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O LEVANTE DOS “IDIOTAS”

... bem vistas as coisas, um arquiduque, um rei, um imperador não são mais do que cornacas montados
num elefante (Saramago: A viagem do elefante).

O Quarto Estado. Giuseppe Pelizza da Volpedo, 1901

Dostoiévski leva muito tempo para escrever seu magnífico livro “O Idiota”. Ele o concebe em
sintonia com as condições sociais que impõem ao povo russo a necessidade histórica de
determinação de uma nova civilização. Até primeira metade do século XIX, a Rússia é um reino
agrário fundado na servidão e governado por imperadores. Coube ao Czar Alexandre II, em
1860, abolir o estatuto da servidão e, desse modo, criar condições ao processo de
industrialização do Império russo.
O avanço do capitalismo na Rússia, - que leva à extinção da servidão -, se constitui por meio
de uma aliança política entre nobres e capitalistas. Os servos repentinamente separados da
possibilidade de produzirem sua existência, tal como antes, são compelidos à migração, à
busca de trabalho pago fora de suas aldeias e, ao assalariamento nas cidades. Nobres
também passam a viver nas cidades. Nestas, dedicam-se além do ócio, ao luxo, aos prazeres
e devassidões proporcionados por uma riqueza secularmente acumulada. Assim existirão até
que sociedade seja subvertida de modo a configurar uma nova ordem de relações humanas.
Dostoiévski vive em tempos conturbados. As revoltas sociais que assolam a Rússia precisam
ser contidas por meio da repressão violenta e sistemática do poder estatal. Os czares,
detentores de um poder absoluto, empregam toda sorte de violência e de censura diante das
revoltas camponeses e do proletariado, então submetidos a uma exploração brutal.
A história é pródiga em mostrar que, toda vez que uma determinada forma de vida humana
começa a ter dificuldades para se reproduzir como tal, surgem movimentos que ameaçam
subverte-la revolucionariamente e, na mesma medida, movimentos destinados à sua
perpetuação.
O fato é que nesses momentos históricos em que indivíduos tendem a se desorganizar
juntamente com suas instituições sociais, surgem propostas de reformas da sociedade. Não
são poucos os que pretendem dar solução àquilo que julgam ser um problema. No entanto,
todo o imenso esforço humano dispendido a fim de dirimir dificuldades sociais parece inútil.
As tentativas de conferir sensatez à insensatez se diluem quando as antigas crenças, ética,
valores, hábitos e modos de viver são postos em questão. As incertezas se sobrepõem às
formulações até então inquestionáveis. As profundas e frequentes agitações no modo de existir
instigam respostas às indagações: O que fazer?
A grandeza ou a pequenez de cada pessoa pode ser medida pela resposta que cada uma
delas dá frente a essa nebulosa passagem histórica. Há os demônios que assombram o
mundo, e que vendem, como Doutor Fausto, de Goethe, a “alma ao diabo”, em troca de uma
vida suntuosa. Há aqueles que querem perpetuar, a qualquer preço, um modo de vida já
condenado historicamente.
Em contrapartida, há os que, como Dostoiévski, não sucumbem aos trágicos tempos de
transição social. Por sua conspiração política, o escritor é preso e condenado à morte pelo
poder imperial russo. Tem a pena comutada. Em seguida, é enviado para uma prisão na
Sibéria onde é submetido aos horrores do trabalho forçado. Após quase uma década regressa
à Petersburgo, sua terra natal. Sua vida e criações literárias serão marcadas definitivamente
por essas medonhas experiências.
Apesar dos horrores da perseguição política czarista, Dostoiévski não recua. Recorre ao que
mais sabe fazer: escrever livros. É pelo poder das palavras que ele “abre caminho” na
sociedade.
Míchkin é “O Idiota”, seu personagem principal, um príncipe sem súditos, sem posses, esquisito
e atoleimado que vive um longo período fora da Rússia. Seu retorno à sociedade russa é
surpreendente. Suas atitudes isentas de pedantismo e de malícia causam espanto e
curiosidade entre a nobreza russa. Seu apego à justiça e à bondade é inabalável. Não julga e
nem condena as pessoas, ainda que seja humilhado, ofendido e ludibriado. Seu horror à
violência e à morte é uma condenação daqueles que recorrem a tais meios para preservar sua
classe social. Míchkin é, antes de tudo, um defensor da vida. Sua compaixão, sem limites,
choca-se com “os desregramentos sociais” que infestam a Rússia no século dezenove.
O que atormenta Dostoiévski? Sua constatação de que o individualismo e o egoísmo são
nutridos pela propriedade privada da riqueza, desta condição que alimenta injustiças sociais,
cujo resultado é a submissão da maioria das pessoas à extrema humilhação, ou à escala mais
baixa da dignidade humana. Seu protagonista, um personagem capaz de sacrificar-se pelo
bem coletivo, é contraponto ao estado em que se encontra a sociedade russa. Mais do isso, faz
de um príncipe - quanta ironia! – o porta voz de uma necessidade histórica: a necessidade de
superação das velhas relações sociais. Na verdade, seu personagem principal, de aparência
tão frágil e inofensiva, defende a constituição de uma Rússia soberana, autônoma, original e
organizada coletivamente e, nesta qualidade, desvinculada da história burguesa europeia.
Será que Dostoiévski tem uma espécie de vaticínio sobre o destino da Rússia? Talvez. O certo
é que sua previsão histórica torna-se realidade na primeira década do século XX, um resultado
de movimentos revolucionários que estremecem o Império russo e a Europa Ocidental durante
toda segunda metade do século dezenove.
E, nos dias atuais? O que fazer em meio à combinação monstruosa entre pobreza e riqueza?
Como abrir caminho diante dessa contradição histórica que transforma o mundo em um em
um gigantesco “leprosário social”?
Uns o fazem pelo “rasgo do gênio”, tal como Dostoiévski, outros, “pela destreza da corrupção”
(Balzac). Alguns, com balas de artilharia e, outros ainda, que atuam como uma peste: os
impostores que prometem salvar a sociedade por meio do sacrifício - da eliminação de
qualquer assistência social - dos trabalhadores imolando-os à insaciável lei da acumulação
capitalista. Interessante observar que a violência, a esperteza e a mediocridade tornaram-se
armas políticas para vergar a população. Por todo lado, sentimos a ponta afiada dessas armas.
Aqui, não houve um príncipe, tal como o de Dostoiévski, que dribla a censura de tiranos
enfurecidos determinados a lhe tirar a vida. Mas, em compensação, tem o “Bobo”, de Clarice
Lispector.
Quem é o bobo? O que faz dele um ser capaz de despertar um misto de esperança e de alívio?
Quem é esse estranho personagem capaz de se contrapor à injustiça e à insanidade política
que devastam instituições sociais? Talvez, o bobo. Ser bobo, adverte a escritora, não significa
ser tolo, burro nem fútil. Os bobos são tranquilos e não perdem o sono, ao passo que, os
espertos, não conseguem dormir à noite, com medo de serem ludibriados. Os bobos oferecem
um mundo de saída porque ganham sabedoria e originalidade. Manter-se bobo é muito difícil
nestes tempos em que a vulgaridade, a ignorância, o preconceito, a estupidez e o ódio
florescem, como se a vida fosse uma qualquer banalidade.
Mesmo assim, o bobo tem fé, mas ele não crê em mito, isto é, no preguiçoso “Macunaíma: um
herói sem nenhum caráter”, - personagem de Mário de Andrade - que, depois de muitas
bravatas e metamorfoses em suas andanças, vira imperador do Mato. A história é narrada por
um papagaio. Incapazes de ou ligar ideias, como o sabemos, os papagaios, tornam-se
repetidores do que ouvem dizer. E, mais, guiam-se por presságios.
Mas, a crença do bobo não se confunde com a daqueles que cultuam uma entidade que se
manifesta, nesta ou naquela árvore frutífera, porque ele não crê em superstições, embora elas
existam. O bobo tem uma fé semelhante à do príncipe Míchkin, porque ambos acreditam na
capacidade dos homens que criam e que resolvem seus próprios problemas, ou seja, no
“movimento sempre renovador da história” (Lígia Klein).
O bobo, parafraseando Clarice Lispector pode ser um Santos Dumont que concretiza o sonho
de Ícaro; pode ser um Guimarães Rosa que entende “conversas de bois”; ou ainda, um
Portinari, que pinta a fome dos desterrados em seu próprio país.
Bobos são também os “idiotas” que não fraquejam diante das adversidades. São aqueles que
se organizam para mudar os rumos da nossa história. Também há “idiotas” que, como os
bobos, lutam pela escola pública, laica e estatal e pela socialização do conhecimento
historicamente acumulado. Decretar o fim da escola - desta necessidade histórica antes que a
humanidade tenha produzido uma nova forma de aprendizagem - significa ceder ao
obscurantismo que, nestes tempos, ameaça a sociedade e, em particular, a escola. Esta forma
educacional poderá vir a ser uma extensão de igrejas, por conseguinte, do predomínio da
aprendizagem de ensinamentos religiosos em detrimento da aprendizagem laica, desta
condição imprescindível à formação humana atual.
No passado, a ciência teve de travar uma luta de vida ou morte contra o conhecimento
revelado. Até vencer a batalha contra os dogmas escolásticos, a fogueira da Inquisição
precisou queimar muitos hereges, um modo de tentar barrar o avanço de forças civilizatórias da
humanidade.
As lutas em defesa da pesquisa e da produção do conhecimento das instituições públicas
estatais brasileiras, refletem uma necessidade: a do avanço de certas forças produtivas no
longo processo de libertação dos indivíduos. Ou os homens dão sequência a essa condição
histórica, ou perecerão na moderna barbárie. A repressão e o ódio ideológico a professores,
estudantes, dentre outros trabalhadores, escancaram o pavor de certos segmentos sociais
diante do novo. Eis porque “eles perseguem águias”, mas não sabem voar” (Neruda).
Uma vez que a “vida não cabe em nenhuma certeza” (Guimarães Rosa) exatamente porque a
história é um processo de forças em luta não nos cabe lamentar os efeitos deletérios da nossa
civilização, pois eles configuram uma grande revolução em curso. Nada mais. Cabe, isto sim, já
que a criação da vida é “mutirão de todos”, darmos sequência ao movimento de emancipação
da humanidade, desta condição histórica pelos homens criada.

Edna Garcia Maciel


Doutora em Educação

Florianópolis, maio de 2019

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