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Queria mais vida. Melhor que dormir, seria acordar com alguém.
Adoraria viver o clichê: “bom dia amor, te trouxe café com club social,
jornal quentinho e flores em vasinho de plástico. Um beijinho? Escove os
dentes antes”. Mas não é assim.
Acordo todos os dias pouco antes das seis, a sós comigo mesmo a
vários sóis. Lavo os pratos de ontem antes do desjejum. Meus amigos
invisíveis ainda não acordaram. O có-có-ri-có dos carijós já soa bem alto
a essa hora. Não oro...não tem porque.
Desço as escadas com os sacos pretos na mão. Sempre me pareceram
transporte pra defunto e dessa vez estão mais pesados. Lugarzinho bom de
se viver, vizinhos que mal se vêem e mal se tocam nas mãos.
Menininhas saem às pressas daqui a pouco. Já visto short com
camiseta. Caminhada pela beira do rio. A barriga não me deixa trepar de
outro modo que não de ladinho. Perco o fôlego.
Vou pensando que porra de barulho era aquele ontem no andar de
cima. Treparam como loucas aquelas meninas, depois pararam...quem sabe
pra um cigarro?! Eu devia parar.
O melhor é a intimidade ocasional dos elevadores: “bom dia, tá
quente hoje não?”. Muita merda pra uma pessoa só.
Não agüento mais ficar ilhado aqui, vou enlouquecer, já ando
falando sozinho, aposto que eles comentam. Tem uma poltrona velha e um
sofá pra três bundas na recepção, o puto do porteiro sempre cochilando e
babando: uma nojeira só, inútil. Se pelo menos eu fosse a uma reunião de
condomínio ele ia ver. Mas penso na família dele, bando de coitados...
coitados de merda, mas coitados.
Mas o coito não me sai da cabeça, um monte de espermatozóides
correndo atrás dos neurônios. Já voltando passo na padaria, mal atendido
como sempre e sempre seis pães e uma caixinha de leite tipo B.
Que deleite cortar o pão quentinho e esparramar manteiga nas
duas bandas. A caixa é uma delícia.
São 7:30 da manhã já na Paraíso com Ananás. No Vespertino – –
nome lindo para um edifício – – lembro de não mais adiar o dia a dia.
Apartamento 202. Frente pro tumulto. Frente pro mundo. Frente
pro muro do mundo. Frente pro murro do mundo. Um embrulho no estômago.
Remelento
Sweet Madeleine
Amor necrofílico
Mão no peito.
Silêncio.
(...)
– Ouviu? – ele disse, com clareza murmurante.
(...)
– Tente de novo. – suplicou sem vísceras convincentes.
(...)
– E aí, ouviu?? – apiedando-se da solidão acompanhada.
(...)
– Mundo novo, não? – amarelando de otimismo sua voz.
(...)
– Como sua pele tá clarinha, gelada! – tocou o corpo como se
toca a lama. (anagrama da alma).
(...)
– Sei...não quer mais falar?! – já com raiva angustiada trancada
no colo uterino que não tinha.
(...)
– E, se eu cantasse uma música? – mudo, só se ritmasse os pés no
solo.
(...
...)
– Um pouco tonto, percebe? – embriagado de si em si bemol. -
comeria seus pulsos.
...vidros
...madeira
...ferro
! Crash ! Tum ! – um tombo onomatopéico.
...nem pra mugir.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
“...desperdice despedir-se
eu não disse, mas que quis kiss me quis...”
estava aos pedaços trapos.
minúscula contração distraída dos olhos.
mínimo da musculatura que havia restado.
ouvia o coração até parar.
“...visse que viria iria rir
se vai não queira ir
não sem um bocado de mim
desculpe os (pulsos) palavrões...”
sem pilhas, cem pilhas jogadas fora.
pilhérias sérias dos terceiros,
quartos dos meninos à esquerda
corredores acesos depois das onze, estranheza.
“...morro aos poucos quando vivo...”
o som na noite é mais que silêncio,
Florêncio foi depois de Hortência
no horto morto das acácias
um pequeno cheiro de hortelã restou.
“...um menino com cravo na lapela
pra doce menina com margaridas no cabelo...”
dos hábitos antigos: ouvir seus velhos discos.
faixas arranhadas que falavam de amor no gramofone agora mudo.
saudade da Elis
Travado
Imóvel
Doméstico
Na hora do chá
Moro sozinho.
Apartamento vazio. Um aperto danado de saudade dos filhos. Não
quero mais falar deles.
Deixo tudo bem organizado a minha volta, ela nunca gostou de
desmantelo. Minha caixa de ferramentas está sempre pronta pra próxima
execução, mas já não me chamam há tempos, não depois da labirintite.
Odeio a inutilidade. Devia ter ido com ela.
Tenho roupas no varal, uma panela de pressão e uma cafeteira
elétrica.
Onde moro, não gosto do lado da vista. Submundo demais pra mim.
A Paraíso não é como já foi. Aquela praça anda mal freqüentada. Cadê os
homens do servir e proteger? Já não se sabe mais a quem!
Odeio a TV. Me deprime, sabe?! Essas músicas que vêm da rua e
dos outros apartamentos, que pobreza. Vejam só, outro dia pego o elevador
e um garoto com os cabelos espetados só no meio da cabeça entra. Achei
que ia me acachapar de sopapo em cima. Engraçado, foi até educado.
Mas meus filhinhos não viveriam assim.
Estou aqui falando, falando, falando e me dou conta que estão de
costas. E quando dou de costas não vejo ninguém.
Estou ficando senil, eu acho.
Não tenho visitas desde nem sei quando. Meu telefone não toca,
eu reclamei tanto tempo disso. A vista dessa janela só a crediário.
Percebo que tenho companhia...queria cuspir daqui de cima.
Meus móveis não têm tanto pó como inquilinos.
Sentiriam minha falta, garanto!
Mas tanto tempo que não me escrevem. Mas ela foi assim tão
assim, já fazem cinco anos. Nem pra me buscar.
Já avisei aos bombeiros, o cheiro ficaria insuportável. Eu
sempre fui bom vizinho, não seria dessa vez que daria problemas, não é?
Mas sim, vai ser assim...tá um pouco a tarde, será que vão ouvir? Espero
que não, nunca gostei de incomodar.
Adoro revista de armas. De cavalos também. Foi depois deles não
chegarem que definitivamente definhou tudo: o cetim das cortinas, a seda
do chale, o chá quente tão inglês que fervia às cinco da tarde.
16:48
Quase na hora.
Sorte ter boa relação com o farmacêutico. Ele me entende. Quer
saber, vou cuspir! “ô velho filho da puta!”. Menino mal educado, mas foi
certeiro. Ia me arrepender se não o fizesse. Bom alvo. Boa mira. Pensando
melhor, devia ter atirado.
Já falei do bule que também tenho? Pois já tá apitando que
ferveu.
16:57
Hora de te ver, querida!
azia e má digestão
chuvisco canivete
organismo
inorgástico
um pouco de suco gástrico
ebulindo
escatológico
escarrológico,
impenetramutável
Chico: “quem sabe:
desorganizando possa se organizar
talvez se organizando possa desorganizar”
Palco preparado
Picadeiro ardendo
Platéia vazia
Hoje, nem os vizinhos