Está en la página 1de 38

ORTi Z , Rí"«í?6-. Q'r»^^eo4e -A. J m -ta Aüwtóu'es/v.

Ir,-. ü f i^ Z , I • -fir li w o U m v-icjrcSs -fetvs-VÍütai,


5 vjj , ^>£)j_, ^jOuu-^í) * 6i-aA,-&Z r/Vi- ^ .

O mercado
de bens simbólicos

Se os anos 40 e 50 podem ser considerados como mo­


mentos de incipiência de um a sociedade de consumo, as
décadas de 60 e 70 se definem pela consolidação de um
mercado de bens culturais. Existe, é claro, um desenvolvi­
m ento diferenciado dos diversos setores ao longo desse p e ­
ríodo. A televisão se concretiza como veículo de m assa em
meados de 60, enquanto o cinem a nacional somente se es­
tru tu ra como indústria nos anos 70. O mesmo pode ser dito
de outras esferas da cultura popular de massa: indústria do
disco, editorial, publicidade, etc. No entanto, se podemos
distinguir um passo diferenciado de crescimento desses se­
tores, não resta dúvida que sua evolução constante se vin­
cula a razões de fundo, e se associa a transform ações estru ­
turais por que passa a sociedade brasileira. Creio que é pos­
sível apreenderm os essas m udanças se tom arm os como
ponto para reflexão o golpe m ilitar de 64. 1 O advento do
Estado m ilitar possui na verdade um duplo significado: por
um lado se define por sua dim ensão política; por outro,
aponta para transform ações mais profundas que se reali-

(1) Retomo neste ponto minha argumentação desenvolvida no capítulo


“ Estado Autoritário e Cultura” , irt Cultura Brasileira e Identidade N acional,
op. cir.
RENATO ORTÍZ

zam no nível da econom ia. O aspecto político é evidente:


repressão, censura, prisões, exílios. O que é menos en fati­
zado, porém , e que nos interessa diretam ente, é que o Es­
tado m ilitar aprofunda m edidas econômicas tom adas no
governo Juscelino, às quais os economistas se referem como
“ a segunda revolução ind u strial” no Brasil. C ertam ente os
m ilitares não inventam o capitalism o, mas 64 é um m o­
mento de reorganização da econom ia brasileira que cada
vez mais se insere no processo de internacionalização do
capital; o Estado autoritário perm ite consolidar no Brasil o
“ capitalism o tardio” . E m termos culturais essa reorienta-
tJ ção econôm ica traz conseqüências im ediatas, pois, p arale­
lam ente ao crescimento do parque industrial e do m ercado
interno de bens m ateriais, fortalece-se o p arque in d u strial
de produção de cultura e o m ercado de bens^ u R m lu sl
Evidentem ente a expansão das atividades culturais se
íaz associada a um controle estrito das m anifestações que se
contrapõem ao pensam ento autoritário. Neste ponto existe
um a diferença entre o desenvolvimento de um m ercado de
bens m ateriais e um m ercado de bens culturais. O últim o
envolve um a dimensão sim bólica que aponta p ara proble­
mas ideológicos, expressam um a aspiração, um elem ento
político em butido no próprio produto veiculado. Por isso,
o Estado deve tra ta r de form a diferenciada esta área, onde
a cultura pode expressar valores e disposições contrárias à .
vontade política dos que estão no poder. M as é necessário ^
v en ten d er que a censura possui duas faces: u m a repressjva,
outra disciplinadora. A prim eira diz não, é puram en te ne­
gativa; a outra é mais complexa, afirm a e incentiva um
determ inado tipo de orientação. D u ran te o período 1964-
1980, a censura não se define exclusivamente pelo veto a
todo e qualquer produto cultural; ela age como repressão
seletiva que im possibilita a em ergência de um determ inado
pensam ento ou obra artística. São censuradas as peças tea­
trais, os filmeSj os livros, mas não o teatro, o cinem à ou a
indústria editorial: O ato censor atinge a especificidade da
obra.TírasntrãO a generalidade da sua produção. O movi­
mento cultural pós-64 se caracteriza por duas vertentes que
não são excludentes: por um lado se define pela repressão
A M O D E R N A T R A D I Ç Ã O BR A S I LE I RA

ideológica e política; por outro, é um m om ento da história


brasileira onde mais são produzidos e difundidos os bens
culturais. Isto se deve ao fato de ser o próprio Estado auto­
ritário o prom otor do desenvolvimento capitalista na sua
forma mais avançada.
Seria im portante aprofundarm os mais a questão da
censura. Q ualquer pessoa que se interesse pela história cul­
tural brasileira deste período tem que enfrentá-la. O im por­
tante, porém , é dim ensionar seus efeitos, e não confundir
sua atuação tópica (que é real e considerarem os posterior­
mente no capítulo 6) e a dimensão estrutural do m ercado de
bens culturais. Tomemos como base de raciocínio a Ideolo-
gia da Segu rança N acional, que constitui o fundam entòU ò
pensam ento m ilitar em relação à sociedade. Resum ida­
mente se pode dizer que essa ideologia concebe o E stado
como um a entidade política que detém o monopólio da
coerção, isto é, a faculdade de Trnpor, inclusive pelo em-
“prêgcrdã força, as norm as de conduta a serem obedecidas
por todos. Trata-se tam bém de um Estado que é percebido
como o centro nevrálgico de todas as atividades sociais rele­
vantes em termos políticos, daí urna preocupação constante
com a questão da “ integração nacional” . U m a vez que a
sociedade é form ada por partes diferenciadas, é necessário
pensar um a instância que integre, a p artir de um centro,
a diversidade social. De um a certa forma, o que a Ideologia
da Segurança Nacional se propõe é substituir o papel que as
religiões desem penhavam nas “ sociedades tradicionais” .
Nessas sociedades, o universo religioso soldava organica­
mente os diferentes níveis sociais, gerando um a solidarie­
dade orgânica entre as partes, assegurando a realização de
determ inados objetivos. Não é por acaso, quando lemos os
documentos dos m ilitares, que toda sua apresentação gira
em torno de idéias como solidariedade (no sentido durkhei-
miano de coesão social) e “ objetivos nacionais” , isto é, as
metas a serem atingidas. Procura-se garantir a integridade
da nação na base de um discurso repressivo que elimina as
disfunções, isto é, as práticas dissidentes, organizando-as
em torno de objetivos pressupostos como com uns e deseja­
dos por todos. No entanto, como observa Joseph Comblin.
116 R E N A T O O RT1Z

esse Estado de Segurança Nacional não detém apenas o po­


der de repressão, mas se interessa tam bém em desenvolver
certas atividades, desde que subm etidas à razão de E stad o .2
Reconhece-se, portanto, que a cultura envolve um a relação
de poder, que pode ser maléfico quando nas mãos de dissi­
dentes, m as benéfico quando circunscrito ao poder autori­
tário. Percebe-se, pois, claram ente a im portância de se
atu ar ju n to às esferas culturais. Será por isso incentivada a
criação de novas instituições, assim como se iniciará todo
um processo de gestação de um a polítira He cu ltu ra. Basta
lem brarm os que são várias as entidades que surgem no pe­
ríodo — Conselho Federal de C ultura, Instituto Nacional
do Cinema, EM BRA FILM E, FU NA RTE, Pró-M em ória,
etc. Reconhece-se ainda a im portância dos meios de com u­
nicação de m assa, sua capacidade de difundir idéias, de se
com unicar diretam ente com as massas, e, sobretudo, a pos­
sibilidade que têm em criar estados emocionais coletivos.
Com relação a esses meios, um m anual m ilitar se pronuncia
de m aneira inequívoca: “ bem utilizados pelas elites cons-
tituir-se-ão em fator m uito im portante p a ra o aprim ora­
mento dos componentes da Expressão Política; utilizados
tendenciosam ente podem gerar e increm entar inconfor-
mismo” .3 O Estado deve, portanto, ser repressor e incenti-
vador das atividades culturais.

/
' Se com pararm os a ditadura m ilitar ao Estado Novo
podemos apreender algum as analogias e diferenças que
esclarecem o papel do Estado em relação à cultura. Nas
duas ocasiões, 37 e 64, o que define sua política é um a
visão autoritária que se desdobra no plano da cultura pela
censura e pelo incentivo de determ inadas ações culturais.
D a mesm a form a que o governo m ilitar desenvolve ati­
vidades na esfera cultural, Vargas cria um a série de insti­
tuições como o Instituto Nacional do Livro, o Instituto N a­
cional do Cinem a Educativo, museus, bibliotecas, além de

(2) V er Joseph Comblin, A Ideologia da Segurança Nacional, Rio de Ja ­


neiro, Civilização Brasileira, 1980.
(3) M anual Básico da Escola Superior de Guerra, D epartam ento de E stu­
dos MB-75, ESG, 1975, p. 121.
A M O D E R N A T R A D I Ç Ã O B R A S IL E IR A 117

sua atuação decisiva na área do ensino. Ao lado dessa plêia-


de de promoções o braço repressor do D IP não deixa de se
m anifestar. Talvez p udéssemos .d iz e r que n F .sta d o m i l i t a r
tem um a atuação rriais abrangente, um a vez que a política
culturãT3e C àpânêm a tinha limites impostos pelo próprio
desenvolvimento da sociedade brasileira. Porém , o que dife­
rencia esses dois momentos é que em 64 o regime m ilitar se
insere dentro de um quadro econômico distinto. A relação
que se estabelece, portanto, entre ele e os grupos em pre­
sariais é diferente, eu diria, mais orgânica, pois somente a
p artir da década de 60 esses grupos podem se assum ir como
portadores de um capitalism o que aos poucos se desprende
de sua incipiência. Os cientistas políticos têm insistido que
o golpe não é sim plesm ente um a m anifestação m ilitar, ele
expressa autoritariam ente um a via de desenvolvimento do
capitalismo no Brasil. Esta afirm ação, que no nível da teo­
ria política é b anal, se desdobra no plano histórico de form a
concreta. O livro de Rene Dreifuss m ostra detalhadam ente
como os interesses dos militares e dos em presários brasilei­
ros se articulam p ara a derrubada do regime de G o u lart.4
Os empresários da esfera cultural parecem não escapar à
regra. Hallewel observa que entre o grupo de livreiros que
financiaram as atividades dp IPES estão a A G IR, Globo,
Kosmos. LTB. M onterrey, Nacional. José Olvmpio, Vecchi,
Cruzeiro. SaramCjSRDT* Se lem brarm os que a partir de
1966 é dado um incentivo real à fabricação de papel, e faci­
litada a im portação de novos m aquinários p ara a edição,
percebemos que existe claram ente um a gam a de interesses
comuns entre o Estado autoritário e o setor em presarial do
livro. Talvez o m elhor exemplo da colaboração entre o re­
gime m ilitar e a expansão dos grupos privados seja o da
televisão.6 Em 1965 é criada a EM BRA TEL, que inicia toda
um a política m odernizadora para as telecomunicações.

(4) Rene Dreifuss, 1964: A Conquista do Estado, Ação Política, Pcder e


Jolpe de Estado, Petrópolis, Vozes, 1981.
(5) Laurence Hallewel, O Livro no Brasil, op. c it., p. 462.
(6) Ver Sérgio M attos, “ O Im pacto da Revolução de 64 no Desenvolvi­
mento da Televisão” , Cadernos IN T E R C O M , ano 1, n? 2, m arço de 1982; sobre
as inovações tecnológicas na área da telecomunicação, ver "Telecomunicações:
518 REN A TO ORTIZ

Neste m esm o ano o B rasil se associa ao sistem a in te rn a c io ­


nal de satélites (IN T E L S A T ), e em 1967 é criado u m M inis-
tério de Com unicações. Tem início a constrüçãoliFlTm sis-
tem a HeTmicroondas, que será inaugurado em 1968 (a parte
relativa à A m azônia é com pletada em 70), perm itindo a
interligação de todo o território nacional. Isto significa que
as dificuldades tecnológicas das quais padecia a televisão
na década de 50 podem agora ser resolvidas. O sistem a de
redes, condição essencial p a ra o funcionam ento da in d ús-
_ tria culturái; pressupunha um suporte tecnológico que no
. Brasil, contrariam ente dos Estados Unidos, é resultado de
um investim ento do E stado. Não deixa de ser curioso ob­
servar que o que legitim a a ação dos militares no cam po da
telecom unicação é a própria ideologia da Segurança Nacio­
nal. A idéia da “ integração nacional” é central p a ra a rea­
lização desta ideologia que im pulsiona os m ilitares a p ro ­
mover toda um a transform ação na esfera das com unica­
ções. Porém , como sim ultaneam ente este Estado a tu a e p ri­
vilegia a área econômica, os frutos deste investimento serão
colhidos pelos grupos em presariais televisivos.
Não se pode esquecer que a noção de integração esta­
belece um a ponte entre os interesses dos em presários e dos
militares, m uito em bora ela seja interpretada pelos in d u s­
triais em term os diferenciados. Ambos os setores vêem van­
tagens em integrar o território nacional, mas en q u an to os
militares propõem a unificação política das consciências, os
em presários sublinham o lado da integração dõ m ercad o .'
O discurso dos grandes em preendedores da com unicação
associa sem pre a integração nacional ao desenvolvimento
do m ercado. Como afirm a M auro Salles em sua palestra na
Escola Superior de G uerra: “ O program a brasileiro não
aceita a paralisação do crescim ento. Ao contrário, partim os
p ara criar riquezas que agora nos perm item organizar um
II Plano Nacional de Desenvolvimento em que a palavra
In te g ra ç ã o , com seu sentido social e econômico, passa a ter
um sentido maior. O II PND vai dar as grandes linhas p ara

D écadas de Profundas M odificaçoes” , Conjuntura E conôm ica, vol. 24, n? 1. ja ­


neiro de 1970.
A M O D E R N A T R A D I Ç Ã O B R A S IL E IR A 119

um a expansão ainda mais acelerada do consumo de massa,


do desenvolvimento do mercado interno” . 7
Colocada nesses termos, a questão da censura pode ser
melhor com preendida. Os interesses globais dos em presá­
rios da cultura e do Estado são os mesmos, mas topica-
mente eles podem diferir. Como a ideologia da Segurança
Nacional é “ m oralista” e a dos em presários, mercadológica,
o ato repressor vai incidir sobre a especificidade do pro­
duto. Devemos, é claro, entender m oralista no sentido am ­
plo, de costumes, mas tam bém político. M as se tivermos
em conta que a indústria cultural opera segundo um padrão
de despolitização dos conteúdos, temos nesse nível, senão
um a coincidência de perspectiva, pelo menos um a concor­
dância. O conflito se instaura quando ocorre o tratam ento
de cada produto pela censura, o que perm ite que a questão
de fundo, a liberdade de expressão, ceda lugar a um outro
tipo de reivindicação. Um documento da Associacão-jde
Em presários de T eatro (Í9 73). divulgado no auge da ação
repressiva, é significativo. Ele diz: “ Não nos cabe analisar
neste documento os efeitos do excessivo rigor da Censura
sobre a perm anente e legítima aspiração de liberdade de
expressão, para que os artistas e intelectuais form ulem , de
m aneira cada vez mais íntegra, sua visão pessoal da tem á­
tica que abordam em seu trabalho. Neste docum ento, o
problem a da Censura está sendo ventilado porque sua ação
ex ce ssiv a m en te rigorosa é um fato dos fatores conjunturais
que prejudicam a sobrevivência econômica da em presa tea­
tral” .8 O mesmo tipo de crítica é feito pelos em presários do
cinem a no I Congresso da Indústria Cinem atográfica Bra­
sileira (1972). O que eles propõem é um a reform ulação dos
critérios da censura “ levando-se em conta a época atual, o
desenvolvimento da cultura, [pois] os cânones rígidos de
antigam ente não poderão prevalecer atualm ente (...) nossa

(7) M auro Salles, Conferência Escola Superior de G uerra, 4.9.1974, p. 6.


Na mesma linha, ver W alter C lark, “ TV: Veículo de Integração N acional", pa­
lestra na Escola Superior de G uerra, 15.9.1975, in Mercado Global, n"s 17/18,
ano 2, 9.10.1975.
(8) Citação in T ânia Pacheco, “ O T eatro e o Poder” , in Anus 70 — Tea­
tro, Rio de Janeiro, Ed. E uropa, 1979, p. 97.
120 R E N A T O O R T IZ

censura não acom panha a evolução dos costum es” . 9 A crí­


tica se desloca, desta m aneira, do pólo político p a ra o eco­
nômico. Ela é “ excessivamente rigorosa” , ou “ não acom­
panha a evolução dos costum es” , o que significa que sua
atuação traz prejuízos m ateriais para o lado em presarial.
Tânia Pacheco tem razão quando afirm a que o objetivo dos
em presários teatrais é sugerir um pacto com o poder, pro­
curando desta form a g aran tir o financiam ento das obras
teatrais pelo Estado. Este tipo de estratégia não se limita,
porém , a um a esfera altam ente dependente de verbas esta­
tais como o teatro ou o cinem a, ela é mais geral. Q uando a
. TV Globo e a T V T u p i assinam um protocolo de autocen-
sura em 1973, procurando controlar o conteúdo de suas
"programações, o que essas emissoras estão fazendo é cir­
cunscrever a vontade de se conquistar o m ercado a qual­
quer preço, aceitando-se cum prir os compromissos adqui­
ridos anteriorm ente ju n to ao Estado m ilitar.10 Se elas cor­
tam ou redim ensionam determ inados program as popula-
rescos (C hacrinha, Derci Gonçalves, etc.) é porque é neces­
sário garantir o pacto com os militares, que vêem esse tipo
de espetáculo como “ degradante” para a form ação do ho­
mem brasileiro definido segundo a ideologia da Segurança
Nacional. A contradição entre cultura e censura não se ex­
pressa, pois, em term os estruturais, mas ocasionais, tá ­
ticos, por isso é possível deslocar a questão p ara o plano
econômico. A conferência de M auro Salles, que havíamos
citado anteriorm ente, é sugestiva quando afirm a que “ é de
um a im prensa livre econom icam ente, com sua sobrevi­
vência garantida pela receita de um a publicidade julgada
em bases técnicas, que se deve esperar um a im prensa livre
em termos políticos. Ê certo que estamos todos ainda a b ra­
ços com problem as da censura. M as tam bém é certo que os
censores são passageiros e a censura não se institucionali­

(9) “ 1 Congresso da Indústria Cinem atográfica” , Filme e Cultura, n? 22,


novem bro/dezem bro de 1972, p. 14.
(10) Sobre o pacto entre TV Globo e Tupi, e a censura aos program as
popularescos, ver Sônia Miceli, “ Im itação da Vida: Pesquisa Exploratória sobre a
Telenovela” , tese de m estrado, FFLCH , USP, 1973.
A MODERNA TRADIÇÃO BRASILEIRA 121

zará e não há nenhum sinal oficial ou oficioso de que vamos


m archar na direção inversa do progresso” . "
Se tivermos em mente que a constituição de um sis­
tem a de comunicações economicamente forte, dependen­
te da publicidade, passa no caso brasileiro necessaria­
mente pelo Estado, podemos avançar no terreno de nossa
discussão. A evolução do mercado de propaganda no Brasil
está intim am ente associada ao Estado, que é um dos prin­
cipais anunciantes. O governo, através de suas agências,
detém um poder de “ censura econômica” , pois ele é um a
das forças que compõem o m ercado.12 Não há, portanto,
um conflito aberto entre desenvolvimento econômico e cen­
sura. Evidentem ente os empresários têm prejuízos com as
peças, livros, program as, filmes censurados, mas eles têm
consciência que é o Estado repressor que fundam enta suas
atividades. A censura “ excessiva” é certam ente um incô­
modo para o crescimento da indústria cultural, mas este é o
preço a ser pago pelo fato de ser o pólo m ilitar o incenti-
vador do próprio desenvolvimento brasileiro.
O que caracteriza a situação cultural nos anos 60 e 70 é o
volume.e a dim ensão do mercado de bens culturais. Se até a
década de 50 as produções eram restritas7 e atingiam um nú­
mero reduzido de pessoas, hoje elas tendem a ser cada vez
mais diferenciadas e cobrem um a m assa consum idora. D u­
rante o período que estamos considerando, ocorre um a for­
midável expansão, a nível de produção, de distribuição e de
consumo da cultura; é nesta fase que se consolidam os gran­
des conglom erados que controlam os meios de comunicação
e da cultura popular de massa. Os dados, quaisquer que
sejam eles, confirm am o crescimento dessa tendência. To­
memos como exemplo a evolução da produção de livros en­
tre 1966 e 1980 (em milhões de exem plares).13

(11) M auro Salles, op. cit. , p. 9.


(12) Sobre o papel do governo como anunciante, ver M arco A. Rodrigues
Dias, “ Política de Comunicaç3o no Brasil", in Jorge W ertheim (org.). Meios de
Comunicação: Realidade e M ito, São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1979.
(13) Laurence Hallewel, op. cit. p. 510. Os dados sobre o setor livreiro
provêm da mesma fonte.
122 RENATO ORTIZ

Ano 1966 1974 1976 1978 1980


Exemplares 43,6 191,7 112,5 170,8 245,4

Mesmo se levarmos em consideração o índice de anal­


fabetism o que continua alto na sociedade brasileira, e a dis­
torção do desenvolvimento que concentra a riqueza nas re­
giões do sul do país, dificilmente poderíam os equiparar
este quadro aos núm eros das décadas anteriores. Na ver­
dade, o setor livreiro se beneficia de toda um a política im ­
plem entada pelo governo que procura estim ular a produção
de papel e reduzir o seu custo. Em 1967, 91% do papel p ara
livros era fabricado no Brasil. O governo criou ainda em
1966 o GEIPA G, órgão que im plem enta um a política p ara
a indústria gráfica, favorecendo a im portação de novas m a­
quinarias para a impressão. Hallewel observa que isso au ­
m entou consideravelmente a capacidade de produção da
indústria. Os dados m ostram claram ente um a evolução
constante e acelerada da impressão em o ff-s e t, em detri­
mento de outras formas como a tipografia e a rotogravura.
Em 1960 a produção brasileira de papel o ff-s e t p ara livros
era de 7% do total, em 1978 ela sobe para 58% . M as não é
somente o setor livreiro que se beneficia da política gover­
nam ental; a indústria editorial, na sua totalidade, pode se
m odernizar com a im portação de novos m aquinários. Isto
se reflete não só no aprim oram ento da qualidade do im ­
presso, como no volume da produção que encontra um
mercado receptivo. Consideremos, por exemplo, o cresci­
mento do mercado de revistas (em milhões de exem plares).14

Ano 1960 1965 1970 1975 1985


Exemplares 104 139 193 202 500

Se tomarmos 1965 como referencia, temos que em vin­


te anos o mercado praticam ente quadruplicou, sendo que

(14) T hom as Souto Corrêa, “ M ercado de Revistas, O nde Estam os p ara


Onde Vamos” , Anuário Brasileiro de Propaganda, 78/79. O bs.: o ano de 1985
é um a projeção.
A MODERNA TRADIÇ ÃO BRASILEIRA 123

no mesmo espaço de tempo a população aproxim adam ente


dobrou. M as não é somente a quantidade que caracteriza
esse mercado emergente. O setor de publicação tem^se di­
versificado cada vez mais com o surgim ento de_puhlicos es-
picíãllzàdos "quê" consomem prõcíatos dire t à m e n te. _pjodu -
zldos paríTeles. O caso exem plar é o da E ditora A bril, que
hoje dom ina o mercado de revistas. Fundada em 1950 por
Victor Civita, ela inicia sua produção com prando o direito
de publicar o P a to D o n a ld no Brasil. E ntre 1950 e 1959 ela
edita 7 títulos; entre 1960 e 1969 este núm ero sobe p ara 27;
no período de 1970 a 1979 atinge 121 títulos.15 Se obser­
varmos suas publicações ao longo desses anos, percebem os
que não é somente o volume que aum enta, mas tam bém a
diversidade do que é editado. Na década de 50 a Editora
Abril praticam ente se sustenta através de suas fotonovelas
( C apricho, Você, Ilu sã o , N o tu r n o ) e o P a to D o n a ld . Nos
anos 60 surgem revistas mais especializadas: T ra n sp o rte s
M o d e rn o s p a r a E x e c u tiv o s, M á q u in a s e M e ta is, Q u a tro
R o d a s, C la u d ia . São lançados ainda os fascículos, que co­
brem um público de gosto variado, os jovens ( C urso I n te n ­
sivo d e M a d u r e z a ), os universitários (P e n sa d o re s ), os curio­
sos {C onhecer). A década de 70 consolida e expande este
processo de diversificação. M ultiplicam-se os títulos in­
fantis ( C e b o lin h a , L u lu z in h a , P iu -P iu , E n c ic lo p é d ia D is ­
ney, e tc .). A publicação de o P a to D o n a ld , que em 1950 era
de 83 mil exemplares, é agora ultrapassada pelos 70 títulos
infantis, que totalizam um a tiragem de 90 milhões de exem ­
plares (1986). Para a Editora Abril, o gosto feminino na dé­
cada de 50 é sobretudo m arcado pelo lado sentim ental; ela
edita principalm ente fotonovelas. Mais tarde é lançada
M a n e q u im , revista especializada em moda. A p a rtir dos
anos 60 a em presa busca atingir o público feminino setori-
zando sua produção: fotonovelas (linha já inaugurada ante­
riormente), costura (A g u lh a d e O uro), cozinha (F o rn o e
Fogão, B o m A p e tite ) , m oda (M a n e q u im ), decoração ( Casa
C la udia), assuntos gerais {C laudia). O mesmo ocorre com o

(15) Ver Epopéia Editorial: uma História de Informação e C ultura, Ed.


Abril, abril de 1987.
124 RENATO ORTIZ

público m asculino: automóveis (Q u a tro R o d a s ), chofer de


cam inhão (O C a rreteiro ), sexo {P layboy), motocicleta
(M o to ), futebol (P lacar), navegação (E sp o rte s N á u tic o s),
econom ia e negócios (E x a m e ). A editora procura, desta for­
ma, cobrir o interesse dos leitores potenciais, da cam ada
dom inante aos setores médios e a franja superior da classe
trab alh ad o ra, que em boa parte é excluída do sistema de
ensino após a conclusão dos estudos prim ários. P ara esta
cam ada, os fascículos cum prem um a função didática, dis­
correndo sobre a história dos homems, a ciência, e as artes.
Até mesm o p a ra o cinem a nacional, pelo tipo de pro­
dução que dem anda um a grande soma de investimento, o
quadro a tu a l, apesar das dificuldades, é radicalm ente dis­
tinto dos anos 50. Com a criação do Instituto Nacional do
Cinem a, em 1966, e posteriorm ente da EM BRA FILM E, a
produção cinem atrográfica conhece sem dúvida um m o­
m ento de expansão. No período de 1957 a 1966, a pro­
dução de longa-m etragem atingia um a m édia de 32 filmes
por ano; nos anos 1967-1969, quando o INC começa a atuar,
ela passa p a ra 50 film es.16 Com o surgim ento da EM BRA ­
FILM E, a política do Estado se torna mais agressiva, au ­
m entando as m edidas de proteção do m ercado, e dando um
m aior incentivo à produção. Em 1975 são produzidos 89
filmes, e em 1980, 103 películas.17 Não devemos, porém,
nos en tusiasm ar m uito com a qualidade desta indústria
brasileira; a m aior parte dos filmes são pornográficos ou
pornochanchadas. Em 1979 eles totalizavam apenas 8% da
produção, mas em 1984, com o crescimento do mercado,
chegam a com por 71% do que é produzido.18
Não é som ente o cinem a brasileiro que se expande.
M uitas vezes um a oposição muito rígida entre o nacional e
o estrangeiro, que é sem dúvida real e im portante no campo
cinem atográfico, nos impede de perceber que é o próprio

(16) Ver Alcino Teixeira de Melo, Legislação do Cinema Brasileiro, Rio de


Janeiro, EM B R A FIL M E , 1977.
(17) “ Cinem a Brasileiro: Evolução e D esem penho” , São Paulo, Pesquisa
5, Fundação Japão, 1985, p. 45.
(1,8) Jornal da Tela, MEC, EM BRAFILM E, m arço de 1986, p. 3.
A M O D E R N A T R A D IÇ Ã O BRASILE IRA 125

hábito de ir ao cinema que se consolida no período que es­


tamos considerando. Na década de 70 a evolução do n ú ­
mero de espectadores é a seguinte: em 1971, 203 milhões;
atinge em 1976 um pico de 250 milhões; e cai em 1980 para
164 milhões.19 M uitas vezes esses dados são considerados
exclusivamente como expressão do declínio do cinema em
contraposição a outras formas de lazer, em particular a te­
levisão. Isto é, sem dúvida, verdadeiro. Porém, se introdu­
zirmos um a dimensão histórica em nossa análise, e to-
mando-se alguns dados de outros países, é possível enca­
m inhar nossa reflexão para um a outra direção. Conside­
remos, por exemplo, a evolução do núm ero de espectadores
em outros países (em milhões): 20

Países N? de espectadores Declínio em % do


melhor ano
M elhor ano 1970 até 1970

r,*M2 8S
EUA 4 400(1946) 79
Inglaterra 1430(1949) % * i9 3 86
A lemanha Oc. 818(1956) - # 167 80
Japão 1 127(1958) 247 78
França 411(1957) 183 55
Itália 819(1955) 556 32

Um a prim eira conclusão, já conhecida de todos, se im ­


põe: a queda da freqüência ao cinema é um fenômeno
m undial. São várias as razões que concorrem p ara isso: o
preço das entradas, o fechamento dos cinemas de bairro,
sua concentração nos centros urbanos em zonas servidas
por um a maior estrutura de lazer, como restaurantes, s h o p ­
p in g c e n te rs, e, é claro, a concorrência de outros meios, como
a televisão comercial, a cabo, e o videocassete, além de for­
mas alternativas de lazer, como o turismo, os passeios, o
automóvel. Como entender a evolução do cinema no Brasil,
colocando-o no contexto internacional? O gráfico abaixo é
sugestivo.

(19) “ Cinem a Brasileiro: Evolução e D esem penho” , op. cit. , p. 134.


(20) Idem , p. 114. Sobre o declínio da freqüência ao cinem a, ver René
Bonnell, Le Cinema Exploité, Paris, Seuil, 1978.
126 REN ATO O R TIZ

Evolução do número de cinemas

/ ' 3500-t -

Se tomarmos a curva de evolução do núm ero de salas


como correlata à freqüência, observamos que é entre 1975 e
1976 que se atinge um pico de espectadores. Isto significa
que o processo de expansão do público, que foi variado nos
diversos países, atingindo um máximo em 1946 nos Estados
Unidos, 1955 na Itália, 1957 na França, só ocorre no Brasil
em m eados da década de 70. Como o próprio gráfico su­
gere, durante a década de 50 e m etade da de 60, o núm ero
de salas de cinem a permanece praticam ente o mesmo; a
formação de um verdadeiro mercado de consum o de filmes
se dá somente em 1967, conseguindo se m anter num p a­
tam ar mais elevado pelo menos até 1979. A p a rtir daí, o ci­
nema se equipara às dificuldades que o m ercado de filmes
A M O D E R N A T R A D IÇ Ã O B R A S IL E IR A 127

vinha enfrentando m undialm ente desde os anos 40 e 50. O


capitalismo tardio “ retarda” os problem as de crise que so­
mente iríam os enfrentar anos depois. De um a situação de
incipiência passamos por um momento de expansão para
então “ acertarm os o relógio” , como talvez dissesse Oswald
de A ndrade, com o quadro internacional.
Tam bém o mercado fonográfico, que até 1970 co­
nhecia um crescimento vegetativo, a p artir deste momento
“ deu sua arrancada para um verdadeiro e significativo de­
senvolvimento” .21 Isto se deveu em grande parte às inú­
meras facilidades que o comércio passou a apresentar p ara
a aquisição de eletrodomésticos. Como o m ercado de fono-
gram as se desenvolve em função do m ercado de aparelhos
de reprodução sonora, é im portante observarm os a evo­
lução das vendas industriais de aparelhos eletrônicos do­
mésticos. E ntre 1967 e 1980, a venda de toca-discos cresce
em 813% .22 Isto explica por que o faturam ento das em ­
presas fonográficas cresce entre 1970 e 1976 em 1375% .23 O
mercado fonográfico pode ainda ser avaliado quando consi­
deramos a venda de discos na década de 70 (em m ilhares de
unidades):24

Ano LPs Compacto C ompacto Fitas


simples duplo

72 11 700 9900 2 500 1 000


73 15 000 10100 3 200 1 900
74 16 000 8 200 3 500 2 800
75 16 900 8100 5 000 3 900
76 24 000 10 300 7 100 6 800
79 39 252 12613 5 889 8 481

O quadro m ostra um a diversificação do consumo com


a introdução de produtos “ recentes” (em termos de massa),
como as fitas cassetes, que ao longo da década passam a

(21) "O Mercado de Discos no Brasil” , Mercado Global, n? 34, ano 4,


3.4.1977, p. 20.
(22) Fonte ABINEE.
(23) “ Disco em São Paulo” , Pesquisa 6, ID A RT, 1980.
(24) Fonte: Associação Brasileira de Produtores de Discos.
128 R E N A T O O R T IZ

integrar o hábito dos consumidores. Isto se deve substan­


cialm ente a uma generalização do uso do cassete nos auto­
móveis e nos momentos de lazer fora de casa. M as o que os
núm eros indicam é, sobretudo, o aumento do volume de
vendas, que no período cresce de 25 milhões p a ra 66 mi- h
Jh õ esjfa ,d isco s tx>merciallzados.anu^mcjite, O LP, que fói í '
introduzido em 1948, m as até a década de 60 era ainda
considerado um produto caro, cada vez mais é caracterizado
como um elemento de consumo, inclusive das classes mais
baixas. O mercado de discos não opera somente com a es­
tratégia de diferenciação dos gostos segundo as classes so­
ciais. Ele descobriu um a forma de penetrar ju n to às C a­
m adas mais baixas, desenvolvendo os “ álbuns com pila:
_dos’-Vdiscos ou fitas cassetes reunindo uma seleção de m ú­
sicas de diferentes gravadoras. A Som Livre, vinculada à
Rede Globo de Televisão, se especializou no ram o das m ú­
sicas de novela, deslocando do m ercado inclusive as m ulti­
nacionais. Iniciando suas atividades em 1970 com o com pi­
lado da trilha sonora da novela O C afona, já em 1976 se
torna líder do mercado fonográfícõ7ê~em 1982 detém 25%
do seu faturam ento.
w __ , __ _
Penso que ò que melhor caracteriza o advento e a conso­
lidação da indústria cultural no Brasil é o desenvolvimento
da televisão. Vimos como nos anos 50 o circuito televisivo
era predom inantem ente local, enfrentando problem as téc­
nicos consideráveis. Com o investimento do Estado na área
da telecomunicação, os grupos privados tiveram pela p ri­
m eira vez a oportunidade de concretizarem seus objetivos
de integração do mercado. Como dirá um executivo: “ A te­
levisão, por sua simples existência, prestou um grande ser­
viço à economia brasileira: integrou os consumidores, po­
tenciais ou não, num a economia de m ercado” . 25 P ara isso
foi necessário um increm ento na produção de aparelhos, na
sua distribuição, e a m elhoria das condições técnicas. Como
o videoteipe, a transm issão em cores, a edição eletrônica,
este últim o ponto pode ser garantido. Q uanto à produção

(25) Arce, "Televisão: Ano 25/10 de C onquistas de C om ercialização”


op. cit. . p. 66.
A M O D E R N A T R A D I Ç Ã O B R A S IL E IR A 129

de aparelhos, já em 1970 ela era de 860 mil u n id ad es, vo­


lume que contrasta radicalm ente com o da década anterior,
e que elimina a necessidade de im portação. A im plantação
da televisão como meio de m assa pode ser avaliada quando
examinamos a evolução do núm ero de aparelhos em u so :26

Evolução do total de aparelhos (PB&C) em uso no país

(26) Geraldo Leite, "A Necessidade de um a Ecologia da M ídia” , op. cit. ,


p. 66.
130 R EN A TO O R TIZ

Esses dados podem ser m elhor com preendidos q u an d o


com param os a evolução de núm ero de domicílios com tele­
visão. Em 1970 existiam 4 milhões 259 mil domicílios com
aparelhos de televisão, o que significa que 56% da p o p u ­
lação era atingida pelo veículo; em 1982 este núm ero passa
p ara 15 milhões 855 mil, o que corresponde a 73% do to­
tal de domicílios existentes.27 Por outro lado, como mos­
tram alguns estudos de m ercado, o hábito de assistir tele­
visão se consolida definitivamente, e se dissem ina por todas
as classes socias.28
H erbert Schiller, num de seus artigos, observa que a
comunicação segue o capital, e que o capital se relaciona
intrinsecam ente com a publicidade. Na verdade, seria im ­
possível considerarm os o advento de um a indústria cultural
sem levarmos em conta o avanço da publicidade; em grande
parte, é através dela que todo o complexo de com unicação
se m antém . O caso brasileiro não foge à regra. Basta olhar­
mos como evolui o investimento em propaganda neste pe­
ríodo (em milhões de cruzeiros):29

Ano Total investido % sobre o PNB

1964 152 0,80


1966 440 0,95
1968 960 1,00
1970 1 840 1,05
1972 3 460 1.25
1974 6 300 1,29
1976 12 600 1.28

(27) Ver Mercado Brasileiro de C om unicação, Brasília, Presidência da


República, Secretaria de Im prensa e Divulgação, 1983, p. 87. C onsultar tam bém
Briefing, “ Os T rinta Anos da Televisão", op. cit.
(28) Ver M ídia e M ercado, São Paulo, Lintas, 1984. Vários estudos sobre
a penetração da televisão ju n to às diferentes classes e públicos consum idores po­
dem ser encontrados, p ara a década de 70, na revista Mercado Global, que era
publicada pela Rede Globo de Televisão.
(29) Fonte: “ A Televisão Brasileira” , M ercado Global, n?s 31/32, ano 3,
11.12.1976, p. 20. O dado de 1976 foi retirado de Roberto A m aral Vieira, “ Alie­
nação e Comunicação: o Caso Brasileiro", in Comunicação de Massa: o Im passe
Brasileiro, Rio de Janeiro, Forense, 1978, p. 100.
A M O D E R N A T R A D I Ç Ã O B RA S ILE IRA 131

Pode-se observar que a p a rtir de 19Õ8 o to tal de inves­


timento dá um salto para atingir níveis até então desconhe­
cidos. M aria A rm inda A rruda, quando analisa o desenvol­
vimento da publicidade brasileira entre 1970 e 1974, m ostra
que essas taxas de crescimento não ocorrem em nenhum
outro país, mesmo os mais avançados, o que perm ite que
em 1972 o Brasil supere países como Itália, H olanda e Aus­
trália, para se constituir em 1974 o sétimo m ercado de p ro­
paganda do m undo.30 Se entre 1935 e 1954 o m ercado de
agências publicitárias perm anece inalterado (só em 1954 é
criada um a agência im portante, a Leo Burnett), o quadro
m uda radicalm ente nos anos 60 com o surgim ento da m aio­
ria de agências que hoje atuam no mercado: Esquire, Ál­
vares Penteado, JM M , M auro Salles, M PM , DPZ, Proeme,
Propeg, A rtplan, Lage, P. A. Nascimento, A lcântara Mai-
chado, Denison, Norton, Benson.31 O desenvolvimento das
atividades profissionais ligadas à propaganda já vinha se
realizando desde a década de 50, com a criação da prim eira
escola de propaganda, a C ásper Libero (1951), e a fundação
da Associação Brasileira de Agências de Propaganda. Mas
é nos anos 60 que ele se intensifica, a profissão de publici­
tário ganha a universidade e tem o seu reconhecimento em
nível superior. São criadas as escolas de comunicação: ECA
(1966), Ãlvares Penteado (1967), UFRJ (1968), ISCM
(1969); e proliferam novas associações que congregam pro­
fissionais: Associação Brasileira de A nunciantes (1961),
Conselho Nacional de Propaganda (1964), Federação B ra­
sileira de M arketing (1969). Este crescimento na área publi­
citária dem anda serviços especializados, pois, agora, o m er­
cado tem que ser bem dimensionado, medido segundo cri­
térios objetivos, de preferência “ científicos” , p ara que se
possa fazer um cálculo entre as pretensões dos clientes e a
capacidade de absorção do produto. Não é por acaso que a
década de 60 assiste tam bém a um processo de m ultipli­
cação dos institutos de pesquisas mercadológicas: IVC

(30) M aria A rm inda A rruda, “ A Embalagem do Sistem a” , tese de mes­


trado, FFLCH, USP, 1978.
(31) Ver Ricardo Ramos, op. cit. , e L. E. Carvalho e Silva, op. cit.
132 R E N A T O O R T IZ

(1961), Mavibel (1964), Ipsem (1965), G allup (1967), D e­


m anda (1967), Simonsen {1961), Ipape (1968), Audi-TV
(1968), Sercin (1968), Nielsen (1969), LPM (1969).
Se nas décadas de 40 e 50 faltava às emissoras de rádio
e de televisão o traço integrador para caracterizá-las como
um a indústria cultural, temos agora um a transform ação. O
caso da televisão é evidente, um a vez que o Estado possi­
bilita a transm issão em rede a partir de 1969. Mas também
o rádio acom panha as m udanças mais gerais da sociedade,
pressionado sobretudo pela diminuição do investimento em
propaganda. O quadro do percentual de participação dos
veículos de comunicação no investimento publicitário é
claro:32

Ano TV Revista Rádio Jornal Outros


1962 24,7 27,1 23,6 18,1 6,5
1972 46,1 16,3 9,4 21,8 6,4
1982 61,2 12,9 8,0 14,7 3,2

A fase de ouro do rádio pôde existir porque este veículo


concentrava a massa de investimento publicitário disponível
na época. Com o deslocamento da verba publicitária para a
televisão, sua exploração comercial teve que levar em conta
novos fatores de mercado, cam inhando p ara a especiali­
zação das emissoras e a formação de redes. Este processo de
especialização não é exclusivo do rádio, ele atende uma im ­
posição mais geral da indústria cultural que tem necessi­
dade de responder à dem anda de um mercado onde existem
faixas econômicas diferenciadas a serem exploradas. As
empresas radiofônicas procuram , desta forma, oferecer
um a program ação unificada, e específica para um determ i­
nado tipo de público, dando assim maiores opções para o
anunciante. Trata-se, portanto, de um sistema que tra ­
balha associado às análises de audiência, pois elas são as
únicas garantias, para o cliente, que a emissora realmente
atinge determ inada cam ada ou público. Porém, como o

(32) Fonte: Meio e Mensagem e G rupo Mídia.


A M O D E R N A T R A D I Ç Ã O B R A S IL E IR A 133

mercado é restrito, sofre um a concorrência cerrada da tele­


visão, um a nova tendência se esboça p ara a maximização
dos lucros: a formação de redes. Gisela O rtriw ano observa
que essas redes nacionais, que integram emissoras regio­
nais, transm item um a program ação unificada p ara os mais
diversos pontos do país. “ O objetivo principal dessa nova
tendência está ligado unicam ente a fatores econômicos: for­
talecer o rádio como alternativa publicitária, procurando
obter m aior lucratividade com m enor investimento. As
emissoras que fazem parte de um a rede recebem , ao mesmo
tempo, program ação e patrocinador.” 33 H á duas m aneiras
dessas redes operarem . A prim eira através das produtoras
radiofônicas; a Studio Free e a L&C trabalham diretam ente
com as agências e os anunciantes, possibilitando ao cliente
conhecer de antem ão a program ação na qual seu anúncio
será inserido. A L&C desenvolveu um tipo de program ação
integrada, com música característica, vinhetas, além, é cla­
ro, da gravação dos comerciais. Este m aterial é enviado
p ara as “ regionais” onde será veiculado. “ P ara atender os
pedidos musicais, foram criados personagens com vozes
m asculinas e femininas, que atendem pelo mesmo nome em
todas as localidades. A program ação nacional resferva es­
paços p ara a prestação de serviços e as entradas publicitá­
rias locais.” 34 A segunda forma é a das em issoras em rede,
geralm ente propriedade de um único concessionário. São
vários os exemplos: o Sistema Globo de Rádio, form ado por
13 emissoras AM e cinco FM , que atu a nos estados de São
Paulo, M inas Gerais, Rio de Janeiro, Pernam buco, Rio
G rande do Sul e Bahia; a Transam érica, com posta por 28
emissoras atingindo os estados de São Paulo, Rio de Janeiro
Pernam buco, Paraná, Bahia, M inhas G erais, Sergipe,
Pará, Santa C atarina, M aranhão, P araíba, M ato Grosso e
Brasília. Poderíam os ainda citar outros exemplos, como a
Rede C apital de Comunicação, a Rede Brasil Sul de Com u­
nicação, a Rede M anchete de Rádio. O espaço de irra­
diação tende a se am pliar, mas o público atingido não é

(33) Gisela O rtriw ano, A Informação no Rádio, op. cit. , p. 3-1.


(34) Idem , pp. 31-32.
134 R EN A TO O R TIZ

mais caracterizado como local, ele se integra dentro do


m ercado nacional consum idor. Esta nova fase de desenvol­
vimento do rádio não se esquece inclusive de absorver um
traço definidor da indústria cultural segundo Adorno e
H orkheim er: a padronização. Não só os program as são p a ­
dronizados, mas a publicidade e até mesmo as vozes dos
apresentadores.
D entro deste quadro, a própria concepção de atividade
gerencial se modifica. Vários sociólogos têm insistido que a
modernização da sociedade brasileira implicou a m udança
da m entalidade em presarial, seja no setor industrial, como
estudou Fernando H enrique Cardoso, seja na área vinculada
ao Estado. Lúcio Kowarick m ostra que a idéia de planeja­
mento econômico somente se sistem atiza com o plano de me­
tas de Juscelino Kubitschek; Octávio Ianni considera que é a
partir do golpe m ilitar que o planejam ento adquire um a di­
mensão individualizada, conferindo à política governa­
m ental um a especificidade que ela não possuía até en tão .35
A indústria cultural não escapa a este processo de tran s­
formação; os capitães de indústria dos anos anteriores de­
vem ceder lugar ao m a n a g e r. O espírito em preendedor-
aventureiro de C hateaubriand caracteriza toda um a época,
mas ele é inadequado quando se aplica ao capitalism o avan­
çado. Nos anos 60 e 70, os grandes em preendedores do se­
tor cultural são outros. Homens que adm inistram conglo­
merados englobando diversos setores em presariais, desde a
área da indústria cultural à indústria propriam ente dita.
Civita: Editora Abril, D istribuidora Nacional de Publi­
cações, Centrais de Estocagem Frigorificada, Q uatro Ro­
das Hotéis, Q uatro Rodas Em preendim entos Turísticos.
Roberto M arinho: TV Globo, Sistema Globo de Rádio, Rio
G ráfica, VASGLO (prom oção de espetáculos), Telcom,
G aleria Arte Global, Fundação Roberto M arinho. Frias e
Caldeira: Folha da M anhã S. A., Im press, Cia. Lithográfica
Y piranga, Ültima Hora, Notícias Populares, Fundação

(35) Lúcio Kowarick, “ Estratégias do Planejam ento Social no B rasil” , Ca­


dernos do C EB R A P, 2, 1976; Octávio Ianni, Estado e Planejamento no Brasil,
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979.
A MODERNA TRADIÇÃO BRASILEIRA 135

Cásper Libero. C ontrariam ente ao espirito capitalista we-


beriano, que se fundam entava no indivíduo, traço cor­
respondente ao início do capitalismo, os novos proprie­
tários são homens de organização, e de um a certa forma
se perdem na impessoalidade dos “ impérios” que cons­
truíram .
Eles devem contrabalançar sua vontade individual e
submetê-la à racionalidade da própria em presa que engen­
draram . A história das organizações que construíram não
coincide mais com a história individual do seu fundador;
ela se apóia e se sustenta no esforço de inúm eros profis­
sionais, alguns mais conhecidos, outros anônimos, que re­
produzem e recriam a racionalidade da em presa no seu dia-
a-dia. A esse respeito, a fala de W alter Clak é significativa.
C om parando dois tipos de empresários, Pipa A m aral, da
antiga TV Rio, e Roberto M arinho, ele dirá: “ Acho que o
sujeito que teve a idéia mais grandiosa de TV no Brasil foi o
Pipa Am aral, um personagem incrível, com visão mais gi­
gantesca do veículo do que o próprio C hateaubriand. A pren­
di muito com ele, mas seu grande defeito é que não confiava
em ninguém, nem no próprio filho, não delegava n a d a ” .36
Em relação a Roberto M arinho: “ O sucesso da TV Globo
tem a ver com o fato do Roberto M arinho ter entregue a TV
para que o W alter Clark, o Joe W allach, o Boni, o José
Ulisses Arce e o José Otávio Castro Neves, a fizessem” .37
Pipa A m aral ainda retém os traços da individualidade as­
cética que concebe o ator social como dem iurgo de qual­
quer tipo de em preendim ento. Mas ele não “ delega n ad a” ,
isto é, impede que se forme um a equipe de colaboradores
essenciais para o funcionam ento da organização. Roberto
M arinho compreende melhor os novos tempos, e se con­
forma ao anonim ato de sua própria criação. Restam a esses
novos empreendedores prêmios de consolação p ara que se­
jam reconhecidos socialmente na sua individualidade, as
comendas, as biografias encom endadas, a promoção das

(36) A Vida de Walter Clark, op. c it., pp. 41-42.


(37) ídem , pp. 48-49.
136 R E N A T O O R T IZ

artes, atividades que trazem prestígio mas que são vividas


como subproduto de suas tarefas comerciais. 38
Pode-se perceber com clareza a m udança do etos em ­
presarial quando se tom a o exemplo da televisão. Neste sen­
tido, a TV Excelsior, fundada em 1960, dá um primeiro
passo no processo de racionalização. O depoim ento de Ãl-
varo Moya, seu prim eiro diretor artístico, é ilustrativo: “ A
TV Excelsior era o grupo Simonsen, e o sonho deles era
fazer a ITT no Brasil. Eles é que tinham m ontado um a rede
para a televisão Tupi na inauguração de Brasília; fizeram
um a transm issão sim ultânea da inauguração. Então o Si­
monsen sentiu que podia fazer um a rede e dom inar a tele­
visão, eles tinham um a visão em presarial” .39 O testemunho
de W alter Simonsen Neto cam inha na mesm a direção: “ Na
época nós procurávam os criar um a cadeia no estilo da Glo­
bo. Q uando eu digo no estilo da Globo, é no sentido em pre­
sarial. Nós tínham os consciência de que se nós produzís­
semos um a boa program ação, essa program ação teria um
mercado dentro do Brasil, muito m aior do que os filmes,
porque nós estávamos vendendo cultura brasileira — as no­
velas que começamos a fazer, os program as hum orís­
ticos” .40 A idéia de “ vender cultura” , colocada de maneira
tão explícita, abria a possibilidade de se planejar o investi­
mento em termos de um a racionalidade em presarial. T al­
vez o que o grupo Simonsen não percebesse, como veremos
mais adiante, é que o nacionalismo do m om ento lhes seria
politicam ente adverso. A grande inovação introduzida pela
Excelsior foi a racionalização do uso do tem po.41 A progra­
mação passa agora a obedecer determ inados horários, não
se atrasa mais, ela é horizontal, program as diários como as

(38) Um exemplo típico deste tipo de estratégia é "biografia” encomen­


dada de Victor Civita, que tem por objetivo enaltecer as obras de sua pessoa.
Ver Luiz Fernando M ercadante, Victor Civita, São Paulo, Nova Cultural, 1987,
Ou ainda promoções de instituições como a Fundação Roberto M arinho.
(39) Depoim ento de Ãlvaro Moya, (FU NA RTE).
(40) Depoim ento de W alter Simonsen Neto (FU N A R TE).
(41) Sobre a Excelsior, ver Edgar Amorin, História da T V Excelsior, São
Paulo, ID ART, mimeo., e Alcir Costa, Excelsior: Destruição de um Império,
op. cit.
a Mo d e r n a t r a d i ç ã o b r a s i l e i r a 137

telenovelas, e vertical, seqüência de p ro g ram a s, buscando


fixar o telespectador num único canal. A em presa inventa
seu próprio logotipo e passa a prom over a si mesm a. D esen­
volve-se tam bém a racionalização do tem po dos comerciais.
A Excelsior é a prim eira em issora de televisão a conceber
um a identidade entre tempo e espaço com ercial. Os p ro­
gram as tendem agora a não ser mais vendidos ao patroci­
nador, p ara se transform arem em veículo do produto a ser
anunciado, em tempo comercializável com prado pelo clien­
te. D a m esm a form a que o anunciante com prava o espaço
no jornal, ele podia adquirir um “ espaço de tem po” no ví­
deo para veicular sua m ensagem publicitária. Tem po sem
conteúdo, vazio, abstrato, portanto mensurável e com ercia­
lizável.
A TV Globo aprofunda essas m udanças. No início,
como observa M aria Rita Kehl, ela é dirigida por pessoas
do meio artístico e jornalístico, m as logo há um a m odifi­
cação no quadro da direção.42 Os novos adm inistradores
são executivos provenientes das áreas de m a r k e tin g e plane­
jam ento: “ Acabava a fase em que os vales eram concedidos
pelo proprietário da emissora, que tam bém negociava ca­
chê e assinava cheque. Um am ericano que durante muitos
anos havia cuidado da área adm inistrativa, Joe W allach, foi
contratado para gerir a área adm inistrativa da Globo, im ­
plantando um sistem a mais em presarial de gestão. Um ho­
mem de vendas, bastante calejado pelo m ercado, José Ulis­
ses Arce, ficou responsável pela área de vendas. No mesmo
nível hierárquico que o da adm inistração e o da produção e
da program ação, seria contratado algum tem po depois o
Boni. Como regente dessas três áreas ficava W alter Clark,
com a visão de homem de m a r k e tin g que e ra ” .41 Esta des­
crição da revista B rie fin g é entusiasta, ela preza os valores
da racionalidade desses hom ens-em presa, mas, para além
do seu tom ideológico, ela aponta p ara transform ações pro­
fundas por que passa o sistem a televisivo quando adminis-

(42) M aria Rita Kehl, Reflexão para um a História da T V Globo, Rio de


Janeiro, FU N A RTE, 1982.
(43) Revista Briefing, “ T rinta Anos de Televisão” , op. cit.
138 RENATO ORTIZ

trado p o r elem entos que se distanciam do an tig o p ad rão de


em presário. D otada de um a m entalidade em presarial, a
Globo procura planejar suas atividades a longo prazo, rein­
veste o lucro sobre si mesm a, e apresenta novidades até
mesmo no uso do tem po dos comerciais. “ A Globo intro­
duziu o sistema rotativo, padronizou o preço do tem po co-
mercializável, e passou a negociar apenas com pacotes de
horários, isto é, quem quisesse anunciar no horário nobre
era obrigado a colocar propaganda em outros horários.” 44
Técnica que perm itiu à emissora financiar os horários me­
nos concorridos e criar no telespectador o hábito de sinto­
nizar um único canal.
T am bém na área jornalística se pode observar o avanço
desta racionalidade. A Folha de S. Paulo é um bom exem­
plo disso.45 Sua origem rem onta a 1921, quando foi fun­
dada como Folha da Noite. Nasce como um em preendi­
mento aventureiro, arriscado, sendo vendida em 1931, e
tendo seu nome alterado p ara Em presa Folha da M anhã
Ltda. D urante esse período, o jornal é representante da oli­
garquia e assume um a posição m arcadam ente agrarista.
Em 1945, ela troca novamente de mãos, e José N abantino
assume sua direção. Homem dinâmico e inovador, ele seria,
segundo Carlos G uilherm e M ota e M aria Helena Capelato,
o típico weberiano calvinista, que transform a seu trabalho
em “ m issão” , além, é claro, de ser m arcado pela idéia de
eficácia que caracteriza o espírito pioneiro capitalista. Sob
N abantino a em presa conhece um a série de reform as que
acentuam o seu lado moderno. A nova sede é construída,
cria-se a ím press, pequena indústria gráfica visando abas­
tecer internam ente o jornal, e em 1948 surge um Program a
de Ação para as Folhas, com o objetivo de transform á-la
num a em presa rentável. Gisela Goldenstein observa que um
dos itens deste novo plano era claro. Dizia: “ a empresa,
pela sua atividade jornalística, não tem outras fontes de re­
ceita que não sejam as assinaturas, vendas avulsas e publi­

(44) Citação in M aria Rita Kehl, op. cit. , p. 7.


(45) Ver Carlos Guilherm e M ota e M aria Helena Capelato, História da
Folha de S. Paulo, op. cit.
A M O D E R N A T R A D IÇ Ã O B R A S IL E IR A 139

cidade, pelos preços constantes das respectivas tabelas’’. 46


U m a tentativa, portanto, de se pensar o jornal como veí­
culo, m ídia do que deve ser anunciado. Ao lado da Folha de
S. Paulo, N abantino tenta expandir seu projeto criando
dois outros jornais, m atutino e vespertino (F olha da M a n h ã
e F olha da T a rd e). Tam bém é desta fase a preocupação de se
introduzir novas normas na redação, procurando torná-la
mais produtiva e eficiente. Para estim ular a produção, foi
instituído um prêmio por “ centim etragem de coluna” ;
quem escrevesse mais, ganharia um a compensação salarial
extra. Ocorre ainda, como em outros jornais, um a im por­
tante racionalização do trabalho jornalístico: a introdução
do d e a d lin e . Como dizia Samuel W ainer, “ antes a redação
trabalhava os textos até ficar bons, e isso ocorria a noite
inteira nos prim eiros tempos do jo rn a l” .47 No entanto, to­
das essas m edidas esbarravam nas dificuldades da precarie­
dade da época. Algumas delas puderam se concretizar, ou­
tras não. Devido a problem as de im portação, toda a tenta­
tiva de modernização do parque gráfico e industrial se des­
m orona. Gisela Goldenstein m ostra que “ a p artir de 1956,
o parque gráfico das Folhas começou a constituir-se em um
ponto de estrangulam ento para empresa, não dando conta
de proverem tempo hábil a feitura dos jo rn ais” .48 Sua an á­
lise detalhada da produtividadde da Impress dem onstra
que a firm a se torna cada vez mais problem ática e defici­
tária. O mesmo pode ser dito em relação à política de diver­
sificação do produto; em 1962, N abantino desiste de ter três
edições, m antendo somente um a com o título de F olha de
S. P a u lo . Mesmo as transformações que ocorrem na re­
dação tinham limites concretos. Cada sem ana havia uma
reunião de toda a redação, onde os jornalistas expunham
seus problem as, e a própria atividade jornalística era discu­
tida quando colegas chegavam de viagem ao term inarem a
elaboração de determ inadas m atérias. Essas reuniões fun-

(46) Gisela Goldenstein, “ Folhas ao Vento: Contribuição ao Estudo da


Indústria C ultural no Brasil” , tese de doutoram ento, FFLCH, USP, 1986.
(47) Entrevista de Samuel W ainer a Gisela Goldenstein, op. cil.. p. 110.
(48) Idem , p. 71.
140 RENATO ORTIZ

cionavam como contrapeso ao processo de racionalização,


u m a vez que o “ trab alho em m igalhas” dos redatores podia
ser jun tad o neste espaço secretado pela própria em presa.
Em 1962, a Folha é adquirida pelo grupo Frias-Cal-
deira, e passa ao longo dos anos por um a reestruturação
profunda. De início um a reform a tecnológica, econômica e
comercial, medidas compatíveis para um a em presa que
agora seria parte de todo um conglomerado. Depois m u­
danças substanciais no processo mesmo do trabalho jo rn a ­
lístico. Um novo M a n u a l d e R e d a ç ã o foi elaborado, procu­
rando planejar melhor as atividades e homogeneizar o m é­
todo de produção do jornal. Com a autom ação do jornal, a
composição dos artigos se tornou mais ágil e precisa, im pri­
mindo um a velocidade mais rápida na fabricação do p ro­
duto. Como observa um dos técnicos: “ o sistema Folhas de
term inais veio trazer velocidade e autenticidade m aior às
informações, um a vez que nos perm itiu elim inar etapas no
processo industrial gráfico” .49 É difícil perceber a relação
entre autenticidade da notícia e velocidade da im pressão,
mas fica claro que a adoção do novo sistema reduziu o tem ­
po de produção industrial, dim inuindo os custos e aum en­
tando a agilidade do processo. Este tipo de tecnologia ofe­
rece ainda vantagens comerciais: “ nos balcões de anúncio
onde já estão instalados os term inais, o anunciante pode ter
um a visão exata da sua publicidade classificada por seções
e ordem alfabética, fazendo o ajuste na hora, se desejar. O
sistema fornece várias possibilidades de preço das inserções
e fatura im ediata” .50 Não é supreendente que dentro desses
parâm etros a filosofia da em presa se modifica; nesse sen­
tido a fala de um executivo é esclarecedora. “ Temos com ­
batido a idéia de que o jornalism o tem um a missão a cum ­
^ le ­
prir, no sentido mais político-partidário ou rom ântico, meio
místico, que existe em torno disso: a missão da im prensa. A
gente procura ver a im prensa como um serviço público

(49) Ver Regina Festa, “ Os C om putadores Revolucionam a Folha de S.


Paulo e o Jornalismo Brasileiro” , Instituto p a ra América Latina, São Paulo, 1986,
pp. 13-14.
(50) Idem , p. 13.
A M O D E R N A T R A D I Ç Ã O B RAS I LEI RA 141

prestado po r particulares, daí a gente estar sem pre p ro c u ­


rando saber onde está o interesse do leitor e vamos satis­
fazer esse interesse — porque a gente quer fazer um jo rn a ­
lismo mais exato, mais agudo, mais agressivo, a gente quer
vender mais jornal, subir sua circulação” .51 Se lem brarm os
que a idéia de missão encerra um a dimensão religiosa, po­
demos dizer com M ax W eber que assistimos a realização de
um exemplo claro de secularização, de desencantam ento do
m undo. A “ missão” é substituída pelo cálculo, o lado “ exa­
tidão” buscando elim inar os elementos “ político” e “ ro­
m ântico” que insistem em desafiar as norm as da produção
industrializada.
O processo de racionalização da sociedade im plica
tam bém num novo tipo d e re la ciorm m entqen tre a eraorfisa e
o em pregado. O antigo “ acordo de cavalheiros” , que existia
no rádio e nalelevisão, tinha que ser quebrado como um a
exigência dos novos tem pos. No caso da televisão, isto ocor­
re com a entrada da TV Excelsior no m ercado. O depoi­
mento de W alter Sim onsen Neto é sugestivo: “ N aquela épo­
ca, isso em 59, por aí, havia um a coisa odiosa que era o
cham ado convênio entre as estações, ou seja, um determ i­
nado artista ou elem ento que trabalhasse num a estação e
fosse dispensado dela por algum motivo, não era co n tra­
tado por outra estação. Eu me lem bro que o prim eiro caso
desses que ocorreu comigo já na direção da estação, foi um
caso com o Sílvio C aldas. Na época ele tinha um program a
de m uito sucesso na Record, mas ele brigou não sei por
que, saiu, e eu o contratei. O Edm undo M onteiro, que era
diretor geral da T upi em São Paulo pediu a meu pai que fi-
zessemos um a reunião com ele, e chegou inclusive a am ea­
çar meu pai. Esse foi o prim eiro passo para a quebra do
cham ado convênio” .52 Do ponto de vista subjetivo, essa ati­
tude talvez pudesse ser interpretada como a com preensão
de um empresário em relação às dificuldades pelas quais
passavam os artistas. A perspectiva sociológica nos orienta

(51) Entrevista de Otávio F rias Filho, editor-chefe, a Gisela G oldenstein,


op. cit. , p. 155.
(52) Depoimento de W alter Sim onsen N eto(FU N A R TE).
142 RENATO ORTIZ

p a ra um a o u tra direção. As transform ações sócio-econô-


micas que sofre a sociedade brasileira repercutem d ire ta ­
mente inclusive nas form as de contrato, liberando-as do
peso de um a tradição mais personalizada. Q uando a TV
Excelsior, em 1963, m uda a orientação de sua política, bus­
cando atingir um a audiência maior, ela se vê na necessi­
dade de rom per certos laços do passado, buscando nas
emissoras concorrentes os talentos que não possuía. Alcir
Costa observa que num só dia ela contratou dezenas de a r­
tistas da TV Rio, oferecendo o dobro dos salários, e esva­
ziando o potencial de competição da firm a concorrente.53
Deslealdade? Talvez, mas o que im porta perceber é que as
novas forças em jogo se tornavam mais impessoalizadas, e,
como um a em presa realm ente capitalista, a emissora passa
a aplicar seus princípios mercadológicos.
Paralelam ente a essas m udanças nas relações de tra ­
balho, assistimos as empresas redim ensionarem melhor a
utilização de seu pessoal, procurando retirar disso um a
produtividade m aior. Até mesmo em relação ao uso dos ato­
res ocorre um a m udança de estilo. “ A canal 9 (Excelsior) já
com preendia, ao contrário das outras estações, que quando
um ator está fazendo sucesso junto ao público, sua presença
no vídeo precisa ser planejada para que o público não fique
saturado. Assim, os atores representavam 3 ou 4 meses em
um a telenovela e descansavam 3 meses ou até mais para
entrar em outra telenovela.” 54 Planejam ento da exposição
da aura, elemento fundam ental para o funcionam ento do
sistema de ídolos do m a ss m e d ia . U m a aura diferente da
desejada por Benjamin, mais se aproxim ando de um a estra­
tégia para provocar no consum idor a ilusão de unicidade da
“ obra de arte” .
A contrapartida desse processo de racionalização em ­
presarial é a profissionalização crescente. Com a especia­
lização da produção se intensifica o movimento de divisão
das tarefas: cenógrafos, figurinistas, cabelereiros, pesqui­
sadores, roteiristas, fotógrafos, redatores. Basta olharmos a

(53) Alcir Costa, Excelsior. . . , op. cit.


(54) E dgar Amorin, História da T V Excelsior, op. cit. , p. 142.
A M O D E R N A T R A D I Ç Ã O B R A S IL E IR A 143

divisão de trabalho de uma agência de propaganda, que é


simples por causa de seu tam anho, para perceber como este
movimento de segmentação se acentua.55 D epartam ento de
criação, subdividido em redação e arte, cabendo ao re­
dator definir títulos e escrever textos, enquanto que o di­
retor de arte se ocupa da visualização, dos leiautes. D epar­
tam ento de A tendim ento, que efetua o contato com o clien­
te, interpreta suas necessidades, e traz a ele as sugestões da
agência. D epartam ento de mídia, responsável pela defi­
nição do público-alvo segundo os critérios econô­
micos. D epartam ento de Pesquisa, onde se coletam infor­
mações sobre o público e os mercados. Divisão de trabalho
que se complexiza quando a em presa é maior, como a tele­
visão, envolvendo, além do setor da produção, artistas, di­
retores, escritores, editores, sonoplastas, etc. Esse movi­
mento de racionalização não se expressa somente pela espe­
cialização, mas determ inadas profissões, essenciais p ara o
funcionam ento da indústria cultural, conhecem neste pe­
ríodo um crescimento substancial. O caso dos fotógrafos é
sugestivo, sobretudo se com pararm os a evolução desta pro­
fissão com os Estados Unidos. D eFleur e Ball-Rokeach
mostram que o desenvolvimento da profissão de fotógrafo
foi essencial para a constituição de um a indústria cinem a­
tográfica am ericana.56 E ntre 1880 e 1930 o núm ero desses
profissionais passa de 9 900 para 39000. No caso brasileiro,
temos um a evolução semelhante, mas com datas trocadas.
Em 1950 existiam 7 921 fotógrafos, número que passa para
13 397 em 1960, 25 453 em 1970 e 48 259 em 1980.57A insu­
ficiência de profissionais na década de 50 corresponde à
precariedade da indústria da cultura nessa época. Somente
na década de 70 vamos alcançar os índices am ericanos da
década de 30, p ara superá-los em 80. A com paração com os
Estados Unidos é sugestiva porque é na década de 30 que

(55) Ver Zilda Knoploch, Ideologia do Publicitário, Rio de Janeiro, Achia-


mé, 1980.
(56) D eFleur y Ball-Rockeach, Teorias de Ia Comunicación de Masas.
Barcelona, Paidós, 1982, p. 86.
(57) Dados in José Carlos D urand, Arte, Privilégio e Distinção, op. cit.,
p. 379.
144 R E N A T O O R T IZ

realmente se instaura nesse país uma verdadeira industria


da cultura. Não estou com isso sugerindo que a história da
cultura na periferia deva repetir o destino que teve nos paí­
ses centrais (inclusive porque essa história é distinta na E u ­
ropa), mas apontar p ara o fato de que determ inadas m u­
danças estruturais levam necessariamente a certos fenô­
menos que me parecem ser internacionais. A constituição
de um a sociedade de consumo nos Estados Unidos dos anos
30 tem traços semelhantes às m udanças que se consolidam
no Brasil anos depois.
A im plantação de um a indústria cultural modifica o
padrão de relacionam ento com a cultura, um a vez que defi­
nitivam ente ela passa a ser concebida como um investi­
mento comercial. O processo de industrialização da tele­
visão, e particularm ente o papel que nele desem penha a te­
lenovela, é esclarecedor. Com a introdução do videoteipe,
novos gêneros puderam ser reinventados. É o caso da tele­
novela diária, narrativa que dificilmente poderia ser cons­
truída dentro de um esquem a de filmagem ao vivo, dem an­
dando toda um a estrutura de produção que adequasse sua
realização ao processo de exibição das imagens. A fabri­
cação da telenovela necessita de um a estrutura em presarial
sólida, maiores investimentos iniciais, implica num a acen­
tuada divisão de trabalho, num ritmo intenso de produção.
As em presas, ao escolherem este gênero como carro-chefe da
indústria televisiva, de um a certa forma se vêem na posição
de se reform ularem para produzi-lo. Lançada experim en­
talm ente em 1963, a novela se torna logo um sucesso, o que
se m anifesta claram ente em 1964, com O D ireito de N a s ­
cer. Ao longo da década de 60 este tipo de narrativa se
consolida definitivamente junto ao público consum idor.
E ntre 1963 e 1969 são levadas ao ar 195 novelas. 58 Se em
1963 somente três novelas foram exibidas, este núm ero sobe
para 26 em 1964, atingindo um pico de 48 em 1965. Todos
os canais existentes lançam mão dessa nova estratégia para
conquistar o mercado, inclusive a TV Cultura.
(58) Os dados relativos à telenovela são provenientes de um a pesquisa
coordenada por mini sobre “ A Produção Industrial da Novela” . T rabalho em
andam ento, Program a de Pós-G raduação em Ciências Sociais, PUC-SP.
A M O D E R N A T R A D I Ç Ã O B R A S IL E IR A 14?

E interessante observar que no Brasil a telenovela foi


escolhida como o produto por excelência da atividade tele­
visiva. C ontrariam ente aos Estados U nidos, onde a soap-
o pera seguiu na televisão o esquem a do rádio, se dirigindo a
um público feminino durante o horário da tarde, a novela
se transform ou entre nós num produto p r im e -tim e , e para
ela convergiram todas as atenções (de m elhoria do padrão
de qualidade e dos investimentos). O interesse comercial
que existia em relação às radionovelas no Brasil se transfere,
portanto, p a ra as telenovelas, as firmas preferindo um tipo
de investimento seguro p a ra atingir um público de massa.
No início, algum as m ultinacionais como Colgate Palmolive
e Gessy Lever procuraram repetir o esquem a que m an­
tinham no rádio, produzindo paralelam ente às emissoras
algumas novelas, contratando autores e adaptadores de
textos latino-am ericanos. M as esta nova fase de industria­
lização era incompatível com a descentralização, o que fez
com que as emissoras se tornassem as únicas centrais gera­
doras de program as. Não deixa de ser im portante sublinhar
que a popularidade da novela, e por conseguinte sua explo­
ração comercial, vai redim ensionar a lógica da produção
das em presas, im plicando no desaparecim ento de gêneros
dram áticos que m arcaram a década de 50. Refiro-me em
particular ao teleteatro e ao teatro na televisão, exibições
que se voltavam p ara textos clássicos, adaptações de filmes,
peças de autores nacionais, e que atuavam em compasso
com o movimento teatral. Em 1963, momento de experi­
m entação da prim eira novela diária, a Exceisior acaba com
dois program as culturais, T eatro 9 e Teatro 63. Se 1964 é o
ano de O D ire ito d e N a sc e r, exibido pela TV Tupi, ele
tam bém m arca o fim do G rande Teatro Tupi, considerado
até então como o símbolo dos Diários Associados. Em 1967
a Tupi tira do a r o TV V anguarda, encerrando definitiva­
mente o ciclo do teleteatro, e inaugurando-se a era da hege­
monia da telenovela, produto de massa que canaliza toda a
dram aturgia televisiva brasileira.
O exemplo da telenovela nos remete à discussão do re­
lacionamento entre as esferas de produção de bens restritos
e a de bens am pliados, que havíamos abordado anterior-
146 RENATO ORTIZ

mente. Norm alm ente esse debate tem sido traduzido na li­
teratura sobre comunicação de massa como um a oposição
entre cultura de m assa e cultura de elite. O seminário diri­
gido por Lazersfeld, em 1959, organizado pelo Tam im ent
Institut e a revista D a e d a lu s , ilustra bem como se dividem
as opiniões dos intelectuais e dos especialistas quando tra ­
tam da questão.59 No caso da escola de F rankfurt, creio que
em linhas gerais suas idéias são conhecidas. N um a socie­
dade de consumo a cultura se torna m ercadoria, seja para
aquele que a fabrica ou a consome. Na m edida em que a
sociedade avançada é caracterizada pela regressão da au ­
dição, isto é, pela incapacidade de reconhecer o novo, p ro­
dutores e consumidores fariam parte de um mesmo pólo,
reforçando o sistema de dom inação racional.60 Não quero
me alongar neste texto sobre as questões teóricas, são várias
as críticas que poderíam os levantar; pessoalmente penso
que a perspectiva frankfurtiana que vê a ideologia exclusi­
vamente como técnica, o que significa assim ilar a cultura à
m ercadoria, tem o m érito de cham ar a atenção p ara certos
problem as, mas nos impede de com preenderm os outros. Eu
diria que a cultura, mesmo quando industrializada, não é
nunca inteiram ente m ercadoria, ela encerra um “valor de
uso” que é intrínseco à sua m anifestação. Há um a dife­
rença entre um sabonete e um a ópera de sabão. O prim eiro
é sempre o mesmo, e sua aceitação no mercado depende
inclusive desta “ eternidade” que garante ao consum idor a
qualidade de um padrão. A segunda possui um a unicidade,
por mais que seja um produto padronizado. Por isso prefiro
a postura de Edgar Morin quando afirm a que “ a indústria

(59) Ver Norman Jacobs (org.), Culture fo r M illions, op. cit. Sobre o
mesmo debate, Georges Friedm an, “ Culture pour les M illions", in Ces Mer-
veilleux Instrum ents, Paris, Denoêl, 1979.
(60) São vários os escritos sobre a cultura como m ercadoria. Seguindo esta
tradição temos, no caso da im prensa, Ciro M arcondes Filho, O Capital da N o tí­
cia, São Paulo, Ãtica, 1986. É sintom ático que um autor como Hoffman, que na
Alemanha tem defendido a tese da “ im prensa como negócio” , tenha recentem ente
sublinhado os impasses deste tipo de abordagem exclusivamente econômica. Ver
B. Hoffman, “ On the Development of a M aterialist Theory of Mass Communi-
cation in W est G erm any” , in Media, Culture and Society, n? especial A fter the
Frankfurt School, vol. 5, n? 1, janeiro de 1985.
A M O D E R N A T R A D I Ç Ã O B R A S IL E IR A 147

cultural deve constantem ente suplantar um a contradição


fundam ental entre suas estruturas burocratizadas-padro1
nizadas e a originalidade do produto que ela fornece. Seu
funcionam ento se fundam enta nesses dois antitéticos: bu-
rocracia-invenção, padrão-individualidade” . 61 Sua análise
sobre aS estrelas de cinema é neste sentido exemplar, ele as
apreende como m ercadoria e como m ito.62
Porém, seria ingênuo descartar pura e simplesmente a
análise frankfurtiana, pois a ênfase na questão da raciona­
lidade nos perm ite cap tar m udanças estruturais na form a
de organização e de distribuição da cultura na sociedade
m oderna. Essa transform ação não se reduz, no entanto, à
sua natureza econômica, o que significa dizer que a cultura
não é simplesmente m ercadoria, ela necessita ainda se im ­
por como legítima. A cultura popular de massa é produto
da sociedade m oderna, mas a lógica da indústria cultural é
tam bém um processo de hegemonia. Com isso entendem os
que a análise da problem ática cultural deve levar em conta
o movimento mais amplo da sociedade, e, ao mesmo tem ­
po, perceber a cultura como um espaço de luta e de dis­
tinção social. Penso que o advento da sociedade industrial
nos colocou frente a um a força que tende a ser hegemônica
no cam po da cultura. No caso brasileiro percebemos essa
tendência quando com param os os anos 40 e 50 ao desen­
volvimento da indústria cultural na década de 70. A relação
de intercâm bio e cum plicidade que havia entre a esfera de
produção restrita e a am pliada é revertida. O exemplo do
surgimento da telenovela em detrim ento do teleteatro é su­
gestivo. Ele aponta para o fato de que o espaço de criativi­
dade na indústria cultural deve estar circunscrito a limites
bem determinados. Não quero dizer com isso que a criati­
vidade não possa se expressar mais, que ela desaparece
diante da produtividade do sistema, mas cham ar a atenção
para o fato de que sua m anifestação se torna cada vez mais
difícil, encontra menos espaço, e está agora subordinada à

(61) Edgar M orin, L'E sprit du Tem ps, Paris, Grasset, 1962, p. 27.
(62) Edgar M orin, LesS ta rs, Paris, Seuil, 1972.
148 RENATO ORTIZ

lógica com ercial.63 Utilizando um a expressão de Foucault,


eu diria que a indústria cultural age como u m a instituição
disciplinadora enrijecendo a cultura. Se nos anos passados
era possível um trânsito entre as áreas “ eruditas” e de
“ m assa” nos moldes como a analisam os anteriorm ente, isto
se devia à própria incipiência da sociedade de consumo
brasileira; a distinção social conferida pela cultura “ artís­
tica” cum pria um papel supletivo no subdesenvolvimento
da esfera de bens am pliados. M orin tem razão quando diz
que a indústria cultural tem necessidade da invenção, m,as é
necessário com pletar o pensam ento e afirm ar que a relação
entre os dois pólos antitéticos não é dialética, como al­
gumas vezes ele sugere; existe um processo de subordinação
entre eles. O advento de um a sociedade m oderna reestru-
tura a relação entre a esfera de bens restritos e a de bens
am pliados, a lógica comercial sendo agora dominante, e
determ inando o espaço a ser conferido às outras formas de
m anifestação cu ltu ral.64

(63) A relação entre teatro e televisão exprim e bem como se estrutura


atualm ente a tensão entre essas esferas culturais distintas. A consolidação da tele­
visão como indústria reorganiza a lógica do cam po teatral na medida em que ela
constitui o grande m ercado para os atores. Isto significa que as peças, para dar
bilheteria, tendem a utilizar roteiristas, e principalm ente artistas consagrados
pelo grande público (de preferência os que atu.aram nas telenovelas). Não se trata
simplesmente de um conflito entre áreas diferenciadas, é o próprio quadro da
produção teatral que se modifica, fazendo com que o teatro se torne cada vez mais
dependente da produção televisiva. Um artigo interessante sobre este tema é o de
Yan M ichalski, "T eatro — Progresso ou R etrocessos", UnB, Humanidades, ano
IV, n? 12, fevereiro/abril de 1987.
(64) A década de 60 não corresponde som ente ao advento das indústrias
da cultura no Brasil. D urante esse período se constitui tam bém um mercado de
artes plásticas que até então inexistia entre nós. Ver José Carlos D urand, op. cit.
O popular e o nacional

Q uando nos deparamos com a literatu ra sobre a socie­


dade de consumo, reiteradam ente encontram os um a dis­
cussão sobre a despolitização da sociedade. Num prim eiro
nível, o tem a nos remete ao problem a da integração dos
membros da sociedade no capitalism o avançado, e se refere
ao processo de “ despolitização das m assas” . Vários a u ­
tores, oriundos de tradições teóricas distintas, têm apon­
tado para este lado da questão. Cito, por exemplo, David
Riesman, que não partilha inteiram ente das críticas que se
fazem à cultura de massa; que no seu livro clássico, A M u l ­
tidão S o litá ria , m ostra como elementos dessa cultu ra f u n ­
cionam como um meio de ajustar os indivíduos à socie­
dade. 1Ou o trabalho de Leo Lowenthal sobre as biografias
dos ídolos p opulares.2 Lowenthal as considera como estó­
rias exem plares que tendem a difundir ju n to ao público
um tipo ideal de com portam ento a ser alcançado. Sua
análise do gênero indica que nos Estados Unidos, entre
1900 e 1940, há um a m udança no padrão do herói b io g ra­
fado. No início do século,as publicações privilegiam a vida

(1) David Riesman, A M ultidão Solitária, S ío Paulo, Perspectiva, 1971.


(2) Leo Lowenthal, "T he Biographical Fashion" e "T h e Trium ph of Mass
Idols", in Literature and Mass Culture, Nova Jersey, T ransaction Books, 1984.

También podría gustarte