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Ree desafio € a mudanga de foco em questao: “O objetivo da tradugio nao é mais o sentido, mas bem mais que o sentido, e que o inclui: o modo de significar” (idem, p. 43). — A presente publicag parceria com os xamias cantadores ¢ professores marubo,!4 com os quais venho trabalhando ao longo dos tiltimos oito anos. Nesse perio- Ao € resultado de uma pesquisa realizada em do, estivemos engajados, como dizem eles, em “ligar pensamento”, ou seja, em es abelecer uma relagio marcada pelo prazer do conhecimen- toe da amizade. As tradugdes derivam do encontro entre dois regimes posticos ¢ intelectuais: 0 da narragio verbal € 0 da escrita, o das per- formances rituais ¢ 0 do livro, Trata-se do cruzamento entre modos de pensar cujo resultado é uma tradugdo criativa, que parte de um regis- tro original de significagio (o dos cantadores marubo), € atinge um registro outro, mediado pela escrita e pela reinvengao poética de can- tos no papel. Procurei ir ao encontro da elaboragao da palavra, ja que certa concepcao de poética — vana mekika, “palavra arranjada”, chi- na _vana, “palavra pensada” — é algo absolutamente central para 0 pensamento marubo e suas artes verbais. Para que sejam eficazes, as palavras sao rigorosamente empregadas (e apreciadas) de uma manei- ra considerada como bela, boa ou correta (roaka), distinta, portanto, da fala cotidiana (vey6 vana). Em outros termos, a eficdcia das artes verbais (tanto no que se refere 4 cura, quanto 4 narracao e ao aprendi- zado ow & feiticaria, entre outros empregos) depende visceralmente da elaboracao da palavra e da miisica, sem a qual seria impossivel estabe- lecer qualquer relacao de conhecimento e de interagéo com o mundo. Algo que nao escapou ao entendimento de um xama yaminawa (povo falante de pano, assim como os Marubo), que ofereceu a seguinte re- 14.0 termo “xama” (e “xamanismo”) deriva de saman, que originalmente desig- nava os especialistas rituais dos povos siberianos falantes de linguas tungusianas, ¢ aos poucos foi consagrado como categoria genérica para uma certa lornia de cosmologia ¢ pratica ritual, Ele pode ser considerado como equivalente de “paje” (¢ “pajelanga”), origem tupi, que passou a designar os especialistas rituais dos povos indigenas das terras baixas sul-americanas (esta antologia faz uso dos dois termos, portanto). Para uma reflexao geral sobre a diferenca entre xamis, xamanismos, sacerdotes e sistemas religiosos, tao frequentemente confundidos pelo senso comum, consultar Viveiros de astro (2602: 457 ss,). Como se verd adiante, ha entre os Marubo dois tipos de xamas, {que so também os cantadores de seus géneros orais. a ys oY Apresentacio 15 linguagem de seus cantos de cura lo bre a lingua dlogo so! i antropol flexdo a um koshuiti): kos! koshuiti eu quero ver — cantando, ey os ; puagem torci som cuidado — a linguags da me as coisas © jo em demasia — com palavras comuns mas ts coisas — com palavras torcidas ey aria na meee. nae delas — posso vé-las com clareza. “Com os meus examino traz para perto, eu me esborrach: caminho ao redor grande pate dos desafos do presente ivto, que consi ny a crig&o, interpretacdo e tradugao © que ha de indireto, esforgo ae sive eeepecializado nas artes verbais marubo, Algo que, sence ae proprio estudo da lingua, s6 podia ser levado a cab com a presenga de um xamé (em geral © autor da versao Sravada) e algum falante bilingue que fosse necessariamente versado Nos conheci- mentos rituais. Nas paginas seguintes, as narrativas serao acompanha- das de esclarecimentos e reflexdes etnograficas, tendo em vista uma compreensao mais aprofundada da maneira pela qual a metafisica ma- tubo se inscreve nos textos. A confluéncia de um trabalh de traducio, Em outros te Presente antologia se situa, Portanto, na ‘0 etnografico aprofundado com o trabalho tmos, a traducao literdria dos Cantos se en- . Q cados em livro, por um J S ‘a como a “dia que «é : uma expressio poétic. thor £ Poesia, € literatura, Poética. Paul Zum tores) reconhece; © bri = se, Singing, | . — wis With Ut Noy 5 carefully examine things sle 7 (1993: 460) mst 7 Siecle rout pe with normal words I would cat © pata em — I ¢, clearly.” To¥™ i Portugués ¢ ‘an see them clearly. €minha, grupo social” (1983: 38-9 — tradugdo minha). Os saiti nao so 0 tni- co género verbal conhecido pelos Marubo e também se articulam a uma série de outras formas de discursos mantidos ao longo de geragées, cujos processos de transmissao tém sofrido alteragGes nos tempos re- centes. Até o momento em que se daa intervengio do trabalho de do- ranscricao, tradugao e publicagao, eles nao sao ainda, tal como no caso do rio Negro, objetificados como uma producio literdria que circula no formato “livro”. Ainda assim, os saiti (e outros exem- plos das artes verbais) sao perfeitamente compreendidos como mani- festagdes de uma esfera mais vasta, que serve de matriz e pretexto para Tellexdio: noké shenirast vana, “as falas de nossos antepassados” (em um sentido amplo de “fala”, que engloba suas expressdes cantadas e narradas, mas que também querem dizer saber e ensinamento), noké tandti, “o nosso jeito”, noké china vana, “a nossa fala prensa Tais categorias, alids, comecam agora a ser traduzidas por “a nossa cultu- qa”, indicando um processo, comum entre outros povos indigenas, de ‘Tessignificagao de categorias de pensamento provenientes da matriz ocidental.'6 O Popol Vuh surge aqui como um contraponto interessante ao nosso caso. Ao verter as narrativas maia-quiché para o portugués, Me- deiros e Brotherston se apoiavam na versdo de Munro Edmondson, que apresentava a transcri¢do do original com sua prépria estruturagao de versos. Mas, ao contrario dos referidos documentos tupi e da presente antologia, o Popol Vuh foi escrito pelos préprios Maia-Quiché em sua lingua. Seu mais antigo manuscrito, relatam os tradutores, “é uma c6- pia, feita em Rabinal, Guatemala, do original maia-quiché do século XVI, que utiliza a escrita alfabética introduzida pelos conquistadores” (2007: 12). Isso em um conjunto cultural no qual a comunicagio escri- ta j4 era disseminada, por meio dos famosos livros de papel mesoame- ricanos elaborados nas escritas maia e nahuatl. O Popol Vuh possuia, ademais, um contexto enunciativo precis: “Escrito apenas trés décadas apos a invasao do territé- rio quiché liderada por Pedro de Alvarado em 1524, 0 Popol Vuh procura afirmar meméria e direitos locais, perguntando: 16 Carneiro da Cunha (2009) tem se dedicado a estudar tal fendmeno. Apresentagio 17 ~ a historia de quem? Quem en. vai prevalecer agora, na Cristan ativa mais original da génese hes a historia da cria- > Narra com cl “ forma que recorre com enge- de escrita indigena da qual ele proprio ; » (iden: 11-2) ‘i Qu jo do Q fu : ade a tradigac sid ae do copiado- reivindica ter SH arentemente distinta do caso Marubo. Nesta trad). " de presenga da escrita (alfabética oy “ 5 ocriado pela intervengao do presente livro,!7 que nao mio), a. nao STO tendo politica local como a do poema maia-qui- se origina ae eee compilacdo que se apresenta surge de uma inicia- = corka, acolhida de bom grado pelas aldeias em que vivi durante meu trabalho de campo. Logo no inicio, quando o projeto era explica- do e aceito pelos cantadores, xamas € moradores locais, ele passou a se tornar de interesse dos mesmos, a ponto de desejarem que documenta- ces e transcrigdes fossem feitas nas outras aldeias em que eu nao tra- balhei. O objeto (e projeto) “livro”, que era um mistério para os can- tadores locais, foi aos poucos assimilado através da criagao de uma categoria local, a de docomento (apropriagao do termo portugués “do- cumento”): algo que se deve mostrar aos chefes dos brancos para que se garanta a integridade das terras, para que o saber seja reconhecido, para que os Marubo sejam enfim tratados com o devido respeito. Nes- aA a cosa x forma ae ao contestD) enunciativo do Popol epistemolégico proprio « ma de demarear a existéncia de um registro ivo, Isso tudo vai ser acompanhado Por um processo de edica. : isto € de traduea zi ze da intel” locugao direta co 40, conduzido através da in ‘Asituagao é ap " -jo oral nao ha nenhum trago 8 alr y i . lingues capazes de oe cantadores monolingues e alguns parceiros bie é 7 “ompreende quéncia, se preender a lingua ritual marubo gue, com fa iblia 'a € com a tradugao de trechos 44 Bibli Tibos do Brasil, ali presentes desde 0S on als, sobretudo he Impacto direto no sistema de compose ra um estudo mai que se refere aos mestres cantadore> Ver Cesaring 012). detalhado da relacao do veamanist0 aru to m resultado similar ao do poema mesoamericano editado por therston: o estabelecimento de um texto na lingua ori- hado de sua tradugdo para o portugues. garau Medeiros e Bro ginal, acompanl Mm publ wee ‘A passagem de Medeiros € Brotherston acima citada trazia ain- da uma outra indagagao fundamental: “quem entrou na histéria de Ela aponta para a necessidade de reavaliar a diviséo entre mito ‘a como esta, que leva o subtitulo de “mito” é uma categoria de con- ara designar o quem?” e historia, latente em uma antologi: “Cantos da mitologia marubo”. Ora, traste criada no interior da tradigao greco-europeia p to filosofico — aquele horizonte de suposta irracio- outro do pensament longo de seu nalidade que a filosofia e a historia precisaram inventar ao processo de fundacao;!8 aquele mundo pré-filos6fico marcado pelo lo- gos palaciano e seu monopélio da verdade! e distinto, portanto, das Gescentralizacdes e multiplicagdes do discurso que tipificam muitos dos horizontes da floresta (Clastres, 1974b, 2004; Viveiros de Castro, 2007: 111-2). O leitor nao encontrara aqui exatamente uma exposigao nar- rativa da trajet6ria de herdis, feitos de deuses ou reis divinizados fun- dadores de dinastias, guerras e eventos exemplares, que serviriam de pretexto para a “exaltacdo de uma espécie de superego comunitario” (Zumthor, 1983: 110 — tradugao minha), tao caracteristica da poesia épica classica. As particularidades da ontologia marubo nao se com- preendem pela figura da palavra mitica mondrquica e suas instituigdes, tio arraigadas no nosso imaginario. E nao se trata também, por outro lado, de considera-la como fan- tasiosa, imagindria ou ficticia, ou seja, oposta ao discurso objetivo e “verdadeiro” da ciéncia ou da hist6ria. Tampouco se pretende, ainda, idealizar 0 mito e algd-lo 4 condigdo de balsamo para a solugao do mal- vestar da modernidade, tal como propunha a invengdo romantico-mo- dernista do “primitivo”, ou como ainda quer uma certa cultura mistica 18 Detienne (1981) oferece um bom inventario de tal trajet6ria. 1 A props verdana Ptopésito, ver outro estudo clisico de Detienne (1967) sobre os mestres da erdade na Grécia arcaica. Apresentagio 6 IN — \ anca. Aquis 0 sentido projetado Pelas artes y a conremport “ebido em suas proprias condicdes de Veni eve Ser COM go dizer que SUAS Narrativas gay

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