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Robert Castel As metamorfoses da questao social Uina erniea do saaio ti ter ‘Tradugio: Iraci D. Poles y EDITORA VOZES Pewépolis A protegao préxima 1s vertentes da questo social, cujas transformagées mpanhadas, o social-assistencial € a menos tributa- ama historia ©: pecifica, Organiza-se em torno de carac- sticas formais de qu se encontrar » sem duvida, o equivalente em todas as sociedades historicas. “Assistir” abran- ) conjunto extraordinariamente diversificado de p se inscrevem, entret dticas nto, numa estrutura comum determi- nada pela existé icia de certas categorias de populagées caren- es ¢ pela necessidade de atendé-las. Faca-se entao, em primeiro jugar, uma tentativa para evidenciar essas caracteristicas que constituem a logica da assisténcia. Entretanto, nao é possivel ater-se a um organograma pura- mente formal: essa constelagao da assisténcia assumiu, eviden- temente, formas particulares em cada formagio social. Aquela de que se revestiu no Ocidente cristao deve receber atengdo es- pecial por duas razGes. Porque sempre fez parte de nossa he- tanca: as disputas contemporaneas da assisténcia ainda sio stituidas em torno de coordenadas de que sé se percebe 0 sentido quando relacionadas com as situagGes histéricas em cujo seio se constituiram desde a Idade Média. Asegunda razao decorre do fato de que essa configuragao assistencial interferiu © continua interferindo (para, ao mesmo tempo, assumi-la em. parte ¢ oculta-la) na outra grande face da questao social que é, sobretudo, a problematica do trabalho ¢ cuja emergéncia é 47 AS METAMORFOSES DA QUESTAO SOCIAL mais tardia (metade do século XIV). Para evidenciar a origina- lidade desse evento (cf. capitulo I), é necessario situd-lo no ce. nario de uma configuragio assistencial j4 constitufda em suas grandes linhas naquele momento. A sociabilidade primdria O social-assistencial pode ser formalmente caracterizado por oposigao aos modos de organizagao coletiva que fazem economia desse tipo de recurso. Porque existem sociedades sem social. Com efeito, o social nao deve ser entendido aqui como 0 conjunto das relagées que caracterizam a humanidade enquanto espécie que se define por viver em sociedade. Real- mente “o homem € um animal social”, ¢ a abelha também. Mas, para evitar o embaraco de uma mera questao de vocabu- lario, estabelecer-se- chamar de “societal” a qualificagao ge- ral das relagdes hamanas enquanto se refere a todas as formas de existéncia coletiva. O “social”, ao contrario, é uma configu- rac4o especifica de praticas que nao se encontram em todas as coletividades humanas. Primeiro se falaré das condig6es em que ele emerge. Uma sociedade sem social seria inteiramente regida pelas regulagées da sociabilidade primaria’. Entendo por isso os sis- temas de regras que ligam diretamente os membros de um gru- po a partir de seu pertencimento familiar, da vizinhanga, do trabalho e que tecem redes de interdependéncia sem a media- cao de instituigdes especificas. Trata-se, em primeiro lugar, das 1 Tomo emprestada de Alain Caillé a expressao “Socialité primaire et socié- té secondaire”, in Splendeurs et misdres des sciences sociales, Genebra-Pa- ris, Droz, 1986, p. 363-375. Caillé opde a socialidade ou a sociabilidade priméria’a socialidade “secundaria” que uma socialidade construida a partir da pariticipacao em grupos, supondo uma especializacao das ativida- . des e das mediagées institucionais. Trata-se, é claro, de uma oposicao for- mal e abstrata, mas que se pode fazer trabalhar em situagdes precisas. Emprego-a aqui como um modelo para caracterizar a emergéncia de uma assisténcia especializadaa partir de uma falha nasassisténcias nao especiali- zadas, ou “primarias”. 48 I-A PROTEGAO, PROXIMAMD” sociedades de permanéncia em cujo seio 0 individuo, encaixa- do desde seu nascimento numa rede de obrigagées, reproduz, quanto ao essencial, as injungdes da tradigéo e do costume. Nessas tormagoes, nao ha “social” em maior grau do que “eco- nomico”, “politico” ou “cientifico”, no sentido em que estes termos qualificariam dominios identificdveis de praticas. Re- gras ancestrais imp6em-se aos individuos de um modo sintéti- co e diretamente normativo. Formas estaveis de relagdes acom- panham a realizagao dos principais papéis sociais na familia, na vizinhanga, no grupo etario e sexual, no lugar ocupado na divi- sao do trabalho, e permitem a transmissao das aprendizagens € a reproducgao da existéncia social. Em geral, aplica-se as sociedades ditas sem histéria o mode- lo—aqui muito simplificado — de formac6es sociais que se repro- duziriam identicamente, impondo uma programagio estrita 4s prestagdes dos individuos. De fato, para as sociedades de que a etnologia se ocupou no inicio, a mudanga é percebida como algo que vem de fora — pela conquista ou pela colonizagao — e que provoca sua explosao, impondo-lhes um modelo de trans- formagao que nao podem integrar a partir de sua dinamica pro- pria. Mas é possivel encontrar estruturas desse tipo em todas as areas culturais, inclusive na do Ocidente cristo. Correspondem a0 que a Antropologia Histérica chamou de “sociedades cam- ponesas”. Assim, até recentemente, comunidades rurais viviam em quase autarcia, nao apenas econédmica mas também relacio- nal, como se fossem enclaves no interior de conjuntos arrasta- dos pelo movimento da modernidade”. Mais ainda: no Ociden- te cristao, essa estrutura fechada constituiu a organizagao social dominante da época feudal, marcada pela sacralizagao do passa- do, pela preponderancia da linhagem e dos lagos de sangue, pelo apego a relagées permanentes de dependéncia ¢ de interdepen- déncia enraizadas em comunidades territoriais restritas. Pelo modo de sociabilidade que orquestra, a sociedade feudal conju- 2 Cf. W.L. Thomas, E. Znaniecki, The Polish Peasant in Europe and America, 1" edigao Nova York, 1918. Para uma conceitualizacao geral, T. Shanin, "Pen sant Economy” Ie Il, Journal of Peasant Studies, outubro de 1973 ¢ janeiro de 1974. 49 pla entrada: a dependéncia em relacao ao senhor eclesiastico ou laico, a inscrig&o no sistema das solidariedades e das coergées da linhagem e da vizinhanga. Como disse de modo feliz um histori ador da escola antiga e cuja prolixidade é, amitide, mais aproxi mativa: “Nenhuma época se esforgou mais por combinar rela. des imutaveis entre os individuos; nenhuma foi, depois, mais importunada por sua obra nem sofreu mais para aniquilé-la’, Porém, mesmo nas sociedades mais reguladas pelas inter- dependéncias tradicionais, podem ocorrer dificuldades nos processos de integracao primaria. Por exemplo, a situacao do 6rfao rompe o tecido da assisténcia familiar, uma enfermidade ou um acidente pode tornar 0 individuo provis6ria ou definiti- vamente incapaz de manter scu lugar no sistema regulado de trocas que asseguram 0 equilibrio do grupo ao qual pertence, ou, ainda, aindigéncia completa pode colocé-lo numa situagao de dependéncia sem interdependéncia. A desfiliagao, tal como a entendo, é, num primeiro senti- do, uma ruptura desse tipo em relagao as redes de integragao primaria; um primeiro desatrelamento com respeito as regula- ¢6es dadas a partir do encaixe na familia, na linhagem, no siste- 3 Cf J.P Gutton, La société villageoise dans l'ancienne France, Paris, Hachet- te, 1979. Robert Fossier fala de “celularizacao” pata descrever, na ldade Mé- dia, 0 processo de cristalizagio do habitat rural em comunidades de habitantes de dominancia autarcica (Histoire sociale de l'Occident médiéval, Paris, A. Colin, 1970). 4G. d’Avenel, Paysans et ouvriers depuis 700 ans, Paris, A. Colin, 1907, p. 9. Naturalmente, essa forma de organizacao social pode ser encontradaem ov- tras 4reas culturais e em outros periodos histéricos. E 0 caso, em particular, da “Idade Média japonesa”. 50 relacionais do meio familiar ¢/ou social. Assim, 0 6rfao sera as- sumido pela familia ampliada, 0 invalido ouo indigente terao um minimo de solidariedade “natural” na comunidade de al- deia. Desse modo, foi possivel falar, metaforicamente pelo me- nos, de “familia-providéncia™. Além da familia, a comunida- de territorial pode, mesmo na aus€éncia de instituigdes especia- lizadas, assegurar algumas regulagées coletivas, como se deu na Idade Média quanto a utilizagao das terras comunais, a divi- sao da corveiae de certas sujeigées feudais®. Também pode cui- dar para que os membros mais carentes da comunidade se be- neficiem de uma assisténcia minima, na medida em que seu abandono total abalaria a coesio do grupo. Essas comunidades tendem, pois, a funcionar como siste- mas autorregulados ou homeostaticos que recompdem seu equilibrio mobilizando seus proprios recursos. Uma nova afi- liac4o se processa sem mudar de quadro de referéncia. A inte- gracdo ameagada € reconstituida sobre uma base territorial e no quadro das interdependéncias dadas por essa inscrigdo. Quan- do surge uma dificuldade no sistema das protegées mais pr6xi- mas, a sociabilidade primaéria € menos rompida do que distendida, e o sucesso das operagées de recuperagio depende de sua elasticidade que nao é infinita. Podem ocorrer demissées, * CE. A. Lipietz, Laudace ou Venlisement, Paris, La Découverte, 1984. © CE. R. Fossier, Histoire sociale de l'Occident médiéval, op. cit., cap V. 51 abandonos, Tejeigdes. As redes toleradaeem Parte sust entada Por sua comunidade, nem Por isso € um paratso’. Nao proponho Pois, aqui, uma visio idilica dos méritos de uma Sociedade civil versio primitiva mas, sim, uma reconstru- ¢ao daquilo a que sao condenadas ~ para o Plor ou para o me- lhor — as sociedades sem instancias especializadas de atendimento, quando tém que fazer face a uma vicissitude que perturba suas regulacées habituais: ou a retomada pelas redes comunitarias “dadas” funciona (e ela sempre representa um custo), ou nado ha nada, exceto diferentes formas de abandono e de morte social. Seria possivel multiplicar os testemunhos de etndlogos sobre o carater perturbador da presenga, nessas so- ciedades, de individuos em situacao de isolamento social”. Essa estrutura social j4 conhece tal perfil de individuos que serao qualificados como supranumerarios. Mas nao pode prepa- rar-lhes nenhum tratamento. Marc Augé fala de “totalitarismo de linhagem” para qualificar as situagdes de dependéncia quase absoluta em relagao a linhagem, a tradico e ao costu- me nas sociedades “sem historia”. Cf. Pouvoirs de vie, pouvoirs de mort, Pa- ris, Flammarion, 1977, p. 81. * Cf. por exemplo, a catastrofe que representa, segundo Claude Lévi-Strauss, a existéncia do solteiro nesse tipo de sociedade: dado que nao ocupa um lu- gar na rede de trocas regulada pelas estruturas de parentesco, acha-se na con dicéo de excedente e é rejeitado pelo grupo. (cf. “La famille Claud i eunidos por R. Billour ¢ C. Clément, Paris, Gallimard, ee ‘WI. Thomas e F, Znaniecki destacam que “o con- junto do sistema das atitudes familiares implica de modo absolutoa necest dade do casamento para todos os membros da geracao jovern.. Alguém que ao final de um certo tempo, nao se casou, provoca Ga eee rese hostil no meio familiar. Ecomo se Gi ee rahe! ae ish Peasant in Europe 585,¢ POSE Oa a amines” ad and America, op. cit., p. 104). obrigacées da sociabilidade priméria. 52 - oy Esse esquema se aplica, em certa medida e ressalvadas al- gumas precaugées, a sociedade feudal tal como existiu no Oci- dente antes do ano mil. Georges Duby péde escrever a seu respeito: “Todos os documentos da época (polipticos, censud- rios, costumeiros) descrevem uma sociedade camponesa certa- mente, e muito hierarquizada, mas uma sociedade enqua- drada, assegurada, provida. Disso resulta um sentimento de se- guranga econémica”’. Trata-se de fato, no entanto, dessas comunidades campo- nesas miserdveis, eternamente expostas A guerra e periodi- camente atormentadas por terriveis periodos de fome. Porém, mais Ou menos como 0 caso de saques ou de desembarque de colonizadores em sociedades “exdticas”, so as irrupgées in- controlaveis, vindas de outros lugares, os cataclismos meteo- rolégicos ou devastagées da conquista ou da guerra, que podem enfraquecer 0 conjunto da comunidade ¢ até mesmo destrui-la. Entretanto, Duby se permite falar de sociedades “asseguradas” ou de sociedades “providas”: devido a sua orga- nizagdo interna, podem afastar, de modo significativo, os ris- cos endégenos, como o fato de que um individuo ou um subgrupo seja totalmente entregue A sua sorte e se instale numa situagao de desfiliagdo permanente. Visto que solidarieda- des-dependéncias verticais se acrescentam As interdependén- cias horizontais ou as substituem. Georges Duby diz ainda: “Durante toda a alta [dade Média, nenhum grande fechava seus celeiros aos miseraveis c, entdo, essa generosidade neces- saria provocava certamente, na sociedade rural, uma redistri- buigao de bens de amplitude muito consideravel””®. “Generosidade necessdria”: a assisténcia aos carentes nao é uma op¢4o a cargo da iniciativa pessoal, mas a consequéncia obrigat6ria do lugar ocupado num sistema de interdependén- cias. Por volta do século VIII, quando essa sociedade fundada sobre lacgos de vassalagem comega a impor-se, nao constitui ° G. Duby, “Les pauvres des campagnes dans l’Occident médiéval jusqu’au XIIE siécle”, Revue d’histoire de 'Eglise en France, t. LII, 1966, p. 25. 1° G. Duby, Guerriers paysans, Paris, Gallimard, 1978, p. 261. 53 5 tato extraordinario 0s) pecam voluntariamente Priva de protecées: Aquele que se recomenda ao poder de outrem. Ao magnifico Se- nhor “fulano”, eu, “beltrano”. Dado que é perfeitamente sabido de todos que nao tenho com que me alimentar nem me vestir, re- corrl 4 vossa piedade—e wuss bomdarle me conceden — para po- der me confiar ou me recomendat & vossa maimbour. Colss que fiz. nas seguintes condigées. Vos deveis ajudarme ¢ susten- tar-me, tanto para a alimentacao quanto para o vestuario, A me- dida que puder vos servir e enquanto for merecedor. Dram todo o tempo em que eu viver, vos deverei o servico ea obedién, cla que podem ser esperados de um homem livre, e nao poderei subtrair-me ao vosso poder, ou ao de vossa maimbour, mas, ao contrario, deverei permanecer todos os dias de minha vida sob vossa autoridade ¢ protecio". ‘Trata-se de um formulario-padrao feito para servir de mo- delo aos escribas encarregados de recolher esses pedidos, o que mostra que deviam ser relativamente frequentes. Na auséncia de uma administracao estruturada e de servigos especializa- dos, a solidificacao da relacgao pessoal sobre o juramento de fi- delidade representa um primeiro tipo de protegao eficaz contra os riscos sociais. Sujeicao da pessoa por meio do regis- tro em um territ6rio: nao se pretende que essa relagao de de- pendéncia tenha sido absolutamente hegeménica (sempre existiram proprietarios de alédios, por exemplo) mas, sim, que representa a relagao social dominante, ainda que varidvel em suas modalidades de expressiio, que se desenvolveu coma “feu- dalidade”?. "! Citado in R. Boutruche, Seigneurie et féodalité, le premier age des liens d'homme a hommes, Paris, Aubier, 1968, p. 166. * Para uma discussao da nogao de feudalidade, cujo sentido se tornou com: Plexo depois do classico Société féodale de Marc Bloch (primeira edigio, Pa- ris, 1939), cf., por exemplo, G. Bois, La crise du féodalisme, Paris, Presses de la Fondation nationale des sciences politiques, 1981. s4 on MA Assim, a conjungao do fato de estar go de alguém poderoso (é 0 sentido de “maimbour”, transeri- to do antigo direito germanico) e do fato de estar inserts nas redes familiares ou da mesma linhagem e de vizinhanga da co- munidade de habitantes garantia uma Pprotegdo maxima con- tra os acasos da existéncia. Essas comunidades sao, ao mesmo tempo, globalmente vulneraveis quanto As agress6es externas (crises de subsisténcia e devastagées de guerra) e fortemente integradas por redes estreitas de interdependéncia. A precarie- dade da existéncia faz parte da condigao de todos endo rompe © pertencimento comunitario. Tais sociedades dificilmente aceitam a novidade e a mobilidade, mas sao eficazes contra a desfiliagao. colocado sob a prote- Semelhante estabilidade permite compreender que, nessas sociedades, a pobreza possa ser imensa e generalizada, sem cri- ar uma “questo social”. Constatagao que Michel Mollat tam- bém faz a respeito da alta Idade Média: “Apesar de seu ni- mero clevado, os risticos nao representavam nenhum peso consideravel para o ritmo quotidiano da vida social” ?. Nao s6 porque, como se diria numa linguagem sem diivida anacréni- ca, estavam “resignados” com sua sorte; mas, sobretudo, por- que — exceto quando das revoltas, mas estas, parece, tiveram uma certa amplitude somente a partir do século XI, isto é, quando essa estrutura comega a ser abalada pelos primeiros efeitos do crescimento demografico' — os mais carentes nao representavam um fator de desestabilizagao interno a essa for- magao social que controla os riscos de desfiliagao maciga gra- cas a rigidez de sua prépria estrutura. E claro que ja existem andarilhos e pessoas isoladas. Re- presentam, mesmo desde antes do ano mil, uma constante da paisagem. Mas esto fora da comunidade e das areas de vida “domesticadas” (organizadas como domus, como casas). Um mundoem que o homem € raro ¢ os nticleos de moradia sao ra- 13M. Mollat, Les pauvres au Moyen Age, Paris, Hachette, 1978, p. 354. 14 CEG. Duby, Le Moyen Age, Paris, Hachette, 1987, cap. IV. SS teteitos deixa restae das charnecas, frequentad. errante, pelos carvoei jotsas magicas e maléficas. Mas estan fy lando em termos exatos, exclufdos do representacao do vagabundo sera sob; miniscéncia dessas figuras ameacadoras vera, 0 vagabundo repr Tornou-se outro, desfiliado em relagéo a uma ordem social 4 que havia Pertencido anteriormente. Em sentido estrito, a fi- gura do vagabundo sé pode aparecer em um mundo estrutura- do do qual se desatrelou. O estrangeiro e/ou o andarilho, ao contrario, simbolizam a alteridade total em relagdo aum tipo de organizagao comunitaria que ainda autogerencia suas tur- buléncias. A sociedade feudal conhece também varios tipos de aventureiros com trajetérias aleatérias como estes “mogos”, fi- thos caculas de familias sem terra ¢ disponiveis para todo tipo de 7 tPreendimento ¢ cuja importancia, enquanto fatores de mobi. lidade no seio das e struturas feudais, foi sublinhada por Georges Duby. Religiosos e estudantes podem igualmente encontrar-se em situacao, proviséria ou definitiva, de mobilidade geografi- ca e social. Porém ele, o vagabundo, pertence A massa dos “po- bres” que s6 podem viver do trabalho de seus bragos. Seu destino também sera especifico: esta submetido a dupla coer- ¢ao de ter que trabalhar e de nao o poder fazer’®, 7 ies modelo de “sociedades sem social” comportou diver- sas variantes histéricas. Apenas a interdependéncia hierarqui zada da sociedade feudal nos reteve um pouco aqui, 4 medida que de sua decomposig4o, ou antes —como se tentara demons- trar de modo mais preciso — de sua “desconversao”, é que sur- giu a problematizagaéo moderna do social. Mas a referéncia geral a sociedades que fazem economia do socia! permite, ao 15 mn G. Duby, ibid., p. 18. : : i iliaga se tipo de 16 Pa ofundar a diferenga entre uma desfiliagdo superior nes: ee a figura posterior e “popular” do vagabundo, fo capitulo IleLe roman de la désaffiliation: a propos de “Tristan et Iseut”, loc. cit. 56 + RU LENAO PROXY contrario, Caracterizar um Primeiro tipo de intervengées eg ciais constitutivas do social-assistencial. Seja porque os Ione, da sociabilidade priméria se tornam mais frouros seja por a 1 da sociedade se torna mais complexa, a ponto de impossibilitar esse tipo de resposta global e pouco diferencia da’,o atendimento aOs Carentes constitui objeto de praticas especializadas. Assim, 0 hospital, o orfanato, a distribuigao or- ganizada de esmolas sao instituigGes “sociais”. Procedem ao tratamento particular (especial e especializado) de problemas que, em sociedades menos diferenciadas, eram assumidos sem mediagao pela comunidade. Sob as configuracces histricas concretas, através d. i ‘as quais se desenvolveu, o social-assistenci- a apresenta um certo nimero de caracteristicas formais. Em Primeiro lugar, é uma construgdo de um conjunto de praticas com fungao protetora e integradora (e, mais tarde, preventiva). Entendo, quanto a isso, que o social-assistencial resulta de uma intervengao da sociedade sobre si mesma, dife- rentemente das instituigdes que existem em nome da tradicao e do costume. A esse respeito, seria possivel falar, pela menos analogamente, de sociabilidade secundaria, pois se trata de sis- temas relacionais deslocados em relacao aos grupos de perten- cimento familiar, de vizinhanga, de trabalho. A partir desse . desatrelamento, vao se desenvolver montagens cada vez mais complexas que dao origem a estruturas de atendimento assis- tencial cada vez mais sofisticadas. Em segundo lugar, essas praticas sempre apresentam pelo menos esbogos de especializagao, nacleos de uma profissiona- lizagdo futura. Nao € qualquer um, de qualquer modo, em que tem a responsabilidade desse tipo de pro- individuos ou grupos mandatados, ao menos qualquer lugar, blemas mas, sim, : ial nai i ierarquia social. For- 174 diferenciagao social no deve ser confundida com ie arquia ae es sociais muito hierarquizadas como a sociedade feudal pods Se munoe ‘ates ¢ por isso muito protetoras. Mas nao podem, sem divide, muito encase renciadas: a multiplicago dos status intermediarios “evils ser muito difertrada em crise do tipo de controle feudal ea emergéncia de como se verds 3 era jvondas por individuos que se situam en zonas de tu consagrados. ‘57 parcialmente, para fazé-lo e identificados como tais. Por exem- plo, o paroco, o fabriqueiro, um oficial municipal... j4 so, a sua manceira, “funciondrios” do social A medida que seu mandato é, ao menos em parte, assegurar esse tipo de atividade especial. A delimitagdo de uma esfera de intervencdo social suscita, assim, a emergéncia de um pessoal especifico para instrumentaliza-la. E 0 esbogo da profissionalizagao do setor social!®, Em terceiro lugar e correlativamente, esboga-se também uma tecnicizagdéo minima. Mesmo na auséncia de uma especia- lizagdo exclusiva e, a fortiori, de uma formagao profissional es- pecifica, o mandatado é obrigado a avaliar as situagdes em relagao as quais deve intervir ou nao, a selecionar os que mere- cem auxilio, a definir categorias, ainda que grosseiras, para orientar sua agao. Sua pratica nao deve ser confundida com a de um membro ordinario (nao mandatado) da comunidade, mesmo se alguns exercem uma atividade do mesmo tipo; por exemplo, um particular que dé esmolas a titulo “privado”. A pratica do agente mandatado deve ser ritualizada e basear-se num minimo de conhecimentos, pericia e tecnicidade propria. Nao ha pratica social sem um nicleo, ainda que minimo, de eenheckuenton sobre as populacics concemidas: « sobre os modos de assisti-las ou, ao contrario, de exclui-las do atendi- mento. Em quarto lugar, a questo da localizagdo dessas praticas apresenta-se de imediato e faz surgir em seguida uma clivagem entre praticas “intrainstitucionais” e praticas “extrainstitucio- nais”. A razao da intervengao, como ja foi dito, € uma dificul- 18 Nao € incongruente falar de profissao tao cedo se, ap6s Max Weber, “en- tende-se por profissao 0 fato de que uma pessoa efetue prestacdes de modo continuo, para fins de subsisténcia ou de lucros” (cf. M. Weber, Histoire éco- nomique. Esquisse d’une histoire universelle de l'économie et de la société, trad. fr., Paris, Gallimard, 1991, p. 17). Weber observa que, definida desse modo, a primeira profissdo € a de feiticeiro. Mas 0 feiticeiro ainda nao €, fa~ lando em termos exatos, um especialista; ele é o profissional do ambito religi- oso em geral. Em contrapartida, um religioso pode ser um profissional em tempo parcial de atividades sociais especializadas. O clero esté a servigo de Deus e a servigo dos pobres, ¢ é, aliés, remunerado pelas duas atividades. 58 dade na sociabilidade priméaria. E tentador, e geralmente mais econdmico em todos os sentidos da palavra, reparar no pré- prio local; por exemplo, prestar atendimento a domicilio. Mas anatureza do problema pode impedir isso, e hd, entdo, dester- ritorializagao — reterritorializagao, quer dizer, tratamento num local institucional especializado (por exemplo, tratar no hospital). Essa tens4o representa uma linha de forcga importan- te para o desenvolvimento do assistencial-social e ja é identifi- cada através das formas muito rudimentares de organizagdo dos socorros. Em quinto lugar, mas esta caracteristica essencial foi ape- nas percebida e sera necessério voltar a ela detidamente, nao basta ser carente de tudo para ser da esfera da assisténcia. Dentre as populagées sem recursos, algumas serao rejeitadas e outras atendidas. Desenham-se dois critérios: o do pertenci- mento comunitario — a assisténcia se vincula, de preferéncia, aos membros do grupo € rejeita os estrangeiros (evidentemen- te, sera preciso elaborar o que significa “ser membro do gru- po” e “ser estrangeiro”); o da inaptidao para o trabalho — a assisténcia acolhe preferencialmente os que sao carentes, por- que, como o Grfao sozinho ou o idoso impotente, sao incapa- zes de suprir suas necessidades através do trabalho (mas, também aqui, deve-se precisar 0 critério através da andlise das praticas e das regulamentagées que o definem). Essa distingao, que sera trabalhada nos capitulos seguintes, circunscreve o campo do social-assistencial em sua diferenga quanto as outras formas de intervengao social, voltadas para as populagées ca- pazes de trabalhar. As caracteristicas assim evidenciadas sao formais, no senti- do de que s4o reconhecidas como condigées gerais de possibi- lidade de qualquer campo assistencial. Seu objetivo é suprit, de maneira organizada, especializada, as caréncias da sociabilida- de prim4ria. De modo mais exato, dir-se-4 que o social-assis- tencial se constitui por analogia com a sociabilidade primdria. Tenta preencher um vazio que foi aberto nas relagdes coman- dadas pela sociabilidade priméria ¢ afastar os riscos de desfilia- ao que ele acarreta. O social-assistencial também mantém So de ser assistido ou nao. Assim, a maior Parte das regulamenta- des assistenciais exige que o indigente, mesmo que seja “sem residéncia fixa”, justifique pelo menos alguns anos de residén- cia na aldeia ou no municipio, sem o que sera abandonado a sua propria sorte. A assisténcia é Drimeiramente uma protecdo Prover suas necessidades por seus Proprios meios. A lenda evangélica As questées da especializacao, da profissionalizagao, da institucionalizagao, da discriminagao das populacées a aten- der, estruturam até hoje a organizagao do campo do social-as- sistencial. Como se transformaram para compor a paisagem atual? Nao se propée, evidentemente, refazer uma historia da assisténcia: sobre o assunto ha um grande ntimero de obras no- taveis. Bastard tragar-lhe a légica a fim de dissocia-la, com mais vigor do que geralmente se faz, da questo do trabalho a partir da constatagao de que as estruturas assistenciais concerniram, antes de tudo, a populagées incapazes de trabalhar. Entretan- to, sou obrigado a discutir a historiografia classica no que se re- fere a dois pontos. Primeiro, o impacto préprio do cristianismo sobre a estrutura¢do da assisténcia é frequentemente mal avali- ado em muitas histérias da assisténcia. Segundo, nao é exato datar da Renascenga ou da Reforma 0 inicio de uma transfor- magao da assisténcia inspirada pela preocupagao de adminis- trar racionalmente a pobreza. 60 Alias, essas duas distorgées estao ligadas. O inicio do sécu- lo XVI representaria um corte significativo se marcasse, a par- tir de um enfraquecimento dos valores cristaéos anteriormente hegemé6nicos, a emergéncia de novas exigéncias sociais e politi- cas. Observar-se-ia, a partir desse miomento, um endurecimento da atitude em relag&o aos pobres, considerados como uma popu- lag4o que estorva e potencialmente perigosa que, a partir de en- t4o, precisaria ser classificada, administrada e controlada por regulamentagées rigorosas. Uma postura desconfiada e conta- bil — dita, 4s vezes, “burguesa” ou “laica” — substituiria o aten- dimento generoso inspirado pela caridade crista’’. Mas tal construgdo é contestavel. Observa-se, realmente, que se tornam cada vez mais complexos os dispositivos de as- sisténcia em que as “polfticas municipais” do século XVI re- presentam uma etapa importante, porém nao um comego. A preocupagao de gerenciar nao aparece, pois, bruscamente; j4 é subjacente as praticas assistenciais inspiradas pelo cristianis- mo. Sem subestima-la, propOe-se mostrar que a originalida- de da elaboracdo crista reforgou, mais do que contrariou, as categorias fundamentais que estruturam todo 0 campo assis- tencial. Estas, particularmente o duplo critério de estar inca- pacitado para trabalhar e de dever ser domiciliado, t¢m uma consisténcia peculiar que trabalha subterraneamente a pr6- pria construgao medieval. Em contrapartida, ha um profundo questionamento da problematica assistencial a partir da dificuldade de levar em conta um novo perfil de populagées carentes que suscitam a quest4o de uma nova relagio com o trabalho (ou com 0 nao tra- balho), mais do que uma relacao com os socorros. Essa tomada 19 Este esquema de pensamento inspira com frequéncia até mesmo os melho- res trabalhos hist6ricos sobre a assisténcia. Assim, Jean-Pierre Gutton, no inf- dio de sua simula sobre La société et les pauvres, exemple de la généralité de Lyon, 1524-1758, Paris, PUF, 1971, evoca “a passagem da representagao de um “pobre de Jesus Cristo’ , de cardter sagrado mais ou menos acentuado, Aquela de um pobre rechacado, escéria e perigo social”. Apoiando-me sobre oo mesmos dados, inclusive aqueles relatados por J.-P. Gutton, tentarei dar-lhes uma interpreta¢ao diferente. 61 if de consciéncia emerge nao no inicio do século XVI mas, sim, na metade do século XIV. Portanto, se tivesse que haver um, corte — ainda que, sem divida, nunca haja corte absoluto em historia -, este situar-se-ia no momento em que, no cendrio re- lativamente estavel da assisténcia, evidencia-se a questao so- cial do trabalho. Na verdade, a questao social propriamente dita. Esta questdo merece um tratamento a parte que se dara no capitulo seguinte. Porém, para evitar a confusao das duas pro- blematicas, é necessario retornar, antes, 4 opiniao difundida de que 0 cristianismo em geral, e o cristianismo medieval em par- ticular, seriam portadores de uma concep¢ao sui generis da as- sisténcia. A caridade é realmente a virtude crista por exceléncia, ea pobreza é efetivamente valorizada em referéncia a Cristo e aos modelos da vita apostolica, santos, eremitas, religiosos que souberam despojar-se dos fardos terrestres a fim de se aproxi- mar de Deus. Entretanto, esse modo de “matar o homem ve- lho”, para empregar a férmula de Sao Bento, é uma pobreza voluntaria, uma ascese para Deus com motivacdo espiritual. Enquanto tal, esse tipo de despojamento nao pode ser pratica- do por qualquer um. Constitui um componente essencial da vocagao religiosa: “A valorizagio da pobreza concentrava-se tradicionalmente em torno da vida religiosa e clerical”. Até mesmo nesse plano, nao é unanimemente aceita. A grande po- lémica sobre as ordens mendicantes, que atravessa a Idade Mé- dia cristaé em seu apogeu, ataca amitde “esses vermes de homens que se mantém na ociosidade gragas ao nosso traba- lho”?", Mesmo numa perspectiva de ascese espiritual, se pode ser uma condic4o necessé4ria, a pobreza nao € um valor absolu- to. Como diz Pierre de Blois em um de seus sermées, fen 5 922 “bem-aventurados os pobres de espirito, mas nao todos”. 20 M. Mollat, “La notion de pauvreté au Moyen Age”, in Etudes sur économie et la société de L’Occident médiéval, Londres, Balorum Reprinto, 1977, XIV, p. 10. . *1 Citado por M. Mollat, Les pauvres au Moyen Age, op. cit., p. 356. 22 Citado por M. Mollat, “La notion de pauvreté au Moyen Age”, loc. cit., p. 322. 62 A avaliagao sera muito mais restritiva ainda, é evidente. para a pobreza suportada, a pobreza material dos miseraveis. Conhece-se, sem diivida, a terrivel alegoria da Pobrezano Ro. man de la Rose, de Guillaume de Lorris: A pobreza vestia apenas um velho saco estreito, miseravelmente remendado; era, ao mesmo tempo, seu casaco ¢ seu saido; era s6 o que tinha para se cobrir; por isso, tremia frequentemente. Um pouco afastada dos outros, estava agachada e encolhida como um cachorro triste e envergonhado. Maldita a hora em que o pobre foi concebido, porque ele nunca sera bem alimentado, nem bem vestido, nem bem calgado! Também nao sera ama- do, nem educado*?. E verdade que se trata de textos “laicos”. Mas, amitide, as avaliagées das autoridades religiosas s4o apenas menos pejora- tivas diante da condi¢ao dos pobres. Santo Agostinho j4 evoca- va com um certo desprezo esses pobres que sao “de tal forma necessitados da ajuda caridosa, que nem tém vergonha de mendigar”, e o Papa Inocente III fala da “condig4o miseravel dos mendigos”**. Michel Mollat observa que, na iconografia crista, o pobre € quase sempre representado a porta do rico ou as portas da cidade, numa atitude humilde ¢ suplicante”’. Nao éimediatamente autorizado a entrar: primeiro deve estar bem consciente de sua indignidade; e, em todo caso, 0 exercicio da esmola depende da boa vontade dos ricos. O minimo que se pode dizer é, pois, que a caridade crista nao se mobiliza automaticamente para socorrer todas as for- mas de pobreza. A pobreza por opgao, de certo modo sublima- 23 Citado in M. Mollat, Etudes sur l'économie et la société de LOccident mé- diéval, op. cit., p. 17. Com inspiracao semelhante, a muito aristocratica Christine de Pisan diz a respeito dos pobres: “Como nao sao nada, é tudo um lixo ~De pobreza é chamada— Quem por ninguém é amada”. E conclui elo- quentemente: “Essa gente nao é sendo uma molecada” (Le Livre de la muca- aon de Fortune, citado in P. Sassier, Du bon usage des pauvres, Paris, Fayard, 1990, p. 90). 24 Citado in G. Ricci, “Naissance du pauvre honteux”, Annales ESC, 1983, n° 1, p. 160. . , 25 Mf, Mollat, Les panvres au Moyen Age, op. cit., p. 133. 63 ae fome, Ts aoe doenga, o abandono ~a privacao em to- i“ Seus estados ~, a pobreza prosaica das pessoas “de condi- sao vil” 6, com frequéncia, conotada pejorativamente. Essa ambivaléncia, e até mesmo essa contradi¢ao que resi- de na representacao crista, é superada no plano das Praticas por dois modos especificos de gestao da pobreza: a assisténcia inscre- ve-se numa economia da salva¢do; e a atitude crista fundamenta uma classificagdo discriminante das formas de pobreza. Economia da salvagao: desgracgado, lastimado ou até mes- mo desprezado, 0 pobre pode, nao obstante, ser instrumentali- zado enquanto meio privilegiado para que o rico pratique a suprema virtude crista, a caridade, e Para permitir-lhe, dessa maneira, que obtenha sua salvagao. “Deus poderia ter feito ri- cos todos os homens, mas quis que houvesse pobres para que Os ricos pudessem, assim, redimir-se de seus pecados.”?* As implicagées praticas de tal atitude sao consideraveis, pois esta financiou, em grande parte, o orcamento medieval da assist€ncia por meio das esmolas e das doacées as instituigdes de caridade. Em uma época em que os meios de enriquecimen- to através do comércio e das especulagées financeiras ainda provocam sentimento de culpa, e em que, é preciso lembrar isso, os homens viveram no temor do inferno, a caridade re- presenta a via por exceléncia da redengdo e o melhor investi- mento para o além. O niimero consideravel de testamentos que redistribuem entre os pobres uma parte ou a totalidade dos bens dos desaparecidos prova, ao mesmo tempo, a forga dessa atitude e a importancia de suas consequéncias econdmicas. Mas 0 fato de ser reconhecida como meio para obter a salvagao nao significa, de modo algum, que a pobreza seja oa eros = mesma, nem que se goste do pobre enquanto pessoa. As “obras 26 “Vie de saint Eloi”, citado in B. Geremek, La potence ou la pitié, trad. fr.. Paris, Gallimard, 1987, p. 29. 64 de miscricérdia” desenvolvem uma economia politica da cari- dade cujo valor de troca é a esmola que “apaga 0 pecado”. Des- se modo, estabelece-se um comércio entre o rico e o pobre, com vantagens para as duas partes: o primeiro ganha sua salva- ao gragas a sua agao caridosa, mas o segundo é igualmente sal- vo, desde que aceite sua condicao. Last but not least, a ordem desigual do mundo também é salva nessa economia, que se re- velaigualmente providencial no sentido de que, reconhecendo a pobreza como necessaria, justifica sua existéncia e s6 tem que assistir suas manifestagdes mais extremas. A riqueza vivida de modo cristao apresenta, assim, uma dupla vantagem em rela- ¢4o a pobreza: é um meio de se obter a salvagao no outro mun- do e € uma forma mais agradavel de se viver aqui na terra. Em um perfodo mais tardio, $40 Francisco de Sales, sem dtivida, deua f6rmula mais nitida, e comoda alias, de tal desdobramen- to ao dirigir-se aos ricos nestes termos: Assim podeis ter riquezas sem que sejais envenenados por elas, se as tiverdes em vossa casa ou em vossa bolsa, e nado em vosso cora- cdo. Ser rico de bens, e pobre de apego, é a grande felicidade do $9, pocae, deem mopeda, tex as cepeecelidaden thay rlepamena ito da pobreza para 0 outro”. cris para este mundo e o m O que se sabe da instrumentalizagao das obras de miseri- cordia na Idade Média permite avangar que essa j4 era a atitude dominante dos ricos, e sem dttvidaa fortiori dos carentes, dian- te da pobreza: a pobreza material enquanto tal é um inforta- nio, ainda que se possa ganhar a salvagao através dela. E, alias, uma opinido sensata; e, rico ou pobre, teria realmente que ser santo para nao concordar com ela. Essa economia da salvagdo funda, ao mesmo tempo, uma percep¢do discriminatoria dos pobres que merecem ser assistidos. Em primeiro lugar, sao excluidos dentre os infortunados os que se revoltam contra a ordem do mundo desejada por Deus. O vinculo entre pobreza e heresia é profundo, nao sé porque 27 Saint Frangois de Sales, Introduction a la vie dévote, Paris, Editions Floris- sone, p. 29. 65 categoria teolégica. Mas existe dado mais preciso. Entre os préprios pobres que padecem sua condicd4o sem se revoltar, a concepcdo crista de pobreza opera uma clivagem essencial. A pobreza espiritual do pauper Christi é exaltada, porque realiza a renincia ao mundo e manifesta o desprezo por todos os bens terrenos, in- clusive pelo invélucro material que € 0 corpo. Mas essa emi- nente dignidade pode se alastrar, como um efeito de halo, para algumas formas de pobreza su portada, desde que exibam os si- nais visiveis desse despojamento. Na miséria corporal, pois, vao cristalizar-se, quanto ao essencial, os critérios que confe- rem uma dignidade espiritual a pobreza material. Por uma re- viravolta tipicamente crista, assim como os sofrimentos e a morte atroz de Cristo testemunham sua divindade ou como 0 longo martirolégio dos santos é 0 melhor sinal de que foram eleitos, assim, também o horror das multidées sujas e andrajo- sas de ulcerosos, de mutilados, de cegos e de paraliticos, de mancos e de manetas, de mulheres deformadas, de velhos fa- mintos e de criangas estropiadas é santificado pela exaltagao religiosa do sofrimento. Os pobres fazem parte do corpo da Igreja, porque se corpo sofre; sio a metafora do corpo pade- cente da Igreja. As figuras emblematicas da pobreza nas Escri- turas—J6 em cima de suas fezes, Lazaro cujo cadaver ja fede, os miseraveis miraculados sobre quem se debrugou a misericér- dia de Cristo, a nudez magra e amarrotada, as feridas e defor- midades — exibem os sinais mais espetaculares da desgraca da criatura abandonada por Deus. Manifestam, antes de sua sal- vagao pelo amor de Cristo, o mundo é mau e o corpo, desprezi- vel. O corpo doente é uma chaga cujo lamento se elevaa Deus. 66 fos eee PRUAIMA, Apobreza nao €, pois, apenas um valor de troca num: nomia da salvagao. Cheia de doengae de sofri ome da por eles, a derreligdo dos c Sa igcoenmento, santifica- remissao. A prova da eminente dignidade hy oper da por meio de suas manifestac6 pee See poe h fe goes extremas, insustentaveis e. particularmente, dos mais espetaculares atentados contra ain. tegridade corporal, do mesmo modo que a prova mais irrecu- sdvel da divindade de Cristo é sua morte ignominiosa na cruz. O amor dos pobres nao é um dado imediato da consciéncia. E um mistério ao qual o cristao sé tem acesso por meio dessa in- versdo total dos valores, cuja l6gica Nietzsche evidenciou, e alimenta-se do desprezo do mundo?’. Assim, se existe santificagao da pobreza, € com a condicao de dobrar a oferta pelo infortanio da situagao prosaica do po- bre. Nos mais belos momentos de exaltagao crista da pobreza, Michel Mollat sublinha o carater estereotipado da imagem do pobre na pastoral crista: “Magro, cego, chagado, frequente- mente coxo, o pobre esta andrajoso, hirsuto; pede esmola de porta em porta, A entrada das igrejas, na via piblica”””. Na mesma ordem de ideias, Charles de la Ronciére analisou 0 con- tetido dos sermées dos pregadores de Florenga no momento da expansao crista que marcou 0 século XII € 0 inicio do sécu- lo XIV. Destaca neles a onipresenga desse conjunto de imagens da pobreza que se expressa através da degradagao do invdlucro carnal*°. O pobre mais digno de mobilizar a caridade € o que exibe em seu corpo a impoténcia e o sofrimento humanos. Uma imensa dramaturgia crista se desenvolveu em torno da or- questragao dos sinais fisicos da pobreza. Mas encontra assim, sobredeterminando-a, uma caracterizagao antropoldgica fun- damental necessaria para que a indigéncia seja admitida, sem problema, no quadro da assisténcia: deve ser one ee obrigacgao do trabalho. A incapacidade fisica, a velhice, a infan- 28 Cf Nietzsche, Généalogie de la morale, trad. fr., Paris, Gallimard, 1971. 29 Mf. Mollat, Les pauvres au Moyen Age, op. cit, p. 159. nee 30C. de La Ronciére, “Pauvres et pauvreté a Florence au av ee i Mollat, Etudes sur l'histoire de la pauvreté, Paris, 1974, t. Il, p- 67 ent ma eventual complacéncia quanto ao mérbido. Em todo caso, esses sinais de decadéncia mostram imediatamente que a incapacidade de trabalhar, a que essas desvantagens condenam, no é voluntaria. O cristianismo medieval elaborou, dessa maneira, uma versao fascinante, e tinica, da exaltagao da pobreza baseads na consciéncia exacerbada da miséria do mundo?! Entretanto, nao foi o tinico a aplicar 0 critério da derrelicdo dos corpos Para © acesso ao auxilio. Essa referéncia ao que se propds cha. mar de uma teoria da desvantagem constitui uma coordenada basica de qualquer politica da assisténcia. Mas contém uma contrapartida que a lenda evangélica também esclarece. Fazer 2 opcao preferencial pela incapacidade fisica oculta outras for. mas de indigéncia e as exclui da possibilidade de serem atendi- das. No apogeu da Idade Média crista, desenvolveu-se um outro tipo de miséria. A das pessoas que vivem com dificulda- de, os “pequenos”, o populo minuto que sobrevive nos limites da indigéncia, Calculando 0 orgamento de algumas pequenas profissdes, como a dos jardineiros e pedreiros, Charles de la Ronciére mostrou que, durante alguns anos, na primeira meta- de do século XIV em Florenga, a maioria deles, sobretudo quando arrimo de familia, cai abaixo do limiar da pobreza. Mas, dessa miséria em que esbarram, os pregadores florenti- nos nao falam, e talvez até nema enxerguem. Ela é da esfera de outras categorias de andlise e de percepgao. E uma miséria feita de privag6es e suas manifestagdes mais comuns sio0 discretas, *1 Seria necessario poder concretizar esses propésitos através de um amplo recurso a iconografia medieval. Emblematica desta visio de mundo, a se- quéncia da chegada da procissao dos flagelados no filme de Bergman, 0 Séti- mo Selo [Le Septiéme Sceau}. A negligéncia na festa na praca do vilatejo: os artistas sao belos, jovens, alegres, expressam aalegria de viver, e 0 povo se di- verte. Surgem os homens de preto com sua lamentacio, suas correntes e seu medo, a peste e a morte. O instante de felicidade cai no sofrimento, o mundo terreno é maldito. 68 salvo quando ela eclode em revoltas tumultuadas ou quando obriga os infelizes a implorarem ajuda. Falta de comida, de mora- dia, de roupa, de trabalho, ela mostra somente a vida cinzenta do povo que sofre aquém das encenagées patéticas que mobilizam a caridade. Dessa maneira, os pauperes Christi expulsam para as trevas exteriores a miséria trabalhadora. Meu préximo é o préximo Por mais importante que seja, o critério da incapacidade fi- sica nao €, porém, o tinico que abre as portas da assisténcia. Comp6e-se com o critério do pertencimento comunitario para delimitar o campo do social-assistencial. Aqui também 0 cristi- anismo medieval contribuiu fortemente para sua aplicagdo. Mas é, novamente, para ratificar uma concepgao de “proxi- mo” como um préximo, que pode ser lido enquanto proximi- dade social ou geogtdfica ou a partir do que 0 conceito cristao de fraternidade entre os homens oferece de especifico. De fato, no Ocidente cristao, desde muito cedo a fixagao de um domicilio se impée como uma condicio privilegiada da as- sisténcia aos indigentes e também permanece por muito tempo, indo além do hipotético corte entre uma organizagao medieval ou “crista” da assisténcia e suas formas modernas ou “laicas”. A matricula data do século VI: é a lista nominal dos pobres que de- vem ser mantidos pela igreja local. Combina socorros e fixagao de domicilio de tal forma, que aqueles que originalmente eram simples assistidos (os fabriqueiros) passam a fazer parte do pes- soal permanente da Igreja’ 2 Na alta Idade Média, 0 sistema mo- nastico assegura o essencial das praticas de caridade. Os conventos recebem, ao mesmo tempo, individuos desterritoria- lizados que viajam pelas grandes rotas de peregrinagao e misera- veis e doentes do lugar. No entanto, nao sao atendidos de modo indiferenciado. A regra de Sao Bento distingue entre os pedintes 32M. Mollat, Les pauvres au Moyen Age, op. cit., p. 59. 69 fy SULIAL que nao podem trabalhar e os que sao “preguicosos”, os validos, que devem ser mandados embora ao final de dois dias. Em Cluny, por exemplo, os viajantes que estao de Passagem s4o alo- Jados, mas apenas por uma noite, ao passo que os “verdadeiros pobres” sao assistidos através de socorros ocasionais ou periédi- cos, sendo que alguns individuos até recebem assisténcia de for- ma permanente™*. Os “porteiros” dos mosteiros—frequentemen- te assistidos eles préprios e que se tornaram servicais do convento ~ fazem a triagem dos pedintes*, A localizagao privilegiada das prdticas assistenciais nos Conventos ¢ nas instituigées religiosas corresponde, alias, a uma espécie de mandato social da Igreja e que a ttorna a princi- pal administradora da caridade. Essa divisio do trabalho é muito cedo ratificada pelo poder politico. Assim, um decreto de Carlos Magno regulamenta a parte do dizimo que deve ser destinada a esse servigo social que existe antes mesmo da ex- pressao’*. Com 0 servigo a Deus, a Igreja encontra no servico aos pobres a outra justificativa para sua preeminéncia social e para seus privilégios. Nada, pois, no exercicio desse mandato que seja da esfera da iniciativa “privada”: a Igreja é a principal instituigao de gestao da assisténcia. A organizagao da assisténcia com base na domiciliagao sis- tematiza-se com o desenvolvimento das cidades e acarreta, para o tecido urbano, uma transferéncia das instituicoes e des. ses profissionais da assisténcia que os religiosos jé sao. Emtoda a cristandade europeia, as ordens mendicantes implantam-se sis- tematica e exclusivamente nas cidades*”. Paralelamente, os hos- pitais centrais, confrarias, hospitais se multiplicam. Na Franga, e em particular na regiao parisiense, a maior parte das grandes °° D. Willibrord Witters, “ Pauvres et Pauvreté dans les coutumiers monasti- ques du Moyen Age”, in Michel Mollat, Etudes surla pauvreté, op. cit.,t. Lp. 184. ** G. Duby, “Les pauvres des campagnes”, loc. cit., p. 26. °5 M. Mollat, Les pauvres au Moyen Age, op. cit., p. 56. °° B.Geremek, La potence ou la pitié, op. cit., p. 25. °’ CE. J. Le Goff, “Apostolat mendiant et fait urbain”, Annales ESC, 1968. 70 re IT A PROTECAO PROXIMA instituigdes religiosas de assisténcia sao fundadas entre 1180 e 1350”. Mesmo que, nessa €poca, tenha sido Possivel falar de uma renovagao crista, tais fundagdes correspondem igualmen- te auma profunda transformagao sociolégica, o desenvolvi- mento € a diversificagao do espaco urbano, que nao foram assumidas unicamente pelas autoridades religiosas. A ruptura da dependéncia e das protegées imediatas das sociedades agra- rias, o aprofundamento das diferengas sociais entre os grupos suscitam, de uma forma inédita, a questo do atendimento aos mais carentes. As autoridades municipais também assumem sua parte nessa questao que se transforma num problema de gesto da indigéncia urbana. A assisténcia organiza-se em base local ¢ impéde uma selegdo mais rigorosa dos assistidos. O hos. pital de Dinant é municipalizado desde 0 final do século XIII. Também desde 1290, a cidade de Mons mantém uma esmola- ria que ajuda, além dos assistidos ocasionais, indigentes inscri- tos numa lista revisada anualmente e que se beneficiam, assim, de uma espécie de assinatura para receber auxilios?’. Também as cidades de Gand e de Florenca mantém regularmente, cada uma delas, mais de mil indigentes “domiciliados”*’. As ajudas também podem ser distribuidas fora das estruturas hospitala- res, desde que os beneficidrios estejam cuidadosamente recen- seados e localizados. Desde o século XIV, comega-se a impor aos indigentes 0 uso de distintivos (medalhas, chapinhas de chumbo, cruzes costuradas na manga ou no peito), dando ini- cio a uma espécie de “direito” de participar das distribuigdes regulares de esmolas ou de frequentar as instituig6es hospitala- res. A este respeito, Bronislaw Geremek fala de “pobreza pen- sionista” e de verdadeiras “prebendas”. Viver da assisténcia pode virar uma quase profissao. Alids, em Augsbourg, em 3° Cf. M. Candille, “Pour un précis @histoire des institutions charitables, quelques données du XII‘-XIV° siecle, “Bulletin de la Société francaise Whistoire des hopitaux, n® 30, 1974. 39 M. Mollat, Les pauvres au Moyen Age, op. cit., p. 71. 4° CE C. Liss et H. Soly, Poverty and Capitalism in Pre-industrial Europe, Ha- socks, the Harvester Press, 1979, p. 25. 71 1475, os mendigos aparecem nos registros fiscais como um grupo profissional*!, lado da Igreja, regular ou secular, 9 Conjunto das autoridades tanto leigas quanto religiosas, assume sua parte nessa adminis. tragao do social: senhores notaveis e burgueses ticos, confra- rias, isto 6, associagdes de auxilio miutuo das corporagoées, multiplicam os auxilios*2, A Partir do fim do século XII, o exercicio da caridade tornou-se uma espécie de Servico social local que recebe a colaborago de todas as instancias que divi- dem a responsabilidade pelo “bom governo” da cidade. Tal responsabilizagao dos Poderes locais aceritua-se no decorrer indigéncia nao esperou, pois, o século XVI para se manifestar. Tampouco esperou a “laicizagao” da sociedade. Tanto antes quanto depois do século XVI, a Igreja desempenha seu Papel no concerto das instancias que concorrem Para o atendimento assistencial. Esse papel é, sem ditvida, mais preponderante an- tes que depois, mas nem sempre por razoes decorrentes do pa- pel especifico da Igreja. Assim, se os conventos tiveram um papel “caridoso” na Idade Média, é porque sao também senho- rias e 0 abade exerce o Papel de protetor de seus dependentes, da mesma maneira que os bispos sao, amitide, os senhores das cidades e de suas planicies. Os senhores eclesidsticos tinham, 41 B. Geremek, La patence ou la pitié, op. cit., p. 53-56. Max Weber ja obser- vava que, nas cidades medievais, alguns mendigos tinham um estaturo ou uma situagao (Stand); cf. M. Weber, Léthique protestant et | "esprit du capita- lisme, trad. fr., Paris, Plon, 1964, p. 219. * Sobre o papel das confrarias, Robert Fossier (Histoire sociale de l’Occident médiéval, op. cit., cap. V) mostra que 0 inicio do desenvolvimento dessas as- sociagées de caridade “reftigio dos humildes”, homélogo ao desenvolvimen- to das associagées cavalheirescas para os poderosos, corresponde ao momento da dissolugao das protegées dispensadas pela familia ampliada. ‘Trata-se de um fenémeno sobretudo urbano, mas encontram-se formas me. nos elaboradas no campo. 72 i a4 i na realidade, os mesmos deveres de protegao e de assisténcia que os senhores leigos e, sem dtivida, os exerciam da mesma maneira. O que geralmente se interpreta como o advento de uma “nova politica social”** no inicio do século XVI nao € senao a sistematizagao de tal movimento. Essa reativacdo é causada por uma conjuntura econémica e social desfavoravel: crises de subsisténcia, aumento do prego dos produtos alimentares, su- bemprego ligado a uma vigorosa expansao demografica apos as hecatombes devidas A peste, as reestruturac6es agrarias, a0 ' crescimento anarquico das cidades. Os fatores de desagrega- ¢ao social, perceptiveis ha pelo menos dois séculos, acentu- am-se brutalmente. A pobreza constitui objeto de um amplo debate publico alimentado pelas controvérsias do Renascimento e da Reforma e seu melhor testemunho é 0 sucesso da obra de Juan Luis Vives, De subventione pauperum*. Entre 1522 e a metade do século, cerca de sessenta cidades européias tomam um conjunto coerente de medidas. Essas politicas municipais baseiam-se em alguns principios simples: exclusdo dos estran- geiros, proibigao estrita da mendicAncia, recenseamento e clas- sificagao dos necessitados, desdobramentos de auxilios diferenciados em correspondéncia com as diversas categorias de beneficidrios. A exclusao dos estrangeiros, dos andarilhos, dos forasteiros, associada a interdigéo da mendicancia, permi- te tentar um atendimento sistematico da indigéncia domicilia- da: cuidados e ajuda aos doentes e invdlidos, mas também ensino de um oficio as criangas pobres e distribuigao de auxilios a familias sem emprego ou que nao ganham o suficiente para garantir a sobrevivéncia®®. A preocupag4o em organizar siste- 3B. Geremek, La potence ou la pitié, op. cit., cap. Ill, “Une nouvelle politi- que sociale”. 44 |.L. Vives, De subventione pauperum, Bruges, 1525, trad. fr. De Passistance aux pauvres, Bruxelles, 1943. Pheanc . 45 icdo dessas politicas municipais, cf., além de B. Geremek, “Para uma deer dese pe pai endured Eno Git., cap. Ill; T, Vissol, “A Porigine des législations sociales : au XVI siele: husnanisme et frayeurs populaires”, Les temps modernes.n) 15; uma pe. sigéo detalhada do funcionamento da ‘Auméne générale” de Lyon, 73 maticame: Ca, assim, em uma consid, certas Categorias de indige: zes de trabalhar. Dessa ma de Moulin, de fevereiro de 1556 espirito geral s. z no artigo 73 do decreto de Moulin: : eenniatinds Ordenamos que os pobres de cada cidade, burgo ¢ aldeia sejam alimentados e sustentados pelos habitantes da cidade, burgo ow aldeia de que forem nativos ou moradores, a fim de que no pos- sam vagar ou pedir esmola em outros lugeres diferentes daqueles €m que estao, os quais pobres devem ser informados e certifica- dos do que é dito acima se, para o tratamento de suas doencas, forem obrigados a ir aos burgos ou povoacgées onde ha hospitais centrais € leprosarios a isso destinados**. A “grande reclusio” dos mendigos, implantada também em escala europeia no século XVII, nao desmente, a despeito das apar€ncias, o principio da assisténcia a quem est4 préximo. Deve ser lida como continuidade e nado como ruptura no que diz respeito as politicas do século XVI, das quais representa uma fase de organizag4o ulterior mais elaborada, para se en- tender o fracasso das primeiras politicas municipais*’. Con- Gutton, La société et les pauvres: l’exemple de la généralité de Lyon, op. cit.; Pare a Inglaterra, cf. J. Pound, Poverty and Vagrancy in Tudor England, Lon- dres, 1971. : 46 Citado in L. Parturier, L’assistance @ Paris sous L’Ancien Régime et pendant la Révolution, Paris, 1897, p. 73. iz 47 Estas parecem ter funcionado mais ou menos SSE TI mas dezenas de anos, antes de cafrem quase em desuso, cf. Liss et H. Soly, 74 ~ Fey FRUXIMA sequéncia do desenvolvimento das cidades, da sociabilidade urbana tornam cada vez assisténcia com base na proximidadee que hospitalizagao. Paralelamente, visto que s que seus CERES sao desordenados, os mendigos representam o risco de constituirem-se “como uma espécie de povo indepen- dente”, que nao conhece “nem lei, nem religiao, nem autoridade, nem Policia”, tal como “uma nago libertina e indolente que nun- ca tivesse tido regras”**. Ameaca portanto, ja materializada pela metade, de uma ruptura completa do vinculo comunitario. To- lerar acondigao mendicante seria aceitar que se constituisse, no seio da comunidade, um grupo totalmente desfiliado que se tornou estrangeiro A cidade. Diante dessa ameaga, a reclusao é apenas um meio, radical sem dtivida, mas que se apresenta como um desvio necessario para restaurar 0 pertencimento comunitario. Os albergados do hospital geral estao menos isolados do que deslocados da comunidade, isto é, estao recolocados num espaco ad hoc, onde continuam a ser assistidos. Por sua estrutura institucio- nal, pelo tipo de populagao a que atende, pelo modo como fun- ciona, o hospital geral nao representa verdadeiramente uma inovagao. Do ponto de vista institucional, inscreve-se no prolonga- mento das formas anteriores de intervengao assistencial. Em Lyon, por exemplo, a esmolaria geral — uma das criag6es mais as relagGes distendidas mais dificil 0 tipo de minimizava o papel da eu nimero aumentoue Poverty and Capitalism in Pre-industrial Europe, op. cit. Na Inglaterra, entre- tanto, as iniciativas do século XVI desembocaram num sistema de “caridade legal” mais elaborado que no continente, ¢ esta particularidade ainda carac- terizara o século XIX inglés. - 48 Texto do edito de abril de 1657: “Edito do Rei sobre a instituigao do hospi- tal geral para a reclusdo dos pobres mendicantes da cidade e subtirbios de Pa- ris”, reproduzido em anexo a primeira edigao de L’histoire de la folie, de Michel Foucault, Paris, Plon, 1961, p. 646 sq. Contudo, a interpretagao da “grande recluso” proposta aqui € diferente da de M. Foucault. Para uma jus- tificativa mais aprofundada desta diferencae de suas implicasoes quanto 2 iaga abordagem genealégica de Michel ult, cf. R. : are aca oe ian. a unny of Reading History”; i J. Goldstein (éd.), Foucault and the Writing of History Today, loc. cit. 75 see das politicas municipais da Renascenca ~fech: d de o fim do sé 7 igosi uma torre, © século XVI, mendigos Incorrigiveis” numa torre A cidade funda, em 161 > 0 hospital Saint-Laurent, cujo regu- lamento combina trabalh mendigos*?. Mesma evol mandada pelo poder real também nao marca uma ruptura significativa em relagao As politicas anteriores. E as cidades e aos “grandes burgos” que compete realizar essas medidas, ver- sao diferente mas homéloga da relagao central — local do sécu- lo XVI, quando 0 poder real se apoia nas iniciativas municipais para comandar sua generalizacio™. Quanto as populagées concernidas, a reclusdo, num primei- ro momento, visa apenas aos mendigos domiciliados. Exclui os estrangeiros ¢ os vagabundos que devem sair da cidade e con- tinuam a depender de medidas da policia™', Os individuos ti- dos como mais dessocializados, mais indesejaveis, mais perigosos, * CE. J.P. Gutton, La société et les pauvres, op. cit. Em Paris, deve-se uma ten- tativa do mesmo género a Catarina de Médicis desde 1612: o hospital das Pe- tites-Maisons. Na realidade, a estrutura do hospital geral ou da Workhouse se implanta amplamente na Europa a partir do fim do século XVI, e mesmo an- tesna Italia. Cf. Liss et H. Soly, Poverty and Capitalism in Pre-industrial Euro- pe, op. cit. Cf. também B. Geremek, “Le renfermement de pauvres en Italie (XIV°-XVII siécle)”, in Mélanges en ’honneur de Fernand Braudel, Toulou- se, Privat, 1973, t. I. E necessério convir, pois, que Michel Foucault cristali- zou sobre a fundagao do hospital geral de Paris em 1657 um Trend quase secular e que afeta todo o espaco europeu. *°“Edito de 1662, determinando a fundagao de um hospital geral em todasas cidades e grandes burgos do reino”, Jourdan, Decrouzy, Isambert, Recueil gé- néral des anciennes lois frangaises, Paris, 28 vol. 18, t. XVII p. 18, Para a i ‘etag4o desse processo de assisténcia progressiva pelas instancias cen- trais dos problemas ge assisténcia na linha da teoria da coletivizagao de ner bert Elias, cf. A. de Swaan, In care of the State, Cambridge, Polity Press, 1988. : i iants valides ou vaga- 51 Cf J. Depauw, “Pauvres, pauvres mendiants, mendiants val bonds! Leshésitations de la législation royale”, Revue d’histoire moderne et contemporaine, XXI, julho-setembro de 1974. 76 gio assim excluidos da reclusdo (e nao por meio da reclusao), oO edito de 1662, que preconiza a fundagao de um hospital geral em “todas as cidades e grandes burgos do reino”, deixa claro novamente que se refere aos mendigos “naturais dos lugares ou que af tenham morado durante um ano, bem como as crian- cas orfas ou de pais mendigos”*?. Uma nova declaragao do rei, de 1687, reitera a exigéncia da reclusio, mas condena para sempre os vagabundos as galeras desde a primeira prisao. Os mendigos domiciliados s6 sao condenados as galeras quando da terceira prisao, isto é, depois que, por duas vezes, se mostra- ram rebeldes a solugao “caridosa” da reclusdo que nao é pro- porcionada aos vagabundos. Em sua intengao profunda, a reclusao é antes de tudo um instrumento de gestio da mendi- cancia, no interior de um contexto urbano, para os indigen- tes autéctones. Na linguagem da época, o preambulo do edito de 1657 diz isso quase explicitamente. Refere-se aos “pobres mendigos” ainda vinculados ou vinculaveis 4 comunidade ¢ que Luis XIV distingue como “membros vivos de Jesus Cristo” dos “membros intiteis para o Estado”, vagabundos que, tendo rompido com todo pertencimento comunitario, colocaram-se fora dos limites de uma intervengao da caridade™. Quanto as ¢écnicas que se desenvolvem dentro do hospital geral, representam uma estratégia de inclusao e nao de exclu- sao. A disciplina do hospital geral, o trabalho forgado entre- meado de incessantes orag6es, a aprendizagem da ordem e da regularidade sao as receitas bem conhecidas de uma pedagogia autoritaria, cuja légica sera formulada por Erving Goffman”*, que deve permitir ao recluso, apds 0 perfodo de reeducagao, retomar seu lugar na comunidade de origem e, daf em diante, ser “um membro util para o Estado”. 5? Jourdan, Decrouzy, Isambert, Recueil général des anciennes lois frangaises, op. cit., t. XVII, p. 19. 53 «Edit du Roy portant établissement de I’H6pital général...”, loc. cit., p. 648. 4 EB. Goffman, Asiles, trad. fr. Paris, Editions de Minuit, 1968. 7¥: Os parénteses da reclusao com vocagio reeducativa nao a0, pois, de maneira alguma, contraditérios com o Principio de domiciliagao da assisténcia. Tentam reformuld-lo de modo original, tendo em vista que as condicées Para o exercicio de uma assisténcia por proximidade tornaram-se desfavoraveis. Assim, Luis XIV pode afirmar que age “nao por meio de ordem de policia” ~ que aqui diria respeito “aos membros iniiteis para o Estado”, e em primeiro lugar aos vagabundos — mas “unica- mente por caridade”, isto €, para ajudar os que ainda perten- cem 4 ordem comunitdria®*. A reclusdo nao tem um fim em si mesma. Desenvolve uma estratégia sinuosa que consiste, num. primeiro momento, em fazer um corte em relagao ao meio cir- cundante a fim de, num segundo momento, ter os meios de re- educar o mendigo valido para, num terceiro momento, reintegra-lo. Isso é tao verdadeiro que, apés o fracasso de tal utopia pe- dagégica, o principio da domiciliacio direta prevalece nova- mente. Expressando, no fim do Antigo Regime, o consenso dos espiritos esclarecidos, as Mémoires présentés a l’Académie de Dijon sur les moyens de détruire la mendicité” sAo totalmen- te explicitas a esse respeito: “Entre os diversos meios propos- tos para acabar com a mendicAncia, nenhum parece reunir mais votos do que aquele que devolve os mendigos ao seu lugar de origem [...]. Cada paréquia respondera por seus pobres como um pai de familia por seus filhos”**. Assim, a exigéncia da territorializagao para ser beneficia- rio dos auxilios, ao invés de se atenuar, torna-se maior 4 medi- da que se aproxima o fim do “Antigo Regime”. Uma outra ilustrag4o particularmente significativa é dada pelo grande de- creto real de 1764, “«ltima expressdo solene das ideias da anti- °° “Edit du Roy portant établissement de I"H6pital général...”, foc. cit., p 648. *6 Des moyens de détruire la mendicité en France en rendant les mendiants uti- les a Etat sans les rendre malheureux, Mémoires qui ont concouru pour le prix accordé en 1777 par l’Académie des sciences, arts et belles-lettres de Cha- lons-sur-Marne, Chalons-sur-Marne, 1780, p. 5. 78 ga monarquia™, nas palavras de Camille Bloch’”. Trata-se de um decreto particularmente repressivo, visto que assimila os mendigos validos aos vagabundos e condena-os as galeras quanto aos homens, ea reclusao quanto as mulheres e As crian- gas, ao passo que os doentes € os invélidos serao socorridos em casa ou no hospital, conforme seu estado. Entretanto, no ano seguinte, o vice-chanceler esclarece aos intendentes em que es- pirito é necessario aplicar essa diretriz: “A intengao do rei é que sejam presos todos os mendigos que pedirem esmola a mais de meia-légua além de seu domicilio”. Assim, o mendigo domici- liado escapa da estigmatizacao e das sangoes ligadas a condigao de vagabundo, ¢ 0 vice-chanceler define: “Um mendigo domi- ciliado é aquele que, morando ha mais de seis meses num lugar, s6 pede esmola de vez em quando, tem alguns bens para subsis- tir ou uma profissao, promete trabalhar, e pode, imediatamen- te, ser recomendado por pessoas dignas de fé”**. Essa definigao ambigua € pouco convincente e, concreta- mente, deve ter sido inaplicavel. Mas sublinha 0 peso do fator proximidade: proximidade geografica — medida aqui pela dis- légua — e proximidade social — 0 fato de poder “ser recomendado por pessoas dignas de fé”. Esta inscrigao lo- cal descrimina a mendicancia. E capaz de relativizar a obriga- ¢ao fundamental do trabalho que se torna simples “promessa de trabalhar”, o que praticamente nao quer dizer muito e, con- cretamente, nao € verificavel. Mas expressa a exigéncia de que um individuo ainda vinculado a seu territério social nao seja completamente abandonado. O mendigo valido é, pela meta- de, dispensado de ser valido (apto para o trabalho), se compen- sa tal caracteristica, que o impede de receber assisténcia, como tancia de meia 57 ©. Bloch, Lassistance et Etat en France a la veille de la Révolution, reedi- ao Genebra, 1974, p. 160. Texto da declaragéo de 1764, in Jourdan, De- couzy, Isambert, Recueil des anciennes lois de la France, op. cit., t. XX, p. 74. 58 Citado in Christian Paultre, De la répression de la mendicité et du vagabon- dage en France sous l’Ancien Régime, Paris, 1906, p. 400. 79 fato de se fazer reconhecer— “recomendar” te a uma comunidade territorial. O exercicio de uma tutela comunitdria — respondera por seus lhos” —como pertencen- “cada paréquia Pobres como um pai de familia por seus fi- torso deserters ede ee : : - Prevalece também na Inglaterra através das diferentes poor laws do século XVI, instituindo a Paroquia como a base necessaria da organizacao dos auxilios. Essa orientagao é retomada e reforcada pelo famoso Spee- nhamland Act de 1795: cada pardéquia no s6 se responsabiliza por seus pobres, como também deve assegurar-lhes uma espé- cie de renda minima, garantindo um complemento de recursos calculado com base no prego dos cereais, se o saldrio for insufi- ciente. Como para as poor laws anteriores, 0 financiamento é garantido por contribuigées obrigatérias impostas aos habi- tantes da pardquia. Em contrapartida, os beneficidrios dos au- xilios sao vinculados de uma maneira quase intangfvel a seu territ6rio de origem. Estao por isso a tal ponto sob a dependén- cia dos notaveis locais, que se péde falar a esse respeito de ser- vidao paroquial (parish serfdom*’). O Speenhamland Act representa — no momento em que a “Revoluc&o Industrial” ja se iniciou na Inglaterra, e tal paradoxo sera retomado —a fér- mula mais completa das politicas assistenciais organizadas des- de a Idade Média em torno da necessidade do pertencimento comunitario. Fora da domiciliagao, do duplo sistema de prote- ¢4o que organiza e das obrigagées que imp6e, quase no ha sal- vacga4o para os pobres®. °° K, Polanyi, La grande transformation, op. cit. : © No capitulo IV, discutir-se-4 a transformagao que representa 0 direito | aju- da, proposto pelo Comité para a extingao da mendicAncia, da Assemb ia Constituinte, e votado pela Convengao. Mas ele nao contradiz.a cxigéncia 7 territorializacdo. A nagao é que se torna a unidade verritorial de re ferencia c, fazendo da obrigagio de oor oe core cuercite deste acto pet ignidade de um direito. Entre y C10 ¢ ir pen ae apenas as exigéncias de localizacao do idemene deassisvencia : Tem igualmente, como contrapartida, a exclusao dos estrangeiros. 80 O organograma do atendimento assistencial Assumiu-se 0 risco de reavaliar certas construgées da hist6- ria da assisténcia referentes a dois pontos, alias ligados. Em pri- meiro lugar, quanto ao carater fundador do cristianismo na génese do campo assistencial no Ocidente desde a Idade Mé- dia. A concepgao e a pratica cristas da caridade foram, em ge- ral, modeladas pelas categorias constitutivas da assisténcia. O cristianismo retomou e sobredeterminou 0 critério da inapti- dao para o trabalho, fazendo da miséria do corpo o sinal mais eminente para inscrever 0 pobre em uma economia da salva- gao. Aceitou também que o proximo a quem se deve dirigir 0 amor pela humanidade sofredora seja, preferencialmente, aquele que esta proximo, que esta inscrito em redes de partici- pacgdo comunitaria. Disso resulta, em segundo lugar, uma retificacao do perio- do geralmente admitido para compreender as transformacoes da assisténcia até a época moderna. Mesmo do ponto de vista institucional, o papel da Igreja deve ser lido como continuida- de mais do que como ruptura com as exigéncias de uma gestao da assisténcia de base local. Se as principais praticas assisten- ciais se localizaram primeiro nos conventos ¢ nas instituigdes religiosas, e se, durante muito tempo, a Igreja foi a principal administradora da assisténcia, sua passagem para as autorida- des laicas se deu sem interrupgao. Alids, houve menos passa- gem do que colaborag6es e encaminhamentos incessantes entre uma pluralidade de instdncias, eclesidsticas e laicas, cen- trais e municipais, profissionais — como a ag4o das confrarias — ou pessoais—como as liberalidades das grandes personalidades —, cujas diferengas nao decorrem, absolutamente, da oposig4o en- tre o “ptiblico” e o “privado”. Mesmo a politica de reclusao do século XVII, que passa, amitide, pela expressao de uma vonta- de de controle estatal por parte da realeza absoluta e pela tra- dugao de uma atitude especialmente repressiva (anticaridosa) em relacao aos indigentes, foi impulsionada por Louise de Ma- rillac, uma discfpula de Sao Vicente de Paulo, apoiada pela Sociedade do Santo Sacramento, e deve muito, quanto 4 sua 81 aplicagao, a iniciativa de jesuitas Particularmente empreende- dores que cruzaram a Franga da Bretagne a Provence e de Flan- dres ao Languedoc para a imporem® Duas observagées, no entanto, para evitar um duplo equi- voco sobre o alcance desses propésitos. Primeiramente, o apoio reciproco entre uma economia “crista”, inspirada pela caridade, e uma economia “laica” da assisténcia, comandada por exigéncias administrativas, nao exclui, evidentemente, re- sisténcias e tenses entre as duas orientagdes. Tampouco impli- ca que essas orientag6es tenham sido seguidas ao pé da letra. Em particular, as atitudes populares em relagdo aos indigentes foram, certamente, mais flexiveis do que as prescrigées defini- das nos regulamentos. A esmola para a mao estendida sobrevi- veu a suas intimeras condenagées. A hospitalidade, por exemplo, asopae o pernoite no celeiro, deve ter sido praticada amplamente — felizmente para os indigentes — sem que 0 benfei- tor sempre se perguntasse se o mendigo “merecia” ser ajudado. ‘Tais atitudes podem prevalecer-se da mensagem evangélica do amor ao pr6éximo. Mas também sao encontradas em outras Areas culturais — por exemplo, a hospitalidade mugulmana —e, sem dtvida, em todas as culturas, sobretudo agrarias, que tém tradicao de hospitalidade — ao mesmo tempo que de desconfi- anga—em relagdo aos estrangeiros e aos pobres. Assim, podem estar relacionadas com um sentido religioso mais geral do que aquele que o cristianismo incarna, ou com a consciéncia de uma proximidade social. Realmente, o pequeno camponés ou o trabalhador urbano pode pensar que sé sera excluido se um dia também se tornar totalmente carente e, entao, faz atuar uma solidariedade de condigio®. Desse modo, nao se pode 61 Cf O.H. Hufton, The Poor in Eighteenth Century France, Oxford, 1974, p. 140-144, © Esse sentimento da solidariedade também explica o fato de que a plebe, re- gularmente, tem antipatia pelos policiais do gueto ou pelos “caga-mendigos” que tentam prender os indigentes. Cf. A. Farge, “Le mendiant, un margi- nal?”, in Marginaux et exclus de l'histoire, “Cahier Jussieun® 5”, Paris, UGE, 1979. 82 atribuir apenas a caridade crista tudo 0 que se faz de “caridoso” em uma civilizagao dominada pelo cristianismo. A relagao entre a espiritualidade crista e a assisténcia é igualmente muito mais complexa do que sugere a considera- ao, a que se restringiu aqui, s6 das praticas que prevaleceram socialmente. Formas mais generosas de compaix4o manifesta- ram-se tanto no seio do povo crente quanto entre alguns digni- tarios da Igreja. Sao Francisco de Assis desenvolve o culto da “Senhora Pobreza”®’. Um tedlogo tao eminente como o domi- nicano espanhol Domingo de Soto se opés aos humanistas do Renascimento, erguendo-se contra qualquer restrigdo ao exer- cicio da caridade®. E, sem davida alguma, houve intimeros cristéos que ajudaram seu pr6ximo sem a preocupagao de apli- car as regras canénicas. Os exemplos dessas posigdes certamente mais “evangéli- cas” do que as que prevaleceram oficialmente poderiam ser multiplicados. Porém, é das ultimas que se deve tratar aqui: as do “cristianismo real”, no sentido em que se fala de “socialis- mo real”, isto é, aquelas que historicamente se impuseram para dirigir uma politica da assisténcia. Deste ponto de vista, a Igre- ja fortaleceu mais do que contestou os empreendimentos “sen- satos” de assisténcia aos indigentes que eram objeto de 63 Mas o franciscanismo nao é uma exaltacao da indigéncia como tal. A ques- tio é complexa, notemos aqui somente que o “Poverello” faz uma apologia da frugalidade e da humildade mais do que da pobreza material propriamen- te dita, e que seu ideal € promover uma sociedade, erradicando o saber € 0 po- der tanto quanto a riqueza para se deixar dominar inteiramente pelos valores espirituais. Ademais, este ideal nao prevaleceu, é 0 minimo que se pode dizer, na Igreja. Sobre as orientag6es sociais dos franciscanos, cf. J. Le Goff, “Le vo- cabulaire des catégories sociales chez Saint Frangois d’Assise et ses bio- graphes du XIII siécle”, irr Ordres et classes, Colloque d’histoire sociale de Saint-Cloud de 1967, Paris-La Haye, Mouton, 1972. “ Cf J. Vilar “Le picarisme espagnol”, in Marginaux et exclus de l'histoire, op. cit. De Soto critica particularmente Vives que condenava “a indecéncia da mendicAncia”. De modo mais geral, seria necessario discutir o lugar — po- lémico—ocupado pelas ordens mendicantes na elaboragao das praticas de ca- ridade. 83 classificagées discriminatérias®. Seu impacto inscreve-se, as- sim, numa concepg¢io socioantropoldgica da assisténcia. E evi- dente que, em toda sociedade, um sistema coerente de assisténcia s6 pode se estruturar a partir de uma clivagem entre “bons” e “maus” pobres. Traduzindo para uma linguagem fa- miliar intimeras considerac6es eruditas ou pseudoeruditas ba- seadas em argumentos teoldgicos, morais, filos6ficos, econé- micos, tecnocraticos: caso se comegasse a socorrer todas as formas de caréncia, onde se chegaria? No Ocidente cristao, a instrumentalizagao da caridade permitiu—o que nao € pouco— construir a forma culturalmente dominante dessa exigéncia primeira de limitag4o do campo da assisténcia, reformulando, de modo especifico, os critérios de acessoa ela. Mas, a despeito das declaragées de principio sobre o amor ao préximo em ge- ral, a exaltagao crista de um certo tipo de pobre, que deve estar cumulado de males para ser socorrido, e sua condenagao da preguiga, “mae de todos os vicios”, mantiveram para esses cri- térios um sentido muito restritivo. Em toda sociedade, e uma sociedade crista nao constitui excegao, o pobre deve demons- trar muita humildade e exibir Provas convincentes de seu in- forttinio para nao ser suspeito de ser um “mau pobre”. Segunda preciso: a énfase que se deu a continuidade da problemiatica da assisténcia desde a Idade Média nao deve le- var a entender que se observa, através dos varios séculos, a re- peti¢ao monétona das mesmas peripécias. Os progressos da °° § impossfvel tratar aqui das diferengas entre catolicismo e Protestantismo na producao das politicas de assisténcia, Duas observacdes esquernaticns ape- culo XVI nao é baseada em argumentos sérios (cf. N. Zenon Davis, “Assistance, humanisme et hérésie”, in M. Mollat, Etudes sur Vhistoire de la Pauvreté, op. cit., t. 11). Em segundo lugar, a doutrina protestante da salvagao pelas obras contribuiu para tornar a pobreza mais suspeita ainda e para endu- recer os critérios de acesso aos socorros. Cf. M. Weber, Léthique protestante et l’ésprit du capitalisme, op. cit., etR.H. Tawney, Religion and the Rise of Ca- bitalism: an Historical Study, Nova York, 1947, que sublinkec papel desem- penhado pelos puritanos para fazer da indigéncia uma condigao indigna pela qual é intrinsecamente responsavel a imoralidade do pobre. 84 | | jacdo, o fortalecimento de um poder central, c refi- Sl “ institucionais e das técnicas de in- ento dos dispositivos institucionais art ea 4o introduziram mais do que nuangas nesses desen- volvi pence Assim, a sistematizagao da organizacao dos oe osa partir de uma base municipal no inicio do ee a intervencionismo crescente do poder da realeza diante fi mendicancia, esta “lepra do reino”, da qual se suspeita, cada vez mais, de que seja suscetivel de criar um. problema social grave, marcam etapas essenciais e qualitativamente distintas daestruturagao do social-assistencial. Apesar disso, 0 conjunto dessas praticas continua dominado por dois vetores funda- mentais: de um lado, a relagdo de proximidade entre os que as- sistem e€ OS que sao assistidos; de outro, a incapacidade para trabalhar. Delimita-se a esfera da assisténcia, ou seu nucleo pelo menos, na intersecgao dos dois eixos abaixo. 1. A relagdo de proximidade que deve existir entre o benefi- cidrio dos auxilios e a instancia que os distribui. Quer se trate de esmolas, de abrigo em instituigao, de distribuigdes pontuais ou regulares de auxilio, de tolerancia em relagao 4 mendicancia etc., o indigente tem mais oportunidades de ser assistido 4 me- dida que é conhecido e reconhecido, isto é, entra nas redes de vizinhanga que expressam um pertencimento que se mantém em relagaéo 4 comunidade. Desse modo, confirma-se que o exercicio da assisténcia é, de fato e na medida do possivel, uma analogia da sociabilidade primaria®’. Encontrar-se em situacao de indigéncia € o efeito de uma primeira rupturaem relagio As solidariedades “naturais” ou “espontaneas” que a familia, a vi- zinhanga, os grupos primdrios de pertencimento propiciam. Mas, baseando-se no reconhecimento da inscrigéo em uma co- & Essa “medida do possivel” depende, de fato, de duas variéveis principais: os recursos disponiveis no seio de uma comunidade e a homogeneidade dessa comunidade. O desenvolvimento da urbanizagao e a extensao geografica da area de atendimento (0 Estado no lugar da paréquia ou da municipalidade, por exemplo) tornam dificil o exercicio de uma solidariedade por proximi- dade. Mas ver-se-4 (cf., no cap. IV, os esforcos realizados pelas assembleias re- voluciondrias) que o Estado-nagao pode tentar reativar o imperativo da assisténcia comunitaria pela mediacdo do direito a assisténcia. 8S . wrt eee EA SULIAL Fi munidade territorial cuja domiciliacao é, a0 mesmo tempo, o sinal, © suporte € a condi¢ao (domicilio de atendimento), a as- sist€ncia tenta atenuar as Privag6es, imitando ao maximo essas mesmas relagées de proximidade. Combate 0 risco permanen- te de desfiliagao, procurando reativar essa espécie de contrato social implicito que une os membros de uma comunidade a partir de seu pertencimento territorial. Tais praticas formamo nucleo do complexo tutelar cuja jurisdicgéo, como se vera, ul- (rapassa a assisténcia, visto que tenta também regular as rela- ¢6es de trabalho, e que ultrapassa igualmente o quadro de sociedades pré-industriais, visto que inspira as diferentes for- mas de paternalismo filantrépico que vao atravessar o século XIX. E também um esquema que sera proposto para apreen- der o sentido da volta ao local nas politicas contemporaneas de insercao. 2. O critério da inaptidao para o trabalho. A pobreza e até mesmo a completa indigéncia nao fornecem, absoluramente, titulos suficientes para se obterem os beneficios da assisténcia. Sao atendidos principalmente aqueles que nao podem, por si mesmos, suprir suas necessidades, porque sdo incapazes de tra- balhar. A desvantagem, em sentido amplo (enfermidade, do- enga, mas também a velhice, infancia abandonada, viuvez com pesadas cargas familiares etc.), pode remeter a uma “causa” fa- miliar ou social, auma rupturaacidental das redes primarias de assisténcia, assim como a uma deficiéncia fisica ou psiquica. Mas, além dessas ocorréncias, um critério discriminante essen- cial para ser assistido é, realmente, o reconhecimento de uma incapacidade para trabalhar. O nicleo da assisténcia constitui-se na intersecgao desses dois eixos. Sua extensao depende do sentido, que nao é imuta- vel, dado a cada um dos critérios. Porque a definicgao social da relagao de proximidade e da aptiddo ou da inaptidao para o trabalho muda. Porém, num dado momento, encontrar-se no centro de um atendimento possivel é estar situado no ponto em que esses dois vetores se cruzam com sua carga maxima. E associar a total incapacidade para trabalhar com a m4xima in- serc4o comunitaria. 86 1 A PRULEGAU PROXIMA Esses componentes estruturais do campo assistencial sao mais importantes do que a qualidade dos recursos disponiveis para alimenta-lo. Mesmo num contexto onde existem poucos financiamentos especificos, onde a infraestrutura institucional é praticamente inexistente e os meios de intervengao sao muito rudimentares, o fato de ser indubitavelmente inapto para ga- rantir a subsisténcia pelo trabalho e, ao mesmo tempo, estar inscrito numa comunidade territorial da uma quase certeza de receber auxilio. Em sentido extremo, o invalido que habitual- mente ocupa o mesmo lugar sob 0 portico de uma igreja, fazen- do parte da paisagem social da paréquia, goza de uma espécie de renda minima garantida. Seria possivel ler os desenvolvi- mentos da assisténcia como uma sofisticagéo progressiva dos recursos postos a disposicdo de seu projeto, isto €é, uma especi- alizagdo, uma institucionalizagao, uma tecnicizacao, uma pro- fissionalizagao cada vez mais avangadas a que se associam meios financeiros cada vez mais abundantes. Mas tais transfor- mag6es modificam 0 modo de atualizagdo dos dois critérios sem diminuir-lhes a eficdcia operacional. Evidentemente, trata-se ai da construgao de uma espécie de modelo ideal da assisténcia que sé se realiza plenamente quando os dois vetores, proximidade social e inaptidao para 0 trabalho, se saturam. Contudo, é ainda mais significativo exa- minar as formas de intervengao assistencial que parecem afas- tar-se dele. Longe de refutar a forga do modelo, os aparentes desvios confirmam sua validade se, pelo menos, se faz dele um uso dindmico. Realmente, é preciso interpretar as praticas as- sistenciais reais nao a partir de uma aplicagao mecAnica desses critérios, mas enquanto uma ponderagao entre os dois vetores. Assim, uma forte saturagdo em um dos dois eixos pode com- pensar, pelo menos em parte, um déficit no outro, e reciproca- mente. A simulagao da invalidez decorre de uma primeira estraté- gia para adequar-se o melhor possivel ao modelo ideal do aten- dimento assistencial. A exibigdo de doengas, de feridas ou de enfermidades simuladas é, através dos séculos, um tema recor- rente de toda a literatura relativa A mendicancia. Falsos cegos, 87 falsos estropiados, fal: i i ie P ; » falsos feridos que, assim que chega a Noite, argam suas muletas e seus acess6rios Para 0 rega-bofe com Os que povoam o mundo da indigéncia®’. Acontece até mesmo que a preocupagao em despertar a Piedade seja levada a extre- conferido ao trabalho: devem ter dé de mim porque estou visi- velmente incapacitado para realizar qualquer trabalho. Os “pobres envergonhados” representam um caso mais su- il. Podem ser assistidos sem estar fisicamente incapacitados de trabalhar. Os pobres envergonhados sao indigentes que rece- beram uma boa educagiio e ocuparam um lugar de prestigio na sociedade, mas se arruinaram e nao podem mais manter sua posicao. Encontram-se “na miséria pela desgraga das circuns- tancias, sem poder recorrer aos trabalhos bragais, porque os Preconceitos do nascimento, da educagao, da profissao, ou melhor, a influéncia dos costumes lhes proibe tal recurso”. Eo comentador anénimo do século XVIII acrescenta: “A espada, o vestido, a caneta tém, todos eles, seus pobres envergonha- dos, o terceiro estado nao para de produzi-los, nao entre essas classes inferiores dadas As artes puramente mecAnicas mas, sim, entre aquelas que abracaram as artes liberais ou outras profissGes cuja execugdo exige mais 0 trabalho do espirito do que o das maos”®, ‘ Citei esse texto relativamente tardio, porque propée uma definicdo particularmente explicita do “pobre envergonha- do”, mas tal categoria aparece na Italia, na segunda metade °” C£ R. Chartier (6d.), Figures de la gueuserie, Paris, Montalba, 1982. °8 Citado in J.-P. Gutton, La société et les pauvres, op. cit., p. 23. 88 S século XIN. Exprime, na realidade, a desclassificagao so- al. Sua emergéncia esta ligada ao desenvolvimento de uma So- iedade urbana que, aumentando a diferenciagao e a estratifi- vcacgdo sociais, acarreta também uma mobilidade descendente. Porém, conserva sua consisténcia até o fim do Antigo Regime. As- sim, nos registros dos hospitais ou das fundagées religiosas, en- contra-se amitide a referéncia a uma linha especial de orgamento, ‘com anotagées do tipo “Uma familia honesta que nao quer ser identificada. Artista. Quatro paes””’. Com muita frequéncia também, os responsaveis pela assisténcia sao convidados a dar prioridade a essa categoria de pobres pelos quais a par6quia ou a cidade sente-se especialmente responsavel. ‘Tal benevoléncia para com os “pobres envergonhados” de- monstra, em primeiro lugar, o desprezo em que sao tidos os trabalhos bragais: uma pessoa de condigdes, mesmo reduzida a miséria, esta dispensada de se entregar a essas tarefas degra- dantes. Confirma também a valéncia negativa geralmente relaci- onada com a pobreza: o pobre “envergonhado” é envergonhado por mostrar que esta pobre, porque conservou sua dignidade e porque a pobreza é€ indigna para um homem de qualidade. Mas o tratamento especial dedicado a essa forma de indigéncia expli- ca-se, sobretudo, pela forga e pela qualidade do vinculo comuni- tario que esses infelizes conservaram. Conhecidos e reconhecidos por terem ocupado uma posi¢ao de prestigio, conservam um ca- pital de respeitabilidade, cujos dividendos recebem agora, sob a forma de auxilio. Esse forte coeficiente de participagao social chega a compensar a desvantagem paradoxal que representa, para ser ajudado, o fato de poder trabalhar. Essa aparente excecao 4 regra do trabalho nao refuta, pois, sua importancia. De um lado, porque o pobre envergonhado nao est4 dispensado da obrigag4o do trabalho enquanto tal, mas, sim, de um trabalho servil que seria indigno de sua condi- ¢4o: a obrigagdo do trabalho bragal sé pesa sobre a plebe; de outro lado, porque a participagao na assisténcia é feita pela © G. Ricci, “Naissance du pauvre honteux”, loc. cit. ”° Citado in J.-P. Gutton, op. cit. 89 f combinagao de uma relagdo com o trabalho e de uma relagao com a comunidade. Quanto a este segundo eixo, o tratamento dispensado ao pobre envergonhado exemplifica e leva ao ex- tremo o que constitui o fundamento da protegao préxima: a intensidade e a qualidade da inscrigdo em um sistema de inter- conhecimentos. Enquanto o mendigo simulador, membro da ralé sem nenhum crédito, deve fingir e exibir a decadéncia do corpo para forgar a caridade, o pobre envergonhado, ainda que valido, pode se contentar com fazer reconhecer, discreta- mente, seu capital social. Mas 0 tratamento reservado ao mendigo vdlido €, sem du- vida, ainda mais interessante pela intransponivel ambiguidade que revela. A categoria aparece como tal, com um significado imediatamente pejorativo, no inicio do século XIV". Sua emergéncia é mais ou menos contemporanea da do “pobre en- vergonhado”, e nao por acaso. Se existiu, sem nenhuma divi- da, antes dos “ociosos” que viviam de esmolas (nao é a eles que Santo Agostinho visava, por exemplo, através de sua condena- cdo “daqueles que nem mesmo tém vergonha de mendigar”?), coma expansaéo demogrAfica, com o crescimento das cidades e com a estratificagao social que se acentua, eles se tornam macigamente visiveis. Formam uma categoria identificada en- quanto tal e representam um problema para as autoridades ad- ministrativas. A partir desse momento, a maioria das regulamentagdes reitera a proibicao de se lhes dar esmolas. E 0 caso na Franga, em 1351, conforme a determinagao de Joao II, dito o Bom: “Aqueles que quiserem dar esmola, nao devem da-laa ninguém sao de corpo e de membros que possa fazer tarefas por meio das quais possa ganhar sua vida, mas devem dar esmola aos alei- jados, cegos, impotentes e outras pessoas miseraveis”’2. Na In- glaterra, na mesma época, o decreto de Ricardo II, de 1388, 7! Cf. M. Mollat, Etudes sur l’histoire de la pauvreté, op. cit., t. 1, p. 14. 7? “Ordonnance concernant la police du Royaume” in Jourdan, Decrouzy, Isambert, Recueil général des anciennes lois frangaises, op. cit.,t.IV, p. 577. 90 assimila todo mendigo valido (“Every person that goeth to b, ‘ging and is able to serve or labor”) aos Arete ae to beg- * esfera de competéncia da policia, e distingue-os ease = (impotent beggars) que podem exercer sua atividade n ped. prio local, se os habitantes os toleram”>. A mesma distineae se repete através da longa série de condenagées da eos gem e da mendicAncia pelos Valois” e nas primeiras poor laws inglesas do século XVI”°. Oo cerne do problema decorre do fato de que essa distingao nunca pode ser rigorosamente aplicada. Nao sé porque a per- manéncia de atitudes “caridosas” teria contribuido para atenu- ar seu rigor. A despeito da condenag4o moral e religiosa dos “ociosos”, surge a suspeita de que nem todos sao culpados por nao trabalhar e de que também poderiam ser assistidos sem mendigar, desde que pertencessem A paréquia. E 0 sentido da evolugao das poor laws inglesas ao longo do século XVI: par- tindo da condenagao do mendigo “able bodied”, que sera chi- coteado e enxotado (primeira lei de 1535), chegam 4 ambicao de assistir o conjunto de seus indigentes, mesmo sendo vAli- dos’®. Igualmente, na Franga, as instrug6es paraa aplicacao do decreto de 1764, analisadas acima, preparam um tratamento 73 Cf J.C. Ribton-Turner, History of Vagrants and Vagrancy, and Beggars and Begging, Nova Jersey, 1972, p. 60. 74 C£ Jourdan, Decrouzy, Isambert, Recueil général des anciennes lois frangai- ses, op. cit., t. XIII, p. 262-264. 75 Cf. J. Pound, Poverty and Vagrancy in Tudor England, op. cit. 76 Cf, em anexo de J. Pound, Poverty and Vagrancy in Tudor England, op. cit., fragmentos do repertério dos pobres assistidos pela cidade de Norwich em 1570. Mostram que algumas familias de trabalhadores se beneficiavam, efe- tivamente, de auxilios, seja por causa do desemprego, seja porque o salario do chefe de familia era insuficiente para garantir a sobrevivéncia. Igualmen- te, a Esmolaria geral de Lyon, desde sua fundacao em 1534, organiza distri buigdes semanais de pdo para os indigentes que, frequentemente, sao representantes dos pequenos oficios (cf. J. Gutton, La société et les pau- vres..., op. cit.). Mas os remédios propostos por essas “politicas municipais” sempre foram muito desproporcionais a amplitude do problema. Para o con- junto das tentativas de submeter os indigentes validos ao trabalho obrigaté- rio, cf. o capitulo seguinte. 91 particular aos mendigos domiciliados: os que sao Ppresos “g menos de meia-légua” de seu domicilio nao sao mendigos de profissao, mas membros da comunidade dignos de ajuda. A propria reclusao pretende ser um meio de reinserir os mendi- gos domiciliados. Como para os “pobres envergonhados”, o critério da domiciliagao anularia, em ultimo caso, o da inapti- dao para o trabalho a fim de ser assistido. Mas tal posigao nao pode ser mantida até o fim. Quando se faz a desconstrugéo da nogao de mendigo valido, revela-se uma contradigao insoltivel. Como Janus, é um ser de suas fa- ces. De um lado, olha para a assisténcia, porque é carente de tudo; mas de outro, chamaa repressao, pois é apto para o tra- balho e deveria viver do sofrimento de seu corpo. Oraaconde- nagao do mendigo valido éa de um usurpador: alguém que se apresenta como um beneficidrio potencial da assisténcia, quando pertence a esfera da obrigacao do trabalho. Ora se re- conhece, ou se suspeita, que nao é responsavel por sua situacdo €a porta da assisténcia entreabre-se paracle. Porém, diferente- mente da benevoléncia de que se beneficia o “pobre envergo- nhado”, isso nunca se da sem reticéncias. Membro da plebe, nao dispée de capital social. E sobre pessoas de sua espécie, “de condi¢ao vil”, que pesa de maneira implacavel a condenacgao biblica: “Ganharas 0 pao com o suor de teu rosto”. Certamen- te, mas © que acontece, entao, com aquele que nao pode ga- nha-lo, porque nao pode trabalhar, nao Por incapacidade e, sim, por nao ter trabalho? Toda a histéria da assisténcia se move com essa contradi- cdo. Apresenta e reitera a exigéncia da incapacidade de tra- balhar para ter o beneffcio dos auxilios, e também amitide a adapta ea trai. E por isso que todas as tentativas s4o claudican- tes no melhor dos casos e fracassam na maioria das vezes. Nao s6 por falta de recursos materiais, de meios financeiros, huma- nos ou institucionais adequados. Tropecamna impossibilidade de retrabalhar completamente os problemas que a indigéncia valida suscita dentro das categorias especificas da assisténcia. Enquanto se trata de criangas abandonadas, velhos impoten- 92 tes, invalidos, doentes indigentes etc., enquanto se est4 no qua- dro da consideragao da desvantagem’’, nao se est4 diante de . um problema de fundo. Com isso, entendo que as dificuldades, que podem ser muito graves, sao essencialmente de ordem téc- nica, financeira, institucional. A incapacidade de se autossus- tentar por parte de pessoas que podem trabalhar suscita, em » contrapartida, o problema fundamental que, historicamente, o mendigo valido foi o primeiro a apresentar. Dirige a assistén- cia a pergunta da esfinge: como transformar um mendicante de auxilios em um produtor de sua propria existéncia? Esta questao nao pode ser respondida porque a “boa resposta” nao é do registro assistencial mas, sim, do registro do trabalho. Assim, a partir da ambiguidade carregada pelo mendigo valido, desemboca-se num desdobramento e numa dramatiza- cao da questao social. Esse personagem representa a transicao concreta para reintroduzir, na categorizacao geral do inforti- nio, esta forma especifica e essencial da desgraca do povo: a decadéncia da miséria trabalhadora ou, pior ainda, dos mise- raveis que nao tém trabalho. 77 © que nao significa, evidentemente, que esse “tratamento da desvanta- gem” se reduza a uma categorizacao naturalista, sem correspondéncia coma situagao social e com a relacao de trabalho: as “caridades” de Lyon sio majo- ritariamente povoadas de “velhos”, e sobretudo de “velhas”, antigos opera- rios, operdrias ou vitivas de operarios da indistria da seda ou dos pequenos oficios urbanos (cf. J.-P. Gutton, La société et les pauvres, op. cit.). Ainvalidez por idade faz com que se beneficiem da assisténcia, com a condigao, entretan- to, de que sejam nascidos em Lyon ou moradores dessa cidade ha mais de dez anos. No entanto, esses “velhos” também apresentam em filigrana a questao do trabalho: é a insuficiéncia dos recursos conquistados durante a vida ativa que os condena a indigéncia no crepiisculo de sua existéncia. Percebe-se, as- sim, que o advento dos seguros ligados ao trabalho € que representaré a “solu- ao” para esse problema, como ser a solugao para o problema da indigéncia valida em geral (cf. capitulo VI). 93

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