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IDÉIA DO TEATRO

Que é a coisa teatro? A coisa teatro, como a coisa homem, é muitas, inumeráveis coisas
diferentes entre si, que nascem e morrem, que variam, que se transformam até o ponto de não parecer-
se, à primeira vista, em nada, uma forma a outra. Homens eram aquelas criaturas reais que serviram de
modelo aos anões de Velasquez e homem era Alexandre Magno, que foi o maior “gato” de toda a
história. Porque uma coisa é sempre muitas e divergentes coisas, interessa-nos averiguar se, através e
em toda essa variedade de formas, não subsiste, mais ou menos latente, uma estrutura que nos permita
chamar a inumeráveis e diferentes indivíduos “homem”, a muitas e divergentes manifestações, “teatro”.
Essa estrutura que, sob suas modificações concretas e visíveis, permanece idêntica é o ser da coisa.
Portanto, o ser de uma coisa está sempre dentro da coisa concreta e singular, está coberta por esta,
oculto, latente. Daí necessitarmos des-ocultá-la, des-cobrí-la e fazer patente o latente. Em grego, estar
coberto, oculto, se diz lathein, com a mesma raiz de latejar, latente. Dizemos que o pulso lateja, não
porque se move, mas sim porque é o oculto, ou latente dentro do corpo. Quando conseguimos dar à luz
o ser oculto da coisa, dizemos que averiguamos sua verdade. Pelo visto, averiguar significa fazer
evidente algo oculto e o vocábulo com que os gregos “verdade”_ aletheia _ resulta no mesmo
significado: a equivale a des; por tanto aletheia e des-ocultar, des-cobrir, des-latentizar. Perguntar-nos
pelo ser do Teatro equivale, em conseqüência, a perguntar-nos pela sua verdade. A noção que nos
entrega o ser, a verdade de uma coisa é sua Idéia. Vamos tentar fazer-nos uma idéia do Teatro, a idéia
do Teatro.
Suponhamos que a única vez que vimos e falamos a um homem coincidiu com a hora em que
esse homem sofria um dor de estômago, ou tinha um ataque de nervos, ou 40 graus de febre. Se
alguém, depois, nos perguntasse que opinião temos sobre o que esse homem é, teríamos o direito de
decidir seu caráter e seus dotes? Não. Nós o conhecemos quando esse homem não é propriamente
aquele homem, porém a ruína daquele homem. É condição de toda realidade passar por esses dois
aspectos de si mesma: o que é em plenitude, ou em perfeição, e o que é quando é ruína. Para usar um
esplêndido termo do esportismo, que teria entusiasmado Platão_ claro, porque provém dele_ ao ser com
plenitude chamamos “estar em forma”. E assim oporemos o “estar em forma” ao “estar em ruína”.
Assim como faríamos mal em definir um homem segundo sua aparência, quando o vemos enfermo, o
Teatro e toda a sua realidade devem ser definidos segundo seu “estar em forma” e não em suas
modalidades deficientes e arruinadas. Aquele explica e esclarece estes e não o contrário.
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Ruína! _ de ruir_ o que veio abaixo, o caído, cadente ou decadente. É lamentável que tudo que
existe no Universo, não exista com plenitude e perfeição, porém que, sempre à graça e à virtude mais
perfeitas, não chegue inexoravelmente a hora de sua ruína. Nada mais há mais melancólico, por isso os
românticos, já desde Poussin e Cláudio de Lorena, que foram os protorromânticos, buscam as ruínas, se
estabelecem no meio delas com delícia e entregam seus olhos à volúpia do pranto. Porque os
românticos se embriagam de melancolia e bebem com deleite o Porto ou o Madeira de suas lágrimas.
Agrada-lhes ter à vista essas paisagens, donde se vêem torres moribundas, colunas decapitadas,
aquedutos desvertebrados. Foi isso o que, já no século XVII, pintaram Poussin e Cláudio de Lorena.
Os românticos descobriram a graça das ruínas. Dizia Emerson que, como cada planta tem seu parasita,
toda coisa tem seu amante e seu poeta. Há, com efeito, os enamorados das ruínas e é bom que os haja.
E também têm razão. Porque o arruinado, como se disse, é um dos dois modos de ser da realidade.
Aquele homem, faz anos tão poderoso, com seus montes de dinheiro, vemos hoje arruinado. Quando
jovens, vamos a uma cidade e descobrimos uma mulher maravilhosa, que parecia feita de pura luz e
pura vibração, com suas faces de pele tensa e polida, cheias de reflexos, como uma jóia de cerâmica.
Ao fim de muitos anos, voltamos a passar por aquela cidade, perguntamos por aquela mulher e o amigo
nos responde: “Se você a visse agora! É uma ruína!” O que não quer dizer que essa ruína não seja ainda
uma delícia, só que outra delícia. A mulher que já não é jovem possui a alma mais saborosa. A uva, na
hora da vindima, do outono, precisamente porque passaram por ela todos os sóis do estio, conseguiu
fazer com eles sua infinita doçura.
Todo um lado da realidade e, muito especialmente, todo um lado das coisas humanas consiste
em ser ruína. Diz-nos Hegel:

Quando lançamos um olhar para traz e contemplamos a história do passado humano o


que vemos primeiro são as ruínas. A história é mudança e essa mudança tem, de imediato,
um aspecto que nos produz pena. O que nele nos deprime é ver como a mais rica criação,
a vida mais bela encontra na História sempre seu ocaso. A história é uma viagem entre as
ruínas do egrégio. Ela nos arrebata aquelas coisas e seres mais nobres e mais belos pelos
quais nos interessamos; as paixões e os sofrimentos que nos destruíram eram transitórios.
Tudo parece ser transitório, nada permanece. Que viajante não sentiu essa melancolia?
Quem ante as ruínas de Cartago, de Palmira, de Persépolis de Roma, não meditou sobre a
caducidade dos impérios e dos homens, quem não sentiu pesar sobre o destino tal, do que
foi um dia a mais e intensa e plena vida?

Assim vemos que Hegel não era mau escritor e era romântico.
Porém, a mudança tem outro aspecto, olhado por seu reverso, a ruína: que algumas
coisas acabem é condição para que outras venham. Se os edifícios não caíssem em ruínas, se se
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conservassem imperecíveis, não ficaria sobre a face do planeta, a estas horas, espaço para nós
vivermos, para nós construirmos. Não podemos, pois, nos contentarmos em chorar sobre as ruínas; elas
fazem falta. O homem, que é o grande construtor, é o grande destruidor e seu destino seria impossível,
se não fosse também um famoso fabricante de ruínas.
Está certo que, de vez em quando, sejamos românticos e nos dediquemos ao sentimental
esporte de chorar sobre as ruínas das coisas. Porém, se as ruínas das coisas podem servir-nos como gás
lacrimogêneo, para algo não nos podem servir - para definir o ser das coisas. Para isto necessitamos
contemplar o seu “estar em forma”.
A advertência importa muito, porque hoje, ao menos no Ocidente, quase nada há que não
seja ruína e o que vemos nesta hora negativa, nesta hora de dor de estômago, pode nos desorientar
sobre o que as coisas são. Quase tudo no Ocidente é hoje ruína, porém, bem entendido, não pela guerra.
A ruína preexistia, já estava aí. As últimas guerras se produziram precisamente porque o Ocidente já
estava arruinado. Quase tudo está em ruínas, desde as instituições políticas até o Teatro, passando por
todos os demais gêneros literários e todas as demais artes. Está em ruínas a pintura – seus escombros
são o cubismo; por isso os quadros de Picasso têm um aspecto de casa derrubada. Está em ruínas a
música – o Strawinsky dos últimos anos é um exemplo de detrito musical. Está em ruína a economia –
a das nações é teórica. Por fim está em ruína, em grave ruína, a feminilidade, como está!.
Portanto, quando falemos de Teatro, procuremos manter ao fundo e à vista suas grandes
épocas: o século V de Atenas com suas mil tragédias e mil comédias, com Ésquilo, Sófocles e
Aristófanes; os finais do século XVI e começos do século XVII com o teatro inglês e o espanhol, com
Ben Johnson e Shakespeare, com Lope de Veja e Calderón e, em seqüência, a tragédia francesa, com
Corneille, com Racine, e a comédia de Marivaux; com o teatro alemão de Goethe e Schiller, com o
teatro veneziano de Goldoni e a Comedia dell’Árte napolitana; enfim, tenhamos em vista todo o século
XIX, que foi uma das grandes centúrias teatrais.
Necessitamos manter à vista e em fundo tudo isso, porque foi o Teatro em forma, porém,
mais que isso, porque é precisamente do que vamos falar. Tudo isso são as formas divergentes,
particulares e concretas do melhor Teatro; melhor não porque nos sintamos comprometidos a estimar
tudo isso, porém, seja qual for a nossa admiração pessoal, tudo isso foi, na realidade, da História
humana a realidade mais eficiente do Teatro. Não devemos esquecer, sobre esse fundo ilustre e
objetivamente exemplar, todas as outras formas menos ilustres do Teatro, menos consagradas, de
algumas das quais, talvez, renasça amanhã o teatro sobre suas presentes ruínas. Uma última advertência
preliminar: quando dizemos que devemos ter à vista o Teatro de Ésquilo, de Shakespeare, de Calderón
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etc, não se pense que esse titulo cobre apenas obra poética de Ésquilo, de Shakespeare as obras
dramáticas que esses poetas compuseram. Seria uma injustiça. Não foram esses gênios poéticos que
sozinhos e por si – ao menos enquanto foram exclusivamente poetas – puseram ou mantiveram em
forma o Teatro. Isso seria uma torpe abstração. Por Teatro de Ésquilo, de Shakespeare, de Calderón
entenda-se, além disso e inseparávelmente, junto com suas obras poéticas, os atores que as
representaram, o palco em que foram executadas e o público que as presenciou. Para esclarecer o que é
o teatro, necessitamos de todos esses ingredientes.
Teatro!
Não há, talvez, na língua uma palavra que não tenha várias significações; quase sempre
tem muitas. Entre essas significações múltiplas, os lingüistas costumam distinguir uma que chamam a
significação, ou sentido forte da palavra. Esse sentido forte é sempre o mais preciso, o mais concreto,
diríamos o mais tangível. Fala-se de Teatro. Pois bem, partamos do sentido forte desta palavra, segundo
o qual o Teatro é, antes de tudo, nem mais nem menos, um edifício – um edifício de determinada
construção. Para o edifício onde se apresentam espetáculos puramente musicais, os gregos tinham outra
palavra: chamava-se odeion, odeon, auditório.
Observe-se a planta baixa do interior de um teatro. Aí temos o que é o Teatro. Não se
pode desprezar esse sentido, o mais humilde da palavra, o mais usado no falar das pessoas e o mais
efetivo na vida de cada um de nós. Se se abandonar essa primeira significação do teatro – a mais
simples, a mais trivial, a que está mais a mão – que o Teatro é um edifício – corre-se risco de saltar toda
a restante realidade teatral, a mais sublime, a mais profunda, a mais substantiva.
Partindo pois, deste esquema arquitetônico, vai-se fazer marchar nosso pensamento em
rigoroso itinerário dialético. Pensar dialeticamente quer dizer que cada passo mental que damos nos
obriga a dar outro novo passo; não um passo qualquer, a capricho, porém outro passo determinado,
porque o já visto em primeiro lugar da realidade que nos ocupa – e agora é a realidade Teatro – nos
descobre, queiramos ou não, outro novo lado ou componente de que não se tinha advertido. É pois, a
coisa mesma, a realidade mesma Teatro que vai guiar os passos mentais, que vai ser o condutor.
O Teatro é um edifício. Um edifício é um espaço murado, isto é, separado do resto, do
espaço que fica fora. A missão da arquitetura é construir, frente ao fora, do grande espaço planetário,
um dentro. Ao murar o espaço se dá a esse uma forma interior e essa forma interior que enforma, que
organiza os materiais do edifício é uma finalidade. Por tanto, na forma interior do edifício, descobrimos
qual é, em cada caso, sua finalidade. Por isso, a forma interior de uma catedral é diferente de uma
estação de estrada de ferro e ambas da forma interior de uma residência. Em cada caso, os componentes
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da forma são assim e não de outro modo, porque servem a essa determinada finalidade. São meios para
isso ou aquilo. Os elementos da forma espacial significam, pois, instrumentos, órgãos feitos para
funcionar à vista daquele fim e sua função nos interpretam a forma do edifício. Como diziam os antigos
biólogos, a função cria o órgão. Deve-se dizer que também o explicam. Vice-versa, a idéia do edifício,
que os construtores, portanto, o Estado e particulares juntos ao arquiteto, tiveram, atua como uma alma
sobre os materiais inertes e amorfos – pedra, cimento e ferro – e faz que esses se organizem em uma
determinada figura arquitetônica. Na idéia de Teatro – edifício – tem-se um bom exemplo do que
Aristóteles chamava uma alma ou entelequia.
A parte de dentro de um teatro está por sua vez, dividida em dois espaços: a sala, onde
vai estar o público, e o palco, onde estarão os atores. O espaço teatral é pois uma dualidade, um corpo
orgânico composto de dois órgãos que funcionam um em relação ao outro; a sala e o palco.
A sala está cheia de assentos – as poltronas e os camarotes. Isso indica que o espaço
“sala” está disposto para que uns seres humanos – os que integram o público – estejam sentados e,
portanto, sem nada mais a fazer que ver. Em troca, o palco é um espaço vazio elevado a um nível mais
alto que a sala, a fim de que nele se movam outros seres humanos, que não estão quietos como o
público, porém ativos, por isso se chamam atores. Porém o curioso é que tudo o que os atores fazem no
palco, fazem diante do público e, quando o público se vai, eles também se vão – quer dizer que tudo o
que fazem, fazem para que o público o veja. Com o que temos um novo componente do Teatro. À
primeira dualidade, que a simples forma espacial do edifício nos descobria – sala e palco – se
acrescenta agora outra dualidade que não é espacial, porém humana: na sala está o público; no palco, os
atores.
A coisa começa a complicar-se um pouco e saborosamente, quando, como acabo de
dizer, advertimos que esses homens e mulheres, que se movem e dizem no palco, não são qualquer um,
porém esses homens e mulheres que chamamos atores e atrizes.; isto é, caracterizam-se por uma
atividade especialmente intensa. Ao passo que os homens e mulheres de que o público se compõe,
caracterizam-se por especialíssima passividade. Com efeito, em comparação com o que fazemos o resto
do dia, quando estamos no teatro e nos convertemos em público não fazemos nada, ou pouco mais;
deixamos que nos façam - por exemplo, que nos façam chorar, que nos façam rir. Ao que parece, o
teatro consiste numa combinação de hiperativos e hiperpassivos. Somos, como público, hiperpassivos,
porque só fazemos o mínimo fazer que nos cabe imaginar: ver, nada mais. Certamente, no teatro
também ouvimos, porém, o que ouvimos no teatro, ouvimos como dito por aquele que vemos. O ver é,
portanto, nosso primário e mínimo fazer no teatro. Com isso, às dualidades anteriores – a espacial de
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sala e palco, a humana de publico e atores – temos que acrescentar uma terceira: o público está na sala
para ver e os atores no palco para ser vistos. Com essa terceira dualidade, chegamos a algo puramente
funcional: o ver e o ser visto. Agora, pode-se dar uma segunda definição do Teatro, um pouco mais
completa que a primeira e dizer: o Teatro é um edifício que tem uma forma interior orgânica construída
por dois órgãos – sala e palco – dispostos para servir a duas funções opostas, porém conexas: o ver e
fazer-se ver.
Sempre se ouviu dizer, desde a escola, que o Teatro é um gênero literário, um dos três
grandes gêneros literários que a Perspectiva costuma distinguir: Épica, Lírica e Drama ou Dramaturgia,
a obra teatral. Se nos libertarmos um pouco do hábito mental que essa fórmula tão repetida produz em
nós e, atendendo à realidade que se contempla, quando se pensa “Teatro”, essa noção de teatro como
gênero literário, assim, sem mais, fica-se estupefato. Porque o literário se compõe só de palavras – é
prosa ou verso e nada mais. Porém o Teatro não é só prosa ou verso. Prosa e verso há fora do Teatro –
no livro, no discurso, na conversação, no recital de poesias – e nada disso é o Teatro. O teatro não é
uma realidade que, como a pura palavra, chega a nós pela pura audição. No Teatro não somente
ouvimos, porém, mais ainda, antes de ouvir, vemos. Vemos aos atores moverem-se, gesticular, vemos
seus disfarces, vemos as decorações que constituem o cenário. Desse fundo de visões, emergindo dele,
nos chega a palavra como dita com um determinado gesto, com um preciso disfarce e a partir de um
lugar pintado, que pretende ser um salão do século XVII, ou o Forum Romano, ou um beco da
Mouraria.
A palavra tem no Teatro um função constitutiva, porém muito determinada: é secundária
à representação, ou espetáculo. Teatro é, por essência, presença e potência, visão – espetáculo – e,
como público, somos, antes de tudo, espectadores, e a palavra grega significa exatamente isto:
miradouro.
Temos pois, razão de ficarmos estupefatos, quando refletimos um instante sobre o dito,
segundo o qual, o Teatro é um gênero literário. A estup-efação é o efeito que produz os estup-efacientes
e o estup-efaciente mais grave e, por desgraça mais comum, é a estup-idez.
A dramaturgia é somente secundária e parcialmente um gênero literário e, portanto,
ainda a parte que tem de literatura não se pode contemplar separadamente do que a obra teatral tem de
espetáculo. O Teatro – literatura – podemos ler em nossa casa, à noite, de chinelos. Porém sua
realidade, o mais essencial do teatro, não nos aparece bem sem ser preciso sair de casa e ir a ele. Se o
primeiro sentido forte e comum, fecundissimamente ingênuo, da palavra teatro é significar um edifício,
o segundo sentido, também forte e comum, seria esse: Teatro é um lugar aonde se vai. Perguntamos,
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com freqüência, uns aos outros: você vai ao teatro hoje? O Teatro é, com certeza, diferente da nossa
casa: é um lugar aonde é preciso ir. E este ir a que implica um sair de nossa casa é, a raiz dinâmica
dessa magnífica realidade humana que chamamos teatro.
O Teatro, por conseguinte, antes que um gênero literário, é um gênero visionário ou
espetacular, em enérgico e superlativo sentido. O teatro não acontece dentro de nós, como se passa com
outros gêneros literários – poema, novela, ensaio – porém se passa fora de nós, temos que sair de nós,
de nossa casa e ir vê-lo. Também o Circo, a Tourada, por serem espetáculos, pertencem à mesma e
divertida família do Teatro. O Circo e os Touros seriam primos do Teatro: o Circo, seu primo enviezado
e a Tourada, seu primo torto.
Que vemos no cenário? Por exemplo, vemos a sala de um castelo – palácio medieval, no
norte da Europa, que se abre longamente sobre um parque, precisamente o parque de Elsinor; vemos a
margem de um rio que se desliza com marcha lenta e triste, árvores que sobre suas águas se inclinam
com vago pesar – álamos e um salgueiro chorão que deixa cair seus ramos. Vemos uma jovem trêmula
que leva flores e ervas nos cabelos, na roupa e nas mãos e avança pálida, o olhar fixo em um ponto da
grande distância, como olhando sobre o horizonte, onde não há nenhuma estrela. Mas há uma estrela, a
mais linda estrela, a estrela nenhuma. É Ofélia demente, coitada, que vai descer ao rio. Descer ao rio,
em chinês, significa morrer. Isto é o que vemos.
Porém não vemos isso! Sofremos uma ilusão de ótica? Porque o que, na verdade, vemos
são papelões pintados; o rio não é rio, é pintura; as árvores não são árvores, são manchas de cor. Ofélia
não é Ofélia, é ... Beth Goulart!
Como ficamos? Vemos um ou vemos outro? O que propriamente achamos ali, sobre o
palco, ante nós? não há dúvida: achamos as duas coisas: Ofélia e Beth Goulart. Porém não as achamos
como se fossem duas coisas, e sim uma só. Apresenta-se Beth Goulart, que representa Ofélia. Quer
dizer, as coisas e as pessoas no palco se apresentam com o aspecto ou com a virtude de representar
outras que não são elas.
Isso é formidável. Esse fato tão trivial que acontece, cotidianamente, em todos os teatros
do mundo é, talvez, a mais estranha, a mais extraordinária aventura que ao homem acontece. Não é,
literalmente, mágico, que possamos estar hoje nos camarotes e poltronas de um teatro, numa grande
cidade e, ao mesmo tempo, seis ou sete séculos atrás, na brumosa Dinamarca, junto ao rio que rodeia o
palácio do rei e vendo e vendo caminhar, com seu passo sem peso, esta chamazinha lívida que se
chama Ofélia? Que outra coisa no mundo está mais perto de ser mágica e extraordinária?
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Precisemos um pouco mais: aí está Beth Goulart cruzando o palco às cegas; o mais
surpreendente é que está sem estar – ela está para desaparecer em cada instante, como se escamoteasse
a si mesma e conseguir que no seu vazio se aloje Ofélia. A realidade de uma atriz consiste em negar sua
própria realidade e substituí-la pelo personagem que representa. Isto é re-presentar: que a presença do
ator sirva não para apresentar a si mesmo, porém para apresentar outro ser diferente dele. Beth Goulart
desaparece como Beth Goulart, porque fica coberta, tapada por Ofélia. Da mesma forma, as instalações
ficam cobertas por um parque e um rio. De forma que o que não é real, o irreal – Ofélia, parque do
palácio – tem a força, a virtude mágica de fazer desaparecer o que é real.
Se a alguém perguntamos o que ali acontece, teremos a seguinte resposta: primeiro,
Ofélia e um parque; após, em segundo plano, Beth Goulart e umas telas pintalgadas. Dir-se-ia que a
realidade se retirou ao fundo para deixar passar, através de si o irreal. No palco, achamos, pois, coisas –
o cenário – e pessoas – os atores – que têm o dom da transparência. Através deles, como através do
cristal, transparecem outras coisas.
Agora podemos generalizar o advertido e dizer: há no mundo realidades que têm o dom
de nos apresentar, em lugar delas mesmas, outras diferentes delas. Realidades assim são o que
chamamos imagens. Um quadro, por exemplo, é uma “realidade imagem”. Não chega a um metro de
comprimento e ainda menos de largura. No entanto, vemos nele uma paisagem de vários quilômetros.
Isto não é mágico? Aquele trecho de terra, com suas montanhas, seus rios, sua cidade, está ali como que
enfeitiçado – em um só metro achamos e, em vez de uma tela, com manchas de cor, vemos Lisboa e o
rio Tejo. A coisa “quadro” pendurada na parede de nossa casa está constantemente se transformando no
Tejo, Lisboa e seus arredores. O quadro é imagem porque é permanentemente metamorfose – e
metamorfose é o Teatro, prodigiosa transfiguracão.
Todos se devem maravilhar com isso, isto é, surpreender-se com este fato tão trivial que
acontece todos os dias no Teatro. Platão afirma que o conhecimento nasce da capacidade de ser
surpreendido, maravilhado, de estranhar que as coisas sejam como são.
O que vemos aí, no palco, são imagens nesse exato sentido: um mundo imaginário: todo
teatro, por mais humilde que seja, é sempre um monte Tabor, onde acontecem transfigurações.
O palco do teatro é sempre o mesmo. Não tem muitos metros de largura, de
comprimento, ou de altura. Consiste em uma tábuas com umas paredes, material trivialíssimo. No
entanto, pensemos em todas as coisas que esse espaço e esse pobre material já foi. Foi mosteiro e
cabana de pastor, foi palácio, foi jardim, foi rua de cidade antiga e de cidade moderna, foi salão. O
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mesmo acontece com o ator. Esse único e mesmo ator foi incontáveis seres humanos: Foi rei, mendigo,
foi Hamlet e D. Juan.
O palco e o ator são a metáfora universal corporificada e isso é o Teatro: a metáfora
visível.
Porém, o que é o metafórico? Tomemos como exemplo a metáfora mais simples, mais
antiga e menos seleta, a que consiste em dizer que uma moça é uma flor. Geralmente, a palavra ser
significa a realidade. Se se diz que a neve é branca, dá-se a entender que a realidade neve possui
realmente essa cor real que chamamos brancura. Porém que significa ser quando digo que um a menina
é uma flor.
Suponhamos que o humilde enamorado, cuja imaginação não chega a mais que dizer de
sua amada que ela é uma flor, a fizesse transformar-se em uma flor. Que espanto! O desventurado
ficaria angustiado, ele não quis dizer, era um modo de falar – ser uma flor é apenas metafórico; não é
um ser no sentido de real, mas um ser no sentido de irreal. Por isso, a expressão mais usada é como: a
menina é como uma flor. Ser como não é o ser real, porém um como-ser, um quase-ser; é a irrealidade
como tal.
Perfeitamente, porém o que acontece, quando acontece uma metáfora? Acontece isto: há
a moça real e há a flor real. Ao metaforizar, ou metamorfosear, ou transformar a moça em flor é
preciso que a moça deixe de ser moça e a flor deixe de ser flor. As duas realidades, ao ser identificadas
na metáfora, chocam-se uma com a outra, anulam-se reciprocamente, neutralizam-se, desmaterializam-
se. A metáfora vem a ser a bomba atômica mental. Os resultados da aniquilação dessas duas realidades
são precisamente essa nova e maravilhosa coisa que é a irrealidade. Fazendo chocar e anular-se
realidades obtemos prodigiosas figuras que não existem em nenhum mundo. Por exemplo, para
compensar a miséria da velha metáfora que serviu de exemplo, recordemos essa outra belíssima de um
recente poeta catalão. Falando de um cipreste, diz que “o cipreste é como o espectro de uma chama
morta”.
O ser é como a expressão da irrealidade. Porém a linguagem demorou muito a encontrar
essa fórmula. Max Müller assinalou que, nos poemas religiosos da Índia, nos Vedas, que são, em parte,
os textos literários mais antigos da Humanidade, a metáfora não se expressa dizendo que uma coisa é
como outra, porém precisamente, por meio da negação; o que demonstra que, para que se produza a
irrealidade, é preciso que duas realidades mutuamente se neguem, se destruam. Quando um poema
védico quer dizer que um homem é forte como um leão diz: forte, não leão. É forte, porém não é um
leão.
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O mesmo ocorre no teatro, que é o como se, a metáfora personificada – portanto, uma
realidade ambivalente que consiste em duas realidades – a do ator e a do personagem do drama que
constantemente se negam. É preciso que o ator deixe durante um tempo de ser o homem real que
conhecemos e é preciso também que Hamlet não seja efetivamente o homem real que foi. É preciso que
nem um nem outro sejam reais e que incessantemente se estejam desrealizando, neutralizando para que
fique somente o irreal como tal, o imaginário, a pura fantasmagoria.
Mas essa duplicidade – o ser, ao mesmo tempo, realidade e irrealidade – é um elemento
instável e sempre nos arriscamos a ficar com somente uma das duas coisas. O mau ator nos faz sofrer,
porque não consegue convencer-nos de que é Hamlet, porém continuamos sempre a ver a pessoa que
ele costuma ser. Ao contrário, as pessoas ingênuas, populares não conseguem entrar em esse mundo
informal, metafórico e irreal, tomando o irreal como real.
A fantasmagoria se solidifica, precipita em alucinações, por pouco instável que seja a
alma do espectador.
Da mesma forma que, para ver um objeto a certa distância, os músculos oculares têm
que dar ao glóbulo do olho o que se chama acomodação, nossa mente tem também que saber
acomodar-se para que consigamos ver esse mundo imaginário do Teatro que é um mundo virtual – que
é irrealidade e fantasmagoria. Há quem, por falta de informação, é incapaz disso. Mas há também
muitas outras causas que podem produzir uma peculiar cegueira para o fantasmagórico.
Citemos um exemplo: em cerca de 1600, Portugal e Espanha convivem reunidos sob o
cetro de Nosso Senhor Felipe III. Essa reunião não significava que Portugal estivesse sob o domínio da
Espanha, nem Espanha sob o domínio de Portugal, porém que ambos os povos estiveram em união
mística e simbolicamente juntos, na pessoa de Felipe III e da varinha mágica que era seu cetro. A união
transitória e fugacíssima de Espanha e Portugal teve um tanto de metáfora no atual bloco.
Estamos, supostamente, em uma aldeia castelã, além da terra da Mancha, e estamos na
cozinha da venda. Ali se reuniu quase todo o povoado, porque acaba de chegar o teatro de fantoches do
Mestre Pedro, que vai dar uma apresentação de seus bonecos. No escuro rincão do vasto recinto se
entrevê, inverossímil, a figura de D. Quixote, comprido, esquálido, desmazelado, tendo nos olhos uma
febre de heroísmo inoportuno.
As figuras da cena representam como o cavalheiro francês, Dom Gaifeiros, primo de
Roldão, vassalo de Carlos Magno, liberta a sua esposa Melisandra, prisioneira dos mouros em
Saragoça. Conseguiu salvá-la, leva-a na garupa de seu bom cavalo, e galopam, felizes, para a doce
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França. Porém, os mouros o descobrem e, em grande tropel, saem em sua perseguição. Chegam tão
próximos, que parece impossível que o casal se salve. Aí, Cervantes nos diz:

_ Vendo e ouvindo tanta mourisma e tanto estrondo, D. Quixote achou por bem dar ajuda aos
fugitivos e, levantando-se, em voz alta disse: “Não consentirei que, em meus dias e na minha presença,
se faça covardia a tão famoso cavalheiro e tão atrevido enamorado, como D. Gaifeiros; detenham-se
mal nascida canalha, não os sigam nem persigam; se não, vão brigar é comigo”; e dizendo e fazendo,
desembainhou a espada e, de um golpe, se pôs junto ao palquinho e, com acelerada e nunca vista fúria,
começou a chover golpes sobre os fantoches mouros, derrubando uns, decapitando outros, estopreando
esse, destroçando aquele, de tal forma que, se Mestre Pedro não se abaixa, se encolhe, lhe cortaria a
cabeça, como se fosse feita de massapão.

Passado o momento de frenesi, Mestre Pedro faz ver ao bom D. Quixote o prejuízo que
seu intempestivo heroísmo causou e lhe mostra os pedaços que restam de seus bonecos, vítimas da
alucinação de sua espada. E então D. Quixote diz com nobre repouso e habitual solenidade que sempre
empregam em seu dizer os homens impelidos pelo destino:

Agora acabo de crer o que outras muitas vezes acreditei: que esses encantadores que me
perseguem não fazem senão por-me diante dos olhos as figuras como elas são e logo as mudam e
trocam pelas que eles querem. Real e verdadeiramente, lhes digo, senhores que me ouvis, que me
pareceu que tudo que aqui se passava era ao pé da letra: que Melisandra era Melisandra; que D.
Gaifeiros era D. Gaifeiros; Marsílio, Marsílio e Carlos Magno, Carlos Magno; por isso me alterou a
cólera e, para cumprir minha profissão de cavalheiro andante, quis dar ajuda e favor e, com esse bom
propósito, fiz o que viram; se me saiu ao contrário, não foi minha culpa, porém dos maus que me
perseguem; e com tudo isso deste meu erro, ainda que bem intencionado, quero eu mesmo acusar-me;
veja Mestre Pedro, o que quer por essas figuras desfeitas, que me ofereço a pagá-las, logo em boa e
corrente moeda castelhana.

Aqui se vê funcionando a primeira dualidade de que partimos – palco e platéia,


separados pelo pano de boca, que é fronteira entre dois mundos – o da platéia, onde conservamos, ao
fim, a realidade que somos, e o mundo imaginário, fantasmagórico do palco. Esse ambiente imaginário,
mágico do cenário onde se cria a irrealidade é uma atmosfera mais tênue que a da sala. Há diferente
densidade e pressão de realidade em um e outro espaços e, como acontece na atmosfera que
respiramos, essa diferença de pressão produz uma corrente de ar, que vai do lugar de maior pressão
para o de menos. A boca do cenário aspira a realidade do público, a suga para sua irrealidade. Às vezes,
essa corrente de ar é um vendaval.
Na pobre cozinha da venda castelhana, soprou aquela noite o vendaval da fantasmagoria
e o mundo imaginário do palquinho de Mestre Pedro, com seu poder de sucção, absorveu a alma sem
peso, sem estabilidade de D. Quixote, a fez passar da sala ao cenário. Isso quer dizer que D. Quixote
deixou de ser espectador, público e se transformou em personagem da obra teatral, quer dizer,
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tomando-a em realidade destruiu sua fantasmagoria. Note-se que, a seu ver, a realidade ali, no palco,
era que os mouros seguiam, realmente, ao autêntico D. Gaifeiros e à autêntica Melisandra e foram os
mágicos que converteram esses seres reais em ridículos bonecos. E além disso, atrás da mágica cauda
branca do cavalinho de papelão, onde galopa Melisandra – Melisandra é o sonho – atrás vai a alma
incandescente de D. Quixote e atrás de sua alma vai seu corpo e, com seu corpo, seu braço e, com seu
braço, o heroísmo absurdo, porém autêntico e cortante de sua espada!
Junet e outros psicopatólogos franceses pouco perspicazes, como, salvo algumas
exceções – Bergson, por exemplo – o foram os pensadores franceses da segunda metade do século
XIX, e cuja influência pesou penosamente sobre o infortúnio intelectual de alguns países, falaram dessa
loucura que consiste na perda do senso do real. O que é uma perfeita tolice. A verdade é o inverso:
essas anomalias mentais revelam uma perda do senso do irreal. É como se a broma não se tomasse
como broma, porém a sério. Todos conhecemos pessoas incapazes dessa agilidade mínima, as quais não
conseguem nunca perceber ao broma como broma.
Aí aparece a diferença substantiva entre circo e tourada, de um lado e Teatro de outro. O
circo e a tourada não são fantasmagorias e sim realidades. No circo há somente um elemento teatral,
um só ator: ora o acrobata, ora o palhaço. É interessante lembrar que a palhaçada, combinada a um rito
religioso foi, em todos os povos, a origem do Teatro. Quanto à corrida de touros é claro que nelas
achamos o único espetáculo que é propriamente espetáculo e, no entanto é realidade, exatamente
realidade. Nada simboliza melhor esse caráter da tauromaquia como a conhecida anedota que
aconteceu, em cerca de 1850, entre o mais famoso toureiro da época, Curro Cúchares e o mais famoso
ator que houve na Espanha, o romântico ator trágico, Isidoro Máiquez. Estava passando Cúchares um
mau momento atrás de um touro e o ator, da barreira, insultava duramente o toureiro. Até que, num
certo momento, achando-se Cúchares diante do touro e não longe da barreira onde se achava o ator, lhe
gritou: “Seu Miquez, ô seu Miquez, aqui não se morre de mentirinha como no teatro!”
Vê-se de que maneira, usando como ponto de partida uma simples inspeção da estrutura
espacial interna de um teatro, onde vemos, imediatamente, a existência de dois espaços, o palco e a
platéia, em função um do outro, pudemos demonstrar o essencial caráter de fantasmagoria, de criação
de irrealidade que é o Teatro. À dualidade de espaços corresponde a dualidade de pessoas – atores e
público – e essa por sua vez, adquire seu pleno sentido na dualidade funcional: os espectadores vêem e
os atores se deixam ver; esses são hiperativos, aqueles, hiperpassivos.
Agora vemos claramente em que consiste a hiperatividade do ator e hiperpassividade do
público.
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Os atores podem mover-se e dizer nas formas mais variadas - trágicas, cômicas,
intermediárias – porém sempre com a condição imprescindível, permanente essencial, de que nada do
que fazem e dizem seja a sério; portanto, seu fazer e dizer é irreal, e, em conseqüência, é ficção, é
broma, é farsa. Conta Kirkegaard que, em um circo, se produziu um incêndio. O palhaço foi
encarregado de avisar ao público, porém esse acreditou que se tratava de mais uma palhaçada e morreu
queimado.
A atividade do ator fica, pois, muito determinada: é fazer farsa; por isso o chamam
farsante. Mais correlativamente, nossa passividade de público consiste em receber dentro de nós essa
farsa como tal, ou, mais adequadamente dito, em sairmos de nossa vida real e habitual a esse mundo
que é a farsa. Por isso, o essencial no Teatro é sairmos de casa e ir a ele – quer dizer, ir ao irreal. Não
existe na língua vocábulo para expressar essa peculiar realidade que somos, quando somos público,
espectadores de Teatro. Não importa; inventêmo-la e digamos: no Teatro, os atores são farsantes e nós,
público, somos farseados, nos deixamos farsear. Com isto veio a concentrar-se, a condensar-se a
imensa realidade humana, riquíssima, multiforme, que e a historia inteira do Teatro, em um só ponto,
como se este fosse sua víscera e raiz: a farsa. Antes de nomeá-la, aprendemos o que significava: e
aquilo que antes se qualificou como talvez a mais estranha, a mais extraordinária aventura, a mais
autenticamente magica que a um homem acontece. Com efeito, na farsa o homem participa de um
mundo irreal, fantasmagórico, o vê, o ouve, vive nele, porem bem entendido, como irrealidade, como
fantasmagoria.
E fato que a farsa existe desde que existe o homem. Ao que propriamente chamamos
Teatro, precederam em longos e profundos milênios da primitiva humanidade outras formas de farsa,
que podemos considerar como Pré-teatro ou pré-história do Teatro. Daí podemos tirar essa
conseqüência: sendo a farsa um dos fatos mais permanentes da historia, isso quer dizer que é a farsa
uma dimensão constitutiva, essencial da vida humana que é, nem mais nem menos, um lado
imprescindível de nossa existência. Portanto, a vida humana não é, não pode ser “exclusivamente”
seriedade, a vida humana é, tem que ser , às vezes, por tempos, “brincadeira”, farsa; que por isso o
Teatro existe e o fato de haver Teatro não é pura casualidade e eventual acidente. A farsa, víscera do
Teatro, resulta ser uma das vísceras de que vive nossa vida e nessa dimensão radical de nossa vida
reside a ultima realidade e substância do Teatro, seu ser e sua verdade.
Não é enigmático, não é mesmo surpreendente, apaixonante, esse estranhíssimo fato de
que a farsa resulte ser consubstancial à vida humana, portanto que, além de outras necessidades
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iniludíveis, necessite o homem ser farseado e, por isso, ser farsante? Porque, não há duvida, essa é a
causa de que o Teatro exista.
Todo o resto de nossa vida é o mais contrario à farsa que se pode imaginar – é constante,
acabrunhadora, “seriedade”.
Somos vida, nossa vida, cada qual a sua. Isso que somos – a vida – não somos nós que a
damos a nós mesmos, porem já nos encontramos submersos nela justamente quando nos encontramos
com nós mesmos. Viver é achar-se, imediatamente, tendo que ser que existir em um orbe imprevisto
que é o mundo, esse “mundo” de agora. Neste mundo de “agora”, podemos, com certa dose de
liberdade, ir e vir, porém não nos é dado escolher previamente o mundo em que vamos viver. Este nos é
imposto com sua figura e componentes determinados e inexoráveis , e, em vista de como ele é, temos
que nos arranjar para ser, para existir, para viver. Vida é ter que ser, queiramos ou não, em vista de
umas circunstâncias determinadas. Esta vida , como se disse, nos foi dada, posto que não a fizemos nós,
porém nos encontramos dentro dela e com ela – assim, de súbito, como, nem por que, nem para que.
Foi-nos dada, porém não nos foi dada pronta, temos que fazê-la, fazê-la nós mesmos, cada qual a sua.
Instante após instante, nos achamos obrigados a fazer algo para subsistir. A vida é algo que não está aí,
como uma coisa, porém é sempre algo que se há de fazer, uma tarefa, um gerundivo, um faciendum. Se
já nos fosse dado resolvido o que temos que fazer em cada minuto, a tarefa de viver seria menos
penosa. Porém isso não existe; em cada instante se abrem ante nós diversas possibilidades de ação e só
podemos escolher uma, temos que decidir nesse instante o que vamos fazer no instante seguinte, sob
nossa exclusiva e intransferível responsabilidade. Como diz um velho ditado índio, “onde um homem
põe o pé, pisa sempre cem sendeiros”. Todo ponto do espaço e todo instante do tempo é para o homem
encruzilhada, é não saber bem o que fazer. É ter que decidir-se e, para isso, ter que escolher. Mais
porque a vida é perplexidade e é ter que escolher nosso fazer, isso nos obriga a compreender, isto é, a
nos encarregarmos da circunstância. Daqui nascem todos os saberes – a ciência, a filosofia, a
“experiência da vida”, o saber vital que costumamos chamar prudência e sabedoria. Estamos
consignados a esta circunstância, somos prisioneiros dela. A vida é prisão, na realidade circunstancial.
Um homem pode tirar-se a vida, porém, se vive, não pode escolher o mundo em que vive. Este é
sempre o de aqui e agora. Para nos sustentarmos no mundo, temos que estar sempre fazendo algo.
Daqui provêm os inumeráveis afazeres do homem. A vida dá muito o que fazer. Assim, o homem faz
sua vida faz comida, faz seu oficio, faz casas, faz visitas ao medico, faz negócios, faz ciência, faz
paciência, faz tempo, faz caridade, faz que faz e faz ilusões. A vida é um onímodo fazer. E tudo isso em
luta com as circunstâncias, porque está prisioneiro num mundo que não pôde escolher. Tudo que nos
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rodeia nos é imposto, queiramos ou não, a isso chamamos “realidade”. Estamos condenados à prisão
perpétua na realidade, no “mundo”. Por isso a vida é tão seria, tão grave, tem peso, nos pesa a
responsabilidade inalienável que de nosso ser, nosso fazer, temos.
Quando alguém perguntou a Baudelaire, onde preferia viver, ele respondeu: Em
qualquer parte, desde que seja fora deste mundo! Com isso, Baudelaire dava a entender o impossível.
O Destino tem o homem irremediavelmente encadeado à realidade e em luta sem trégua com ela. E
impossível a evasão. O ter que fazer-se a sua vida é decidir, a cada instante, com sua responsabilidade o
que fazer, é como segurar a vida a pulso. Por isso a vida está cheia de pesar. A uma criatura assim, o
Homem, cuja condição é tarefa, esforço, seriedade, fadiga, é pesar, lhe é inexcusavelmente, necessário
algum descanso. Descanso de que? De que pode ser? De viver, ou, o que é igual, de estar na
“realidade”, náufrago nela.
Isso é o que, ironicamente, queria dizer Baudelaire: que o homem necessita, de vez em
quando, evadir-se do mundo da realidade, que necessita escapar. Dissemos que isso é impossível, em
sentido absoluto. Porém, não será possível, em algum sentido menos absoluto? Mas, para ir em vida
deste mundo, é preciso que haja outro. Se esse outro mundo é outra realidade, por muito que seja outra,
é realidade, contorno imposto, circunstância. Para que haja outro mundo ao qual valha a pena ir, será
preciso, antes de tudo, que esse outro mundo não seja real, que seja um mundo irreal. Portanto, estar
nele, ser nele, equivaleria a ser, a própria pessoa, uma irrealidade. Seria preciso suspender a vida,
deixar um momento de viver, descansar do peso da existência, sentir-se aéreo, ingrávido, invulnerável,
irresponsável, in-existente.
Por isso, a vida, o Homem se esforçou sempre em acrescentar a todos os afazeres
impostos pela realidade a mais estranha e surpreendente tarefa, uma ocupação que consiste
precisamente em deixar de fazer tudo que fazemos a serio. Esse fazer, essa ocupação que nos liberte
das demais é jogar, brincar. Enquanto brincamos não fazemos nada – nada a sério. O jogo é a mais pura
invenção do homem – não há jogo sem regras – criam um mundo que não existe. E as regras são pura
invenção humana. Deus fez o mundo –este mundo; porém o homem fez o xadrez e todos os outros
jogos. O homem fez e faz o outro mundo, o que não existe, que é pura brincadeira e farsa.
O jogo é, pois, a arte e a técnica de que o homem dispõe para suspender virtualmente sua
escravidão dentro da realidade, para evadir-se, para escapar, para trair-se a si mesmo, deste mundo em
que vive, a outro irreal. Esse trair-se de sua vida real a uma vida irreal, imaginaria, fantasmagórica é
dis-trair-se. O jogo é distração. O homem necessita descansar de seu viver e, para isso, por-se em
contacto, volver-se ou verter-se em uma ultravida Essa volta, ou versão de nosso ser para o ultravital e
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irreal é a diversão. A distração, a diversão é algo consubstancial à vida humana, não é um acidente, não
é algo de que se possa prescindir. Aquele que se diverte não é frívolo, e sim aquele que crê ser
desnecessário divertir-se. Não tem sentido fazer da vida puro divertimento e distração, porque, então,
não teríamos de que nos divertir, nos distrair. A idéia de diversão supõe dois termos: aquilo de que nos
divertimos e aquilo com que nos divertimos.
Eis aqui porque a diversão é uma das grandes dimensões da cultura. Não surpreende que
o maior criador e disciplinador de cultura que já houve, o ateniense Platão, no fim de seus dias, se
entreteve fazendo jogo de palavras com o vocábulo grego que significa cultura  (paideia) e o
que significa jogo, brincadeira, farsa,  (paidia) e nos diga, em irônico exagero, que a vida
humana é jogo e, literalmente, acrescenta: o jogo é sua melhor parte. Não é de estranhar que os
romanos vissem no jogo um deus a quem chamaram exatamente “jogo”, Lusus, a quem fizeram filho
de Baco e – vejam que casualidade – consideravam como fundador da raça lusitana.
O jogo, arte ou técnica da diversão, sendo todo um lado da humana cultura, criou
inúmeras formas de distrair-se e estas formas estão hierarquizadas das mais às menos perfeitas. A forma
menos perfeita é o jogo de cartas. A forma mais perfeitas são as belas- artes, não por uma convencional
homenagem, mas porque conseguem, com efeito, libertar-nos desta vida mais eficazmente que
qualquer outra coisa. Enquanto estamos lendo uma novela egrégia, podem continuar funcionando os
mecanismos de nosso corpo, porém isso que chamamos nossa vida fica literal e radicalmente suspenso.
Sentimo-nos dis-traidos de nosso mundo e transplantados ao mundo imaginário da novela.
O que constitui o cume desses métodos de evasão que são as belas-artes, aquilo que mais
permite ao homem escapar de seu penoso destino, foi o Teatro em suas épocas em que esteve em forma
– quando, por coincidir com sua sensibilidade, ator, palco e autor, conseguia ser plenamente arrebatado
pela grande fantasmagoria do cenário. Em nosso tempo isso não acontece; nem o palco, nem o ator,
nem o autor se acham à altura de nossos nervos e a magica metamorfose, a prodigiosa transformação,
não costumam produzir-se. Nosso Teatro atual não está a altura de nossa sensibilidade e é a ruína do
Teatro. Porém, nessas épocas, a que a principio me referi, gerações e gerações de homens conseguiram
durante muitas horas de suas vidas, graças ao divino escapismo que é a farsa, a suprema aspiração do
ser humano: conseguiram ser felizes.
Essa explanação nos permite definir a estranhíssima realidade que há no Universo e que
é a farsa, ou seja, a realização da irrealidade: nos deu a pista para averiguar por que o homem necessita
ser farseado e, por isso, necessita ser farsante. O homem ator se transforma em Hamlet, o homem
espectador se metamorfoseia em convivente com Hamlet, assiste à vida desse – ele também, pois o
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publico é um farsante, sai de seu ser habitual a um ser excepcional e imaginário e participa em um
mundo que não existe, em um Ultramundo e, nesse sentido, não somente o palco, porém também a
platéia e o teatro inteiro resultam ser fantasmagoria – Ultravida.

ORTEGA y GASSET, José. Ideas sobre el teatro e la novela. 1ª ed. Madrid: Alianza,
1982. p. 25 a 56. Tradução – MEXIAS-SIMON, M. L.
* A referência à atriz Beth Goulart é da tradutora. O autor da conferência citou o nome
de uma atriz européia, que não nos é familiar, portanto não caberia no exemplo dado.

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