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IM OBJETO FUGIDIO: VOZ E “MUSICOLOGIAS”! beth Travassos Embora os fenémenos humanos [...] possam ser examinados em si, independentemente de suas ligagies com a vida social, eles, por natureza, nada mais sito do que concretizagées de relagdes e comportamentos, materializages da vida social e mental. Isto se aplica a fala, que nada mais é que relagées humanas transformadas em som. Norbert Elias (O processo civilizador) RODUGAO, Num ensaio recente, 0 musicélogo Gary Tomlinson (2003) discute o rocesso histérico que resultou na distribuicdo de objetos entre disciplinas wusicoldgicas e dé pistas para pensarmos o lugar que ocupam a voz € 0 can- to nos saberes sobre a mtisica. Vejamos seu argumento. O divércio entre wusicologia — dedicada sobretudo & musica escrita do passado — e etnomusi- logia — dedicada sobretudo &s muisicas das populagdes “primitivas” e folle— reproduz, no plano da ciéncia, as oposig&es homélogas entre “nds” e “eles”, entre “a” musica e “outras” misicas, entre o estudo do texto e o do contexto, entre objeto auténomo e prdtica heterénoma, entre mudanga e estase. Essa divisio, segundo o autor, nao pode ser compreendida independentemente do processo que culminou, no século xrx, na consagragao da nogao de mui- sica “pura”, “abstrata”, representada pela muisica instrumental (tal como co- nhecida na Europa). Nao obstante o prestigio de que haviam desfrutado os fepertérios vocais nesse mesmo universo cultural europeu, principalmente os géneros sacros e a 6pera, a musica instrumental acedeu entao a condigao de representante da “abstragao”. O advento dessa categoria deslocou o foco do pensamento sobre a mu- sica que, ao longo do século XVIII, havia tomado o canto como paradigma da expressio musical, comum a civilizados e selvagens: “Um impulso musi- colégico (ou melhor, cantolégico [...]) mais antigo — diz Tomlinson — prece- de a emergéncia completa das formas modernas historiogréficas e etnogra- ficas...” (2003:33).? Plenamente comensuraveis, 0 canto selvagem ¢ 0 canto fefinado do século XVIII eram exemplares da mesma capacidade expressi- ya, nos textos de pensadores como Vico e Rousseau. A unidade rompeu-se aa com a elevacéo da musica instrumental a categoria “muisica abstrata”. O ar- gumento de G. Tomlinson, sintetizado nesta introdugao, corrobora a suspei- ta de que a posicao relativamente marginal da voz e do canto na musicologia deita rafzes no processo de constituigéo mesma da nogao de muisica erudita. Além do alheamento recfproco entre os multiplos saberes que tém a voz como objeto, ele é de dificil tratamento quando se adota certa modalidade de abordagem musicoldgica. Na condicio de totalidade biopsicossocial (Mauss, 1974[1905]), a voz escapa as apreensdes parciais das varias disciplinas e téc- nicas que dela se ocupam: fonética, literatura oral, fisiologia da voz, actistica musical, canto, etnomusicologia, fonoaudiologia, psicandlise... Esta sittuacio liminar foi percebida por outros pesquisadores. José Roberto do Carmo Jr. (2003), por exemplo, observa que a fisiologia da voz e a fonética articulatéria se ocupam da produgo do som vocal, mas nao do sentido; a lingiifstica tra- ta da linguagem verbal, mas nao do canto, e somente incorpora disting6es de altura, intensidade e duragao sob a rubrica da prosédia, na forma “retrafda” em que aparecem na fala. Segundo a s{ntese de Paul Zumthor: E estranho que, entre todas as nossas disciplinas instituidas, nao haja ainda uma ciéncia da voz. Esperemos que ela se forme em breve: cla traria para 0 estudo da poesia oral tuma base teérica que lhe falta. Abarcaria, para além de uma fisica e de uma fisiologia, uma lingtifstica, uma antropologia e uma historia. (1997:11) Tendo como ponto de partida estas constatages, dou inicio, neste arti- go, a uma discussao do lugar da voz nos saberes sobre a musica. Em segui- da, revejo alguns aspectos da cantométrica (de Alan Lomax) e das etnogra- fias da fala e da miisica, que desenvolveram métodos ¢ nogées importantes, as quais talvez se possa integrar os conhecimentos gerados nos estudos de fonética e actistica. UMA MUSICOLOGIA DA voz? Falar da voz como um objeto fugidio é reiterar uma impressao compar- tilhada por varios autores. Sea repito, é para assinalar a caréncia de termino- logia analitica consensual e aplicavel 4 heterogencidade de estilos vocais po- pulares e folcléricos, no Brasil.? Como professora de etnomusicologia, levo sala de aula gravagées sonoras de repentes e romances, folias de reis, ben- ditos, calangos e outros géneros da tradi¢ao oral brasileira. Aprendi a nao su- bestimar o estranhamento que produzem os sons nasais e metélicos, a voz que “quebra” de um cantador, 0 agudo do “tiple” das folias. Tudo isso tem jue se transformar em matéria de conversa e reflexdo, sob pena de ignorar-se acuriosidade dos estudantes.‘ O siléncio apenas reforcaria a percepgao “clas- ecéntrica” da qualidade vocal dos intérpretes. Mas 0 que se pode dizer sobre essas vozes? Por que nosso vocabulério soa limitado, ingénuo e amador? Os membros da comunidade académica es- 10 habituados a terminologias controladas e uniformes. A metéfora é consi- derada tiltimo recurso, embora seu uso seja freqiiente entre muisicos.’ A con- ulta a literatura dos folcloristas nao ajuda muito, nesse caso da voz. Veja-se o que disse Alceu Maynard de Aratijo, por exemplo, num texto sobre o jon- go em Taubaté, apés (surpreendentemente) admitir que “€ admiravel o senso musical dos jongueiros”: “Quando estao dangando, todos os jongueiros can- tam, fazendo coro. E é bem dificil tentar dangar com uma negra de voz es- ganicada e estridente, cada vez que ela se aproxima da gente, déi-nos 0 ou- vido” (1952:206). Camara Cascudo (1984[1942]), na mesma época (meados do século XX), descreveu assim a voz do cantador nordestino: “dura, hirta, ‘sem maleabilidade, sem floreios, sem suavidade”, e despertou reacao imedia- ‘ta de Mario de Andrade, um atento etndgrafo da voz: Embora ele [Cascudo] conhega dez vezes mais 0 assunto que eu, nao creio que tenha muita razo, pois pude escutar numerosos cantadores no Nordeste ¢ nada percebi de “voz dura, hirta, sem maleabilidade, sem floreios, sem suavidade”, nem vérias outras expresses com que © meu amigo potiguar xingou os cantadores em geral, (Andra- de, 1993{1944]:86) Voltarei, adiante, 4 preocupacao de Mario de Andrade com o canto e com a voz, mas jd sabemos que este autor nao representa a regra — é, sim, a excegio. De qualquer modo, nao € possivel dedicar este artigo & revisao de sua imensa contribuic¢do ao assunto, a qual, por ter sido marcada pelo pro- blema da “nacionalizacao” do canto erudito, e interrompida com sua morte, iio pode ser agora incorporada sem revisio critica. Como falar dos modos de cantar de repentistas, jongueiros, sambistas? ‘Nio sao eles componentes do sentido e do sentimento do canto? Até onde €possivel avangar na descrig4o do repente, por exemplo, sem entrar no ter- reno do estilo vocal para integra-lo 4 andlise? Tem a voz cantada uma forga ilocuciondria sui generis (Zumthor, 1997)? Que a voz individual tem uma fisionomia propria ninguém discute. Sao as “idiossincrasias sociais” que de- sejamos destacar, aquilo que varia

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