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Recife
2019
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RESUMO:
1 INTRODUÇÃO
Hershovitz tem como tese principal a de que a discussão sobre seguir-uma-regra feita
por Wittgenstein nas Investigações Filosóficas é irrelevante para a filosofia do direito em
geral e, mais especificamente, para a caracterização da distinção entre casos fáceis e casos
difíceis levada a cabo por Hart em O Conceito de Direito. O debate contemporâneo em torno
da utilidade de Wittgenstein para o direito favorece este tipo de atitude, por mais atrapalhada
que ela seja.
Nas páginas que seguem, defenderei uma concepção fundamentalmente crítica do uso
que se tem feito de Wittgenstein na filosofia do direito e argumentar, contrariamente a
Hershovitz, pela relevância das Investigações Filosóficas aos problemas teóricos do direito.
Sem cair em uma discussão hiper-focada na interpretação (ou não) de normas, pretendo
demonstrar como o direito difere da linguagem ordinária, e é exatamente na medida em que
nos distanciamos do uso cotidiano das palavras que a filosofia do direito encontra seus
problemas insolúveis. Argumentarei, que em vez de utilizar Wittgenstein para focalizar em
pontos hiper-específicos como o faz a discussão contemporânea, será mais útil posicionar as
nossas lentes analíticas sobre a filosofia do direito em si.
1 Durant e o que vei o a ser cham ada de “perí odo de t ransi ção” ent re o Tract at us Logi co-
Phi l osophi cus e as Invest i gações Fi l osófi cas, Wai sm ann t ornou- se o pri nci pal el o ent re
Wi tt genst ei n e o C í rcul o de Vi ena, ao pont o de os dois t erem , em cert o m om ent o, avent ado
a hi pót ese de escreve rem um l i vro em conj unt o. O proj et o, t odavi a, não se concret i zou.
Wi tt genst ei n perdeu, gradual m ent e, a confi ança em Wai sm ann com o um bom t radut or de
suas i dei as. (MONK, p.121, 1991)
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Para Hart, o conceito de regra está intimamente ligado a uma ideia de controle social.
(HART, p. 124, 2012) Isto é, certos padrões normativos são dirigidos a uma coletividade, uma
entidade geral, e não a indivíduos específicos. No caso específico do direito, afirma Hart, dois
são os instrumentos de comunicação destes padrões normativos: a legislação e o precedente.
Enquanto a legislação se dá de forma eminentemente verbal (por meio de um código, por
exemplo), o precedente se dá de forma exemplificativa. Para ilustrar a diferença, Hart alude à
figura de um pai e o seu filho entrando na igreja. Se, por um lado, o pai pode dizer o filho:
“todos devem retirar o chapéu da cabeça antes de entrarem na igreja”, ele poderia também
dizer: “Olhe: devemos nos portar assim diante desta situação” e em seguida retirar o próprio
chapéu e entrar na igreja. No primeiro caso, há um comando verbal. No segundo, uma
explicação através do exemplo O filho, nas duas ocasiões, deve escutar ou observar o pai e
repetir o seu comportamento. (HART, p.125, 2012)
Hart, acharia que um automóvel é um veículo, mas poderia se perguntar: e uma bicicleta? 2
(HART, p. 126, 2012)
2 É curi oso not ar que Wi t t genst ei n, m esm o sem fal ar sobre casos jurí di cos, dá um exem pl o
al go sem el hant e em sua di scussão de j ogo de l i nguagem : “Al guém m e di z: “Most re um
j ogo às cri anças! ” Ensi no-l hes a j ogar dados a di nhei ro, e o out ro m e di z: “Eu não ti nha
em m ent e um t al j ogo”. Era necessári o que est i vesse em sua m ent e a excl usão do j ogo de
dados quando m e deu a ordem ?” (IF , 71) A si t uação rem et e di ret am ent e ao exem pl o da
pl aca em um parque: caso um a am bul ânci a preci se acudi r al guém que passa m al dent ro do
parque, a proi bi ção à ent rada de veí cul os se apl i ca a el a? Tant o no caso de ensi nar um
j ogo de azar às cri anças quant o a perm i ti r a ent rada da am bul ânci a há um cert o
desconfort o em qual quer respost a que se dê. S e, por um l ado, est á cl aro que um j ogo de
dados é um j ogo, qual quer pessoa bem -i nt enci onada não o ensi nari a a um a cri anças. E, no
caso da am bul ânci a, há concordân ci a quant o ao fat o de um a am bul ânci a ser um veí cul o,
m as as consequênci as de não se perm i t i r que el a socorra um a pessoa doent e são odi osas.
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homens não são deuses, capazes de falar em uma língua perfeita, logo conclui pela inutilidade
completa da linguagem e isto, diz Hart, é absurdo.
Como defensor do modelo de regras, Hart rechaça a afirmação acima. Sua rejeição
desta máxima é acompanhada, pela parábola do apontador do jogo. Imagine um jogo
competitivo, em que há ao menos dois jogadores num embate qualquer. O jogo, naturalmente,
possui uma regra para determinar como e quando um dos jogadores marca um ponto. Em um
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estágio inicial, não há a figura de um árbitro, e ainda assim os jogadores são capazes de entrar
em consenso quanto à pontuação. De tempos em tempos conflitos e disputas podem surgir
mas, no geral, o sistema permanece algo estável. Digamos que, à medida que o jogo se torna
mais complexo, os jogadores sentem a necessidade de incluir um indivíduo para marcar a
pontuação do jogo. Quando este indivíduo afirma “o jogador tal pontuou”, ambos os times
devem se submeter à decisão. Supondo que o slogan “direito é o que os tribunais dizem que
ele é” esteja correto, o apontador do jogo tornar-se-ia, de fato, a única medida para decidir
acerca da pontuação. Contudo, rebate Hart, mesmo que a decisão do apontador seja final, a
regra de pontuação não deixa de existir. O apontador do jogo não têm poder discricionário
absoluto, ainda existe uma regra para regular o seu comportamento, e ele deve tentar
concretizá-la ao máximo. Os jogadores, naturalmente, também tentarão aplicar a regra dentro
do jogo. Eles tentarão pontuar de acordo com o que diz a regra, não tomarão como base uma
previsão daquilo que o apontador diria. Em outras palavras: os jogadores continuam jogando
o “jogo original” e não o “jogo-de-adivinhar-as-decisões-do-apontador”, como seria o caso
estivesse a tese realista correta.
Esta confusão entre os dois tipos de jogos não ocorre, segundo Hart, pois há um
núcleo estável de sentido do qual nem os jogadores nem o apontador podem se afastar:
“It this [o núcleo estável] which the scorer is not free to depart from, and
which, so far as it goes, constitutes the standard of correct and incorrect
scoring, both for the player, in making his unofficial 3 statements as to the
score, and for the scorer in his official rulings. It is this that makes it true to
say that the scorer’s ruling are, though final, not infallible. The same is true
in law.” (HART, p.144, 2012) (Grifos meus)
3A di st i nção ent re afi rm at i va ofi ci al e não-ofi ci al é anál oga à de i nt erpret aç ão aut ênt i ca e
i naut ênt i ca encont rad a em (KELS EN, p. 387, 2009)
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O que deve ficar claro a partir desta análise é que a distinção caso fácil/difícil não está
ligada em absoluto a uma ideia de complexidade. Casos longos, repletos de documentos,
testemunhas, provas a serem produzidas e outras dificuldades de ordem prática ou teórica
podem ser fáceis. Enquanto casos extremamente simples, como o de decidir se uma bicicleta é
um veículo, podem ser difíceis. A dificuldade está, para Hart, nas deficiências da linguagem.
O homem não é Deus e não pode se comunicar perfeitamente. Deve aceitar os obstáculos e
falhas da sua linguagem sem com isso desistir de regras preestabelecidas como sendo padrões
de conduta a serem observados por juízes.
3. SEMELHANÇAS DE FAMÍLIA
Dito isto, como seria possível explicar a alguém o que é um jogo (ou mesmo veículo,
para usar o exemplo de Hart)? Se o conceito não é fechado, ele é aberto e incapaz de ser
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Claro está que se negarmos a existência de algo comum entre o que chamamos de jogo
entraremos em rota de colisão com o velho Sócrates, que ia de casa em casa, de festa em festa,
de banquete em banquete, com o fito único de arengar com os convivas e perguntar-lhes “O
que é isto?”. Quando as respostas dadas às perguntas, inevitavelmente, eram incompletas,
Sócrates regozijava-se: vocês não sabem de nada, mas pensam que sabem. A postura de
Wittgenstein é um contragolpe às perguntas socráticas. Perguntar “o que é justiça” e esperar
uma resposta sub specie aeternitatis é uma moléstia do pensar. Não é como se devêssemos
negar a possibilidade de refinar nossos conceitos com mais perguntas e distinções:
“Isto pode ser dito também da seguinte forma: nós eliminamos mal-
entendidos ao tornarmos nossa expressão mais exata: pode parecer, no
entanto, que aspiramos a um estado determinado, à exatidão perfeita; e que
isto é a meta propriamente dita da nossa investigação.” (IF, 91)
deu justamente durante os anos 1930, durante suas conversas com Wittgensteins. Ele não está
em sintonia com as Investigações Filosóficas, e nem mesmo com os Blue and Brown Books.
4 DE VOLTA AO CEMITÉRIO
“Our adjudicative procedures are only used when a doubt has been raised;
indeed adversarial and advocacy-based legal systems invite the expression of
doubt during adjudication. Thus it is not surprising that interpretation is an
integral part of adjudication. Interpretation in adjudication is based on
reasons; it is a reflective activity. The end product, the interpretation, must
be something which can be followed without further interpretation. In
practice, this means that no doubts have been raised about how the
interpretation applies in the instant case. When a decision is issued, we
understand what it requires; it resolves the question. Where no doubts have
been raised, it is possible to apply a law without interpretation. But how
often are judges asked to make decisisions of law where no doubts have been
raised, no competing arguments offered about how a law applies?”
(HERSHOVITZ, p.639, 2002)
Este parágrafo revela, em termos gerais, o quão errado Hershovitz está em afirmar que
a discussão de Wittgenstein é inútil para a teoria do direito. É precisamente pelo fato de haver
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gente que pensa desse modo que Wittgenstein deve ser reforçado. Confundir a instauração e
progressão de um procedimento judicial com a existência de dúvida real quanto ao significado
de certas locuções e seus prováveis desdobramentos é, no mínimo, sinal de inocência.
Além disto, se é verdade que “[…] when a decision is issued, we understand what it
requires; it resolves the question.” seria impossível que a doutrina se opusesse a determinadas
decisões tomadas pelos juízes. Um juiz precisa chegar a uma decisão qualquer em uma
quantidade finita de tempo: é a vedação ao non liquet. Ao contrário do cientista, o qual se
reserva o direito de afirmar “Eu não sei, talvez um dia venha a saber, talvez não”, o juiz
sempre sabe, por definição. Iura novit curia. A decisão é o último passo de uma cadeia finita
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de movimentos e jogadas, e este último passo deve ser obtido por razões eminentemente
práticas. Ainda que em seu íntimo o juiz se sinta pouco convicto de que está com a razão,
ainda assim ele precisará dar um fim à demanda instaurada em juízo.
É bem verdade que em direito por vezes agimos de modo puramente reflexivo: são
feitos cálculos quanto a pertinência de certos dispositivos a certas situações, os pedidos
devem ser realistas, os argumentos devem estar expostos com algum grau de clareza, etc. No
entanto, para poder chegar a este grau de reflexividade, o jurista já lançou para dentro do seu
baú de ferramentas um sem número de hábitos, máximas e comportamentos. Em uma certa
medida ele jamais reflete sobre questões básicas e fundamentais: “I really want to say that a
language-game is only possible if one trusts something (I did not say "can trust something").
(OC, 509) Se visualizarmos o direito como um jogo de linguagem, devemos admitir que em
situações normais os juristas simplesmente agem, não tentam deslegitimar o sistema como um
todo. Em vez de tomarem certas proposições contingentes como sendo subjetivas ou algo do
gênero, tomam as imposições e idiossincrasias do funcionamento de um aparelho jurídico
como algo tão objetivo quanto o rolar de uma pedra por uma ladeira: os advogados pedem, os
juízes decidem, a polícia faz cumprir.
Este ponto é tratado e retratado ao longo de toda a obra tardia de Wittgenstein. Em seu
On Certainty, Wittgenstein trata de proposições ligadas à epistemologia, do tipo: “eu sei
que...”, “eu acho que...” e afins. Nesta obra ele trata sistematicamente de como somos capazes
de duvidar as certezas de terceiros e as nossas próprias:
Só pode haver uma discussão dentro de um sistema, e para que o sistema possa existir
os seus participantes não podem, a todo momento, questionarem as suas premissas mais
básicas. Isto não quer dizer que haja uma essência por trás do sistema, apenas que os seus
integrantes deixam transpirar sua aquiescência através de um certo tipo de comportamento.
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5 CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
BIX, Brian. Law, Language, and Legal Determinacy. Oxford: Oxford Press, 1993.
CASTRO JR., Torquato da Silva . A Bola Do Jogo: uma metáfora performativa para o
desafio da pragmática da norma jurídica. In: Adeodato, J. M.; Bittar, E. C. B.. (Org.).
Filosofia e Teoria Geral do Direito: homenagem a Tercio Sampaio Ferraz Júnior. São
Paulo: Quartier Latin, 2011, pp. 1075-1088.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de: João Baptista Machado. 8. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2009.
MONK, Ray. Ludwig Wittgenstein: The Duty of Genius. Penguin Books: Nova
Ioque, 1991.
_______. Gramática Filosófica. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Loyola,
2003.