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”:
EM DEFESA DA CLASSE COMO CATEGORIA BÁSICA DE ANÁLISE1
1. INTRODUÇÃO
Com o tempo, foi-me ficando a idéia de que mesmo este futuro que
inventamos nos 80 já era coisa do passado. (...) [De modo que]
organizando agora aqueles escritos para publicação em livro, não
imagino outra palavra para designar a nossa vontade de então: um
sonho (Guimarães, 1998: 11-12)
Como deve ter ficado evidente nos parágrafos anteriores, nos assentamos no
1Originalmente esse texto consiste na discussão teórica que serve de base para uma pesquisa
acerca das “classes exploradas, intelectuais e movimentos sociais na Bahia (1974-1998)”.
Aproveito para agradecer as precisas e generosas críticas realizadas pelos(as) colegas da
Equipe de Redação, as quais procurei contemplar nesta versão final dentro de minhas
possibilidades.
2 A título de ilustração, vale registrar os excelentes exemplos das dissertações de José
Por outro lado, queremos deixar bem claro que, justamente por se tratar de um
desafio a um só tempo teórico e prático e, mais que isso, pela adoção de uma
perspectiva marxista de análise, boa parte das inquietações aqui formuladas
não encontrarão sua realização plena neste texto, aguardando, portanto, o
confronto demiúrgico da realidade concreta.
Não é tão simples, nem se trata de um “fim de mundo” que possa ser deduzido
com tanta ligeireza. Ora, se é verdade que a leitura mais percuciente dos
fenômenos sociais tem demandado a incorporação de outras dimensões (de
gênero, etnia, geração ou ecológica, para ficar nas mais recorrentes) dos
sujeitos neles envolvidos, e que a caracterização pioneira baseada no
proletariado (também entendido como classe dos/as trabalhadores/as ou
operários/as) perdeu parte de sua abrangência pelos motivos acima aludidos,
as classes permanecem, ao nosso ver, como uma formação social dotada de
vitalidade explicativa a exigir, isso sim, uma formulação mais precisa e aberta a
tais enriquecimentos3.
Após rejeitar as três primeiras acepções pela sua restrição à esfera política
(necessária mas não suficiente para a definição de uma situação de classe), e
a seguinte pelo caráter negativo e não dialético nela implicado (toda exclusão
supõe uma possível e desejada inclusão sistêmica), resta-nos abandonar
também a cada vez mais usual categoria de classes populares, a qual,
malgrado o longo percurso no pensamento social brasileiro (cf. Sader e Paoli,
1988), apresenta o inconveniente insuperável de esvaziar os conflitos entre os
diversos grupos sociais com interesses materiais não somente diferentes
como, no mais das vezes, antagônicos, unindo os desiguais e separando os
similares. Além do que a contraposição de povo (do latim populus, “conjunto de
pessoas que vivem em sociedade”) é elite (do francês élite, “o que há de
melhor numa sociedade”), e, no discurso político, invariavelmente “povo”
somos sempre nós; “elite”, nosso/a vizinho/a...
3 Todavia, apesar de controversa e contestada por inúmeros flancos, trata-se de uma noção
reconhecida pelos próprios críticos como “o mais útil e o mais problemático dos conceitos
usados por historiadores e cientistas sociais” (cf. Beynon, 1996: 254), sobremaneira por trazer
embutida a relação entre agência e determinação estrutural.
em que bases os grupos podem ser situados na estrutura social, e (2) a
interpretação das experiências subjetivas e das percepções individuais, pois
sempre se pode alegar que estas, independentemente de sua localização,
pensam e agem de modo indeterminado. Neste item 2 nos dedicaremos à
primeira ordem de problemas, reservando o item seguinte para a discussão de
um corolário dela, qual seja a localização dos estratos médios na estrutura de
classes (a polêmica classe média).
Partamos, pois, dos clássicos a ela dedicados, não sem antes registrar um
certo espectro que ronda estas indagações, uma como que “maldição” dos
textos de Marx e Weber (1864-1920) acerca da classe: enquanto o célebre
capítulo LII de O Capital ficou quase por iniciado, o famoso “Classe,
estamento, partido”, de Weber, ainda que bastante desenvolvido, também
permaneceu inconcluso, sendo igualmente publicado postumamente, o que
significa que, nem Weber e, muito menos, Marx, puderam em vida dirimir
possíveis ambiguidades das respectivas teorizações e, mais que isso,
utilizações do conceito de classe em suas vastas obras.
Basta recordar, com o velho Thales, o lugar teórico ocupado pelo debate entre
as tais formulações para perceber as consequências deste infortúnio. Não à
toa, uma das mais longas querelas circundará o suposto economicismo da
concepção marxista, por oposição à weberiana: pois, procuraremos demonstrar
que se passa exatamente o contrário4. Mesmo admitindo uma certa
ambiguidade no tratamento conferido por Marx às classes sociais ao longo de
sua obra, na qual convivem (1) a acepção de amplos conjuntos humanos
reunidos segundo o critério objetivo de relações similares com os meios de
produção (como se argumenta no Manifesto do Partido Comunista) e (2) a
introdução do elemento subjetivo, a consciência de classe, especialmente nos
textos especificamente históricos e nas análises das políticas contemporâneas,
anotemos, com Hobsbawm (1987: 36), que “as duas acepções de “classe”
obviamente não são conflituosas. Cada uma delas tem seu lugar no
pensamento de Marx”.
4O que, de resto, é de quando em vez admitido pelos intérpretes, ainda que em ligeiras notas
de rodapé. Vejamos uma delas: “Talvez se possa mesmo afirmar que a associação explícita e
exclusiva do conceito de classe com a esfera econômica seja antes uma contribuição de Max
Weber, que definiu classes sociais – diferentemente dos “grupos de status” ou “estamentos” –
de maneira exclusivamente econômica, segundo o comportamento comum de grupos de
pessoas em relação ao mercado” (Reis, 1991: 435, nota 8).
No caso da primeira, não resta dúvida que Marx vincula a classe à propriedade
(ou não) dos meios de produção, cuja tendência histórica de separação e
concentração conduziria a uma polarização entre trabalhadores e assalariados.
Quanto à segunda pergunta, ele faz dois singelos comentários que hão de
servir de guia para nossa teorização posterior: (1) nem mesmo na sociedade
inglesa, por ele considerada o modo clássico de capitalismo, “essa divisão (...)
aparece de modo puro” (Marx, 1986: 317), ou seja, em cada sociedade
específica há que se reconstruir a estrutura de classes em questão; (2) na
sociedade como um todo (mas na cidade mais que no campo), “estágios
intermediários e de transição (...) encobrem por toda a parte as determinações
de limite, (...) numa infinita fragmentação de interesses de posicionamentos”
(idem: 317-318), redundando que, para além do esquema clássico de duas
(assalariados e capitalistas) ou três classes (inclusos os proprietários de terra),
faz-se necessário inserir outras classes, possivelmente intermediárias.
Basta por ora de textos canônicos. Vejamos, pois, o que tem a nos oferecer o
outro contendor famoso, Max Weber, cuja conceituação de classe foi,
inegavelmente (e bem ao seu estilo), mais sistemática. Partindo de um conceito
circular de classe como “todo grupo de pessoas que se encontra em igual
situação de classe” (Weber, 1982: 212; 1994: 199), ele tende a concebê-la
enquanto conjunto de pessoas (ao contrário de Marx, que a via antes como
relação), concluindo que “o lugar autêntico das “classes” é no contexto da
ordem econômica, ao passo que os estamentos se colocam na ordem social”
(idem, 1982: 227), posto que “a situação de classe é, em última análise,
situação de mercado [de produtos ou de trabalho]” (idem: 214)5.
Porém, não foi apenas com o clássico weberiano que a concepção marxista de
classe teve de defrontar-se. A partir dos anos 50, com o desenvolvimento da
Teoria dos Jogos, mas, sobretudo, com a penetração do próprio Individualismo
Metodológico nas hostes marxistas “de pouca fé”, a partir da década de 1980 o
debate tornou-se cada vez mais acre. Uma obra, editada em 1965,
desempenhou um papel de destaque nesta contenda: A lógica da ação
coletiva, de Mancur Olson Jr. Nela, Olson postula a separação analítica do
interesse individual do membro de uma classe do grupo de interesse dessa
classe tomada coletivamente, defendendo que não necessariamente é do
interesse do membro de uma classe agir conforme os interesses de sua classe.
5 Aliás, os melhores comentadores de Weber admitem que, na medida em que a formação dos
grupos não se restringia ao caráter econômico pressuposto nesta definição de classe, ele
utiliza o de estamento (stand), de forma a dar conta do estilo de vida, prestígio etc. (cf. Bendix,
1986: 91).
6 Mais adiante, Olson cita Joseph Schumpeter, para quem a teoria das classes de Marx seria
uma “irmã aleijada” da sua interpretação econômica da história (apud Olson, 1999: 124).
eis sua tese central:
Antes de mais nada, deixemos as coisas claras (se possível) como água: não
tomamos o Marxismo Analítico sequer como marxismo, e não por uma postura
sectária, de uma pretensa “pureza” de um “verdadeiro” marxismo-leninismo,
mas sim em honra de uma coerência mínima: ao fincar no indivíduo (e não nas
classes sociais) sua bases e negar a contradição como peça de toque
explicativa, não parece ser mais nem materialismo nem dialético...7 Ademais, é
o que muitos dos “analíticos”, sobremaneira o mais “claro” deles, Jon Elster,
admitem:
O critério para saber se uma pessoa pode ou não ser caracterizada como
um marxista analítico é a sua disposição de abandonar as visões
marxistas no caso de haver conflito entre as suas concepções e um
argumento empírico ou lógico (...). Não estou dizendo que nossa
abordagem é completamente desprovida de algum compromisso com
idéias marxistas, apenas que devemos ser capazes de abandonar antigas
concepções quando elas não resistem a esse teste relativo (1999: 99)8
7 Um dos mais ferinos dos seus representantes, John Roemer, ao negar a validade do método
dialético, rotula-o de “a yoga do marxismo, (...) muitas vezes usada para justificar uma forma
negligente de raciocínio teleológico” (1989: 23).
8 Não é difícil encontrar outras evidências desta estranha forma de ser marxista destes
“marxistas”. Citemos duas delas: “Estou longe de me sentir seguro de que algo restará, ao
cabo, da teoria marxista da ação de classe” (Przeworski, 1988: 14; 21); “Posições de grande
autoridade tradicional talvez tenham de ser abandonadas” (Cohen, 1990: 195).
Chicago (EUA) e que provocou um acirrado debate com um artigo publicado
em 1982, enuncia as premissas básicas da Teoria da Escolha Racional, que
serve de substrato ao Individualismo Metodológico: (1) as restrições estruturais
não determinam completamente as ações praticadas por indivíduos em uma
sociedade; (2) dentro do espectro de ações factíveis e compatíveis com
aquelas restrições, os indivíduos escolhem as que acreditam lhes trarão os
melhores resultados (idem: 182)9.
contudo, numa novidade nesta literatura (cf. Barreto, 1998: 34; Diniz, 1996: 102 e Scalon,
1998: 342). Merece destaque, porém, a análise de Lebowitz (1988: 212), que, ao responder ao
próprio título do artigo, “Is ‘Analytical Marxism’ Marxism?”, afirma que “não apenas inexiste
muito do Marx de Esquerda no Marxismo Analítico, como, em verdade, trata-se de um anti-
marxismo”.
11 Para uma exposição detalhada desta crítica, ver Cohen (1990: 191); Elster (1989: 204);
Que dizem então estes autores? Ora, após a obra do neo-ricardiano Piero
Sraffa (1898-1983), seguiu-se um intenso debate (não apenas no campo
marxista) acerca da categoria do valor-trabalho e sua conexão com o conceito
de exploração. Enquanto Cohen defende que as relações entre a teoria do
12 De todo modo, em outra obra ele articula a condição de exploração das diversas classes: “a
exploração [dos camponeses] só se distingue da exploração do proletariado industrial pela
forma. O explorador é o mesmo: o capital” (Marx, s.d.: 177, grifos do Autor).
13 Nesta discussão, devemos particularmente às reflexões de Guimarães (1998, sobretudo p.
32-41) e Santos (1998). Quanto ao conceito de exploração dos outros marxistas analíticos,
Elster (1989: 201-202) considera a Teoria da Exploração como um dos poucos elementos do
marxismo tradicional que permanece “vivo”, ainda que Cohen desautorize tal conceituação
(“exclusão dos trabalhadores das decisões cruciais sobre investimentos”) por dizer respeito
antes à subordinação que exploração, posto que “os capitalistas decidem sobre os
investimentos porque se apropriam da mais valia (...). A exploração está nessa apropriação e
não na decisão ulterior sobre o que fazer da mais valia” (Cohen, 1990: 194).
valor-trabalho e o conceito de exploração são irrelevantes, Roemer irá investir
na superação da categoria de exploração através desta teoria e na ampliação
do conceito de propriedade para construir sua Teoria Geral da exploração e
da classe (de 1982), conceituando como ativos econômicos (1) os meios de
produção, (2) as qualificações, (3) a força de trabalho e (4) os meios de
organização. Para ele, então, a exploração material resultará da distribuição
desigual de ativos produtivos, derivando as classes sociais dessa desigualdade
(cf. Guimarães, 1998). Já Wright, em Classes, de 1985, avança nesta
categorização roemeriana, ao diferenciar opressão de exploração14, num
parágrafo que merece ser citado em sua integralidade:
14 Sua formulação original de localizações contraditórias (dentro das relações) de classe (da
sua tese de doutorado, de 1986) era inconsistente do ponto de vista marxista, por basear-se
quase exclusivamente na idéia de dominação, em lugar de exploração, o que não implica
conflito de interesses dos atores como membros de classe, mas refere-se a qualquer conceito
de opressão. Com a obra de 1985 e as posteriores, Wright, reconceitua, a partir da Roemer,
classes possuindo interesses objetivos, recolocando a teoria das classes como teoria do
conflito (cf. Scalon, 1998: 340).
a discriminação sexual pode ser conceituada como uma forma truncada
de exploração feudal. Com efeito, não há posse igualitária de força de
trabalho se um gênero não tem possibilidade de usá-la livremente como
os outros agentes (apud Guimarães, 1998: 40-41)
15 Como ilustração deste caráter contraditório, ver um dos depoimentos contidos no debate
sobre “A luta pela transformação da sociedade”, quando se questiona “se dá pra acreditar
nesses segmentos [a classe média] (...). Não acredito, como classe, não! Aliás, eu não
acreditaria em mim mesmo como classe!” (Cadernos do CEAS, 194: 77).
16 Para uma boa recensão contrapositiva entre as tipologias de classe e os mapeamentos de
estratos nas perspectivas neoweberianas (de John H. Goldthorpe) e neomarxistas (de Wright),
ver Diniz, 1996; Santos, 1998 e Scalon, 1998.
ensaios políticos, oscila como uma “massa flutuante” entre a burguesia e o
proletariado, de personalidade dúbia, ora condenada à escravidão sob o
regime burguês (e, portanto, aliada potencial do operariado e do campesinato),
ora surgindo como “semi-burguesa” e, por conseguinte, partícipe ativa deste
mesmo sistema; mas invariavelmente marcada por apanágios pouco
lisonjeiros: lânguida e covarde, retórica e portadora de ilusões, meio-
conservadora e meio-revolucionária, enfim, “sem fé em si mesma e sem fé no
povo; sem olhos, sem orelhas, sem dentes, uma ruína completa” (Marx, s.d.a.:
51).
Vale notar que, mesmo um autor que rompeu com o marxismo 18, como o
sociólogo recentemente falecido Pierre Bourdieu (1930-2002), reconhece este
nexo de classe dos intelectuais, quando, ao tratar da aliança ambígua entre
estes e os operários, afirma que “os produtores culturais, dominados entre os
dominantes, oferecem aos dominados, mediante uma espécie de desvio de
capital cultural acumulado, os meios de constituírem objetivamente a sua visão
17 Não temos interesse em entrar, de momento, nas querelas dos exegetas do intelectual
italiano, cada qual garantindo “possuir” o verdadeiro Gramsci: uma rápida visão dessa disputa
de paternidade pode ser atestada através das obras de Coutinho (1981) e Dias et al (1996),
sintomaticamente intituladas, respectivamente, Gramsci e O outro Gramsci. Para uma
apreciação instigante desta multiplicidade de interpretações, ver Cunha, 2001.
18 De acordo com ele, o marxismo seria “o mais poderoso obstáculo ao progresso da teoria
adequada do mundo social, progresso para o qual, em outros tempos, ela contribuiu mais do
que qualquer outra” (Bourdieu, 1989: 161).
de mundo e a representação dos seus interesses” (1989: 153-154). Em geral,
porém, esta literatura não materialista tende a concebê-los desvinculados de
posições sociais, como “pessoas que se especializam em símbolos, [que]
produzem, distribuem e preservam formas distintas da consciência. São os
portadores imediatos da arte e das idéias” (Mills, 1976: 161-162).
Dentro desta problemática, cremos que um último desafio teórico ainda restaria
para ser enfrentado: sendo a cultura um modo de produção e reprodução
inserido na estrutura de classes, como os interesses materiais se expressam
ao nível da consciência dos diversos grupos sociais? Ou, dito de forma mais
simples: qual a conexão entre os interesses objetivos e a consciência de
classe? Como se vê, estamos aqui diante da Teoria da Ideologia marxista,
obviamente que numa formulação distinta daquela que a toma como falsa
consciência ou como reflexo das relações econômicas. Muito ao reverso disso,
na nossa concepção a ideologia assume o estatuto de idéias e crenças
(verdadeiras e falsas, pouco importa) que simbolizam condições e experiências
de vida de classes, enraizando-se, por conseguinte, nas práticas sociais que
ela ajuda a estruturar segundo uma visão de mundo que, mais do que mera
representação empírica, é relação vivenciada (cf. Eagleton, 1997).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[EM COLCHETES, O ANO DA PUBLICAÇÃO ORIGINAL]
________________________
* Iraneidson Santos Costa é sociólogo, doutorando em História Social
(Universidade Federal da Bahia) e assessor do Centro de Estudos e Ação
Social (CEAS). Do mesmo Autor, ver “O jumento e a locomotiva” (Cadernos do
CEAS: Canudos, número especial: 173-184. Salvador, Centro de Estudos e
Ação Social, 1997). [icosta@ufba.br]