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No PRINCIPIO, UM LUGAR: A ARQUEOLOGIA RELIGIOSA be MICHEL DE CerTEAU Eduardo Gusmdo de Quadros* eg.quadros@brturbo.com.br Resumo: Apesar de nao ter sistematizado sua teoria acerca da experiencia religiosa, Michel de Certeau realizou-a em diversas obras. Neste artigo, busca-se reconsteuir, em linhas gerais, seu modelo de anilise, partindo da visto geral que propos acerca das cigncias humanas, das ciéncias da rel Patavas-cuave: Religido, hermenéutica, histéria, teologia. Cret & “vir” ou “seguir”. (Cerreav, 1987a, p. 295) Hé uma teoria do fendmeno religioso? Muitos tentaram construi-la, com resultados parciais. Max Weber, em sua sabedoria, ensinava que seria melhor nao partir de uma definigao prévia do que seja religido, mas chegar aela (Weer, 1997, p. 65). O conselho nos parece valido, contudo é dificil de ser exercido na pratica. Precisamos das teorias para observar com mais acuidade, e, por sua vez, a investigagdo cientifica nao pode ser feita sem abstragdes. No caso da histéria, a tensdo costuma ser maior. Afinal, o que carac- teriza o discurso historiografico é a vontade de revelar o particular, como ja estabelecia Aristoteles (1966, p. 78). Para a comunidade de historiadores, 0 fato sempre tem razio, Se essa razio € um logos universal ou uma moti- vagio especifica, nao deixa de ser a forma de a mente atribuir aos eventos certa inteligibilidade. Apesar de sua ampla erudicao em diversas areas, Michel de Certeau considerava-se um historiador. Ele escreveu muito, tratou de diversos assuntos, sendo relativamente dificil encontrar linhas de unidade em * Professor da Universidade Estadual de Goids ¢ da Universidade Catdlica de Goiis. Recebido em 29 de junho de 2006 Aprovado em 4 de setembro de 2006 82 Dossié tamanha dispersio. Seu estilo enigmatico corrobora para tal, afastando os que se aventuram no estudo de seu pensamento. Mas essa dificuldade nao teria motivos? A formagio rigorosa que obteve nao estaria relacionada com as exigéncias de seu objeto privilegiado de andlise: JEXPEREHEIaFeBIOSa® A linguagem truncada nao demonstraria um respeito pela fala mistica que tentou decifrar recorrentemente em sua obra? E essa a tarefa que assumimos neste artigo: tentar delinear os prin- cipios de andlise certaunianos, visando a elaboragao de um modelo que auxilie os estudos da religiao. Para isso, primeiramente, apresentaremos algumas pré-condigdes para o diilogo interdisciplinar nas ciéncias hu- manas. A abordagem dos fendmenos religiosos exige essa forma de aproximagao mais ampla, saindo das restritas fronteiras disciplinares. Em segundo lugar, abordaremos af1GEReneUitiCa praicada PORGEHEAm A Iém de ser um assunto fundamental para as ciéncias humanas, a teoria da interpretacao constitui um dos tépicos centrais para o entendimento da obra do pensador francés, como demonstrou Ahearne (1995). Em terceiro lugar, tratamos da presenga insuspeita da teologia na area que mais con- tribui atualmente para a elaboragdo de pesquisas acerca das manifestagées religiosas: as denominadas ciéncias da religido. Se a fala (logia) sobre a divindade (theos) é um objeto de andlise, a postura teolégica nao entraria também como sujeito de saber? Por fim, levantamos alguns pontos sobre arelagao entre o religioso e o histérico, o que nos remete a reflexao acerca, do estatuto do real e do ficticio na epistemologia cientifica. Michel de Certeau reconsiderou tais temas de modo bastante original, sem cair nos dogmatismos que permeiam o debate entre “modernos’ e “pés-modernos” na teoria historiogréfica atual. O HUMANO E O TRANSCENDENTE ‘Mesmo como uso amplo que fazemos da expresso “ciéncias huma- nas’, seu uso continua problematico, Desde as reflexdes de Foucault apren- demosa manter reservas quando tratamos do humano das ciéncias chamadas “humanas’, Isso porque seu objeto seria “o homem’, Mas o que seria isso? DA para determin4-lo? Isolé-lo? Ou ficaremos com as nogdes metafisicas que atuaram como fundamento das disciplinas dedicadas ao estudo da “humanidade’? Essa nosao possui uma historia bem recente, nao indo além do século XVIII (Foucauzt, 1992, p. 324). Além disso, a idéia de humanidade surgiu marcada pelo movimento de expansio imperialista do capitalismo ocidental. © fato de considerar “o homem’ um objeto assume dimens6es Historia Revista, Goidnia, v. 12, n. 1, p. 81-96, jan./jun. 2007 politicas bastante constrangedoras, geralmente nao consideradas pelos cientistas. até possivel que 0 movimento @$tGEGALSE0 qual Foucault se inseriu tenha radicalizado demais na sua critica 0 humanismo, Conforme essa vertente tedrica, marcante na academia francesa do @S€GI0IKE, seria importante estudar 0 ser humano partindo do que determinava seu com- . Superar a nocao idealista de sujeito surgiu, entao, como uma necessidade tedrica. Mas, em razao de tal “escola” ter entrado em crise, durante a década de 1980, deveriamos rejeitar suas contribuigoes? Vejamos, por exemplo, o que ocorreu com gitemaydashiberdade, Ensinava-se que as estruturas atravessariam todos os atos supostamente livres dos seres humanos. Os modelos explicativos, entio, eram articulados com uma teoria do inconsciente ~ nao necessariamente no sentido freudiano — relacionada aos cédigos, as leis combinatérias, aos condicionamentos nos termos do ha, pelo menos, quatrocentos anos. Nao seria proficuo tentar uma via mais dialética por meio da qual se superem os quadtos epistémicos feéricos do mecanicismo? A famosa distingao diltheyniana entre as ciéncias da natureza, que se baseiam na explicagao, e as ciéncias humanas, fundamentadas na compre- ensio, no soluciona bem a questo (Dictuey, 1978). Ela acaba pressupondo a visto mecanica de mundo ea padroniza para a construgio dos modelos racionais cientificos, para, em seguida, isolar a vida social numa espécie de alm indeterminavel. Ali habitaria a “humanidade” Ou, entao, a divindade. Ebom lembrar que foram os combates contra as teorias “reducionistas” que ajudaram a fundar as chamadas ciéncias da religiio. Como carro-chefe, estava a abordagem fenomenoldgica e seu ideal de captar o fendmeno tal qual se revela. Nada de julgamentos ou explicacées, ensinava-se, pois sagrado seria especifico do religioso e ficaria resguardado em sua dimensio indizivel de misterium (Orr0, 1985)." Apesar de seu “objeto” transcendental, os estudos da religiao que seguiram essa vertente ainda se pretendiam humanas, demasiadamente humanas... O PLURALISMO DISCIPLINAR A grand ‘4 vertente estruturalista na época, reenfatizando 8 Pi 0 valor do ser humano, adveio do @pfogueysenmeneNtico=esstEncaist Eduardo Gusmao de Quadros: 0 principio, um lugar: a arqueologia retigiosa, 83 84 Dossié Michel de Certeau era ligado ao grupo da (@iSRUESBIRHE endo iniciado sua produ¢ao intelectual de certo modo mais afeito a essa vertente. Mais tarde, freqiientando o ambiente universitario dos anos 60, aproximou-se das abordagens estruturais, chegando a fazer parte do grupo de estudos semiéticos coordenados por Algitdas Greimas? Apesar de ter bebido dos grandes marcos tedricos de seu tempo, 0 que inclui também o dialogo com o marxismo, Certeau sempre se posicio- nou com certa independéncia. Talvez o transito constante entre os grupos, sem “fechar” com nenhuma dessas posicées, criasse 0 espaco critico neces- sirio. No entanto, esse lugar nao-classificavel levou a desvalorizacao de sua obra ea certos insucessos durante a carreira, $6 na década de 1990, coma tentativa de superar os grandes modelos tedricos, houve um certo revival de suas idéias, com a reedi¢ao de muitos de seus livros e com estudos sobre a pertinéncia de suas idéias. Para Michel de Certeau, nao existiria uma epistemologia cientifica lanica, seja para a area das “humanas’, seja para as “naturais” Um aspecto importante nas investigacées seria a manutengao do pluralismo dos regi- mes de conhecimento. Cada enfoque possui uma riqueza especifica, modos particulares de operar, ¢ nessas caracteristicas diferenciais se localizaria 0 saber. A proposta vai de encontro ao que costumamos entender como interdisciplinaridade. No geral, o termo é entendido como as possiveis intercessdes entre alguns campos do saber. Tal mescla é vista, muitas vezes, como melhor do que as diversas especializages em curso, mesmo que nio se tenha clareza do resultado a atingir. De maneira mais refinada, tal nogao aparece atualmente sob o titulo de “complexidade” A charmosa palavra funciona hoje quase que como um placebo na solugao de diversas questdes. Além disso, na concepgio de MOE (1995), possivelmente 0 maior divulgador do “/@HSAMEHtOCOMPIEXO. as ciéncias da natureza (chamadas por ele de “nova fisica”) tém por base 0 conhecimento cientifico. Seu modo de articular as diversas areas do saber, inclusive, lembra as concepgGes de Augusto Comte.’ Segundo Certeau, passar de um registro disciplinar a outro, ou, como é comum, misturar os métodos, ¢ uma grande perda, Cabe respeitar os problemas e 0s enfoques de cada area, para que a anilise seja enriquecida. © “diélogo” precisa manter-se intensivamente pluridisciplinar. Exem- plifiquemos através de sua utilizacio da psicandlise. Por mais de vinte anos, Historia Revista, Goianla, v. 12, n. 1, p. 81-96, jan./jun. 2007 Certeau participou dos seminérios de formagao psicanalitica ministrados por Lacan. Em 1964, tornou-se membro fundador da Escola Freudiana de Paris. Apesar da grande erudicao que detinha sobre os textos freudianos, ele era um critico radical da chamada psico-histéria, As teorias psicanaliticas possuiam, ele afirma, um tipo de racionalidade e uma metodologia que nao podem ser simplesmente projetadas 2o passado. O conceito fundamental de inconsciente seria realmente generalizavel? Nem os psicanalistas profissionais tinham certeza disso. Podemos até formular hipéteses através dele, mas nunca construir explicagdes. Do mesmo modo, outras areas de saber circunscrevem um campo, geram um questionario, mas nao podem solucioné-lo com preciso, Até porque cada interpretagao pertence a um regime de historicidade especifico que a condiciona (Cextesv, 1987b, p. 201-202). Uma HERMENEUTICA ESTRUTURAL, Na tentativa de aprofundar a teoria certauniana da interpretacao, Dilthey tentou forjar uma epistemologia para as ciéncias humanas, com as linhas gerais da hermenéutica adentrando nos componentes metodolégicos desse campo do saber. Em seus principios basicos, essa nogao de hermenéutica provinha da teoria formulada por Friedrich Schleiermacher. Schleiermacher era um tedlogo que, para garantir a inclusao da teo- logia na recém-organizada Universidade de Berlim, teve de justificd-la cientificamente. Em seus cursos universitarios, acabou ampliando as técnicas interpretativas e exegéticas do texto biblico, para uma teoria geral da compreensao. A hermenéutica, ele ensinava em 1829, deveria possi- bilitar toda “compreensio do discurso estranho” (SCHLEIERMACHER, 1999, p. 26). O tedlogo alemao considerava os aspectos gramaticos ¢ lingitisticos de um texto relevantes. Contudo, a principal caracteristica dessa herme- néutica geral localizava-se na busca de atingir a “mente” ¢ a intengao do emissor. Em suas proprias palavras, @HSHMeH@Mbied Seta BHO MERIESCODED (GUPeisaMIentOsMetMIAUION) (SciiLeteRMactER, 1999, p. 30). Note-se 0 uso dotermo “arte” j4 que Schlaiermacher fazia parte do movimento romantico alemao e valorizava os aspectos intuitivos. As intengdes do autor seriam atingidas pela intuicao do leitor e assim ocorreria 0 processo de compreensio Eduardo Gusmao de Quadros: 0 principio, um lugar: a arqueologia religiosa. 85 86 Dossié (ScuurieRmacueR, 1999, p. 42), Esse circulo hermenéutico tradicional pode ser assim esquematizado: conceitos: cxjeto — )tenofetor Jinguagem compreensio O idealismo e o individualismo da concepgao romantica, sobrevi- ventes na proposta diltheyniana, foram muito criticados. Habermas, por exemplo, utilizava a nogdo de interesse, como base para reavaliar o ideal hermenéutico. Como se poderia garantir, cle perguntava, que o circulo hermenéutico nao era um “circulo vicioso"? Ao isolar a forga da tradigao cultural no processo de compreensio, 0 esquema interpretativo tornava- se demasiadamente “fechado”, excluindo os dados da posstvel verificagao € correcio interpretativa. Eram interesses, antes de tudo, que orientavam, a compreensio, ele afirmava, ¢ eles nasciam das condigées de reproducao. ¢ autoconstituigao das sociedades humanas (Hasermas, 1987, p. 183 € 217). O interesse primordial seria o da propria conservagio da vide Com isso, Habermas lembra que as atividades investigativas tém uma finalidade pratica. Tanto as “cigncias empirico-analiticas” (da natureza) quanto as “ciéncias hermenéuticas” (humanas) servem de orientacao as aces, sendo, portanto, campos da ordem politica. Em sua ética, sempre havia algo de ideolégico na produgao do conhecimento (Haszrmas, 1987, p. 303 € 218ss) A critica deve fazer parte, entdo, do proceso de compreensio para que se evitem as muitas “distorcdes”, Pelo termo “critica”, cle refere-se a0 trabalho aprofundado da auto-reflexao. Seu modelo para as ciéncias localiza- se no modelo psicanalitico, razo pela gual sua obra contém uma longa analise do método freudiano (Hasermas, 1987, p.236-285). A hermenéutica crftica proposta pelo pensador alemao pode ser graficamente representada da seguinte maneira: Historia Revista, Goignia, v. 12, n. 1, p. 81-96, jan./jun. 2007 conhecimento = sociedade eu do sujeito objeto/real oo interesse Os interesses, desde os somaticos até os sociais, compéem 0 conhe- cimento, O ato de conhecer visa uma pragmitica, um conjunto de agdes/ reagdes na realidade envolvente. O eu que conhece nao est mais, nesse esquema, isolado num suposto vazio. Todavia, contrariando a vertente psicanalitica explorada na obra, Habermas (1996) ressalta o poder auto- reflexivo da consciéncia. Nao deixa de ser curiosa essa confianga idealista surgindo na pena de alguém que ja pretendeu reconstruir 0 materialismo histérico. Nao ha duividas de que as contribuicées do método reflexivo para as ciéncias humanas sao muitas. O realismo do modelo habermesiano, contudo, nos parece demasiadamente positivo e, até certo ponto, ingénuo. A capa- cidade da consciéncia de autocriticar-se, a nosso ver, ¢ bastante limitada. E impossivel extrair 0 eu cognitivo do jogo de palavras ¢ poderes que demar- cam a realidade social. Michel de Certeaus, por stia vez, esgarca as tensdes da tessitura inter- pretativa. Ele propde um modelo interpretativo/explicativo,‘ que incorpora perspectivas estruturais no ato de conhecer, e problematiza de mancira distinta as sla do sujeito com o real. ABIGHEAGINao ¢ simbolizavel, porém constitui aquilo que podemos denominar modos de produgao do saber. O sujeito (S) é atravessado pela linguagem, cindido pelas auséncias que geram a ordem simbélica, tinico meio do conhecer. Entéo, através dessa ordem simbélica, ele constrdi a imagem (I) do objeto (0), que pertence ao real. Os espagos vazios entre eles devemn ser preenchidos lingiiisticamente, para que haja a enunciagao do suber so significa que tanto as auséncias quanto ax presenas iro formatar Eduardo Gusmao de Quadros: 0 principio, um lugar: a arqueologia retigiosa... 88 Dossié O referente, que costumamos confundir coma realidade, fica distante no seguinte esquema: glo eS ' Real oO g I Referente ——~ der ver (normas, hébitos) er azer (desejos, sonhos) Nesses intersticios, emergem os@SMGHOSEIOUBs (aquilo que modifica a relacdo entre sujeito e predicado) listados: @]POeNOMEVEROD (]@EHROPRMVCoracterizar 0 conhecimento, como jogo de poderes, nos leva a considerar as operagdes de forgamento que realizamos para acessar 0 real (o que podemos saber), As trilhas percorridas nao sio criadas do nada; elas surgem de adaptagies das normas metodologicas, das regras sociais, internalizadas — enfim, dos quadros cognitivos referenciais de uma tradicao cultural (arsenal de pré-conceitos) @letSESES:NGSRHE- este (Gelimitando os entes ingiiridos, Fundamentalmente, perpassa todo 0 processo social de constituigo das verdades (0 que acreditamos existir). Por fim, 0 nivel do desejo projeta o sujeito no mundo, engloba o campo motivacional, recobrindo 0 espaco entre a subjetivagao e a objetivacao (para que serve 0 saber). Esses quatro modalizadores do conhecer se cruzam, posicionando o sujeito nos lugares de obervacdo e de fala. Historia Revista, Goffnia, v. 12, n. 1, p. 81-96, jan. /jun. 2007 O RELIGIOSO sITIADO De acordo com essa visao, precisamos estar mais atentos para o que instituem ag{RGHESGORS classificadas @SEMMERLMCOMONENBIOSAS. Elas nao so 1o indistintas do tecido social e um conceito atual nao pode ser (GRP AETLSCOISAS TERA SUETES ePOCAETEROMIEHOSAG mesmo tempo, cada configuragao cria dispositivos que separam ¢ salvaguardam “niveis” nas relagoes de interdependéncia. Assim, eles ficam mais vulneraveis & intencionalidade dos sujeitos. E preciso captar (USgiSOUHESMRCIEMERERETEPO movimento que levou a formacao do conhecimento cientifico, atribuindo a esse regime epistemoldgico o campo da verdade comprovavel, restringiu a capacidade de articulagao da fé com a realidade, Esse registro esté inscrito nas abor- ae dos fendmenos ae Ou eee ea Aabordagem cientifica atribui um espaco ao religioso, pois ela prépria tem seu lugar. O processo de mitificagao ~ ou de transformar em “fabula’, como veremos adiante - de seu campo parece incomodar os cientistas religiosos. Usamos © termo adjetivado, propositadamente, para acentuar a ambigiti- dade pertinente area. Em ultima instancia, a ciéncia € capaz de diluir os temas investigados, questiona sua validade e, até, a relevancia da cosmo- visdo religiosa. Dai a emergéncia reacionaria de um nova area académica ostentar o prestigioso nome, ainda melhor no plural: ciéncias. Tais reagées cientificistas, por parte dos religiosos, surgiram cedo. Jé n@RCROERVID os CERCA HTCABIBHRE articulavam um caminho metodologico. Apés os vos misticos do periodo anterior, a teologia natu- ral foi recolocada como base de amplos sistemas teolégicos. A razio filoséfica voltou a funcionar como ferramenta para explicar a fé, Alguns, inclusive, defenderam que nao seria necess4rio ter {é para produzir teologia (Truce, 1986, p. 255) "A lgreja ficava cada vex mais sitiada no mundo moderno, Para que seu clamor fosse escutado, teve de adaptar-se as novas exigéncias, se nao em set contetido, ao menos na forma de dizer. O campo da exegese do texto sagrado demonstra bem esse proceso. Conforme Certeau (1987a, p. 237), cla seria “CRSSRISTMEEERTin cidade las ieHiciaSHTElGIGSAN' Sua base esta nas disciplinas universitarias: hist6ria, (HERO pOLOGia LNGUSHERAIGLORIAN - arqueologia. Eduardo Gusmao de Quadros: O principio, um lugar: a arqueologia religiosa. 89 90 Dossié Com elas, a andlise do texto religioso basico da cultura ocidental é lvada adlante de mn ORM pene EUR UEROS aa E, a cada dia, as teorias surgem com ar de novidade. Todavia, olhando de forma mais aprofundada, descobre-se que 0 método histérico- critico mudou pouco desde seu estabelecimento na primeira metade do século XIX. Os conceitos incorporados costumam manter-se num impressionante nivel de superficialidade, deixando as questdes episte- mologicas das reas “auxiliares” abandonadas. ‘Mais recentemente, assistiu-se & aproximagao dos estudos biblicos da esfera literdria. Basta dizer que aB®Blia é uma “literatura” ou que se vai estudé-la literariamente, e a questo parece resolvida. POUCO Be reetedeeres doestatuto literario, dos seus condicionamentos, da busca de abstracao social (@ORSGHIIOH SCOTIA SECUIOIX (Neciene, 1990), Além disso, a redugio do nivel religioso, visando ganhar respeitabilidade académica,@HS0RE® No fundo, continua-se dentro dos quadros referenciais da reflexao teoldgica. Uma teologia que nao quer partir do crer. Nas palavras de Certeau (1987a, p. 245), trata-se da colonizagao “de terras ainda estrangeiras rumo a uma cientificidade definida alhures” | A FE FRACA Nao é que o pensador francés seja contra a teologia, Muito pelo contrario. Ele nunca deixou de redigir textos teoldgicos ¢ publicd-los em revislaseclesistcas (EES ea OER nSITETIAUSGBELED) Genie eRMETENERIEANESAEOULEASHTED. No processo da pesquisa, isso leva a mania de perguntar coisas que a religiosidade nao quer dizer. Dentro dessa perspectiva equivocada, ‘compreender” os fendmenos religiosos é sempre, perguntar-hes outra coisa do aguilo que eles quiseram dizer; é intercoga-los a respeito do que nos podem ensinar sobre um estatuto social através das formas coletivas ou pessoais da vida espiritual; @EH@HERCOmMORE PRESET) (Certeau, 1982, p. 143) Historia Revista, Goiania, v. 12, n. 1, p. 81-96, jan./jun. 2007 Qual seria ela? Nao é exatamente a revela¢io. O termo foi apropriado pelas instituigdes eclesidsticas e hoje tornou-se sindnimo de um corpus fixo de textos e documentos. Na visio certeauniana, a teologia seria uma das modalidades de reflexio sobre a experiencia crista; a busca de articulacio do fazer comunitério com o falar da f@ (Crrreav, 1970, p. 590). Fé que é marcada por sua “fraqueza’ Se ela depender de ideologias ou de instituigdes, nao éa fé crista. Por isso, quando trata da exegese biblica, ele coloca Bultmann como excegao as criticas.* O famoso tedlogo alemao, na sua luta contra a “teologia liberal” queria exatamente restaurar a singularidade da experiéncia de fé, que nio se relaciona a dados cientificos, nem estabelece compromissos além dela mesma. A hermenéutica biblica é uma fala da f€ € nfo sobre a fé Burtmtann, 2004). Também, nas outras areas do saber, seria importante considerar “impoder” das palavras. Incorpora-se, assim, toda a postura de desconfianga em relagdo a capacidade lingiifstica de tratar do real, colocada pelo estru- turalismo. No campo teolégico, isso advinha, hé muitos séculos, da mistica ~ ogrande tema de reflexao ¢ pesquisa de Michel de Certeau{@GHiOSis- ne naa Se omer aE Seu tiltimo livro, que tratava do assunto, permaneceu inacabado, Nele, ele GHOGRENGHE intitulando-a (ABU CerrzAv, 1993). A isso as viagens miticas haviam sido reduzidas: uma forma literdria de teor imagindrio. A relagao crenca-descrenca, colocada pelo presente, adentra, portanto, na andlise da documenta¢ao examinada, O lugar atual constitui tanto a técnica quanto o objeto, pois os textos expdem uma falta: “O historiador dos misticos, chamado como eles dizer o outro, reproduz essa experiéncia 20 estud-los: um exercicio da auséncia define simultaneamente a operagio com a qual o historiador produz.seu texto ea que eles constituiram a deles - (Canreau, 1993, p. 21). Esse (GRECO MMMUSENEIA constituinte do proprio trabalho histé- rico © passado jamais serd “reconstrufdo’: Passou, est morto. A pesquis histérica da voz.a esses mortos e fala desses corpos de outro tempo. A historia seria, antes de tudo, uma heterologia, o que realiza “lutos” necessdrios a0 presente (Cenreav, 1982, p. 15). Eduardo Gusmao de Quadros: © principio, um lugar: a arqueologia religiosa... 1 92 Dossié HeTeroLocias COROUSEVOUAGWMNE Po meio da utilizacao das virtudes da fiesao. (HEB HAWHlahistoriografia cientifica é o que lhe possibilita, na pratica, a existéncia. 1ss0 é vélido para todo 0 processo: @GSERCSHCCOSND (GEREAEMERERAIGRIND Un principio, um comeco, um "outeo faz com que ele caminhe no presente, em busca de um arch? 86 atingido ficticiamente (Czrreau, 1982, p. 25). Se isso hoje nos parece claro, que hé (GGAPEMATo GERTLER falta-nos ainda encarar com seriedade as consegiiéncias dos recortes mais ou menos arbitrdrios criados no discurso histérico. Arbitrario e ficticio sio termos que incomodam. Os profissionais da histéria costumam evitd-los. Na reflexio certeauniana, sao categorias importantes. Primeiro, devido @ nocio de evento que, fazendo parte do real, torna-se impossivel de ser apreendido. Ele ¢ 0 que “resiste” aos mo- delos explicativos. O conhecimento histérico parte, comumente, do preceito de que os eventos devem ter sido produzidos por “leis”, por regularidades inscritas no proprio acontecer. Ao serem retomadas pela narrativa historiogréfica, tais “leis” aparecem realmente adscritas aos fatos, num de petitio principis. Fssas regras so o que Michel de Certeau chamou de ‘iC@Oesn@oE (@iHPPelo termo, compreende “ora uma produgio (fingere, parecer, fabricar), ora um disfarce ou embuste” (Cerreav, 1982, p. 301). O relato histérico através dessas operages cria simultaneamente «1m GSAT! (as cita- gies) e © dissimula para torné-lo “explicavel”. Fle tinha escrito essas idéias refletindo sobre 0 tratamento que Freud dera & historia. Retomando o tema quase uma década depois," assim Certeau (1987b, p. 110) resumiu o trabalho de fabricagio teérica: npr! tds to dst ode me O denso pardgrafo expoe as “colagens” das praticas historiogrificas. O jogo narrative ocorre entre no intuito de tornar Historia Revista, Goidnia, v, 12, n. 1, p. 81-96, jan./jun. 2007 pensdveis as pulsagdes sociais. Articula ainda a fic¢io reconstitutiva e os conceitos cientificos. Eles sao entidades estaveis que tentam dar conta do evanescente. Ao invés do acorde harménico, @RUSCURSONIS GHCOGISSODD Sem a tensao das diferencas, nao surgiria a melodia. No PRINCiPIO, UM LUGAR Aquilo que era o sustentéculo do real tornou-se fabula. A historio- grafia, por sua vez, transformou-se no mito da sociedade que rejeitou os mitos (CeRTEAU, 1987b, p. 83). O fim dos fundamentos metafisicos aproximou religido e historia, O dogma, na visio de Michel de Certeau, seria estranho a ambos. Se eles existem, sao uma excrescéncia da razao e/ou da fé. Tanto Deus quanto o real escapam aos humanos.? (CEREPORSERRMOVEMENO (Os: 4v, 19872, p. 295) CHATRTCOAED ((eaMMOS|COnforkiveisietcontemplagay. O convite feito é para uma pere- grinacio epistemoldgica, para uma inquietagdo incessante, para a explo- racao dos limites de cada lugar. Fste é um dos conceitos mais ricos propostos por Certeau: cada lugar possibilita uma enunciago e impede uma problematica (Certeav, 1982, p. 77); autoriza, sustenta ¢ interdita um discurso (Cenreav, 1987a, p. 265); traz uma equivocidade aos saberes (Cenreau, 1987b, p. 78). Impossivel fugir desse principio (arché): a voz que iguala (logos), ignorando seu lugar, profbe a percepsao incessante da beleza da alteridade. IN THE BEGINNING, A PLACE: THE RELIGIOUS ARCHEOLOGY OF MICHEL DE CeRTEAU Ansreact: Although he hasn’t systemized his theory concerning the religious experience, Michel de Certeau praticed it in several works. In this article, he researches in rebuilding his framework of analyses, proceding from his general vision about Human Sciences, Sciences of Religion and History. Key woos: Religion, hemeneutic, history, theology. Notas 1, Ecurioso como as nogdes rominticas ¢ irracionalistas de Rudolf Otto fizeram escola nos estudos religiosos. Confortavelmente foi conferido um “objeto” a essa érea do saber que nio pode scr definido, Ainda hoje esse termo impreciso é colocado como tema basico de investigacio no campo das ciéncias da religido. Eduarda Gusmao de Quadros: 0 principio, um lugar: a arqueologia religiosa... 94 Dossié 2. Este autor tentou construir um modelo de andlise ~ 0s quadrados semisticos -, no qual as leis da significacdo seriam objetivas ¢ independentes do enunciador (Greimas, 1973). 3. Ele fez um grifico sobre a interagio dos regimes de conhecimento, em que coloca a fisica no centro, a biologia envolvendo-a, e a antropologia como 0 ‘campo englobante (Mozny, 1995, p. 75). 4. Ressaltamos que Michel de Certeau nunca 0 elaborou dessa forma. Essa figu- ragio didatica que criamos visa compreender e expor melhor sua teoria epistemolégica 5. Para ele, a questo nao era o desencantamento do mundo, mas “v desencan- tamento do saber religioso” (Crateav, 1991, p. 137). 6. O clogio est numa nota de rodapé: “A obra de Bultmann foi a tinica que agiton erenovou a epistemologia da exegese” (Cerreav, 1991, p. 238). Quando faleceu em 1986, Certeau estava redigindo 0 segundo tomo da obra. Ainda hoje esse material no foi editado, devido a questdes judiciais com a herdeira testamentiria, Luce Gierd, ¢ a familia dele. 8. O texto “A ficgao da histéria - a escrita de Moisés ¢ 0 Monoteismo” foi apresentado num congresso psicanalitico na Franga em 1969, e o segundo, “O romance psicanalitico: literatura e historia” em um congresso de mesma natureza, em 198]. Ambos partem de uma reflexo sobre a referida obra de Freud. 9. Sobre Deus, uma narrativa importante para Certeau é a do pedido de Moisés para v2-Lo (Ex. 33, p. 18-23). O real, Lacan costumava defini-lo como “um furo’ ReFeréncias Auzarne, J. Michel de Certeau: interpretation and this other. Oxford: Polity Press, 1995, Anustore1ss. Poética. Tradugio de Eudoro de Souza. 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