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Ideologia e Fun¢do do Modelo Liberal de Direito e Estado José Eduardo Faria’ Introducao Enmbora tio citado em prosa e verso, 0 liberalismo é hoje uma expresso vaga, ambfgua — um lugar comum a indicar um movimento partidério, uma ética, uma estrutura institucional ou mesmo uma reflex4o politica. E como s&o muitas as prdticas, os interesses e os argumentos que atualmente se escondem sob o rétulo “liberal”, 0 conceito de liberalismo encontra-se semanticamente desgastado: diante de tanta imprecisdo conceitual, como distinguir os varios adjetivos do substantivo, isto &, as diferentes experi- €ncias histéricas consideradas “liberais”, por um lado, e 0 conceito de liberalismo, por outro? Mais do que isso: haver4 algumas possibilidades de se falar num liberalismo no singular, ou seja, unfvoco e universal? Este artigo nao tem por objetivo responder a esta questfio, mas partir dela para discutir algumas dificuldades enfrentadas pelo liberalismo no ambito do Direito e do Estado capitalista — universo no qual as ideologias liberais sempre encontraram solo fértil para se desenvolver. Postulando-se assim que 0 liberalismo encerra formas e contetido varidveis, cobrindo um vasto conjunto de fendmenos politicos ¢ juridicos que tradicionalmente despertam atitudes ¢ reag6es emotivas ideolégicas, podendo “Joes Eduardo Faria & professor adjunto do Dep. de Filosclla © Teoria do Direto da USP @ coordenador do grupo de trabaiho Direto © Sociedade da ANPOCS. Ex-prot. vstante da UnB @ vieting-college da Universidade de Wineconein Law School, Madison, EUA. por isso ser examinado como recurso lingiifstico para a consecug’o de certos fins, assume-se aqui a impossibilidade de se falar num liberalismo no singular — como se tal expresso pudesse por si designar um ‘nico e verdadeiro padrao de organizagdo institucional baseado na liberdade tutelada pela lei, na igualdade formal, na certeza juridica, no equilfbrio entre os poderes e no Estado de Direito. O que se quer dizer é que, enquanto um dos mais conhecidos e poderosos lugares-comuns inerentes a pratica juridico-politica moderna e contem- pordnea, o liberalismo tem um cardter simultaneamente descritivo/informativo e emotivo/persuasivo. Ou seja: de um lado expressa uma forma especifica de organiza¢ao do Estado; de outro, como as palavras v4o adquirindo diferentes sentidos conforme as circunstancias em que so utilizadas e como seus signi- ficados acabam sendo determinados por funcionalidades intencionais, projetando- se operativamente a servico de inimeras ideologias e grupos politicos, o libera- lismo contém um imenso potencial de uso ret6rico, mediante o disfarce das intencionalidades valorativas sob uma roupagem aparentemente descritiva. Na vida social, as agdes costumam estar tanto ou mais estimuladas por motivagdes ideolégicas emanadas do contexto sécio-econédmico do que pelo contetido descritivo que as principais palavras da linguagem politica possam conter. Gragas a alta carga emotiva dessas palavras, como “liberdade” e “jgualdade”, elas permitem a defesa de valores abstratos por aqueles que as invocam — 0 que explica a razdo pela qual o liberalismo jurfdico-politico, partindo da nogio de liberdade formal, se converte num eficiente recurso retérico de que se vale uma dada classe para, num dado momento da histéria, agir hegemonicamente numa dada formagao social. Ao mascarar a presenca de significados emotivos pela aparéncia de Especial: Ideologiae... 83 contetidos informativos, esses expedien- tes ret6ricos abrem caminho para a conquista da unanimidade de um conjun- to de atitudes, habitos e procedimentos. Ou seja: produzem reag6es de aprovacao/ desaprovag4o e amor/6dio ndo propria- mente por meio de indagag6es sobre a realidade, mas por meio de predeter- minag6es ideoldgicas disfargadas como dados inquestion4veis sobre o mundo. A forga operativa desses expedientes ret6ricos € que faz do liberalismo juridico-politico e de sua énfase A nogo de liberdade tutelada pela lei, um dos mais importantes estere6tipos politicos do mundo moderno e contemporaneo. Vinculado aos conflitos de interesse ¢ & luta pelo poder, 0 estereétipo politico é um termo em que as aparéncias descritivas envolvem, manipulam e escondem emogées, permitindo aos governantes conquistar a adesio dos governados aos valores prevalecentes pela forca magica dos elementos significantes, em detrimento das significagdes. As expressdes estereo- tipadas na linguagem politica cumprem, assim, um papel decisivo na reprodugao das formas de poder — e é nesse sentido que 0 esteredtipo “liberalismo”, produ- zindo 0 efeito de distanciagao e o conseqiiente espaco ideolégico no qual 0 Estado moderno monopoliza a produgo do Direito e manipula os instrumentos normativos e politicos necessdrios A manuten¢ao de um padro especifico de dominac4o, provoca uma alienacao cognoscitiva entre os “cidadaos” formal- mente “iguais”: afinal ao serem levados a acreditar na possibilidade de uma ordem legal equilibrada e harmoniosa, na qual os conflitos sécio-econémicos sao mascarados e “resolvidos” pela forga ret6rica das normas que regulam e decidem os conflitos juridicos, tais “cidaddos” tornam-se incapazes de compreender e dominar as estruturas sociais em que elés, enquanto individuos historicamente situados, esto inseridos. 84 LUANOVA Por causa dessa conexo entre as fung6es descritivas e persuasivas das palavras que animam a vida politica, em cujo Ambito a linguagem se converte num instrumento ndo s6 de compreensao, mas também de modificaggo e transfor- mago das pautas valorativas em fungdio das mudangas sécio-econémicas, nomear com a expressio “liberal” um sistema politico significa rotulé-lo de modo “positivo”, possibilitando a indugo de comportamentos, a formagdo de hdbitos e a consolidagao de crengas. As definiges de termos dotados de grande carga emotiva tém assim um cardter prag- matico, pois seu uso de forma estereo- tipada decorre das exig@ncias inerentes ao aparecimento e/ou continuidade de uma dada estrutura de dominagao, mediante a orientacdo das emogoes favordveis/desfavordveis e 0 emprego de express6es-chave para os objetos que se deseja prestigiar/censurar, enfatizar/ suavizar, canonizar/desprezar. Em suma: como a palavra “libera- lismo” adquiriu enorme forca operativa ao longo da histéria moderna e contem- pordnea, sua enorme carga emotiva acaba prejudicando seu significado cognosci- tivo. Por qué? Porque tem servido como um fator de referéncia positiva, uma espécie de “condecoragao”, permitindo sua ampla manipulagao na aplicacdo aos mais diversos e contraditérios fenémenos politicos. Mesmo no plano da teoria juridico-politica e do direito constitucio- nal a expresso “liberalismo” também encerra intimeras armadilhas, na medida em que seu sentido pode resultar de uma reflexdo doutrinéria impulsionada pelo desejo (consciente ou inconsciente) do teérico em justificar, desprezar e contestar situag6es especificas, Liberalismo + democracia: a formula retérica do “Estado de Direito” Tudo o que foi dito a respeito da expresso liberalismo pode, igualmente, ser repetido com relagdo & nogao de democracia: ela é igualmente um topos — isto 6, uma f6rmula de procura aberta indeterminada, representa um importante ponto de apoio para a argumentacao politica, ao mesmo tempo que serve de orientagao praética na elaboragdo de estratégias cujo sentido também € fixado conforme as necessidade histéricas de interdependéncia dos diversos grupos e classes que compéem uma sociedade estruturalmente diferenciada. A exemplo do liberalismo, 0 topos democracia também traduz inimeras combinatérias tempordrias e diferentes equilfbrios ad hoc de interesses que a prOpria praxis politica vai reformulando & medida que as necessidades de cada seg- mento e cada grupo social em confronto com os demais s&o alteradas. Nesse sentido, alias, a prépria histéria do libe- ralismo encontra-se intimamente associ- ada a historia da democracia moderna, num processo de continuas transfor- mages s6cio-econdmicas e politico- culturais sob a égide do capital, sendo por isso dificil, como afirma Bobbio, chegar-se a um consenso acerca do que existe de liberal e do que existe de demo- cratico nos regimes que costumam apre- sentar-se como “democracias liberais”. Se pretendemos portanto analisar algumas das contradigées inerentes ao termo “liberalismo”, especialmente no Ambito do Direito e do Estado capitalista, antes somos obrigados a atribuir-lhe alguns significados minimos. Isto porque n&o se pode distinguir o regime liberal dos regimes ndo-liberais sem, prelimi- narmente, explicitarem-se as ambigili- dades que a expresso “liberalismo” costuma expressar na linguagem politica corrente. Somente assim é que se torna possivel entender algumas distingdes conceituais importantes na teoria e na prética politica — distingSes estas muitas vezes pressupostas sem que delas se tenha consciéncia, suscitando pseudo-

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