “elas tém tudo para ser feliz”, e logo nos espantamos com o fato Hlessas mesmas pessoas se mostrarem desanimadas, tristes, depressivas. Nes- ‘es casos, notamos que elas possuem “objetivamente” condicées de vida inve- Jiiveis, habitualmente associadas a possivels estados de bem-estar: beleza fisi- vi, fama, sucesso profissional, saiide, condigio financeira tranqilila, etc." Po- yém, tudo leva a crer que, para elas, tais bens nao “trazem a felicidade”, ou, pelo menos, néo séo suficientes para garanti-la. Elas néo se sentem felizes. Tais {uasos devem nos convencer da importancia da experiéncia subjetiva que presi- de & “vida boa”, Nao se trata, é claro, de descartar a contribuicéo de certas condigdes concretas de vida para o usuftuto da felicidade. Isso fica claro essen- clalmente pela negacaa: é muito dificil, embora nao totalmente impossfvel,* sontit-se feliz na miséria, na doenca, no desprezo social, no trabalho sem qual- quer tipo de gratificagao. Penso que seria cair em um irtealismo afirmar que a folicidade é “puro” estado subjetivo. Mas parece apropriado dizer que ela de- pende da subjetividade.’® Em resumo, 0 gozo da felicidade depende de “esta- {los internos”, ele é uma experiéncia subjetiva. Logo, 0 plano ético ¢ ocupado por avatiagdes pessoais a respeito de se estar vivendo, ou nfo, uma “vida boa”. ‘Como essas avaliages podem receber variados contetidos, nossa primeira can- clusdo € coerente com a definicio de plano ético como forma. Isto posto, um segundo passo para elaborarmos 0 conceito de plano ético consiste em avaliar qual a relagdo entre o sentir-se feliz e o eixo do tempo. Serd a oe, eeede Llenie felicidade a somatsria de momentos agracivels? Ou seré que ela depend ‘algo que diga respeito, se nio a uma vida inteira, pelo menos a algo que t cenda 0 aqui e agora? A resposta nao parece oferecer maiores dificuldid para ser aceita, Se convocarmos os fildsofos que se debrucaram sobre 0 te da “vida boa”, veremos que contemplam a vida como um todo, ¢ nao col fugazes momentos de prazer. E 0 caso de Aristételes, para quem a felicidad ; mestHo que rmpidamente, a tere do lugar central que ocuparia a busea do ni vid de end um de ns, Com elelto, 6 prazer ¢ um tema que costuma irromper na mente quando ponsa em felicidade, Tal irrupgio é notadamente intensa nos dias de hoje, Ai de verdadeito culto as emogées fortes, & adrenalina, ao divertimento, dias in que o vocabulo “orgasmo” despiu-se de seu antigo pudor para servir de frutto do cultivo das virtudes, cultivo érduo e que ocupa toda uma vida. Epi hetdfora para variadas experiéncias de prazer intenso. Como € notério que a embora coloque o prazer no centro de sua ética, segue os passos ce Aristotel periéicia do prazer pode advir de variadas situacies, de variados conted- ¢ também adere a abordagem holistica da “vida boa’. Se pensarmos na gf f poderia parecer que esse conceito adequa-se perfeitamente 20 aspecto cepeao crist& de felicidade, que implica a comunhao com Deus ¢ o merecim¢] Jprmal inerente ao plano ético. Todavia, sérias dificuldades existem, e devem to de ao lado Dele passar a eternidade, também fica clara a articulagao ent wrot-nos descartar a simples referéncia ao prazer como elemento comum a “vida boa” e o fluxo temporal da vida e da morte. Mais perto de nds no temp pula as experiéncia de “vida boa”. Williams (1990), para quem a questo de Plato (que vida viver?) é o melhi (0 sentido mais habitual para a nocdo de prazer adequa-se perfeitamente ponto de partida possivel para a filosofia moral, lembra que a reflexao dey \déia de fragmentos de tempo vividos de forma descontinua, discutidos aci- incidir sobre a vida como um todo. Ricoeur (1990), para analisar a “vida boal dn. Fxistem os chamados “prazeres corporais”. Uns so decorrentes de desejos insiste no fato de que “vida” deve designar o homem por inteiro, e nao prétia jturais necessarios, como dizia Epicuro (ver Laks, 2004), ¢ correspondem & fragmentadas. Spaemann (1999) descarta o prazer, como sentimento inerent ‘Zo de algum desconforto (a fome, a sede, por exemplo). Outros, sempre A felicidadc, ¢ elege a alegria para ocupar o seu lugar: a alegria transcende suindo a classificagdo epicurista, correspondem a saciacdo de desejos tam- sensacdo imediata de ozo, d-Ihe sentido existencial. Teremos, logo abai Jydin naturais, mas no necessérios, como, por exemplo, a vontade de saborear Guando tratarmos do prazet, a oportunidade de voltar um pouco sobre a dill im salmgo ou tum vinho: nesses casos, trata-se le usufruir de gum luxo, € sidnde de pensar a feicidade em termos de somatéria de pequenos momellamiio ~ ou nao apenas ~ ce matar a fome ou a sede. Os prazeres corporais qc toe asradévels Por enquanto, penso podermos assumir que, 20 lado de SUM RXperimentamcs, assim como o restante dos animais (prazeres necessérios), caracteristica de experiéncia subjetiva, a felicidade, para merecer esse nom \io, por definicao, momenténeos: experimentam-se no momento de uma aco. exige a transcendéncia do aqui e agora. Como o escreve Paul Ricoeur (1990) mim Nio ha duividas de que a saciacio de necessidades bésicas (relacionadas 20 erfetasce nao € dada por nenhuma experiencia particular, mas sim pela cong_llE principio da sobrevivencia) e © goz0 dos chamados “pequenos prazeres de cigncia da direcdo que damos as nossas vidas. Jida” s4o valorizados pelo comum dos mortais. Todavia, nao se conhece qual- ‘Um dado recente da psicologia reforca a tese segundo a qual a felicidad uct sistema ético que os equipare & felicidade. Spaemann (1999) pergunta depende de elementos identificdveis na “vaste paisagem da existencia”, pari Nos seus leitores se acetariam permanecer para o todo sempre Tigados 9 um fepmar uma expresso de Ricoeur Lilian D. Graziano (2004), pesquisadorallgle aparelho elétrico que Ihes garantisse constantes “choques de prazer’, ¢ respon sieitotta: encontrou correlacdo positiva entre sentimento subjetivo de Denim dle por eles que certamente nfo trocariam a “vida vivida”, com seus inevitivels estar (sua definigio para a felicidade) e conseiéncia de se ter controle sobre alll Perigos de dor e de morte, por essa garantia de prazer corporal perene. prépria vida (Iécus interno de controle). Vale dizer que as pessoas que sentemt ‘Ao lado dos prazeres corporais, h4 também aqueles que respondem pelo Prva oral, liberdade para decidir o que fazer de suas vidas, sentemse mais pome de “prazeres da alma” (ainda segundo a nomenclatura de Epicuro), ¢ felises do que aquelas que se vem coagidas. Para além das variadas decorréneIlll ue pressupdem as faculdades intelecuais para serem experimentados: 0 pra. Gas tedrieds desve dado, ereio que lima delas € reforgar 0 cardter holistico dalle jer da leitura, de escrever, de ouvir musica, dle compor, de assistir¢ de praticer feliidade: a liberdade de decisto relaciona-se nao tanto com 0 possivel gozollle algum esport, ete. Como os prazeres corporas, os prazeres da alma = ou do de determinadas ages, mas sobretudo com algo que as transcende. pensamento, como também so chamados ~ sto claramente situados no tem Ja efetuamos dois passos em nossa caminhada para definir 0 plano ético: fo: sfo experimentados quando da atividade. Bastariam eles para tornat & experiencia subjetiva de alguma forma de bemeestar, e avaliagdo de que essai Vida feliz? A tesposta a essa pergunta parece menos evidente do que aquela caperiéncia acompanha o fluxo temporal da vida. O terceirocorresponde a ural ule assumimos para os prazeres do corpo. Mas penso que é igualmente negs- (questao espinhosa, mas incontorndvel: qual seré a qualidade necessdria @ referi- Miva. Imitando Spaemann, podemos indagar se aceitarfamos cessat Posse ati- da experténcia subjetiva de bem-estar? Podemos formular essa questo de outra _vidades habituais,interromper o fluxo natural de nossas vidas, Be tivéssemos a forme: qual €-a busca existencial de todo homem e de toda mulher? Seré all garantia de, de forma continua, usufruitmos de prazeres intelectuais, Taven busca de prazer? Minha resposta 6 negativa, Mas néo posso me furtar a anali- MMM [Ossemos tentados a fazt-lo, mas certamente nos arrependerfamos, pois l9g0 uum certo tédio e um vazio existencial invadiriam foswas vidas: fi, alls, 0 que Gostuma acontecer com os aposentados: comecam por apreciat sua nova vid Jonge das agruras de um trabalho profissional nem sempre gratificante, cled fim-se aos prazeres para os quais nao tinham tempo, mas, nio raras vezes, jperclem pouco a pouco a vontade de viver; alguns reagem procurando ativida: los «jue 08 recoloquem no ritmo inevitavelmente tutbulento da “vida vivida’.1@ ii resumo, coerentemente com o fato de termos associado a felicidade a0 fiixo temporal da vida, nao me parece em absoluto quie os prazeres do corpo ¢ a alma sejam garantia de uma “vida boa”, e que 0 processo psicolégico que jios leva a querer deles usufruir possa ser central para a plano ético. Mas o leitor paderd contestar lembrando que hii éticas cléssicas que colo- am prazer no centro dos projetos de felicidade (as correntes hedonistas). im, é verdade, Todavia, o conceito de prazer que empregam nao corresponde Aguele que acabamos de analisar, Alids, dele se afastam bastante, tornando problematico o emprego de um mesmo conceito tanto para se referir a apre- Clagio de um bom prato, de uma boa miisica, quanto para a valorizagio da uinizade, das virtudes, da dignidade. Dois exemplos me parecem suficientes para compreendé-lo. Fpicuro, notavel hedonista, coloca a amizade como bem necessério & feli- tldade. Mas todo o problema reside em saber 0 que hé de comum entre sabo- ear um vinho, ouvir musica e ter amigos. Entre os dois primeiros, 0 comum & 4 referéncia ao tempo: experimenta-se uma “sensacao” agradével no momento du ago, Porém, tal no parece ser 0 caso em se ter amigos. Insisto no verbo er", Se fOssemos apenas referir-nos aos momentos em que se esté em boa ‘companhia, a comparacéo com bons vinhos e boa muisica seria possivel: sabo- Fela-se 0 momento vivido, as sensagées agradveis durante ele experimenta- Alas. Porém, 0 fato de ter amigos nos projeta em outra dimensio: a do ser. Imaginemos um pessoa momentaneamente sozinha, no sentido fisico da pala~ ya. Ela pode estar rememorando o prazer de que gozou 20 ouvir um concerto ha véspera, 20 comer um bom prato na safda da sala de espetdculos e ao con Versar com seus amigos. Nesse caso, hd uma dilatagéo do tempo: 0 prazer experimentado emana seus eflivios, mas ainda o momento vivido é referéncia jecessdria. A pessoa poderé ainda sentir-se bem ao antecipar o prazer que Ihe {yard o concerto a que vai assisti, o prazer que préximos banquetes Ihe propor- lonarao, o prazer que os encontros marcaclos com seus amigos The garantitio. Novamente, a sensacao de bem-esiar, relacionada ao prazer, dilata-se no tem- po, porém permanece referenciada a determinados momentos, a determina- las agdes. Contudo, pode ser que a pessoa em questo sinta-se feliz nao pela jjeméria ou pela antecipagio de eventos, mas porque saber-se amiga lhe agra~ a, Nesse caso, 0 ser amigo de outrem é que est em jogo, e nao a lembranca | imaginacao de momentos ricos de convivio. Trata-se de contentamento com im situagdo na vida, portanto, nao limitado referéncia a momentos do inten- 40 gozo. Ora, seré que podemos empregar a nocio de prazer tanto para nos pferir a esses momentos de gozo quanto para a avaliagio do valor de situacdes ‘da vida? Das duas uminy O11 pensive que sim, ¢ faz-se entilo a hipdtese de wn fachatamento dos sentinentos humanos (todos os sentimentos so facetas de {uma mesma sensagdo, 0 prazer), ou pensa-se que nfo, e a nogao de prazer torna.se referencia para ttido aquilo que o homem busca (e desprazer sendo sindnimo de coisas ruins que os homens procuram evitar), 0 que implica con- fentat-se com uma nogao psicologicamente vaga e pouco produtiva para com- preender a felicidade humana, De acordo com Spaemann (1999), penso que 0 hredonismo representou um esforgo para compreender as motivagdes das ages humanas ~ ¢ isso é a sua grande contribuigéo ~ mas que sua referéncia exclu- siva ao prazer tora suas teses probleméticas, psicologicamente falando. Dito de outra maneira, 0 hedonismo tem certamente razo quando sublinha que o homem busca o que é bom para si (€ isso mesmo em se tratando de moral), ‘mas parece errar ao tesumir essa motivacao & busca do prazer, seja porque nos leva @ reduzir todos os sentimentos positivos a um s6, seja porque “prazer” torna-se af um conceito demasiadamente vago. ‘Mesma andlise pode ser feita da abordagem utilitarista de Stuart Mill (1861/1988), outro notavel hedonista para quem a nica coisa desejével € a felicidade, que se traduz pelo prazer ou pela auséncia de desprazer. Em um trecho em que defende o hedonismo, ele estabelece uma hierarquia entre pra zeres, Antes de vermos seu argumento, notemos que, se uma determinada atividade causa mais prazer que outra, isso s6 pode dever-se ao fato de que 0 prazer gerado por uma seja mais intenso do que o prazer gerado pela outra. Em sendo sensacées diferentes, colocar ambas na classe do prazer torna-se proble- matico, a ndo ser que entendamos “prazer” como categoria geral do que causa ‘algum tipo de bem-estax, o que, como comentado acima, torna de pouca utili- Gade o referido conceito para a psicologia. O que nos diz Mill? Ble afirma que os prazeres da alma so superiores aos do corpo, que causam, portanto, mais prazer, sendo preferidos por aqueles cuja edueacio les deu instrumentos inte- jectuais capazes de expetimenté-los. 0 filésofo, preocupado em refutar a idéia segundo a qual o hedonismo reduziria o homem ao status de animal, suposta- mente movido por prazeres vulgares, defende sua posi¢do referindo-se a um sentimento comum a todos os seres humanos, o da dignidade. © homem sentir- se-ia mais digno ao gozar de prazeres intelectuais do que prazeres “da carne”, fato que o levaria a preferir aqueles a estes. Vemos que Mill, para explicar a maior intensidade dos prazeres da alma, introduz. um novo termo, em si estra- ho ao contetido do que causa prazer. A atragdo dos homens pela musica ow pela literatura nao se daria, portanto, apenas em razao das qualidades prazerosas Intrinsecas a essas das atividades, mas também em funggo de um valor cuja origem deve ser buscada nas avaliagSes que © homem faz sobre seu préprio ser (minha dignidade implica que eu prefira tal coisa a tal outra). Mas entéo, onde estaria a fonte essencial do prazer? Na atividade? Na concepcao que temos de nds mesmos? Podemos dizer que ambas so fontes do prazer, mas ao afirmé-1o reencontramos as mesmas dificuldades apontadas quando do exemplo da ami zade, O prazer, cuja experiéncia é intuitivamente dbvia em atividades como } AA vor do Lo Taille comere ver um belo quadro, deixa de ser um sentimento claramente identificdvel fem outras situagées, como as de se sentir digno ou merecedor da amizad alhela aoe i lim suma, penso que, do ponto de vista psicol6gico, a referéneia ao prazel como elemento-chave do plano ético é insatisfatéria: ou reduzimos a felicida dea somatoria de momentos agradveis — tese que jé rechagamos ~ ou chega= fos a uma quase sinonimia entre prazer e felicidade ~ 0 que nos fez andar em Cliculos. Falta dizer que Freud, ao afirmar que uma motivacéo fundamental las atividades do homem é 0 “principio do prazer”, foge a essa circularidade, ‘Trata-se de uma teoria genética: no inicio da vida, o bebé procura o prazer corporal, mas tal busea sofre paulatinamente um processo de sublimagao, ott Sela, desloce-se para variados objetos, notadamente intelectuais (como a cién~ Gia e as artes). Aparentemente, a teoria freudiana é hedonista, como as de [ipicuro e Mill. Todavia, ela traz dois pontos que a separam claramente destas. 0 primeiro: a busca do prazer é uma motivacdo inconsciente. Logo, nao é 0 experimentar prazer que esta em jogo: variados sentimentos podem associar- se. esse prinefpio basico. O valor dado & dignidade, para retomar a teoria Utilitarista de Stuart Mill, pode ser motivado por uma busca inconseiente do prazer, mas aparecerd 4 consciéncia de forma bem diferente do que o prazer experimentado ao se saborear um bom prato. Dito de outra maneira, o fato de colocarmos a busca do prazer na esfera inconseiente opera uma separagéo centre prazer e felicidade: a busca da felicidade é motivada pela busca do pra- vet mas nao € pensada e usufruida enquanto tal. O segundo ponto que separa 4 teoria de Freud dos sistemas hedonistas filos6ficos € 0 fato de ele identificar ho prazer uma dimensio erdtiea: 0 desejo sexual estaria em todas as ativida- des humanas, mas sublimado. “Temos, portanto, na teoria psicanalitica, uma abordagem sui generis € genuinamente psicoldgica da fungao do prazer na economia das agdes huma- has.” Sabe-se de sua forga e coeréncia, sabe-se também de sua influéncia no pensamento moderno, Mas, naturalmente, a psicandlise nao aleanga unanimi- dade, Seu “pansexualismo”, para empregar uma expresso de Piaget, nao pode ser aceito sem maiores precaucées, tampouico sua referencia a pulsoes para dar conta da mola mestra que impulsionaria a vida. De minha parte, creio que 6s sentimentos tém, por assim dizer, “vida propria”: pode ser que sejam subli- mages do principio do prazer, mas uma vex constituidos, atuam de forma independente nas atividades humanas, cabendo, portanto, estudé-los enquan- {o tais, Em outras palavras, nfo penso que se deve reduzir a dimensio dos sentimentos aquela das pulsdes. Logo, a aceitacao da realidade energética e da Tungio genética do prinefpio do prazer no implica contentar-se com elas para definir 0 plano ético. re Precisamos, portanto, para compreender de que se nutre a “vida boa’, sob seus varios aspectos e contetidos, encontrar uma necessidade psicolégica incontornavel, que transcende episédios de vida, e passivel de ser concebida enquanto tal pela consciéncia. Tal parece ser 0 caso do sentido para a vida. ae ee a ‘Tulvez nflo hoja maneira de escolher “como viver” sem ter alguma resposta subjetivamente convincente para o “para que Para melhor apreciar o quanto a pergunta do plano ético “que vida vi- vor?” implica outra, “para que viver?”, talvez seja boa estratégia pensarmos nis origens possiveis lo grau maximo de infelicidade, que leva alguém a néo querer mais viver e a se suicidar. Como a grande maioria dos fenémenos huma- ‘ios, suicidio tem certamente multiplas causas. Hd pessoas que pdem inten- clonalmente um fim as suas vidas em razéo de experiéncias episddicas de de- espero, em raziio de alguma dor aguda, fisica ou moral, causada por algum sicontecimento claramente situado no tempo (a pera de um ente querido, por exemplo). Existem tais casos mas, segundo Durkheim, autor de um eélebre pstudo socioldgico sobre o suicidio (Durkheim, 1988), representam a excecio, © nvio a regra. Suas pesquisas mostraram que se observam mais casos de suict- iio em situagdes em que os individuos se encontram privados dos beneficios da coeséo social, privados portanto de referencias comunitdrias que déem sen- Lido a seus esforcos para viver, do que em situagdes de dificuldades materiais le sobrevivencia. Sublinho que é do préprio Durkheim 0 emprego da expres- siio “sentido a seus esforcos”: o suicidio estaria assim relacionado a perda de sentido da vida, ao nfo mais se saber por que levantar de manhi, porque {rabalhar, por que preparar-se para o dia seguinte. O suicidio estaria relaciona- do, na maioria das vezes, a um vazio de sentido existencial. Hé outras excecdes, notérias, mas que, longe de desmentir a relagdo entre suicidio e sentido da vida, paradoxalmente a reforcam: refiro-me aos "kamikases”, aos homens e mulheres-bomba que, conscientemente, resolvem matar € se matar em nome tle um ideal politico ou religioso. Nesses casos, longe de fugir a problemética ilo sentido da vida, o suicidio a coloca de maneira escancarada. Poder-se-ia dizer que, nesses casos, morrer encerra uma razao de viver, Devemos lembrar aqui também as pessoas que arriscam a vida na luta por alguma causa. Nao se trata de suicfdio, pois esperam vencer a huta sem morrer, mas 0 fato de aceita- rem a probabilidade, freqiientemente altissima, de perderem suas vidas, os aproxima, psicologicamente falando, daqueles que tém certeza absoluta de nao sobreviver. Mas tais casos também so raros.'* A causa mais freqiiente do suicidio é a perda do sentido da vida. Pensemos nos suicfdios decorrentes da perda da honra: methor morrer do que viver sem honra, dliz-se, ou melhor, ilizie-se, antigamente. Ora, o que € a honra sendo uma razéo perene de viver, um sentido atribufdo a existéncia? Voltarei em breve ao tema da honra, que reputo central para a ética e sua relacio com a moral. Por enquanto, penso que Albert Camus (1973) tem razo quando postula que o problema filoséfico mais importante de todos é 0 suieidio: esse ato der- radeiro mostra, pela negacZo, o quanto o sentido da vida é 0 mais urgente dos temas humanos, pois, sem ele, no se vive. Nao somente sem ele no se vive, como nossas agdes mais decisivas, as quais nos engajamos por inteiro, so aquelas em que ele est em jogo. O préprio Camus lembra que Galileu, poss! dor de uma verdade cientifica da maior importéncia, abjurou-a para nao ser fondenado & morte, e que nunca se viu ninguém morrer em defesa deste aguiele argumento ontoldgico, Ora, se nao se morre pelos trajetos clos pl fam forno clo Sol, ou pela afirmagio de que a esséncia precede a existéncli, YVice-versa, é porque nao se vive para cles. Para Galileu, a vida néo deixava dé sntido pelo fato de as evidéncias cientificas serem negadas por motivos relly So, mas provavelmente deixaria de fazer se ele nfio pudesse mais se dedici Cidncia. Foi esse sentido que determinou a sua agéo de mentir ao dizer publie Mente que abjurava suas teorias: assim ele pdde permanecer escrutando o 6 Com Sdcrates foi diferente: acusado de corromper a juventude e por isso cond hado & morte, preferiu morrer a renegar suas idéias, porque elas diziam ditet mente respeito & sua forma de conduzir-se na vida, A sua ética. Viver de outy modo que nao “socraticamente” nao teria feito sentido para ele. im resumo, creio que viver uma vida que faga sentido é condicao necd para a “vida boa”, seja ela qual for, e que, portanto, encontramos nes ecessidade um elemento essencial & definicio do plano ético. Além do mais) | sentido da vida corresponde as duas caracteristicas jé atribuidas ao refer plano: o sentido da vida depende de avaliagbes subjetivas e é tema que acott panha o ser humano 2o longo de sua existéncia.!? Varios autores referem-se) ‘essa questo para elaborar seus estudos morais ¢ éticos, Jé falamos em Cami © podemos lembrar também de Sartre (1943), Morin (2004), MacIntyre (1981) Collin (2003) e Taylor (1998), para citar apenas autores recentes. Esse tilt insiste no fato de que “dar sentido” as aces ¢ identifiear aquilo que as tort dignas de ser realizadas e que, conseqtientemente, traduz a nossa “situagio mundo”. Ele observa que, nas reflexdes éticas moderas, o tema do sentido dif Vida tomou uma dimensdo desesperadora, Antigamente, as pessoas nao duv/ davam de que a vida pudesse ter um sentido, todo o problema residia em sabe qual, Atualmente, a dtivida recai sobre a prépria existéncia de um sentido, Nig por acaso que Camus procura as razes de viver naquilo que ele chama dé absurdo, e que Sartre fala em ndusea para ilustrar o sentimento de tot estranhamento existencial. Entre outras razSes, 0 moderno “desencantamen to” do mundo, bem como a decorrente problematizacéo das razées de nel viver, devem-se ao enfraquecimento da influéncia dos sistemas religiosos ni maneira como as pessoas concebem a morte. A morte pensada enquanto pas sagem de uma forma de vida para outra corresponde a uma idéia suportavel, @ «ue confere & vida um sentido de etapa, de seqiiéncia de acdes cujos fiitos iranscenderdo © tempo e 0 espaco. Porém, se a morte ¢ friamente pensada. como fim derradeiro, ou se so fortes as duividas de que haja paraiso ou ren carnagao, a perspectiva inelutével de seu advento transforma-se em uma espé- cie de *buraco negro” que pode tragar as razdes de viver. Qual o sentido de jossas ages se o tempo bruscamente e imprevisivelmente as interrompera? A realidade da morte, concebida cada vez mais como puro evento biolégico, deve facrescentar-se o individualismo contemporineo como elemento complicador nna busca de uma vida com sentido. Com efeito, pensar-se como ocupando um papel previamente determinado pela sociedade ~ de pai, de mae, de filho, de abalhindion ete. = perm{iln Nomar emprestado” o kentido e 0 valor que a cul- AUTIbUTi A esses papéls. Hoje em dia, nfo somente esses papéis carecem de Tnfinigdes claras (o que ser pal? ser mie? ete,), como nio so vistos como iHaclores ce kdentidade, Como analisado por Richard Sennett (1979), 0 ideal indemo é cada um encontrar sua identidade no seio de sua prdpria incimida- ide sua singularidade: cada um deve escrever seu proprio papel, construir iis propria personalidade. E talvez muita gente nao consiga, na solidao de i idiossincrasias, encontrar a si mesma, encontrar a rao de viver, e no Ohsiga, portanto, saber como viver. Pode ser por esse motivo que, segundo Antistica da ONU de 2002, entre as causas de morte intencionalmente causa- is, 0 suicidio é, de longe, em nosso planeta, o mais freqitente (é preciso so- lir-as mortes decorrentes dos crimes e das guerras para igualar o nimero de Hilciclios). Os paises que levam os nimeros de morte voluntéria a esse terrivel ‘Pilamar sio justamente aqueles nos quais as condicdes materiais de vida sio jolhores.”” Todo problema, mais uma vez, parece mesmo residir na questo Jp sentido da vida, questio essa presumivelmente mal ou ndo resolvida no mundo ocidental contemporaneo 2 Falta-nos dar o quarto e tiltimo passo para definir o que seria invariante no no ético. Jé sabemos que toda e qualquer resposta para a pergunta “como yer?” deve ter valor subjetivo, relacionar-se ao fluxo da vida e ser portador ip sentido existencial. Vamos acrescentar outro aspecto: a resposta para o “como Yiver?” deve permitir a realizardo da “expansao de si préprio”. Vamos conhecet 0 sue me leva a eleigo desta quarta caracteristica do plano ético. No item anterior, vimos que a pergunta “que vida viver?” relaciona-se & tra: “para que viver?”. Dessa relacdo, resgatamos 0 tema do sentido da vida. Mas ela também relaciona-se a uma terceira: “quem ser?”; ou seja, ela coloca ) pauta o tema da identidade pessoal. Se pensarmos a questio da identidade apenas no nivel bioldgico, as for- ‘its e as raz6es de viver em nada interfeririam na sua concepsao. Porém, como jpontado por varios aurores, entre eles Taylor (1998) e Perron (1991), nin- ic concebe a si préprio apenas como ser biolégico, como corpo entre cor- ‘Pos. Para compreendé-lo, nao esquecamos que a consciéncia de si é resultado ile uma tomada de consciéncia. Mas tomada de consciéncia de qué? Ora, da ida, do “ser” na vida, e nio de um “ser” fora do tempo e do espaco. Quando, ‘por volta dos dois anos de idade uma crianea toma consciéncia de si, ou seia, é ‘bapaz, gracas a funcao simbélica (ver Piaget, 1968), de pensar sobre si prépria (um eu sujeito diferencia-se de um me, objeto), nao é apenas a sua existénc bioldgica que ele concede, mas também, e sobretudo, sua existéncia como ser social, sua inserco no seio de um grupo, suas relacdes com outrem, ete. Ou scia, a tomada de consciéncia de si é tomada de consciéncia das préprias agdes ho mundo, tomada de consciéncia a partir do viver, da praxis. Portanto, a iden- dade € uma construgio realizada a partir dos atos concretos da vida, a partir slo “como viver”. Se ha indissociabilidade entre idemtidade e as caracterfsticas a “vida vivida”, a fortiori, as repostas dadas & pergunta “como quero viver?” proga part ceferinye teorla adleriana, com a qual concorda totalmente. imo. pernso que ela tradiuz corretamente o pensamento de Adler, a emprego jult "expansio” remete claramente & busca cle novos horizontes de acéo, & jusoa de superagio de si, em suma, & necessidade de enxergar a si préprio mo uma pessoa cle valor, Para Adler, o sucesso nessa busca de expansio de si prio 6 condi¢ao necessiria a Felicidade, a0 bem-estar subjetivo, Reeiproca- lente, o fracasso nessa busca, ou seja, a consciéncia de que se € perenemente ferior em relagio a um ideal previamente colocado, é fonte de infelicidade, Je mal-estar subjetivo, Se Adler tiver razo, qualquer contetido que venha a uupar 0 plano ético, portanto qualquer opc&o pelo que seja uma vida feliz, love dar ao sujeito a possibilidade da expansio de seu eu. Podemos facilmente verificar que a “expansdo de si prdprio” articula-se jarmoniosamente com as demais caracteristicas que atribuimos ao plano ético. Em primeiro lugar, ela depende de uma avaliagao subjetiva. E isso de yas formas complementares. Os ideais a serem alcancados e, portanto, os pstaculos a serem vencidos dependem de uma eleicéo pessoal. Nao quero izer com isso — longe disso, aliés ~ que os ideais néo sejam tributdrios de {n{luéncias sociais, que no sejam, portanto, inspirados pela sociedade, e quem gabe até impostos por ela. Mas, impostos ou néo, eles so concebidos como ‘etas pessoais e a magnitude das exceléncias a serem alcangadas variam, & Inuito, de pessoa para pessoa. Além disso, o sentimento de aleangar “um gra sntisfatdrio na tendéncia de elevar-se”, para retomar as palavras de Adler, tam- hém depende de uma avaliagio subjetiva. Em segundo lugar, a “expansao de si préprio” segue o fluxo do tempo da Vida. Alguns acontecimentos pontuais, alguns episddios certamente reforgam (ou enfraquecem) tal busca de superacdo, promovem fortes sentimentos de ontentamento (ou de tristeza), mas somente podem ter (al efeito se a pessoa s situa no passado (em que nivel se pensava estar), no presente (em que nivel ‘je pensa estar) ¢ no futuro (sejam niveis a serem alcancados, ou niveis a serem preservados). Como a “expanstio de si préprio” incide sobre o valor do eu, portanto o valor do préprio sujeito, é claro que ela diz respeito a uma vida Inteira, A diregdo que Ihe é dada, para retomar a expresso de Ricoeur. O “ser” perspectiva, acrescenta o filésofo francés. De forma semelhante, Adler dizia {que nfo é o ser isto ou aquilo que define a alma humana, mas 0 “devir”. Em terceiro e tiltimo lugar, a “expansao de si préprio” articula-se convin- centemente com a busca de sentido para a vida, com 0 “para que viver”, pois cla 6, em si mesma, uma razdo de viver. Shreve ¢ Klinkel (1991), com base em pesquisas, revelam haver forte correlacio entre o suicidio e o sentimento de \Vergonha experimentado por aqueles que se desesperam em sua busca de sen- lido para suas vidas. Ora, 0 sentimento de vergonha, que serd retomado no Capftulo 3, como sentimento essencial 20 desenvolvimento moral, decorre jus- lamente de uma auto-avaliagio da prépria inferioridade ‘Uma vez que a tese da busca de “expansao de si proprio” contempla os irés passos anteriores de nossa analise dos invariantes psicoldgicos do plano silo Insepardveis das respostas dadas & pergunta “quem eu quero ser infolo da génese cla construgao da identidade, h4, a partir do que se vive, fonstataciio sobre que se é, do que tomadas de deciséo sobre quem ser e 50] fomo levar a vida. Em compensacao, a partir de mais ou menos 12 anos (dade, quando o mundo dos possiveis é concebido de forma operatéria, famese em pauta as referidas tomadas de decisdo. De qualquer maneira, s Como reflexo da vida efetivamente vivida, seja como tomada de decisio, boncepgoes ce “vida boa” © ayuelas que incidem sobre v “ser” caunintiaun j ns. Por essa razdo, verifica-se a presenca da questéo do “ser” no plano éti Mesmo racioc{nio vale para 0 sentido da vida: reconhecer tal ou tal razo pi se viver implica conceber a si préprio de tal ow tal forma. Por exemplo, pent que o sentido da vida na terra merecer a vitla eterna ao lado de Deus impli Ver a si préprio como “filho do Senhor”, como fiel, como pessoa religiosa. uma, penso que a questo do “ser” estd logicamente relacionada a indagaq ética, Escolher um sentido para a vida e formas de viver é escolher a si propt 6 definir-se como ser. Paul Ricoeur (1988) emprega a expresso “aderéncia a proprio” para referir-se ao ponto de unio entre os diversos desejos por objet diversos. Accita essa andlise, devemos nos perguntar se esse “ser” possui, para prdprio, alguma exigéncia especial para que sua vida faca sentido, Pergunta de outra forma: seré que o “ser”, & procura de um sentido para viver, esté vi ualmente aberto a toda e qualquer resposta existencial, ou serd que ele exigh que ela contemple uma motivacao basica, sem o que a vida no teria sentido, 0} {eria pouco? Vou apresentar, ¢ assumir, a idéia de que tal motivacio existe que responde pelo nome de “expansao de si préprio”. O leitor certamente te’ reconhecido nessa expresso a inspiragao tedrica de Alfred Adler. Adler, um dos primeiros discipulos de Freud, e também um dos primeiro} acmiradores da psicandlise a romper com seu criador, elegeu como os doi pilares de sua teoria as seguintes teses: 1. todo homem experimenca inevitavelmente um sentimento de infe: rioridade; 2. a tendéncia a superd-lo é a motivagao basica de suas agdes (Adler, 1993/1991, 1912/1992). A lei da vida é vencer dificuldades, afirma ele, e as neuroses, fonte de Infelicidade, sao causadas pela incapacidade de tais vitérias, pela va tentativa (le manter as aparéncias de que se superaram obstéculos que nao o foram. A guisa de exemplos convincentes, Adler lembra casos de pessoas que se torna- m extremamente competentes em Areas de atividade para as quais softiam nicialmente de limitacdes graves, como a gagueira de Deméstenes e os proble- mas de audicao de Beethoven. Tais casos de resiliéncia, como se ditia hoje, mostram que superar os prdprios limites é fonte motivacional essencial. A ex- presso “expansao de si prdprio” nao € dele, mas sim de Piaget (1954): ele a — a Gtico, podemos doravanite apenas ‘Hele @ dizer que uma condlig hecessaria a0 gozo da folicidade, dm I, 6 ver a si préprio como pess de valor, capaz ce afirmar-se enquante tal, @ dle enxergar perspectivas dle ale (giv um grau satisfatério da tendéneia de elevar-se, de se desenvolve Para finalizar o presente item dedicado ao plano ético, talvez. nio se| Inttil comentar porque resolvi aceitar a perspectiva de Adler. Antes de mais nada, clevemos convir que a escolha de uma teoria psicol gica ou outra —e isso vale para o conjunto das ciéneias humanas ~ néo decot apenas das provas empfricas que a sustentam, Sempre haverd dados que Ih escapam, que até a contradizem, sendo considerdvel o niimero de varidve que participam da causalicade das ages humanas. Sem querer entrar em d cusses epistemolégicas que ultrapassam minha competéncia na matéria, diria que uma boa teoria psicoldgica deve ser verossimil, nos dois sentidos dl termo: por um lado, ser coerente com os dados cientificos e as observacées d senso comum sobre os seres humanos, e, por outro, ter consisténcia interna, Gertamente tal € 0 caso da teoria de Adler. Quanto aos dados «le que dispomos depois de aproximadamente um sécui lo de psicologia eientifiea, muitos deles vo ao encontro da tese da “expansii de si proprio", notadamente os da psicologia do desenvolvimento. Quando, ‘como eu o tenho feito, nos detemos na observacéio da crianga, fica claro — diria até mais evidente ~ a forte tendéncia infantil a superar-se, a transpo! limites, os fortes sentimentos de satisfacio e de orgulho quando dificuldades silo resolvidas e a tristeza &s vezes profunda que os fracassos acarretam (ver La ile, 1998). Teorias de desenvolvimento humano, como as de Piaget e Kolbe (mas também poderiamos acrescentar as le Vygotsky (1984), Wallon (1941/ 1968), Selman (1980), Turiel (1993), entre outras), atestam a forca da motiva- cio de expandir o prdprio eu: a tendéncia forte é a do crescimento, nao a da regressio. Mas alguém poder aqui objetar que, se verdade que se observa nas eriangas e nos adolescentes a vontade de superar limites, tal ni se verifica mais em numerosos adultos que parecem se comprazer na mesmice, na medio- cridade. Com efeito, tal parece ser 0 caso. Porém, é preciso tomar cuidado antes de interpreté-lo como contraprova da forca da “expansio de si préprio” ‘enquanto motivacéo humana forte e basica, Em primeito lugar, nada nos prova que tais adultos sejam felizes, haja vista a forte demanda por ajudas psicolégi- cas de todo tipo, e também por anti-depressivos. Em caso de nos perguntarmos se, em geral, os seres humanos s&o felizes, a resposta mais prudente seria dizer que no 0 so, ou que o so bem pouco, 10 cotidianos s40 os ressentimentos, as raivas, 08 conflitos decorrentes de picuinhas. Alids, devemos notar que a dor 6a maior fonte de inspiragio para a arte do que a felicidade. E devemos notar lambém 0 quanto 0 comum dos mortais mostra-se contente com suas “peque~ has proezas”, e 0 quanto faz. propaganda delas. Em segundo lugar, as possibil lades de “expanstio de si préprio” encontram-se em todos os dominio das ati- vidades humanas. frustrado no trabalho pode encontrar compensagées na sua fungao de pai, o frustrado como pai pode encontrélas no trabalho, e assim por dinnte, Isso se Verlflen também com eriangas: aquela que patina na sua fyolUgio como aluno, Bs vezes clesenvolve-se claramente em outras atividades, ue Ihe dao satisfagio e hes permitem atribuir-se valor. E portanto bastante Ife avaliar se uma pessoa est, on no, acomodada na sua mesmice sem conhecer todo o leque de suas atividades e dos juizos que faz de si, como ela *negocia” com o set “ideal do Ego”.? Para finalizar minha defesa da importéncia da “expansio de si proprio” para o plano ctico, quero lembrar que a tese da necessdria © possivel perfectibilidade do homem encontra-se em variados sistemas éticos. Lembre- nos de Aristételes, para quem a felicidade depende da auto-elevagio por in- {ermédio do cultivo das virtudes. Lembremos de Spinoza, para quem a maior legria é passar de uma perfeicéo minima para outra maior. Lembremos de Smith, para quem 0 merecimento é condicéo necesséria & felicidade. Lembre- mos de Nietzsche, que elege a “vontade de poténcia” como fonte motivacional por exceléncia das agdes humanas, e para quem o prazer equivale & sensacao de aeréscimo dessa poténcia. Pode-se ver nesses autores, e em outros, como diferentes representantes da corrente ética chamada “perfeccionismo”, que vé ha “expansio de si” fenémeno crucial da natureza humana. ‘Mas cuiidado! As diversas formas de perfeccionismo ético néo se limitam a apresentar uma tese psicoldgica sobre as motivagées e potencialidade humanas: clas visam a também fundar uma moral. Sao teorias do Bem ou do Bom. Ora, a tarefa que nos espera agora ¢ justamente a de articular os planos moral e ético. RELAGOES ENTRE 0S PLANOS MORAL E ETICO Lembremos que a questo que nos levou a dar definigées diferentes para “moral” e para "ética” era a dos papéis da inteligéncia e da afetividade na mnoralidade, Haviamos visto, por intermédio da andlise de algumas teorias de psicologia moral, que parecia haver uma relacéo entre o fato de enfatizar & dimensao racional ou a dimensao energética e a definic¢ao assumida do que soja a moral. Por esse motivo, debrucamo-nos também sobre definigdes para poder apresentar uma tese diferente das estudadas anteriormente a respeito da fonte motivadora da agao moral, E chegado o momento de explicité-la. ‘Comecemos por relembrar nossas definigdes de moral e ética e as dimen- ses psicolégicas a elas relacionadas. ‘Chamamos de moral os sistemas de regras e prinefpios que respondem pergunta “como devo agir?”. Como todos os sistemas morais pressupdem, por parte do individuo que os legitima, a experiéncia subjetiva de um “sentimento de obrigatoriedade”, identificamos esse sentimento como o invariante psicolé- ico do plano moral. Reservamos 0 conceito de ética para as repostas & pergunta “que vida eu ‘quero viver?”, portanto, & questo da felicidade ou “vida boa”. E identificamos na “expansao de si proprio”, a motivagdo psicolégica a ser necessariamente ee Ku poderla ulongar exsa discussito filosdfica, mas decido niio fazé-lo. Nela, {reqilentemente forma e contetido mistuam-se, como confundemrse o “ser” € “dever ser”, conforme o que bem havia notado Hume (1757/1990, 1740/ 1998), Pretenco permanecer tanto no campo da forma (os planos moral € Htico) quanto no campo da psicologia. Do ponto de vista psicoldgico, defendo a tese de que pare compreender os comportamentos morais dos indivtduos, precisamos conhecer a perspectiva ética jue adotam, Nesse sentido, assumo, com Gomte-Sponville ¢ Ricoeur, que 0 plano ético engloba o plano moral. Porém, minha argumentacéo é exclusiva- mente psicoldgica. Vamos a ela. Nossa tarefa é, como dito anteriormente, pensar a relaco entre o senti Inento moral de obrigatoriedade e a motivacdo ética de “expansao de si pré- prio”. A tese acima apresentacia, segundo a qual a compreenstio dos comporta- jnentos morais dos indivicuos passa pelo conhecimento da perspectiva ética que estes adotam, implica afirmar que a existéncia e a forga do sentimento de pbrigatoriedade moral estd, de uma forma ou de outra, na dependéncia dos ru- jos que toma a expanséo de si préprio. Dito de outra maneira, somente sente- 4e obrigado a seguir determinados deveres quem os concebe como expresséo {le valor do préprio eu, como traduco de sua auto-afirmacéo. Em suma, iden- filicamos na “expansdo de si proprio” e no valor decorrente atribuido ao eu a ‘Jonte energética das acdes significativas em geral, e das ages morais em parti- cular, Em poucas palavras, identificamos no plano ético as motivacdes que pxplicam as acées no plano moral. Se tal hipétese for correta, nao tera sido va i tarefa de dar definigdes diferenciadas para a ética e para a moral. ‘Vamos agora aprofundar a questao, lembrando jé um problema classic la moral: a referéncia a0 eu para explicar ages dedicadas a outrem. Com picito, se assumirmos que quem age moralmente faz porque interpreta tal {igo como coerente com uma busca de atribuicéo de valor a si préprio, nao pstaremos assim aceitando 0 fato de as acdes morais serem “interessadas”? ra, a moral nao é justamente o campo das acdes desinteressadas? do sacrifi- cio de si? da abnegacéo de si, até mesmo da prdpria vida? Nao ha diividas que 1: moral freqiientemente implica abandonar o proprios interesses, mas nem por isso ela é “desinteressada”. Devemos, portanto, comecar pensando um pouco mais sobre essa nogio de “interesse”, Como o disse Piaget, em seu curso da Sorbonne (1954), hé dois sentidos \\suais para a palavra “interesse”. Um primeiro tem como adjetivo associado 0 conceito de “interessante” e diz respeito a todas as motivacdes humanas. Afir- ‘mar que somente hé aco se houver algum interesse significa dizer que somen- [e hd agio se uma forca energética a desencadeia. Esse sentido da palavra “interesse” nao é em nada estranho & moral: o interesse pode ser o bem-estar alheio, por exemplo, O segundo sentido de “interesse” tem como adjetivo asso- cindo a palavra “interesseiro”, o que denota uma posigéo egofsta. Assim, 0 “interessado”, nesse segundo sentido, pode ajudar pessoas em vista de recom- contemplacla, para que um individuo experimente o: ‘estar subjetivo. im resumo, *sentimento de obrigatoriedade” e “expansio de si prdpti ‘\s 08 dois processos psicoldgicos apontados como centrais para a moral @ tlca, respectivamente. A articulacdo entre os planos moral e ético passa, p conseguinte, pela articulagao desses dois processos psicoldgicos. ‘Vamos entdo A busca dessa articulagio, comecando por lembrar que {questiio das possivels relacdes entre “deveres” e “Yelicidacle” geraram e gera) polémicas filosoficamente ndo-superadas até hoje. Pode-se pensar, por exe! plo, que nao hd, de maneira alguma, como derivar uma moral das variad DopgGes que podem ser associadas ao plano ético. Era essa a posigao de Kan para quem a felicidade era apenas um “titdlo geral” para as determinacd subjetivas, e que destas nunca seria possivel ceduzir deveres, nem. quanto seus conteiidos, nem quanto a seu cardtet de obrigatoriedade, Mas pode: também pensar que moral e ética tém elementos comuns, pois alguns deve! morais apresentam contetidos relacionados & felicidade, néo de quem os s gue, mas de outrem: nao ha ckividas, por exemplo, de que o destespeito fere pessoa desrespeitada, traz-lhe, portanto, mal-estar, e que o dever moral di Tespeitar a outrem parece ser inspirado pelo valor atribuido a um item di felicidade. &-verdade que nem todos os deveres apresentam essa possivel rel com a felicidade. Bons exemplos disso so aqueles da chamada moral s xual: ndo se vé, de fato, em que “casar virgem” ou “fazer amor apenas pai procriar” equivaleriam a um ganho de felicidade ~ trata-se de pura obediénci ‘a regras instituidas por certas instituigdes religiosas. Mas nao hd diividas di que para alguns deveres, a felicidade alheia, ou pelo menos a auséncia d infelicidade, estd em jogo. Pode-se entéo dizet, com Comte-Sponville (Comte: Sponville e Ferry, 1998), que a moral esté dentro da ética? Seu argumento que decidir “como viver" consiste também escolher que lugar alocar para 0} deveres. Paul Ricoeur (1990) vai no mesmo sentido: fala em primazia da étic sobre a moral, e refere-se ao fato de ser a reflexio ética aquela que nos permit sair de impasses morais (por exemplo, como decidir entre ficar ao lado da ma doente e ir & guerra defender seu pafs - as duas solugdes aparecem como, moralmente dignas e seria preciso ir além das normas para tomar a decisio), Mas alguém poder retrucar que projeto de felicidade somente merece set chamado de ético se condizente com a moral. E 0 que Kant chamava de mere~ cimento da felicidade, Nesse sentido, a moral seria exterior & ética e limitaria 0 leque de opgdes do que viria a ser uma “vida boa”. Tal limitacio seria essen- Imente referéncia a outrem: felicidade pessoal sim, mas com a condicéo de contemplar, de uma forma ou de outra, a felicidade alheia. Mas, como nao se vé claramente porque a felicidade pessoal implicaria a felicidade alheia ou dela dependeria, esse respeito pela qualidade da vida dos outros individuos, a moral, portanto, corresponderia 2 um imperativo cuja fonte seria estranha 20 plano ético. de bet sntimento peren Pensas variadas (dinheiro, boa reputagio, ete.), e, & claro, na ausénela de Petspectiva néio ajudaria ninguém. Do ponto de vista da moral, esse sent ‘gyoista de interesse costuma ser descartado, pois significa a negacho radi do altruismo.* Isto posto, devemos perguntar-nos a que sentido de “interesse” po eoresponder a busea da expansio de si préprio. Certamente ao primeiro, pol tle é sindnimo de motivacao. Todo o problema reside em sitwé-lo perante fegundo sentido, o de egofsmo. Ora, a expansio de si préprio néo impli postura egoista. E nem, alids, implica postura altruista. Tudo dependerd di yalotes associados a referida expansao. Porém, para melhor explicitar a tese gue a expansao de si préprio néo equivale a assumir uma postura egofst {nlvez seja revelador lembrar rapidamente.o debate em torno do chamad| “amor prdprio”, execrado por uns, considerado incontorndvel por outros, valorizado por alguns. I de Pascal (1670/1972) a famosa expresstio segundo a qual “o eu é odi ' também dele o jufzo de que a grandeza clo homem residiria em recon 1996) condena o amorpriprio por razdes parecidas com as de Pascal, mas yaloriza 0 "amor de si”, pois, por intermédio dele, amamos a humanidade que ‘ost em nds, amor esse sem o qual néo haveria moral possivel. Kant aproxima- he de Rousseau ao eleger o “aperfeicoar a si préprio” como um dos dois deveres Inaiores clo homem (ou outro ¢ cuidar da felicidade de outrem). Por que essa busca cle perfeiciio? Para que o homem se torne digno da humanidade que 0 habita, Portanto, um trabalho sobre o proprio ser é visto como condigéo neces- Vivia ao agir moral, Mals perto de nés, Schlich (2000) vé no cumprimento dos {everes morais um “desabrochar de si mesmo”, tese & qual adere Savater (2000) que chega a intitular um livro seu de “Etica como amor préprio”, Em resumo, (ses autores, e outros, no pensam 0 “amor de si”, ou a referéncia as qualida- les do eu, como pedra inevitével no caminho da moralidade, mas sim como condicao necesséria ao advento dessa tiltima, Coloco-me entre eles, Porém, cuidado! Nem eles nem eu consideramos o amor-préprio suficien- {o, por si sé, para garantir a moral, Rousseatto deixa claro ao diferenciar amor- prdprio de amor de si. O eu pode ser, de fato, odioso, moralmente falando, e a expansdo de si, para retomarmos o conceito aqui empregado, pode levar tanto h moral quanto ao seu contrério. Para compreendé-lo, devemos avancar na anélise psicolégica do que seja esse eu e sua relagdo com 0 querer. Comecemos por sublinhar que o sentimento de obrigatoriedade corresponde a um “querer”. Portanto, age moralmente quem assim o quer. Vale a pena nos demorarmos um pouco sobre essa afirmagio, pois néo raro “dever” e “querer” silo erroneamente pensados como opostos. Como, por exemplo, interpretar uma sentenca como a que segue: “et queria ir ao cinema, mas nio pude, porque eu devia cumprir minha promessa de lavar o carro de meu pai”? Tal frase exptessa a vontade frustrada de ir ao cinema, frustrago essa decorrente de um dever de cumprir uma promessa. Aparentemente, o dever contraria o querer, mas apatentemente apenas porque 0 sujeito da oraco poderia muito bem trait sua promessa, ndo querer cumpri- Ja, Ora, ele quis honrar sua palavra. Se o querer ir ao cinema tivesse sido contrariado por alguma forca externa & vontade do sujeito, o quadro seria diferente. Imaginemos que ele tenha sido impedido de ir assistir a um filme seja por estar sem dinheiro para a pagar a entrada, seja por ter ficado parado em um congestionamento: nesses casos, 0 ndo poder it ao cinema explica-se por alguma coaco que independe da vontade. Porém, se ele deixa de realizar seu programa desejvel porque ele mesmo se coage a cumprir 0 seu dever, no podemos atribuir a razdo de sua ado a outra coisa sendo ao sett querer, Nesse caso, trata-se de “quereres” conflitantes, mas se ele optou por cumprir a pro- messa, € porque esse querer foi mais forte que o querer ir ao cinema. E por essa razdo que Tugendhat (1998) e Spaemann (1999) insistem no fato de o dever ser sempre um querer, Se insistem sobre esse ponto, é porque o dever coloca a questo da restri- do da liberdade, enquanto o querer costuma ser a associado & néo-testrigao ive de si mesmo, e que, portanto, o amor prdprio que no for o amar a Deu Alentro de si, como expressava-se Santo Agostinho, é moralmente condenével também eausa de grandes tristezas, Em outros trechos de suas Pensées, ele vit peraa busca da gléria, que interpreta como irremedivel heteronomia. Recon! cose na avaliagao do filésofo francés uma certa interpretactio do que seja a Virtude da humildade: considerar a si préprio como ser fundamentalmente ins digno, marcado pelo pecado original, quer dizer, antes pecador do que santo, ‘antes objeto da ftiria do Senhor do que merecedor de sua cleméncia. Tais avalias Ges tém, sem chivida, 0 mérito de apontar os perigos éticos e morais do amor: proprio: @ hipertrofia do eu pode levar & vaidade, a superficalidade, a fatuidade, a0 egofsmo e demais vicios que traduzem nao um eu digno de amor, mas, pelo contrario, um eu desprovido de qualidades améveis. Porém, para além desses riscos de desvario narcfsico, pode-se contestar a tese pascaliana. Uma forma de fazé-o € reconhecer a presenca inevitével do amor préprio has ages humanas. Trata-se de uma tese psicolégica que os estdicos jé tinham concebido ao perceber que, em todo desejo de algo, ha sempre a “deleigao de si mesmo”, para empregar uma expressdo trazida por Ricoeur (1988). Se isso for verdade, no hd como eliminar 0 amor prdprio: deve-se, portanto, trabalha- lo para que no leve & imoralidade. No campo da psicologia, a aceitacio de inevitaveis investimentos narcisicos costuma ser aceita e a maioria dos psicdlo- jos certamente concorda com o poeta Paul Valéry (1941), quando este diz. que a vaidade € a mae mesquinha de grandes obras. Mas pode-se ir além do reconhecimento da presenga incontornével do ‘amor-préprio, e dar-lhe um valor moral e ético. Tal é evidentemente a posi¢o dle Nietzsche (1995), para quem o homem ¢ movido pela vontade de poréneia ‘¢ que essa, longe de ser um mal, € 0 principio criador da vida. Rousseau (1762/ oven ce Ld Toe i liberdade: ser livre ¢ fazer o que se quer. Dat a tentagio de se opor dever: queren Porém, ¢ novamente preciso atentar para uma possivel confusiio {dentificagio do lugar da liberdade, na moral. E, por um lado, totalmente ¢o1 eto afirmar que a moral restringe a liberdade de ago. Com efeito, se acelto mandamento “ntio matar”, deixo de ter a liberdade de tirar a vida de um WesHOu, Mesmo que eu seja momentaneamente acometido do desejo de faz [ose lexitimo a regra que diz ser um dever ajudar as pessoas necessitada libdico da liberdade de ir passear tranqiiilamente no bosque, se alguém preci ar de minha ajuda. E isso vale para todas as regras morais: ao dizerem 0 qu he deve fazer, clas limitam 0 campo das ages possiveis, portanto, limitam liberdade. Porém, como jé vimos, somente age moralmente quem se sente int! Imamente obrigado a tal, € néo quem & nage par alguh goceraaencr Lill 0 sujeito moral é, por definigao, livre, porque € ele mesmo quem decide agi por dever. Dito de outra forma, somente é moral quem assim 0 quer. Al ‘assim niio o fosse, a noc&o de responsabilidade nao teria sentido. Alguém po: er dizer aqui que somos totalmente determinados por forcas inconscientes @ que, portanto, nossos supostos “quereres” nao passam de expressées de dese- jos que nos guiam a revelia nossa. Talvez, mas se aceitamos essa hipotese (ou faquela, na pritica semelhante, que consiste em nos conceber como méquinas neuronais, cujos mecanismos fisico-quimicos nos determinam por inteiro), de: vemos ter a coragem de dizer que a responsabilidade moral nao existe, como, lids, nenhuma outra forma de responsabilidade. Os seres humanos € 0s ani- mais assim se equivaleriam. Todavia, como essa hipétese radical néo somente niio é convincente ¢ como, sobretudo, implica redesenhar totalmente nosso luniverso moral, ético e politico, podemos deixé-la de lado e afirmar que 0 sentimento de obrigatoriedade corresponde a um querer conscientemente con- cebido e livre. A oposigao entre querer e dever nao se sustenta, portanto. E ‘alguém que diga que “sempre gosta de fazer 0 que Ihe apraz”, para retomar um ‘exemplo dado por Spaemann, est, na verdade, disfargando um trufsmo com lum pobre apelo estereotipado de liberdade. Salvo em caso de coagéo externa, tudo mundo faz o que lhe apraz, O mistério est em se saber porque algumas pessoas querem agir moralmente, e outras nao. Nao se trata de querer versus ever, mas sim de “quereres” diferentes, uns morais, outros néo. E é justamen- te para procurar compreendermos porque alguns “querem 0 dever” que a refe- réneia ao eu ¢ indispensével. ‘ ‘O eu: eis outra nocdo objeto de definigdes e abordagens diversas. & preci- 80, portanto, deixar claro como o eu seré aqui concebido: concebé-lo-emos por intermédio dos conceitos de “representagies de si” ¢ de “valor”. Ja € cldssica, em psicologia, a afirmacao de James segundo a qual o ser humano, gracas & sua capacidade de tomada dle consciéncia de si mesmo, é capaz de cindir-se em um “eu” e um “me”, portanto, é, ao mesmo tempo, su} to e objeto: eu me vejo, eu penso em mim, eu me jugo, etc, Mas o que & esse "me” por intermédio do qual o “eu” se concebe? #0 que, com Perron (1991), chama- nos de representarées de si. Trés séo suas caracteristicas fundamentals. oar ace cama ‘A primeira: as representagoes de si, como seu nome indica, pertencem & ordem simbdtica, Nao poderia ser diferente, uma vez que a cisio *eu/me” im, plica apreencer a si proprio por meio de substitutos do objeto apreendido. E por essa raziio que as representagoes de si existem somente quando a crianga, por volta dos 2 anos, é capaz de pensar o mundo, e a si mesma, por meio de Imagens, nogdes, conceitos. ‘A segunda: as representagdes de si pressupéem uma assimilagao cognitiva © eu € objeto de conhecimento e, enquanto tal, € concebido por intermédio das estruturas cognitivas do sujeito. Note-se que, sendo fruto de assimilacbes, cognitivas, as representacdes de si equivalem a interpretagdes sobre si, inter- pretagdes essas decorrentes tanto das caracteristicas das estruturas de assimi- ago quanto de aspectos afetivos. Note-se também que elas so plurais: nao fazemos apenas uma representacéo de nés, mas varias, que podem até ser contraditérias entre si. Por essa razio, nao emprego a expresso “autoconceito” que sugere uma unicidade que, na verdade, nao existe. Note-se finalmente que, sendo miiltiplas, as representagdes de si formam uma espécie de siste- ma: relacionam-se entre si, notadamente de forma hierdrquica. A hierarquia, assim como os modos de interpretagao, sto influenciadas pela dimensio afetiva. ‘A terceira ¢ tiltima caracteristica fundamental das representagées de si—e que nos interessa diretamente ~ é a de que elas sGo valor. Reencontramos neste ponto a dimensao afetiva. J4 empreguei algumas vezes aqui o conceito de valor, mas sem explicitar sta definicéo. & hora de fazé-lo. Como se sabe, 0 referido conceito empregado em varias Areas, cientificas e flloséficas, 0 que resulta em uma polissemia. A definicéo que proponho é de cunho psicolégico. Com Piaget (1954), defino valor como investimento afetivo. Portanto, assim como a relagao de um sujeito com um objeto é mediada por estruturas de imilagio que conferem sentido ao objeto, tal relaco também é mediada por afetos, que lhe conferem valor, positivo ou negativo. Ora, tal ndo poderia ser diferente com esse objeto singular que ¢ 0 prdprio eu, Nesse sentido, as repre- sentacao de si so, sempre, valor. Podemos, agora, relacionar “querer” e “ser”. Como bem o destaca Savater (2000), 0 homem somente poderd querer alguma coisa de acordo com 0 que ele seja. Com efeito, é um eu que quet. E sendo uma das motivacdes fundamen- tais desse eu a “expansio de si proprio”, em cada querer se encontra, em grau maior ou menor, essa busca de auto-afirmagio, busca, portanto, de representa- Ges de si de valor positivo. Se isso vale para o “querer” em geral, a fortiori valeré para esse querer particular que é 0 “dever”. Talvez entenda-se melhor agora porque Schlich, citado acima, vé no cumprimento dos deveres morais, um “desabrochar de si mesmo”. f certo que outros sentimentos, como amor e ‘compaixao, podem comparecer para motivar a ago moral; porém, se correta a tese da expansio de si mesmo como motivagio central do ser humano, esses ‘outros sentimentos podem compor com ela, nao substitu(-la. Além do mais, nem todas as agées morais implicam amor ou compaixcio, e se formos procurar préximos capitulos, debrugar-me sobre as dimensdes intelectuais e afetivas esta, Mas antes devo retomar um tema anteriormente anunciado como chave para compreender-se os freqiientes “eclipses” que o sentimento de obrigato- Hiedade parece softer: o confiito. Quando analisamos 0 plano moral e o sentimento de obrigatoriedade, perguntamo-nos sobre a freqiiéncia, em cada individuo, dese sentimento. hhegamos & conelusao de que a maioria das pessoas experimenta o sentimento de obrigatoriedadle, mas que esse a vezes nfo & forte o bastante para diigir as ligGes e fazer com que os deveres morais sejam cumpridos. Ora, quem fala em forca, fala em energética. Como a abordagem tedrica aqui apresentada situa no plano ético a energética atuante no plano moral, é no plano ético que deve- nos buscar as causas do conflito ¢ de sua resolucio. Decorte de tudo que escrevi até agora que, se uma pessoa age contra uma moral que ela mesma racionalmente legitima & que o auto-respeito ndo foi forte 0 bastante para im- por-se sobre outros valores da auto-estima. Ilustremos essa idéia com um exemplo simples de que fui testemunha, Quando de um congresso, um colega meu foi “assediado” por uma congressi ta bonita e atraente, cujas intengSes amorosas eram bastante claras e publica- mente conhecidas. Hospedado a mais de 10 mil quilémetros de sua casa (ele nora. na Europa), meu colega, no indiferente aos charmes da moga, e tam- bém lisonjeado por ver-se publicamente cortejado, poderia, sem medo de ser flagrado pela esposa, “sucumbir”. Mas nao aconteceu. Ele mesmo verbalizou as razbes de sua fidelidade dizendo que se aceitasse as proposigdes da congres- sta, como poderia voltar para casa e olhar para sua mulher e suas filhas? Vé- se que ndo se trata de encarar mulher e filhas sabedoras da infidelidade (certa- mente nada saberiam por encontrarem-se téo longe e em contexto totalmente iferente). Trata-se de encarar a si prdprio, sentindo-se inferior por ter agido contra uma regra moral por ele legitimada. E como se ele dissesse: se minha familia soubesse o que et fiz, nao me respeitaria mais, como eu mesmo, no ne respeitaria, Bra 0 auto-respeito que estava em jogo. Os rumos da expansio de si préprio colocava a moral da ficelidade e do respeito por outrem em lugar privilegiado dentre os valores positivos associados &s representacdes de si. Se- gundo a expressao de Blasi (1989, 1995), tais valores eram centrais, ¢ outros, como, talvez, 0 de afitmar-se como “Dom Juan”, periférieos. Como se vé, a8 escolhas feitas para 0 plano ético so essenciais, e se o “ser” moral no for cexperimentado como elemento importante da “vida boa”, portanto da expan- sio de si, 0 “querer” agir de forma condizente com a moral, o “dever”, portan- to, € fraco e, em caso de conflito, pode perder para outros “quereres”, Para dar consisténcia empirica a essa tese, vale lembrar uma pesquisa realizada por Colby e Damon (1993) que mostrou que, para as pessoas de vida moral exem- plar, ser uma pessoa moral e ser elas mesmas é a mesma coisa. Para elas, e para as pessoas morais em geral, néo hé projeto de expansto de si préprio que nao seja ele mesmo moral (caso das pessoas que dedicam a vida & caridade ou & justica) ou condizente com a moral (nacla vale se no for dentro dos limites da q b + ‘ lm sentimento espeeifies ‘GAda uma delas, eflamos um quadro compésil di moralidade humana, © qule Hos priva cla possibilidade da inteligibilidad im suma, a energética do sentimento de obrigatariedade, essencial ao plano mi ral, deve ser procurada no plano ético, na busca de representagdes de si com val positive Para sintetizar essa idéia, dois outros conceitos séo claros e titeis: aut estima e auto-respeito. A auto-estima corresponde a todo e qualquer estadi Aubjetivo de valonzagao de si proprio. O auto-respeito corresponde apenas, fauto-estima experimentada quando a valorizacéo de si préprio incide sobi valores morais, Logo, 0 auto-respeito é um caso particular dle auto-estima, pol como o diz, Ricoeur (1990), 0 auto-respeito € a auto-estima quando regida pel moral. E claro que a fronteira a partir da qual a auto-estima vai tornar-se auto respeito depende dos contetidos associados ao plano moral. Na moral kantiani por exemplo, a qual reza que sempre devemos tratar a outrem e a nds mesmi como fins, e no como metos, de alguém que realize a expansio de si prépr por conceber-se como profissional competente, como atleta de alto nivel, com pessoa bela fisicamente, dir-se-4 que tem auto-estima, e no auto-respeito pelo fato de"os contetidos arrolados ndo terem relagio com a moral, Em com: pensacio, se 0 individuo associa as representagdes de si com valor positivo “ser justo”, deve-se falar em auto-respeito, pois a justica 6 uma virtude central na moral, segundo Kant. Mas, como hé diversidade de sistemas morais, pode variar consideravelmente o lugar por onde passa a fronteira a partir da qual a. auto-estima corresponde ao auito-respeito. Mais ainda: para certos individuos, pode ser aquilo que costuma ser julgado, por outrem, imoral, que Ihes confere: ‘auto-estima, Pensemos, por exemplo, em uma pessoa violenta. Pode acontecer que ela 0 seja por motives, para ela, morais (matar os fmpios, por exemplo), mas também pode acontecer que, para ela, atos violentos nada tenham de valor moral, mas que sejam a expressio de sua “expansao de si” (parece ser 0 caso, por exemplo, dos hooligans, que agridem torcedores de futebol e so autores de diversos atos de vandalismo: provavelmente ndo pensam que suas agressées sejam realizadas em nome de alguma moral, todavia certamente Ihes conferem auto-estima), ‘Como formula que resume o essencial do que analisamos até agora, pode- nos dizer que 0 auto-respeito € o sentimento que une os planos moral e ético, pois ele é, por um lado, expresso da expansdo de si préprio — portanto, elemento da “vida boa” -, e, por outro, causa essencial do sentimento de obrigatoriedade ~ portanto, motivasio para a asto moral. Fin poucas palavras: respeita a moral quem, ao fazé-lo, respeita a si préprio. Em termos puramente morais, nfo ha possibilidade de respeitar a outrem na sua dignidade sem, ao fazé-lo, experi- Inentar 0 sentimento da prépria dignidade. Porém, ao falar de dignidade, jé estou comprometendo-me com um determinado contetido para a moral. Logo veremos que, com efeito, a perspectiva tedrica aqui adotada, pelo fato de ela niio implicar o relativismo moral antropolégico, nos permite eleger uma moral ¢ uma étiea com cla condizente. Portanto, vou definir uma moral para, nos moral), Veremos no Capitulo 3 a Importincia, para elas, do sentimento Yergonha moral, Por enquanto, fiquemos com a idéia de que seus projel #ilcos ineluem outrem como fim em si mesmo, e nao como meio, Ora, pare uma perspectiva dle vida boa, para que contetidos que ocupam o plano ét moregam ser chamados de “éticos”, no sentido valorativo do termo, tal refer eli A Outrem é incontorndvel, e o auto-respeito, conseqiientemente, é condigl nocessria, 0 que devemos analisar agora para concluir nosso capitulo de eado as relagdes entre moral ¢ ética. JUSTICA, GENEROSIDADE E HONRA , com efeito, chegado o mamento de saitmos do plano formal e assum} ios contetidos para definir uma moral e uma ética. Todavia, imediatamen| impoe-se uma pergunta: a abordagem psicolégica aqui exposta associa-se relativism moral antropoldgico e & heteronomia, ou pode ser coerente com luniversalismo e a autonomia? Vimos que teorias que davam énfase & dimensio afetiva, como as di Durkheim ¢ Freud, assumiam uma perspectiva relativista. Ora, a teoria aq\ ‘apresentada também dé énfase & dimensio afetiva, pois os invariantes psicolé: {gleos identificadlos para os planos moral e ético sto, respectivamente, 0 senti Inento de obtigatotiedade e expansio de si préprio. Levaré entiio essa teorl 0 relativismo antropolégico e & implacdvel afirmacio de que os homens sao, de maneira irremediavel, moralmente heterSnomos? A reposta é clarament hegativa, ¢ isso por uma razao bastante simples: nao ha nada nela que negue poder construtivo da razdo, nada que contradiga, portanto, a tese de que desenvolvimento vai em direcao a uma moral universal, auténoma, basead: ha eqiiidade e na reciprocidade. Dito de outra forma, nossa abordagem afetiva nto implica limitar 08 poderes da razao. Lembremos que teorias como as de Piaget e as de Kohlberg séo universa- listas e pressupéem a autonomia possivel porque dao énfase & razfo, e conce« bem esta como construtora de sistemas morais, e que outras teorias, como as de Durkheim e as de Freud, negam esse poder & razSo por eleger fontes afetivas Incompativeis com ele. Isso fica claro em Durkheim: se a base afetiva da mo- ral 6 0 sentimento do sagrado dirigido ao “ser social”, que papel pode ter a taziio seno limitar-se a “tomar ciéncia” das regras morais ditadas? Nenhum. Isso fica claro também em Freud: se a base afetiva da moral situa-se no incons- ciente, que papel pode ter a raztio além da tomada de consciéncia de que, como dizia Pascal, “o coragio tem razBes que a prépria raz4o desconhece”? Nenhum. Vemos que nos dois casos, a escolha por uma teoria da energética presente na moral nega real poder & razo e, por conseguinte, anula a tese segundo a qual o desenvolvimento possui uma virtualidade universal, uma vez, que tal virtualidade estaria inscrita, segundo Piaget e Kohlberg, na prépria Inteligéncia humana, om «et Assumimos aqui em nada contraria as teses des- 405 dois Utimos autores sobre o universalismo moral, pois néo hé nada nela ue implique limitar 0§ poderes da razdo. Ela ¢ tao coerente com a observacao Bp que existem, de fato, um pluralidade de morais quanto com a afirmagio de jue essa pluralidade traduz, nao a moral por si sé, mas um estagio heterénomo la evolugio, Dito de maneira bem clara: a teoria aqui desenvolvida traduz um mnodo de pensar a motivacao moral que pode complementar as abordagens de Piaget ¢ de Kohlberg, E esse é, de fato, o meu intuito. Goncordo plenamente om as teses basicas desses dois autores: eles me convencem tanto por seus jirgumentos quanto pelos dados que coletaram, e que eu também tive a opor- unidade de coletar, Vejamos agora se as relagdes estabelecidas entre os planos Inoral e ético harmonizam-se com os conceitos de heteronomia ¢ autonomia, ( sujeito moralmente heterénomo é um sujeito moral, experimenta, por- lanto, 0 sentimento de obrigatoriedade. Os contetidos que elege para a sua moral so aqueles dominantes na sua comunidade, Ora, é bem provavel que as Tepresentagées de si, por intermédio das quais ele concebe a si préprio e procu- ta a expansao de si, sejam, elas mesmas, escolhidas entre os valores dominan- tes na referida comunidade. A heteronomia no plano moral equivale a aceitar 1 imposigo de regras e principios morais. Podemos falar em heteronomia no plano ético: ela equivaleria a conformar-se em expandit a si préprio por inter- mnédio de pautas culturais dadas de antemao e a assumir como representagoes, de si com valor positivo aquelas valorizadas pelo olhar alheio, pela cultura na qual vive. Dito de outra forma, as repostas para as perguntas “como devo agir?” ¢ “que vida viver?” seriam aquelas dominantes na sociedade em que vive. 0 heterénomo quer ser que seu entorno social quer que ele seja. Diferente é 0 quadro do sujeito moralmente autdnomo. Ele também é inspirado pelo sentimento de obrigatoriedade, mas elege a eqiiidade e a reci- procidade como prineipios de seus jufzos e agdes morais. Nesse sentido, ele concebe a moral nao como regras ¢ prinefpios que regem apenas e essencial- mente as relagdes entre membros de uma determinada sociedade, mas sim as relagdes entre todos os seres humanos, sejam ele pertencentes ou no a sua comunidade. Ademais, podemos dizer que provavelmente vé a si préprio como um representante da humanidade (e nao de determinado grupo social), cujas representagées de si estdo associadas a valores que transcendem aqueles de sua comunidade. No caso do sujeito moralmente auténomo, a expansao de si é procurada para além das fronteiras comunitdrias, para além das pautas cultu- rais dadas de antemao. Assim como a autonomia moral pressupde uma descentracéo cognitiva — tomar recuo em relagio as regras impostas ¢ avaliar seu valor -, ela certamente também implica uma descentracdo afetiva: procu- rar expandir a si préprio para além dos valores dominantes em determinado lugar e época, procurar o que hé de universal a diversas culturas, ver-se antes “humano” do que representante de uma cultura dada. E claro que o que acabo de escrever so meras hipéteses, mas elas fazem, penso, todo sentido e, sobretudo, mostram que a diferenciaco entre os planos ‘oral e dio © sun articulagto ee do eonceito de auto-respeita ‘Auperior “syjay vamos definir os contetidos a elas associados, inente coerente com o universalismo moral pensado como porvir neces do desenvolvimento do jufzo moral, im potieas palavras, pode se dizer qi unriamente ds abordagens de Durkheim e de Freud, a nossa permite es ‘conteticlos pata o estudo do desenvolvimento moral, pois é coerente 6) Jpotese de que a justica paulatinamente impde-se como um valor mot eee amos entao definir o que chamaremos doravante de ética ¢ moral, 6) Antes de mais nada, devemos insistir sobre o fato de que uma ética, pal nerecer esse nome, deve traduzir um projeto de felicidade no qual outrem ter Jigar, © que acabo de enfatizar implica que toda ética contém uma moral, po abe justamente & moral regrar a vida em sociedade. Pode haver deveres moral ue tem 0 proprio agente moral como objeto. A moral crista, por exempli tondlena o suieidio, nao porque a pessoa que pée fim & sua vida talvez. del yous dependentes desamparados material ¢ psicologicamente (ela pode estal totalmente isolada no mundo), mas porque ao homem é proibido dispor assit le sua prépria vida, pois ela pertence a Deus. Kant, autor de uma moral laict tuyjasinfluéncias sobre os Direitos Humanos ¢ incontestavel, tambéin conden 0 Stiic{dio, nfo com referéncia a Deus, mas porque matar-s¢ implica tratar a s/ proprio como meio, e no como fim em si, 0 que contradiz.o belo imperativ tuitegsrico (0 tinico de Kant comprometido com um contetido) segundo o quall tuda ser humano deve sempre tratar a humanidade, em outrem e em si prs prio, como um fim e nunca como meio (Kant, 1785/1994). A.condenagao moral to suicfdio é um bom exemplo de dever moral que tem como objeto 0 proprio ligente moral. Todavia, o fato de haver, em certos sistemas morais, referéncia a leveres para consigo proprio, ndo deve nos fazer esquecer que todo sistema oral contém deveres para com outrem, e que esse costuma ser o foco princi- pal (nao matar, nao ment, respeitar, ser solidirio, etc.). ‘Assim sendo, podemos assumir que toda perspectiva ética deve ser coe ronte com certos deveres morais. Dito de outra forma, a moral nao diz. o que & her feliz nem como sé-lo, mas sim quais so os deveres a serem necessariamen- te obedecidos para que a felicidade individual tenha legitimidade social. Aj perspectiva por mim adotada encontra expresso na afirmagio de Kant segun- fio a qual a moral néo nos diz. como sermos felizes, mas sim como merecermos fi felicidade. Nos termos psicoldgicos assumidos aqui, podemos tracuzir a con- tepedo Kantiana da seguinte forma: no hé auto-estims legitima se for contra- iitsria com 0 auto-respeito. Por conseguinte, no devemos escolher contetidos para a ética, pois 0 Jeque de opgGes para a expansio de si € amplo e cada um de nés tem legitima inente liberdade de escolher seu rumo. Porém, devemos definir contetidos para fh moral, pois é ela que confere as opgdes de “vida boa” sua legitimidade, isto é confere-lhes as condigées necessarias para que meregam o nome dle ética, Devemos, portanto, escollier que deveres sto esses, definir que moral nidielona a busca da felicidade, Tres sto as virtudes morais que escolho: a tiga, a generosidade ¢ a honrd, todas elas condicionadas pelo imperativo eyorico kantinno Jé citado: cada ser humano deve sempre tratar a humani- ide, em outrem ¢ em si proprio, como um fim e nunca como meio. A premissa louse imperativo é que existe uma dlignidade inerente a cada ser humano € que Jn deve ser estritamente respeitada. Sei que eada uma dessas tres virtudes mereceria um livro a parte, pois so complexes of variados temas que inspiram, mas limitar-me-et a definilas © a ‘explicar porque as escolho. Comecemos por essa virtude cardeal que é a justia, a mais racional de todas as virtudes, como o afirmava Piaget (1932). ‘Um primeiro principio que @ inspira é o de igualdade. Todos os seres hu- anos, sejam quais forem suas origens sociais, seu sexo, stias competéncias ‘cognitivas, sua nacionalidade, sua etnia, etc,, tém o mesmo valor intrinseco, e, Jogo, ndo devem usufruir de privilégios. Por exemplo, € injusto negar 0 direito de votat a analfabetos pois tal negaglo implica colocé-los como cidadios de feyunda ordem, Outro exemplo: € injusto privilegiar um aluno porque é filo {le'uma pessoa socialmente prestigiada. Um iiltimo exemplo: ¢ justo fazer com fue todas as pessoas tenham condigoes dignas de vida, e € injusto deixar, por- janto, algumas na miséria. ‘um segundo principio € de eqidade, que implica tornar iguais os dife- yentes. Os seres humanos apresentam diferencas entre si, ¢ elas devem ser Jevadas em conta para que, no final, a igualdade entre todos os seres humanos feja realizada, Por exemplo, & injusto cobrar impostos do mesmo montante a ficos e pobres e, logo, optat por uma forma de proporcionalidade nas contri- huigdes é uma forma de buscar reequilibrar as diferentes posigdes perante a ilistribuicdo da riqueza. Outro exemplo: ¢ injusto exigir de pessoas com algum surau de deficiéncia fisica que compitam em atividades esportivas com pessoas sem deficiéncias, e 6 justo reservar competigdes especialmente concebidas para fue elas possam usufruir do prazer de ser atletas e de mecdir suas forgas com ‘outrem (caso das maravilhosas para-olimpfadas). Um ultimo exemplo, ainda ha érea da deficiéncia fisica: ¢ justo colocar nas calcadas rampas, para que as pessoas em cadeiras de rodas possam transitar trangtilamente pelas ruas. Penso que esses dois prineipios so suficientes para definir a justica. A sscolha aqui feita pela justiga como virtude moral necesséria para toda ética hao deve apresentar maiores problemas. Praticamente todos os autores con- cordam em eleg@-la como a virtude maior, sem a qual a vida em sociedade é impossivel. Tal era o pensamento de Adam Smith segundo 0 qual uma socieda- de sem justiga acaba por desmoronar, enquanto uma sociedade sem benevo- léncia, embora promotora de condicées de vida infelizes, ainda pode susten- tar-se, Os dados da psicologia moral de Piaget e de Kohlberg também atestam {lugar central dessa virtude nos julzos humanos € isso desde a mais tenra {nffinela, Finalmente, ae. ‘a justiga é tema tanto moral quanto pol 6} fala-se em pessoas justas, mas também em instituigdes justas e em It Junidicas justas, Vale dizer que a justica diz respeito tanto & esfera prive quanto a esfera piiblica, traduzindo, para ambas, a busca do equilibrio relagdes interpessoais. Em uma palavra, sem justica néo ha sociedad possi hilo ha ética legitima. Acrescento outra virtude, a da generosidade, Hla consiste em dar a outr 6 que Ihe falta, sendo que essa falta néo correspondle a um direito. Nesse po to, cla se diferencia da justica, e, penso, a complementa. Com efeito, ser jus 6 dar a outrem o que é seu por direito (decorrente dos prineipios de iguaidat eqjlidade). Por exemplo, nao devo privilegiar aluno algum pois todos tém dircito de ser tratados de forma igual, porque nenhum tem o direito de us {ruir de privilégios. Note-se que a eqiiidade, que implica tratamentos diferet ciadlos, nao confere privilégios, pois a reparacao de desigualdades nao se co funde com criar “castas” de pessoas “mais iguais que as outras”, para retomi lum expresso eritica consagrada.*> Ora, tal nao é 0 caso da generosidade. Pel manecendo no exemplo cla relacdo professor/aluno, é justo 0 professor se na privilegia ninguém, mas é generoso se, depois da aula, dispde-se a ajudar aqueles que por ventura Ihe solicitam. Ter atlas depois do horario formal de aulas na corresponde a um direito do aluno; ministré-las, portanto, é fazer prova di generosidade, A generosidade é a virtude altruista por exceléncia. Neste pons lo, ela novamente se distingue da justica. A lei justa é boa para todos, inclusive para a pessoa que exerce a justica. O ato de generosidade favorece quem é por ele contemplado, nao quem age de forma generosa. I por ser a generosidade a inteira dedicagio a outrem que digo que ela traduz plenamente o altruismo, Na psicologia moral, ela é menos estudada que a justi¢a, mas os poucos estu- dos dedicados a ela também mostraram tragos precoces de sua importancia no universo moral das crianeas (ver Eisenberg e Miller, 1987; Hoffman, 1978; La ‘Taille, 2002b). Sabe-se também a importincia que Carol Gilligan atribui ao que chama “ética do cuidado”, que, segundo ela, complementa a “ética da Jjustica”. Penso que ela nao tem razao ao equiparar justia e generosidade, pois ‘a primeira 6 como vimos, mais importante socialmente que a segunda, Mas ela tem toda a razio em sublinhar tanto sua importéncia moral quanto sua relevéncia para os seres humanos. ‘A terceira e tltima virtude que elejo 6 a honra. O que me faz escolhé-la néo é como para o caso da justica e da generosidade, uma consideragéo axiolégica, mas sim uma decorréncia da abordagem psicoldgica que estou sub- metendo ao leitor: o auto-respeito é, na verdade, a prépria honra, ou melhor dizendo, corresponde a um sentido fundamental da honra: 0 valor moral que a pessoa tem aos préprios olhos e a exigéncia que faz a outrem para que esse valor seja reconhecido e respeitado. Descartemos, portanto, os outros sentidos possiveis da honra. Nao estou falando em “honrarias”, formas de distingio que se fazem a determinadas pes- 1s, No estou. fen em ete ‘eomo na antiga honra cavalheiresca, sm nome da qual desafiavase EM duclo o autor de alguma consideragio ultuo#a, Nao estou falando na honra da moral sexual, que se traduz pela rilidacle para homens e pelo pudor para as mulheres. Finalmente, nao estou Jando nas agdes que se fazem “em nome da honra”, mas esquecendo-se de slizéelas “com honra”: por exemplo, ferir alguém que proferiu um insulto {ncéio em nome da honra), mas sem Ihe dar a chance de se defender (portanto, sugio “sem honra’”, j4 que covarde), Para maiores andlises dos variados sentidos que pode assumir a honra, remeto 0 leitor a meu livro sobre as relagoes entre }) sentimento de vergonha e a moralidade (La Taille, 2002). Basta aqui deixar flaro que estou falando na chamada “honra-interior” (ver Pitt-Rivers, 1965 € Hlourdieu, 1965), ou seja, aquela por intermédio da qual o individuo age em home de um ideal moral do qual se considera representante (e n&o em nome ja reputacdo, ou “honra-exterior”). & dessa honra-interior, ou honra-virtude que se fala quando falamos ce uma pessoa que ela é “honrada’, e, pela nega- (iio, que dizemos de uma pessoa que cometa infragdes morais que ela “niio tem jionra’. Ora, esse sentimento do préprio valor moral ¢ 0 que chamamos de uto-respeito. Vé-se assim que a abordagem teérica aqui assumida, ao subli- har a importéncia do auto-respeito nas aces morais, reencontra o tema elds- sico da honra. F verdade que o termo “honra” tem caido em desuso, que é uma “estrela cadente”, como diz Harkot-de-La-Taille (1999). Em compensacio, fala-se mul: lo em “dignidade”. Porém, o conceito de dignidade pode ser empregado como perfeito sinénimo de honra. Com efeito, qual seria a diferenga de sentido entre sentengas como “ele agiu de forma honrada” e “ele agiu com dignidade”? Ne- hnhuma, pois ambas remetem ao valor moral da aco. O leitor poderé pergun- lar por que prefiro empregar 0 termo “honra”, que se presta a mal-entendidos, ¢ nao aquele de “dignidade”, mais corrente, nos dias de hoje. Escolho falar em honra por uma razSo bdsica: @ honra de uma pessoa depende de suas agoes, a dignidade, nao necessariamente. Por exemplo, quando se diz que toda e qual- quer pessoa, mesmo o criminoso mais cruel, deve ser tratada de forma digna — com 0 que concordo totalmente, pois decorréncia direta do imperativo kantiano ‘assumido acima -, se est4 falando de um direito que todo ser humano tem @ priori. Porém, dificilmente se podera dizer que tum criminoso covarde deu mostras de que agiu segundo a honra-virtude. Outro exemplo: quando se diz que todas as pessoas tém 0 direito a “condigées dignas de vida”, referindo-se em geral a condig&es materiais (comida saudével e em boa quantidade, mora- dia minimamente confortdvel, salubre, ete.), 0 que estd em jogo, novamente, & uum diteito bésico, nao as qualidades morais das ages das pessoas concernidas. It por essa razéio que o termo dignidade associa-se perfeitamente ao imperativo egorico kantiano que serve de premissa basica aos contetidos morais que colhemos. A honra restringe-se & qualidade das ages humanas, portanto a seu mérito moral, -_ Tim suma, temos com o auto-respelto lin sentimento que une os pli oral ¢ ético, ¢ com a honra um valor que tanto inspira a moral quanto a dui Dito de outra forma, uma vida feliz, para merecer o qualificativo de ét {mplica experimentar o auto-respeito, logo, agir com honra. ‘Acabo a exposigao dos contetidos morais eleitos com a definigao que Ricoeur ds ao que chama de perspectiva ética: “a vida boa, com e para out un instituigdes justas” (Ricoeur, 1990, p.202). Estao, nessa bela definicio, co ompladas as dimensées da felicidade (vida baa), da generosidacle (para {rem), dla reciprocidade e cooperagao (com outrem) e da justica, notadamer| pensaca no nivel politico (instituigdes justas). Penso que somente uma pes Cupaz de sensibilizar-se pelo auto-tespeito, portanto intimamente disposta colocar o valor honra entre aqueles que dao.sentido & sua vida, pode, de fat realizar tal perspectiva ética. CONCLUSOES Resumamos 08 conceitos centrais da abordagem teérica aqui proposti para dar o quadro geral no qual iremos falar, daqui para frente, das dimensoe inteleccuais e afetivas da moralidade. 1. Fizemos uma distingdo entre moral e ética, definindo, no aspect formal, o plano moral como sendo aquele dos deveres, eo plan ético, como aquele da definicao e da busea da “vida boa”. 2. Identificamos, no plano psicoldgico, o sentimento de obrigatoriedad como invariante do plano moral, e a busca de expansio de si propri como invariante no plano ético. 3. Lembrando que o “dever” equivale a um “querer”, e que o “querer” depende do “ser”, definido como conjunto de representacdes de si, colocamos a energética que preside as agdes morais no plano ético: a’ busca e/ou manutencao de representagdes ce si com valor positivo. 4. Chamamos de auto-estima toda e qualquer experiéncia de represen- tagées de si com valor positivo, e de auto-respeito aquela que con- templa valores morais. 5. Do ponto de vista dos contetidos, escolhemos a justica (igualdade e eqiiidade), a generosidade (dar a outrem 0 que Ihe faz falta) e a honra (tradugo moral do auito-respeito) 6. O sentimento que opera a jungio entre a moral e a ética é 0 auto- respeito. 7. O valor que opera a junco entre moral e ética é @ honra. Podemos, agora, analisar as dimensdes intelectuais e afetivas da moral e da ética. Mas como moral tica relacionam-se intimamente, cabe-nos escolher ‘apenas uma das duas como fio condutor. Minha escolha recai sobre a moral, -— NoTAS 1. Creio ser ttl marcar a diferenca entre pulsGes ¢ sentimentos, ambos referentes & dimensio afetiva, logo, a energética (ou motivacio, se quiserem) das acdes. As pulses sko forcas inconscientes, enquanto os sentimentos so sua representagio nna conseiéncia, como, por exemplo, 0 amor, a vergonha, a inveja, a culpa, ete, O fato de os sentimentos serem representados pela consciéneia, portanto identifica- ddos e nomeados pela inteligEncia, implica que sio fruto de elaboragbes psiquicas {gue os torna passivels de uit uabelho psicolégico capaz de modifies-loe, atenut- los, sofisticd-los. Houvesse somente pulsces, os individuos se assemelhariam a ani ‘mais, apenas motivados por instintes que se imp6em incondicionalmente, Aprove to para notar que, em varios cursos de psicologia do desenvolvimento, ensinam-se fa teoria de Piaget para a evoluicéo intelectual do ser humano, e a psicanslise para a Gimensdo afetiva. Porém, é legltimo perguntar-se se a psicandlise realmente di conta de toda a dimensdio afetiva, ou se ela é essencialmente um estudo das pulses, as determinagdes inconscientes, e nao dos sentiments. 2. Na Franga, 0 nome de Jules Ferry, ministro da Educacio de 1879 a 1883, est associado a uma reforma educacional de monta: a gratuidade, a obrigatoriedade & a laicidade do antigo ensino primario, O tema da laicidade, ou seja, o de um ensino piiblico totalmente desvinculado da religiéo, causou polémicas na época hhotadamente em razlo de questies morais. Como seria posstvel formar pessoas respeitosas das normas morais sem cuidar de sua formacao religiosa? Tis o que varios se perguntavam, temendo 0 pior se a referéncia a Deus fosse banida da ‘escola. O trabalho de Durkheim sobre educagao moral teve justamente 0 objetivo ‘de mostrar que tal educacio é possivel. Interessante notar que, no Brasil, alaicidade, ‘embora legal, ndo parece representar um real valor entre os educadores. Relata~ rameme varies vezes que professores de escolas piiblicas comecam seu dia de aula colocande na lousa frases biblicas, na intengio de dar uma ligao de moral a seus alunos, sem que isso choque os demais membros da comunidacle, Na Franga com temporinea, atitdes semelhantes causariam polémica, haja vista a atual celeuma a respeito da recente proibicio do uso de simbolos religiosos ostensivos nas escolas publieas. Minha experincia pessoal de contatos com educadores mostra que no raramente as pessoas se perguntam se uma formagio de valores ¢ realmente posst- ‘vel sem apelo a religido, ou, de forma mais branda, se o ensino religtoso nfo ajuda tia na educagio moral. Limito-me aqui a dizer que concordo com Durkheim quan- do afirma que & perfeitamente possivel uma educagio moral sem referéncia « Deus {embora nao concorde com as opgbes tedricas e pedagdgicas do eminente socidlo- go). Qualquer um pode verifiear que hé ateus com comportamentos morais, inzeprochdveis (e otitr0s nilo) € que ha pessoas religiosas com comportamentos Suspeitos (e outras nao). Logo, a questo religiosa no & decisiva para explicar ‘comportamentos morais. 43, Na verdade, os conceitos de superego ¢ ideal do ego remetem a fungdes diferentes. primeiro refere-se « normas de conduta, o segundo a ideais, a valores. Embora 0 proprio Freud no aprofunde essa distingfo de fungdes, pade-se inferir que perce ‘ia que o tema moral ndo se limita a obedincia a regras (Iungio do superego), mas gue também implica escolhas do que sea o Bem (fungBo do ideal de exo). 14, Eimportante destacar o fato de Kohlberg ter vivido as terriveis experiéncias da ‘Segunda Guerra Mundial, Os acontecimentos dessa época, que, para muitos, joga- ram uma pé de cal sobre a erenga no possivel aperfeigoamento moral dos homens, estimularam Kohlberg a aprofundar os estudos de psicologia moral, tanto para 6. |. “Aproveito para c iImente ales le intelectinl, jauropain clo aj mostrar que a autonomia 6 pol Yel, He certamente nfo se dedi sim por engajamento ético. Lem Judeus a fugir & perseguigéo nazi, nenar 0 fato de que, Ii ses racionais ¢afetivas tem sido mvuitas Vézes feta de forma superficial, pois {vita A afltmagto de que estados afetivos interferem nas competéncias racion entre elas o juizo moral Com efeto, se nos Timitamos a observar que, em mom for em que oso le bent com a vida, ertae perenas mostram mals disponibil dle para agit de forma moral do que etn momentos no quais experimentam a tipo de sofrimento psfquleo, mostram-se mais generosas quando alegres do iio contribuimos muito para desvendar os segrecos da articula rividade na vida moral. Por um lado, trata-se de uma observa {que pode valer para praticamente todas as dkvidades humanas e, por outro, de thos ter consci¢heia de que exoegbes exibtem e que elas até so mais interessan| dio ponto de vistn psicolégico: por que seré que, para alguns, a dor psiquica ngtstia ngacam o poder ctiatvo, a forg intelectual e a disposigdo moral, ou si plesmente nela nit interferem? fim suma, parece-me que néo adianta falar nu Suposta“inteligéncia emocional”~ salvo se queiralimitarse a dar nome pompok para a vavabilidade contextual de diversas compecéncias, entre elas as moras, te de langar de fet, alguma ive sobre as articulagées perenes entre 0 juizo € vontade de agir segundo seus ditames. lliot Turiel vai até mais longe que Piaget e Kohlberg: afirma que mesmo criat pequenas mostram-se capazes de diferenclar normas morais (ainentes justia to bemestar das pessoas) das normas convencionais (hibitos religiosos, por exem plo). As pesquisas que realizou em varias eulturas mostram, segundo ele, que ess Sovistcagio precoce do juizo moral é universal. Pessoalmence, também penso qui ascriangas menores so mas sofisticadas moralmente do que pensavam Durkhelmn Proud, Plagete Kohlberg, mas nfo reduzo a andise& iia perspectiva da justica do bem-esta. Explico-me sobre esse ponto no Capitulo 8. 0s Pardmetros Curriculares Nacionais (PCNS) apresentam um documento (um do chamados “temas transversais")intitulado “Erica. Seu contedido pode associar-se uma defini de étca, pois traduz uma posiglo pedagégica que preza o desenval ‘onto da autonomia moral. Porém, poderia muito bem se chamar de Educagio Moral, ore € disso que se trata (a questo dos deveres ¢ central). A escolha do, titulo “Erica” deveu-se estencialmente ao perigo politico que havia em “requentar? 0s termos de uma proposta anterior bem conhecida de todos. Enquanto consultot da elaboragio dos PCNS, cheguei a propor que o documento tivesse no titulo @ referéncia & moral, mas fai voto veneido Ads, nfo insist) muito, consciente de que as palavras infelizmentetém peso considerdvele exagerado na vida politica (vide 0 atual “politicamente correto”). Dupréel (1965) reserva o nome de eudemonismo apenas as teorias que pressu- poem um homem naturalmente consciente do que seja a felicidade, e 0 nome de "lealisas” aquelas que definem, elas mesmas, o que é a felicidade (uma espécie de {deal intelecttalmente concebido). tuimologicamente, a deontologia & a “léncia do dever, e, como o escreve Berten ‘no Diciondrio de ética e filosofia moral (2004), o adjetivo deontolégico tem sido Atrbuldo & flosofla moral que considera os deveres como bons em si mesmos. NNote-se que o termo “deontologia” também ¢ empregado em referencia aos deve- res que regem uma profisséo, 10, Max Weber (1912/1063) u >. Vercors (1942) Le silence de la mer. Pari 14. 15. 16. 17. ipo do debate cunlando as expressbes “ética da ‘conviegto” e *étiea da responsabilidacle”. A primeira adotaria a perspectiva de de- veres absolutos e a segunda julgaria 0 valor das decisées em fungao das conseqiién- clas provivels destas. Weber afirma que o trabalho dos politicos deve ser inspirado pela ética da responsabilidade, portanto pelo calculo dos beneficios e perdas decor- ies das decisbes tomaclas. Dahrendorf (1997), também na drea politica, ponde- ra que, em certas circunsténeias, a ética da convicedo € necesséria: ele di 0 exem- plo da Jalta de convieséo moral que acometeu dirigentes da mundo inteiro no seu trato com Hitler, e que levou & situacgo irreversivel de guerra mundial. O governo amerieano de G. W. Bush também falou em conviegdes morais para justficar a guerra do Lraque, e Condoleezza Rice, chefe do Departamento de Estado dos Fsta- {dos Unidos (2005), afirma que a indecisto de alguns paises europeus (como a Branca), a respeito de o que fazer para derrotar o terrotisino, assemelha-se Aquela que levou o mundo a catistrofe da guerra de 1939 a 1945. Como se vé, o debate entre abordagens deontolégicas e teleoldgicas também adentra o contexto politico. Timbora eu no seja jurista, ouso fazer o seguinte comentério; tenho a impressio de que, nos dias de hoje, tende-se a colocar sob forma de lei jurfdica normas que, antes, restringiam-se ao Ambito moral. Penso, por exemplo, nos chamados “danos ‘morais", em nome dos quais um numero cada vez maior de pessons mobiliza 0 poder jicdiidrio para obter reparacées, A pessoa sente-se atingida por alguma refle- ‘xio alheia e aciona a justica para que 0 dano seja reparado ~ e o mais interessante: quase sempre em forma de pagamento. Antigamente, tais situagées eram resolvi- das entre os envolvidos. ditions de Minuit. s antincios publicitérios procuram cada vez mais associar a posse do produto objeto de propaganda ¢ o aleance de uma vida feliz. Tal materialismo tipico da sociedad de consumo na qual vivemos é, naturalmente, um engodo do ponto de vista psicol6gico. (© conforto material, que deveria apenas liberar os homens de tarefas pencsas para {que possam melhor dedicar-se & busca de uma vida signficativa, acaba confundindo- se com ela: o meio torna-se fim em si mesmo. Ora, basta olharmos em nosso entorno para verificar 0 quanto as incessantes idas a shoppings parecem mais tomar as pesso- ‘as dvidas por comprar do que contentes com a que possuem. ‘A corrente ética que respande pelo nome de estoicismo, ao identiicar felicidade & vvirtude, e derivando essa iltima da pura vontade, afitma a possibilidade de ser feliz ‘mesmo na dot, ndo por poder deixar de sentir a dor, mas pelo fato de a viruude ser superior a ela, Trata-se, como o escreve Maritain (ver Dupréel, 1967), de uma pproposta de “atletismo espiritual”, da alirmagio orgulhiosa do poder praticamente sobre-humano da raziio. [Em seu pequeno livro sobre a “conguista da felicidade”, Bertrand Russell (1962) fala em causas da ingelicidade e em outras para a felicidade, sendo ambos os con juntos de causas claramente identificados com interpretagdes subjetivas. Por que ‘somos infelizes? Porque sentimos inveja, porque confundimos competicio com ex. celéneia, porque tememos a opinito piibica, ec., portanto, porque interpretamos crradamente aspectos essenciais da vida. E como fazer para ser feliz? Também realinhando nossas interpretagbes e sentimentos:cultivando nossos interesses, desabro- chando nossa afeigfo por outrem, procurando a perfeigo em nossas atividades, ete ‘A aposentadoria compulséria certamente nao foi inventada para obrigar as pessoas ‘a serem felizest Remeto o leitor As interessantes anslises cle Michel Foucault (1999) a respeito dos ‘processos histéricos que, no final do século XIX, colocaram a sexualidade (via

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