Está en la página 1de 292

HI STÓRIA ECO NÔM I CA

DO P E RÍODO COLO N IAL


UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Reitor Adolpho José Melfí


Vice-reitor Hélio Nogueira da Cruz

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAl!LO

Comi.l'são Editorial José Mindlín (Presidente)


Laura de Mello e Souza
Murillo Marx
Oswaldo Paulo Forattini
Plínio Martins Filho

Diretor-presidente Plínio Martins Filho


Diretora Editorial Silvana Biral
Diretora Comercial Eliana Urabayashi
Diretora Administrativa Angela Maria Conceição Torres
Editor-a.1·sistente João Bandeira

••••
bauNs.\é:>:-:,,,.sp IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO

Diretor presidente Sérgio Kobayashi


Diretor vice-presidente Luiz Carlos Frigerio
Diretor industrial Carlos Nicolaewsky
Diretor financeiro e

admini.l'trativo Richard Vainberg


TAMÁS SZMRECSÁNYI
(organizador)

HISTÓRIA ECONÔMICA
,.

DO PERIODO COLONIAL

Segunda Edição Revista

Coletânea de textos apresentada no


1 Congresso Brasileiro de História Econômica
(Campus da USP, setembro de 1993)

ASSOCIACÃO
BRASILEIRA DE
PESQUISADORES
EM H ISTO RIA
ECONÔMICA
©Copyright, 1996, by Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Sandra Regina Vitzel Domingues)

H 58n História Econômica do Período Colonial/ Tamás Szmrecsányi (organizador). -2. ed.
revista. - São Paulo: Hucitec/Associação Brasileira de Pesquisadores em História
Econômica/Editora da Universidade de São Paulo/Imprensa Oficial, 2002.

Inclui referências bibliográficas


ISBN Obra completa 85-271-0354-0 (Hucitec)
Volume 1 85-271-0355-9 (Hucitec)
Volume 1 85-314-0691-9 (Edusp)

Coletânea de textos apresentada no 1 Congresso Brasileiro de História Econômica


(Campus da USP, setembro de 1993)

1. Brasil - História - Período Colonial, 1500-1822 2. História econômica


1. Szmrecsányi, Tamâs (org.).
CDD - 981.03
330.981

índices para catâlogo sistemático:

1. Brasil: História: Período Colonial, 1500-1822 981.03


;2. História econômica 330.981

Direitos reservados à

Editora Hucitec Ltda.


Rua Gil Eanes, 713 - 04601-042 -São Paulo -SP - Brasil
Telefones: (Oxxll) 5044-9318 geral; (Oxxll) 5543-5810 vendas; (Oxxll) 5093-5938 fac-símile
Home page: www.hucitec.com.br -E-mail: hucitec@terra.com.br

Co-edição:

Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica


Cai xa Postal 174 - 14800-901 - Araraquara - SP - Brasil
Telefone: (Oxx16 ) 232-0444 Ramal 114
Home page: www.abphe.org.br - E-mail: abphe@fclar.org.br

Edusp - Editora da Universidade de São Paulo


Av. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, 374
6º andar - Ed. da Antiga Reitoria -Cidade Universitária
05508-900-São Paulo -SP-Brasil- Fax (Oxxll) 3091-4151 Tel. (Oxxll) 3091-4008/3091-4150
Home page: www .usp.br/edusp -E-mail: edusp@edu.usp.br

Imprensa Oficial do Estado


Rua da Mooca, 1921 -Mooca - 03103-902 - São Paulo - SP- Brasil
Pabx: (Oxxl l) 6099-9800 - SAC 0800-123401
Home page: www .imprensaoficial.com.br-E-mail: editorial@imprensaoficial.com.br

Printed in Brazil 2002

Foi feito o depósito legal


SU MÁRIO

Apresentação vii

Escravismo e grandes lavou ras


Russel R. Menard & Stuart B. Schwartz
Por que a Escravidão Africana? A Transição da Força de
Trabalho no Brasil, no México e na Carolina do Sul 3
Vera Lúcia Amaral Ferlini
Pobres do Açúcar: Estrutura Produtiva e Relações de Poder
no Nordeste Colonial 21
Guillermo Palacios
Agricultura Camponesa e Plantations Escravistas no
Nordeste Oriental durante o Século XVIII 35

li
"Ciclo" do ouro e u rbanização
Caio C. Boschi
Nem Tudo o que Reluz Vem do Ouro . . . 57
Ronaldo Marcos dos Santos
Mercantilização, Decadência e Dominância 67
João Antônio de Paula
O Processo de Urbanização nas Américas no Século XVIII 77

Ili
Pecuária e culturas de su bsistência
Manuel Correia de Andrade
A Pecuária e a Produção de Alimentos no Período Colonial 99

Sumário 1 v
Maria Yedda Leite Unhares
A Pecuária e a Produção de Alimentos na Colônia 109
Francisco Carlos Teixeira da Silva
Pecuária, Agricultura de Alimentos e Recursos Naturais
no Brasil-Colônia 123

IV
Ofícios, manufatu ras e comércio interno
José Roberto do Amaral Lapa
O Interior da Estrutura 1 63
Maria Helena Ochi Flexor
Ofícios, Manufaturas e Comércio 1 73
Leila Mezan Algranti
Os Ofícios Urbanos e os Escravos ao Ganho no Rio
de Janeiro Colonial (1 808-1822) 195

V
Comércio colon ial e exclusivo metropolitano
José Jobson de Andrade Arruda
Exploração Colonial e Capital Mercantil 217
Francisco José Calazans Falcon
Comércio Colonial e Exclusivo Metropolitano: Questões
Recentes 225
Pedro Puntoni
Os Holandeses no Comércio Colonial e a Conquista
do Brasil, 1540-1 635 239
Eddy Stols
Os Países Baixos Meridionais no Século XVII:
um Contramodelo do Milagre Holandês na Expansão
Marítima e Colonial 269

vi Sumário
APRESENTAÇÃO

Ao contrário do que geralmente se acredita, os historiadores não


são estudiosos do passado apenas pelo passado. Da mesma forma
que os demais seres humanos, eles têm seus interesses centrados
na atualidade e no futuro, procurando, inclusive através de seus
conhecimentos do passado, elucidar as raízes e as razões da pri­
meira, e tentar construir cenários para o segundo. Na verdade, o
objeto de estudo da disciplina reside primordialmente nas trans­
formações das estruturas sociais, econômicas e culturais através
do tempo. Tais transformações envolvem sempre aqueles três perío­
dos, comportando simultaneamente processos de permanência e
de mudança, tanto fenômenos de ruptura como fenômenos de con­
tinuidade.
Dentro dessa perspectiva, a economia colonial assume uma nova
feição, tomando-se parte do presente e ajudando a delinear as ten­
dências do futuro. Isto, aliás, já tinha sido percebido, há mais de
meio século, por Caio Prado Jr. no seu clássico Formação do Brasil
Contemporâneo, que tem o termo "Colônia" por subtítulo. Essas
mesmas características podem ser detectadas nos 16 ensaios in­
cluídos neste volume, nos quais se fala do passado fundamental­
mente para explicar, se não o presente em si, pelo menos as suas
origens.
Agrupados em cinco blocos temáticos, esses ensaios tratam de
assuntos sempre atuais, como: os mecanismos de exploração do
trabalho forçado; as relações entre pequenos e grandes produtores
agropecuários; o abastecimento alimentar das cidades; a constitui­
ção nestas de circuitos mercantis específicos, primeiro esboço da
formação de um mercado interno; as atividades econômicas urba-

Apresentação vii
nas que surgem e se desenvolvem em função do mesmo. Tudo isso
sem deixar de lado a questão essencial da natureza e da dinâmica
das relações entre metrópoles e colônias.
Várias contribuições aqui apresentadas chegam a ser originais,
por estarem diretamente baseadas em pesquisas documentais pró­
prias e específicas. Outras fazem uma rigorosa avaliação crítica da
literatura já disponível, apresentando, sempre que necessário, as
devidas proposições ou interpretações alternativas.
Os três ensaios do primeiro bloco temático, intitulado "Escra­
vismo e Grandes Lavouras, tratam da instituição e das atividades
econômicas mais importantes do período colonial. Russel Menard
& Stuart Schwartz avaliam as relações de produção escravistas em
âmbito internacional, comparando a experiência brasileira nesse
campo com a de outras regiões do Novo Mundo, principalmente o
México e o sul dos atuais Estados Unidos. Por sua vez, os trabalhos
de Vera Lúcia Amaral Ferlini e de Guillermo Palacios examinam a
difícil convivência de grandes e pequenos proprietários de escra­
vos e de terras no Nordeste, focalizando, respectivamente, a pro­
dução açucareira omnipresente no Litoral, e o surgimento e expan­
s ão para o Interior da cultura algodoeira. Ambos têm o mérito de
chamar a atenção para a crescente presença de uma categoria so­
cial bastante numerosa, mas muitas vezes esquecida pela historio­
grafia tradicional - a dos agricultores livres e pobres, os futuros
moradores, cuja força de trabalho iria substituir a dos escravos a par­
tir de meados do século XIX.
No segundo bloco, sob o título de "Ciclo do Ouro e Urbaniza­
ção", aparecem outros três ensaios que analisam a gênese e o de­
senvolvimento de um tipo de economia colonial diverso do retra­
tado no bloco anterior, o qual se estruturou em torno da mineração
de ouro e de pedras preciosas. Trata-se de uma economia que con­
some e compra alimentos e outros bens produzidos fora dela, e que
dá origem a uma série de atividades colaterais, tanto no campo
como nas próprias cidades mineiras. Essas novas atividades no meio
urbano e as trocas de mercadorias ensejadas pela mineração são
estudadas, respectivamente, por Caio Boschi e Ronaldo Marcos dos
Santos. Por sua vez, o ensaio de João Antônio de Paula compara o
processo de urbanização de Minas Gerais com o que houve, na
mesma época, nas colônias inglesas da América do Norte.
O terceiro bloco, igualmente integrado por três ensaios, permite
aprofundar a análise das atividades subsidiárias à economia de

viii 1 Tamás Szmrecsányi


exportação - tanto agrícola como mineira - desenvolvidas no
meio rural, ao enfocar, de um lado, a agricultura de subsistência, e
do outro, a pecuária de córte ultra-extensiva, praticadas no Brasil­
Colônia. O trabalho mais circunstanciado a respeito da última é o
da autoria de Francisco Carlos Teixeira da Silva, que faz uma boa
discussão tanto do seu componente escravista como da sua nature­
za de grande produção mercantil. Além de comparar entre si as vá­
rias regiões pecuárias que surgiram já naquele passado longínquo,
Manuel Correia de Andrade evoca, ao lado das culturas autócto­
nes, as que foram trazidas e aclimatadas de outros continentes. De
tudo isso, e de suas próprias pesquisas sobre a mesma temática,
Maria Yedda Leite Linhares infere a urgente necessidade de se
ampliar e aprofundar as investigações a respeito desses produtos e
atividades.
As atividades propriamente comerciais são examinadas nos dois
blocos restantes. O quarto trata de temas ainda pouco abordados
pela nossa historiografia: os "Ofícios, Manufaturas e Comércio
Interno" . Estes temas são focalizados em suas dimensões mais
abrangentes no sugestivo ensaio de José Roberto do Amaral Lapa,
enquanto que o trabalho de Maria Helena Ochi Flexor discute
em profundidade o aparecimento e desaparecimento de ofícios em
diversas regiões da Colônia. Já o estudo de Leila Mezan Algranti
refere-se a uma época mais recente, o início do século XIX, quando
o Brasil já estava prestes a deixar de ser colônia, e tem por objeto
específico a inserção dos escravos tanto nos ofícios como no comér­
cio urbanos, dentro do chamado "sistema de ganho", uma impor­
tante modalidade de trabalho servil que iria manter-se até a Aboli­
ção. Nesse bloco temático só deixaram de ser examinadas as ativi­
dades manufatureiras, que, embora escassas e localizadas, também
chegaram a existir na Colônia, inclusive ao arrepio do princípio
mercantilista do exclusivo metropolitano. Referências a respeito
podem ser encontradas no ensaio de Douglas Cole Libby, que figu­
ra no volume relativo à História Econômica da Independência e do Im­
pério, lançado simultaneamente a este livro.
De qualquer forma, o princípio em si do exclusivo metropolita­
no, junto com suas principais conseqüências, é devidamente ana­
lisado nos quatro ensaios do último bloco temático, relativo ao co­
mércio colonial propriamente dito - isto é, ao "intercâmbio" entre
a Colônia e a Metrópole. Os aspectos mais gerais do mesmo são
discutidos e equacionados do ponto de vista teórico nos trabalhos

Apresentação ix
de José Jobson de Andrade Arruda e de Francisco José Calazans
Falcón. As contribuições de Pedro Puntoni e de Eddy Stols têm um
caráter mais marcadamente empírico, e dizem respeito à participa­
ção, inclusive bélica, de holandeses e flarnentos no referido comér­
cio.
Por motivos técnicos, tivemos que deixar de incluir neste volu­
me a comunicação de nossos colegas mexicanos, Jorge Silva Riquer
& Maria José Garrido Aspiró, "La ciudad de Valladolid y su entor­
no agropecuario: algunas formas de abasto al mercado urbano, 1 793-
1800". Não queremos, entretanto, deixar de registrá-la e de agra­
decer a participação no Congresso de 1993 do primeiro desses
Autores. Os mesmos agradecimentos, obviamente, são também
devidos a todos os autores dos trabalhos aqui publicados, e ainda
a nosso colega e amigo Fernando Antonio Novais, que muito con­
tribuiu à organização e realização daquele evento, mas que, devi­
do a seus múltiplos afazeres, ficou infelizmente impossibilitado
de participar da edição deste volume.
Agradecimentos são também devidos às entidades que apoia­
ram e patrocinaram a realização daquele evento, notadarnente: o
Centro de Memória da UNICAMP; os Institutos de Estudos Brasi­
leiros e de Estudos Avançados da USP; a Faculdade de Economia e
Administração da mesma Universidade, assim corno suas Coor­
denações de Cooperação Internacional (CCINT} e de Comunica­
ção Social (CCS); o Instituto Herbert Levy, do jornal Gazeta Mercan­
til; o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES); a Comissão de História Econômica do CLACSO (Conse­
jo Latinoarnericano de Ciencias Sociales) de Buenos Aires; a Fon­
dazione ASSI (Associazione di Storia sull'Irnpresa) de Milão; a
Fundação Banco do Brasil; e a Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (FAPESP}, que também contribuiu financeira­
mente para a edição deste livro. A todas elas, bem corno às inú­
meras pessoas dos mais diversos níveis hierárquicos que nos aju­
daram a promovê-lo com sucesso, dando origem a esta Associação
Brasileira de Pesquisadores em História Econômica, aqui vai o nos­
so muito obrigado.

Todos os ensaios da primeira edição foram revistos pelo orga­


nizador deste volume, com a eventual ajuda de seus respectivos
autores.
São Paulo, agosto de 2001.

x 1 Tamás Szmrecsányi
1
ESC RAVISMO E GRANDES LAVO U RAS
Russel R. Menard & Stuart B. Schwartz
Dep.tº de História, Un iversity of Minnesota

PO R Q U E A ESC RAVI DÃO AFRICANA?


A T RANSI ÇÃO DA FORÇA
D ET RABALHO NO B RAS I L,
N O M ÉXICO E NA CAROLI NA DO S UL*

O s estudiosos do surgimento das sociedades escravistas ameri­


canas encontram-se perante um dilema interpretativo. Por um lado,
o reconhecimento da escravidão africana como um fenômeno bas­
tante comum às Américas coloniais levou os historiadores a expli­
cá-la de maneira generalizadora e com base em fatores isolados. A
hipótese da fronteira aberta, por exemplo, sustenta que a escravi­
dão prosperou nas Américas devido à abundância de recursos e à
escassez de trabalhadores, fatores responsáveis pelos altos salá­
rios e pela dificuldade de controle da mão-de-obra livre. É de E.
Domar esta tese clássica. Uma argumentação de fundamentação
epidemiológica aponta a maior resistência dos negros a certas doen­
ças tropicais como o fator-chave na africanização dasAméricas (veja­
se, por exemplo, Wood) . Devido à estreita associação entre o açúcar
e a escravidão, enfatizou-se, como crucial para o desenvolvimento
desta, o tipo de trabalho necessário na lavoura de certos produtos
agrícolas (Earle) . Na sociedade do século XX, a força persistente do
racismo deu base para interpretações que partiam do preconceito
racial e das diferenças étnicas. O livro White Over Black, de D. W.
Jordan, é o mais importante dentro desta tradição. Todas estas ex­
plicações possuem algo a seu favor e cada um destes fatores de­
sempenhou um papel importante no desenvolvimento de certos
regimes escravistas. Mas, todos apresentam exceções significati-

* Tradução de Monica Dantas. Uma versão mais extensa deste trabalho


foi publicada em 1993, na Alemanha, in Wolfgang Binder (org.), Slavery
in the Americas (Kõnigshausen & Newmann), p. 89-114.

Por que a escravidão africana? 1 3


vas, bem como encorajam uma abordagem ahistórica que faz com
que a escravidão africana seja vista como um desenvolvimento ine­
vitável, não dando conta das particularidades próprias a cada um
dos diferentes regimes escravistas.
Na mesma linha, mas em situação bastante superior, situam-se
as interpretações que buscam explicar a escravidão africana nas
Américas enquanto uma condição necessária para o desenvolvi­
mento do capitalismo mercantil na Europa. A formulação que,
seguindo esta linha, obteve maior repercussão foi a de Immanuel
Wallerstein, que descreveu o surgimento dos sistemas escravistas
como parte da divisão de trabalho característica da criação e defi­
nição de uma ordem econômica mundial. Segundo ele, áreas peri­
féricas, como as Américas e a Europa Oriental, ficaram relegadas à
extração mineral e à produção de gêneros agrícolas com base numa
mão-de-obra compulsória para assegurar "a entrada do excedente
que possibilitou a existência do sistema capitalista" na área central
do noroeste europeu (Wallerstein, 1, 87). Seja pelas razões perti­
nentes às regiões centrais ou pelas respostas locais a condições es­
pecíficas, esta interpretação transforma o trabalho escravo numa
conseqüência lógica do capitalismo, mas ela não oferece uma ex­
plicação adequada quanto ao porque da escravidão ter sido a for­
ma de coerção escolhida, ou porque os africanos se tornaram a maior
fonte de mão-de-obra. E, da mesma forma que as argumentações
baseadas na fronteira aberta, na raça ou nas doenças, tamanha ge­
neralização contribui muito pouco para o esclarecimento das parti­
cularidades da transição para o trabalho escravo no Brasil, no Caribe
e na América do Norte.
Por outro lado, o reconhecimento de tais particularidades fez
com que muitos historiadores partissem para explicações ad hoc
sobre o surgimento de cada uma das diferentes sociedades escra­
vistas, relatando histórias sobre o desenvolvimento da escravidão,
fosse no Brasil, em Barbados ou na Virgínia, que desconsideravam
o desenvolvimento do processo mais amplo do qual faziam parte.
Estas histórias têm a vantagem de identificar a temporalidade e
especialidade específicas do desenvolvimento da escravidão, for­
necendo uma abundância de detalhes empíricos essenciais. No
entanto, a própria ênfase no particular faz com que os interessados
na africanização das Américas se sintam perdidos num oceano de
observações isoladas e incapazes de fornecer explicações que pos­
sibilitem a conexão entre os diferentes casos, a organização do

4 1 Russel R. Menard & Stuart B. Schwartz


material disponível, bem como a orientação de pesquisas futuras.
O que precisamos é de _uma combinação das duas abordagens,
de um estilo de análise que reconheça os elementos comuns do
desenvolvimento da escravidão africana sem eliminar as diferen­
ciações locais, que compreenda, assim, as particularidades concre­
tas de cada processo sem afogar o padrão geral num mar de deta­
lhes empírícos. Este ensaio sugere como esta combinação poderia
ser alcançada. Começa-se por delinear a estrutura do mercado de
trabalho atlântico, em inícios da era moderna, com o fim de descre­
ver as limitações que caracterizaram o desenvolvimento das socie­
dades escravistas e também de identificar algumas das variáveis
que acabaram por determinar as possibilidades relativas a organi­
zação da mão-de-obra. Este esboço nos permite levantar uma série
de problemáticas úteis no entendimento do processo histórico. Sen­
do a mais importante a questão das transições para o trabalho es­
cravo africano, pode-se entendê-la se se pensar no Atlântico como
um único sistema econômico, mesmo que frágil e imperfeito, e tam­
bém nas variações na composição da força de trabalho entre as di­
ferentes colônias e mesmo dentro de certas áreas coloniais a partir
da ótica da oferta e demanda de trabalho. Em seguida, este ensaio
passa do geral para o particular ao explorar a transição para a es­
cravidão no Brasil, no México e na Carolina do Sul de forma a de­
monstrar como características comuns a todo o Atlântico interagiam
com as limitações impostas pelas especificidades temporais e geo­
gráficas permitindo, assim, diferenciações locais dentro de um pro­
cesso comum.

Transições na força de trabalho: uma abordagem

H. A. Gemery e Jan S. Hogendorn sugeriram que, no período


colonial, as mudanças na composição da força de trabalho podem
ser melhor compreendidas se vistas a partir das interações entre a
oferta e a demanda de trabalho. Para eles, a questão fundamental
seria a observação das diferenças entre a oferta de escravos africa­
nos e de todos os outros tipos de mão-de-obra disponível para os
senhores coloniais. Estes podiam utilizar trabalhadores livres, cria­
dos contratados ou mesmo condenados europeus, índios encontra­
dos em todo Interior americano, e mesmo jovens nascidos na colô­
nia mas ainda não estabelecidos em suas próprias famílias e negó-

Por que a escravidão africana� 1 5


cios. Estes trabalhadores normalmente se encontravam em peque­
nos mercados circunscritos por limites geográficos e divisões polí­
ticas, e eram caracterizados por mudanças bruscas e imprevisíveis
na oferta e no preço. Não obstante, se numa determinada região a
demanda por trabalhadores permanecesse baixa, apenas uma des­
tas fontes de mão-de-obra já seria suficiente para suprir as necessi­
dades.
Se, no entanto, a demanda aumentasse, não demoraria muito
para que as regiões assentadas numa só fonte de mão-de-obra se
vissem com dificuldades. Como conseqüência, o preço dos traba­
lhadores nestes mercados pequenos e localizados subia assustado­
ramente, diminuindo a margem de lucro e detonando uma disputa
entre os comerciantes, que normalmente se mostravam muito en­
genhosos na descoberta de novas fontes de mão-de-obra. O resul­
tado era, em geral, uma mistura complexa, uma força de trabalho
híbrida composta não só por pessoas de diferentes origens geográ­
ficas como também de diferentes status, já que os fazendeiros aca­
bavam utilizando todos os trabalhadores que pudessem conseguir.
Um aumento constante na demanda acabou por trazer novas mu­
danças, na medida em que a capacidade destes mercados locais se
saturou e os fazendeiros tiveram que apelar para escravos negros,
africanos comercializados via uma rede de dimensões geográficas
muito maiores e também numa quantidade muito maior, transfor­
mando-se, assim, no primeiro mercado de trabalho verdadeiramen­
te mundial.
O modelo de Gemery e Hogerdorn oferece uma abordagem útil
para o estudo das mudanças na composição da força de trabalho
no período colonial. Se a oferta de trabalhadores vindos das mais
diversas origens permanecia constante, eles sugerem que as varia­
ções na demanda (uma função das diferenças de produtividade)
foram as responsáveis pela composição da força de trabalho: quan­
to maior a demanda por trabalhadores, maior a proporção de afri­
canos. Assim sendo, deveríamos supor que a escravidão africana
aumentou nos períodos de maior crescimento das economias colo­
niais, bem como nos momentos de transição da lavoura de subsis­
tência para uma agricultura de plantation. No entanto, as mudan­
ças também podiam ser provocadas por variações na oferta como,
por exemplo, uma queda na migração em resposta à menor dispo­
sição de empregados em potencial devido a maiores chances no
seu lugar de origem, a dizimação dos índios por epidemias, ou mes-

6 1 Russel R. Menard & Stuart B. Schwartz


mo a uma melhora no fornecimento de escravos africanos à medi­
da que o tráfico se tomou mais eficiente.
Existem alguns problemas em relação à abordagem proposta por
Gemery e Hogerdom. Eles pressupõem que os senhores coloniais
estavam dispostos a substituir um tipo de mão-de-obra por outro
sem se importar com questões de status, características étnicas ou
raciais, mesmo quando existem evidências que comprovam a resis­
tência dos fazendeiros, em certas ocasiões, frente a tais substitui­
ções. Eles sugerem que a força de trabalho compunha-se apenas
de trabalhadores agrícolas não-especializados, quando, na Amé­
rica, se necessitava também de um bom número de artesãos e de
mestres, demanda suprida por trabalhadores dos mais diferentes
meios e mesmo de diversos status sociais. Eles centram sua análise
na importação de trabalhadores estrangeiros, desconsiderando o
impacto das variações na reprodução da mão-de-obra disponível
nas várias sociedades escravistas americanas. Além disso, não ofe­
recem uma medida exata quanto à elasticidade da oferta, o ponto
mais crítico de sua análise. Finalmente, na América colonial, o mer­
cado de trabalho nas várias regiões de plantation era bem mais com­
plexo do que demonstra o esboço feito por Gemery e Hogendom.
Eles analisam apenas a participação de trabalhadores livres, cria­
dos europeus e escravos africanos, contudo, sabe-se que muitas ve­
zes os fazendeiros puderam contar com americanos nativos, bran­
cos já nascidos nas colônias e mesmo negros trazidos de outras re­
giões escravistas, numa espécie de tráfico secundário. Qualquer
análise sobre africanização deve levar em conta o papel destes gru­
pos. Apesar de todas estas dificuldades, o modelo de Gemery e
Hogendom tem muito a seu favor. Ele se centra num pequeno nú­
mero de variáveis, fornecendo uma série de proposições comprová­
veis, ajudando, portanto, os estudiosos a lidarem com as mudan­
ças na composição da força de trabalho em diferentes regiões. O
modelo funciona como um guia por mistérios desconcertantes que
envolvem o desenvolvimento da escravidão nas Américas.
À primeira vista, pode parecer que, por considerarmos o merca­
do de trabalho como uma forma de entender o surgimento dos re­
gimes escravistas, sejamos culpados de uma espécie de determi­
nismo econômico, ou pelo menos de desconsiderar questões com­
plexas como a cultura e as preferências. Isto só seria verdade se
considerássemos os mercados de trabalho como instituições desliga­
das do mundo em que operavam. Algo que eles claramente não eram.

Por que a escravidão africana� 7


Os mercados de trabalho funcionavam dentro de um contexto,
sendo que os preços eram artefatos culturais ricos em significado.
A observação dos mercados de trabalho nos permite contar uma
série de histórias consistentes, bem como construir uma história
comparativa bastante precisa, além de explorar algumas das ricas
dimensões culturais concernentes à africanização da América.

O caso do Brasil

A experiência portuguesa com a escravidão precedeu a ocupa­


ção do Brasil. A escravidão era uma instituição antiga na Península
Ibérica, onde a fronteira militar e cultural entre a Cristandade e o
Islã favoreceu sua permanência, enquanto que, ao norte da Euro­
pa, a escravidão já havia dado lugar a outras formas de trabalho
compulsório. Por volta de 1450, ocasionais viagens portuguesas de
exploração e comércio com a África já retornavam com escravos, e,
ao redor de 1480, já havia sido estabelecido um comércio perma­
nente de escravos em vários pontos da costa ocidental da África.
Este foi especialmente importante em fins dos anos quatrocentos, à
medida que a ilha da Madeira foi sendo ocupada e plantações de
cana foram sendo estabelecidas com base numa mão-de-obra es­
crava.
As primeiras atividades econômicas na costa brasileira resu­
miam-se ao corte e embarcação de pau-brasil. A partir de entrepostos
e feitorias, os portugueses contratavam índios para efetuar deter­
minadas tarefas através de um sistema de escambo. Quando, em
1530, com a criação das Capitanias Hereditárias, os portugueses
instituíram um sistema mais permanente de colonização, a relação
destes com os índios começou a mudar (Marchant) . Houve incen­
tivos para a colonização e pequenos povoamentos costeiros foram
estabelecidos por colonos portugueses atraídos pela oportunidade
de mobilidade social e pelas doações de terra. Uma parte dos do­
natários que controlavam as capitanias introduziram a cana-de­
açúcar, uma cultura que dependia de grandes quantidades de mão­
de-obra e de cuidados constantes. Eles se voltaram primeiramente
para os índios, sobre cujo trabalho já havia recaído a extração do
pau-brasil.
Por várias razões, no entanto, o sistema de escambo não se mos­
trou eficiente quando utilizado na produção de açúcar. Os índios
mostravam-se relutantes em efetuar tal tipo de serviço sob o siste-

8 1 Russel R. Menard & Stuart B. Schwartz


ma de escambo, o qual também começou a se decompor a partir do
momento em que os índios se recusaram a trabalhar pela mesma
quantidade e tipo de bens ·que lhes eram oferecidos anteriormente.
A sua resposta "irracional" ao mercado e sua teimosia acabaram
levando a um crescimento da escravidão como uma forma de se
conseguir trabalhadores. As fugas e a resistência indígena desen­
cadearam as campanhas militares das décadas de 1540 e 1550, res­
ponsáveis pelo aprisionamento de grandes contingentes de índios
cativos utilizados na crescente indústria açucareira do nordeste do
Brasil e na capitania de São Paulo, ao sul da Colônia. Mas, já em
1540, o donatário de Pernambuco manifestava-se a favor da impor­
tação de escravos africanos para reduzir os gastos com os salários
dos trabalhadores livres, e, em 1542, quando informou a respeito
da plantação de cana-de-açúcar e da construção de um engenho,
ele aproveitou para reiterar seu pedido de trabalhadores africanos,
enfatizando a urgência. Mesmo assim, a força de trabalho nos pri­
meiros anos da indústria açucareira no Brasil continuou dominada
por escravos indígenas.
Entre as décadas de 1540 e 1580, os senhores de engenho de­
monstraram uma permanente boa vontade no sentido da utiliza­
ção de trabalhadores indígenas sob as mais diferentes formas, des­
de o trabalho assalariado e o escambo, até a tutela compulsória e a
escravidão. Escravos indígenas, trabalhadores assalariados e "ad­
ministrados" podiam até ser utilizados conjuntamente nas ativida­
des de um mesmo engenho. Apesar das críticas à sua produtivida­
de e à facilidade com que fugiam para a floresta, os colonos portu­
gueses e senhores se mostravam ansiosos em utilizá-los. Os índios
eram normalmente chamados de negros da terra em diferenciação
aos africanos, negros da Guiné, mas a semelhança da terminologia
sugere a percepção dos portugueses quanto ao status de ambos en­
quanto trabalhadores servis.
Após 1560, no entanto, tomou-se mais difícil - e, por isso, mais
cara - a aquisição de trabalhadores indígenas. Uma série de epi­
demias, que varreram a costa entre 1559 e 1 563, dizimaram a popu­
lação indígena que vivia nas plantations e nas aldeias jesuítas. Estas
epidemias também resultaram na escassez absoluta de alimentos e
na destruição de sociedades tribais. Apesar da conquista perma­
nente de novas áreas continuar fornecendo cativos para as planta­
ções litorâneas e de novas expedições terem sido organizadas com
o intento de trazer povos para a costa, o suprimento de trabalhado-

Por que a escravidão africana? 1 9


res indígenas diminuiu e a aquisição de novos trabalhadores ficou
vinculada a gastos com a organização de operações militares cada
vez mais para o interior. Além disso, a suscetibilidade dos índios
às doenças do Velho Mundo também tornava a dependência deles
como força de trabalho, ou mesmo qualquer investimento no seu
treinamento, um negócio bastante arriscado. Isto era crucial na in­
dústria açucareira, onde muitas das tarefas do engenho exigiam
um pessoal especializado e experiente.
Por volta de 1 570, a economia açucareira do Brasil estava bem
estabelecida e entrando num período de rápida expansão. Os ses­
senta engenhos declarados em 1570 já haviam se tomado 115 em
1583; em 1630 havia 350 engenhos na Colônia. Geralmente, um en­
genho de tamanho médio dependia do trabalho de cem escravos,
distribuídos entre o próprio engenho e os lavradores de cana que
dele dependiam. Assim, a demanda mínima de força de trabalho,
somente na indústria açucareira, subiu de 6 mil trabalhadores em
1570 para 35 mil em 1 630. No entanto, esta demanda crescente de­
parou-se com uma constante queda no suprimento bem como com
o encarecimento do trabalhador indígena (Schwartz, 1985, 43-6).
Não foi, portanto, uma coincidência o fato de a importação de
africanos em larga escala ter começado na década de 1570, logo
após uma série de acontecimentos, como um desastre demográfico,
medidas políticas da Coroa e lutas políticas, terem transformado
os índios numa mão-de-obra menos atraente e mais escassa. Devi­
do à contração e à insegurança que assolaram o mercado de tra­
balho local, os senhores voltaram-se para o tráfico de escravos do
Atlântico. Por volta de 1580, dois terços da força de trabalho utili­
zada nas plantations pernambucanas ainda eram indígenas. Muitos
colonos preferiam trabalhadores africanos, mas ainda se mostra­
vam favoráveis ao uso de índios quando estes podiam ser obtidos
por preços que compensassem sua baixa produtividade, alto índi­
ce de mortalidade e a dificuldade de controle. Mesmo assim, em
1720, Sebastião da Rocha Pita expressava algo que parecia uma cren­
ça comum a todos: uma vez cativos, os índios morriam em tão gran­
de número que mesmo quando comprados pelo menor preço eles
eram caros (Rocha Pita, apud Schwartz, 1985, 51).
No nordeste do Brasil, a transição para a escravidão africana foi
feita gradualmente, entre 1570 e 1 650. Em meados de 1580, Per­
nambuco, por exemplo, tinha 66 engeajtos e 2 mil escravos africa­
nos. Com uma média de cem escravos por engenho, os africanos

1O 1 Russel R. Menard & Stuart B. Schwartz


não passavam de um terço da força de trabalho enquanto que os
índios ainda representavam dois terços. Por volta de 1650, era difí­
cil encontrar índios nos engenhos das principais capitanias produ­
toras de açúcar, e a africanização da força de trabalho já estava com­
pleta. A escravidão indígena e o trabalho compulsório ainda conti­
nuaram nas áreas de fronteira ou nas regiões mais pobres, onde a
necessidade de trabalhadores era menor e as desvantagens eram
compensadas por seu preço.
No caso brasileiro, à demanda crescente de mão-de-obra para a
indústria açucareira juntaram-se ainda as terríveis flutuações a que
esteve sujeito o suprimento de trabalhadores indígenas, variações
causadas pelas epidemias, pelas intervenções políticas e pela resis­
tência indígena. Assim, os fazendeiros viram-se forçados a apelar
para o tráfico de escravos do Atlântico, nesta época praticamente
sob controle absoluto dos portugueses. Neste sentido, esta primei­
ra transição de um suprimento local de mão-de-obra para um su­
primento internacional ocorreu no contexto de um único sistema
nacional, e foi, portanto, relativamente simples. Outras nações eu­
ropéias buscaram depois "internacionalizar" seu suprimento de
mão-de-obra através da criação de suas próprias feitorias africanas
e, neste sentido, seguiram o exemplo português.

A experiência mexicana

O México colonial, ou a Nova Espanha, representa um caso em


que a escravidão teve um papel importante, mas não predominan­
te, na força de trabalho, sendo que um grande número de africanos
foram utilizados como escravos mas permaneceram um segmento
proporcionalmente pequeno em comparação com o total da popu­
lação, estando concentrados em alguns setores da economia. Além
do mais, a importância da escravidão africana estava não só direta­
mente relacionada à história demográfica da população indígena e
livre mas também à disponibilidade e ao custo de outras fontes de
mão-de-obra. Os patrões mexicanos eram flexíveis, dispostos a usar
trabalhadores de diferentes grupos sociais e segundo diferentes ti­
pos de trabalho compulsório, de acordo com a disponibilidade e o
preço.
Nas quatro primeiras décadas após o estabelecimento do con­
trole espanhol na região central do México, a escravização de indí-

Por que a escravidão africana? 1 1


genas forneceu um bom número de trabalhadores. A instituição pré­
colombiana da servidão, ou naborias, foi apropriada pelos conquis­
tadores, enquanto a própria conquista e o estado contínuo de guer­
ra que caminhava juntamente com a expansão das fronteiras da
colônia continuava a fornecer cativos passíveis de escravização. No
entanto, nas áreas de maior concentração populacional indígena, a
escravização se mostrava muito desagregadora segundo os padrões
comunais que norteavam a agricultura sedentária, que os espanhóis
também queriam explorar.
A solução foi a encomienda, a atribuição da responsabilidade so­
bre um certo grupo de índios para um espanhol ou mesmo uma
corporação, que dele esperava conseguir trabalho ou tributos. Este
sisterma permaneceu a principal forma de organização do traba­
lho ao longo de todo século XVI, apesar de várias restrições terem
sido impostas pela Coroa. Gradualmente, a recorrência de certos
abusos acabou fazendo com que a Coroa proibisse o uso de índios
encomendados em ocupações consideradas de risco, como as minas
e a agricultura da cana, e a encomienda acabou se tornando uma
instituição essencialmente voltada para a extração de tributos, cada
vez mais exigidos em dinheiro e não em espécie. Por volta de 1540,
além da encomienda passou-se a exigir também o repartimiento, ou a
utilização de índios das aldeias em tarefas designadas pelo gover­
no. Esta instituição foi se expandindo em fins do século XVI e ao
longo do século XVII, enquanto a encomienda foi gradualmente de­
saparecendo. Em fins do século XVI, trabalhadores de repartimien­
to, escravos indígenas, trabalhadores índios livres e escravos ne­
gros trabalhavam conjuntamente emplantations ou nas minas, for­
mando uma força de trabalho híbrida.
Por volta de 1570, a demanda por trabalhadores africanos come­
çou a aumentar e, na última década do século XVI, já estava em
funcionamento um tráfico regular e em larga escala. Até certo pon­
to, a criação deste tráfico no período em que se deu foi possível
devido a realidades políticas. De 1580 a 1640 Portugal e a Espanha
foram governados pelos mesmos monarcas Habsburgos, uma situa­
ção que deu à Espanha o acesso ao já bem desenvolvido sistema
comercial português no Atlântico sul e especialmente na costa da
África. Em 1595, foi concedido o primeiro asiento, ou contrato, a um
comerciante português para o fornecimento de escravos africanos
às Índias Ocidentais. Outros cinco contratos foram concedidos à
súditos portugueses até 1 640, sendo que após a separação de Por-

12 1 Russel R. Menard & Stuart B. Schwartz


tugal contratantes espanhóis também obtiveram tal concessão. Es­
tima-se que entre 110 e 150 mil africanos foram levados à Nova
Espanha até 1 640. Isto tornaria a Nova Espanha a segunda maior
importadora de escravos africanos provenientes do tráfico atlânti­
co até aquela data, ultrapassada apenas pelo Brasil (Tutino). Esti­
ma-se que, em torno de 1570, havia mais negros no México do que
espanhóis. É necessário enfatizar, no entanto, que nunca os negros
chegaram a constituir mais do que uma pequena parcela da popu­
lação, mesmo nas áreas onde havia maior concentração. Na zona
de plantation de Jalapa, em Veracruz, por exemplo, os africanos com­
preendiam 0,04% da população em 1580, 6% no período de auge,
em 1 668, 1 % em 1 725, e novamente 0,04% em 1 791 . Para todo o
México, esta proporção nunca deve ter excedido 2% (Palmer, 1976,
40; Carroll).
Estamos particularmente interessados em dois aspectos da ex­
periência mexicana com a escravidão negra: o momento de sua in­
trodução e a prediposição dos senhores de escravos para a aquisi­
ção de trabalhadores provenientes dos mais diversos meios e de
acordo com diferentes sistemas de trabalho, em certos períodos até
simultaneamente. Como o Brasil, a Nova Espanha também passou
por uma fase em que tanto escravos indígenas como africanos esta­
vam disponíveis. Os dados referentes aos preços vigentes no sécu­
lo XVI são raros e descontínuos, mas, sabe-se que, na década de
1520, um africano valia 200 pesos, e um índio 4 ou 5. Por volta de
1530, à medida que foram escasseando os escravos indígenas, seu
preço subiu para 50, enquanto o africano caiu para 100, e, em tomo
de 1550, tanto índios como africanos valiam 200 pesos (Cardoso,
44). Existem maiores informações quanto ao preço de escravos nos
séculos XVII e XVIII. Uma série de preços referente a vendas de
escravos na Cidade do México mostra uma demanda considerável
em inícios do século XVII, sendo que, entre 1580 e 1630, um jovem
adulto valia em média 400 pesos. Os preços começaram a cair em
meados daquele século quando a população em geral começou a
se recuperar, e em torno de meados do século XVIII seu preço não
passava de 1 70 pesos (Valdes) . Nas grandes plantações de açúcar
de Atlacomulco, no atual estado de Morelos, os preços dos escra­
vos seguiram um padrão semelhante. A maioria dos africanos com­
prados entre 1596 e 1 607 foram comerciados por mais de 400 pe­
sos. Os valores continuaram aumentando até 1693, e depois foram
decaindo até meados do século dezoito.

Por que a escravidão africana� 1 13


No século XVII, os africanos eram caros, mas o retorno do capi­
tal investido em sua compra parecia promissor. Como ocorreu no
Brasil, a existência de algumas evidências sobre o período em que
ainda havia escravos indígenas disponíveis, demonstra a preferên­
cia por escravos negros para serviços em que era necessário espe­
cialização ou treino. Em alguns casos isto parece ter sido resultado
do reconhecimento da importância da experiência prévia, mas tam­
bém pode revelar a percepção dos espanhóis quanto à maior mor­
talidade dos índios frente às doenças européias. Como sugeria John
Tutino, no século XVII, os escravos negros compreendiam uma parte
importante nos empreendimentos econômicos de larga escala, jun­
tamente com os índios dos repartimientos e com trabalhadores assa­
lariados. O mesmo padrão podia ser encontrado na Morelos do sé­
culo XVIII, quando não mais existiam escravos índios. Os escravos
eram preferidos aos livres para trabalharem em tarefas em que era
necessário especialização e treinamento; uma situação que perdu­
rou J.té o último quartel do século, quando a escravidão pratica­
mente desapareceu da região (Martin, 130). Não é de surpreender
que os escravos se concentrassem nas atividades em que a produti­
vidade do trabalho era maior: nas minas, na agricultura de plan­
tation, e nas manufaturas têxteis.
Os espanhóis que se encontravam no México estavam dispostos
a procurar todo e qualquer tipo de trabalhadores. O declínio da
população indígena em meados do século XVI serviu como um es­
tímulo, não só para o tráfico transatlântico de escravos trazidos da
Á frica, como também para o tráfico transpacífico de escravos
filipinos. Já em 1573, Diego de Artieda sugeriu a constituição de
um tráfico com as Filipinas para suprir as necessidades de mão-de­
obra da Espanha (Blair e Robertson, III, 204). Em 1601, mineiros do
norte da Nova Espanha pediram a vinda de "chineses, japoneses e
javaneses" das ilhas das Filipinas (AGI, México 258, sem número
de ramo, apud Palmer, 1976, 80). Na verdade, os escravos que cru­
zaram o Pacífico para Acapulco provinham de diversos grupos ét­
nicos asiáticos, mas eram normalmente citados no México como
chinos. A escravidão indígena já existia nas Filipinas, bem como no
México, antes da ocupação espanhola, e, com a conquista, assistiu­
se apenas a uma intensificação na escravidão. Entre 1 580 e 1 591, no
entanto, a escravização de filipinos nativos foi gradualmente proi­
bida, a não ser com exceção daqueles capturados em "guerra jus­
ta", neste caso, normalmente muçulmanos. Mesmo assim, escra-

14 1 Russel R. Menard & Stuart B. Schwartz


vos chineses, das Índias Portuguesas, da Indonésia e até de Moçam­
bique continuaram a entrar no México através de Manila .
Não existem estimativás quanto ao volume deste tráfico, mas,
em 1626, a existência de uma taxa de 500 pesos sobre cada escravo
importado, pode indicar que em começos do século XVII este co­
mércio chegava a seiscentos escravos por ano. Este não é um nú­
mero insignificante, já que, naquele mesmo ano, o total de escravos
importados da África foi estimado em mais ou menos 1 .300. Mes­
mo assim, as Filipinas nunca se tornaram uma fonte importante de
mão-de-obra. As proibições quanto à escravização de nativos e,
principalmente, a árdua viagem de seis meses que separava Mani­
la de Acapulco impediram o desenvolvimento desta fonte antes
mesmo que, em 1700, a Coroa tomasse ilegal a embarcação de es­
cravos das Filipinas para o México (Schurz, 32) . O essencial para a
abordagem aqui proposta não é o número de escravos comercia­
dos, mas o interesse demonstrado pelos senhores da Nova Espanha
em relação não só a essa fonte, como também em relação à Africa,
como uma forma de responder à escassez de mão-de-obra na Co­
lônia.
Em meados do século XVII, a situação da mão-de-obra na Nova
Espanha começou a mudar, e junto com ela a importância do tráfi­
co de escravos. A rebelião portuguesa de 1 640 desorganizou o sis­
tema escravista dos asientos, que até então estava nas mãos de co­
merciantes portugueses, desencadeando um período de incerteza
e contrabando, até que, em 1663, um novo acordo foi firmado com
contratantes genoveses (Franco, 1 7-36). No entanto, neste período,
a demanda por escravos já começara a decair. A população indíge­
na já diminuíra ao máximo, e, em fins do século XVII, lentamente
começava a se recuperar. Aumentou também a disponibilidade de
trabalhadores livres das mais diversas origens. Os proprietários das
haciendas e dos obrajes mostravam-se bastante propensos a empre­
gar afro-mexicanos livres em posições anteriormente ocupadas por
escravos africanos. Na verdade, esta população de afro-mexicanos
livres cresceu rapidamente devido às alforrias e a um sistema de
casamentos em que os filhos de um escravo e de uma índia livre
eram também livres. Não se pode determinar até que ponto isto
reflete uma estratégia ou foi o resultado da desigualdade das pro­
porções raciais, mas, já no século XVIII, não só a maioria dos escra­
vos existentes no México era nativa, como também a população
escrava era bem menor do que a de mulatos e negros livres.

Por que a escravidão africana? 15


Devido à existência do trabalho livre como alternativa, o merca­
do para escravos no México acabou ruindo. Entre 1 716 e 1 739, en­
traram no porto de Vera Cruz menos de 150 escravos por ano, e os
contratantes ingleses que detinham o asiento reclamavam que o
preço no México não chegava a cobrir os custos de aquisição (Bel­
tran, 76-86, apud Tutino, 36; e também Palmer, 1981 ) . O baixo preço
alcançado no México, juntamente com o retorno conseguido com
a venda de escravos em Cartagena, Panamá e Buenos Aires de­
sestimulava os traficantes a comerciarem na Nova Espanha. Os se­
nhores de escravos estavam fazendo seus próprios cálculos quanto
aos custos e riscos no uso de escravos e de trabalhadores livres. O
período da transição do trabalho escravo para o livre variou regio­
nalmente, mas, por volta de 1 780, a escravidão já era uma institui­
ção moribunda no México.
Assim, no México como no Brasil, os colonos primeiramente uti­
lizaram a mão-de-obra indígena mas, quando esta começou a es­
cassear, voltaram-se para escravos africanos. Existiam outros para­
lelos entre o mercado de trabalho das duas regiões. Ambas utili­
zavam nas mesmas tarefas uma força de trabalho híbrida; ambas
mostraram-se engenhosas no desenvolvimento de novas fontes de
mão-de-obra e novas formas de coerção; e, finalmente, ambas con­
centraram os africanos nos setores mais produtivos da economia.
O que as distinguiu, segundo a nossa perspectiva, foi a recupera­
ção da população indígena da Nova Espanha após 1650. Esta recu­
peração acabou tornando o tráfico e, posteriormente, até a própria
escravidão desnecessários, já que os senhores mexicanos encon­
traram uma fonte de mão-de-obra segura e barata no mercado de
trabalho composto pelos descendentes livres dos aborígenes da
região.

A situação na Carolina do Sul

O rápido crescimento da tráfico de escravos para as Índias Oci­


dentais ao longo do século XVII, muito antes dos africanos surgi­
rem como uma fonte de mão-de-obra cativa na baixada carolinense
teve um papel central no desenvolvimento da escravidão nas colô­
nias continentais. Por volta de 1660, havia 34 mil negros no Caribe
Britânico, sendo que o volume anual comercializado chegava a 3
mil. Durante as décadas seguintes, os traficantes ingleses tornaram

16 1 Russel R. Menard & Stuart B. Schwartz


suas operações muito mais eficientes. Os preços caíram drastica­
mente, atingindo seu pon�o mais baixo na década de 1680. Simul­
taneamente, o volume comerciado aumentou enormemente: nas
últimas décadas do século XVII, as entregas anuais de escravos che­
gavam a 8 mil. O fornecimento de escravos para a América inglesa
melhorou ao longo do século XVII, sendo que o aumento do volu­
me e a diminuição dos preços refletiam a maior eficiência dos mer­
cados, a diminuição dos custos de transporte, e a exploração de
novas fontes de mão-de-obra na África.
Estes desenvolvimentos mostraram-se críticos aos fazendeiros
do Continente. Se, por um lado, a grande população escrava das
ilhas funcionava como uma fonte de mão-de-obra, por outro era
fácil integrar-se ao tráfico de mantimentos entre o Continente e as
Índias Ocidentais. Além do mais, os fazendeiros do Continente se
encontravam numa posição confortável: estavam frente a um mer­
cado de menor importância em relação a um fornecimento crescen­
te de mão-de-obra. Uma vez dispostos a pagar o preço pedido, os
fazendeiros da Carolina podiam conseguir todos os trabalhadores
que quisessem.
Existem algumas semelhanças notáveis entre a transição para a
escravidão africana na Carolina e seus similares no Brasil e no Mé­
xico. As três regiões tiveram experiências com outros tipos de coer­
ção e com outras fontes de mão-de-obra antes do uso de escravos
negros; todas as três misturavam trabalhadores de diferentes ori­
gens étnicas e status sociais nas mesmas atividades; e todas volta­
ram-se para os africanos quando a demanda cresceu, ou o forneci­
mento baixou, e as fontes de mão-de-obra alternativas se mostra­
ram inadequadas para suprir a demanda de trabalhadores. Não
obstante, havia diferenças entre o mercado de trabalho na região
sul da América inglesa, evidentes, por exemplo, no papel desem­
penhado pelos criados contratados e pelos escravos trazidos das
ilhas açucareiras através de um tráfico secundário. Mas, é provável
que a diferença mais reveladora tenha sido justamente a velocida­
de, o entusiasmo e a eficácia com que as Carolinas adotaram a es­
cravidão africana.
Diferentemente do Brasil, onde o processo foi gradual e incons­
tante, e do México, onde os negros nunca passaram de uma pe­
quena porcentagem da força de trabalho, a Carolina do Sul adotou
uma força de trabalho africanizada de forma rápida e completa.
Em 1 720, apenas meio século depois da primeira ocupação inglesa

Por que a escravidão africana? 1 17


na região e pouco mais de uma década depois da articulação inicial
do regime de plantation, as terras da baixada já contavam com 12
mil escravos, a grande maioria deles negros, que compreendiam
dois terços da população da colônia. O processo histórico em si já
explica parte desta diferença. Na época em que os fazendeiros da
Carolina começaram a organizar as plantations, a experiência eu­
ropéia com a escravidão nas Américas já tinha 150 anos, contando
com um tráfico regular de africanos, com um sistema de portos em
bom funcionamento, com rotas, fornecedores e mercados. O que
quer que tenha estimulado a Carolina a adotar a escravidão africa­
na, este caminho foi fácil devido ao modelo e a estrutura do merca­
do de trabalho ibero-americano.

Conclusão sumária

A estrutura da economia atlântica teve um papel essencial no


surgimento da escravidão africana na América colonial. A econo­
mia não era um sistema único e perfeitamente integrado, mas con­
sistia antes de uma série de impérios comercias nacionais, cada qual
buscando sua autonomia. Assim, os responsáveis pelo desenvolvi­
mento dos vários regimes de plantation podiam optar quanto ao
recrutamento e à organização da força de trabalho. Mas, com ex­
ceção dos escravos africanos, os trabalhadores se movimentavam
por mercados pequenos e localizados, caracterizados por mudan­
ças drásticas e imprevisíveis quanto à oferta e ao preço. Os africa­
nos, ao contrário, estavam inseridos numa rede de maiores propor­
ções - enquanto mercadorias em leilão, oferecidas em larga escala
- num mercado internacional de trabalho que tomou-os vítimas
da situação num período de rápida expansão da agricultura de
plantation das colônias americanas. Neste sentido foi o comércio de
escravos que criou a escravidão dos africanos.

Bibliografia citada

Beltran, Gonzalo Aguirre. La población negra de México; estudio etno-históri­


co. México, D.E: Pondo de Cultura Económica. 1972.
Blair, Emma Helen & JamesAlexander Robertson, eds. The Philippine Islands,
1493-1 803. 55 vols. Cleveland: The AH. ·clark Company. 1903-1909.

18 1 Russel R. Menard & Stuart B. Schwartz


Cardoso, Gerald. Negro Slavery in the Sugar Plan tations of Vera Cruz and
Pernambuco 1550-1 680: A Comparative Study. Washington, D.C.: UP of
America. 1983.
Carroll, Patrick. "Black Laborers and Their Experience in Colonial Jalapa. "
ln: Elsa Cecilia Frost, Michael C. Meyer & Josefina Zoraida Vazquez,
comps. Reunión de Historiadores Mexicanos y Norteamericanos, Pátzcuaro,
México, 1 977. México, D.E: Colegio de México - Tucson, Ariz.: U of
Arizona P. 1979, 119-32.
Domar, Evsey. "The Causes of Slavery or Serfdom: A Hypothesis." fournal
of Economic History 30 (1970): 18-32.
Earle, Carville. "A Staple Interpretation of Slavery and Free Labor. "
Geographical Review 68 (1978):51-65.
Franco, Marisa Vega. El tráfico de esclavos con América (Asien tos de Grillo y
Lomelín, 1 663-1674). Sevilla: Escuela de Estudios Hispano-Americanos
de Sevilla. 1984.
Gemery, Henry A. & Jan S. Hogendom. "The Atlantic Slave Tentative
Economic Model." fournal of African History 15.2 (1974):223-46.
Jordan, Winthrop D. White Over Black: American Attitudes Toward the Negro,
1550-1812. Chapei Hill, N.C.: U of North Carolina P. 1968.
Marchant, Alexander. From Barter to Slavery. The Economic Relations of
Portuguese and Indians in the Settlemen t of Brazil, 1 500-1 580. Johns
Hopkins University Studies in Historical and Political Science IX. l .
Baltimore: Johns Hopkins UP. 1942.
Martin, Cheryl English. Rural Society in Colonial Morelos. Albuquerque: U
of New Mexico P. 1985.
Palmer, Colin A. Human Cargoes. The British Slave Trade to Spanish America,
1 700-1 739. Urbana: U of Illinois P. 1981.
-- Slaves of the White God: Blacks in Mexico, 1570-1 650. Cambridge, Mass. :
Harvard UP. 1976.
Rocha Pitta, Sebastião da. História da America Portuguesa. Lisboa. 1720.
Schurz, William Lytle. The Manila Galleon. New York: E.P. Dutton & Co.
1939.
Schwartz, Stuart B. "Indian Labor and New World Plantations: European
Demands and Indian Responses in Northeastem Brazil. " American
Historical Review 83.3 (1978):43-79.
-- Sugar Plantations and the Formation of Brazilian Society. Cambridge­
New York: Cambridge UP. 1985.
Tutino, John. 'Slavery in a Peasant Society: Indians and Africans in Colo­
nial Mexico." Unpubl. 1978.
Valdes, Denis. "The Decline of Slavery in Mexico." The Americas 44.2 (Oct
1987) : 167-94.
Wallerstein, Immanuel. The Modern World System. 3 vols. New York: Aca­
demic Press. 1974-1988.
Wood, Peter H. Black Majority: Negroes in Colonial South Carolina from 1670
through the Stone Rebellion. New York: Knopf. 1974.

Por que a escravidão africanal 1 19


Vera Lúcia Amaral Ferl i n i
Dep.cº de História, FFLCH -USP

PO B RES DO AÇ Ú CAR:
ESTRUTU RA P RO D UTIVA E RE LAÇÕ ES
D E PO D E R N O N O RD ESTE C O LO N IAL

"O ter muita fazenda cria commumente nos homens ricos & po­
derosos desprezo da gente mais pobre . . . Quem chegou a ter título de
senhor, parece que em todos quer dependência de servos . "
A n ton il

A dominação colonial requereu a concentração do poder nas


mãos dos agentes da colonização, de forma a exercerem as funções
necessárias para o cumprimento do próprio papel da Colônia. A
organização fundiária da Colônia correspondeu à necessidade de
manutenção das formas de domínio compatíveis com o patrimo­
nialismo vigente na Metrópole, condicionando a transferência da
ordem estamental portuguesa, tendo por base as concessões de
sesmarias a demarcar as estruturas de poder pela restrição de ter­
ras. A política de concentração da propriedade da terra objetivava
não apenas a harmonização às determinações mercantis da coloni­
zação, mas também a exclusão política da população livre da posse
da terra, do controle do poder local e dos direitos de ter vínculos
com o Estado, sedimentando arraigada estrutura de privilégios.
A adoção do sistema sesmaria! para a organização do aproveita­
mento da terra no Brasil implicou em transformação das determi­
nações que deram origem a esse instituto em PortugaP . Em primei-

1 O estatuto de 1375 tinha na sua origem uma série de questões que


impulsionaram a Monarquia à regulamentação do aproveitamento de
terras: a escassez de cereais, pelo abandono das lavouras; a carência
de mão-de-obra; o encarecimento dos gêneros e a elevação dos salá­
rios rurais; a falta de gado para a lavoura; o desenvolvimento da cria-

Pobres do açúcar: estrutura produtiva e relações de poder no nordeste colonial 21


ro lugar, as terras da América eram, aos olhos dos portugueses,
sem dono, terras virgens2• Em segundo lugar, o termo sesmeiro,
antes designador do funcionário que dava as terras, passou a no­
mear o titular da doação. A distribuição de terras não tinha mais o
objetivo de prover a produção de cereais, mas viabilizar a coloni­
zação mercantil. De semelhante ficava o colono como agente dessa
empreitada semipública (pública em seu plano, particular na reali­
zação)3.
Cedo apropriadas através de generosas doações de sesmarias,
as terras canavieiras do Nordeste foram alvo de intensas disputas
por aqueles que desejavam, através do trato do açúcar, participar
de uma fatia lucrativa dos negócios coloniais. Assim, arrendamen­
tos, compra, disputa de herança e, com menor intensidade, afora­
mentos, tornaram-se formas de acesso à terra4• São constantes, ain­
da, na documentação colonial, referências a posseiros e agregados.

ção de gado em detrimento da agricultura; altos preços dos arrenda­


mentos; aumento dos ociosos, vadios e pedintes. Para isso, o diploma
legal previa os seguintes instrumentos: coação ao cultivo das terras,
sob pena de expropriação; obrigação ao trabalho agrícola de todos os
filhos e netos de lavradores com bens inferiores a 500 libras e sem ofí­
cio nem senhor; fixação de salários rurais; limitação do gado às neces­
sidades da lavra da agricultura; fixação das pensões e rendas das ter­
ras; compulsão ao trabalho agrícola, dos ociosos, vadios e mendigos
(cf. Lei das Sesmarias, 1375, parágrafos 1 a 18).
2 Não devemos idealizar a abordagem de fronteira aberta. Para o colo­
nizador a terra aparecia como sendo sem dono e inculta, passível de
doação, embora, na prática, tenha sido conquistada, em guerras san­
grentas, aos indígenas.
3 Devemos considerar aqui terem sido os colonos portugueses agentes
da colonização, que arcam, "por sua conta e risco, embora, com alguns
privilégios, com a construção do Império na Colônia" (cf. Fernandes,
Florestan. "A Sociedade Escravista no Brasil". Circuito Fechado. São Pau­
lo: Hucitec. 1978, p. 34; veja-se também Faoro, Raymundo. Os Donos do
Poder. 2.ª ed. Porto Alegre: Globo. 1975, vol. 1, p. 123-5).
4 As concessões de caráter enfitêutico correspondiam a bens vincula­
dos, em caráter perpétuo, mediante pagamento de um foro. De certa
forma, constituíam uma espécie de propriedade imperfeita, tendo o
concessionário o direito de alienar, mantendo o foro, o bem aforado.
Na documentação compulsada, o termo foro é bastante comum, não
se referindo porém a aforamentos, e representando, em geral, paga­
mento simbólico do vínculo de terra obrigada a moagem em determi­
nado engenho. Os aforamentos particulares propriamente ditos não

22 1 Vera Lúcia Amaral Ferlini


O padre Estevão Pereira anotava, em 1635, restarem muitas terras
de cabeceiras, onde se haviam "infiltrado manhosa e furtivamen­
te" lavradores por longos ános, na época dos condes, os quais não
podiam ser expulsos por força de prescrição legal5• No caso de "le­
galização" de terras possuídas por lavradores, sem autorização
dos engenhos, a venda era, muitas vezes, a solução para desalojá­
los ficando o conflito a ser resolvido entre o novo proprietário e os
posseiros6•
O modelo da produção colonial, baseado na grande proprieda­
de monocultora e escravista açucareira, consagrou o poderio dos
senhores-de-engenho, impedindo o desenvolvimento autônomo de
uma camada de pequenos e médios proprietários, que tinham as
condições de sua existência atreladas ao engenho, que lhes moía as
canas e comprava sua produção de mantimentos, tábuas, telhas,
tijolos etc.
Os que não tinham recursos sequer para arrendar terras, gra­
vitavam em torno do engenho, como trabalhadores especializados
do açúcar, moradores, agregados, prestando serviço aos senhores.
Foram, também, elementos essenciais para a manutenção da domi­
nação política e social dos senhores, bem como de seu domínio
militar. Na prática, estruturaram núcleos fortes de poder local, de
extrema resistência na sociedade nordestina.
O engenho foi o pólo aglutinador da sociedade açucareira nos
primeiros séculos de colonização, ordenando a propriedade e o uso
da terra em função da dinâmica do grande comércio7•
O grande engenho requeria capitais de vulto e o empreendimento

tiveram larga difusão no Nordeste açucareiro, mas foram constantes


na área da pecuária, como atesta, já no início da colonização, Gabriel
Soares de Sousa.
5 "Dase rezão dos bens." ln: Mansuy, Andrée (org.). Antonil. Cultura e
Opulência do Brasil (1 711). Ed. bilíngüe. Paris: IHEAL. 1965, p. 513. De
acordo com a prática, a prescrição era de 40 anos.
6 As terras vendidas por João Á lvares dei Rio em 1649, estavam arren­
dadas a Felipe Cavalcanti e sua irmã D. Joana. O Colégio da Bahia
(comprador) para tomar posse efetiva da terra ficava obrigado a resol­
ver a pendência. "Escritura de venda" (21 de abril de 1649), Documen­
tos Históricos, vol. 63, p. 300-5.
7 Veja-se França, Eduardo d'Oliveira. "Engenhos, Colonização e Cris­
tãos Novos na Bahia Colonial". Anais do IV Simpósio da ANPUH. 1967.
p. 181-241 .

Pobres d o açúcar: estrutura produtiva e relações d e poder n o nordeste colonial 1 23


colonial português associou ao Estado homens de largos recursos
aos quais interessava a produção em larga escala, capaz de remu­
nerar altamente seus investimentos8• Para isso, era preciso, ainda,
atrair empreendedores de menores cabedais que se responsabili­
zassem pelo cultivo de cana, abastecendo o engenho de sua maté­
ria-prima, provedores, ao mesmo tempo, do substrato populacional
básico da dominação portuguesa9•
Atrair povoadores, acenando-lhes com a qualificação social im­
possível na Metrópole, vinculando-os ao processo produtivo ex­
portador, mas apenas nos umbrais da propriedade da terra, permi­
tiu à empresa colonial contar com a contribuição de uma massa de
lavradores, agregados, artesãos, que nas épocas de apogeu repar­
tiam parcelas dos benefícios dos negócios do açúcar, mas que, na
depressão, não oneravam o sistema produtivo e constituíam ver­
dadeira "argamassa paramilitar usada como aríete na defesa das
povoações"10• As fábricas de açúcar, como já determinara o Regi­
mento de Tomé de Sousa, deveriam ser núcleos de defesa, com pe­
queno exército armado11 •
A organização da produção em unidades centralizadas e com
grande aparato técnico, para a época - "essa fábrica e máquina
incríveis" de que nos falavam os cronistas12 - não objetivava sim-

8 O custo de um engenho, capaz de moer 200 tarefas de cana anualmen­


te (cerca de 10.000 arrobas de açúcar) foi estimado por Fréderic Mauro,
com base em J. Lúcio Azevedo e no Padre Estevão Pereira em 48.000
cruzados, para a primeira metade do século XVII (Mauro, Fréderic. Le
Portugal, le Brésil et l'Atlantique au XVJléme siécle. Paris: Gulbenkian. 1983,
p. 245).
9 Se levarmos em conta o momento do início da colonização e os fatores
propulsores - necessidade de garantir a posse efetiva por Portugal
desta porção da América - entenderemos a preocupação real em atrair
colonos. O absenteísmo dos senhores era corrente, pelo menos nessa
fase inicial e o erguimento e maneio dos engenhos foram providos por
feitores.
1 ° Cf. Florestan Fernandes. Op. cit., p. 33.
11 "e os senhorios de engenhos e fazendas que por este regimento hão de
ter torres ou casas fortes, terão ao menos quatro berços e dez espin­
gardas, lanças ou chuás e 20 corpos d'armas . . . ". "Regimento de Tomé
de Sousa". Documentos para a História do Açúcar. Vol. I. Rio de Janeiro:
IAA. 1954.
12
Ver Padre Antonio Vieira. "Sermão pregado na Bahia à irmandade

24 1 Vera Lúcia Amaral Ferlini


plesmente a produção em larga escala, que poderia - hipotetica­
mente - ser conseguida pela agregação final da produção de pe­
.
quenas unidades. Corresp ondeu, historicamente, à necessidade de
controle da produção pelo capital mercantil, de forma a garantir o
monopólio e a garantia da maior quantidade de produtos. Dessa
forma, o engenho centralizava a produção, dando sentido às lavou­
ras de cana.
Vê-se pois que, na colonização do Brasil, não se tratava de impe­
dir a pequena propriedade em si, mas de impedir a pequena pro­
priedade desvinculada do processo de produção hegemônico, do­
minado pelo capital mercantil. Tradicionalmente a implantação da
estrutura fundiária brasileira tem sido explicada pela necessidade
de, através da grande propriedade, controlar-se a produção em lar­
ga escala para o mercado europeu. É clássica a explicação de Caio
Prado Jr. de que as dificuldades de desmatamento, seus altos cus­
tos, os empecilhos colocados pelas condições tropicais viabilizavam
apenas a grande exploração13• A análise da estrutura fundiária do
Nordeste açucareiro aponta, porém, uma realidade interessante: o
latifúndio, entendido como propriedade única de engenho e lavou­
ras, tendia a ser uma ficção jurídica, embora fosse uma realidade
econômica. Pois, em torno do engenho, articulava-se uma miríade
de pequenos produtores de cana, de lavradores de roça, moradores
e agregados que o abasteciam.
Há aqui dois pontos a considerar. Como vimos, de um lado, a
divisão da produção açucareira entre lavradores de cana e senho­
res-de-engenho remontava às preocupações portuguesas de ocu­
pação e defesa do território. Mas, por outro lado, esse complexo
fundiário, formado pelo engenho e as terras a ele subordinadas, dá
ao "latifúndio" outra feição: a de um conjunto de terras, nem sem­
pre de propriedade do engenho, mas, efetivamente, por ele con­
trolado.
Temos aqui uma outra chave do questionamento: o engenho
como articulador da propriedade da terra, como elemento de aglu­
tinação e subordinação, cumprindo, ao mesmo tempo, papel polí-

dos pretos de um engenho, em dia de São João Evangelista, no ano de


1663". Sermões. Porto: Chardron. 1980, v. 11; e Antonil. Cultura e Opu­
lência do Brasil. Op. cit.
n Prado Jr., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo (1 942). 13.ª ed. São
Paulo: Brasiliense. 1973.

Pobres do açúcar: estrutura produtiva e relações de poder no nordeste colonial 1 25


tico e papel econômico. Através do engenho era possível tanto o
controle da produção pelas determinações econômicas do capital
mercantil, como a submissão desse mínimo de população livre, cons­
tituído por lavradores, agregados e moradores. Essa forma sutil de
distribuição da propriedade da terra que nos acostumamos cha­
mar latifúndio, mantinha o controle, através do engenho, de uma
sociedade bem mais complexa e diversificada do que a linear pola­
rização senhores / escravos.
Em suma, o engenho foi o locus preferencial dessa sociedade, o
elemento que, além de concentrar a produção e vinculá-la ao seu
sentido mercantil, tomava possível executar as funções que dão
sentido a uma série de atividades. Foi, sem dúvida, o elemento de
configuração da sociedade rural.
Assim, através do engenho, realizava-se, ao mesmo tempo a in­
clusão e a exclusão dos indivíduos. Se o engenho era o elemento
que dava sentido à produção, se somente através dele a produção
podia se realizar, se era ele o elemento mediador entre essas produ­
ções individuais e o nível mercantil, fora dele não havia possibili­
dade de sobrevivência colonial. E àqueles que eram realmente ex­
cluídos de qualquer acesso à terra (pela compra ou pelo arrenda­
mento) restava gravitar em torno dos engenhos, como agregados,
moradores, trabalhadores assalariados na produção de açúcar.
Não se trata apenas de sobrelevar o engenho como centro de
vivência rural. É preciso entendê-lo em seu papel de articulador da
rede fundiária do mundo do açúcar e de elemento de concentração
do poder.
Já ressaltamos acima a convivência, nesse mundo do açúcar en­
tre engenho e pequena propriedade. As concessões de sesmarias
na região açucareira excederam, em muito, as necessidades do er­
guimento e maneio dos engenhos. Garantiam-se terras para os ca­
naviais, águas para as levadas e matos para as fornalhas. Uma
sesmaria de duas léguas em quadra (menor que o usual, acima de
três léguas em quadra) significava 8. 712 hectares de terra. Ora, um
engenho de grande porte moía, anualmente, cerca de 200 tarefas.
Correspondendo cada tarefa a uma área plantada de 4.356 m2, a
extensão das lavouras não excederia 90 hectares. Se considerarmos
ter cada sesmaria apenas um engenho, a proporção de aproveita­
mento das terras era de 1 %. Há que se considerar a necessidade de
matas para abastecer de lenha as fornalhas, pesando na dimensão
da data original. O abastecimento de lenha era tão importante que

26 1 Vera Lúcia Amaral Ferlini


na segunda metade do século XVII, quando proliferaram as en­
genhocas nas terras próx�mas aos grandes engenhos, os senhores
envidaram esforços para a Coroa proibir o erguimento de novas
moendas, estabelecendo-se a distância mínima de meia légua en­
tre as unidades manufatureiras, o que reservava, a cada engenho,
cerca de 952 hectares. Se tomarmos essa área como a mínima para
um engenho e seus canaviais, o aproveitamento agrícola era de
10%, ficando o restante como fornecedor de lenha e madeiras, ro­
ças de mantimentos e reserva para a rotação das plantações. Nes­
se caso, os canaviais, que se recomendava não ultrapassassem sete
anos de plantio, exigiam, mais ou menos, 270 hectares de terra {três
vezes a área básica)14•
Em suma, estamos retomando as discussões que, de um lado,
apontam uma sociedade de hierarquização social extremamente
simples, polarizada em senhores e escravos, e que, por outro, clas­
sificam os grupos intermediários como inorgânicos, desclassifica­
dos e marginais. O que podemos apreender, do estudo mais deta­
lhado da sociedade açucareira nordestina do Período Colonial é
uma organização mais complexa e mutável, enquadrada, sem dú­
vida, nos padrões estamentais portugueses e tendo, por referência,
os pólos básicos de senhores e escravos, sem, no entanto, a ela se
reduzir.
Desde o final do século XVI podemos constatar, nessa socieda­
de, algumas categorias que nuançam as simplificações. No cume
da pirâmide social estavam os senhores-de-engenho. De diversos
níveis de posse, constituíam, sem dúvida, a elite colonial, como res­
salta Antonil. Os lavradores-de-cana, também diferenciados pela
propriedade ou não de terras, pela extensão de suas lavouras e de
sua escravaria, vinham a seguir. Constituíam segmento da sacaro­
cracia, mas eram, de certa maneira, a elite dos agricultores, dos
lavradores, na qual se incluíam os lavradores de tabaco e de roças
de subsistência. Estes, mais difíceis de identificar, embora apare­
çam freqüentemente menções, podiam ser também lavradores de
cana. Ligados aos engenhos, tínhamos ainda os trabalhadores es­
pecializados livres, nos primeiros séculos brancos de origem por­
tuguesa, mais tarde mulatos e negros forros, como atestam os cen-

14 Cf. Provisão Real de 3 de novembro de 1693. Documentos Históricos,


vol. 27, p. 260-2.

Pobres do açúcar: estrutura produtiva e relações de poder no nordeste colonial 1 27


sos e a crônica colonial. Eram mestres-de-açúcar, banqueiros, aju­
da-banqueiros, purgadores, caixeiros, calafates, caldeireiros, ta­
cheiros, carpinteiros, pedreiros, barqueiros. Muitos deles apare­
cem, na documentação do Engenho Sergipe do Conde, seja como
lavradores, seja exercendo outras atividades. As vinculações desses
trabalhadores com os engenhos deve ser melhor precisada: eram
possuidores de pequenas roças, ocupavam terras do engenho, ne­
les viviam como agregados?
Entre os escravos, havia diferenças que devem ser, de início, le­
vadas em conta: escravos de procedência indígena e africanos, no
século XVI. Entre os africanos, havia os qualificados, arrolados por
suas especialidades (calafates, barqueiros, carapinas, pedreiros,
tacheiros); os domésticos e os do eito15• No início do século XIX,
visualiza-se uma hierarquia mais complexa, com trabalhos especiali­
zados desempenhados simultaneamente por livres e escravos.
A polarização da sociedade colonial em duas categorias funda­
mentais - senhores e escravos - escondia extensa gama de gru­
pos intermediários que compunham o universo social do Nordeste
açucareiro: mercadores, roceiros artesãos, oficiais de açúcar, lavra­
dores de roça e mesmo desocupados. A estrutura social não apre­
sentava a extrema simplicidade a que se referia Caio Prado Jr. : "De
um lado, os proprietários rurais, a classe abastados senhores-de­
engenho e fazendas; doutro, a massa da população espúria dos
trabalhadores do campo, escravos e semilivres16• Tal homogeneida­
de não existia sequer nessa chamada classe abastada dos senhores,
embora os cronistas coloniais, especialmente nos dois primeiros
séculos, insistissem formarem - lavradores de cana e senhores­
de-engenho - grupo diferenciado, mas de interesses convergen-

15 Veja-se Kátia de Queirós Mattoso. Bahia: a Cidade do Salvador e seu Mer­


cado no século XIX. São Paulo-Salvador: Hucitec-Secretaria Municipal
de Educação e Cultura. 1978, p. 155 e ss.; Stuart Schwartz. Segredos
Internos. Trad. port. São Paulo: Companhia das Letras. 1988; Vera Lu­
cia Amaral Ferlini. Terra, Trabalho e Poder. São Paullo: Brasiliense. 1988.
16
Caio Prado Jr. Evolução Política do Brasil e outros Estudos (1 933). 9.ª ed.
São Paulo: Brasiliense. 1975. Para Stuart Schwartz, "the free laborers
in colonial Brazil did not constitute a third segment of the population
somewhere between masters and slaves, but rather constituted a series
of four to six groups partially diferentiated by class, race and policial
goals" ("Free Labor in a Slavery Economy" in Dauril Alden (ed.). Colo­
nial Roots of Modern Brazil, p. 153.) Em trabalho posterior, Schwartz

28 1 Vera Lúcia Amaral Ferlini


tes, apresentado como a cúpula da sociedade - senhores de escra­
vos e donos do açúcar.
Havia, portanto, uma grande diversidade de livres não-proprie­
tários e livres pequenos-proprietários que é preciso entender nesse
universo social articulado pelo engenho. Os livres pequenos-pro­
prietários ou arrendatários ligados à produção de cana tinham por
paradigma os senhores-de-engenho e tenderam, nos momentos de
enfrentamento com escravos, a unir-se a eles.
Todavia, é preciso aprofundar as pesquisas para entender as
nuances entre aqueles que eram proprietários de muitos partidos
de cana e de muitos escravos, os pequenos proprietários e os ar­
rendatários, e em que medida estavam sujeitos à dominação dos
senhores. É preciso investigar ainda os diversos papéis, simultâ­
neos e / ou sucessivos que essa população livre articulada ao enge­
nho desempenhava.
Os lavradores de cana apresentavam diferentes origens sociais e
escalas econômicas diversas. Considerados por Antonil como ci­
dadãos que dependiam dos fidalgos, unia-os o status social que
apontava possibilidade de ascensão. Ser lavrador-de-cana era
caminho para a qualificação social. E parece ter sido esse o princi­
pal motivo que levava colonos a adquirirem ou arrendarem terras
para o plantio de cana. A análise da situação dos lavradores de
cana do Sergipe do Conde, no período 1 622-1 653 mostra que, dos
128 lavradores arrolados no período, quinze compareceram a ape­
nas uma safra. Por outro lado, entre eles encontramos desde colo-

define melhor esses trabalhadores livres, indicando-os como agricul­


tores, diferenciados dos senhores de engenho, na maioria das vezes,
possuidores de escravos: "Os lavradores de cana compunham uma
espécie de elite entre os agricultores, sendo muitas vezes classificados
logo abaixo dos senhores-de-engenho, ainda que houvesse entre eles
pessoas de condições e recursos muito modestos. Embora a ligação
com a economia exportadora dominante, os interesses políticos do se­
tor açucareiro e a escravidão proporcionassem aos lavradores de cana
uma posição social relativamente vantajosa por todo o período colo­
nial... Adicionalmente, o mundo rural da Bahia assistiu, no século XVII,
ao desenvolvimento de categorias definidas segundo o seu relaciona­
mento com um proprietário de terras, e não com a cultura a que se de­
dicavam (os agregados e moradores). Embora todas as classes agríco­
las compartilhassem de algumas características e atitudes, os lavrado­
res de cana mantiveram uma certa distância dos demais ... " Segredos
Internos. Op. cit., p. 247-8.

Pobres do açúcar: estrutura produtiva e relações de poder no nordeste colonial 1 29


nos humildes, possuidores de, no máximo, dois escravos, até gran­
des plantadores, com trinta ou mais escravos17•
A história não confirmou, no geral, a aspiração de ascensão so­
cial. Se, no início do século XVII, os lavradores estavam ainda pró­
ximos dos senhores-de-engenho, a partir da crise da segunda meta­
de do século, a distância cresceu. No geral, a história mostra os la­
vradores afastados da classe abastada a que se refere Caio Prado Jr.
Constata-se, ao longo dos séculos, a deterioração de sua posição
econômica, embora se diferenciassem do restante dos homens po­
bres, por estarem ligados à produção açucareira e por possuírem
escravos. Não chegavam, porém, a constituir um grupo em si, ho­
mogêneo, visto que havia diferenças econômicas acentuadas entre
eles. Entre os 128 lavradores que compareceram ao Engenho Sergipe
do Conde, entre 1622 e 1653, temos fornecedores de 1 a 37 tarefas,
sendo que a maioria moía entre 1 e 10 tarefas18• Para Pernambuco,
de acordo com Van der Dussen, 196 lavradores forneciam entre 2 e
20 tãrefas. Apenas 54 moíam entre 21 e 40 tarefas19•
As distâncias entre os lavradores eram, realmente, maiores que
as dos senhores-de-engenho entre si. Em Pernambuco, por volta de
1 660, os lavradores ricos contribuíram com valores entre nove e
vinte vezes mais que os lavradores mais pobres, nas arrecadações
de fintas para o casamento da lnfanta20•
Entre os senhores-de-engenho a diferença era, no máximo, de
4,5 vezes. Já as diferenças entre os senhores-de-engenho e os mais
ricos lavradores variava de 2,8 a 7 vezes21•
Os lavradores, pois, não constituíam grupo social que ombreasse

17 Cf. Documentos para a História do Açúcar. Livro de Contas. Op. cit. e Vera
Lucia Amaral Ferlini. O engenho Sergipe do Conde (1 622-1 653). Contar,
Constatar e Questionar. São Paulo: FFLCH/USP. 1980. Dissertação de
mestrado, p. 108-28.
1 8 Ibidem.
19 Cf. Adriaen Van der Dussen. Relatório sobre as Capitanias Conquistadas
(1 639). Trad. de José Antonio Gonsalves de Mello. Rio de Janeiro: Ins­
tituto do Açúcar e do Álcool. 1947, p. 31-79.
2° Cf. J. A. Gonsalves de Mello. "A finta para o Casamento da Rainha
da Grã-Bretanha e Paz da Holanda (1664-1666). Revista do Instituto
Arqueológico de Pernambuco. Recife, 1981, citado por Evaldo Cabral de
Mello. O Rubro Veio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1986, p. 429.
2 1 Idem, p. 430.

30 1 Vera Lúcia Amaral Ferlini


com os senhores-de-engenho, mas uma gama variada de colonos,
de diferentes condições e�onômicas e sociais: desde grandes pro­
prietários, estes sim, bastante próximos dos detentores de enge­
nho, até roceiros e artesãos que se aventuravam nos negócios do
açúcar. Tollenare observou que, em sua maioria, no início do sécu­
lo XIX em Pernambuco, eram brasileiros, de origem branca, pouco
mesclados de mulatos22• Mas, até o século XVIII, o papel de lavra­
dores de cana limitou-se aos colonos brancos. Entre 1680 e 1725, de
quatrocentas pessoas identificadas como lavradores, apenas um par­
do foi mencionado23• Já no final do século XVIII, em censos parciais
de população do Recôncavo, surgem menções a lavradores negros,
o que indica, ao mesmo tempo, maior complexidade social e o
declínio do status da atividade. No distrito de Patatiba, de 36 lavra­
dores, seis eram classificados como pardos ou negros. No levanta­
mento do Engenho Pitinga encontramos, por exemplo, entre lavra­
dores, Severino José Correa, preto, com quarenta anos. Nesse enge­
nho aparecem, entre os agregados, 23 negros livres, lavradores de
roça. Entre os moradores da freguesia da Purificação e Rio Fundo,
encontramos dez lavradores de cana, entre negros e pardos24•
Para o aprofundamento das investigações sobre os grupos inter­
mediários da sociedade colonial - isto é, aqueles que mediavam
entre senhores e escravos, livres pequenos-proprietários, artesãos,
livres não-proprietários - é preciso retomar as discussões sobre
essa categoria, tradicionalmente abordada como desclassificados,
pobres, marginais etc.25•

22 Louis François de Tollenare. Notas Dominicais (1 91 6-1 91 8). Recife: Se­


cretaria da Educação e Cultura. 1978, p. 73.
23 Cf. Rae Flory. Bahian Society in the Mid-Colonial Period - The Sugar
Planters, Tobacco Rowers, Merchants and Artisans of Salvador and the
Recôncavo - 1 680-1 725. Tese de doutorado na University of Texas, 1978,
p. 44-5.
24 Lista dos moradores que compreende a companhia de ordenação dos
distritos da Patatiba, 1788, APB. Recenseamentos, pacote 596, caderno
7; Levantamento dos moradores dos Engenhos do Conde e Pitinga,
século XVIII, s.d., APB. Recenseamentos, pacote 596, fls. 14v e 15; Lista
dos moradores da Freguesia de Nossa Senhora da Purificação, 1788,
Recenseamentos, pacote 596, caderno 7, fls. 16 e 17.
25 Francisco Carlos Teixeira da Silva et alii. "Pobres, Marginais e Desvian­
tes". ln: Estudos sobre a Marginalidade. Niterói: Cadernos do ICFH/UFF.
1990.

Pobres do açúcar: estrutura produtiva e relações de poder no nordeste colonial 1 31


Em primeiro lugar, é preciso rever esses conceitos, pois a pobre­
za não é necessariamente sinônimo de marginalidade. A utilização
do termo marginal, referindo-se aos grupos não inseridos na pola­
ridade grande proprietário-escravo, impede o estudo mais aprofun­
dado do papel desses segmentos, do papel desses facies de econo­
mia autárquica ou de subsistência como elemento de resistência às
oscilações cíclicas da economia escravista agroexportadora26.
Quanto à categoria desclassificados, há que se acautelar, em ter­
mos teóricos, levando-se em conta a dialética entre o conceito his­
toricamente constituído - em sociedades onde ter classe significa­
va ter prestígio, posses e poder - e a constituição de uma catego­
ria analítica que se refira exatamente a esses grupos de indivíduos
que, impedidos do acesso à grande propriedade, ou mesmo, sem
propriedade de terras e escravos, constituíram ao longo dos sécu­
los, elementos de importância na sustentação do funcionamento
da exploração escravista27.
Já em nosso livro Terra, Trabalho e Poder, preferimos, em função
das categorias de ordenação social vigente - predominantemente
estamental e na qual os mais diversos segmentos encontravam clas­
sificação - trabalhar com o conceito-provisório de qualificação. A
qualificação, no caso, remete ao padrão dominante das aspirações
sociais, à fidalguia. Uma posição semelhante à dos fidalgos seria
possível, na Colônia, pela aquisição de terras e escravos, elementos
de p oder e, portanto, de qualificação máxima28.
E necessário, ainda, como adverte Francisco Carlos Teixeira da
Silva, evitar a identificação linear entre esses grupos e os 'infra­
tores'29. A identidade linear dos oficiais mecânicos, dos despossuí­
dos e dos pequenos lavradores, com ou sem escravos, como mar­
ginais, desclassificados, pobres etc., remonta, sem dúvida, ao pro­
cesso de luta e de resistência desses segmentos, desde o Período

26 Veja-se Vera Lucia Amaral Ferlini. Terra, Trabalho e Poder. Op. cit., p. 47
e 213; Francisco Carlos Teixeira da Silva. A Morfologia da Escassez: Cri­
ses de Subsistência e Política Econômica no Brasil Colônia. Niterói: UFF.
Tese de doutoramento, 1990, p. 367.
27 Francisco Carlos Teixeira da Silva. "Pobres, Marginais e Desviantes".
Op. cit.
28 Terra, Trabalho e Poder, p. 211-5.
29 Francisco Carlos Teixeira da Silva. "Pob res, Marginais e Desviantes".
Op. cit.

32 1 Vera Lúcia Amaral Ferlini


Colonial. Os níveis de tensão entre os proprietários terras e escra­
vos e os despossuídos, as formas de acomodação entre eles e a luta
efetiva é elemento a ser re sgatado por novas pesquisas.
O conceito de inorgânico, cunhado por Caio Prado Jr.30, em rela­
ção aos que não se situavam na polaridade senhores escravos, em­
bora de extrema utilidade para a compreensão da sociedade colo­
nial, coloca problemas cruciais na abordagem da economia açuca­
reira do Nordeste. É preciso investigar se a a posse de pequenos
contingentes de escravos, ou mesmo de um ou dois cativos, dife­
renciava, socialmente, esses lavradores da massa de agregados e
produtores independentes sem escravos31•
No caso dos pequenos lavradores de cana, como já foi por nós
estudado, no início do século XIX, pelos relatos de Vilhena e Tolle­
nare, eles já pouco se diferenciavam da massa de despossuídos da
área açucareira nordestina.
A precariedade da situação dos lavradores de cana, que, nos
primeiros séculos constituíram elemento primordial da produção
açucareira, demonstra a extrema subordinação desse grupo aos
senhores-de-engenho e remonta à estrutura fundiária do Nordeste
colonial, marcada pela existência dessa categoria sui generis no con­
texto da produção canavieira. Essa especificidade é demonstrativa
de como o processo de agromanufatura do açúcar incorporou rela­
ções contraditórias e tensas entre duas classes de homens livres e
proprietários de escravos.
A hierarquia estabelecida entre senhores-de-engenho, proprietá­
rios e arrendatários revela fracionamento da classe dominante e os
níveis de tensão entre os colonos e senhores de escravos. Antonil,
referindo-se ao incontestável predomínio da empresa mercantil da
grande lavoura, absorvendo a pequena propriedade, impedia que
rendeiros, pequenos proprietários de gleba e agregados chegassem
a constituir uma classe social distinta. Colocados à margem da pro­
dução de exportação, contidos pelas forças de dominação colonial,
não chegaram a se organizar economicamente permanecendo fora
do jogo político e da cidadania32•

30 Cf. Caio Prado Jr. Formação do Brasil Contemporâneo.


31 Idem. Sobre o conceito de inorgânico, consulte-s� Maria Odila Leite da
Silva Dias. "Impasses do Inorgânico". ln : Maria Angela D'lncao (org.).
História e Ideal. São Paulo: Brasiliense. 1989.
32 Veja-se Caio Prado Jr. Formação do Brasil Contemporâneo (1 942). Maria

Pobres do açúcar: estrutura produtiva e relações de poder no nordeste colonial 1 33


Por três séculos, a grande lavoura escravista, enquanto fator es­
tável e orgânico do sistema colonial concentrou a renda nas mãos
de poucos. Expulsos das áreas de grande lavoura, agregados e pe­
quenos rendeiros vegetaram em áreas mais pobres - cultivando
para seu consumo - ou, gradativamente, migrando para os cen­
tros urbanos. Produziam para seu consumo, vendiam pequenos
excedentes, sem gerar uma organização econômica significativa33•
Assim, o sistema colonial, eficiente enquanto organização pro­
dutiva, era estéril na constituição de relações sociais mais estrutu­
radas. A desmoralização do trabalho manual acarretada pela es­
cravidão dificultou a organização entre forros e livres sem proprie­
dade, obrigando-os, o mais das vezes, a viver fora da economia or­
ganizada, sobrevivendo na economia de subsistência e à margem
da completa cidadania.

Sylvia de Carvalho Franco. Homens Livres na Ordem Escravocrata. 2.ª ed.


São Paulo: Á tica. 1975; Eni de Mesquita Samara. O papel do agregado na
região de Itu. São Paulo: Museu Paulista. 1977.
33 Cf. Douglas Libby. Transformação e Trabalho em uma Economia Escravista.
São Paulo: Brasiliense. 1988, p. 361 .

34 1 Vera Lúcia Amaral Ferlini


G uillermo Palacios
CPDA, Un iversidade Federal Ru ral do Rio de Janeiro

AG R I C U LTU RA CAM PON ESA


E PLANTATIONS ESC RAVISTAS
N O N O RD ESTE O R I E N TAL
D U RANTE O S ÉC U LO XVI I I

Esta comunicação tem por objeto discutir algumas questões re­


lativas à emergência da agricultura camponesa no Nordeste Orien­
tal do Brasil ao longo do século XVIIP. Entendo por Nordeste Orien­
tal os territórios da Capitania Geral de Pernambuco direta ou indi­
retamente vinculados à economia mundial da época por intermé­
dio do sistema colonial ou por outras formas de articulação. Enten­
do por agricultura camponesa a praticada por homens e mulheres -
que chamarei de cultivadores pobres livres, instalados fora dos pe­
rímetros das plantations açucareiras, com emprego de força de tra­
balho familiar, centrada na produção de subsistência mas com
entradas significativas nos circuitos mercantis internos e externos
através do cultivo de gêneros coloniais. Nesta acepção, agricultura
camponesa inclui dentro de si a "agricultura de subsistência", mas
não se restringe a ela. Por outro lado, a peculiaridade de estar si­
tuada fora do território formal dos engenhos e fazendas escravistas
lhe permite ostentar, até o final do período, significativos traços de
autonomia e independência.
Como todos sabemos, os "livres" e "pobres" constituem segmen­
tos espremidos entre os dois extremos fundamentais da formação
escravista. Essa aparente falta de substância sistêmica os faz objeto
de referências quase sempre oblíquas e indefinidas, se tanto, numa

1 Este assunto é objeto de análise detalhado na minha tese de doutora­


do, na qual o presente trabalho está baseado. Cf. Palacios, Campesinato
e escravidão no Brasil, 1 700-1 81 7. Uma contribuição à história dos cultivadores
livres pobres da Capitania Geral de Pernambuco. Princeton University, 1992.

Agricultura camponesa e plantations escravistas durante o século XVI I I 1 35


documentação histórica que reflete a perspectiva dos interesses
predominantes no escravismo. Isto é especialmente constatável nos
registros referidos ao mundo agrário. Para poder detectar a pre­
sença de segmentos camponeses nos espaços institucional e docu­
mental, ou textualmente, dominados pelas plantations, e vislum­
brar, ao menos em termos gerais, alguns rasgos de organização so­
cial e articulação econômica dos pobres livres rurais, as imagens
contidas nos documentos tem de ser reinterpretadas e complemen­
tadas com exercícios indutivos, fundamentados às vezes em regis­
tros relativamente explicitos que permitem reconstituir fragmen­
tos, às vezes, porém - infelizmente com mais freqüência do que a
boa metodología poderia recomendar - em simples indícios e si­
nais que têm de ser costurados com auxilio da dedução. São exercí­
cios imprescindíveis para superar a barreira levantada pelo con­
junto das representações elaboradas e instrumentalizadas pelas eli­
tes dirigentes da sociedade colonial, e que freqüentemente encon­
traram abrigo em obras clássicas da historiografia brasileira, con­
vertendo visões particulares - de classe - em narrativas gerais e
arquetípicas. A elaboração de uma contra-narrativa referente à his­
tória agrária do Nordeste Oriental, parte, pois, desde o início, de
bases de grande fragilidade. Por isso, o que segue deve ser consi­
derado, data venia, como um conjunto de proposições hipotéticas
de alto teor interpretativo, um corpo de conjeturas apoiadas, na
medida do possível, em descu idos e cochilos da documentação.
*

A historiografia dedicada à analise das estruturas agrárias no


Brasil, desde Caio Prado Jr. até os historiadores mais recentes, pas­
sando · por praticantes da sociologia histórica, tem criado um pa­
radigma da agricultura colonial - que se estende até pelo menos
à segunda metade do século XIX - como tendo sido uma ativida­
de dominada pela escravidão. Lembremos por exemplo o famoso
tripé enunciado por Alice Canabrava: escravidão, monocultura,
grande propriedade. Mais recentemente, vertentes marxistas mo­
dernas acrescentaram ao engenho escravista o atributo de "domi­
nante" e "determinante" das relações sociais como um todo, con­
solidando uma visão - já implícita nas obras de Caio Prado e ou­
tros pioneiros - que converte a história geral da sociedade e da
economia coloniais em derivações redt!zidas da história das plan ­
tations e fazendas escravistas. Em termos de história agrária pro-

36 1 Guillermo Palacios
priamente dita, o centro se firma, salvo contadas exceções, em tor­
no da relação senhor-escravo. Esta é também a perspectiva evidente
na documentação. A natureza "dominante" do engenho e o seu re­
ferente imediato, a "subordinação" - entre outros - da agricul­
tura de subsistência, se convertem em características estruturais,
alheias à passagem do tempo e ao transcorrer da história.
Este trabalho busca questionar algumas dessas afirmações e pro­
por explicações alternativas, ou complementares, à luz da docu­
mentação referente à história agrária do Nordeste Oriental. Nele
está formulado, implicitamente, um conjunto de hipóteses relacio­
nadas com a natureza da economia regional e as peculiaridades
dos seus canais de articulação com o mercado mundial, e, mais
especulativamente, com a constituição da questão agrária na região.
A proposição central é a seguinte: antes do final do século XVIII,
agricultura camponesa e agricultura escravista alternam-se na ocu­
pação dos espaços mais produtivos da região, em função de uma
série de combinações especificamente regionais de fatores externos
e internos, mas com claro predomínio de determinantes originadas
no núcleo do mercado mundial. Ambas - agricultura camponesa
e agricultura escravista - estão igualmente conformadas pelas
mesmas forças centrífugas. Ao amparo de uma crise sem paralelo
na oferta de força de trabalho escrava para a região, os cultivadores
pobres livres crescem e se expandem até ocupar, nas últimas déca­
das do século XVIII, articulados por impulsos provenientes de
Manchester e Liverpool, a linha de frente da produção agrícola
nordestina e o mais forte canal de articulação do Brasil com o mer­
cado mundial: o algodão.
A expansão camponesa no Nordeste Oriental deve portanto ser
considerada como um capítulo, não apenas da crise dos engenhos,
mas da história da revolução industrial. E é nesse sentido que ela
chega ao fim: freada e revertida pela corrente reacionária das con­
tra-reformas que procuram deter o avanço da revolução francesa e
dos seus efeitos sob o mundo colonial, combatendo as reformas
econômicas praticadas pelos impérios ibéricos desde meados do
século. Nesse contexto, a partir de 1 785, o Estado colonial inicia um
intermitente processo de repressão às atividades econômicas das
comunidades de cultivadores pobres, de fato à sua autonomia, vo­
luntária ou coincidentemente reforçado por severas campanhas de
recrutamento militar especificamente dirigidas contra os seus dis­
tritos, e coroado em 1 799 com o confisco real das florestas tropicais

Agricultura camponesa e plantations escravistas durante o século XVI I I 37


do litoral. Esse conjunto de medidas tem efeitos claramente expro­
priadores e "limpa" a área para preparar a recuperação das planta­
tions. A partir desse momento, o escravismo pode finalmente ser
concebido como a forma dominante de organização social e econô­
mica da agricultura no Nordeste Oriental. Embora os mecanismos
de expropriação sejam diversos, este trabalho enfatiza o papel jo­
gado na montagem desse processo pela expansão do algodão nas
comunidades de cultivadores pobres livres.

O contexto da emergência da agricultura camponesa

A economia formal do Nordeste Oriental sofreu uma crise inter­


mitente de longa duração entre a última década do século XVII e as
primeiras do XIX. Como é sabido, a crise foi detonada pela captura
inglesa e francesa dos mercados mundiais de açúcar, e agravada
por dois fatores internos: 1) as repercussões de longo prazo da der­
rota político-militar sofrida pela parcela mais representativa da oli­
garquia agrária regional - os senhores-de-engenho - durante a
chamada "Guerra dos Mascates", quando enfrentaram o domínio
dos interesses comerciais ligados ao mercado mundial e desafia­
ram o próprio Estado colonial, e 2) o descobrimento das minas e o
seu impacto sobre os preços da mão-de-obra escrava.
Ao longo - e à sombra - dessa crise, que, de fato, interrom­
peu o crescimento do escravismo na região, desenvolveu-se um nu­
meroso segmento de cultivadores pobres e livres, primitivamente
agricultores de subsistência provenientes de terras da periferia da
região das plantations. As origens desses grupos devem ser procu­
radas nos mecanismos de exclusão praticados pela política econô­
mica do Estado português como instâncias de defesa da grande
propriedade e do escravismo, e nas especificidades e limitações da
demanda do mercado mundial nos séculos iniciais da colonização.
Semelhantemente, o seu crescimento deve ser entendido como um
processo de conversão de plantadores de gêneros de subsistência e
praticantes de outras artes de sobrevivência, em cultivadores de
artigos mercantis. Embora sem registros demográficos confiáveis,
tudo indica que, no início do século XVIII, quando a 11Guerra dos
Mascates" oferece a primeira oportunidade de se lançar o olhar da
crônica em direção aos distritos rurais do Interior distante, o acú­
mulo de população pobre e livre que subsiste na base de uma pre-

38 1 Guillermo Palacios
cária agricultura de alimentos já é significativo. Seus membros são
identificados como os "habitantes das freguesias da mata", "a gen­
te mais indigente de Pemámbuco"2•
A desativação de incontáveis estabelecimentos escravistas ao lon­
go das primeiras décadas do século XVIII, vitimados por execu­
ções judiciais, confiscos ou simplesmente incapacitados de produ­
zir pela perda dos escravos, criou espaços de penetração à agricul­
tura camponesa. A partir da década de 1 720 aproximadamente, é
possível fazer um paralelo entre os registros do êxodo de escravos
e da diminuição a níveis ínfimos da produção açucareira e do au­
mento da produção de alimentos e de tabaco. A total ausência de
informações sobre a conversão de engenhos e canaviais em planta­
ções de tabaco ou de mandioca sugere fortemente a presença de
outras forças produtoras, que só podem ser, historicamente falan­
do, cultivadores pobres e livres3• Assim, a crise do escravismo coin­
cide com um processo de campesinização do Nordeste Oriental. Na
metade do século existem testemunhos de presença significativa
de comunidades de pobres livres cultivadores de tabaco, mandio­
ca e outros alimentos, em áreas relativamente centrais do Nordeste
Oriental, supostamente dominadas por plantations, como Goiana,
Cabo, Serinhaem e, um pouco mais distante, a comarca das Alagoas.
Simultaneamente, é possível identificar enormes espaços de terras
devolutas em áreas de grande fertilidade e próximas dos mercados
exportadores, passíveis de ocupação e exploração por parte de uma
crescente população de pobres livres4•

2 Manuel dos Santos. "Narrativa Histórica das Calamidades de Pernam­


buco sucedidas desde o ano de 1707 até o de 1715 com a noticia do
levante dos Povos de suas Capitanias", em RIHGB, t. 53, 2.ª parte, v. 82
(1890), p. 58.
3 Cf. por exemplo, Carta dos Oficiais da Câmara de Olinda e El-Rey.
Olinda, 14.3.1718, em Documentos Históricos, v. 99, p. 26; Idem. Olinda,
14. 10. 1 724, p. 212-3. Não há informações específicas sobre o impacto
da crise nos lavradores escravistas. Mas, a tradicional fragilidade des­
se segmento deve tê-los colocado na linha de frente da descapitalização
e, possivelmente, do êxodo para as minas, embora alguns possam ter­
se convertido em plantadores de fumo ou de mandioca.
4 Ver Documentação Histórica Pernambucana. Sesmarias. Recife, Secreta­
ria de Educação e Cultura / Biblioteca Pública, s/ e., 1954/ 1959. 3 vols.,
especialmente v. II. Dados sobre o crescimento populacional - sabi­
damente aproximados - podem ser encontrados em Santos, "Calami-

Agricultura camponesa e plantations escravistas durante o século XVII I 39


O processo formativo

A agricultura camponesa surge intimamente vinculada, desde


os seus inícios, ao mercado mundial. A entrada dos cultivadores
pobres livres na história - isto é, nos registros oficiais - processa­
se a partir da sua vinculação com o comércio internacional por in­
termédio do cultivo e contrabando de tabaco, em primeiro lugar.
Em menor medida, é possível localizá-los cumprindo papéis rele­
vantes no abastecimento alimentar do porto do Recife e do com­
plexo inter-oceânico do qual este é parte.
Por "complexo inter-oceânico" entendo - pobremente - o con­
junto da demanda de alimentos e outros insumos passíveis de se­
rem produzidos pela economia regional - aí incluída a agricultu­
ra camponesa - proveniente do movimento das volumosas frotas
portuguesas que chamavam ao porto do Recife. Isto inclui o abas­
tecimento de frotas militares - as Naus da Índia -, frotas mercan­
tis, e frotas ou embarcações particulares engajadas ao longo do sé­
culo no traslado massivo de imigrantes para as minas do centro­
sul. Inclui também o abastecimento de navios negreiros em rota
para os portos do sul da Colônia. Existem inúmeros registros dos
problemas causados por essa demanda - de satisfação prioritária
numa área tributária do mercado mundial, como o Nordeste Orien­
tal - nos níveis de abastecimento não apenas do Recife, como de
importantes vilas do interior, próximas dos centros produtores, e
inclusive em outras capitanias subsidiárias5• Mas, carecemos de
uma visão exacta.
A produção de tabaco por parte de farm1 ias e comunidades de
cultivadores pobres livres está já em plena expansão quandoAntonil
escreve Cultura e Opulência. Seguindo-lhe a pista, encontramos uma
cadeia ininterrupta de documentos reclamatórios que nos levam
até a década de 1 750, produzidos pelos representantes legítimos
dos interesses comerciais metropolitanos, contra as enormes quan-

dades", "Informação Geral", "Idéa da População"; veja-se também


Mappas Estatísticos de Pernambuco. Recife, 1763.
5 Cf. Vasco Fernandes C. de Menezes a Oficiais da Câmara da Vila de
Goiana. Bahia, 6.2.1721. DH, v. 85, p. 9 7-8; Ibid a Manoel Rolim de
Moura, Governador de Pernambuco, Bahia, 26.2.1724. Idem, p. 117.

40 1 Guillermo Palacios
tidades de tabaco clandestino que deixam os portos de Alagoas,
Pernambuco e Paraíba, com direção à Á frica, sem controle nem se­
leção6. Conforme nos aproximamos da metade do século, a vee­
mente retórica das queixas convence finalmente a Coroa de que o
assunto é sério: a produção e comercialização do fumo por cente­
nas, talvez milhares de pequenos cultivadores familiares ao longo
do litoral nordestino desorganiza o mercado do tabaco na Costa
d' Á frica - pois, contrariando a norma, comercializa variedades
de primeira qualidade - e coloca em risco o próprio tráfico de es­
cravos que, como se sabe, tinha no tabaco um importante referente
monetário7•
Assim, o campesinato do Nordeste Oriental nasce para o regis­
tro histórico como um grupo social ilegítimo nas suas próprias ori­
gens. Essa natureza duplamente marginal - pois junta a condi­
ção social e espacialmente periférica desses segmentos a práticas
ilegais no contexto dos códigos oficiais da época - cristaliza-se
nos esquemas do capital que dinamiza essa produção. Esta é uma
questão central para fixar os caminhos do desenvolvimento desse
tipo de agricultura, não apenas nos aspectos técnicos ou na orga­
nização social que a acompanha, mas também em outras esferas
- cultura e ideologia, para usar termos totalizantes - que com­
põem, a partir desse momento, o que os antropólogos gostam de
chamar de "lógica" camponesa. De fato, embora a documentação
não contenha afirmações explícitas que permitam penetrar no in­
terior dessas formas produtivas, é possível inferir dela o papel cru­
cial desempenhado pelos comissários volantes na articulação da
agricultura dos cultivadores pobres livres com os mercados exter-

6 Algumas das queixas, mormente de comerciantes da Bahia, estão em


Vasco F. C. de Menezes a Ouvidor Geral da Capitania de Pernambuco.
Bahia, 19.8.1721, em DH, v. 85, p. 68-9; idem a Mestre de Campo-Gover­
nador D. Francisco de Souza. Bahia, 18.8. 1721, em loc.cit.; Idem a Go­
vernador de Pernambuco, D. Manuel Rolim de Moura. Bahia, 18.8.1722,
em ibid, p. 117; Carta do Vice-Rei representando queixas dos negocian­
tes da Costa da Mina, Bahia, 20.4.1723, em ibid, p. 254.
7 O pagamento em ouro era também um instrumento de desorganiza­
ção do mercado. Cf. Carta do Capitão-Mor da Paraiba sobre comércio
de escravos. Paraiba, 6.3.1725, em ibid, v. 99, p. 221; Wenceslao Pereira
da Silva, "Parecer [ . . . ] para suspender a ruina dos três principais gêne­
ros do comércio do Brasil, açúcar, tabaco e solla". Bahia, 12.2.1738, em
"Inventário dos documentos relativos ao Brasil", ABN, 31, p. 28.

Agricultura camponesa e plantations escravistas durante o século XVII I 1 41


nos8• A inferência se fundamenta no paralelismo dos registros que
dão conta da expansão das atividades desses pequenos comer­
ciantes / contrabandistas e do crescimento das exportações clan­
destinas de tabaco, e se reforça com a simultaneidade existente en­
tre o banimento das suas práticas comerciais e a desaparicão dos
registros sobre culturas de tabaco nas áreas mencionadas, a partir
de 1 7599• O anterior permite tecer algumas considerações. A pri­
meira diz respeito ao encaixe particular da agricultura camponesa
na economia regional e nas suas extensões em direção ao mercado
mundial. Nessa primeira fase de conformação de uma base produ­
tiva de natureza mercantil - única dimensão que o registro permi­
te vislumbrar com certa clareza - o sistema cultivadores pobres /
comissários volantes se beneficia não apenas da crise do escravis­
mo, como também da inadequação do aparelho fiscal colonial, evi­
dentemente desenhado para lidar com a economia agrária formal,
isto é, sobretudo - para o caso do Nordeste Oriental - com a pro­
dução escravista de açúcar.
Em segundo lugar, a desaparição de registros - e o silenciar das
queixas - referentes à produção e exportação clandestina de taba­
co a partir das primeiras medidas pombalinas dirigidas a recupe­
rar o controle metropolitano sobre a economia agrária regional, faz
supor que o sistema cultivadores pobres/comissários volantes en­
trou em colapso no final da década de 1 750. A data coincide com a
restauração do monopólio através da criação da Companhia Geral
de Comércio de Pernambuco e Paraíba. Daí que seja possível infe­
rir um período defreio ou desaceleração no processo de expansão da
agricultura camponesa - na medida em que o seu canal dinâmico,
o contrabando para o mercado exportador, se fecha. Mas, a desacele-

8 Para uma introdução às atividades dos comissários volantes, veja-se


K. Maxwell, "Pombal and the nationalization of the lusobrazilian eco­
nomy", HAHR, v. XLVIII, n.º 4 (Nov. 1968).
9 Representação dos homens de negócios da praça de Pernambuco a El­
Rei. s/ d, anexa â carta de Luiz Diogo Lôbo da Silva a Sebastião Carva­
lho de Mello. Recife, 18.5. 1757, em Arquivo do Conselho Ultramarino, v.
14, fl. 76; Alvará com força de lei "proibindo passarem ao Brasil os
Comissários volantes". 6.12. 1755; Alvará com força de lei "contra os
fraudes que se vinham verificando co� relação à proibição de passa­
rem ao Brasil os comissários volantes" . 7.3. 1760. Coleção das leys, decre­
tos e alvarás [. . .] D. ]ozé o I, v. 1 e 2.

42 1 Guillermo Palacios
ração não implica no desaparecimento desse segmento, e sim ape­
nas numa nova situação de disponibilidade da economia camponesa
- entendida como o conj únto dos recursos e esquemas produtivos
acumulados ao longo da experiência anterior - para o mercado.
Essa articulação a mecanismos mercantis ligados ao comércio in­
ternacional durante a primeira metade do século XVIII prepara e
capacita a agricultura dos pobres livres como um sistema produtivo
passível de ser incorporado a outros empreendimentos da econo­
mia colonial. Essa nova situação, de fato uma alternativa sistêmica,
vai ser constatada - com o devido espanto - pelo primeiro Capi­
tão-Geral da fase pombalina, Luis Diogo Lôbo da Silva.

Transição para um novo pad rão

Em uma longa correspondência endereçada ao futuro marquês


de Pombal, em 1 759, Lôbo da Silva advertia sobre o extraordinário
acúmulo de pobres livres nas zonas do litoral. A falta de menções a
qualquer atividade produtiva confirmava o colapso do cultivo de
tabaco, e significava a relativa disponibilidade representada pela
força de trabalho de fanu1ias camponesas que, com o fechamento
do mercado externo, retrocediam novamente para a agricultura de
subsistência. Mas a advertência, além de sugerir pressões demo­
gráficas sobre as áreas de plantation e a ocupação de espaços aber­
tos por empreendimentos madeireiros que produziam por aquela
época enorme devastação florestal, sinalizava também uma impor­
tante mudança na ótica do poder observador, e na sua percepção
da pobreza rural. No contexto do processo de lenta conformação
de massas de trabalhadores "liberados" de antigos entraves jurídi­
co-ideológicos em andamento em Pernambuco e em outros muitos
pontos do planeta, essa nova percepção, embasada em importan­
tes mudanças teóricas e metodológicas nas instâncias organizativas
do núcleo do mercado mundial, operava uma súbita metamorfose
dos cultivadores pobres livres. É possível especular, até, que o câm­
bio fundamental acontecera antes na percepção do fenômeno - e
não em mutações do fenômeno em si10•

10
Luiz Diogo Lôbo da Silva a Sebastião José de Carvalho e Mello. Recife,
9.5. 1759, in "Correspondência dos Governadores de Pernambuco",

Agricultura camponesa e plantations escravistas durante o século XVII I 43


De fato, após terem sido conceituados ao longo da primeira
metade do século como incógnitos e desprezados produtores de
gêneros de subsistência, e eventualmente cultivadores ilegais de
tabaco, os pobres livres começaram a aparecer, a partir dos anos
inaugurais da segunda metade do século, rodeados por uma aura
que adquiria na representação do Estado o status de nova caracte­
rística fundamental: a ociosidade. Do binômio pobreza / agricultu­
ra de subsistência, que caracterizara as comunidades camponesas
do começo do século, passava-se agora a uma reformulação aco­
plada aos novos ventos de reforma e retomada da expansão mer­
cantil que marcava a época: a pobreza era uma variável do ócio.
Num nível mais abstrato, isto significava a reformulação conceituai
que acompanhava o desenvolvimento de novas fases do capitalis­
mo. No nível regional, era o anúncio da incorporação das comuni­
dades camponesas do Nordeste Oriental ao exército de trabalho
que viabilizaria o deslanche desse processo nos países do centro, e
a articulação do Brasil à história da industrialização.
No extraordinário documento de Lôbo da Silva, a percepção da
"ociosidade" dos pobres livres estava inextricavelmerite acoplada
à descoberta sobre "a abundância de finíssimo algodão que pro­
duz esta Capitania em toda sua extensão, e quase sem agricultura
[ 1
••• ] " 1• A proposta dirigia-se, nesta fase inicial, a permitir o aprovei­
tamento dessa "ociosidade " fisiocrática no apoio aos futuros
plantadores de algodão, fazendo com que a força de trabalho dos
pobres livres fosse empregada nas tarefas de transformação do pro­
duto - descarocamento e fiação, evitando-se "a ocupação de tanta
escravatura neste emprego, o que difficulta o poder-se dar em pre­
ços, que podesse fazer conta, ao comercio"12• Essas duas constatacões
implicam numa proposição cuja natureza inovadora caracteriza o
momento de transição: trata-se de propor sistemas produtivos no-

ACU, v. 14, fls. 63-5. Sobre o desmatamento indiscriminado na época,


d. Governador de Pernambuco a Diogo de Mendonça Corte Real. Re­
cife, 30.4. 1755, em ibid, fl. 23. O vol. 14 tem abundantes informações
sobre o assunto.
11
Lôbo da Silva, doe. cit.
12
Idem. Não foi localizado nenhum registro de plantio - ou transfor­
mação - de algodão para mercados externos com emprego de força
de trabalho escrava antes da última década do século XVIII. O gover­
nador fala em tese.

44 1 Guillermo Palacios
vos, desenhados para absorver a força de trabalho camponesa, já
capacitada para funcionar na economia colonial formal. Lôbo da
Silva está propondo, em 1 159, que o planejamento da incorporação
do Nordeste Oriental ao crescente mercado de algodão - que esta­
va na base de um profundo processo de inovação tecnológica en­
tão perceptivelmente em andamento - se fundamente no desenho
de formas de organização produtiva alheias e distantes do escravis­
mo, e baseadas em sistemas de controle social do trabalho que per­
mitam incorporar a mão-de-obra livre dos cultivadores pobres ao
mercado de trabalho. Em outras palavras, está propondo a substi­
tuição da escravidão pelo trabalho livre, está mostrando que so­
mente assim o algodão regional será competitivo nos mercados
mundiais, e está indicando, por último, que as condições objetivas
para essa passagem, fundamentalmente o crescimento demográfi­
co, a mercantilização relativa dos sistemas produtivos dos cultiva­
dores pobres, e a difusão do plantio, já o permitem.

O algodão e a "ambição" camponesa

O governo metropolitano demorou uma década e meia para per­


ceber a importância da descoberta de Lôbo da Silva e aplicar as
suas propostas. Nesse interim, a Companhia Geral de Comércio de
Pernambuco e Paraíba dominou a economia agrária regional, atra­
vés da obtenção de patentes de monopólio, e tentou, sem grande
sucesso, revitalizar a moribunda produção açucareira. foi possi­
velmente o fracasso da solução ortodoxa da Companhia, baseada
na recomposição do contingente necessário de força de trabalho
escrava, e a fraca recuperação dos mercados internacionais do açú­
car, o que levou o Estado a optar pela alternativa proposta por Lôbo
da Silva. Assim, nos últimos anos do seu funcionamento, a Compa­
nhia foi encarregada de organizar esquemas de financiamento à
produção de algodão, através de compras antecipadas, que permi­
tissem e encorajassem a difusão do cultivo entre agricultores sem
capital, porém ricos em força de trabalho13•

13 O deslanche da campanha está em "Discurso que o Doutor Ouvidor


Geral da Comarca das Alagoas [ . . . ] fez no acto de Camera à Nobreza e
Povo da Villa de Penedo e seu termo sobre a plantação de Algodão."
Penedo, 15.12. 1776, em ACU, v. 15, fls. 86-9.

Agricultura camponesa e plantations escravistas durante o século XVI I I 1 45


A aceptabilidade da proposta entre as comunidades de cultiva­
dores pobres livres foi extraordinária, superando todas as expecta­
tivas e pegando de surpresa o conjunto do fragilizado sistema pro­
dutivo regional. Em poucos anos, os plantios camponeses de algo­
dão no Litoral do Nordeste Oriental - isto é, nas áreas tradicional­
mente conhecidas como zonas de plantation - converteram-se nu­
ma verdadeira praga, reduziram ao mínimo a produção mercantil
de gêneros de primeira necessidade, e provocaram o colapso do
antigo sistema de abastecimento alimentar, que constituía a infra­
estrutura do complexo agroexportador escravista centrado no por­
to do Recife14• A rápida reação dos camponeses ante um novo cul­
tivo legal que oferecia brechas para penetrar no mercado interna­
cional adquiriu então tons sombrios no discurso oficial, e a incor­
poração das comunidades de pobres livres ao seu plantio começou
a ser conhecida nos círculos dirigentes da Capitania Geral como "a
ambição do algodão".
Não que os programas de difusão e estímulo ao plantio da fibra
tivessem sido implantados sem salvaguardas contra possíveis efei­
tos adversos. Pelo contrário, a experiência de uma "ambição" simi­
lar, relacionada com o cultivo do tabaco por agricultores de alimen­
tos no Recôncavo baiano na primeira metade do século, e os sérios
problemas de abastecimento de gêneros de primeira necessidade à
cidade da Bahia que se seguiram, dotaram as operações de apoio
ao algodão de várias medidas cautelares15• Estas medidas, e as pri­
meiras providências adotadas pelo governo de Pernambuco para
reconstituir o sistema alimentar do complexo agroexportador após
o abalo provocado pela entrada da agricultura camponesa no mer­
cado exportador, merecem um exame mais cuidadoso, pois mos­
tram os patamares de modernidade que o sistema colonial tentava

14 Notícias sobre o surpreendente sucesso do algodão podem ser encon­


tradas em "Ouvidor das Alagoas a Governador de Pernambuco". Por­
to Calvo, 8.4. 1778, em ACU, v. 15, fls. 227-8.
15 As providências estão detalhadas em "Auto de Veração a que mandou
proceder o Doutor Ouvidor Geral". Penedo, 15. 12. 1776, em ACU, v.
15, fls. 85-6. Sobre a Bahia veja-se Stuart B. Schwartz, "Colonial Brazil,
c. 1580-1750: Plantations and Peripheries", em Leslie Bethell (ed.), The
Cambridge History of Latin America. Cambridge, Cambridge University
Press, 1984. v. II, e José Roberto Amaral Lapa, Economia Colonial. São
Paulo, Perspectiva, 1973.

46 1 Guillermo Palacios
adquirir, como derradeira tábua de salvação, nas últimas décadas
da sua existência. Uma modernidade que, diga-se de passagem,
estava paradoxalmente ancorada na incorporação dos sistemas pro­
dutivos dos cultivadores livres e pobres a uma economia regional
caracterizada, embora cada vez menos nessas décadas, pelos gran­
des estabelecimentos escravistas.
De fato, os programas de apoio ao plantio de algodão por parte
de cultivadores pobres livres - e pequenos produtores escravistas
- foram acompanhados de instrumentos que procuravam implan­
tar sistemas de racionalização da agricultura camponesa. Assim,
propuseram-se metodologias de controle e verificação das exten­
sões plantadas, com levantamentos minuciosos do número de
cultivadores envolvidos, cálculos de produtividade, registros de
consumo doméstico e produção mercantil, modelos de ajuste entre
disponibilidade de força de trabalho, produção de alimentos e pro­
dução de algodão, além, é claro, de disposições tomando o plantio
obrigatório para todos os que trabalhassem terras apropriadas. Al­
mejavam-se três objetivos principais: expandir a cultura, controlar
a relação entre oferta e demanda, para "se regularem os prezes
delle", e manter sob vigilância a produção de subsistência para
impedir problemas no abastecimento alimentar16•
Ao lado dessas inovações no gerenciamento da produção cam­
ponesa, criaram-se, dentro dos próprios esquemas monopólicos da
CGCPP, mecanismos de comercialização que, salvo engano, pela
primeira vez levavam em consideração a escala de produção dos
cultivadores pobres livres, sistemas capacitados "para receber as
miudas e differentes parcelas que os pobres lavradores recolhão
das suas plantações, e recebendo-as semelhantemente dos outros,
que não tiverem comodidade e meios para fazerem a remessa à
direcção da companhia"17• Era, de fato, a tentativa para colocar em
funcionamento um novo modelo de produção na agricultura do
Nordeste Oriental. Em 1778, escassamente um ano e meio após o
deslanche das campanhas de fomento, extensas áreas do litoral das
Alagoas estavam já tomadas pelo algodão. Por volta de 1780, os
distritos de cultivadores pobres livres situados no vértice da zona

16
"Providencias que ficão para a Camara". Penedo, 15. 12. 1776, em ACU,
V.15, fls. 89-91.
17
Ouvidor das Alagoas a Governador de Pernambuco, doe. cit.

Agricultura camponesa e plantations escravistas durante o século XVII I 1 47


das plantations em Pernambuco - como Pau d' Alho, Nossa Se­
nhora da Luz, São Lourenço da Mata, Tracunhaem, Nazareth e Li­
moeiro - convertiam-se no principal centro produtor do Nordeste
Oriental, e se estendiam rapidamente em direção à Capitania da
Paraíba 1 8• Cinco anos mais tarde, aproximadamente em 1 785, ins­
talava-se nos principais centros urbanos da região - sobretudo no
porto do Recife - uma intensa crise de abastecimento alimentar,
que somente seria debelada na década de 1820. Provocada pela
retirada do mercado da mandioca produzida pelos cultivadores
pobres livres, a crise, como não poderia deixar de ser, estava indi­
visivelmente ligada à produção camponesa de algodão: "A ruína
da plantação de mandioca nesta Capitania é da mesma data que a
introdução da cultura de algodão" 1 9•

A crise al imentar e a reação do Estado

A crise acabou com os intentos de racionalização e provocou uma


reversão da tendência original de incorporação dos cultivadores
pobres à economia regional como produtores de gêneros coloniais.
Voltou-se ao paradigma anterior, no qual a produção de exceden­
tes alimentares era o máximo de integração que os segmentos cam­
poneses poderiam esperar. Mas, a esse regresso devemos fon-tes
importantes de informação. De fato, as providências adotadas pelo
Estado colonial para enfrentar a desorganização do sistema de abas­
tecimento alimentar do núcleo do complexo agroexportador, cons­
tituem, ao lado das medidas racionalizadoras acima mencionadas,
momentos privilegiados para compor uma visão aproximada de

18
Cf. "ldéa da População da Capitania de Pernambuco [ . . . ], ABN, v. XL
(1918).
19 D. Thomas Jozé de Melo à Rainha. Recife, 21 .9. 1 797, in CC 3 (1784-
1798), fl. 123. É no minimo interessante observar como o imaginário
do poder concebe a crise singularmente provocada pelos pequenos
produtores de algodão, quando sabemos que um outro fator, de peso
pelo menos comparável, também estava presente: a ativação do mer­
cado internacional do açúcar no final da década de 1 780, como resulta­
do da desorganização causada pela revolução francesa, e a conseqüente
conversão das plantations do Nordeste Oriental em pescadas compra­
doras de alimentos.

48 1 Guillermo Palacios
alguns aspectos gerais da agricultura camponesa do Nordeste
Oriental no final do século XVIII. Isto porque a crise alimentar for­
çou o Estado a procurar conhecer, minimamente, as fontes desse
abastecimento, no intuito de institucionalizar e normatizar um sis­
tema que tinha prescindido, até aqueles momentos de subversão dos
papéis tradicionais dos atores da economia regional, da interven­
ção do Estado. Se as medidas de racionalização da agricultura cam­
ponesa experimentadas em tomo dos plantios do algodão permi­
tem ter uma idéia aproximada de uma série de extemalidades dos
sistemas produtivos e dos esquemas de comercialização dos cul­
tivadores pobres livres, as contra-medidas destinadas a restaurar o
equilíbrio perdido nos oferecem um outro ângulo de percepção.
Permitem observar lampejos de organização comunitária, de iden­
tidade coletiva, de estratégias de sobrevivência e reprodução, e
mapear, embora precariamente, a sua localização espacial. Aliás,
esse processo de mapeamento das fontes de produção de alimen­
tos do Nordeste Oriental serviu também para que o Estado, amplian­
do o seu saber, localizasse grandes bolsões de população livre, e
pudesse então organizar campanhas de recrutamento contra eles20.
As medidas de repressão ao cultivo começaram em 1785 / 86, com
ordens às Câmaras Municipais mandando suspender os pequenos
plantios de algodão, prender os produtores que resistissem e quei­
mar e erradicar os algodoais daqueles que persistissem na emprei­
tada21 . O fracasso de repetidas remessas de instruções levou o go­
verno da Capitania a enveredar pelo último caminho que restava
no exíguo arsenal dos dispositivos de autoridade do Estado, a
ameaça de militarização do conflito. Isto deu ao problema da crise
alimentar a sua verdadeira dimensão, evidenciou a sua natureza
de situação-limite, e colocou-o no nível de uma emergência de con­
seqüências políticas que afetavam a segurança da sociedade for­
mal e a própria autoridade do Estado. Esta redefinição da crise
advinha de que a insistência dos cultivadores pobres e lavradores
escravistas em comercializar exclusivamente algodão estava na ba-

2° Cf. Palacios, Campesinato e Escravidão, v. II, cap. III.


21 "Governador às Câmaras de Goiana, Igarassú e Olinda". Recife,
14.2. 1785, em Governador de Pernambuco, Cartas de Serviço, "Carta 422",
fl. 147; Governador a Câmara do Recife, 16.2.1786, em ibid, "Carta 423",
fl. 148.

Agricultura camponesa e plantations escravistas durante o século XVII I 1 49


se de sérios riscos de conflito social que começavam a ser detecta­
dos entre a população urbana da capital do complexo.
Assim, em fevereiro de 1 786, esgotadas as possibilidades de im­
por o poder do Estado apelando apenas à sua própria legitimida­
de, o Governador José Cézar de Menezes autorizou o emprego de
tropas do exército colonial no auxílio às Câmaras Municipais que
alegassem "falta de meios" para reprimir eficientemente os culti­
vos camponeses de algodão22. Diante de novo fracasso em abril, o
Governo decretou uma intervenção de fato nos distritos do Interior:
retirou da Jurisdição das Câmaras a competência para controlar a
agricultura dos pobres livres, e transferiu-a para os comandantes
de armas de cada freguesia da zona açucareira, os Capitães-Mor,
ou para os capitães de ordenanças no caso dos distritos campone­
ses dos sertões colindantes com a zona da mata. As proibições do
plantio do algodão estavam acompanhadas por ordens que torna­
vam novamente obrigatório o plantio da mandioca e a fabricação
de farinha, e por um plano dirigido aos proprietários, lavradores,
rendeiros e foreiros dos engenhos23. A versão mais acabada do pla­
no conferia aos senhores-de-engenho poderes para controlar, não
apenas os plantios dos seus subordinados e dependentes, como "de
todas aquelas propriedades q. ficarem contiguas aos ditos Enge­
nhos"24. Dessa maneira, no bojo da crise, ficava institucionalizado
o direito dos grandes proprietários de terras e de escravos de su­
pervisionar e controlar a vida social e econômica dos cultivadores
pobres livres instalados nas áreas de plantation, embora agrupados
em comunidades tecnicamente fora dos domínios formais dos es­
tabelecimentos escravistas.

22 "Governador a Câmara de Olinda". Recife, 22.2.1786, em ibid, "Carta


429", fl. 150; idem a idem. Recife, 27.2.1786, em ibid, "Carta 431". Esta
última carta recomenda que o emprego da força armada seja feito com
cautela e moderação, "de sorte q. sirva mais de exemplo e medo do q.
inteiramente a arruinar os seus Moradores".
23 "Governador a Capªm Mor de Goiana". Recife, 11 .4. 1786, em ibid, "Car­
ta 446", fl. 156; "Governador a Officiaes da Camara de Goiana". Reci­
fe, mesma data, em ibid, "Carta 447", fl. 156r; os fundamentos do pla­
no estão em "Governador a Capªm Mor de Itamaracá". Recife, 8.8. 1786,
e "Governador a Capªm Mor de Goiana". Ambas em ibid, "Cartas" 509
e 534, fls. 180 e 181, respectivamente.
24 "Rellação de que faz menção a carta enfrente". Recife, 16.11.1786, in
Cartas, anexa à "Carta 534", fl . 193.

50 1 Guillermo Palacios
Ao que parece, as medidas de represália aos plantios de algodão
tiveram efeitos desiguais, dependendo, entre outras coisas, das re­
lações de poder estabelecidas entre as oligarquias locais e o gover­
no central da Capitania e, sobretudo, das conjunturas do mercado
mundial. Mas, abundam na documentação relatos sobre o êxodo
de famílias e povoados inteiros, fugindo das proibições e das pe­
nalidades, e transferindo seus pequenos algodoais para áreas mais
distantes do Interior. Outros produtores resistiram nas áreas do li­
toral, momentaneamente reestimulados a partir de 1 795 pelo cres­
cimento da demanda inglesa, até que o cultivo de melhores varie­
dades no Agreste, e sobretudo no Sertão, retirou-lhes os mercados,
já nas primeiras décadas do novo século. Mais difícil foi convencê­
los a retomar à sua antiga situação de simples cultivadores estamen­
tais de subsistência, e forçá-los a plantar mandioca sem atentar pa­
ra as condições do mercado. Sobretudo porque esses segmentos ti­
nham desenvolvido ao longo do seu processo de constituição e cres­
cimento canais de resposta a estímulos mercantis que faziam com
que repetidamente, assim que os preços da mandioca chegavam a
determinados níveis, reduzissem os espaços do algodão e voltas­
sem ao fornecimento de alimentos25• Semelhantemente, tinham
construído mecanismos de autonomia e de solidariedade coletiva
que impediam a subordinação aos interesses das plantations como
resultado de um mero desenho de relações de poder ou de uma
demanda de legitimidade que não estivesse respaldada pela força.
Esta condição de autonomia foi claramente explicitada num pe­
queno porém significativo incidente, que contrapôs plantadores
de mandioca e algodão a senhores-de-engenho, ocorrido na rica
freguesia açucareira do Cabo em junho de 1 784. O conflito decor­
reu da negativa dos cultivadores livres de desmancharem as suas
roças de algodão para satisfazer necessidades de abastecimento ali­
mentar dos engenhos. O argumento era que o grupo, dedicado como

25 Por exemplo, nos anos de 1788 e 1789, até setembro, a mandioca teve
preços remunerativos no mercado do Recife e o produto não faltou.
Descontando a especulação de atravessadores, a documentação oficial
confirma que as boas cotações convenciam os pequenos agricultores a
plantar e vender. Cf., entre outros, "D.Thomas José de Melo a Ouvidor
da Paraíba". Recife, 23.9. 1 788, em OG 3, fl. 148; "idem a Ouvidor das
Alagoas". Recife, 23.9.1788, em ibid, fl . 149; "idem a Ouvidor Geral".
Recife, mesma data, loc. cit.

Agricultura camponesa e plantations escravistas durante o século XVII I 1 51


estava a plantar algodão, propunha-se produzir apenas a mandio­
ca necessária para a sua própria sobrevivência. Diante da negativa,
o comandante de armas da freguesia, pedira autorização ao Gover­
nador para obrigar os camponeses "a desfazer as suas roscas". O
Governador informou-se do mérito e passou um atestado de coe­
são comunitária explícita, negando o pedido dos senhores:

"por não ser compatível com a boa razam que os referidos lavra­
dores sejão constrangidos a vender ou desmanchar as suas ros­
cas q. talvez conservem para suprir as suas necessidades, pª re­
mediarem aquelas pessoas q. ou por preguiço ou desmazelo não
quizerão plantar"26•

À guisa de conclusão

Parece claro que a crise provocada pela incorporação da agricul­


tura camponesa ao mercado exportador e a simultânea retirada dos
seus excedentes de alimentos do mercado interno foi fundamental
para determinar os rumos que desenharam os grandes rasgos da
problemática agrária do Nordeste Oriental a partir das últimas dé­
cadas do século XVIII. Desse momento em diante, todas as medi­
das dirigidas a esses segmentos de produtores levam implícita a
necessidade de ajustar os seus sistemas produtivos às necessida­
des das plantations e dos centros urbano-administrativos do com­
plexo agroexportador. Isto é, de encontrar mecanismos que permi­
tam fazê-los tributários das grandes propriedades escravistas, ali­
nhando-os verticalmente como produtores de insumos básicos, ou,
crescentemente, como força de trabalho complementar. Uma das
resultantes deste processo, talvez a que melhor resuma o seu signi­
ficado histórico, foi a estruturação de diversos movimentos de di­
ferenciação desse segmento de cultivadores livres, de natureza ho­
rizontal e espacial. Um deles consubstanciou-se na formação de
correntes migratórias em direção ao Interior, que distanciavam os

26
"Governador a Comane. da Frega. do Cabo". Recife, 11 .06.1784, "Car­
ta 155" em Cartas, fls. 53-54. Existem vários outros casos de resistência
comunitária, mas o espaço concedido á esta comunicação não permite
incluí-los.

52 1 Guillermo Palacios
produtores pobres do alcance do Estado, mas também dos merca­
dos dos principais mercados consumidores27• Outro, de orientação
contraditória, resultou num processo massivo de conversão de
cultivadores independentes em moradores das propriedades escra­
vistas da região. Uns preservaram por mais algumas décadas a sua
autonomia, mas perderam os mercados, entrando num longo pe­
ríodo de pauperizacão; outros mantiveram a proximidade dos cen­
tros consumidores, mas perderam a liberdade. Ambos processos
são centrais para entender os caminhos da consolidação do Estado
nacional na região, e as peculiaridades da transição ao trabalho li­
vre no Nordeste Oriental ao longo da segunda metade ao século
XIX.

27 Esse "êxodo" camponês, que constitui um dos efeitos expropriatórios


de diversas medidas do Estado, pode ser constatado tanto na docu­
mentação referente à repressão do algodão, quanto, mais severamen­
te, na resistência ao recrutamento militar e na expulsão dos produto­
res de mandioca das áreas de floresta do Nordeste Oriental, determi­
nada por Ordem Regia em 1799.

Agricultura camponesa e plantatioris escravistas durante o século XVII I 53


li
"C I C LO" DO O U RO E U RBAN IZAÇÃO
Caio C . Boschi
Dep.tº de H istória, UFMG

N E M TU DO O QU E RE LUZ VEM DO O U RO...

Penso que variadas e atraentes são as alternativas para aborda­


gem do tema proposto para esta sessão. O universo histórico nele
contemplado representa também estímulo e provocação para tra­
tamentos mais abrangentes, que, uma vez executados, quase sem­
pre têm resultado em realizações infelizes.
Entendo que a natureza da atividade que ora nos reúne leva-nos
fundamentalmente a problematizar o assunto em pauta. Esta, es­
pero, deverá ser a forma de intervenção que passo a fazer, não sem
antes pedir licença para restringir a temática a dois ou três tópicos
que suponho serem essenciais para melhor compreensão da expo­
sição.
De imediato, ocorre-me destacar a relevância do tema para a
análise do mercado interno colonial, questão presente na historio­
grafia, mas cujos avanços ainda me parecem tímidos e aquém de
sua real repercussão na dita realidade histórica. Ressentimo-nos do
desenvolvimento de trabalhos monográficos e de pesquisas docu­
mentais a respeito em número e em qualidade suficientes para se
contraporem à perspectiva que privilegia a abordagem do presen­
te tema no âmbito das relações exógenas à Colônia.
Acredito, porém, que, nas análises até aqui veiculadas, a região
mineradora, em particular as Minas Gerais Coloniais, tem sido locus
e objeto singulares para o entendimento, dentre outras assertivas,
de que a economia colonial não é simples complemento da metro­
politana, como se naquela houvesse lugar tão somente para a ex­
ploração de subsistência.
Alentadoramente e sem desconsiderar os laços existentes com o
mercado externo, já ganham relevo textos que discutem a dinâmi-

Nem tudo o que reluz vem do ouro... 57


ca própria da economia colonial, sobretudo os que se detêm no es­
tudo da produção e da circulação interna de mercadores e de mer­
cadorias1 . O que pretendo, pois, é insistir em algumas breves ob­
servações em torno da composição e da estruturação da economia
citadina setecentista da região mineradora e de um certo grau de
independência da mesma em relação à atividade mineratória.
Como ponto de partida, retomo considerações feitas em traba­
lho anterior, onde se lê que, nas Minas Gerais Coloniais, os "aglo­
merados urbanos foram responsáveis pela introdução e pelo de­
senvolvimento de intenso mercado interno, tanto nos seus próprios
limites como no interior da Capitania e, desta, com outras partes
da Colônia. Se a exploração aurífera foi o início, nem sempre e nem
em toda a região ela foi a principal atividade produtiva. Para cui­
dar do abastecimento, simultaneamente à mineração, vai-se com­
pondo diversificada estrutura produtiva. Intensas relações comer­
ciais e expressivas produções agropastoril e manufatureira, carac­
terizadas pela não-inversão de grandes capitais e por baixos nível
de renda e poder de concentração, acabam configurando nítida eco­
nomia regional, com ativo mercado interno"2.
Passados quatro anos, reflito sobre o conteúdo dessas palavras e
sinto que elas permanecem sendo a minha percepção do fenômeno
histórico em pauta. Se o pressuposto não é novo nem original, cum­
pre-me, então, tentar justificá-lo, introduzindo elementos informa­
tivo-documentais e arriscando interpretações que lhe possam tra­
zer consistência e servir de base para o desejado debate.
Como foi dito, a emergência dos núcleos urbanos mineiros colo­
niais está associada à exploração mineratória que se praticou na­
quela área, na virada do século XVII para o XVIII.
Surgindo espontaneamente, eles crescem pelo adensamento e
pelo sentimento de solidariedade da população adventícia, cobiço­
sa de riqueza fácil e rápida. Se a atividade explorativa esteve na
origem, não significa dizer que tivesse lugar necessário no interior

1 A respeito de pesquisas e de debates historiográficos sobre as peculia­


ridades do mercado interno colonial e do comércio intercolonial, con­
sulte-se José Roberto do Amaral, Lapa. O Antigo Sistema Colonial. São
Paulo: Brasiliense. 1982.
2 Caio C., Boschi. "Apontamentos para o estudo da economia, da socie­

dade e do trabalho na Minas Colonial". Belo Horizonte: Análise & Con­


juntura, v. 4, n.05 2 e 3, mai. / dez. 1989.

58 1 Caio C. Boschi
desses aglomerados e nem que fosse condição ou garantia de so­
brevivência para eles. No geral, o ouro não se caracterizava como
atividade da cidade. Houve núcleos urbanos nas Minas Gerais
setecentistas que mantiveram continuamente a produção extrativa
nas suas franjas ou periferias, como foi o caso do arraial do Tejuco,
onde se constata diminuta a interferência das minerações na urba­
nização locaP.
Em outros termos, poder-se-ia afirmar que nem sempre a ativi­
dade extrativa se mostrou suficientemente expressiva para promo­
ver o desenvolvimento dos mencionados primitivos aglomerados
urbanos. Nesses, no momento primeiro, as funções social, religiosa
e comercial procuraram dar-lhes suporte e vitalidade. Repare-se,
porém, que a iniciativa pela formação desses núcleos não é do Es­
tado, como ocorre em outras paragens. De toda maneira, tais cen­
tros não estiveram isentos da ação do poder estatal sobre si. Inse­
rindo-se em contexto colonial, eles encetam a presença do Estado
em seu interior.
Fique claro, portanto, que o embrião da condição citadina já se
constituíra quando a Metrópole tomou a iniciativa de imiscuir-se
nesse processo de urbanização. Confrontem-se as datas: se os pri­
meiros achados auríferos ocorrem nos fins do seiscentos e com eles
emergem os primeiros esboços de núcleos urbanos, é preciso ultra­
passar a primeira década do setecentos para verificar-se, de forma
resoluta e determinada, a presença do Estado na região. Foi por de­
sígnio político e no âmbito da pacificação da Guerra dos Emboabas
que, no começo da segunda década do Dezoito, exatamente em
1 711, verificou-se a instituição das primeiras vilas na zona minera­
dora, a partir de arraiais preexistentes e de uma sociedade que de­
lineava estruturar-se com maior nitidez.
Eis aí um fato significativo: as vilas e, por extensão, o aparelho
de Estado, instalam-se onde havia vida comunitária solidariamen­
te esboçada. Com a nova realidade, ganham impulso outras fun­
ções urbanas, dentre as quais optamos por considerar predominan­
temente a função comercial. Desde logo, esta se toma mais segura,
estável e protegida, além de expandir-se e de ser mais demandada,
posto que, passando a se constituir em sedes administrativas, as

3 Vasconcellos, Sylvio de. "Formação urbana do arraial do Tejuco". Re­


vista do SPHAN n.º 14. 1959, p. 124.

Nem tudo o que reluz vem do ouro... 1 59


vilas atraíam os mineradores e a população em geral para nelas se
concentrarem ou para nelas circularem periodicamente, emulando
os serviços e as atividades produtivas estabelecidas e ampliando o
mercado de trabalho.
Considere-se, também, sem avançar no momento histórico de
que se está tratando, que o referido comércio urbano não dava con­
ta apenas da produção rural circunvizinha, interpretação que uma
historiografia desatualizada insiste em qualificar como rarefeita ou
pouco expressiva. Ao contrário, nunca é demasiado lembrar que o
abastecimento da região mineradora, além de apropriar-se da pro­
dução rural regional, ampliou a noção de mercado entre nós e mo­
vimentou grande parte da Colônia. De distantes rincões procediam
os produtos que supririam a elevada demanda de víveres e de su­
pérfluos que caracterizava a economia local.
Considere-se, ainda, como interpreta Canabrava, que, nos pri­
mórdios da ocupação, não é /1 o granjeio das minas que atrai o maior
número das (pessoas) que entram nas Gerais. O comércio ocupava
a muitos, mesmo àqueles que se aventuravam nos trabalhos das
catas. Contavam-se em grande número, nos dias deAndreoni, aque­
les que, 'metendo gado e negros para os venderem por maior pre­
ço, e outros gêneros mais procurados, ou plantando ou comprando
roças de milho nas minas, se foram aproveitando do que outros
tiraram' (p. 270). As grandes fortunas na mineração, nota-se desde
o início do século XVIII, elevaram-se sobre múltiplos alicerces dos
quais o comércio parece o mais importante114•
Por conseguinte, não se estranhe que, na escolha dos sítios julga­
dos mais convenientes à função das primeiras vilas, a preferência
fosse para os locais /1 que os povos tinham achado para o comér­
cio", tomando aqui Vila Rica como exemplo5• Outra não seria a rea­
lidade quando se buscam as origens da Vila de Sabará, sobretudo
ao se tomar o primitivo arraial da Barra do Sabará, ponto de co­
mércio de gado e de escravos nos primeiros anos da centúria. De
São João Dei Rei nunca se pode dizer que tenha sido genuína e
exclusivamente núcleo com função extrativa ou mineratória. Sua

4 Antonil, André João, pseud. Cultura e opulência do Brasil. São Paulo:


Nacional, 1967. Col. Roteiro do Brasil, v. 2, introdução e vocabulário
por Canabrava, Alice P., p. 89-90.
5 Auto de ereção de Vila Rica. Revista do"Arquivo Público Mineiro, n.º 2.
1897, p. 84.

60 1 Caio C. Boschi
projeção na Colônia se deveu mais as potencialidades e a explora­
ção de atividades agropastoril e comercial.
À época de suas respectivas instalações e acompanhando-se a
evolução dos assentos e das atas das câmaras municipais, era fla­
grante a diversificação nos setores produtivos e o crescente núme­
ro de negociantes e homens de comércio que se instalam nas vilas
recém-eretas. Assim é, e para recorrer novamente à capital Vila Rica
como referência emblemática, que o cronista do Triunfo Eucarístico
não titubeia em afirmar que ali habitavam "homens de maior co­
mércio, cujo tráfego e importância excede, sem comparação, o maior
dos maiores homens de Portugal"6•
Homens que cuidaram de conferir traço característico à paisa­
gem arquitetônica dos núcleos urbanos mineiros coloniais - em
especial os da zona mineradora - com a construção de edificações
assobradadas, nas quais os pavimentos térreos abrigavam as lojas
ou vendas, destinando-se o piso superior à moradia dos proprietá­
rios-comerciantes.
Homens que cuidavam de responder adequadamente à grande
capacidade de consumo das populações citadinas, e que sempre
abasteciam regularmente suas lojas com mercadorias e estoques
diversificados. Para tanto, periodicamente se entendiam com os
agentes dos atacadistas portugueses estabelecidos nos portos lito­
râneos, com destaque para os do Rio de Janeiro. Logo evidencia­
ram-se as potencialidades recíprocas, tomando florescentes e mo­
vimentadas essas relações comerciais, criando laços de dependên­
cia entre si e, ainda que de forma indireta, interligando os comer­
ciantes mineiros ao mercado metropolitano. Já no início dos anos
vinte, essa realidade está retratada em testemunhos como o de Luís
Álvares Prieto, sobrinho e correspondente do abastado negociante
lisboeta Francisco Pinheiro na praça do Rio de Janeiro, taxativo e
eloqüente ao reclamar: "Estamos nos meses que se não vende coi­
sa alguma por estarem os mineiros todos nas minas até o mês de
março, que costumam vir e só então é que se vende alguma coisa"7•

6 Ávila, Affonso. Resíduos seiscentistas em Minas. Belo Horizonte: UFMG.


Centro de Estudos Mineiros, 1967.
7 Carta datada do Rio de Janeiro, em 25 de janeiro de 1722. Cf. Lisanti
Filho, Luís. Negócios coloniais: uma correspondência comercial do século
XVIII. Brasília: Ministério da Fazenda; São Paulo: Visão. 1973, v. 1, p .
CLIII, nota 12.

Nem tudo o que reluz vem do ouro... 1 61


Nessa altura, tropas de muares introduziam-se como fato iné­
dito no sistema de transporte da Colônia, assegurando a continui­
dade e a regularidade das trocas comerciais e do fluxo e refluxo
entre as regiões mediterrânea e costeira, ao mesmo tempo que se
apresentavam como veículos de comunicação social entre as mes­
mas.
Mas, a riqueza do tema em causa não se circunscreve às ques­
tões relativas ao abastecimento, à circulação de mercadorias e à ati­
vidade comercial. Há que lembrar, dentre outros relevantes aspec­
tos, que a urbanização na área mineradora teve na forte presença
do trabalho livre um de seus componentes característicos.
Sabe-se que, nos anos quarenta, ao entrar em irreversível curva
descendente, a atividade aurífera não mais suporta manter nume­
rosa escravaria e, gradativamente, vai liberando mão-de-obra, que
aumenta os contingentes populacionais e altera consideravelmen­
te a estrutura ocupacional dos núcleos urbanos em expansão.
Esses adventícios não eram apenas escravos - que seriam rea­
proveitados nas cidades em outras funções -, mas também e so­
bretudo alforriados, neles incluídos os mulatos, segmento mais
expressivo da sociedade colonial mineira. Para essa oferta de mão­
de-obra, novos mercados de trabalho deveriam se apresentar. Com
esses novos contingentes modificam-se substancialmente a estru­
tura social e o significado social do trabalho e, com eles e através
deles, novas reivindicações e novos problemas sociais se colocam;
afinal, sempre se soube que "o ar das cidades dá liberdade ao ho­
mem".
A inserção dessa gente no mercado de trabalho citadino não se
fez nos moldes do que prescreviam os ditâmes da política de domi­
nação colonial. Mesmo que teoricamente devessem se subordinar
às posturas e aos exames determinados pelas câmaras municipais,
tais instrumentos se mostraram inócuos ou ineficazes. A rigor, de­
senvolveu-se no interior dos núcleos urbanos mineiros coloniais a
prática do trabalho livre, que passava ao largo das restrições corpo­
rativistas ou das prescrições camarárias. As marcas, então, seriam
a da autonomia profissional e a do individualismo,que, delinean­
do regime de livre-concorrência, formam um conjunto de evidên­
cias de cunho capitalista, contrárias, por conseguinte, ao sistema
colonial dominante.
Por outro lado, quando se fala de trabalhadores livres naquelas
urbes, quase sempre está-se referindo aos artistas, artífices e artesãos

62 1 Caio C. Boschi
- ou melhor, aos oficiais mecânicos, em geral. Assim procedendo,
estamos configurando um universo essencialmente masculino e,
por vezes, tratando de profissionais que, sendo personagens urba­
nos, não se fixam permanentemente em uma delas, deslocando-se
continuamente e, portanto caracterizando suas atuações pela cir­
cularidade, pela itinerância e pela dispersão. Cumpre recordar a
inexistência de arruamentos, isto é, de "zonas ou centros funcio­
nais" na Minas Colonial. Aliás, ocupar-se de oficiais mecânicos e
de vendeiras é tocar em dois dos segmentos mais numerosos e em
dois elementos centrais para o entendimento da vitalidade socio­
econômica dos núcleos urbanos, nesse caso considerando-se não
apenas os que compuseram a geografia da Capitania do Ouro.
E o universo da mulher? Por contraponto, deve-se indicar as
atividades econômicas citadinas que eram prevalentemente femi­
ninas. Em outra direção e sem pretender ensaiar uma análise da
divisão sexual do trabalho nos referidos núcleos urbanos, antes in­
sistindo na ampla divisão social do trabalho ali constatável, cum­
priria salientar a presença praticamente exclusiva da mulher na in­
cipiente indústria têxtil, a qual, ainda no Setecentos, desponta co­
mo opção para a sobrevivência econômica de Minas Gerais, cons­
tituindo-se no "maior e mais importante setor da protoindustria­
lização mineira"8• Já Antonil e os testemunhos recolhidos no Códice
Costa Matoso distinguiam a presença feminina no pequeno co­
mércio urbano da região mineradora, no início do século XVIII -

seja através das negras de tabuleiro e vendeiras ambulantes, seja


nas precárias casas comerciais fixas de menor porte que as chama­
das lojas onde imperavam negociantes ou seus prepostos.
Entendidas pelas camadas dominantes e pelo Estado como fo­
cos de tensões sociais e fator de desordem social, as vendas, en­
quanto estabelecimentos fixos, expunham-se como constante
ameaça, razão pela qual geraram reiterados bandos, alvarás, editais
e ordens de natureza fiscalizadora e restritiva às suas operações.
Poder-se-ia dizer que esse é traço comum a outras áreas da Colô­
nia . A observação, no caso, seria absolutamente procedente. Poder­
se-ia dizer que tais atividades eram exercidas por negras escravas,
personagens retratadas na produção historiográfica como escravas

8 Libby, Douglas Cole. "Novas considerações sobre a protoindustria­


lização mineira dos séculos XVIII e XIX". Revista do Departamento de
História. UFMG: Belo Horizonte, n.º 9, 1989, p. 150.

Nem tudo o que reluz vem do ouro... 1 63


de serviços ou negras de ganho. O que também se reconhece como
enquadramento adequado e pertinente.
Destaque-se, entretanto, como o fez Figueiredo, que, "com o avan­
çar do tempo, verifica-se um expressivo aumento do número abso­
luto das vendas sob controle feminino. Vila Rica e suas freguesias,
que em 1 716 possuíam 190 vendas registradas no Senado da Câ­
mara local, tinham apenas 6% delas controladas por mulheres. Por
oposição, nos anos 70, os índices se modificaram significativamen­
te, posto que das 697 vendas estabelecidas, 482, vale dizer, 70%
encontravam-se em mãos de mulheres. Percentuais quase idênti­
cos e apontando para a mesma realidade de inversão foram cons­
tatados pelo autor para a Vila do Carmo Cidade de Mariana9•
O extraordinário, então, fica por conta do fato de que o exercício
comercial das casas de vendas mineiras coloniais, ao longo do sé­
culo XVIII, era predominantemente realizado por mulheres forras,
na condição de proprietária das mesmas10•
Não se queria entender, entretanto, a atividade comercial no con­
texto minerador colonial apenas como fenômeno intracitadino.
Assinalem-se intensas relações comerciais entre cidades da região
e destas para com as de outras capitanias. Vilas como Barbacena ou
São João Del Rei, na virada do século, devem seu prestígio ao fato
de serem essencialmente entrepostos ou centros abastecedores para
vilas, áreas e capitanias limítrofes, verdadeiros "eixos de comércio
regional".
Saliente-se, além disso, que o apogeu da chamada "civilização
mineira", época de maior fulgor na produção artística, arquitetôni­
ca, musical e literária, dá-se na segunda metade - sobretudo no
final - do século, quando, reconhecidamente, já não era o ouro a
atividade produtiva referencial na economia da Capitania. Para
fazer uma única menção de caráter setorial, recorde-se que, na­
quela altura, Minas passa por um verdadeiro processo de subs­
tituição de importações, tornando-se fornecedora e ponto de infle­
xão para o desenvolvimento das capitanias vizinhas.

9 Figueiredo, Luciano Raposo de Almeida. O avesso da memória: estudo do


papel, participação e condição social da mulher no século XVIII mineiro. Rio
de Janeiro, mai. 1984. Relatório final de pesquisa - Fundação Carlos
Chagas. Ex. mimeo. p. 29.
10 Figueiredo, Luciano Raposo de Almeida. Op. cit., p. 31-2.

64 1 Caio C. Boschi
Daí, então, poder-se contraditar a historiografia que atribui à
decadência da mineração uma verdadeira "diáspora populacional",
a qual, por sua vez, faz flo rescer a atividade agropastoril como so­
lução e como característica explicativa da economia da região mi­
neira entre os fins do setecentos e o começo do dezenove. Se agora
Minas era auto-suficiente e até exportadora de sua produção agro­
pastoril, artesanal e manufatureira, esse quadro não deve ser visto
como novidade. Ao longo do século, há concomitância dessas ati­
vidades produtivas com a exploração aurífera e diamantífera. A
saliência dessa, no entanto, não pode e não deve obscurecer a im­
portância das demais. No chamado ciclo do ouro, esse mineral não
foi tudo. Em tendência de longa duração, nas Minas Gerais
setecentistas nem tudo o que reluzia era ouro . . .

Nem tudo o que reluz vem d o ouro... 1 65


Ronaldo Marcos dos Santos
I nstituto de Econom ia, U N ICAM P

M E RCANTI LIZAÇÃO, D E CAD Ê N C IA


E DO M I NÂN C IA

Trata-se de discutir o mercado criado pela mineração das Gerais


como um caso que ficou a meio caminho entre dois extremos: de
um lado, não foi vítima da decadência dos circuitos mercantis (como

Potosi); por outro, apesar de superar barreiras significativas das li­


mitações coloniais, não conseguiu autonomizar-se a ponto de criar
seus próprios mecanismos propulsores (EUA), articulando-se ao
mercado mundial de forma subordinada.
Queremos, portanto, estudar a propulsão dos circuitos mercan­
tis coloniais, sua capacidade de assimilar os dinamismos externos
e as condições para a sua autopropulsão, vista aqui como avanço
no sentido da autonomia da Nação.
Ao falarmos em dinamismos mercantis, no período da transição
do Feudalismo ao Capitalismo, pressupomos uma profusão de cir­
cuitos interligados e hierarquizados em suas capacidades de assi­
milar estímulos provenientes dos sucessivos Centros da É conomie
Monde.
No momento nos interessam mais diretamente aqueles que, nes­
sa hierarquia, se situam na base, querendo isto significar que dos
produtos neles trocados (gêneros coloniais e de subsistência) al­
guns são os mais ponderáveis dinamizadores do mercado mun­
dial, mas também que esses circuitos correspondem aos pontos mais
distantes da cúpula, tanto em termos geográficos como de apro­
priação do lucro.
Mas, ao tomarmos os circuitos mercantis da América no século
XVIII, estamos lidando com um tipo específico da forma de comer­
ciar, diferente dos circuitos do século seguinte. Isto porque os pri­
meiros culminam um tipo de economia, a economia colonial da

Mercantilização, decadência e dominância 1 67


fase de transição do Feudalismo para o Capitalismo e que se carac­
terizam pelos limites impostos pelo estatuto colonial que visavam
impedir sua autonomia e autopropulsão, ao passo que os circuitos
do século XIX, embora muitos deles continuem transportando as
mesmas mercadorias, inserem-se em urna fase de economia nacio­
nal e de início da etapa concorrencial no mercado mundial.
Ou seja, queremos ressaltar a importância que teve a Revolu­
ção Industrial britânica corno marco divisor entre as duas épocas, a
colonial e a nacional, e mostrar que os gêneros coloniais, corno
expressão de relações sociais entre dois mundos, o Velho e o Novo
Mundo, são transfigurados pelas novas funções que o industria­
lismo lhes impõe.
As novas nações latino-americanas, no momento de sua consti­
tuição, inserem-se no contexto do capitalismo global em sua fase
concorrencial. A especificidade dessa inserção só pode ser entendi­
da se levarmos em consideração o passado colonial de cada urna
delas, aquilo que têm de particular em relação às outras nações que
também participam de forma subordinada do mercado mundial.
Os circuitos mercantis do século XVIII são circuitos coloniais e,
portanto, contêm os determinantes que forjaram as economias co­
loniais que têm corno principal agente o Capital Mercantil, opera­
do pelos grandes comerciantes de cada urna das metrópoles euro­
péias que procuram monopolizar a comercialização de gêneros co­
loniais através do domínio de seus circuitos mercantis.
Ou seja, a forma social da produção, imposta ao novo mundo, só
poderá se concentrar em produtos que se destinam ao mercado
exterior, artigos com demanda garantida na Europa e que não con­
corressem com a produção metropolitana. Com isso queremos di­
zer que o gênero colonial traz em si a cornplernentariedade climá­
tica (pois é impossível produzi-lo na Europa) o que lhe garante a
não-equivalência nas trocas, perfeitamente adequada à acumula­
ção mercantil - comprar barato para vender caro - requerendo
ainda o monopólio sobre os circuitos mercantis, monopólio este
garantido pelos Estados Absolutistas europeus e facilitado pelos
altos custos de transporte, que permitem o acesso somente aos
grandes mercadores.
Mas, para isso, era necessário que o grande Capital Comercial,
ao contrário do que fazia antes no comércio do Oriente, entrasse na
esfera da produção para conseguir pre ços adequados a escalas re­
lativamente amplas e regulares de produção que lhe permitisse o

68 1 Ronaldo Marcos dos Santos


manejo de preços e quantidades que lhe garantisse a acumulação
mercantil máxima. Isso só foi possível pela adoção do trabalho com­
pulsório.
Mas, nessa etapa de acumulação primitiva, os próprios meca­
nismos econômicos eram incapazes de garantir a continuidade do
processo de valorização do capital, sendo fundamental à burgue­
sia mercantil o apoio do Estado, cuja ação nas colônias vai se crista­
lizar em um legislação que visava garantir os interesses metropo­
litanos centrados nas relações comerciais. Apoiava-se em regula­
mentos tendentes a reduzir a concorrência no comércio colonial, o
exclusivo, monopólio da burguesia mercantil metropolitana, cujo
grau podia variar, manifestando-se desde monopólio nacional
aberto a todos súditos comerciantes até o monopólio de uma única
companhia, com várias formas intermediárias entre esses dois ex­
tremos.
Falamos então de circuitos internos às economias coloniais, cir­
cuitos nativos, montados para o trato de gêneros coloniais e pode­
mos diferenciá-los pelo seu poder de aprofundar a divisão social
do trabalho: os gêneros agrícolas como ruralizadores e avessos à
proliferação de circuitos mercantis e de outro lado, os minerais pre­
ciosos como urbanizadores e dinamizadores da divisão do traba­
lho entre campo e cidade. Ou seja, o setor subsidiário da grande
exploração podia apresentar um caráter mercantil ou desenvolver­
se no interior das unidades produtivas de exportação. Nas colô­
nias, onde e quando preponderaram, as atividades mineradoras
apresentavam um nítido caráter mercantil, ao passo que a grande
propriedade agrícola escravista geralmente produzia a maior par­
te dos alimentos que consumia e não dava chance aos mercados
abastecedores.
Mas, ao estabelecermos esta diferença, precisamos lembrar que
todos os gêneros coloniais estão sujeitos a um determinante maior,
responsável pelas restrições básicas ao aprofundamento da mercan­
tilização: o escravismo.
Nessa economia, o escravo tem três funções: 1) ele representa
uma reserva de valor, um patrimônio, que pode ser vendido ou
alugado; 2) a exploração cotidiana do seu trabalho que resulta na
produção comerciável e 3) a valoração de todos os demais bens da
economia que resulta da sua onipresença, que retira a possibilida­
de de outras formas de produção.
Essas três funções do escravo, em linhas gerais, bloqueiam o

Mercantilização, decadência e dominância 1 69


aprofundamento mercantil de três formas: 1) ao reter a parte subs­
tancial do fluxo mercantil correspondente aos negócios negreiros e
ao criar através do crédito, um forte mecanismo de subordinação
do plantador /minerador colonial ao grande capital mercantil-usu­
rário metropolitano; 2) ao impedir que o escravo, como produtor
direto predominante, tenha qualquer forma de renda autônoma e
possa consumir produtos que formariam um mercado de massas;
3) ao não dar espaço econômico para o surgimento de camadas
médias de população que também integrariam tal mercado.
Queremos, então, mostrar que, mesmo sob esse determinante
fundamental, que condicionará nossa economia até a penúltima
década do século, o processo de mercantilização se aprofunda per­
sistentemente. Podemos ver melhor essas restrições pensando nas
percentagens de capital que são imobilizadas nas relações entre tra­
ficantes e plantadores. Essa forma de restrição é inerente ao pró­
prio escravismo e foi apontada por Weber como o principal em­
pecilho à penetração da racionalidade capitalista na produção
escravista.
Mas, no que diz respeito aos dois outros fatores limitadores da
mercantilização por parte do escravismo, veremos que eles se ate­
nuam no caso das economias mineradoras, pois, devido ao requisi­
to fundamental de concentrar o escravo exclusivamente na faina
mineradora, sua subsistência terá que ser provida por outras re­
giões. O sistema organizado para evitar os desvios na cata do ouro,
permitia ao escravo juntar pecúlio para comprar sua própria liber­
dade e também ter seu próprio consumo. A isto deve ser somado o
fato dos aglomerados urbanos de Minas serem essencialmente di­
ferentes daqueles da economia açucareira, pois requerem o apro­
fundamento da divisão social do trabalho em toda a Colônia, ao
demandarem os gêneros necessários à sua subsistência.
Mas, guardam ainda a característica colonial de estarem sujeitos
à atrofia e decadência pois dependem fundamentalmente da inten­
sidade da extração aurífera.
Tal exemplo fica patente na mineração da prata de Potosi. Alice
Canabrava nos mostra a profusão de circuitos mercantis que se
montam legal ou clandestinamente para o abastecimento desse cen­
tro minerador andino, dos quaia fazem parte o núcleo de Buenos
Aires, Tucuman, e até mesmo a Capitania de São Vicente com seus
"peruleiros" que mercadejavam gêneros de subsistência e escravos
trazendo de volta a cobiçada prata dos espanhóis.

70 1 Ronaldo Marcos dos Santos


A mesma Autora mostra a atrofia de Tucuman e Buenos Aires
quando a extração da prata nos meados do século XVII foi parali­
sada, e Celso Furtado anaÍ isa a regressão econômica que se aba­
teu sobre essa parte da América com o retorno da economia de au­
toconsumo nas grandes unidades agrárias.
No caso da mineração das Gerais no século XVIII, desde seu iní­
cio podemos encontrar diferenças fundamentais em relação à eco­
nomia açucareira de Pernambuco e Bahia. Isto advém, de um lado,
da especificidade do ouro encontrado nas Gerais, das minas se lo­
calizarem no hin terland, e do fato de ser ouro de aluvião, o que per­
mite técnicas rudimentares de extração abrindo a atividade para
aqueles que não possuem grandes cabedais.
A mobilidade social daí resultante permitiu espaço econômico
para o surgimento de camadas médias entre o par polar senhor/
escravo ("democracia das Minas") que repercutiram sobre o fluxo
de renda criando dinamismos propícios à integração inter-regional
que formariam um lastro para as decisões de investir começarem a
se internalizar (Celso Furtado).
Outra característica que bloqueia a mercantilização na econo­
mia açucareira, a escassez de numerário, também é relativizada no
caso da mineração pois, o ouro é um gênero colonial especial. Ele
inverte a lógica da acumulação mercantil ao tomar a forma social
de equivalente geral das demais mercadorias do universo. Tão logo
deixa a natureza e cai nas mãos do homem adquire a propriedade
"mágica" de ser dinheiro. Isto o torna indiferente também à ilega­
lidade de sua circulação facilitando a mercantilização interna e
o contrabando com o exterior concentrando recursos monetários
passsíveis de se tornarem capital-dinheiro, superando também a
escassez de numerário para as transações correntes internas.
Não ficam aí as conseqüências da especificidade do ouro como
equivalente geral, pois a sua própria forma natural escassa e de pe­
nosa extração, tornava sua demanda inesgotável passando a oferta
- ao contrário dos outros gêneros coloniais - a determinar as os­
cilações da produção mundial de ouro. Ou seja, a economia minei­
ra relativiza os bloqueios impostos pela economia escravista colo­
nial, que funcionavam em sua plenitude em certas épocas da eco-
. .
norma açucare1ra.
Procurando ainda mostrar as especificidades advindas da ma­
terialidade do ouro, tanto na sua ocorrência natural como na sua
forma social imediata de ser dinheiro, que implicam, além de uma

Mercantilização, decadência e dominância 1 71


inversão dos circuitos mercantis, na transferência do aparelho fis­
cal do Estado para as Gerais, pois a dominação metropolitana vai
se concentrar menos na venda dos monopólios de comércio e mais
na apropriação direta de seu quinhão em ouro / dinheiro.
Os compromissos europeus da Metrópole privilegiaram os co­
merciantes ingleses e por outro lado o contrabando, que fundamen­
tava o surgimento de uma burguesia nativa, proliferava através
dos baianos que se especializaram na produção do tabaco prefe­
rido na Costa da África para o tráfico negreiro, estendendo-o aos
holandeses e franceses que freqüentavam os mares africanos. E não
foram só os baianos, logo lançam-se também os fluminenses que
levavam aguardente de seus engenhos para trocar por negros, am­
pliando a parcela do excedente apropriada pelos próprios colonos.
Somem-se a estas as atividades produtivas internas que se di­
versificam, com o fumo e aguardente destinado a essas transa­
ções com o exterior, mais ainda, a criação do gado no São Francis­
co e no Sul, a produção de alimentos, fumo e aguardente nos cam­
pos fluminenses e no Planalto paulista impulsionaram a divisão
social do trabalho lastreando o comércio interno.
Este urbaniza e constrói uma rede interna de caminhos, exigin­
do meios de transporte que resultam em mais uma fonte de acu­
mulação interna à colônia. E aqui, mais uma vez, vemos a Metró­
pole, contraditoriamente incentivando tais circutos mercantis, pois
eles passaram a ser substancial fonte de arrecadação tributária,
geralmente explorada através da venda de concessão de explora­
ção de barreiras.
Aparecia, assim, o rascunho de uma burguesia mercantil colo­
nial com seus mercadores ligados ao comércio exterior, seu núcleo
dominante, e pelos de menores capitais como os varejistas, com­
boieiros, tropeiros, que mesmo com a decadência da mineração,
como veremos, persistem na sua atividade.
O esgotamento das lavras a partir do meado do século XVIII
provoca uma retração direta nas atividades mineradoras, entretan­
to o mesmo não acontece com esses circutos criados para abastecer
as Minas. Sua reacomodação vai permitir que eles se articulem ao
novo mercado mundial que está sendo montado pela Revolução
Industrial britânica.
Entre a decadência da mineração e o advento da cafeicultura
passaram-se as décadas que assistiram o processo de ruptura do
estatuto colonial e o reconhecimento da nova nação no cenário

72 1 Ronaldo Marcos dos Santos


mundial. Precisamos então perguntar porque antes, na etapa ante­
rior da colonização baseada na economia açucareira, aconteceu uma
atrofia da economia coloniál por ocasião da crise de exportação do
açúcar e no caso da mineração das Gerais a decadência não teve os
mesmos efeitos, ou mesmo ao contrário, desenvolveu novas ativi­
dades mercantis.
No meio século que vai das duas últimas décadas do século XVIII
até 1830, quando se afirma em primeiro plano a economia cafeeira,
diversificaram-se e cresceram as atividades mercantis no Brasil: o
Maranhão passou a produzir algodão e arroz; no Nordeste a eco­
nomia açucareira deixa sua hibernação e também ativam-se as cul­
turas do algodão e exportam-se maiores quantidades de couros; na
Bahia, o tráfico toma proporções maiores que os próprios dias áu­
reos da mineração, ativando a produção do fumo e de aguarden­
tes. O eixo econômico que se forma no Centro Sul, tendo por fulcro
a nova Capital, o Rio de Janeiro, que tinha alcançado proeminência
com a economia mineradora, agora vê suas cercanias aplicarem-se
na produção de açúcar para exportação e consumo interno, bem
como a aguardente e tábuas de construção que são enviadas à Afri­
ca em troca de escravos; Minas Gerais, passa a ser exportadora de
alimentos para o Rio de Janeiro e o Planalto Paulista incrementará
sua produção de açúcar para exportação. Tudo isso aumentava a
procura de muares e bovinos do Sul que, mais que nunca, passa a
fornecer meios de transporte e alimentos para todo o território,
necessários para o comércio tanto interior como para o exterior.
Ou seja, Rio de Janeiro toma-se a grande metrópole rnercantil a
partir da qual se irradiam os circuitos de todo o Centro e Sul da
colônia e o tráfico negreiro continuou sendo a principal fonte de
alimentação do capital mercantil nativo e devido a conveniências
geográficas o porto do Rio de Janeiro passa a receber embarcações
vindas do Sul. Seus traficantes cada vez mais prósperos passam a
prover escravos para as plantações de Pernambuco e Maranhão,
dada a abundância de fornecimento dos portos africanos.
Felipe Alencastro nos mostra que as três décadas que antece­
dem a transferência da Corte correspondem aos anos de maior
afluxo de peças africanas à Colônia. Esta é mais uma prova do de­
senvolvimento que a diversificação da agricultura propiciou ao
periodo pré-Independência. A partir daqueles anos o tráfico atin­
giu o novo patamar de meio milhão de escravos por vintena intro­
duzidos na América Portuguesa. A crescente nativização do tráfico

Mercantilização, decadência e dominância 1 73


permitiu que os proventos do quase-monopólio do comércio ne­
greiro global revertessem para a Colônia e especialmente para o
Rio de Janeiro, mercado redistribuidor de escravos para boa parte
do território.
A outra fonte de acumulação mercantil era a pecuária . Nos arre­
dores da Capital paulista estabeleceu-se um verdadeiro cinturão
de tropeiros e condutores que animavam as vilas de Araçarigua­
ma, São Roque, Cotia, Santo Amaro e São Bernardo indo mesmo
até Jundiaí. A produção desse meio de transporte, o muar, que pro­
gressivamente substituiu o escravo no deslocamento interno de
mercadorias, desde os tempos da mineração, concentrou-se no ex­
tremo sul da Colônia. As planícies platinas permaneceriam a gran­
de fonte de bovinos e muares para o abastecimento e transporte,
dado o crescimento quase espontâneo das manadas.
Esses dois setores, por sua vez, incrementavam o giro mercantil,
formando uma base de acumulação interna constantemente esti­
mulada pelos dinamismos do setor externo, mas gerando capitais
que acabavam por se canalizar para a aplicação nas atividades pro­
dutivas, seja pela via do financiamento, feito pelos traficantes aos
produtores escravistas, seja pela diversificação da atividade em
direção aos setores produtivos como foi o caso de tropeiros que se
transformaram em "engenheiros".
Além dessas fontes tipicamente internas de acumulação, havia
todo o manancial do setor produtivo exportador em expansão, con­
sumindo número crescente de escravos e aumentando suas expor­
tações pelos diversos portos da Colônia. Formavam uma trama de
circuitos tendo nos entroncamentos as cidades, que serviam como
sede, ponto de apoio e base de operações para o capital mercantil
interno.
Mas, não devemos nos esquecer que este surto de produção é
determinado em última instância pelos novos dinamismos do mer­
cado mundial introduzidos com a Revolução Industrial britânica.
Além disso, nos valemos de condições excepcionais criadas pelas
perturbações dela advindas como a Guerra de Independência das
colônias inglesas, a Revolução Francesa e sua repercussão pelas
Antilhas desorganizando a produção; as Guerras Napoleônicas e o
Bloqueio Continental que transformou a América Ibérica no escoa­
douro das manufaturas britânicas, e a própria política da metrópo­
le portuguesa, o "mercantilismo ilustrado", procurava incentivar a
diversificação e incremento das atividades produtivas coloniais.

74 1 Ronaldo Marcos dos Santos


Entretanto, se olharmos com cuidado, veremos que essa expan­
são do Centro Sul nos fins do século XVIII representa uma reação
relativamente autônoma dos agentes mercantis nacionais, não sen­
do resultado simplesmente da ação do capital mercantil metropoli­
tano ou de decisões da Coroa, pois eram produtores e comerciantes
coloniais que agora tinham condições de decidir de forma relativa­
mente autônoma onde e como empregar seus recursos, mesmo le­
vando em conta as tendências do mercado mundial.
Ou seja, a integração produzida pela economia da mineração
tinha gestado um núcleo de acumulação autônoma, em que comer­
ciantes e produtores coloniais souberam redirecionar seus recursos
e acumular respeitáveis fortunas, articulando-se às novas ativida­
des produtivas e estimulando-as através de sua demanda e de seus
créditos. Com isso, o estatuto colonial era progressivamente nega­
do e tal fato culmina com a vinda da farm1ia real para o Rio de
Janeiro, que trouxe consigo a abertura dos portos encerrando o ex­
clusivo metropolitano.
Queremos apenas mostrar que estavam formados os pré-requi­
sitos para o surgimento do Estado Nacional, e que isso se completa
com as modificações introduzidas pela estadia da Corte, que deu
novo caráter ao Rio de Janeiro, como cidade que passa a represen­
tar a ascendência do capital mercantil nacional sobre o próprio se­
tor produtivo. A intemalização de um padrão monetário e a funda­
ção do Banco do Brasil permitem agilidade ao novo Estado para
antecipar seu gasto com o vasto funcionalismo civil e militar trans­
plantado para o Rio de Janeiro, bem como requerendo obras públi­
cas condignas da sede de uma monarquia. A multiplicação no giro
comercial provocada por essas medidas, intensificadas ainda pelo
aumento da carga tributária e a manipulação do sistema de dívida
pública, completavam esse conjunto de condições para o surgimen­
to de um poder autônomo, que se centralizaria no Rio de Janeiro
e a Independência nada mais foi do que esse último passo para o
surgimento do novo Estado Nacional.
Fica claro, também, que a economia cafeeira só tomou rapida­
mente suas surpreendentes proporções porque apoiada em toda
uma organização e práticas comerciais e financeiras previamente
existentes, e não o contrário como recorrentemente apontam os
autores que insistem em uma visão "cíclica" de nossa história eco­
nômica.

Mercantilização, decadência e dominância 1 75


João Antônio de Paula
FACE/CEDEPLAR/U FMG

O P ROC ESSO DE U RBAN IZAÇÃO


NAS AM É RI CAS NO S ÉC U LO XVI I I

A cidade é realidade histórica privilegiada. A cidade é conden­


sação de significados e projetos que se cruzam, superpõem, har­
monizam, repelem. A cidade é o espaço privilegiado da diferença,
espaço da cultura porque espaço do Outro. A cidade é o resultado,
sempre surpreendente, da projeção dos nossos sonhos, das uto­
pias. A matéria da cidade é um amálgama do diverso - a super­
posição de projetos, a alternância de estilos, uma coleção de cica­
trizes sobre o corpo natural e sobre a natureza segunda, sobre os
escombros e ruínas das cidades submersas.
Há diversas cidades no interior de cada cidade. Há diversas fi­
sionomias que se confundem na mesma imagem, como numa foto­
grafia com múltiplas exposições. Todas as cidades são resultados
de interesses diversos, de tecnologias diversas, de diversos imagi­
nários, de diversos modos de produção e formas de Estado, de di­
versas culturas, todas ao mesmo tempo, realidade polifônica.
Mesmo quando parecem uniformes, unitárias, inconsúteis, há a
cesura. Mesmo Brasília, majoritariamente homogênea e inimiga da
promiscuidade urbanística e arquitetônica, é incapaz de interditar
a diferença.
A cidade fala, e esta fala não é só a algaravia dos contemporâ­
neos. A fala da cidade não é só o que se disse dela, o que se pensa
dela, nem mesmo é o conjunto de seus equipamentos e espaços
tomados como realidades estáticas, acabadas. A fala da cidade é
uma língua compósita, superposição de dialetos, em permanente
transformação - a língua dos projetos mortos, a língua arcaica dos
projetos nostálgicos, a língua rebelde das utopias, a língua oficial
dos projetos hegemônicos.

O processo de urbanização nas Américas no século XVI I I 1 77


A cidade é mais que o conjunto de suas funções econômicas, po­
líticas, sociais e culturais. A cidade é o resultado, denso e pleno de
conseqüências, do processo histórico. Cada cidade vive, traduz, à
sua maneira, as vicissitudes e percalços, as transformações e confli­
tos dos variados campos da vida social. O corpo da cidade é o reposi­
tório das pequenas besteiras, das pequenas-grandes tragédias de que
parece feita a história, uma contabilidade de mortes e de esperanças.
Realidade histórica, a cidade é resultado de um complexo de
determinações - divisão do trabalho, emergência da propriedade
privada, expansão da produção e troca, a consolidação do Estado
moderno. O espaço urbano é a consolidação da hegemonia da ci­
dade sobre o campo. Quando ressurgiu no Ocidente após a rurali­
zação do feudalismo, no século XI, a cidade foi libertação. A cidade
foi a primeira, quase única, instituição democrática daqueles tem­
pos. O "ar da cidade liberta" dizia-se, significava possibilidade de
libertação do jugo feudal. Depois a cidade foi do capital. A liberda­
de formal transformada em nova segregação, os espaços urbanos
reestruturados a partir de uma nova lógica. Neste sentido nossas
cidades são criações do capital. A burguesia embelezou-as, retraçou­
lhes a fisionomia, erradicou a organicidade típica das cidades me­
dievais. O reticulado do traçado, as grandes avenidas, as grandes
praças são os cenários para a exibição do triunfo burguês, o auto­
móvel, a maquinaria, a velocidade, a padronização, a racionaliza­
ção. Seu monumento por excelência, sua mais emblemática criação
é a Torre Eiffel, o novo totem de uma civilização que se permite
erigir, em seu próprio nome, e para sua maior glória, um monu­
mento ao novo deus - o ferro fundido. A Torre Eiffel é a ululante
manifestação de uma burguesia, que não se peja de arrostar o pas­
sado, e que arrogantemente espontânea perfila ao lado da Catedral
de Santa Maria de Fiori, de Brunelleschi, a sua torre de aço, monu­
mento ao burguês vitorioso, símbolo dos novos tempos, de uma
nova estética, de um novo poder.
As maneiras específicas como portugueses, espanhóis e ingleses
construíram suas cidades no Novo Mundo, dizem muito deles mes­
mos e de seus projetos, mas, sobretudo, abrem possibilidades de
entendimento da trajetória histórica dos colonizados. As modali­
dades específicas de interação/ adaptação / apropriação pelas po­
pulações coloniais aos modelos urbanísticos europeus, são mani­
festações das peculiaridades regionais 4.o desenvolvimento do sis­
tema colonial no Novo Mundo.

78 1 João Antônio de Paula


Já foram apontadas superiormente por Sérgio Buarque de Holan­
da, seja em Raízes do Brasil (1967), seja em Visão do Paraíso (1969), as
diferenças entre os padrões de urbanização da América Portugue­
sa e das Índias de Castela. Baseado na antinomia Ladrilhador x Se­
meador, Sérgio Buarque nos mostra a discrepância entre o apuro e o
rigor espanhóis no construir de suas cidades nas Américas vis-à-vis
o desalinho da urbanização portuguesa. O modelo espanhol foi
também a base da urbanização inglesa em suas colônias na Améri­
ca. Correto talvez neste caso, seja falar de influência recíproca so­
bre os modelos urbanísticos espanhol e inglês, baseados ambos no
triunvirato - Vitrúvio - Alberti - Palladio. O que certamente não
exime a emergência de uma outra pergunta: por que Portugal não
seguiu o mesmo modelo? Ou ainda, a semelhança entre os mode­
los urbanísticos de ingleses e espanhóis tem que ser explicada à luz
das enormes diferenças entre os dois impérios no que tange às suas
características políticas, econômicas, sociais e culturais.
Mas, o aspecto fundamental que será abordado neste trabalho, é
o referente à singular diferença prevalecente no século XVIII, entre
a relativamente forte urbanização da região mineradora de Minas
Gerais, vis-à-vis, a majoritária presença e uma clara opção agrarista,
até o início do século XIX, dos Estados Unidos. Em 1 790, apenas
5,1 % da população dos E.U.A. moravam em núcleos urbanos, este
número cresce para 7,2% em 1820 e 28,2% em 1880 (Boltshauser,
1959, p. 90) . Para o conjunto da América Latina a taxa de urbaniza­
ção era, em 1800, de 10%, isto é, 10% da população viviam em nú­
cleos urbanos com cinco mil habitantes ou mais (Hardo)� 1972, p.
1 87).
Confrontar os padrões de urbanização prevalecentes nas Minas
Gerais e na América Inglesa no século XVIII, propiciará, fundamen­
talmente, a identificação dos traços centrais nos processos históri­
cos que fizeram dos Estados Unidos e Brasil o que eles são hoje.
Trata-se de buscar ler na trajetória das cidades o essencial das de­
terminações históricas, ou seja, a história da cidade como história
global.
Neste percurso, foram indispensáveis os trabalhos sobre o con­
ceito e a história geral das cidades de Lewis Munford (1968) e John
Reps (1985). As literaturas específicas sobre a urbanização de Mi­
nas Gerais e das Américas Inglesas no século XVIII, serão citadas
na medida de suas utilizações.

O processo de urbanização nas Américas no século XVI I I 1 79


Características dos processos de colonização
e u rban ização na América

A acentuada discrepância das trajetórias econômicas e políticas


dos países de colonização ibérica em relação ao verificado na Amé­
rica inglesa é motivo de recorrente interrogação. Houve um tempo,
e ainda há quem pense assim, que a explicação para o sucesso eco­
nômico daqueles e nossas reiteradas debilidades econômicas e fra­
gilidade institucional, baseava-se na supremacia dos povos anglo­
saxônicos /protestantes em relação aos povos latino-ameríndio­
africanos /católicos. Outros, mais sofisticados, buscaram explicar
o fato pelas diferenças entre as concepções de sistema colonial, que
teriam prevalecido entre as metrópoles ibéricas, vis-à-vis as con­
cepções de sistema colonial adotadas pela Inglaterra.
A partir desta matriz, que afirma a diferença entre os padrões de
colnnização citados, estabeleceu-se uma coleção de dicotomias:
colônias de povoamento x colônias de exploração; pioneiros x con­
quistadores; pioneiros x bandeirantes; David Crockett x Hernán
Cortés; fronteira x conquista; rural x urbano; plebeus x aristocratas;
trabalho x absenteísmo; trabalho x aventura, . . . série infindável de
atributos, que, em última instância, reproduzem o seguinte: o que
é bom e vai dar certo, porque deu certo x o que é mau, e vai dar
errado, porque deu errado . . .
Como toda série dicotômica, esta, a o abordar uma realidade com­
plexa - a realidade histórica - tem exceções, discrepâncias sufi­
cientes para talvez desaconselhar seu uso. Contudo, há algum pro­
veito em adotá-la, provisoriamente, como ponto de partida, para,
afinal, se requalificá-la nos termos da real natureza do processo,
certamente, não dicotômico.
Em primeiro lugar, tome-se o par colônias de exploração x colô­
nias de povoamento. Trata-se de oposição que descreve, correta­
mente, os traços principais dos processos de produção baseados na
exploração dos bens coloniais de exportação (tabaco, açúcar, al­
godão, ouro, pedras preciosas etc.) nas colônias ibéricas, vis-à-vis
aqueles processos de produção baseados na exploração de bens para
o mercado interno e que prevaleceram na colonização da Nova In­
glaterra.
Contudo, é preciso lembrar, que tanto a Virgínia quanto as colô­
nias ao Sul até a Flórida, na América Inglesa, desenvolveram pro-

80 1 João Antônio de Paula


cessos de produção em muito semelhantes aos prevalecentes na
América Ibérica, sobretudo pelo uso majoritário de mão-de-obra
escrava e pelo caráter exportador de sua produção (tabaco, índigo,
algodão). Deste modo, não há que generalizar a dominância da for­
ma - produção baseada em mão-de-obra familiar para mercado
interno - para toda a América Inglesa.
Fundamental aqui é detectar a existência de uma tensão perma­
nente entre duas opções, que resultará, afinal, na Guerra Civil e na
vitória do Norte. Na verdade, o sentido preciso desta tensão não é
o geográfico. O que separa o Norte do Sul não é apenas um para­
lelo abstrato. Há uma separação ecológica, política, ideológica, eco­
nômica e social. O Sul pode, por razões ecológicas, produzir com­
plementarmente à economia européia. Esta pré-condição abre ca­
minho para a emergência de determinações históricas, que impli­
carão na vitória dos interesses de um certo capital mercantil, que se
mostrou infenso às transformações, que levaram à vitória do modo
de produção especificamente capitalista. Isto é, os interesses capitalis­
tas dominantes no sul da América Inglesa, tinham a mesma natu­
reza e limites, que os que levaram ao auge a decadência das potên­
cias comerciais - Portugal, Espanha e Holanda (Marx, 1974, vol. 5,
p. 319-20).
Por outro lado, há importantes semelhanças entre os modos co­
loniais de Inglaterra, Espanha e Portugal no referente à estruturação
urbana. A Espanha radicalmente, a América Inglesa em grande
medida, Portugal em tom menor, partilharam uma concepção de
organização urbana onde o rigor do traçado em xadrez dominou.
Neste sentido, só a Holanda procurou soluções urbanísticas adap­
tadas às condições locais (Hardoy, 1972).
Existem diferenças importantes nos modos e propósitos dos sis­
temas coloniais da Inglaterra e de Espanha-Portugal. Estas diferen­
ças, contudo, não residem numa particular benignidade-ilustração
de uma modalidade de colonização vis-à-vis a truculência-obs­
curantista das outras. A Inglaterra, a França, a Holanda, constroem
seus sistemas coloniais com os mesmos propósitos e instrumentos
que Portugal e Espanha. Em todos os casos, trata-se de buscar fazer
das colônias fontes de produção de riqueza para as metrópoles,
seja por meio do fornecimento de produtos coloniais, seja por cons­
tituírem-se em mercados cativos para os produtos metropolitanos
(Novais, 1979).

O processo de urbanização nas Américas no século XVII I 1 81


Não há diferença entre as metrópoles no que diz respeito ao que
esperam e organizam em suas colônias. As diferenças entre as tra-·
jetórias históricas das colônias decorreram de diversas circunstân­
cias que em última instância podem ser assim sintetizadas: 1) nem
todas as áreas coloniais se prestam, ecologicamente e do ponto de
vista de seus recursos naturais, a constituir-se em máquinas de
produção de bens coloniais para exportação; 2) nem todas as me­
trópoles foram capazes de exercitar, permanentemente, controle
e interdições sobre suas colônias; 3) as colônias inglesas, na Nova
Inglaterra, pelas duas razões apresentadas, foram capazes de au­
tonomia, incompatível com a condição colonial - isto é, na verda­
de foram colônias apenas formalmente, desenvolvendo atividades
e processos típicos de metrópoles (Paula, 1992) .
As implicações desta situação determinaram uma trajetória his­
tórica dos Estados Unidos, que os distinguem de todas as outras
ex-colônias realmente submetidas ao Pacto Colonial. Fundamen­
talmente, poder-se-ia dizer que o processo de colonização da Amé­
rica Inglesa distingue-se do verificado na América Ibérica pela exis­
tência, nas colônias inglesas, de condições de autonomia colonial,
que possibilitaram a retenção de excedentes na Colônia e a forma­
ção de uma economia e de um mercado coloniais, comandados pelo
capital mercantil da própria Colônia. É a riqueza acumulada pelo
capital colonial, durante os séculos XVII e XVIII, que explica o fato
excepcional da vitória da Colônia, em 1776, sobre sua poderosa
metrópole.
Não se pode falar aqui, como fizeram alguns, de uma coloniza­
ção privada nos Estados Unidos vis-à-vis uma colonização estatal
na América Ibérica. A colonização espanhola é resultado, com cer­
teza, da ação privada. Neste sentido é Portugal que se vai distin­
guir, sobretudo a partir do século XVIII, pela forte presença do Es­
tado na condução do processo colonial.
A Espanha terá seu projeto colonial marcado pelo particularismo
e pela desintegração como disse Ortega y Gasset (1948), reflexos de
sua própria "invertebração" interna, reflexo da descentralização
política, que a acompanha até hoje. Isto é particularmente acen­
tuado quando comparado com a trajetória portuguesa, que é mar­
cada, desde o século XII, por centralização política, pela formação
precoce de um Estado Nacional centralizado, que repele, já no sé­
culo XII, a invasão moura, constituindo-se, neste sentido, no pri­
meiro Estado-Nação a se formar na Europa.

82 1 João Antônio de Paula


Isto significa surpreender Portugal em atitude de precoce e ex­
plícita "modernidade", o que talvez explique sua incontestável
hegemonia durante o séculó XV. Portugal é monarquia centraliza­
da desde o século XII, após a "reconquista" do Sul dominado pelos
mouros, e realiza sua "revolução burguesa" no século XIV (1383-
85), criando assim uma das pré-condições para a vitória da "mo­
dernidade", da racionalização, no sentido weberiano - o Estado
centralizado, dotado de burocracia permanente, e, em alguma me­
dida, profissionalizada (Weber, vol. II, 1964, p. 1 .047 e s.).
Esta é uma questão complexa e que sobretudo exige perspectiva
histórica. A precocidade modernizante do Estado em Portugal é
elemento de um processo marcado pelo interesse e pela ação do
grande capital mercantil, cujos limites são os decorrentes da pró­
pria hegemonia do capital mercantil - isto é, seu descompromisso
com a transformação das condições da produção, já que seus lu­
cros são extraídos do monopólio exercido no comércio.
Neste sentido, tanto a acumulação de riquezas promovida por
Portugal, resultado da exploração de suas colônias, quanto aquelas
decorrentes da exploração do conjunto do sistema colonial não são
as bases da vitória do capital industrial a partir do final do século XVIII.
A acumulação primitiva, Marx o disse, não é acumulação de ca­
pital, senão que é pré-condição para aquela, na medida em que
significa tanto criação do proletariado quanto acumulação e cen­
tralização de riquezas, base para a expansão do cpital, para a con­
solidação do modo de produção especificamente capitalista (Marx,
1968, 1974, cap. XXIV, livro I, cap. XX, livro III).
As diferenças entre as formas e interesses, que dominaram o
Estado em Portugal, Espanha, França, Holanda, Inglaterra e expli­
cam muito da trajetória destes países, estão na base de uma tipologia
que identifica as políticas mercantilistas de Portugal - Espanha,
como metalistas, a da França como estatista, enquanto que a Ingla­
terra e a Holanda partilhariam perspectiva mercantilista mais di­
versificada e protoburguesa (Zweig, 1961 ).
Estas diferenças, contudo, não significam tratamento diferencial
com relação às colônias, devendo a trajetória distintiva das colô­
nias da Nova Inglaterra ser explicada, sobretudo, pela incapacida­
de desta região em servir aos propósitos metropolitanos - isto é,
pela rarefação de condições de se tomar uma fornecedora de pro­
dutos coloniais. Quando esta região se dinamizar, menos por ser
resultado de um projeto liberalizante de sua metrópole e mais pelo

O processo de urbanização nas Américas no século XVII I 83


desinteresse que seu controle inspirava, a Metrópole tentará, a par­
tir de 1 763, exercer seu papel, de diversos modos, buscando reco­
lonizar a região que se tinha autonomizado. Esta ação recoloni­
zadora acabou sendo repelida, e a Colônia, formalmente, se tornou
independente.
Há um aspecto privilegiado em que estas diferenças se manifes­
tam. Trata-se dos processos de urbanização prevalecentes no Novo
Mundo. A título de síntese do que se disse até aqui, poder-se-ia
assinalar que os padrões de colonização prevalecentes na Améri­
ca refletem a seguinte regra básica - quanto mais rica em produ­
tos coloniais, maiores os cuidados e requintes do padrão urbanís­
tico e arquitetônico. Deste modo ter-se-ia uma gradação que iria
dos grandes projetos urbanísticos do México, Peru, Potosí e Quito
(séculos XVI-XVII) passando pela explosão urbana brasileira no
século XVIII, chegando até ao mundo ruralizado da nova Inglater­
ra até o início do século XIX.
Neste gradiente é possível incluir a Holanda e seu projeto colo­
nial. A obra de Nassau no Brasil, os cuidados que dedicou a Recife,
dão mostra da justeza da tese.

A u rbanização da N ova I nglaterra no século XVI I I -

as contradições da opção agrária: Jefferson x Hamilton

Um exame das estruturas urbanas das cidades da Nova Ingla­


terra no século XVII e XVIII detectará formidável homogeneidade.
Charlestown, em 1619, Boston em 1 634, Filadélfia em 1681, Bal­
timore, em 1638, e sobretudo Nova York depois de sua reestru­
turação em 1811, apresentam uma configuração única: o traçado
em xadrez, praticado na colonização espanhola na América, com
rigor absoluto.
Na verdade não há que se surpreender com esta reiteração. Brau­
del nos diz que, com exceção das regiões dominadas pelo Islã e nas
cidades medievais do Ocidente, prevaleceu, em todos os quadran­
tes, desde a Antiguidade Clássica, o modelo reticulado de cidades
(Braudel, 1970, p. 417-19).
E, o que seria então essencial para explicar esta recorrência pa­
rece ser o fato de todas estas civilizações, com exceção do Islão e da
Europa Medieval do Ocidente, terem sido civilizações mercantis.
Não se trata aqui de afirmar absolutizações. Sabe-se hoje que na

84 1 João Antônio de Paula


Europa Medieval manteve-se algum grau de mercantilização e mo­
netização. A questão funtamental aqui é entender que a expansão
urbana, a diversificação das funções das cidades, a hegemonia das
cidades sobre os campos são resultados da complexificação da di­
visão do trabalho, da expansão da troca - isto é, são manifestações
da emergência e consolidação do modo de produção capitalista
(Marx, 1968, p. 404).
As grandes cidades não são, em si mesmas, portadoras das trans­
formações, que levam ao capitalismo. As grandes cidades, a hege­
monia urbana são, isto sim, sinais de um complexo: centralização
política-vida mercantil-divisão do trabalho, não necessariamente
capitalistas.
Centralização política-vida mercantil-divisão do trabalho são,
então, os elementos constituintes da estrutura urbana. Para o caso
da Nova Inglaterra, nos séculos XVII e XVIII, tem-se um quadro
marcado pelo agrarismo. Fundadas todas na primeira metade do
século XVII, as grandes cidades do Leste norte-americano tinham,
em 1 700, o seguinte quadro populacional: Boston, 1 700 habitan­
tes; Filadélfia, 4000; Newport, 2600; Charlestown, 1100; Nova York,
3900 (Braudel, 1970, p. 407).
Estes números são mais expressivos em 1 775. Naquele ano a po­
pulação de Nova York era de 25 mil habitantes, a da Filadélfia de
40 mil, a de Boston 16 mil, a de Charlestown 12 mil e a de Newport
11 mil (Bruchey, s/d, p. 28). A partir de 1 770 há um crescimento
significativo da população norte-americana, que aumentaria 350%
en tre 1 770 e 1820 (Chaunu, 1969, p. 1 75).
Essa predominância do agrarismo, essa vocação ruralista não é
fenômeno fortuito. É uma opção. É o resultado da hegemonia dos
produtores rurais. Neste processo integram-se várias dimensões. A
primeira que seria considerada foi a religiosa - a repulsa puritana
pela grande cidade, vista como espaço do vício e da corrupção. A
condenação política da grande cidade, tal como a de Rousseau, foi
o modelo da perspectiva agrariano-puritana nas colônias inglesas
nas Américas. Como dizia Rousseau no Emílio, "são as grandes ci­
dades que esgotam um Estado e fazem a sua fraqueza: a riqueza
que elas produzem é uma riqueza aparente e ilusória; é muito di­
nheiro e pouco resultado. Diz-se que a cidade de Paris vale uma pro­
víncia ao rei da França; eu julgo que lhe custa várias, sob mais do que
um aspecto. Paris é alimentada pelas províncias e a maior parte de
seus rendimentos distribuem-se nesta cidade e aí ficam, sem nunca

O processo de urbanização nas Américas no século XVIII 1 85


voltar ao povo ou ao Rei. É inconcebível que, neste século de calcula­
dores, não haja um que saiba ver que a França seria muito mais po­
derosa se Paris fosse aniquilada" (citado por Braudel, 1970, p. 474).
É essa condenação severa que está na base da opção agrária de­
fendida por Jefferson. Esta opção agrária era, na verdade, urna op­
ção por urna estrutura social, por um tipo de Estado que se poderia
chamar democrático vis-à-vis a característica liberal, que seria defen­
dida por Hamilton, e que afinal se mostrou vitoriosa na trajetória do
desenvolvimento econômico-político e social dos Estados Unidos.
Trata-se aqui de dois modelos de organização da vida econômi­
ca, política e social. Um modelo é o que decorre de Locke e sua de­
fesa da propriedade e do liberalismo como componentes fundamen­
tais da vida social. Modelo enriquecido por Mandeville e Adam
Smith, e que tem em Hamilton sem artífice prático nos Estados
Unidos. O outro modelo é o decorrente de Rousseau, e que está ba­
seado mais na democratização de direitos, que na propriedade, e
que tem em Jefferson tanto seu mais importante continuador quan­
to seu político prático (Fichou, 1990).
Esta tensão representada pela disputa entre Hamilton e Jefferson,
será rompida com a vitória do grande capital, a vitória de Hamilton,
mesmo após sua morte (1804) e que levará os EUA a superarem a
Inglaterra, economicamente, já entre 1840-80 (Chaunu, 1969, p. 50).
Começou aí o salto das cidades americanas, a sua urbanização
crescente. A taxa de urbanização, que era 5,1 % em 1 790, passou a
7,2%, em 1 820, a 15,3% em 1850, a 28,2% em 1 880, a 45,7% em 1910,
a 59,5% em 1940 e 64% em 1950 (Boltshauser, 1959, p. 90). Processo
de urbanização que foi também de modernização da estrutura agrá­
ria (apenas 3% da PEA está hoje na agricultura), bem corno de forte
imigração: os Estados Unidos receberam entre 1 880-1914, cerca de
25 milhões de imigrantes.
A disputa Hamilton x Jefferson poderia ser sintetizada corno ten­
do no campo econômico o seguinte aspecto: Adam Smith x Ques­
nay, ou ainda a democracia agrária de Jefferson x liberalismo-prote­
cionista-capitalista-federalista de Hamilton. Nos dois casos, contu­
do, a mesma repulsa e medo da classe operária - "Jefferson temia
muito as ambições da aristocracia; mas não temia menos a criação
de urna classe proletária. Olhando o futuro, imaginou grandes ci­
dades que surgiam e produziam multidões, corno as romanas, ex­
ploradas por demagogos, instrumentos úteis da autocracia; e, ven-

86 1 João Antônio de Paula


do o sacrifício correspondente do bem-estar social a confrontar-se
com o capitalismo. Acreditava que uma classe agrícola livre era a
espinha dorsal de todo grande povo, a produtora da riqueza real e
a protetora e conservadora da independência varonil, e que o nú­
mero de trabalhadores empregados nas fábricas era a medida das
enfermidades sociais" (Parrington, vol. 1, 1941, p. 507).
Jefferson foi presidente dos Estados Unidos entre 1801 e 1809,
Hamilton foi morto em duelo em 1804. Mas, a vitória final foi de
Hamilton. Vitória que se materializou na Constituição de 1 787,
que significou o estabelecimento do equilíbrio estável entre os in­
teresses econômicos das classes dominantes (Parrington, vol. 1, p.
409-10) . Por isso mesmo a Constituição foi duramente contestada
pela maioria do povo:

"A maioria do povo não queria atar suas próprias mãos; não
lhe agradava a proposta de transferir o poder dos vários Esta­
dos ao governo federal. Os aldeãos e a gente comum temiam o
novo ins trumento: afirmavam que havia sido preparada pelos
aristocratas e homens endinheirados, e repudiavam o princípio
do governo fundado na propriedade" (Parrington, vol. 1, p. 412).

Mais peso ainda tiveram no debate as implicações da Revolução


Francesa, tal como foram apropriadas por Tom Paine e Jefferson, e
combatidas pelos Federalistas, a partir da acusação de que a mani­
festação popular pela ampliação democrática era expressão de vo­
cação separatista (Parrington, vol. I, p. 415).
A expressão mais acabada da condenação da Constituição, de
suas implicações antipopulares e antidemocráticas viria com Ri­
chard Henry Lee. Para ele, a Constituição era antidemocrática e
resultava em que a maioria estava submetida à minoria, e que não
expressava o juízo deliberado da grande massa do povo (Parrington,
vol. 1, p. 419).
A obra de Hamilton, Secretário de Estado do Tesouro no Primei­
ro governo de Washington, suas políticas de proteção industrial
(via tarifas aduaneiras), de estabilização monetária (via consolida­
ção das dívidas dos Estados e da União) e de criação de um sistema
financeiro, abriram caminho para a expansão capitalista nos Esta­
dos Unidos, para a vitória do grande capital (Chamberlain, 1965,
p. 62-7).

O processo de u rbanização nas Américas no século XVII I 1 87


A vitória de Hamilton não se fez sentir durante sua vida. As
conseqüências mais importantes de seu projeto manifestaram-se 3.
partir do final das guerras napoleônicas. Sua implicação mais po­
derosa foi a inversão do eixo fundamental da vida econômica dos
Estados Unidos. A América democrática, dos pequenos produto­
res rurais, do poder local, da vocação agrária, a América que tinha
fascinado Tocqueville em 1830, caminhava rapidamente, para tor­
nar-se uma outra América. A segunda metade do século XIX assis­
tiria a estas transformações: do poder dos pequenos produtores ru­
rais, da opção agrária aos grandes monopólios industriais, à hege­
monia do grande capital, à vitória da civilização urbana.
Essa vitória iria ter um final dramático: a Guerra Civil. Essa guer­
ra foi a definitiva reafirmação das transformações econômicas dos
Estados Unidos, a vitória de Hamilton. O Sul encarnaria neste
processo, de forma perversa, as ilusões e as idealizações do mun­
do rural de Jefferson. Enquanto que para Jefferson a idealização
agrária era um princípio ético-político, a busca da felicidade, da
liberdade, da vida, baseadas numa interdição dos males da civili­
zação urbana, da industrialização, para os sulistas insurretos a de­
fesa do agrarismo era a defesa dos privilégios de uma aristocracia
rural francamente decadente ante o avanço do grande capital, da
industrialização.

A u rban ização de M inas Gerais no século XVI I I : a imposição


do Estado e a hegemonia do capital mercantil metropol itano

A presença do traçado geométrico, o plano em xadrez das cida­


des da América Inglesa não decorrem da homogeneidade cultural
dos pioneiros. Na verdade, há diversas motivações e projetos nas
fundações dos núcleos urbanos da Nova Inglaterra: Boston foi fun­
dada em 1 634 por puritanos da Nova Inglaterra; Filadélfia foi fun­
dada em 1 631 por quakers, Baltimore foi fundada em 1 638 por cató­
licos ingleses (Boltshauser, 1959, p. 32).
Se a estes exemplos se adicionar o verificado nas colônias espa­
nholas, ter-se-á um padrão único (a cidade reticulada), mais ou me­
nos rigoroso, que também prevaleceu, em alguma medida, nas
colônias portuguesas da América, sobretudo a partir de 1720 (Reis
Filho, 1638, p. 131 ). Mesmo nas Minas.Gerais, onde o traçado xa­
drez não predominou amplamente, alguns núcleos urbanos como

88 1 João Antônio de Paula


Mariana e Diamantina, foram reticulados, pelo menos em suas re­
giões centrais (Mello, 1985) .
Contudo, a marca da urbanização em Minas Gerais é a ausência
de um plano, é a espontaneidade, de que Ouro Preto é o exemplo
mais expressivo. Resultado da conurbação de alguns núcleos
mineradores, Ouro Preto foi, na segunda metade do século XVIII, o
mais populoso dos núcleos urbanos brasileiros. Em 1750, Ouro Preto
chegou a ter 95 mil habitantes, sendo que 25 mil na zona urbana.
No mesmo ano a população de Lisboa era de 200 mil habitantes
(Mello, 1985, p. 69) .
Não só populosa mostrou-se Ouro Preto; apresentava indicado­
res, no século XVIII, de uma expressiva vida urbana, sobretudo pela
presença de importante variedade de serviços, pela presença de mú-
sicos, artesãos (pintores, pedreiros, entalhadores, carpinteiros, ... ), pro-
fissionais liberais, burocracia civil, militar e eclesiásticas etc .. .
Num censo realizado em 1804, contou-se, em Ouro Preto, já em
franca decadência, a presença de 1 .542 pessoas com profissões de­
claradas. Destas apenas 18% (287) exerciam profissões não-urba­
nas (faiscadores e mineradores - 228; lavradores - 46; capinteiros
- 7; hortelãos - 6) (Mathias, 1969) . Outra característica marcante
de Ouro Preto foi a sua relativamente desconcentrada estrutura de
posse de escravos. Em 1804, a média de escravos por proprietário
era de 3,7 (Luna, 1982, p. 40).
Estrutura urbana diversificada, estrutura de posse de escravos
desconcentrada eram traços marcantes de Ouro Preto, que também
estavam presentes em outros núcleos urbanos de Minas Gerais no
período colonial. Assim, pelos dados disponíveis, a maior concen­
tração de escravos em Minas Gerais deu-se em 1804, para a locali­
dade de São Caetano de 6,5 escravos por proprietário (Luna, 1982,
p. 40).
Uma visão de conjunto da urbanização em Minas Gerais no sé­
culo XVIII apontará então as seguintes características: 1) velocida­
de do processo, com o surgimento e a rápida consolidação de vá­
rios núcleos urbanos, em função da mineração; 2) diversificação de
atividades e hegemonia das atividades urbanas; 3) desconcentração
da estrutura de posse de escravos; 4) estrutura urbanística, domi­
nantemente linear, em contraposição à estruturação reticulada; 5)
desenvolvimento de uma arquitetura, e de padrões artísticos (nas
artes plásticas, na literatura, na música), que se apropriam livre e
criativamente do modelo europeu; 6) desenvolvimento de uma cul-

O processo de urbanização nas Américas no século XVI I I 89


tura urbana, de padrões de sociabilidade e associativismo relativa­
mente densos, a partir das irmandades religiosas; 7) consolidação
dos núcleos urbanos como espaços multifuncionais - isto é, de
núcleos urbanos sediando atividades produtivas, administrativas,
culturais, religiosas e políticas.
A velocidade do processo de urbanização, o enriquecimento do
padrão arquitetônico verificados em Minas Gerais no século XVIII,
discrepam, acentuadamente, do verificado na América Inglesa no
mesmo período. Esta discrepância reside, fundamentalmente, em
duas razões: 1 ) na presença importante do Estado em Minas Gerais
- Estado-fiscal e Estado-polícia; 2) na hegemonia do grande capi­
tal mercantil metropolitano. Isto é, a produção de riquezas consi­
deráveis, sob a forma de metal e pedras preciosas, determinou de
um lado a intervenção do Estado, que prontamente decidiu impor­
se na região e assim fazer valer seus direitos, e do outro, a presença
do grande capital mercantil, o outro grande beneficiário da expan­
são mineratória.
A imposição do Estado nas Minas Gerais, como a chamou Iglésias
(1974), significou a criação de uma estrutura de controle aduaneiro
e fiscal, a presença das milícias de tropas pagas, de uma estrutura
judiciária, que denunciavam o mais rigoroso de imposição colo­
nial.
Do ponto de vista do povoamento e do surgimento de arraiais,
vilas e cidades, houve o que se chamou de grande invasão, desde
que se divulgaram as notícias das descobertas auríferas, no final
do século XVII, na região de Ouro Preto. Com uma população de
cerca de 30 mil habitantes, quando do relato de Antonil, 1 711
(Antonil, 1966, p. 264), a Capitania passaria a contar com 226.606
em 1 751; com 319.769 em 1 776; com 396.285 em 1 786; com 406.915
em 1806; com 800 mil em 1821, às vésperas da Independência (An­
nuário Denwgraphico de Minas Gerais, 1928, p. 41).
O surgimento de arraiais e a ereção de vilas foram também ver­
tiginosos e deram conta da ocupação do território em todos os
seus quadrantes. Em 1 711, foram erigidas as vilas de Mariana,
Ouro Preto e Sabará; em 1 714, a vila de Caeté, no centro. A leste
houve a ereção das vilas de São João dei Rei em 1 713, Tiradentes
em 1 71 8, Barbacena em 1 791, Conselheiro Lafaiete em 1 792. Ao
sul, as vilas de Campanha em 1 789, Baependi em 1814 e Jacui em
1814. Ao norte, as vilas do Serro 1 714,. Minas Novas, em 1 729. A
oeste, as vilas de Pitangui em 1 715 e ltapecerica em 1 789. A no-

90 1 João Antônio de Paula


roeste, a vila de Paracatu em 1 789 (Revista do Arqu ivo Público Mi­
neiro, 1897) .
Se foram vertiginosos a urbanização e o povoamento, foi restrita
a concessão do estatuto de cidade a estes núcleos urbanos. De to­
dos os núcleos urbanos surgidos em Minas Gerais, apenas Mariana
foi reconhecida como cidade pelo poder metropolitano. Por outro
lado, criaram-se quatro comarcas judiciárias na Capitania, a mais
complexa das estruturas jurídicas da colônia brasileira, o que dá
conta do caráter sobretudo fiscalizador e controlador do Estado im­
posto em Minas Gerais.
Todos os comentarista surpreendem-se com a qualidade da civi­
lização urbana que se estabeleceu em Minas Gerais, no século XVIII.
Tratou-se de um processo mais amplo e denso que a simples aglo­
meração demográfica. Foi um processo de enriquecimento dos pa­
drões construtivos, de ampliação dos serviços e equipamentos ur­
banos, de incremento da sociabilidade e das relações simbólicas.
Em primeiro lugar, registre-se o engenho das soluções construti­
vas baseadas na tríade pedra sabão-madeira-alvenaria, de que são
exemplos conspícuos tanto certas construções civis (casos da Câ­
mara e da Cadeia, do Palácio dos Governadores e da Casa dos Con­
tos em Ouro Preto), quanto um número significativo de edificações
religiosas (abundantemente representadas em todo o território). A
qualidade técnico-artística destas edificações pode ser inferida pela
quantidade e qualidade de mestres e artesãos que povoaram a re­
gião mineradora durante o século XVIII (Boschi, 1988).
Também é importante registrar que, a partir de 1713, com a insta­
lação da primeira olaria em Mariana, houve melhoria do mate-rial
construtivo, num processo que seria incrementado sobretudo na
segunda metade dos setecentos (Franco, 1971 ). A presença de 18 cha­
farizes e dez pontes em Ouro Preto, construídos no século XVIII, dão
conta da preocupação com o abastecimento de água, e com aspectos
da higiene pública e pessoal, que são dignos de registro sobretudo
pelo que destoam do panorama colonial brasileiro (Bandeira, 1963).
Indicadores expressivos da qualidade e densidade da vida ur­
bana eram a presença de profissionais prestadores de serviços em
atividades artísticas. Neste particular, a capitania de Minas apre­
senta um quadro que não tem rival na Colônia: o número de músi­
cos profissionais na Capitania excedia o existente no conjunto do
Reino, como o disse Teixeira Coelho, em 1780 (citado por Frieiro,
1957, p. 250). Também expressiva é a constatação da existência de

O processo de urbanização nas Américas no século XVII I 91


um corpo médico na Capitania, que era dos mais atualizados da
Colônia (Correa Neto, 1965, p. 55).
Tem-se assim um quadro urbano marcado pela qualidade do pa­
drão construtivo, pela existência de equipamentos urbanos e, so­
bretudo, pela diversidade e qualidade das manifestações artísticas
e profissionais típicas das civilizações urbanas - a música, o teatro
(a Casa da Óp era de Ouro Preto é de 1 769), a escultura, a pintura,
a literatura, as práticas médicas, os ofícios jurídicos etc.
Tratava-se, enfim, de uma região que plasmou uma cultura, que
se afirmou pela apropriação sui generis dos elementos culturais ad­
ventícios. Conforme Carpeaux,

"só Minas Gerais possui uma 'paisagem cultural', no sentido


em que a possuem - guardadas as dimensões, evidentemente
- Florença ou a Umbria. Lugares em que obras da mão do ho­
mem, a cúpula do Duomo ou a Basílica de São Francisco em
Assisi - chegam a fazer parte da paisagem intimamente civili­
zada e como que, invocando o céu, uma terra redimida" (Car­
peaux, 1960, p. 189).

Uma paisagem cultural, uma civilização urbana, a cultura bar­


roca tal como aclimatada pelo gênio e pelas circunstâncias das gen­
tes da terra. Um barroco que, em vez de ser expressão dos interes­
ses do Absolutismo e da Contra-Reforma, foi, nas Minas Gerais,
expressão da liberdade criativa (Machado, 1973).
Em seu belo livro, A Cidade das Letras (1985), Angel Rama fala
das cidades latino-americanas, da cidade como síntese da nossa
cultura, resultado da interação entre os interesses e ações do colo­
nizador e do colonizado, desde a Conquista até os nossos dias. No
centro das várias modalidades de cidade que se foram construindo
na América Latina desde o período colonial encontra-se a mesma
marca barroca - a exigência ordenadora, a cidade contra a barbárie
do campo, a cidade marcada pelos signos, como controle do imagi­
nário, como hierarquia, cidade controlada.
Todos estes aspectos encontram-se particularmente sublinhados
na paisagem urbana de Minas Gerais do século XVIII. A arquite­
tura e o traçado são instrumentos pedagógicos. Toda a criatividade
dos artistas mineiros foi instrumento para a maior glória das Ir­
mandades, e estas foram formas possíveis tanto de sociabilidade
quanto de controle ideológico (Boschi, 1986).

92 1 João Antônio de Paula


A civilização urbana de Minas Gerais no setecentos foi a mani­
festação concreta e exemplar da natureza e dos limites do sistema
colonial praticado no Brasil : A Colônia, rica na geração de excedentes
carreados para o exterior, deixando no lugar a estagnação, a pobre­
za e o brilho mortiço no antigo fausto (Souza, 1982) .
O fundamental a reter aqui é que o maravilhoso da civilização
urbana, que se manifestou em Minas Gerais no século XVIII, não é
fenômeno estranho nem à teoria, nem à história das cidades. Wemer
Sombart, em Lujo y Capitalismo, mostra o quanto as cidades são re­
sultado de concentrações, num determinado espaço, de uma cama­
da de consumidores. Uma cidade nasce da concentração de consu­
midores, que exigirão, para satisfazer seus interesses e demandas, a
ampliação do fornecimento de variados serviços. Tanto Cantillon
quanto Quesnay definiram, no século XVIII, as cidades como resul­
tados da concentração de riquezas, como espaços formados pelo luxo,
pelo consumo conspícuo, pelos prazeres (Sombart, 1965, p. 52-3).
Trata-se, assim, de uma afirmação que confirma o fundamental
da trajetória da civilização urbana de Minas Gerais nos setecentos -
os núcleos urbanos nascidos da expansão do ouro, mas sobretudo
da concentração de uma burocracia civil e militar, de uma plutocracia
de contratadores. E foram esses os elementos, efetivamente consti­
tuintes das cidades, que afinal explicam que foi, sobretudo já no pe­
ríodo de decadência da mineração, que o principal das grandes obras
públicas e privadas das cidades tenha sido construído.
As cidades mineiras do setecentos foram manifestações exem­
plares do esplendor e dos limites do capital mercantil, de sua inca­
pacidade de transformar as relações sociais e as forças produtivas:
a presença de um brilho e de uma opulência submetidos ao exclu­
sivo metropolitano - isto é, à permanente transferência das rique­
zas para metrópole via preços de monopólio e via tributação.

Balanço dos processos de urban ização


n as Américas no século XVI I I

A título de síntese pode-se mencionar os seguintes pontos:


1. a diferença entre as trajetórias históricas dos países ibero-ame­
ricanos e a América Inglesa não residiu, fundamentalmente, em
aspectos culturais, mas decorreu de peculiaridades das formas como
se praticaram as regras metropolitanas nos diversos contextos co­
loniais;

O processo de urbanização nas Américas no século XVII I 1 93


2. prevalecem, tanto na América Espanhola quanto na América
Inglesa, estruturas urbanísticas semelhantes, baseadas no traçado
em xadrez; Portugal nas suas colônias também praticou, de forma
menos rigorosa, o padrão reticulado;
3. o luxo e o apuro urbanístico foram diretamente proporcionais
à quantidade e velocidade do processo de apropriação de riquezas;
4. a consolidação de um efetivo processo de urbanização - isto
é, de um processo dinâmico e autônomo - dependia da consolida­
ção do processo de generalização da divisão do trabalho e da capa­
cidade de polarização econômica - isto é, da capacidade de reter
os frutos da riqueza por meio da diversificação da estrutura de ser­
viços.

Bibliografia

Annuario Demographico de Minas Geraes, Armo 1, 1928. Belo Horizonte: Im­


prensa Oficial. 1928.
Antonil Goão Antônio Andreoni). Cultura e Opulência do Brasil por suas
Drogas e Minas (1 711). São Paulo: Cia. Editora Nacional. 1966.
Argan, Giulio Cario. História da Arte como História da Cidade. São Paulo:
Martins Fontes. 1992.
Bandeira, Manuel. Guia de Ouro Preto. 4. ª ed. Rio de Janeiro: Letras e Artes.
1963.
Benevolo, Leonardo. História da Cidade. São Paulo: Perspectiva. 1983.
Boltshauser, João. Noções de Evolução Urbana nas Américas. l .ª parte. Belo
Horizonte: EAUMG. 1959.
Boschi, Caio C. Os Leigos e o Poder. São Paulo: Á tica. 1986.
-- O Barroco Mineiro: Artes e Trabalho. São Paulo: Brasiliense. 1988.
Braudel, Femand. Civilização Material e Capitalismo. Vol. 1. Lisboa: Cosmos.
1970.
Bruchey, Stuart. As Origens do Crescimento Econômico Americano. Rio de Ja­
neiro: Record. s/d.
Carpeaux, Otto Maria. Livros na Mesa. Rio de Janeiro: São José. 1960.
Chamberlain, John. História do Crescimento da América. Rio de Janeiro:
Record. 1965.
Chaunu, Pierre. A América e as Américas. Lisboa: Cosmos. 1969.
Corrêa Netto, Alipio. A Doença do Aleijadinho. São Paulo: Mestre Jou. 1965.
Fichou, Jean-Pierre. A Civilização Americana. São Paulo: Papiros. 1990.
Franco, Afonso Arinos de Melo. Desenvolvimento da Civilização Material no
Brasil. 2.ª ed. Conselho Federal de Cultura. 1971 .

94 1 João Antônio de Paula


Frieiro, Eduardo. O Diabo na Livraria do Cônego. Belo Horizonte: Itatiaia.
1957.
Hardoy, Jorge E. "Las formas ·urbanas europeas durante los siglos XV al
XVII y su utilización en America Latina. Notas sobre el transplante de
la teoria y práctica urbanisticas de espafioles, portugueses, holande­
ses, ingleses y franceses". Urbanización y processo social en America. Lima:
IEP. 1972.
-- "Two Thousand Years of Latin American Urbanization". Urbanization
in Latin America. New York: Anchor Books. 1975.
Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 6.ª ed . Rio de Janeiro: José
Olympio. 1971 .
-- Visão do Paraíso. 2.ª ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional. 1969.
Iglésias, Francisco. "Minas e a Imposição do Estado no Brasil". Revista de
História. São Paulo. 1974.
Luna, Francisco Vidal. "Estrutura da posse de escravos". Minas Colonial:
Economia e Sociedade. São Paulo: FIPE /Pioneira. 1982.
Machado, Lourival Gomes. Barroco Mineiro. 2.ª ed. São Paulo: Perspectiva.
1973.
Marx, Karl. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1968 e 1974.
Mathias, Herculano Gomes. Um Recenseamento na Capitania de Minas Ge­
rais. Vila Rica - 1 804. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional. 1969.
Mello, Suzy de. Barroco Mineiro. São Paulo: Brasiliense. 1985.
Morse, Richard. "Framework for Latin American Urban History". Urbani­
zation in Latin America. Op. cit.
Munford, Lewis. A Cultu ra das Cidades. Belo Horizonte: Itatiaia, 1961.
Novais, Fernando Antonio. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Co­
lonial (1 777-1 808). São Paulo: Hucitec. 1979.
Ortega y Gasset, José. Espafía Invertebrada. 6.ª ed. Madri: Revista Occidente.
1948.
Parrington, Vemon L. El Desarrollo de las Ideas en los Estados Unidos. 2 vol.
1941 .
Paula, João Antônio de. "Colombo e Tiradentes: ensaio sobre a coloniza­
ção e a descolonização". VI Seminário sobre a Economia Mineira. Diaman­
tina: Cedeplar/UFMG. 1992.
Reis Filho, Nestor Goulart. Evolução Urbana do Brasil. São Paulo: Pioneira/
USP. 1968.
Reps, John. Town Planning in Frontier America. Columbia/ Londres: UMP.
1980.
Revista do Arquivo Público Mineiro. Armo II, fascículo l .º. Janeiro/março.
1897. Ouro Preto.
Sombart, Wemer. Lujo y Capitalismo. 3.ª ed. Madri: Revista de Occidente.
1965.

O processo de urbanização nas Américas no século XVII I 1 95


Souza, Laura de Mello. Desclassificados do Ouro. Rio de Janeiro: Graal. 1982.
Tocqueville, Alexis. A Democracia na América. Belo Horizonte: Itatiaia. 1962.
Weber, Max. Economia y Sociedad. 2.ª ed. México-Buenos Aires: FCE. 1964.
2 vol.
Zweig, Ferdinand. El Pensamiento Económico y su Perspectiva Histórica. 2.ª
ed. México-Buenos Aires: FCE. 1961.

96 1 João Antônio de Paula


Ili
P EC UÁRIA E C U LTU RAS DE S U B S I STÊ N C IA
Manuel Correia de Andrade
Fundação joa q uim Nabuco

A PEC UÁRIA E A P RO D U ÇÃO


D E ALI M E NTOS NO P E RÍO DO C O LO N IAL

O sentido da colonização

Como já salientava Caio Prado Júnior1, a colonização do Brasil


foi um empreendimento econômico típico de domínio do capitalis­
mo mercantil. Os portugueses fizeram a sua expansão pela costa
africana, pela Ásia Meridional e pela América Latina, visando con­
seguir produtos tropicais e minerais para o mercado europeu, ob­
tendo lucros bastante compensadores. Daí observar-se que, no pe­
ríodo colonial - 1500 a 1822 -, a história econômica do Brasil foi
marcada pelos produtos de exportação de maior importância eco­
nômica - o pau-brasil, o açúcar, o ouro e os diamantes, o algodão
etc. - a ponto de alguns historiadores admitirem a sua periodiza­
ção em "ciclos" - ciclos que, na realidade, não ocorreram, de vez
que a exportação de um produto continuava no "ciclo" seguinte,
não mais como o principal, mas como um produto de menor im­
portância, menos expressivo.
Não é realista, também, a idéia de se procurar transplantar para
a história brasileira o esquema dos modos de produção - um con­
ceito teórico elaborado em função de outra realidade, admitindo­
se até que teria havido um período feudal no Brasil, ou modos de
produção secundários. A nosso ver, a interpretação da história bra­
sileira pode ser feita com maior acerto se forem usados conceitos
ligados à formação econômico-social, a partir da transferência de

1 Prado Júnior, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. Colônia. São Pau­


lo: Livraria Martins. 1942.

A pecuária e a produção de alimentos no período colonial 1 99


sistemas europeus, em decadência ou em ascensão, e de sua adap­
tação à realidade encontrada no continente americano. Como o
povoamento do Brasil, visto como uma colônia de exploração, foi
iniciado com a finalidade de extrair riquezas não-existentes na Eu­
ropa, deram os portugueses uma importância maior aos produtos
a serem exportados do que àqueles a serem por eles consumidos.
Mesmo porque, para os colonizadores, não havia propriamente uma
população na colônia, mas grupos indígenas que deveriam ser es­
cravizados para fornecer os produtos de exportação. O coloniza­
dor privava a população nativa de sua liberdade, ocupando suas
terras, depredando os recursos naturais e utilizando-a, sob coação,
como força de trabalho não-remunerada.
Sendo inicialmente pequeno o número de portugueses no Bra­
sil, não se preocuparam eles com a produção dos alimentos neces­
sários, preferindo trazê-los da metrópole, o que permitia maior uti­
lização das embarcações em suas viagens de ida e volta. Como a
porulação nativa se alimentava da pesca, da caça, da coleta flores­
tal e de uma incipiente agricultura, os portugueses procuraram
adaptar-se a este tipo de alimentação, substituindo produtos tradi­
cionais pelos da terra, como aconteceu com a farinha de trigo, que
foi substituída pela farinha "de pau", ou de mandioca.
Passados os primeiros anos de mera exploração florestal, inicia­
ram os portugueses a colonização e ocupação do território por
migrantes, desenvolvendo a cultura da cana-de-açúcar. Inicialmen­
te, ela foi cultivada em quase todas as capitanias, só depois é que
foi se concentrando em Pernambuco e na Bahia. A sua cultura de­
mandava um grande emprego de mão-de-obra e um expressivo
emprego de capitais2, para a implantação dos chamados engenhos,
verdadeiras plantations tropicais. Para isso, importaram em larga
escala escravos negros, africanos, que eram aqui vendidos aos se­
nhores de engenho. A intensificação da escravidão e o crescimento
populacional decorrente da expansão dos canaviais, provocaram
sérios impactos e a necessidade de se produzir, na área povoada,
alimentos que se adaptassem ao clima e ao solo da Colônia, para
esta população em crescimento. Daí a importação de animais e
vegetais da própria Europa, assim como da África, da Á sia e da

2 Furtado, Celso. Formação Econômica do Brasil. Rio de Janeiro: Fundo de


Cultura. 1959.

1 00 1 Manuel Correia de Andrade


Oceânia, terras por onde se estendia a influência comercial portu­
guesa.
Da Europa foram trazidós, desde a primeira metade do século
XVI, os animais domésticos - sobretudo bovinos, caprinos, suí­
nos, eqüinos; da África, vieram vegetais como o sorgo, o inhame, o
cará; da Ásia, fruteiras como a bananeira, a mangueira, a jaqueira
e o arroz; e da Oceânia, a fruta-pão e o coqueiro3. Muitos vegetais
cultivados pelos indígenas - como o algodão, a mandioca e o mi­
lho - passaram também a ser cultivados pelos colonizadores. Este
fato é comprovado pelo depoimento dos cronistas coloniais, no sé­
culo XVII, que testemunharam haver nos engenhos de açúcar áreas
cultivadas como produtos alimentícios que garantiam a fartura das
casas-grandes e a abundância de alimentos4• A cana-de-açúcar só
era cultivada nas terras baixas de massapê e nas encostas de "barro
vermelho", ao passo que os solos silicosos dos interflúvios eram
utilizados para a plantação de tubérculos e de fruteiras. Daí o
desenvolvimento do chamado "sistema do Brasil" no qual o se­
nhor de engenho permitia que escravos cultivassem lavouras de
mantimentos em áreas marginais aos engenhos, nos dias santos,
feriados e domingos, a fim de que contribuíssem para o seu pró­
prio sustento5•
No início do século XVII, os canaviais de Pernambuco se limita­
vam aos vales fluviais, às famosas várzeas, enquanto que os inter­
flúvios arenosos eram destinados à pecuária extensiva e à produ­
ção de alimentos6; no Recôncavo Baiano, porém, a cana dominou
as áreas de massapê e deixou ao fumo as áreas silicosas; o fumo
ganhou importância por ser usado na África como artigo de troca
por escravos.
A permanência da pecuária nas áreas próximas às de agricultu­
ra, trouxe problemas de convivência, de vez que o gado era criado

3 Mello, José Antônio Gonçalves de. Notas acerca da introdução de ve­


getais exóticos em Pernambuco. Boletim do Instituto Joaquim Nabuco de
Pesquisas Sociais, n.º 3, p. 33-138. Recife. 1954.
4 Cardim, Fernão. Tratado da Terra e da Gente do Brasil. 2.ª edição. São
Paulo: Companhia Editora Nacional. 1939.
5 Diégues Júnior, Manuel. População e Açúcar no Nordeste do Brasil. Rio de
Janeiro: Comissão Nacional de Alimentação. 1959, p. 69 e ss.
6 Andrade, Manuel Correia de. A Economia Pernambucana no Século XVI.
Recife: Arquivo Público Estadual. 1962.

A pecuária e a produção de alimentos no período colonial 1O1


solto e destruía as plantações, fazendo com que o Governo estabe­
lecesse que os criadores de gado deveriam se interiorizar, ficando
as áreas de criação distantes das áreas agrícolas. Isso contribuiu
para a expansão do povoamento para o Interior, e para a ocupação
de grandes espaços, interligando as várias regiões do Brasil.

A pecuária e a produção do território

A penetração dos criadores de gado para o interior foi determi­


nada por uma série de fatores, como a necessidade de manter o
gado afastado das áreas agrícolas litorâneas; a ocupação holande­
sa, que acelerou ainda mais a transferência de criadores de gado
das áreas próximas à costa para o Sertão, utilizando os rios, sobre­
tudo o São Francisco, como condutos da penetração. Com a expul­
são dos holandeses, já era expressivo o povoamento do Sertão, e
grupos organizados já haviam derrotado indígenas e conquistado
áreas de pastagem.
Esta expansão foi muito favorecida pelas condições naturais e
econômicas. Do ponto de vista natural, o clima semi-árido dificul­
tava a proliferação de verminoses e de epizootias; além disso, ha­
via uma pastagem natural boa para o gado, no período das chuvas,
e "ilhas" úmidas nas margens dos rios e nas serras para onde ele
poderia ser levado no período seco. Do ponto de vista econômico,
contavam os pecuaristas com um mercado certo na área agrícola,
que seria abastecido de carne, de couro e de animais de trabalho;
tinham facilmente derrotado as tribos indígenas, depois de verda­
deiro genocídio7, e confinado os vencidos em aldeamentos admi­
nistrados por missionários que procuravam sedentarizá-los. Os ín­
dios sedentarizados tornavam-se produtores de alimentos e for­
mavam uma reserva de força de trabalho que podia ser recrutada
pelos sesmeiros nas ocasiões em que necessitavam de braços para
os trabalhos agrícolas ou de auxiliares para combater outras tribos.
As terras conquistadas aos índios eram doadas em sesmarias a
pessoas influentes junto ao governador-geral da Bahia ou ao capi­
tão-mor de Pernambuco, fazendo com que algumas famílias se apos-

7 Calmon, Pedro. História da Casa da Torre. Rio de Janeiro: José Olympio,


s.d.

1 02 1 Manuel Correia de Andrade


sassem de grandes extensões, verdadeiros latifúndios que compre­
endiam dezenas de léguas, obrigando os verdadeiros povoadores,
homens humildes que haviám enfrentado os indígenas e implanta­
do pequenos currais, a se tomarem seus foreiros.
Antonil, que deu um importante depoimento sobre o Brasil no
início do século XVIII, mostra como, após dois séculos de ocupação
da Colônia, todo o interior do Nordeste estava praticamente ocu­
pado, tanto o chamado "sertão de fora", da margem esquerda do
São Francisco, como o "sertão de dentro", da margem direita do
mesmo rio, havendo latifúndios que se estendiam por mais de oi­
tenta léguas nas margens do grande rio, expandindo-se para o nor­
te até o Rio Grande do Norte, o Ceará e o Piauí - como o da Casa
da Torre. O da Casa da Ponte se estendia desde o morro do Cha­
péu, na Bahia, até as margens do rio das Velhas em Minas Gerais8•
Alguns dos agregados das farm1ias dominantes nestas duas casas,
a Dias d' Ávila e a Guedes de Brito, também foram grandes con­
quistadores de terras, como ocorreu com Domingos Afonso Ma­
frense, conquistador do Piauí, e os bandeirantes paulistas que vie­
ram ao Nordeste a serviço dos governos locais para combater os
Cariris, na chamada "guerra dos bárbaros", e aos escravos negros
no Quilombo dos Palmares9•
Formou-se, assim, no Sertão - Nordeste semi-árido - uma so­
ciedade pecuarista, dominada por grandes latifúndios, cujos de­
tentores quase sempre viviam em Olinda ou Salvador, delegando a
administração da propriedade a empregados, e nas quais havia sí­
tios que eram aforados a pequenos criadores que implantavam cur­
rais. Era uma economia inteiramente voltada para um mercado
distante, situado no litoral, para onde a mercadoria se autotrans­
portava, em boiadas conduzidas por vaqueiros e tangerinos, por
centenas de léguas. No percurso havia pontos de repouso e de en­
gorda, pois a caminhada provocava uma queda de peso dos ani­
mais. Alguns núcleos urbanos hoje existentes, como Jacobina, se
desenvolveram em virtude deste sistema de repouso dos animais.
A descoberta do ouro nas Gerais e a formação de um grande

8 Antonil, João André. Cultura e Opulência do Brasil em suas Drogas e Mi­


nas. São Paulo: Companhia Editora Melhoramentos, s.d.
9 Lima Sobrinho, Barbosa. O Devassamento do Piauí. São Paulo: Compa­
nhia Editora Nacional. 1946.

A pecuária e a produção de alimentos no período colonial 1 03


adensamento populacional em áreas distantes do litoral, trouxe­
ram grandes vantagens para os criadores de gado do Sertão, que
passaram a abastecer os centros de mineração; a corrida do ouro,
gerando grande riqueza, fez com que se concentrasse a população
e se expandisse consideravelmente o mercado. Daí as grandes li­
gações abertas entre o médio e o alto São Francisco, fazendo com
que se formassem não só caminhos de gado, como que se con­
quistassem terras aos índios com a finalidade de criar gado para a
área mineradora. A demanda de alimentos nas Minas foi bem su­
perior à oferta, fazendo os preços se elevarem, tornando numero­
sos migrantes agricultores de mantimentos - como mandioca, mi­
lho, cana-de-açúcar, frutas - ou criadores de médios e pequenos
animais que eram facilmente comercializados. A pecuária foi
acompanhando, nas áreas de caatingas e de cerrados, o trajeto dos
mineradores, aproximando-se sempre dos arraiais de garimpa­
gem. Daí a continuidade dos currais nordestinos por territórios,
hoje de Minas Gerais, de Goiás e do próprio Mato Grosso.
A civilização pecuária envolveu grandes capitais, e nela, embo­
ra em menores proporções do que na área açucareira, foi utilizado
o braço escravo negro ao lado do indígena. A influência cultural
indígena se fez sentir de forma mais acentuada, de vez que a caça e
a pesca abundantes promoveram uma intensa penetração dos ali­
mentos indígenas na mesa dos colonizadores, muitas vezes já ma­
melucos. Também deu margem à utilização de utensílios de couro,
como portas de casa, leitos, cordas, borracha de carregar água,
alforje, molas, mochilas, peias para cavalo, bainhas de faca etc., o
que levou o historiador Capistrano de Abreu a classificá-la como
"civilização do couro"10•
Ao mesmo tempo que a pecuária comandou a ocupação no Nor­
deste semi-árido, ela teve o mesmo papel na Campanha gaúcha,
devido à expansão das missões jesuíticas pelo território, hoje brasi­
leiro. Os jesuítas espanhóis, partindo de Assunção, no Paraguai,
em direção a Leste, em demanda do Atlântico, fundaram no terri­
tório do Brasil Meridional numerosas missões, organizando os in­
dígenas em aldeamentos, sedentarizando-os e desenvolvendo ati­
vidades econômicas e artísticas. As missões muito contribuíram

10
.
Abreu, Capistrano. Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil. Rio de Ja­
neiro: Briguiet. 1930.

1 04 1 Manuel Correia de Andrade


para o desenvolvimento da pecuária bovina que se expandia su­
bindo os formadores do rio da Prata. Com a destruição feita pelos
bandeirantes paulistas e p ela guerra promovida por Portugal e
Espanha para acabarem estas missões, os indígenas e grande parte
do gado foram dispersados pelos campos.
Este gado seria, posteriormente, reunido e apropriado por es­
tancieiros gaúchos e uruguaios que penetravam para o interior,
dando origem a uma área de civilização pecuarista no Brasil meri­
dional, área que sempre esteve ligada a São Paulo e que, com o
desenvolvimento da mineração, foi grande fornecedora de animais
de tração - muares sobretudo -, e de abate à zona mineradora.
Alfredo Ellis Junior11, estudando as feiras de Sorocaba, chegou a
admitir a existência de um "ciclo do muar". A influência indígena
ainda hoje é testemunhada pelas ruínas das missões e pelo nome
das cidades, como Santo Angelo, São Luís Gonzaga, São Borja etc.
Aí também, ao lado da pecuária, da caça e da pesca, foi desenvolvi­
da, em escala de abastecimento local, a produção de alimentos.
Na região nordestina o sistema pecuário sofreria um grande
impacto a partir de meados do século XVIII, com o estímulo dado
à produção de algodão. A revolução industrial, utilizando o algo­
dão como matéria-prima na indústria têxtil, estimulou a sua pro­
dução nas regiões tropicais, sendo o Brasil uma das áreas em que
ela se desenvolveu, provocando uma verdadeira revolução no sis­
tema de exploração da terra. Grandes áreas foram desmatadas pa­
ra a sua cultura, restringindo a área de gado, e para as culturas
alimentícias, de vez que a produção do algodão provocou o cresci­
mento populacional da região. Cresciam as culturas do milho e do
feijão, associados à do algodão e à da mandioca.
Mas, a restrição da área de pastagens não trouxe prejuízos aos
criadores, que eram também plantadores de algodão, porque as
lavouras, após a colheita, deixavam no solo o "restolho" que servia
de alimento suplementar para o gado. Como a colheita se dava na
estação seca, esta alimentação vinha dar maior estabilidade à pe­
cuária, diminuindo a necessidade de migrações para grandes dis­
tâncias. O impacto ecológico, porém, foi muito grande, de vez que
a expansão das lavouras acarretou o desmatamento, atingindo

11 O ciclo do muar. Revista de História, ano I, n.º 1, p . 73-83, jan.-mar. São


Paulo. 1950.

A pecuária e a produção de alimentos no período colonial 1 OS


áreas de "brejos" e de "serras frescas" que formavam verdadeiras
"ilhas" ecológicas de florestas no meio das caatingas.
A produção de alimentos, feita apenas para o abastecimento do
mercado local, expandir-se-ia à proporção que aumentava esse mer­
cado e que se dispunha de tropas de burros para levá-la até os cen­
tros consumidores do litoral e da mineração. Ela permitiu ainda o
surgimento de vilas e cidades que, tendo fundamentalmente a fun­
ção comercial e industrial - locais onde o algodão era liberado da
semente e prensado, tomaram-se centros de serviços e de adminis­
tração.

Por uma visão geopol ítica do problema

Analisando-se os problemas enfrentados pela pecuária e pela


produção de alimentos na conjuntura histórico-social do Brasil co­
lonial, pode-se chegar a conclusões de maior interesse para uma
reflexão sobre a formação histórica e social do Brasil. Assim, o sen­
tido da colonização levou o colonizador a privilegiar determina­
dos produtos de exportação e deixar em posição secundária os des­
tinados ao mercado local e da Colônia. Daí o Governo português
ter estimulado a ocupação das áreas de grandes propriedades que
produziam artigos de exportação, mas a necessidade de consolida­
ção desta ocupação tomou possível o desenvolvimento de ativida­
des ligadas ao mercado interno.
As áreas açucareiras e, em seguida, as de mineração, voltadas
para o mercado externo, necessitaram ser abastecidas de animais
de trabalho, de couro e de alimentos, provocando a penetração para
o interior. O afastamento cada vez maior das áreas produtoras das
consumidoras, levou ao desenvolvimento de uma atividade manu­
fatureira que ganhou grande importância no século XVIII, a de pro­
dução de charque, no Ceará e no Piauí. Esta industrialização se
justificava por ser mais racional desidratar a carne e exportá-la do
que transportar o gado a pé por centenas de léguas de distância. A
indústria cresceu de tal forma que, em certo momento, começou a
prejudicar a oferta de animais de tração aos engenhos de açúcar,
levando o Governo de Pernambuco a proibir o funcionamento de
charqueadas no Rio Grande do Norte, então capitania dependente
-
de Pernambuco.
Quando a seca de 1 790 / 3 dizimou o rebanho nordestino e levou

1 06 1 Manuel Correia de Andrade


à falência numerosas charqueadas, empresários cearenses se trans­
feriram para Pelotas, no Rio Grande do Sul, e passaram a produzir
e fornecer o charque para as ·áreas consumidoras12• A expansão dos
algodoais e a necessidade de um beneficiamento local do produto
provocaram o crescimento populacional e a formação de novos gru­
pos sociais no Sertão; o crescimento dos algodoais contribuiu, em
grande parte, para a expansão da escravidão negra nas áreas de
pecuária, como testemunhou, no início do século XIX, o arguto vi­
ajante Tollenare13•
A concentração populacional na área de mineração deu margem
a que se formasse aí uma agricultura de alimentos que subsistiu
mesmo depois da decadência da mineração. Minas Gerais perma­
neceu como o Estado mais populoso do Brasil até as primeiras dé­
cadas do século XX, destacando-se como produtor de carne e de
leite para todo o mercado nacional.
Dentro do sistema colonial, que só entraria em crise nos fins do
século XVIII, surgiu uma certa hierarquia entre as áreas de pro­
dução de mercadorias para exportação em detrimento das produ­
toras para o mercado interno, sendo estas sujeitas a dupla explo­
ração - a da metrópole, de forma indireta, e a do litoral de forma
direta. Formaram-se, assim, áreas politicamente secundárias, que
permaneceram sempre dependentes das capitanias que se encon­
travam no litoral, e que eram dominadas politicamente pelos polí­
ticos das áreas privilegiadas.
No Sudeste, o processo ocorrido no Interior, graças, sobretudo,
à importância econômica da mineração, a capitania de São Paulo
foi desmembrada dando origem às capitanias de Minas Gerais, de
Goiás e de Mato Grosso, com a primeira vindo a tornar-se uma das
principais unidades da federação até o advento do café, que tam­
bém a favoreceu. No Sul, os pecuaristas tiveram maior importân­
cia por não terem concorrentes exportadores e porque controlaram
o poder político até o início do século XX, quando as regiões colo­
niais implantadas no Império e na Primeira República se tomaram
economicamente fortes e passaram a ter peso político acentuado.
Em Mato Grosso, que permaneceu durante todo o período colo-

12
Girão, Raimundo. História Econômica do Ceará. Fortaleza: Instituto do
Ceará. 1947.
13 Tollenare, L. F. Notas Dominicais. Salvador: Progresso. 1958.

A pecuária e a produção de alimentos no período colonial 1 07


nial praticamente isolado do resto do Brasil, a mineração sobrevi­
veu, mas a pecuária, sobretudo no Pantanal, tornou-se a principal
atividade econômica da então capitania, que esteve sempre muito
mais ligada às Repúblicas do Prata do que ao Brasil. Só no século
XX, com a construção de ferrovias e rodovias, é que ele foi captura­
do economicamente para o Brasil.
Assim, admitimos ser da maior importância o desenvolvimento
de estudos sobre a pecuária e a cultura de alimentos14 no Brasil,
encarando-os em suas características internas e externas, no rela­
cionamento com as culturas de exportação. Da mesma forma, é ne­
cessário que se façam estudos das interrelações territoriais e regio­
nais entre umas e outras áreas.

14 Linhares, Maria Yedda Leite. História do Abastecimento; uma Problemáti­


ca em Questão (1530-1 91 8). Brasília: Binagri. 1979.

1 08 1 Manuel Correia de Andrade


M aria Yedda Leite Lin hares
Dep.tº de História, I FCS/U FRJ

A P E C UÁRIA E A P RO D U ÇÃO
D E ALI M E N TOS NA C O LÔ N IA

" Eles nom lavram nem criam, nem ha quy nem vaca, nem cabra,
nem ovelha, nem galinha, nem outra nhuma alimarea, que costuma­
da seja aho viver dos homeens. "
1 de maio de 1 500
Pero Vaz de Caminha

Desfazendo os mitos

Destacaremos, de início, duas noções que começam a ganhar


vulto na historiografia brasileira recente. Elas dizem respeito ao
primeiro grande movimento de apossamento de terras no interior
do País, a partir dos meados do século XVII. A primeira tratd do
avanço da fronteira, de forma paulatina, tendo como instrumento
o gado - esse produto que se move, mesmo por maus caminhos -
daí resultando a partilha do sertão sanfranciscano e pernambuca­
no entre vastos e sucessivos latifúndios. A segunda refere-se ao ex­
termínio das populações indígenas, com dimensões de genocídio,
na medida em que avançam os currais.
No seu conjunto, tal movimento de ocupação de terras, erronea­
mente ditas "virgens" ou inabitadas, levado a efeito por sergipanos,
alagoanos e paulistas, não se enquadra na versão idealizada que
canta a marcha heróica de bravos indômitos bandeirantes inves­
tindo sobre os sertões, como paladinos da construção territorial do
País. E, menos ainda confirma a versão que vê no índio o recurso
de mão-de-obra voluntária e "culturalmente" adequada ao trabalho
nas fazendas de gado. Associam-se aí algumas pré-noções, entre
elas a de que as fazendas de gado se caracterizavam pela natureza

A pecuária e a produção de alimentos na Colônia 1 1 09


livre do trabalho nelas realizado. Em suma, a escravidão não teria
tido curso na liberdade que seria o apanágio do trabalho de va­
queiros e peões. Hipoteticamente, os índios, inadaptados ao traba­
lho sedentário da agricultura, teriam aceitado facilmente viver no
latifúndio da pecuária! A realidade não confirma tal versão.
Quanto ao romantismo da interpretação bandeirante, há o exa­
gero que reveste, de maneira geral, a história que trata do avan­
ço da fronteira de povoamento. Nos Estados Unidos, a tradição de
Frederick Jackson Turner - The Frontier in American History (1893)
- foi prolongada e deu muitos frutos, fortemente imbuída da idéia
de construção das glórias e virtudes de uma nação igualitária! Na
Rússia Imperial, a tradição de Kliuchevski originou uma vertente
interpretativa ligada à construção do tzarismo e da união política
das várias Rússias sob Moscou, amenizada tal vertente pela ocupa­
ção das vastas planícies além dos Urais1 • São processos históricos
que ocorreram em períodos relativamente próximos, dos quais re­
sultaram esquemas explicativos bastante curiosos quanto à confi­
guração política e social de países como a Rússia e os Estados Uni­
dos, com suas determinações "nacionais" e históricas específicas,
tais como o caráter autoritário ou democrático de suas respectivas
sociedades, as diferentes vias de transição ao capitalismo segundo
a corrente leninista, ou ainda a origem da servidão (a segunda ser­
vidão, por exemplo, na Rússia, na Polônia) ou do campesina to tipo
farmer americano.
As pesquisas têm revelado uma realidade bem diversa das ideali­
zações correntes, tanto quanto à forma de ocupação da terra, o que
se demonstra no estudo sobre a constituição dos latifúndios baia­
nos em seus aspectos legais particulares - conforme a comunica­
ção aqui apresentada pelo historiador Francisco Carlos Teixeira da
Silva, como, também, pela reação das populações indígenas à in­
corporação de sua força de trabalho nas fazendas de gado, o que
igualmente foi examinado em trabalho na região do baixo São
Francisco2• Da mesma forma, os trabalhos do antropólogo Luiz Mott

1 Domar, Evsey D. "The Causes of Slavery and Serfdom: a Hypothesis".


]ournal of Economic History 30(1). March 1970. Velho, Otávio Guilher­
me. Capitalismo Autoritário e Campesinato. Rio de Janeiro: Difel. 1976.
2 Teixeira da Silva, Francisco Carlos. Camponeses e Criadores na Formação
Social da Miséria. Dissertação de mestrado. UFF. 1981, mimeo.

1 1O 1 Maria Yedda Leite Unhares


comprovaram amplamente, e de forma pioneira, a falácia das ver­
sões que tratam da vocação do índio pela pecuária e da pretensa
inexistência do trabalho servil na pecuária sertaneja3•
Não será, pois, nos limites desta comunicação - a pecuária e a
produção de alimentos na Colônia -, que caberá desfazer esses e
outros mitos bem assentados na historiografia brasileira. Tentare­
mos limitar-nos a salientar o peso dos rebanhos na expansão da
fronteira agrícola nos primeiros séculos formadores do País, res­
saltando os aspectos ligados à subsistência lato sensu, de modo a
abranger o consumo de alimentos pela população. Ao longo da lei­
tura não será difícil perceber as dificuldades atinentes à pesquisa
específica em pecuária, bem como à necessidade de deixar de lado
certos aspectos descritivos em benefício do enfoque, num primeiro
momento, mais genérico, com perspectivas teóricas abrangentes
capazes de impulsionar os estudos nessa área ainda carente de
pesquisas de base.
Partimos, assim, do quadro teórico-conceituai construído e de­
senvolvido, nos últimos anos, na linha de pesquisa de História
Agrária nos dois centros de pós-graduação em História do Rio de
Janeiro (UFF e UFRJ), em continuidade ao trabalho que teve início,
entre 1977 e 1981, no Centro de Pós-Graduação em Desenvolvi­
mento Agrícola, da Fundação Getúlio Vargas (EIAP /FGV /RJ). Con­
sidera-se como hipótese central que a economia aqui engendrada
nos primeiros séculos, baseada na agricultura extensiva, tinha sua
reprodução dependente da presença de três elementos cuja oferta
deveria ser elástica - isto é, terras, homens e alimentos. A existên­
cia da fronteira agrícola aberta, apesar da persistente resistência
das populações indígenas, combinavam-se o tráfico atlântico, ines­
gotável supridor de escravos africanos, e a produção de alimentos
em escala crescente. De tal combinação de fatores resultava que "a
economia colonial se reiterasse mediante um baixo custo monetá-

3 Mott, Luiz R. B. "Os índios e a pecuária nas fazendas de gado do Piauí


colonial". Revista de Antropologia. Vol. XXII. São Paulo. 1979. Fazendas
de gado do Piauí (1 697-1 762). Separata dos Anais do VIII Simpósio Na­
cional dos Professores Universitários de História. 1975. São Paulo. 1976.
"Subsídios à história do pequeno comércio no Brasil". Separata da Re­
vista de História, n.º 105. São Paulo. 1976. Mattos, Maria Regina Men­
donça Furtado. Vila do Príncipe (1 850-1 890), Sertão do Seridó - um estu­
do de caso da pobreza. Dissertação de mestrado. UFF. 1985, mimeo.

A pecuária e a produção de alimentos na Colônia 11 1


rio" e se recriassem seus sistemas agrário-escravistas na fronteira
em expansão4•
Daí a revisão que se impõe de certas noções amplamente difun­
didas, como mencionado acima: a suposta vocação do índio pelo
trabalho pastoril, a predominância do trabalho livre nas fazendas
do sertão e, ainda, a noção de que tais fazendas representavam a
retaguarda autônoma do litoral agroexportador. Para que tal qua­
dro venha a ser explicitado seria necessário levar a cabo um pro­
grama de pesquisa, com o aprofundamento sistemático das análi­
ses demográficas e a multiplicação dos levantamentos regionali­
zados, alinhando-se, para tanto, fragmentos de fontes e "inven­
tando" outras. Trata-se de reconstruir a história agrária - como
história econômica e social do mundo rural, sintetizada nas suas
diferentes paisagens agrárias - bem fundamentada e de escassa
popularidade entre nossos historiadores, rever esquemas e reava­
liar fontes5•

A pecuária como parte de um sistema de subsistência

Em decorrência de uma consulta do Conselho Ultramarino, de


27 de outubro de 1700, a Coroa baixou o Alvará de 27 de fevereiro
de 1 701, ampliando o de 1688, no sentido de que

"tivesse efeito não somente nas dez léguas do Recôncavo, mas


em toda a parte onde chegasse a maré, correndo as mesmas dez
léguas da margem dos rios pela terra a dentro e que em nenhum
dos sítios, nem nas três capitanias do Camamu, houvesse a ino­
vação do gado de criar e só lhes fosse lícito terem o de serviço,

4 Veja-se a este respeito Fragoso, João Luiz Ribeiro. Homens de Grossa


Aventura: Acumulação e Hierarquia na Praça do Rio de Janeiro (1 790-1 830).
Arquivo Nacional. Rio de Janeiro. 1992. Tese de doutorado. UFF. 1990.
Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisas. E, ainda, Linhares, Maria Yed­
da. História do Abastecimento, uma Problemática em Questão (1530-1 91 7).
Brasília: Ministério da Agricultura. Binagri. 1979.
5 Linhares, Maria Yedda. "Subsistência e Sistemas Agrários na Colônia,
uma discussão", in: Estudos Econômicos. USP. Vol. 13, número especial.
1983, p. 745-62. Veja-se, ainda, Linhares, M. Y. & Teixeira da Silva, Fran­
cisco Carlos. História da Agricultura Brasileira, Combates e Controvérsias.
São Paulo: Brasiliense. 1981.

1 12 1 Maria Yedda Leite Unhares


fazendo as pessoas que o tivessem pasto fechado, com cercas tão
fortes que ele não pudesse sair a fazer prejuízos às roças e lavou­
ras vizinhas"6•

É evidente, nesse Decreto, o propósito do legislador em disci­


plinar a produção, atendendo aos interesses da grande lavoura
canavieira e ao abastecimento da população. Por outro lado, é um
reflexo das mudanças que se operavam naquele final de século
marcado por grave crise econômica (falava-se, então, na "miséria
pública reinante"), acompanhada de agitações urbanas na Bahia e
até mesmo no Rio de Janeiro. Varnhagen aponta, com certa razão,
para a indecisão do Governo que se notabiliza por baixar decretos
e, em seguida, os revoga ou os altera, "a torto e a direito, ao acaso
das conveniências", acrescentando a máxima de Tácito: Corruptís­
sima republica, plurimae leges7• Tempos revoltos! Tempos passados . . .
A idéia d e que o gado "de criar" era proibido nas três capitanias
do Camamu, ou seja Camamu, Boipeba e Caiuru, as chamadas Vi­
las de Baixo, tinha por objetivo, da parte do poder metropolitano,
pôr a salvo as áreas de subsistência, produtoras de alimentos, leia­
se, mandioca, sobretudo, áreas centrais, que eram, do abastecimen­
to da população de Salvador e das frotas que partiam para o sul
(Santíssimo Sacramento) e Angola. Da mesma forma, como anteri­
ormente se havia ordenado a retirada de engenhos e canaviais, o
decreto de 1 701, a fim de melhor controlar e reforçar a especializa­
ção regional, do ponto de vista agrícola, dispõe-se a limitar a pre­
sença do gado vacu m e o cultivo do tabaco aí consorciado à man­
dioca num sistema de uso da terra peculiar e eficaz. A observação
de Varnhagen de que o governo legislava "a torto e a direito" não
procede, portanto, nesse caso do Camamu. De fato, o decreto deixa
transparecer uma política definida: a de delimitar em áreas pró­
prias e resguardar as três paisagens que passarão a configurar a
economia rural da Colônia, isto é, a grande lavoura com seus cam­
pos definidos, incluída a área industrial; a lavoura de abastecimento,
que atendia aos interesses de consumidores urbanos e comercian-

6 Anais da Biblioteca Nacional, 31, 90-1, apud Vamhagen, Visconde de


Porto Seguro. História Geral do Brasil. 3.ª ed . Tomo 3, p. 324, n.º 78 de
Rodolfo Garcia.
7 Vamhagen, Visconde de Porto Seguro. História ... , n.º 102, p. 331 .

A pecuária e a produção d e alimentos n a Colônia 1 13


tes de Salvador, devendo incluir a criação controlada de animais
de tiro necessários ao transporte das mercadorias ao porto e, por
fim, a pecuária extensiva na fronteira móvel, a cargo de sesmeiros e
arrendatários, último elo fundamental de um macromodelo agrá­
rio.
Desses três sistemas que se constituíram nos primeiros séculos
da Colônia e influíram nas diferenciações regionais e locais, o mais
conhecido e difundido na historiografia foi o primeiro, o da grande
lavoura, com suas variantes, da agromanufatura açucareira à plan­
tation cafeeira do século XIX. O pastoreio, na sua modalidade mais
difundida - a pecuária extensiva - apresentou uma certa varie­
dade de tipos de fazendas de gado, desde as mais próximas do
litoral (a Zona da Mata do NE) às mais distantes do mercado, sub­
metidas também a diferenças de clima e vegetação. Em princípio,
foi o latifúndio a sua expressão mais generalizada, com a criação
extensiva de animais. Quanto ao sistema da pequena lavoura - a
que Waibel chama de "criança problema, o enjeitado da agricultu­
ra brasileira" -, o reino por excelência das tradições indígenas,
caracteriza-se, nos seus exemplos mais conhecidos, pelo sistema
de roça, ou seja, o uso da terra itinerante, pousio longo, rotação flo­
resta/ cultura, ao que Waibel denomina de rotação de terras primitivas8•
Nesses três sistemas, é notória a ausência de uma prática de
refertilização dos solos. Ao contrário do que caracterizava a agri­
cultura européia pré-capitalista, o estrume animal (esterco) não faz
parte das práticas agrícolas no Brasil, onde predomina, desde o iní­
cio, a separação entre lavoura e gado, entre cultivo e criação de
animais. Daí ser permanente a presença do esterco nos modelos
europeus do Antigo Regime ou nos dos mais simples aos mais com­
plexos de Slicher Van Bath, por exemplo, nos quais o elemento
refertilização da terra está sempre presente, quer seja no sistema de
dois campos, quer seja no de três campos, cabendo sempre ao gado,
por mais reduzido que fosse, em número ou em peso, naqueles sé­
culos que antecederam a "revolução agrícola", papel fundamental
como elemento do sistema de cultivo comercial e de subsistência9•

8 Waibel, Leo. Capítulos de Geografia Tropical e do Brasil. Rio de Janeiro:


Fundação IBGE. 1979.
9 Van Bath, B. H. Slicher. Historia Agraria d_e Europa Occidental (1 500-1 850).
Barcelona: Ediciones Península. 1978.

1 14 1 Maria Yedda Leite Unhares


A exceção brasileira no tocante à adubação encontra-se nas planta­
ções de tabaco na Bahia, descritas, com detalhes, por Antonil e Luiz
dos Santos Vilhena, respec tivamente no início e final do século
XVIII, coincidentes nas suas informações e confirmadas pela aná­
lise da legislação.
No caso da região do Camamu, sobretudo Caiuru, o sistema de
afolhamento (três e, em alguns casos, duas folhas) predomina ao
longo do século XVIII, deslocando-se mais para o sul, para atender
às exigências de consumo da mandioca cujo cultivo se queria in­
tensificar. O gado está presente muito consistentemente, com o ob­
jetivo de estrumar o solo, na folha que lhe correspondia no período
de pousio (numa réplica tropical da vaine pature) . Ora, é bem pos­
sível que um dos objetivos do mencionado decreto de 1 701 tenha
sido extamente o de afastar o gado que servia ao tabaco, ao mesmo
tempo em que forçaria a transferência das plantações de fumo para
outras áreas, como, de fato, veio a ocorrer (Cachoeira, SantoAmaro).
Por outro lado, mais terras seriam reservadas aos cereais, "o pão
da terra" - isto é, a mandioca, cujo consumo interno e para ex­
portação se tornava crescente.
Slicher Van Bath, ao reconstituir os sistemas agrários europeus
(de 1500 a 1850), lembra que o homem utiliza o solo para colher o
seu sustento e para satisfação de suas necessidades mínimas, e que
o equilíbrio entre produção e consumo condiciona-se a uma rela­
ção entre a área cultivada (objeto do trabalho humano), a intensi­
dade da utilização da terra (ou seja, a técnica agrícola) e o volume
da população. Aliás, tais variáveis estão sempre presentes, em va­
riadas combinações, nos sistemas agrários. Assim, a evolução his­
tórica será determinada, neste como em outros modelos, pela rela­
ção entre demografia, área, técnica e conhecimentos agrícolas. As­
sim, os grupos caçadores, nômades e com escassa densidade de­
mográfica, necessitam de terrenos mais extensos. Na medida em
que se intensifica a utilização do solo, torna-se mais elevado o ín­
dice demográfico (ou vice-versa, como enfatiza Ester Boserup),
culminando a densidade demográfico-agrícola com a horticultura.
Assim, o incremento demográfico associado à intensificação do uso
da terra, resultaria a longo prazo, no encurtamento, até o desapare­
cimento, do pousio. Importa aí ressaltar que a recuperação da ferti­
lidade da terra se obtinha por três processos distintos: a) deixan­
do a terra em repouso (ou alqueive) por algum tempo; b) deixando
uma parcela em repouso anual e estrumando-a em seguida; e) es-

A pecuária e a produção de alimentos na Colônia 1 15


palhando sobre os campos uma capa de humus procedente de cam­
pos não cultivados acrescida de esterco 1 0•
É evidente que o esquema de Van Bath jamais poderia ser gene­
ralizado no caso brasileiro, considerando-se a impossibilidade de
um equilíbrio entre produção, consumo e área cultivada, nos mol­
des europeus, haja vista a extensão da fronteira móvel aqui, ao lado
de uma população pequena e rarefeita, enquanto que nos modelos
europeus sempre se leva em conta a inexistência virtual de terras
não-apropriadas (fronteira fechada, na prática) e de uma popula­
ção estável concentrada.
De imediato, tal realidade nos conduz a perceber em Ester
Boserup, no primeiro tipo do seu abrangente esquema explicativo
- o da rotação floresta/ cultivo de tubérculos com longo pousio (a
forest fallow cultivation), um poderoso elemento de reflexão sobre
a evolução agrária de nosso país11 • Interessa-nos o seu esquema
evolutivo, sobretudo pelo caráter antimalthusiano que lhe serve
de rumo e por enfatizar o peso da pressão demográfica como fator
fundamental (variável independente) da mudança agrária. A sua
noção de continuum agrícola é outro elemento de análise valioso
no tocante aos sucessivos fracassos de políticas econômicas de
"desenvolvimento" induzido, promovidas por governos coloniais,
ou mesmo não-coloniais apoiados em agências internacionais, em
épocas mais recentes. Outros pontos de Ester Boserup gostaríamos
de referendar aqui. Um que diz respeito ao fator fertilidade da terra,
por ela visto, não como um dado permanente e natural e, sim, como
um fato humano e social, portanto historicamente criado. Outro
ponto refere-se à relação entre população esparsa, abundância de
terra (não controlada) e hierarquia social, fatores esses que combi­
nados em condições históricas específicas geram o trabalho servil,
podendo perpetuar-se em modalidades camufladas de trabalho
compulsório mesmo sob uma ordem jurídica liberal.
O modelo de Von Thunen - o Estado Isolado é o mais conhe­ -

cido e, possivelmente, aquele mais utilizado concretamente, sobre-

10
Idem, p. 31.
11
Boserup, Ester. The Conditions of Agricultura[ Growth - The Economics
ofAgrarian Change under Population Pressu re. Chicago: Aldine Publishing
Company. 1965. Trad. brasileira. Evolução Agrária e Pressão Demográfica.
São Paulo: Hucitec-Polis. 1987 (trad. Oriowaldo Queda e João Carlos
Duarte).

1 16 1 Maria Yedda Leite Unhares


tudo por geógrafos. A teoria de Von Thunen sobre a distribuição do
espaço agrícola, apesar de seus 150 anos de vida, continua útil. Tal
espaço se organiza em tomõ da cidade a partir do consumo (a com­
pra de excedentes agrícolas) e, na determinação dos preços, é fun­
damental o custo dos transportes, daí o peso do fator distância na
distribuição das áreas de produção. Nos seis anéis agrários que
imagina em tomo da Cidade, a pecuária se faz presente em, pelo
menos, dois deles: no quarto anel onde predomina o afolhamento
de dois campos, pasto /cultura com arado e, no sexto, o mais largo
de todos, destinado à criação de gado em caráter extensivo para o
consumo da cidade. Como a distância é grande e o transporte se
faz a pé, são criadas as invernadas de engorda nas proximidades
do centro de consumo. Em outros dois anéis ela está subentendi­
da: no terceiro, voltado para a cultura de cereais com forragem e,
no quinto, em sistema de três campos, com pousio trienal, não mais
intensivamente.
Claramente o gado tende a se distanciar do litoral na medida em
que este, favorecido pelos rios que aí desaguam, cada vez mais se
integra ao sistema da grande lavoura especulativa voltada para o
comércio externo. No entanto, ao acreditarmos nos relatos, pouco
confiáveis e quase sempre exagerados dos primeiros cronistas do
século XVI, sobretudo Gabriel Soares de Souza, a terra era extre­
mamente rica e dadivosa, em quantidade e qualidade, em todas as
variedades de animais domésticos e domesticados, de pequeno,
médio e grande porte, de galinhas, porcos e cabras incríveis até
vacas e bois de beleza e dimensões inimagináveis. Eram aonistas
da abundância e do otimismo fantástico que antecederam outros
mais realistas e sóbrios, certamente menos entusiastas, mal decor­
ridos dois séculos do início da ocupação12•
O distanciamento da pecuária extensiva e sua marcha para os
sertões já se encontram definidos em finais do século XVII, confor­
me mencionado anteriormente. Se, juridicamente, o instrumento
de posse é a sesmaria, é ao arrendatário que cabe, economicamen­
te, a tarefa de apossar-se da terra doada, desbravá-la e explorá-la,
em síntese gerar renda. No mecanismo da transferência da renda
gerada, no conjunto do sistema, cabe ao agricultor de mandioca a

12
Veja-se, sobretudo, Amaral, Luis. História Geral da Agricultura Brasilei­
ra. 2.º tomo. São Paulo: Brasiliana /Nacional. Vol. 160-A, cap. V. 1940.

A pecuária e a produção de alimentos na Colônia 1 17


menor possibilidade concreta de acumulação, tendo em vista que
o critério de fixação de preço do produto favorece o consumidor e
o comerciante de escravo. Quanto à cana-de-açúcar, a renda se
transfere diretamente para o senhor do engenho e deste para o ne­
greiro. Já o gado, com o seu sistema de campos abertos e criação
solta, no caso específico do Nordeste (do São Francisco ao Piauí),
há um mecanismo próprio gerador da renda no trabalho do va­
queiro, a qual passa deste para o sesmeiro, com a possibilidade de
existir ainda um intermediário, o arrendatário. No caso observado
por Francisco Carlos Teixeira da Silva, no século XVIII, no Rio de
Janeiro, cabe ao arrendatário transferir de forma mais direta ao
sesmeiro a maior parte dos rendimentos gerados (em espécie -
aluguel - ou como participação na produção)13•
Assim, no macromodelo da economia colonial, toma-se funda­
mental o papel que cabe à produção de alimentos a baixo custo, à
qual se deve associar, de algum modo, a criação de animais, de
pequeno, médio e grande porte. Por outro lado, tanto nas fazendas
de criação extensiva quanto nas áreas reservadas às culturas co­
merciais, tanto para exportação quanto para o mercado interno, é
decisivo também o espaço ocupado, no primeiro caso, pela produ­
ção de alimentos no sistema de roça, e, nos outros dois casos, pela
pequena criação para o consumo local, sobretudo aquela que se
localiza tão persistentemente, por ser destinada ao mercado urba­
no, no "primeiro anel" de Von Thunen. A literatura é aí abundan­
te, com exemplos mencionados pelos cronistas, viajantes diversos,
ou em livros mais recentes de historiadores como Kátia de Queirós
Mattoso, ao tratar do Recôncavo Baiano e seu mercado e, no Rio de
Janeiro, as pesquisas transcritas em teses de mestrado como as de
Sheila de Castro Faria (Campos, onde ela comprova com abundân­
cia de dados a expansão criatória sob regime escravista), Márcia
Motta (pequenos produtores arrendatários em São Gonçalo), Hebe
Mattos de Castro (Silva Jardim, antigo Capivary, região de peque­
na produção, por excelência, com trabalho escravo e fronteira não­
ocupada).
Assim, a expansão da fazenda de gado para a fronteira aberta

13 Teixeira da Silva, Francisco Carlos. A Morfologia da Escassez. Política


Econômica e Crises de Subsistência no Brasil Colonial. (Salvador e Rio de
Janeiro, 1690-1790). Tese de doutorado, mimeo. Rio de Janeiro: Uni­
versidade Federal Fluminense. 1990/91.

1 18 1 Maria Yedda Leite Unhares


traduz, não apenas uma determinação de natureza econômica e
prática - qual seja a de garantir as áreas do litoral baiano e per­
nambucano para a grande lavoura, e, neste caso, se justifica a ex­
pressão de Celso Furtado quanto ao caráter periférico, embora não­
autônomo, do sertão (retaguarda do litoral agroexportador), como
também, e sobretudo, política: a de assegurar a ocupação do ter­
ritório pela Coroa, naqueles primeiros séculos da colonização, ao
mesmo tempo em que se mantém como um elo do padrão de acu­
mulação, então vigente.

As grandes áreas de pecuária na Colônia

Retomamos, aqui, os pontos de irradiação daquela grande mar­


cha para o interior: de São Vicente, em direção aos campos de
Curitiba; da Bahia, em dois momentos, sendo o primeiro ainda no
século XVI, em direção ao Ceará, e o segundo, pelo Rio São Fran­
cisco, em direção ao Centro (Tocantins e Araguaia); e, finalmente,
Pernambuco, de onde partiu a ocupação do Agreste e do Piauí.
O Rio Grande do Norte, antes diretamente subordinado à Bahia,
somente ao se iniciar o século XVIII passou para o comando de
Pernambuco, embora sob as diretivas superiores, como as demais
regiões, do Governo Geral 1 4•
São bem conhecidas as guerras de extermínio pela ocupação do
Agreste - zona intermediária entre a Mata úmida e a Caatinga
seca, fronteira então fechada pela existência do quilombo (ou
mocambo) de Palmares que perdurou sessenta anos antes de ser
destruído, e, ainda, as campanh�s sangrentas movidas contra po­
pulações indígenas (exemplo, a Confederação dos Cariris) . A civi­
lização do couro, de que nos fala Capistrano de Abreu, foi de difícil
conquista mas de rápida expansão. Em meados do século XVII, já
eram abundantes os rebanhos do Ceará, com elevada produção de
xarque e couros diversos (com destaque para Aracaty), de curta
duração, aliás, todo esse alardeado esplendor, em virtude das su­
cessivas secas que não tardarão a assolar a região e praticamente a

14 Linhares, Maria Yedda (org.). História Geral do Brasil. V. cap. 1, Francis­


co C. T. da Silva. Fragoso, João Luís Ribeiro. Homens de Grossa Aventu­
ra. . . , Cap. II, Economia Colonial: para além de uma plantation escravista­
exportadora, o caso da região sudeste-sul, p. 99-126.

A pecuária e a produção de alimentos na Colônia 1 19


extinguir o gado. Mas, de maneira geral, é no século XVIII, como
salienta Luis Amaral, que a pecuária, apesar de tantos óbices, co­
meçou a exercer uma posição social no Brasil, complementando-se
a obra de colonização, diversa daquela fase criticada por Frei Vicente
do Salvador, com ironia: a ocupação da costa tão-somente. Já nesse
momento, ao se iniciar o século das Minas Gerais, existem segun­
do Antonil 500 mil cabeças de gado vacuum, no sertão baiano, 800
mil em Pernambuco (incluindo o Piauí), 60 mil no Rio de Janeiro,
em muitas centenas de currais ao longo dos rios. Simonsen calcula
em um milhão e meio as cabeças de gado ao sul de São Paulo.
Com o gado do Nordeste avança o algodão, e os laços comer­
ciais se estabelecem com os centros de consumo do litoral portuá­
rio. Obras como a de Lycurgo Santos Filho, sobre uma Comunida­
de Rural do Brasil Antigo, com preciosos documentos milagrosa­
mente salvos do Sobrado do Brejo (Bahia) são extremamente raras,
para citarmos o pouco que existe, acrescentando-se lnhamuns (ter­
ra e homens), nos sertões de Crateús -, de Antonio Gomes de
Freitas, uma História do Oeste de Minas, Formiga e municípios
vizinhos, de Leopoldo Correa, que dispõem de documentação pri­
mária fundamental, magníficos exemplos do que pôde ser feito e
que precisam ser recuperados por novos historiadores de modo a
ampliar a sua visão analítica. O mesmo se pode dizer da literatura
regional à qual se poderiam talvez incorporar estudos históricos
bem fundamentados15•
Para isso, é necessário retomar velhas fontes cartorárias e de
natureza municipal, para termos uma percepção mais abrangente
dessas sociedades que se constituíram na chamada periferia dos
centros políticos de decisões nacionais. Muito já se sabe de história
local (genealogias, por exemplo) e suas vinculações com áreas cen­
trais, mais no século XIX, como é natural, e menos nos primeiros
séculos formadores. Mas, já o suficiente para discernirmos o peso
da criação nos campos sulinos, sua marcha em direção à feira de

15 Santos Filho, Lycurgo. Uma Comunidade rural do Brasil Antigo. São Pau­
lo: Companhia Editora Nacional. 1956. Nunes, Odilon. Os Primeiros
Currais. Geografia e História do Piauí Seiscentista. Companhia Editora do
Piauí. 1957. Freitas, Antônio Gomes de. Inhamuns (Terra e Homens). For­
taleza: Editora Henriqueta Galeno. 1972. Correa, Leopoldo. Achegas à
História do Oeste de Minas, Formiga e Municípios Vizinhos. Belo Horizon­
te: Gráfica Belo Horizonte. 1955.

1 20 1 Maria Yedda Leite Unhares


Sorocaba e seu papel integrador com as Gerais. Também, sobretu­
do a partir de viajantes do início do século XIX, não é difícil perce­
ber as diferenças entre as régiões pecuaristas do São Francisco e daí
para o Norte, e as de Minas, esta de gado manso, criado em campos
cercados e fazendas fechadas, já disseminando o uso do leite e do
queijo (possivelmente com técnicas trazidas por franceses da re­
gião do Cantai, no Massif Central), enquanto que as outras, do nor­
te, acima do São Francisco, são caracterizadas pelo seu gado selva­
gem, magro, pé-duro, criado a solta, em terras indivisas. Somente
a partir do século XIX é que se começa a pensar no aperfeiçoamen­
to das raças, em maiores cuidados com a alimentação animal e o
manejo, em melhorias técnicas, enfim. Mudanças essas que cus­
tarão muitíssimo a penetrar nas mentalidades e nas práticas cria­
tórias.
Com vistas ao enriquecimento da problemática e ao aprofun­
damento da pesquisa, julgamos pensar em termos de história com­
parada, através de um recuo no tempo (método regressivo e com­
parativo), inspirando-nos na forma pela qual Marc Bloch buscou
na Idade Média mais recuada os fatores que determinaram a mu­
dança da paisagem agrária (inglesa e francesa) - campos fecha­
dos e campos abertos -, tão evidente ainda nos anos 30 deste nos­
so século. Julgamos que um programa de pesquisa capaz de utili­
zar novas fontes, reavaliar outras já conhecidas, revalorizar velhos
textos, de forma sistemática e coordenada, poderá vir a ampliar, de
forma considerável, o conhecimento de nosso passado agrário e a
ajudar a perceber melhor as dificuldades hoje enfrentadas no sen­
tido de tomar efetiva a mudança social e profunda em nosso país.

A pecuária e a produção de alimentos na Colônia 1 121


Francisco Carlos Teixeira da Silva
Dep.tº de H istória Moderna, I FCS/U FRJ

P E C UÁRIA, AG RICULTU RA
D E ALI M E NTOS E REC U RSOS NATU RAIS
N O B RAS I L-CO LÔ N IA

O regime de terras na pecuária sertaneja

A definitiva expulsão do gado para os "sertões" em fins do sé­


culo XVII e, ao mesmo tempo, a abertura da fronteira (através da
intensificação das guerras de extermínio e/ ou escravização das po­
pulações indígenas), permitiram a formação, por parte dos colo­
nizadores, de uma vastíssima rede de propriedades: as fazendas
de gado. As bases do novo rush fundiário, com seu ápice nos anos
entre 1 670/ 80-90, são as mesmas que moldaram a estrutura fundiá­
ria da plantation açucareira: as sesmarias. Tratava-se da doação de
vastas extensões de terras recém-conquistadas ou por conquistar,
principalmente em remuneração ao serviço militar prestado contra
os índios, concedidas com limites e extensão incertos. Repetia-se a
preocupação já constatada na ocupação do Recôncavo da Bahia ou
nos Sertões Cariocas, de promover a rápida apropriação dos re­
cursos naturais. Dessa forma, eram os second comers ou seja, to­ -

dos aqueles que teriam chegado após o período de lutas e conquis­


tas - forçados a um regime de dependência em relação aos
sesmeiros, caso almejassem estabelecer-se como produtores rurais1 •

1 Para um debate das condições originais da escravidão colonial ver Do­


mar, Evsey D. "The Causes of Slavery or Serfdom: a Hypothesis". /our­
nal of Economic History XXX(l), mar. 1970, p.18-32, bem como a posição
de Nieboer, H. J. Slavery as an Industrial System: Ethnological Researches.
The Hague: Martius Nijhoff. 199, p. 101-22 e Kloosterboer, W. Involun­
tary Labour since the Abolition of Slavery. Leyden, E. J. Brill, 1960, espe­
cialmente a Introdução. Os autores aqui citados tiveram larga influên­
cia sobre os trabalhos de história agrária desenvolvidos no Brasil.

Pecuária, agricultura de alimentos e recursos naturais no Brasil-Colônia 1 23


A generalização do sistema de arrendamentos foi a resposta
encontrada para a questão da apropriação e monopolização preco­
ce das terras2•
As grandes sesmarias são doadas nas áreas de fronteira e quase
sempre fazem menção direta e regular a pastos e campos. Em 1 659,
são doadas dez léguas a Garcia D' Ávila, Padre Antônio Pereira,
Francisco Dias e mais dois vizinhos, com a menção de serem " . . .
dez léguas para cada u m e . . . s e ressalvarão também d e sorte que
as dez léguas de cada um sejam de pastos, e terra, onde possam
criar gado"3• Já na doação feita ao Alferes Manuel de Mattos, em
1674, estipula-se que " . . . não entram matos e caatingas e somente
terras de pastos"4• Da mesma forma, três outras doações, feitas em
1 690, falam em terras " . . . para pastos e logradouros de gados e cur-

ra1s . . . 115 .
Naqueles primeiros tempos, a maior parte das terras era apro­
priada sem qualquer referência concreta à área ou localização, mui­
to especialmente quando se tratava de terras dos sertões, não tão
cobiçadas quanto as ricas e bem localizadas terras do litoral. In­
formações vagas, dadas pelos desbravadores e capitães de índios,
serviam de base, em Salvador da Bahia - sede do poder metropo­
litano na nova colônia e principal núcleo do aparelho legal portu­
guês -, para registros cartorários, que resultavam em virtual mo­
nopólio das terras recém-conquistadas. Assim, a carta de Manoel
Velho, de 1653, se refere ao apossamento " . . . da terra que houver
até, o rio de São Francisco". Na doação de Domingos Affonso, o
Sertão, de 1 674, há uma clara admissão de que o próprio sertanista
desconhecia a situação das novas conquistas: " . . . e estando, as ditas
terras, já ocupadas serão dadas mais além, pelas cabeceiras [do
rio] "6• Na doação de Felício Cypriano, de 1675, dá-se a entrega " . . .

2 Para uma discussão sobre a formação d a malha fundiária colonial, seus


mecanismos e funções na apropriação da renda da terra, ver Teixeira
da Silva, Francisco C. A Morfologia da Escassez. Crises de Fome e Política
Econômica no Brasil Colonial. Niterói: UFF. Tese de doutoramento. 1990,
p. 318 e ss.
3 Sesmaria concedida a Garcia D'Á vila e outros . . . Bahia, 1 659: Livro Primeiro
de Sesmarias, f 1 23, Códice 155, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.
4 Sesmaria concedida a Garcia D'Á vila e outros . . . 1 659. Idem.
5 Sesmaria concedida 1 690. Idem.
. . .

6 Sesmaria concedida a Domingos Affonso, o Sertão . . . em 1674. Idem.

1 24 1 Francisco Carlos Teixeira da Silva


de toda a terra que se achar entre os rios Piagui, Araticuba e Guarare­
ma"7, enquanto outra carta, de 1697, nos fala das " . . . terras que se
achar e descobrir pelo Sertão".
Tal facilidade em se obter terras praticamente desconhecidas
acaba por gerar uma forte tensão social. Conforme a frente pionei­
ra avançava, encontrava, muitas vezes, as terras já apossadas juri­
dicamente, com base nas doações feitas em Salvador. Assim, aque­
les que, após duras fainas, chegavam às novas áreas deveriam se
contentar em arrendar terras aos grandes sesmeiros, que de Salva­
dor, controlavam através de mecanismos políticos e argumentos
legais toda a fronteira.
Tais tensões, e os choques daí decorrentes, levaram a Coroa a li­
mitar as doações, tentando impor preceitos menos vorazes na ocu­
pação da fronteira. A Carta Régia de 27 de dezembro de 1695 li­
mitaria as doações as dimensões de quatro léguas por uma e, em
outra, de 7 de dezembro de 1697, estabelecer-se-ia o padrão de três
por uma légua, que perduraria largamente durante o período colo­
nial. As Provisões Reais de 20 de janeiro de 1699 e de 19 de maio de
1 729, com algumas alterações, confirmarão o padrão estabelecido
em 1 695. Mesmo assim, as tensões permaneciam: restava saber qual
a situação legal dos grandes domínios constituídos no meio século
anterior. Uma Carta Régia, de 23 de novembro de 1 698, confirmava
todas as doações anteriores, mesmo além do padrão estabelecido
em 1 695. Começava-se, entretanto, a estabelecer alguns limites. A
Carta Régia de 1699, além de confirmar o padrão, estabelece que
todos que, doravante, não cultivassem diretamente a terra, ou atra­
vés de agregados e escravos, perderiam seus direitos; outra Carta,
de 1 702, obriga a demarcação clara e inequívoca das propriedades.
Os sesmeiros, em especial os senhores dos novos domínios estabe­
lecidos em Salvador, exercitam, entretanto, forte pressão visando a
conservação de seus privilégios, e se negam a qualquer esforço de
demarcação.
O auge das disputas se dá em tomo de 1 714, quando o ouvidor
geral do Maranhão, mais próximo dos interesses dos novos homens
da fronteira, declara devolutas todas as sesmarias do Piauí. Os in­
teresses dos antigos sesmeiros são defendidos, em Salvador, pelo
Marques de Angeja, vice-rei do Brasil (1 714-18). A Coroa, por Alva-

7 Sesmaria concedida a Alfonso de Meyra . 1 697. Idem.


. .

Pecuária, agricultura de alimentos e recu rsos naturais no Brasil-Colônia 1 1 25


rá de 11 de janeiro de 1 715 reafirma a validade das sesmarias mas,
transfere o Piauí para a jurisdição do Maranhão, tornando, assim, a
justiça mais acessível aos homens da fronteira e menos manipulável
pelos politicamente poderosos em Salvador da Bahia.
Quase no mesmo ano, em 1 711, Antonil dava notícia das rela­
ções entre sesmeiros e arrendatários: " . . . e nestas terras, parte os
donos delas tem currais próprios; e parte são dos que arrendaram
sítios delas, pagando por cada sitio, que é ordinariamente de uma
légua, cada ano dez mil réis de foro"8• O autor do Roteiro do Piauí,
confirma, por sua vez, a existência do sistema de arrendamentos:
" . . . que as partem [as terras] de meyas, tem nellas algumas fazen­
das de gado seus, as mais arrendam a quem lhe quer meter gados,
pagando-lhes lO· mil réis de foro por cada sitio"9• Referindo-se aos
senhores de grandes domínios, como Domingos Affonso Mafren­
se, o Sertão, ou a matriarca do Morgadio dos D' Ávila, nos afirma,
ainda: " . . . vivem estes moradores de arrendamento destas fazen­
das de gados"10• Miguel do Couto, por sua vez, afirma que, por
esta época, 153 senhores de fazendas de gado não eram donos de
terras11 •
A Coroa continuava atuando de forma paliativa. Em atendimen­
to à Carta Régia, de 28 de setembro de 1 700, constituiu-se uma jun­
ta para estabelecer um foro uniforme a ser pago pela posse das
sesmarias. O critério estabelecido não considerava a qualidade ou
dimensões das terras mas, sua localização. Assim, até 30 léguas
do litoral, pagar-se-ia um foro de 6$000 réis por légua possuída e,
aquelas a mais de 30 léguas, pagariam 4$000 réis por légua. Da
mesma forma, o padrão é confirmado; as doações, porém, não de­
veriam " . . . ser contíguas uma às outras, porque deve mediar entre
elas ao menos uma légua de terra"12•

8 Antonil, André João. Cultura e Opulência do Brasil. Salvador: Livraria


Progresso. 1955, p. 244. Como repertório de ordens, provisões e cartas
régias aqui tratadas ver: Barros, Francisco Borges de. Archivo Histórico.
Terras da Bahia. Salvador: Imprensa Oficial. 1933.
9 Anônimo. Roteiro do Maranhão a Goiaz pela Capitania do Piauí. Revista
do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Tomo LXII, parte 1. 1900, p. 88.
10
Idem, p. 45.
11
Couto, Padre Miguel (Carvalho) do. "Descrição do Sertão do Piauí. . . "
ln: Ennes, Ernesto. A s Guerras nos Palmares. São Paulo: Companhia Edi-
tora Nacional. 1938, p. 371-2. ·

12
Ver Barros, Francisco Borges de. Op. cit., p. 198 e ss.

1 26 1 Francisco Carlos Teixeira da Silva


Se a primeira medida nunca foi praticada, a segunda apenas con­
firmava uma prática já antiga. Fundamental na definição do siste­
ma de uso da terra, a légua· de mediação entre as fazendas - que
muitas vezes foi considerada integrante do padrão - constituiu-se
em uma área comunal, de uso coletivo, onde o gado de diversos
criadores ficava à solta.
Em 1 743, a câmara da Vila do Mocha, a atual Oeiras no Piauí,
dirigia uma representação ao Conselho Ultramarino, dando conta
das tensões existentes no Sertão: " . . . deram por sesmarias neles e
indevidamente grande quantidade de terras a três ou quatro pes­
soas particulares moradores na cidade da Bahia, que cultivando
algumas delas deixaram a maior parte devolutas sem consentirem
que pessoa alguma as povoasse, salvo quem a sua custa e com risco
de suas vidas as descobrisse e defendesse do gentio bravo, cons­
trangendo-lhes depois a lhes pagarem dez mil réis de renda por
cada sitio em cada ano"13•
Após inúmeras idas e vindas, o Conselho Ultramarino reafir­
mou os direitos dos sesmeiros, inclusive sobre as terras arrendadas
a colonos ou cultivadas por feitores ou escravos, entretanto, ficava
proibido estender o sistema de arrendamentos às sesmarias toma­
das de novo. Assim, embora fossem reconhecidos os inconvenien­
tes do sistema de posse e uso de terras que se desenvolvia na Colô­
nia, o governo real não se via em condições de reformá-lo profun­
damente. Em vez disso, propunha-se a estabelecer uma fronteira
entre o velho sistema, hierárquico e aristocrata, e um novo sistema
mais aberto e de maior acesso aos homens pobres, porém com ga­
nas de conquistadores14•
Deu-se, aí, um amplo fracasso da política portuguesa. Todas as
informações e documentos posteriores mostram a plena continui-

n Citado em Santana, R. N. Monteiro de. Evolução Histórica da Economia


Piauiense. S/L: Cultura. 1964, p. 32.
14 Ver Barros, Francisco Borges. Op. cit., p. 201 para constatar a impor­
tância da correspondência entre as autoridades metropolitanas e colo­
niais sobre o tema. A melhor análise para a expansão da rede de poder
político pelo Sertão foi proposta por Schwartz, Stuart. Burocracia e So­
ciedade no Brasil Colonial. São Paulo: Perspectiva. 1979, principalmente
p. 104 e ss. Podemos, neste texto, perceber claramente a atuação do Es­
tado colonial na guerra contra negros e índios, abandonando sua tra­
dicional posição de delegar poderes a particulares. Neste caso o Esta­
do toma para si a tarefa de criar condições para a ocupação do Sertão.

Pecuária, agricultura de alimentos e recursos naturais no Brasil-Colônia 1 27


dade do sistema de arrendamentos nos moldes já praticados. Da
mesma forma, o padrão 3 x 1 foi regularmente desrespeitado. Em
pleno século XVIII, por exemplo, os domínios jesuíticos no Piauí,
originalmente pertencentes a Domingos Affonso, o Sertão, são com­
postos por 33 fazendas, das quais 29 eram maiores que os 4.500
hectares médios, desrespeitando as determinações régias15•
Estes amplos domínios não se constituíam uniformemente em
fazendas de gado sob a forma de uma única exploração. Os gran­
des domínios eram arrendados ou estavam subdivididos em inú­
meros currais. Era comum um só fazendeiro possuir vários currais:
seu estabelecimento dependia, no Sertão do Piauí ou no São Fran­
cisco, como se vê nas referências existentes nas cartas de sesmarias,
da existência de pastos e águas, bem como da qualidade dos cam­
pos e seus recursos naturais (como os refrigérios, isto é, um campo
com abundância de cactáceas que pudessem servir de pastos de
reserva nas longas secas) . No Ceará, por exemplo, não se viam
imensos domínios contínuos ou fazendas de muitas léguas. Aí a
média das propriedades era também menor do que normalmente
consta de uma certa visão heróica do sertão: " . . . não se encontra na
capitania uma fazenda que produza anualmente mil bezerros; as
maiores, muito raras, são de quatrocentos, e as há até, de trinta"16•
A fazenda do Brejo Seco, no sertão do Rio de Contas, Bahia, no seu
melhor ano (1804) produziu 358 bezerros, e sua média até o início
do século XIX, nunca ultrapassou 350 crias / ano17• Ora, o solar da
farm1ia Canguçu, os senhores do Brejo Seco, era um poderoso e
próspero senhorio do sertão baiano!
Da mesma forma, a visão tradicional de fazendas perdidas no
Sertão deve ser matizada. Um relato de 1697 nos dá uma idéia apro­
ximada da distância entre uma fazenda e a seguinte, com o termo
médio em tomo de três léguas18• Tal constatação corrobora a infor­
mação sobre a existência de uma légua de terra de uso comunal

15 D' Alencastre, José M. "Memória cronológica, histórica e geográfica da


Província do Piauí. ln: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasilei­
ro. Tomo XX, 1857, p. 48 e Porto, Carlos Eugênio. Roteiro do Piauí. Rio
de Janeiro: Artenova. 1974, p. 148-9.
16
• .
A nommo. o p. c1t., p. 89 .
A

17 Santos Filho, Lycurgo. Uma Comunidade Rural do Brasil Antigo. São Paulo:
Companhia Editora Nacional. 1956, p. 370. -

8
1 Porto, C. E. Op. cit., p. 64.

1 28 1 Francisco Carlos Teixeira da Silva


entre uma fazenda e outra, como está no Roteiro . . 19 e que não deve­
.

riam ser objeto de apropriação privada.


A grande propriedade de ·origem sesmaria! ou as terras arrenda­
das, no interior da sesmaria, não eram as únicas formas de acesso à
terra nos sertões. Ao longo do Sertão do rio São Francisco constitu­
íra-se, desde cedo, uma ampla área de terras indivisas, "possuídas
em comum com outros eréus (sic) "2º. Algumas doações, como da
sesmaria de Antônio da Silva de Figueiredo, em 1 674, falam de " . . .
terras povoadas e muitos heréus"21• Neste caso, parece que a doa­
ção recobria terras possuídas anteriormente sem, contudo, titulação
legal. Uma vasta área de terras, de Propriá até Canindé do São Fran­
cisco (Sergipe), tendo como centro Porto da Folha e Ilha do Ouro
caracterizava-se pela posse e uso comunal, com o gado utilizando
as terras em comum. Em alguns vales, como do rio Paraguaçu, a
partir de Milagres, e do São Francisco, entre Penedo (Alagoas) e
Porto da Folha e Garararu (Sergipe), criam-se à solta animais de
pequeno porte: são cabras e porcos que vivem no comum, ao lado
de muitas aves de terreiro. Tais áreas comunais estabelecem-se so­
bre superfícies cobertas de mata caatinga e utilizadas como pasta­
gens naturais, sem cercas nem limites de propriedade, daí serem
chamadas à época de indiviso22• No Sertão do Rio de Contas, con­
forme os livros da fazenda do Brejo Seco, pertencente a farm1ia

19 Anônimo. Op. cit., p. 89.


20
Livro de Assentamentos do Registro de Terras da Freguesia de São
Pedro do Porto da Folha, 1856-1857. Acervo Geral, Arquivo Público do
Sergipe; apontamentos tirados de Livros de Notas e de Sesmarias so­
bre factos diversos qe. respeitão (sic) à Província de Sergipe, 19 fls.,
Manuscritos, Biblioteca Nacional, 22,2,33-34; carta do Capitão Mor do
Sergipe d'El Rey datada de 10 de julho de 1718 e dirigida a S.M. dando
conta da sua posse e do estado da mesma Capitania; manuscritos, Bi­
blioteca Nacional, 1-31, 30, 75 e Anais do Arquivo Público da Bahia,
vols. XII, p. 20 e ss e XIV, p. 73 e ss.
21
Para a discussão do uso regional do termo heréu ou eréu ver Teixeira
da Silva, Francisco Carlos. Camponeses e Criadores na Formação Social da
Miséria. Porto da Folha no sertão do São Francisco (1 820-1 920). Niterói:
UFF. Dissertação de mestrado. 1981, p. 121 e ss.
22
Para uma discussão ampla dos conceitos de terra indivisa veja-se:
Martins, José de Souza. Lutando pela Terra: índios e posseiros na Ama­
zônia Legal. Camponeses e a Política no Brasil. Petrópolis: Vozes. 1981.
Mourão Sá, Laís. O Pão da Terra: propriedade comunal e campesinato livre

Pecuária, agricultura de alimentos e recursos naturais no Brasil-Colônia 1 29


Canguçu, criava-se gado à solta, em terras denominadas, também
lá, de indiviso ou pastos comuns, da mesma forma que no curso
médio do São Francisco.
Esta era uma prática que se estendia não só entre camponeses
pobres. Junto de muitas fazendas e currais permaneciam mistu­
rados os animais de vários proprietários, só separados por ocasião
da junta, quando se recolhia o gado para formar as boiadas que
seriam comercializadas. Durante as juntas, e em virtude do uso co­
mum dos pastos, muitas vezes um vaqueiro levava animais de ou­
tros proprietários junto com os seus. Somente através da marca ou
ferro podia-se reconhecer a posse de cada animal, o que durante as
juntas era bastante difícil. Assim, estes animais eram anotados e
objeto de posterior indenização, troca ou permuta, sendo ponto de
honra para o vaqueiro o correto trato com o animal alheio, caracte­
rística geral da sociedade agrária brasileira23• No Ceará, com seus
amplos espaços vazios, as juntas englobavam, muito freqüente­
mente, um importante número de reses de vizinhos. Impunha-se,
então, um grande encontro para a troca dos animais. Tais encontros
de vaqueiros e suas boiadas dariam origem às vaquejadas: momen­
tos importantes de convívio social e mecanismo que assegurava a
correta posse dos animais. Era a festa no sertão.
Na década de 1 760, na capitania de Ilhéus, encontramos uma
área de uso comunal junto da Vila da Barra do Rio de Contas, onde
se podia tirar madeiras - embora não se pudesse cortar a mata
-, utilizar as fontes d' água e ter pastos comuns24•

na baixada maranhense. Rio de Janeiro-UFRJ: Museu Nacional. Disser­


tação de mestrado. 1975. Prado, Regina. Todo Ano Tem. Rio de Janeiro­
UFRJ: Museu Nacional. Dissertação de mestrado. 1975. Berno de Al­
meida, Alfredo Wagner e Sterci, Neide. Terras Soltas e o Avanço das Cer­
cas. Rio de Janeiro-UFRJ: Museu Nacional (relatório de pesquisa),
mimeo. 1979. Berno de Almeida, Alfredo Wagner. Quebradeiras de Côco
Babaçu. Identidade e Mobilização. São Luís. III Encontro Interestadual.
1995. Idem, Carajás: a guerra dos mapas. Belém: Seminário Consulta. 2.ª
edição, 1995.
23 Ver Garcia Jr., Afrânio. O Sul: o caminho do roçado. São Paulo: Marco
Zero. 1990, p. 103 e ss. As mesmas informações, quanto aos riscos para
a honra existentes no trato com animais alheios, foram prestadas ao
autor na região de Poço Redondo e Canindé do São Francisco (SE).
24 Silva Campos. Crônica da Capitania de São Jorge dos Ilhéus. Rio de Janei­
ro: MEC. 1981, p. 160.

1 30 1 Francisco Carlos Teixeira da Silva


Já no século XIX, Theodoro Sampaio - jovem engenheiro en­
viado em viagem científica através do rio de São Francisco -, se
depara com uma vasta área· em torno de Caetité, de uso comunal:
"São nestas paragens as propriedades territoriais, no geral, indivisas,
razão porque não alcançam melhores preços . . . "25• No comum, afir­
ma o viajante, as terras não valem para negócio . . . , quase que se
antecipando ao registro e reelaboração, feitos por José de Souza
Martins, na distinção entre terra de trabalho e terra de negócio.
Outro exemplo de forma alternativa de apossamento da terra,
muito próximo ao comum, eram as malhadas (maiadas no Médio São
Francisco). Estas eram áreas de uso coletivo, como por exemplo,
no Rio de Contas, local de reunião do gado para pernoite, ferra e/
ou junta (também se denominava malhada, contudo com outros
aspectos, o terreiro face à Casa Grande da fazenda, bem como as
áreas em que o gado se reunia para ruminar). Embora pudessem
estar localizadas nas terras de algum fazendeiro - o que não era o
caso do indiviso ou do comum, onde não se reconhecia um proprie­
tário - as malhadas podiam ser usadas por todos, sem permissão
ou cobrança de direitos. A Malhada das Pedras, no Rio de Contas,
ponto tradicional de reunião de boiadas, acabou por dar origem a
um dinâmico arraial.
Aos poucos, o Sertão vai se convertendo em um imenso pasto,
onde, por largos trechos, a população consegue impor um regime
de terras distinto daquele baseado na apropriação individual e pri­
vada da terra, como o sistema sesmaria! supunha. Mesmo depois
de 1850, com a nova Lei de Terras, não se deu qualquer mudança
fundamental nesse regime de posse e uso da terra. Os efeitos da­
quela legislação parecem ter se limitado à área cafeeira, no eixo
centro-sul do País, sem qualquer mudança de fundo nas demais
regiões. Um bom número de trabalhos de antropólogos e historia­
dores confirmam a resistência, ainda nos dias de hoje, dos meca­
nismos de uso comunal da terra26•

25 Sampaio, Theodoro. O rio São Francisco e a Chapada Diamantina. Salva­


dor: Progresso. 1955, p. 184.
26 Um ótimo balanço sobre o tema foi feito por Bemo de Almeida, Alfredo
Wagner. Posse Comu nal e Conflito. Rio de Janeiro: Humanidades, s/ d,
p. 43-8; o autor procedeu, ainda, a um repertório bibliográfico das cha­
madas terras de preto, terras de índio, terras de santo e terras da igreja no
Brasil, destacando alguns dos melhores trabalhos. Ver Bemo de Almei­
da, A. W. Carajás . . . Op. cit., p. 213-39.

Pecuária, agricultura de alimentos e recursos naturais no Brasil-Colônia 131


Muito mais importante, no caso do Sertão, do que a apropria­
ção privada das terras era a questão envolvendo o uso dos recur­
sos naturais raros. Se, as terras são indivisas, o mesmo não acon­
tece com cacimbas, caldeirões ou olhos d' água. Recurso raro e frágil,
a água é que desperta maior atenção. Normalmente se constrói
um verdadeiro curral para controlar o acesso dos animais, como
na região da caatinga que se abre em Serrinha, Bahia. Em algumas
regiões do sertão de Vitória da Conquista e na Chapada da Diaman­
tina se adensam povoados (vilas e taperas) em tomo de caldeirões
ou poços, que conservam a água por todo o ano. Em outras regiões,
como no Médio São Francisco, é o gado de pequeno porte, em es­
pecial os porcos, que devem ser eliminados. Impõe-se, ao pequeno
produtor familiar e/ ou escravista, a obrigação de construir cercas,
que, com seus altos custos, muitas vezes impossibilitam a exis­
tência da pecuária de pequeno porte. A concorrência pelas cacim­
bas - ao lado da prática dos porcos em "sujar" a água - vai gerar
uma permanente tensão entre criadores de gado de grande e de
pequeno porte, muito especialmente no sertão semiárido.
Nos tabuleiros do sertão de Alagoas e Pernambuco, e na zona
das cabeceiras dos rios Real e Vaza-Barris, são as culturas que de­
vem ser cercadas. São os japam ou japão, as terras mais ricas, com
culturas de alimentos, que devem ser protegidas. Mas, mesmo aí,
formas de uso comunal são utilizadas. O custo elevado das cercas
- madeira, pedra ou macambira - impossibilitava o cercamento
de cada campo; assim, é o conjunto dos campos que são cercados.
Em Porto da Folha, Sergipe, as cercas são impostas pelos criadores,
com requintes que nenhum roceiro poderia pagar. Os porcos de­
vem estar presos, obrigando ao uso de forragem, enquanto os bois
são criados à solta.
Já no Recôncavo da Bahia, área de povoamento antigo e domi­
nância da plantation, a norma é inversa: os códigos de posturas, até
1785, afirmam a obrigação de cerca para o gado. Aí, as relações de
poder são diferentes: não se trata de pequenos produtores familia­
res e/ ou escravistas e, sim, da grande propriedade açucareira, o
engenho ou a fazenda. Poderosos, senhores de engenho ou plan­
tadores de cana, conseguem, bem ao contrário do pequeno produ­
tor sertanejo, defender seus campos e afastar o gado. Estes homens
aproveitam-se, ainda, das crises de fome para melhor controlar o
uso dos recursos naturais e, sob o pretexto que o gado ocupa muito
espaço, criam uma área agrícola privilegiada junto ao litoral e ao

1 32 1 Francisco Carlos Teixeira da Silva


curso navegável dos rios. O próprio governador-geral, Dom Rodri­
go da Costa (1 702-1705) autoriza, em 1705, a s� matar o gado que
entrasse nas plantações. Naqueles anos de penúria e fome, entre os
fins do século XVII e o início do XVIII, o poder central não admitia
qualquer estorvo à produção de mandioca, milho e feijão. Repetia­
se, é bem verdade, as posturas de 1700, consoantes com a proibição
do gado junto ao litoral. Quase ao mesmo tempo, em 1 716, o Se­
nado da Câmara de Salvador estabelece, através de postura, que os
currais deveriam produzir seus mantimentos, evitando, naquela
conjuntura crítica, comprar farinha no mercado27•
A denominação malhada indicava, ainda, uma outra forma de
acesso à terra e de organização do trabalho: os campos de cultivo
do tabaco. Não sem motivo. A denominação indica, como em Cruz
das Almas e nas vilas de "baixo" (ao sul da cidade de Salvador da
Bahia), um sistema de rotação de cultivos praticado nas capoeiras:
no primeiro ano, a terra é deixada ao gado, que tem aí sua malha­
da, para estrumar; depois planta-se o tabaco, dependendo da ferti­
lidade alcançada, um ou dois anos seguidos; no terceiro ano (ou
quarto) planta-se mandioca, voltando-se, então, para o gado.
A associação gado-tabaco-mandioca é um exemplo único de
uso sistemático de adubação na agricultura colonial28• Ao sul de
Salvador, nas vilas ditas "de baixo", tal sistema perdurou até a ex­
pulsão do gado. Os reclamos e pedidos insistentes da câmara da
vila de Boipeba, para manter um pasto comum de meia légua em
quadra, era o esforço direcionado para a conservação uma área
comum de aprovisionamento de estrume29• Tais demandas, que
perduram por todo o século XVIII, darão origem a um murmú­
rio permanente de desagrado por parte das câmaras e, de outra
parte, atos de profunda rispidez por parte das autoridades de
Salvador. Por fim, acaba-se por permitir a existência de pastos co­
munais, administrados pelas câmaras, com meia légua em quadra,

27
Ver Leis e Ordens Régias, Arquivo Público do Estado da Bahia.
28
Union Géographique Intemationale. XVIII Congres Internacional de
Géographie. Bahia-Rio de Janeiro. 1956, p. 197.
29
Carta dos Oficiais da Câmara da Vila de Boipedo . . . Bahia, 1 . 1 . 1 705.
Carta do Vice-Rey para Nicolau da Fonseca Tourinho sobre o gado que
se cria no termo da Vila de Boipeda, Bahia, 30.1.1705. ln: Documentos
Históricos da Biblioteca Nacional, v. XXl .

Pecuária, agricultura d e alimentos e recursos naturais n o Brasil-Colônia 1 33


para o gado de tiro, fundamental para os engenhos e o transporte
da farinha de mandioca.
A forma dominante, entretanto, de posse da terra era, sem dúvi­
da, o arrendamento. Malgrado as pressões da Coroa, o sistema não
só se manteve, como ainda, adquiriu quase universalidade. Um dos
domínios mais típicos do Sertão baiano, as terras de Antônio Guedes
de Brito, a Casa da Ponte, apresentava, no Tombo de Terras, feito
em 1809, nada menos que 110 sítios pagadores de renda e 64 sob
exploração direta. O foro oscilava, em média, entre 2 e 3% do valor
do sítio, em função principalmente de sua localização e da existên­
cia de recursos naturais adequados. Também as ordens religiosas
arrendavam suas terras, como a Irmandade de Nossa Senhora da
Lapinha, que de suas 24 propriedades, possuia apenas duas explo­
radas diretamente. Os jesuítas, por sua vez, possuíam em suas ter­
ras centenas de foreiros, além de alugarem pastos30•
Em Sergipe, a política de arrendamentos decai na mais aberta
exploração. A "aristocracia" local " . . . obriga os lavradores a paga­
rem-lhes altas porcentagens pelo arrendamento das terras onde ha­
bitam, e como resposta a qualquer protesto contra tal extorsão,
mandam incendiar-lhes as choupanas e derribar-lhes as planta­
ções . . . "31. Em nenhum outro ponto do Sertão o conflito tomou-se
tão agudo como na área do São Francisco sergipano. A maior parte
das terras de Sergipe D'El Rey, então fronteira móvel, ficou em mãos
de pequenos plantadores e vaqueiros de gados, na qualidade ren­
deiros de grandes sesmeiros absenteístas. Coube a estes o verda­
deiro trabalho de desbravamento e valorização das terras. Os con­
flitos repetiam-se aí com grande freqüência, quase sempre com o
recurso, por parte dos sesmeiros, ao poder político sediado em Sal­
vador. João de Araújo, que ocupara a Ilha do Ouro, no Sertão de
Porto da Folha, ao retornar de uma campanha, em 1655, encontra
suas terras ocupadas pelo capitão-mor que arrancara as páginas
do livro de sesmarias, o que origina um longo e sangrento conflito.
Algumas vezes previa-se, acintosamente, o assenhoramento de
terras já ocupadas, como na sesmaria doada, em 1670, ao poderoso

30 Barros, Francisco Borges. Op. cit., p. 56 e Bezerra, Felte. Investigações


Histórico-Geográficas de Sergipe. Edição da "Organização Simões". Rio
de Janeiro. 1952, p. 66.
31 Freire, Felisbelo. História de Sergipe. Petrópolis: Vozes. 1977, p. 224.

1 34 1 Francisco Carlos Teixeira da Silva


Bernardo Vieira Ravasco, que estabelece suas 20 léguas " . . . com
todas as águas, campos, pastos, testadas e mais logradouros úteis,
tomando dellas posse, nã o obstante embora algum podendo as
haver nos lugares devolutos . . . "32•
No Ceará , por sua vez, o forte absenteísmo dos grandes fazen­
deiros favorecia um certo relaxamento nas relações entre proprie­
tários e arrendatários: " . . . alguns donos vivem em suas terras mas
a maioria é propriedade de homens de ampla prosperidade que
residem nas cidades litorâneas"33•
A maioria dos senhores do Piauí também viviam em vilas e ci­
dades, particularmente em Salvador. Daí a importância, para os
arrendatários, da autonomia política da Capitania ou da sua vin­
culação ao Maranhão.
Podemos delinear, assim, quatro grandes formas de posse e uso
da terra na área de dominância da pecuária sertaneja:
(a) a grande propriedade, de origem sesmaria!, com exploração
direta e trabalho escravo;
(b) sítios e situações, terras arrendadas por um foro contratual,
com gerência do foreiro e trabalho escravo;
(c) terras indivisas ou comuns, de propriedade comum - não são
terras devolutas, nem da Coroa -, exploração direta, com caráter
de pequena produção escravista ou familiar, muitas vezes dedica­
da à criação de gado de pequeno porte;
(d) áreas de uso coletivo, como malhadas e pastos comunais,
utilizadas pelos grandes criadores e pelas comunas rurais.
Vemos, assim, as bases de uma paisagem agrária diversificada
e menos homogênea do que aquela normalmente descrita pela
historiografia tradicional. Da mesma forma, poder-se-ia compre­
ender melhor as origens e multiplicidade dos conflitos sociais exis­
tentes, muito especialmente em torno do acesso à terra, bem como
a explosão de violência que marca o Sertão no final do século XIX.

32 Livro Régio de Sesmarias . . . Op. cit. Arquivo Nacional.


33 Girão, Raimundo. Evolução Histórica Cearense. Fortaleza: Banorte. 1986,
p. 134.

Pecuária, agricultura de alimentos e recursos naturais no Brasil-Colônia 1 35


O trabal ho: vaqueiros, cabras e escravos

Talvez seja este o item pertencente ao tema pecuária sobre o qual


mais se tem escrito. Muitas das vezes, de forma idealizada e im­
pressionista, compondo uma mitologia do vaqueiro, com seu gibão
e sua mon taria. Heroísmo, perseverança e um toque de brutalidade
compunham os traços de um personagem histórico extremamente
popular no imaginário brasileiro. Aos poucos, e em grande parte
em função dos trabalhos de Capistrano de Abreu, se matiza e am­
plia este mesmo quadro34• Tanto a literatura, com Euclides da Cunha,
como o cinema novo (o ciclo do cinema do cangaço) enalteceram e
heroicizaram o vaqueiro e sua vida, criando um certo sucedâneo
brasileiro do cowboy.
A realidade começou, entretanto, a surgir muito diferente do mito
romântico. Novos trabalhos ocupam-se com as condições de vida,
a extração social e as formas de remuneração, constituindo-se em
temas básicos da sociologia do vaqueiro. Contudo, só muito recente­
mente pode-se aprofundar os conhecimentos sobre o trabalho nas
fazendas de gado do Sertão. Coube a Luís Mott a contribuição mais
efetiva neste campo. Foi ele, através do uso sistemático de arqui­
vos portugueses e brasileiros, que comprovou, contra toda a histo­
riografia tradicional, a participação dominante da escravidão na
vida econômica do Sertão bem como os traços fundamentais do
cotidiano sertanejo.
Até, então, defendia-se a dominância do trabalho livre, com cer­
tas características aventurosas que atrairiam a mão-de-obra indí­
gena para a pecuária. Duas causas fundamentais eram apontadas:
(a) o baixo rendimento proporcionado por um gênero de mercado
interno e (b) as condições de "liberdade" existentes, atrativo para o
índio (por corolário, inepto para o trabalho agrícola). Ora, tratava-

34 Ver Abreu, Capistrano de. Capítulos de História Colonial. Rio de Janeiro:


Briguet. 1968. Cunha, Euclides da. Os Sertões. Rio de Janeiro: Círculo
do Livro. 1975. Para as análises que se seguem ver: Mott, Luís. "Os ín­
dios e a pecuária nas fazendas de gado do Piauí colonial". ln: Revista
de Antropologia. Separata do volume XXII, USP. 1979. Idem, "Subsídios
à história do pequeno comércio no Brasil". ln: Revista de História. Sepa­
rata n.º 105, São Paulo. 1976. E, ainda, do mesmo autor, "Fazendas de
Gado do Piauí (1697-1762)". Anais do VIII Simpósio Nacional dos Profes­
sores Universitários de História. São Paulo. 1976.

1 36 1 Francisco Carlos Teixeira da Silva


se, em grande parte, de manifestação explícita da velha obsessão,
dependentista, pelo merca�.o externo como o único gerador de ren­
da no Brasil colonial, além de um viés romântico, e preconceituoso,
em relação ao índio. Em um trabalho de 1 979, Luís Mott fez a aná­
lise da demografia das fazendas de gado do Piauí, lançando por
terra uma das mais arraigadas visões da historiografia brasileira.
Na análise do conjunto da população do Piauí, o autor nos oferece
o seguinte quadro:

QUADRO 1
Composição da população do Piauí por etnia e cor - 1697-1 723

1 69 7 % 1 772 %

Brancos 1 55 35,3 3.205 1 6, 7


Índios 59 1 3,5 1 . 131 5,9
Negros 210 48,0 6.343 33,0
Mamelucos 1.354 7,0
Mulatos 4 0,9 4.050 21 ,l
Mestiços 10 2,3 3. 1 08 1 6,3
Total 438 100 19.191 100

Fonte: Mott, L. Op. cit., p. 68.

Destaca-se, no quadro acima, o peso da população negra: 48%,


em 1 697 e 33%, em 1 772, contra 13,5% e 5,9%, respectivamente, de
índios. É evidente tratar-se, aqui, de índios "mansos", sob domínio
branco, colocados a serviço ou aldeados em missões e, não do "gen­
tio bravo". São exatamente os primeiros que nos interessam. Estes
são notavelmente poucos face à população negra. Se somarmos a
esta a população de mulatos - 0,9% e 21,l % - a dominância "ne­
gra" toma-se absoluta. Da mesma forma, pudemos constatar no
Sertão do São Francisco uma reduzida população índia e, muito
claramente, um esforço de sesmeiros e seus capatazes em expulsar,
e mesmo chacinar, tribos inteiras. Eis uma história que, ainda hoje,
não se encerrou!
No quadro da página seguinte, Mott apresenta a população das
fazendas.
Patenteia-se, assim, a dominância do trabalho escravo, com 55,l %
da mão-de-obra nas fazendas de criação. As afirmações de Sirnon­
sen, Furtado e Caio Prado, sobre a pecuária, deveriam ser revistas,
face às novas evidências. Uma outra generalização abusiva exis­
tente na historiografia tradicional refere-se à indistinção do termo
vaqueiro, como todo aquele que trabalha na fazenda. O vaqueiro é

Pecuária, agricultura de alimentos e recursos naturais no Brasil-Colônia 1 37


homem livre, de prestígio e posição única na fazenda ou curral,
tratado nos documentos por senhor, e se distingue claramente de
seus homens. Estes, camaradas, cabras ou fábricas ocupam uma po­
sição subalterna, inferior, e não tratam diretamente com o proprie­
tários. Assim, o vaqueiro - rústico, forte e melancólico - não deve
ser confundido com seus cabras.
QUADR0 2
Composição da população das fazendas do Piauí - 1 762

Tipo Valor %

Brancos 882 36, 7


Índios 101 4,2
Negros livres 49 2,0
Mamelucos 4 0,1
Mulatos livres 15 0,6
Mestiços livres 31 1,3
Escravos 1 .324 55,1
Total 2. 406 100

Fonte: Mott, L. Op. cit., p. 71 .

O vaqueiro é o gerente das atividades econômicas da fazenda


de criação e, nesta condição é, ainda, capataz. É pago através do
sistema de partilhas ou sortes. Na Descrição do Sertão do Piauí, do Pa­
dre Miguel do Couto, aparece a seguinte informação: " . . . de 4 ca­
beças que crião lhe toca [ao vaqueiro] ha ao depois de pagos os dí­
zimos, são obrigados quando fazem a partilha ao entregarem ao
senhor da fazenda tantas cabeças como acharão nellas"35•
O meio de pagamento era a própria rês, uma a cada quatro crias
nascidas por safra - o sistema de quarta (embora houvesse tam­
bém ao quinto; a sorte, que animal caberia ao vaqueiro, era tirada no
local - uma malhada - na hora da partilha), marcando com seus
ferros os animais recebidos. Possui, ainda, o direito de criar seu gado,
com livre acesso aos recursos, naturais ou não, da fazenda.
Neste sentido, o sistema de sortes representa quase um arrenda­
mento do gado do fazendeiro, que coloca seus animais (usa-se o
termo entrega) sob responsabilidade de um vaqueiro. Este deve, de
qualquer forma, entregar o plantel com o mesmo número de ca­
beças que recebeu e o excedente é dividido, pela quarta parte, entre
proprietários e vaqueiro. Assim, era como arrendar os animais e o

35 Santos Filho, L. Op. cit., p. 223.

1 38 1 Francisco Carlos Teixeira da Silva


trabalho de criação, contra o direito do arrendando tirar daí sua
paga. O gado representava um pecúlio sobre o qual o vaqueiro apli­
cava seu trabalho, retirando em troca um quarto do gado exceden­
te e entregando ao criador um rebanho ampliado.
Muitos vaqueiros - mas, não os cabras oufábricas conseguiam,-

desta maneira, arrendar um sítio ou comprar uma situação e, as­


sim, criar seu próprio gado. Outros, como na fazenda do Brejo Seco,
vendiam suas sortes aos próprios fazendeiros, tomando-se, então,
credores de quantias em dinheiro. O vaqueiro dos Canguçus (os
senhores do Brejo Seco), Bernardo José da Silva, mereceu o seguin­
te registro: " . . . devo ao senhor Bernardo Sá. das sortes 100$400". O
mesmo Bernardo criava animais seus e também de vizinhos, que
lhe pagavam por isso. Da mesma forma, o Canguçu comprava a
sorte dos vaqueiros das fazendas vizinhas, viabilizando a longa tra­
vessia dos rebalhos através dos sertões, o que seria menos garanti­
do com pequenos lotes de animais; uma das anotações do senhor
do Brejo Seco nos permite visualizar a teia de relações existentes:
" . . . dinheiro q' vou dando a Francisco . . . vaqueiro de Cacolé a conta
das sortes q' tenho com elle . . . "36•
O vaqueiro trabalha, na maioria das vezes, com escravos; é as­
sim, por exemplo, no Brejo Seco e no Piauí: " . . . em cada hua [fazen­
da] vive hum homem com hum negro e em algumas se achão mais
negros, e também mais brancos mas no comum se acha hum ho­
mem branco só"37•
Além do vaqueiro e seus homens, existe uma larga variedade de
homens livres que prestam serviços aos currais e fazendas. Havia o
passador, condutor das boiadas até as feiras; os tangedores e os
guias, homens que asseguravam o contato permanente entre o Ser­
tão e as feiras, nas bordas da Zona da Mata. Em algumas fazendas,
dirigidas pessoalmente por seu proprietários, treinava-se escravos
que (como nos engenhos) iam substituindo os homens livres. Em
Brejo Seco, o Canguçu empregou o escravo Luís como passador,
para levar suas boiadas, e mesmo de vizinhos, até as feiras38• Tam­
bém cavalos e jumentos eram tangidos por escravos, como o maia­
to Isidro, da fazenda da Serra, em 1799. Outra característica era o

36 Idem. Op. cit., p. 226.


37 Anônimo. Op. cit., p. 86.

38 Santos Filho, L. Op. cit., p. 225.

Pecuária, agricultura de alimentos e recursos naturais no Brasil-Colônia 1 39


emprego de jovens livres, de qualidades, filhos de fazendeiros, como
vaqueiros de um lote de bois ou de animais de montaria. Da parte
dos jovens livres, tratava-se da possibilidade de amealhar um pe­
cúlio, que se constituiria em uma base para seus próprios sítios e /
o u para a preparação d o casamento, o enxoval d o rapaz39•
Um ponto original, ainda não destacado pela historiografia tra­
dicional, refere-se às possibilidades dadas aos escravos de terem
seus próprios animais. Numa versão sertaneja da brecha campo­
nesa, vemos que os fazendeiros e sesmeiros não exerciam qualquer
controle sobre a criação miúda: galinhas ou cabras podiam ser cria­
das e comercializadas livremente. Contar ou pedir contas de cria­
ção repugnava um vaqueiro ou criador, por envolver-se com sobejos
de escravo, criança ou mulher. Porém, há um ponto ainda mais
original: um número significativo de escravos criava cavalos. Estes
animais, caros e nobres, comprovam uma fantástica capacidade de
prover-se de um fundo ou pecúlio (um bom animal de sela, no final
do século XVIII, valia, na Bahia, cerca de 30$000, enquanto uma rês
valia cerca de 5$000).
Em Brejo Seco, os escravos Felix, João, Salvador, Luiz Courano e
Francisco Crioullo aparecem como criando éguas. O negro Felix
possuía, em 1 760, três potros e duas potras, enquanto os demais
possuíam dois animais cada. Também escravos de vizinhos deixa­
vam seus animais para criar no Brejo Seco, como a "creoulla Ana,
escrava de Manuel Gomes que possui uma égua no rebalho da fa­
zenda"; negros forros, como João de Sá e Francisco da Rocha entre­
gavam seus animais para criar junto, no Brejo Seco40•
Vemos, assim, no seu conjunto, uma grande circulação de recur­
sos - animais, dinheiro, sortes - na empresa sertaneja. As possibi­
lidades, se não de enriquecimento, mas, de autonomia econômica
no interior do sistema, eram grandes e independiam de investi­
mentos próprios. É verdade que o fato de ser filho d' alguém de qua­
lidades, como os jovens vaqueiros do Sertão do Rio de Contas, aju­
dava, deixando entrever uma rede de compadrio (em que a ajuda
na feitura do enxoval do rapaz era prova inigualável de amizade)

39 Idem. Op. cit., p. 302.


40 Idem. Op. cit., p. 228 e 302; para uma discussão mais geral ver Cardo­
so, Ciro. Escravo ou Camponês ? São Paulo: Brasiliense. 1988, especial­
mente p. 54 e ss.

1 40 1 Francisco Carlos Teixeira da Silva


a qual servia de base e amparava as relações de trabalho que se
estabeleciam. Contudo, poucas vezes, no Brasil colonial, um jovem,
forte e corajoso, tinha tantas chances de plantar as bases da sua
própria autonomia. É bem verdade que abriam-se os caminhos, no
máximo, de um sítio ou situação, posto que a fazenda ou o curral,
com escravos e as matrizes, impunham recursos e investimentos
próprios. Na pequena produção escravista de alimentos, em torno
de Salvador ou nas vilas 11 de baixo", os jovens filhos dos roceiros, já
com doze ou treze anos, eram virtualmente 11 catados" para servir
na infantaria ou na marinha. Os pais, temerosos, escondiam regu­
larmente seus filhos homens no mato. A diferença de possibilida­
des era notável, e caracterizava um universo bem mais nuançado
do que na agricultura de alimentos41 •
Da mesma forma, a amplitude d a circulação d e recursos permi­
tia que escravos e forros tivessem um rendimento próprio, reco­
nhecido e respeitado pelo senhor (como no Livro Razão do Brejo
Seco), infinitamente superior aos rendimentos alcançados por seus
congêneres no plantio de alimentos e criação de aves de terreiro -
atividades características da brecha camponesa. Aqui, a autono­
mia do escravo se expressava na posse, criação e comercialização
de animais nobres e caros - as montarias -, enquanto que na
plantation nunca se tinha acesso às culturas nobres como o açúcar.
Aí, restringia-se a autonomia da economia própria dos escravos
aos mantimentos, o que poderia integrar-se bastante bem ao cál­
culo do senhor na gestão dos recursos do engenho. É verdade, tam­
bém, que as montarias não competiam com a atividade principal
- o gado -, e eram vistas, de certa forma, como animais de esti­
mação.
De qualquer forma, o mundo da empresa sertaneja surge mais
aberto, menos hierarquizado e mais variegado do ponto de vista
social. Mas, se as hierarquias do trabalho eram menos rígidas do
que no mundo da plantation, os códigos de honra e as noções de
ofensa estavam à flor da pele. Os relatos de crimes e conflitos, qua­
se sempre envolvendo farm1 ias e clientelas, são comuns. Ao longo
do vale do São Francisco, tomou-se popular, até hoje, o uso da lo-

41 Ver Teixeira da Silva, F. C. A Morfologia da Escassez . . . p. 123 e ver ainda


Rohrig Assunção, Mathias. Pflanzer, Sklaven und Kleinbauern in der
Brasilianischen Provinz Maranhão (1 800-1 850). Frankfurt: Vervürt. 1993.

Pecuária, agricultura de alimentos e recursos naturais no Brasil-Colônia 141


cução justiça-do-rio-de-baixo para nomear o bacamarte, expressão
maior da defesa da honra.
Vaqueiros, camaradas, cabras efábricas; passadores, tangedores e guias;
negros, escravos e forros; caboclos quase todos; muitos mamelucos;
e mulatos, em grande número, formam um universo próprio, com
dinâmica original e constituem-se em elementos de uma cultura
rústica, que ainda hoje resiste à modernidade dissolvente.

A fazenda de criar: u ma análise da empresa sertaneja

A maioria das análises da fazenda de criação sertaneja refere-se,


de imediato, às grandes sesmarias distribuídas pela Coroa. Assim,
os imensos latifúndios, de dezenas de léguas, são tomados como
sendo, em si, as fazendas. Da mesma forma, a descrição fornecida,
em 1711, por Antonil, assume um caráter normativo da análise: " . . .
há currais de duzentas, trezentas, quatrocentas, quinhentas, oito­
centas e mil cabeças; assim, há fazendas, a quem pertencem tantos
currais, que chegam a ter seis mil, dez mil, quinze mil e mais de
vinte mil cabeças de gado . . . "42•
Tal descrição, ao lado da caracterização dos dois grandes domí­
nios mais conhecidos - a Casa da Torre, dos Ávilas, e a Casa da
Ponte, dos Guedes de Brito - tendem a promover uma generaliza­
ção da idéia da fazenda de gado como um imenso latifúndio. Trata­
se, aqui, de um notável equívoco, confundindo-se o grande domí­
nio (configurado pela jurisdição, ou seja, o exercício de direitos de
senhorio) e a exploração direta (o uso dos recursos econômicos da
terra). Um grande domínio não configurava uma exploração, seja
ela direta ou indireta. Embora o senhor da grande sesmaria pudes­
se cobrar direitos (foro e alguns outros, como na sucessão), não ex­
plorava diretamente toda a área. A unidade básica de exploração
poderia ser uma área arrendada como um sítio, uma situação ou
uma fazenda do próprio sesmeiro. Contudo, no caso das sesmarias
gigantes, nunca era o conjunto das terras doadas que se constituía
em exploração43•

42 Antonil. Op. cit., p. 271 .


43 Para discussão sobre os conceitos de domínio e exploração ver: Kula,
Witold . Teoria Económica dei Sistema Feudal. Mexico: Siglo XXl . 1974, es­
pecialmente p. 46-70. Para a empresa agrícola moderna ver Slicher van

1 42 1 Francisco Carlos Teixeira da Silva


Nenhum dos grandes sesmeiros, mesmo os conquistadores das
novas terras, como Domingos Affonso, o Sertão, exploraram dire­
tamente a totalidade produtiva de suas terras (evidentemente, ao
falar em totalidade não nos referimos áreas inóspitas). As terras
deste desbravador, por exemplo, aparecem logo após a sucessão
jesuítica, com mais de cinqüenta sítios arrendados. Muitos ses­
meiros, é verdade, mandavam prepostos, livres ou escravos, para
montarem currais no Sertão. Continuamos, neste caso, face a uma
forma de exploração direta. Mas, a maioria preferia - e este é o
elemento novo que queremos destacar -, arrendar as terras rece­
bidas ou recém-conquistadas. Este era o objetivo básico dos des­
bravadores ao lutar por imensas sesmarias: arrendar as terras rece­
bidas. Cabe aqui, portanto, uma distinção fundamental no regime
de terras. Imensos tratos de terras não implicavam em grandes ex­
plorações. Muitas das grandes sesmarias, na Bahia, Sergipe, Ceará
e Piauí, foram retomadas e redivididas, posto que ao fim de um
certo tempo nenhuma atividade fora encetada, inclusive de pode­
rosos, como os Ávila, da Casa da Torre.
Grandes domínios - a Casa da Torre é o melhor exemplo -
compunham-se de inúmeros sítios, denominação usual das terras
arrendadas no Sertão. Nos domínios da Torre são 120 sítios, fazen­
das ou logares arrendados, com garantias tais que a expulsão dos
ocupantes era rara e moralmente condenável44• Estas unidades me­
nores (sítios, currais ou fazendas) no interior da sesmaria, aqui con­
siderada como domínio, eram as empresas produtoras e, deve­
riam, assim, ser a base da análise do sistema pecuarista, bem como
de qualquer outro sistema agrário. Se tomarmos, por exemplo, as
fazendas componentes da doação, no Piauí, de Domingos Affonso
aos jesuítas podemos produzir o quadro da página seguinte.

Bath, B. H. História Agrária de Europa Occidental. Barcelona: Península.


1978, p. 353-440. Já no estudo prático de funcionamento de uma em­
presa no âmbito de um domínio ver Duby, Georges. Guerreros y Campe­
sinos. Mexico: Siglo XXI . 1976. Para a aplicação ao caso brasileiro ver
Linhares, M. Yedda L. "Subsistência e sistemas agrários na Colônia:
uma discussão". Estudos Econômicos 13 (n.º especial): 745-62. 1983.
44 Tombo das Terras da Casa da Torre. Annaes do Archivo Público da Ba­
hia. Armo Ili, vs. IV, p. 56-92. Ver também Calmon, Pedro. História da
Casa da Torre. Rio de Janeiro: José Olympio. 1958, p. 135 e ss e o testa­
mento de Garcia D' A vila citado por Calmon, p. 222.

Pecuária, agricultura de alimentos e recursos naturais no Brasil-Colônia 1 43


QUADR0 3
Dimensões das fazendas - tombo de terras de 1811

Módulo (hectares) Freqüência


1-1 0.000 2
10.001-15.000 9
15.001-20.000 1
20.001 -25.000 8
25.001 -30.000 6
30.001-35.000 1
35.001-40.000 1
40.001 -50.000 1
+ de 50.001 2
Sem ref. 4
Total 35

O uso de outro critério, como o número de reses por fazenda,


também obriga a revisar a idéia de imensas explorações. No Tom­
bo de Terras de 1811, as 35 fazendas acima contavam com 50.760
cabeças de gado, algo como 1 .450 animais por fazenda. Em outro
Tombo, de 1852, aparecem 61 . 1 70 animais, com uma média de 1 . 747
reses por fazenda, muito aquém das imensas cifras oferecidas por
Antonil45•
Hoje, os dois municípios fundados pelo Mafrense, Oeiras e Flo­
riano, com os recursos modernos e novos métodos de manejo do
gado, possuem cerca de 40 e 35 mil cabeças, respectivamente. É de
estranhar que no século XVII ou XVIII os rebanhos fossem maiores
e a capacidade de carga dos pastos superior, como uma generaliza­
ção das informações de Antonil permitiria supor.
Luís Mott, analisando os mesmos dados, produz o quadro da
página seguinte e conclui que " . . . aparentemente não há correla­
ção direta entre o número de léguas e o número de cabeças efeti­
vamente possuídas"46• Uma boa comprovação disso é o fato de a
maior das fazendas, dita do Julião, com seus 252 mil hectares ter
apenas 1 .200 cabeças e, a do Castelo, com poucos 14.400 hectares
criar 6 mil animais!

45 Livro de Tombo das Terras da Bahia. Biblioteca Nacional. Mss. 11-33,


26, 12.
46 Mott, Luís. Idem, p. 72.

1 44 1 Francisco Carlos Teixeira da Silva


QUADR0 4
Número de animais por fazenda (século XVIII)

N.º de cabeças Freqüência


até 1000 8
1001 a 2000 8
2001 a 3000 10
3001 a 4000 3
4001 a 5000 1
5001 a 6000 1
Fonte: Mott, Luís. Op. cit., p. 363.

Devemos, assim, insistir na ausência de qualquer relação direta


entre dimensões e capacidade de sustentação do plantel. Resta es­
clarecer, então, a ânsia por terras manifestada por sesmeiros e des­
bravadores. A resposta deveria basear-se na escassez dos recur- sos
naturais, fundamentais para a pecuária. A terra era, sem dúvida, o
elemento básico. A existência, contudo, de outros recursos adequa­
dos à criação é que tornava uma terra apta, ou não, para a pecuá­
ria. A presença permanente de água, como rios, lagoas perenes,
poços ou cacimbas, bem como os famosos lambedou ros, jazidas de
sal, qualificavam as terras e permitiam o estabelecimento de uma
unidade de exploração.
Um número significativo de sesmarias requeridas no Piauí, Cea­
rá e Sergipe faziam clara menção ao fato das léguas doadas deve­
rem ser contadas por terras boas, pastos e campos, para completar a
área solicitada . Assim, constituíam-se muitos domínios descontí­
nuos, em que as terras por demais áridas, montanhosas ou de caa­
tinga suja eram "puladas". A sesmaria de dez léguas dada a Ber­
nardo Vieira Ravasco, em 1655, marcava sua extensão a partir das
terras do Padre Antônio Pereira " . . . e caso não sejam capazes de
cultura as dez léguas serão tomadas em qualquer parte da serra e
campos que junto a elas se acharem"47• Já a sesmaria de Garcia
D' Ávila, no mesmo livro de sesmarias, e doada em 1659, fala " . . .
que se ressalvarão também de sorte que a s dez léguas de cada um
[ sesmeiros ] sejam de pastos, e terras, onde possam criar gados . . . " . A
data de Francisco de Brá, doada mesmo ano, fala em vinte léguas
" . . . todas juntas ou separadas no caso das serras ou penedos proi­
birem a reunião"48•

47 Livro Régio de Sesmarias. Arquivo Nacional. Op. cit.


48 Idem.

Pecuária, agricultura de alimentos e recursos naturais no Brasil-Colônia 1 45


Além de uma certa dispersão dos domínios assim estabelecidos,
surgiam, também, em seus interstícios terras maninhas, por onde
se infiltravam posseiros.
Imensas sesmarias, reunindo vastos tratos de terras, podiam sig­
nificar, o que não é detectado pela historiografia tradicional, o es­
forço em se apropriar de recursos naturais raros, e não exatamente
de terras. A freqüente menção nas cartas de sesmarias de terras
para criar, pastos bons ou terras úteis confirma essa afirmação. O mes­
mo Antonil, por exemplo, nos fala que as fazendas " . . . se situam
aonde há largueza de campo, e água sempre manente de rios ou
lagoas". Teodoro Sampaio descreve com detalhes a formação e ex­
ploração, pela pecuária, dos lambedou ros do Médio São Francisco,
como ainda os grandes trabalhos de irrigação e construção de ca­
cimbas nos tabuleiros secos da Chapada da Diamantina49•
Sítios e fazendas no interior dos domínios acompanham, assim,
os recursos naturais existentes, insuficientes para transformar toda
a extensão de terras em uma só exploração aptos, contudo, para
manter uma unidade mais restrita. Longe de qualquer noção de
prestígio como elemento explicativo da grande propriedade
pecuarista, e em geral da grande propriedade agrária no Brasil­
Colônia, as imposições ecológicas determinaram, desde cedo, os
traços fundadores da paisagem sertaneja. De certa forma, os gran­
des domínios sertanejos assemelhar-se-iam a desertos pontilhados
de oásis de alta concentração populacional, humana ou não. As­
sim, cálculos sobre a relação animal /hectare, e daí a capacidade de
carga dos campos, teria pouco significado, se tomarmos o conjunto
da superfície possuído, sem dar conta que a existência de recursos
naturais raros impunham dimensões bem mais restritas para a ex­
ploração de fato.
Devemos, além deste suposto ecológico, aliar a esta explicação
um outro elemento fundamental: o sistema de arrendamentos. A
sua universalidade, inclusive em outros setores - como açúcar,
tabaco e mandioca - demonstraria a existência, no escravismo, de
um mecanismo de apropriação do sobretrabalho, para além da ren­
da originária do trabalho escravo, baseado no monopólio da terra e
de seus recursos. Assim, a renda da terra surgia como um mecanis-

49 Sampaio, Thedoro. Op. cit., p. 233. Para uma análise das relações entre
recursos naturais e a empresa econômica ver Godelier, M. L'Idéel et le
Matériel. Paris: Fayard . 1984.

Francisco Carlos Teixeira da Silva


mo de enriquecimento do grande senhor, sem qualquer investimen­
to prévio necessário - como, por exemplo, na compra de escravos.
Na questão da terra, e para · auferir as rendas derivadas do seu ar­
rendamento, bastava influência política e um certo uso da força, o
que garantia o monopólio de vastos tratos de terras.
Nem todas as fazendas são iguais. Algumas são somente cur­
rais, onde o gado é reunido e se faz a ferra ou a marca. Aqui, curral
é sinônimo de pasto. Em alguns, encontramos a tapera do vaqueiro
e seus cabras, com as atividades concentradas na malhada mais pró­
xima. Alguns currais são como satélites distantes de uma grande
fazenda; outros, são estabelecimentos de senhores residentes em
Salvador, ou em engenhos do Recôncavo da Bahia. A maioria, en­
tretanto, é constituída de estabelecimentos autônomos, caracteri­
zados pela baixa inversão de recursos financeiros, quase sempre
restritos apenas à compra de matrizes e dos escravos.
Matrizes e escravos são, em conjunto, os investimentos básicos
de um curral, a sua parte mais onerosa, sendo que, de longe, o es­
cravo é o mais caro, enquanto que as reses podem ser conseguidas
por mecanismos de pagamento de trabalho, de compadrio ou ou­
tros laços de clientelismo. Em sua quase totalidade, são currais
foreiros - ora chamados de curral ou por qualquer outra denomi­
nação sinônima (curralinho, malhada, brejo, campos, tapera, fazen­
dinha, cafundó, manga, cercadinho, aguada, olho d' água são algu­
mas das variadas e pitorescas designações existentes nos inventá­
rios e registros de terras); ora, eram chamados de sítios. A grande
maioria possuia 4.356 hectares, longe, portanto, do gigantismo
médio das primeiras sesmarias. Pagavam de foro, no início 10$000
réis, mas, como vimos, o valor tendia sempre a variar, de região em
região, em tomo de 2 ou 3 % do preço da terra.
QuADR0 5
Relação entre o valor do foro e do sítio, por ocorrência

% N.º
0.1-0.9 2
1-2 29
2.1-3 29
3.1-4 15
4.1-5 2
5.1-6 1
S.Ref. 28
Fon te:
Tombo das Terras e Prédios que pertencem a Casa do Senhor da Ponte .. 20 de janeiro de
.

1819. Anais do Archivo Publico da Bahia, v. XI, p. 122-30.

Pecuária, agricultura de alimentos e recursos naturais no Brasil-Colônia 1 47


Existiam, ainda, as fazendas de engorda ou invernadas, localiza­
das estrategicamente nas bordas do sistema. Umas ficavam junto
às grandes feiras, como Capoame ou Feira de Santana, outras junto
às grandes charqueadas, como Aracati. Não criam, no seu sentido
pleno; compram o animal vindo do Sertão - no mais das vezes
cansado e magro - sem opções de venda :p ara os passadores, estes
tão cansados e magros quanto o seu gado. E aí que se engordam as
boiadas, em pastos plantados e cuidados para, só então, revender
aos marchantes. Assim, o boi magro, e algumas vezes estropiado
pela viagem, é vendido barato nas invernadas e depois, já gordo,
revendido a bom preço.
Poderia acontecer, entretanto, de algumas invernadas, e ao que
parece eram poucas, se constituírem em verdadeiras fazendas, com
uma Casa Grande e um senhor residente que administra seus ne­
gócios, como os Canguçus do Brejo Seco. Possui suas roças e "miu­
dezas", que sustentam a casa, escravos e empregados. Um traço
fundamental, entretanto, distinguia os currais e invernadas das fa­
zendas: a dedicação a outras atividades que não exclusivamente a
pecuária bovina. Muitas fazendas possuem campos de cultivo, a
maioria de fumo, como nos tabuleiros úmidos e brejos da Bahia, ou
de algodão, já no Sertão seco da Bahia, Piauí e Ceará.
Muitos senhores de gado fariam fortuna, no final do século XVIII,
com o comércio do algodão. Fazendeiros do Ceará e do sertão
baiano mesmo plantando muito pouco algodão eles próprios, com­
prariam, porém, o produto dos vizinhos menos capitalizados, em
especial dos pequenos produtores escravistas, e passariam a domi­
nar a intermediação do comércio algodoeiro.
Em fim, a fazenda de criar, e suas variações, era o ponto nodal
de uma paisagem aberta, destituída de cercas, na qual predomi­
nam os campos e caatingas. Do alto das Chapadas do Piauí e do
Ceará, e dos tabuleiros da Bahia até o norte das Minas Gerais, po­
dia-se vislumbrar os pontos de condensação de um amplo siste­
ma de criação extensiva. Roças de alimentos; a criação de pequeno
porte e as lavouras comerciais de algodão e de fumo complemen­
tariam o cenário da pecuária sertaneja.

1 48 1 Francisco Carlos Teixeira da Silva


Feiras: os mecan ismos de comercialização da pecuária

O abastecimento de carnes-verdes aos centros urbanos em ex­


pansão - como Salvador e Recife - e também a áreas rurais extre­
mamente populosas e ricas - como o Recôncavo - era feito por
boiadas. O boi-em-pé deveria vir dos sertões do Piauí, do São Fran­
cisco e do Rio de Contas em direção à Salvador, enquanto do Ceará
e Rio Grande do Norte as boiadas demandavam o Recife. As lon­
gas viagens, as condições precárias dos pastos existentes pelos ca­
minhos, levavam a uma forte depreciação do rebanho, vendido,
quase sempre, por preços aviltados. Surgiram aí as primeiras crises
de abastecimento centradas no comércio das carnes-verdes, com
um formato próprio, como em 1702 a crise de abastecimento de
carne em Salvador50• Nas reclamações então feitas fica claro que o
gado chegava ao Recôncavo, em especial às vilas de Água-fria e
Socós e não continuava a viagem em direção à Salvador. Davam­
se aí duas ordens de fenômenos. De um lado, a concorrência - fre­
qüente ao longo do século XVIII - entre os mercados da cidade de
Salvador e os mercados do Recôncavo; do outro, haviam se estabe­
lecido em tal região fazendas de engorda ou invernadas, onde o gado
deveria recuperar seu peso, evitando o prejuízo do abate do boi
magro. Ambos os mecanismos acabavam por reter o boi nas vilas
do Recôncavo, originando sua desaparição dos mercados da cida­
de de Salvador.
Um dos mais antigos caminhos de gado, já praticado e1n 1669,
serve de exemplo das longas marchas do gado: do São Francisco
até Jeremoabo e então em direção a Ribeira do Pombal, Alagoi­
nhas e, daí, até Salvador. Por sua vez, a Estrada Real do Gado ligava
os Sertões do Piauí, através de Bonfim, Queimadas, Coité, Serrinha
e, ainda uma vez, Alagoinhas à Salvador.
Ao longo de tais caminhos surgiram grandes feiras de gado, co­
mo Capoame, ou Feira Velha, e a de Aramari. Da mesma forma,
surgiram ranchos, rodeados de pequenas roças, onde se compra­
ram as reses estropiadas, e se albergava e alimentava os vaqueiros
e viajantes. Algumas vilas chegaram a florescer, no século XVIII,
com esse papel de suporte ao longo das rotas, como Serrinha, Ri­
beira do Pombal e Jeremoabo.

30 Ver Teixeira da Silva, F. C. Op. cit., p. 189.

Pecuária, agricultura de alimentos e recursos naturais no Brasil-Colônia 1 49


Em Serrinha, por exemplo, onde havia uma grande quantidade
de invernadas o gado comprado passava um período de até seis
-

meses de engorda, e só então era colocado à venda. Em muitas des­


sas regiões começou-se, em data não definida, a plantar capim (o
sempre-verde e o de angola) como garantia para os campos de engor­
da. Dado o volume do movimento anual, não se deveria mais con­
fiar na bondade da natureza, impondo-se assim a necessidade de
pastos artificiais.
A feira de Capoame foi, sem dúvida, o mais importante merca­
do colonial de alimentos, ao lado de Nossa Senhora de Nazareth
das Farinhas. Coube, ainda uma vez, a Luís Mott a melhor análise
dos mecanismos de comercialização de Capoame, com o levanta­
mento da documentação existente no Arquivo Histórico Ultramari­
no. Situada a oito léguas de Salvador, tornou-se, por bastante tem­
po, o principal centro de comércio de gado na colônia, controlando
em especial, as fazendas do São Francisco e do Piauí51•
E m São João da Mata, organizou-se, ainda no século XVIII, uma
outra feira de gado, voltada para o abastecimento do Recôncavo.
A vila de Goiana, em Pernambuco, reunia o gado dos Sertões de
Fora, em direção ao Recife. No Sergipe, Laranjeiras, centro açuca­
reiro, reunia uma imensa feira de gado, abastecendo os engenhos
da capitania, enquanto a feira de Porto da Folha concentrava, à
beira-rio, os artigos do Sertão.
As grandes feiras da Bahia, como Nazareth, Capoame, Jequié e
São João da Mata, foram pouco a pouco substituídas, no alvorecer
do século XIX, por Feira de Santana. Esta, transformou-se em um
poderoso ponto de articulação entre duas zonas distintas: os tabu­
leiros, mais ricos e agricultáveis, e o Sertão, mais seco e pastoril.
Santana articula com Salvador a região da Chapada da Diamantina,
os sertões de Vitória da Conquista e Itambé, criando na sua perife­
ria, uma forte região de invernadas. Em pouco tempo, estendeu
sua região de influência ao Piauí, Sergipe, Alagoas, Goiás e o norte
de Minas Gerais. No seu mercado o gado é o principal gênero de
comércio, junto com seus derivados e o artesanato do couro. O gado
mais magro, de qualidade inferior, criado no sertão mais árido do
São Francisco se dirigia, por sua vez, para a feira de Arcoverde -
centro de comercialização da pecuária da caatinga.

51 Cf. Mott, Luís. Op. cit., p. 91; e, para a feira de Nazareth das Farinhas,
nosso trabalho já citado.

1 50 1 Francisco Carlos Teixeira da Silva


As boiadas chegavam nas feiras conduzidas por um passador,
contratado pelo criador e pago, ao tempo de Antonil, com um cru­
zado por rês entregue. Na verdade, o pagamento era variado, esta­
belecido previamente por acordo falado. O senhor da fazenda do
Brejo Seco utilizava um escravo de confiança, "o meu Lucas", mu­
lato, como passador. Nestas ocasiões, o escravo Lucas conduzia,
também, bois dos vizinhos e animais criados por outros escravos.
Por volta de 1 740, todo o sistema de comercialização sofreria
uma mudança radical. Fazendeiros e comerciantes de gado do nor­
te do Piauí e do Ceará, sempre prejudicados pela concorrência dos
Sertões da Gurguéia, Piaugui e São Francisco - mais próximos
dos centros consumidores - passaram a salgar e secar as carnes.
Sec.i. s e conservadas com sal, as carnes ampliavam enormemente
seu raio de comercialização. As salgadeiras, também chamadas fá­
bricas ou charqueadas, expandiram-se rapidamente na vila de Santa
Cruz do Aracati. Aí, reuniam-se as condições ideais para a nova
indústria: o sal abundante, a ligação direta com o Interior através
do rio Jaguaribe, a situação portuária da vila. Sua ação estende-se
em direção a Icó e Inhamus, no sertão. O exemplo é seguido nas
vilas vizinhas: Parnaíba, Acaraú, Açu e Mossoró formam impor­
tantes charqueadas.
Mesmo os mercados mais distantes, ao sul da Bahia, recebem a
carne-seca do Ceará, bem como o abastecimento de naus e tropas,
o comércio atlântico, constituir-se-iam rapidamente em mercados
cativos. Em pouco tempo, as boiadas, que vinham dos sertões de
fora para o Recife, começaram a rarear, em virtude da demanda
das charqueadas. Sucessivas crises no abastecimento das carnes­
verdes no Recife levariam as autoridades coloniais a proibir as
charqueadas do Rio Grande, tornando essa capitania cativa dos
interesses do abastecimento de Pernambuco. Aracati e Parnaíba
continuariam, ao longo do século XVIII, a dominar o mercado de
carnes-secas, até o Rio Grande de São Pedro vir a constituir-se em
um centro especializado de produção.
Caracteristicamente, a pecuária constituía-se em um sistema
cujos mecanismos de comercialização não se encontravam sob seu
controle. Característico no sentido de ser próprio da economia de
tipo colonial (no seu todo e em seus subsistemas) a dominação dos
mecanismos de comercialização pertencia a segmentos de comer­
ciantes especializados - no caso do gado, os marchantes.
As boiadas levadas para as feiras não eram, de imediato, abati-

Pecuária, agricultura de alimentos e recursos naturais no Brasil-Colônia 151


das. Deveriam, como vimos, permanecer um tempo variado nas
fazendas de engorda, onde se garantia o aumento do peso dos aro­
mais e, consequentemente, um ganho marginal. Um outro elemen­
to interveniente desempenhava um papel importante: a associa­
ção, e mesmo a simultaneidade, na ação entre donos das invernadas
e os marchantes. Estes últimos conseguiam, dessa forma, um fantás­
tico poder de barganha e de pressão. Não só obrigavam o passador
da boiada a vender pelo preço que impunham, como ainda pode­
riam reter os animais no pasto para pressionar os preços do varejo,
no mercado consumidor. Já em 1636, o relato do holandês Adrian
Verdonck, nos fala que os marchantes que compravam o gado em
Goiana " . . . conservavam lá o gado por causa de uma muito bela e
grande pastagem"52; a situação era muito parecida na área de Ca­
poame.
As autoridades coloniais procuraram, através de bandos e pos­
turas, impedir o monopólio dos marchantes, da mesma forma como
controlavam o comércio da farinha de mandioca, reprimindo vio­
lentamente os chamados atravessadores. Ora estabeleciam pastos
comuns, como no Rio Vermelho, ora abriam os talhos municipais
aos criadores para o abate de seus animais. Nenhuma das medi­
das, contudo, resultava em benefícios imediatos. Tanto os pastos
comuns como o acesso aos talhos supunham a permanência dos
boiadeiros por longo tempo fora de suas fazendas e currais; no ca­
so dos talhos, impunha-se, dado as características do trabalho, a
utilização de ampla escravaria, o que evidentemente encareceria o
conjunto das atividades53•
A solução encontrada, como no caso da farinha de mandioca, foi
o tabelamento dos preços, então denominado de taxa. O Senado da
Câmara da Bahia, seguido de demais vilas do Recôncavo, como
também no Recife, tabelavam permanentemente os preços da car­
ne-verde no varejo. Quando foi permitido um aumento, em 1 756,
fazia mais de cem anos que o preço da arroba da carne-verde não
variava no varejo! A plena liberação dos preços da carne, como da
farinha, só foi tentada na administração de Dom Fernando José de

52 Verdonck, A. et alii. Fontes para a História do Brasil Holandês. Recife: MEC.


Documento 3. 1981, p. 36.
53 Código de Posturas da Cidade de Salvador, 1 700; 1 705; 1 716. Arquivo
Municipal de Salvador. Prateleira "Posturas".

1 52 1 Francisco Carlos Teixeira da Silva


Portugal, já no final do século XVIII e no bojo de uma série de me­
didas reformadoras influenciadas pelo Iluminismo tardio.
Mesmo não sendo o preço do boi-em-pé tabelado, o controle do
preço no varejo refletia-se, obviamente, de imediato no processo de
comercialização das feiras, sob o domínio dos marchantes. Estes, na
maioria das vezes, arrendavam os talhos e açougues municipais
completando, assim, sua ação monopolista. Desta forma, os cria­
dores de gado - como os roceiros da mandioca - sofreram um
processo constante de subvaloração de seu produto em favor dos
comerciantes que atravessavam o gado. Todo o processo de comer­
cialização ficava, desta forma, sob controle do capital comercial, de
pequeno porte mas eficiente na monopolização das atividades li­
gadas ao abastecimento. Da mesma forma, lucravam todos aqueles
que compareciam ao mercado como consumidores, em especial
senhores de engenho, com suas escravarias, bem como o poder pú­
blico, com suas obrigações com soldados e a matalotagem das naus.
Os mecanismos de comercialização não discriminavam apenas
alguns segmentos em favor de outros, como no caso dos produ­
tores face aos comerciantes e consumidores. Regiões inteiras, como
a capitania do Rio Grande do Norte, eram também duramente
atingidas, já que nesta região era suprimida qualquer opção de
comercialização que não o boi-em-pé, com preços tabelados, para o
mercado do Recife e dos ricos engenhos de açúcar da Zona da Mata.
Também lucravam os produtores e exportadores de tabaco que usa­
vam os couros para acondicionar o seu produto durante as viagens
atlânticas. Assim, grande parte do valor gerado na empresa serta­
neja era apropriada pelo setor exportador, por meio de mecanismos
extra-econômicos: tabelamento e requisições ao preço oficial.
Contrariamente, as mercadorias compradas pelos criadores -
escravos, ferros, cravos, tachos, armas, sal fino etc . . . - eram prati­
cadas em preços livres ou do mercado colonial, quase sempre pro­
tegidos pelo monopólio colonial de fornecimento, no caso extre­
mamente favorável aos comerciantes portugueses que controlavam
a importação atlântica. Dava-se, assim, o típico mecanismo de con­
tato entre atividades voltadas para o mercado interno e aquelas
voltadas para o mercado externo, subsidiadas por ações da Coroa
e dos poderes locais. Transferia-se uma parte do sobretrabalho da
pecuária para as atividades ligadas à plantation e, ao mesmo tem­
po, impunha-se preços elevados aos produtos consumidos pela fa­
zenda.

Pecuária, agricultura de alimentos e recursos naturais no Brasil-Colônia 1 1 53


A interrelação entre os dois sistemas produtivos, a pecuária ser­
taneja e a plantation, concretizava-se, assim, através de mecanis­
mos de circulação da renda, favorecendo e subsidiando os setores
exportadores. Os criadores, entretanto, na sua condição de homens
de qualidades - ao contrário dos roceiros de mandioca, no mais,
homens livres pobres - conseguiam uma situação um pouco me­
lhor. O boi-em-pé não era tabelado - a mandioca era tabelada na
roça - e seus criadores possuíam a liberdade de vender "na por­
teira", enquanto os roceiros eram proibidos de ir às feiras locais ou
vender ao longo das rotas, acabando, por fim, sujeitos ao regime
único, corrupto e caro, do Celeiro Publico da Bahia54•
De qualquer forma, ambos os segmentos foram alvos de políti­
cas que garantiam a reprodução das condições coloniais, em es­
pecial da grande lavoura exportadora, sempre em detrimento dos
segmentos subalternos, no caso, os produtores de alimentos em
uma economia de tipo colonial.

Flutuações e crises: o funcionamento do sistema

A prosperidade e - apesar da rudeza da vida - a rapidez com


que a pecuária trazia riquezas incentivavam o surgimento de no­
vas áreas de criação. A entrada no mercado de novos criatórios,
como o da Ilha de Marajó, provocavam flutuações no ritmo de cres­
cimento e alterações significativas de preços do boi-em-pé. Os nú­
cleos de povoamento da Amazônia, por exemplo, foram tradicio­
nalmente abastecidos por Parnaíba, que comandava os sertões oci­
dentais do Piauí, muito distantes de Salvador e do Recife. Quando,
a partir de 1765, Marajó se tornou apta a abastecer Belém, iniciou­
se uma forte crise nos criatórios ao longo do rio Parnaíba. Já em
1767, tanto as fazendas como as charqueadas deixaram de comer­
cializar seus produtos nos mercados tradicionais da Amazônia. Era
a crise.
O domínio absoluto do Alto Sertão sobre o mercado de carnes­
verdes foi, regularmente, limitado e circunscrito pelo surgimento
de núcleos produtores diretamente vinculados aos mercados con-

54 Para uma análise teórica de tais mecanismos nas sociedades agrárias


ver: Meillassoux, Claude. Mujeres, Grãneros e Capitales. Mexico: Siglo
XXl . 1975, em especial p. 58-77.

1 54 1 Francisco Carlos Teixeira da Silva


sumidores vizinhos. Belém, com seus núcleos abastecedores de
caráter local, ilustra bastante bem um dos mecanismos básicos das
flutuações do mercado, inclusive com a possibilidade de evoluir
em direção a uma crise. A diminuição da procura de um determi­
nado alimento - no caso as carnes - mesmo em áreas relativa­
mente pequenas, como Belém, promovia alterações acentuadas no
mercado, quando este se apresentava de forma especializada. Quan­
do a concorrência era causada pelo advento de um novo centro
produtor claramente local (como Marajó), as áreas tradicionalmente
fornecedoras deveriam, com graves prejuízos, buscar novas saídas,
visando, assim, compensar a demanda de um mercado até então
consolidado. Muitas das perdas de mercados, ou de suas reorga­
nizações, não eram definitivas. Existia, é bem verdade, a possibili­
dade, cíclica, de retomar o velho mercado, em virtude de crises de
produção no novo criatório, principalmente em razão de pestes ou
epizootias. Uma fonte única, como Marajó, tornava todo o sistema
de abastecimento vulnerável. Assim, os invernos rigorosos, por
exemplo, inundavam as "terras baixas" na Ilha, o que provocava
forte morticínio do gado. Nessas ocasiões, Parnaíba voltava a ocu­
par seu lugar de fornecedor, inclusive elevando seus preços, num
evidente mecanismo compensatório.
A este elemento aleatório na recuperação de mercados devemos
somar um outro fator: o crescimento demográfico. Nem sempre os
novos criatórios conseguiam acompanhar a expansão demográfi­
ca local, como em Belém no início da exploração intensiva da bor­
racha. No século XIX, o Pará, agora com Belém tornada metrópole
de toda a Amazônia, voltaria a ser abastecido por Parnaíba, com­
plemento ao gado de Marajó55• Em ambas as situações, a grande
experiência acumulada pelas antigas áreas de criação, bem como a
abundância de fatores de produção, permitiriam uma rápida re­
ocupação das velhas funções abastecedoras.
Uma situação diversa se dá quando surge um centro produtor
de caráter regional ou interregional. Enquanto Marajó era apenas
um núcleo local, a entrada do Rio Grande de São Pedro, entre 1 777
e 1 780, no mercado representou uma alteração estrutural perma­
nente. Núcleo de criação já tradicional, o Rio Grande - ao lado
dos Campos de Coritiba - mantinha-se, entretanto, por demais

55 Lima, Ely N. Belém e seus Núcleos Subsidiários. Rio de Janeiro: UFRRJ­


CPDA. Dissertação de mestrado. 1985, p. 120.

Pecuária, agricultura de alimentos e recursos naturais no Brasil-Colônia 1 55


afastado dos mercados tradicionais da pecuária sertaneja, em vir­
tude das dificuldades de transporte e de manipulação, para consti­
tuir-se em alternativa real. Assim, mantinha-se como núcleo abas­
tecedor das capitanias do centro, o Rio de Janeiro e Minas Gerais,
através de São Paulo.
A concorrência com os criatórios do Nordeste era quase nula.
Mas, a organização das charqueadas gaúchas em tomo de Pelotas,
iria alterar profundamente a participação de cada centro produtor
nos diversos mercados regionais. O Rio Grande se organizava como
centro especializado, com capacidade de atender mercados de bom
porte, distantes e em expansão. Nestas condições instaurava-se uma
real concorrência entre os centros produtores. Qualquer alteração,
mesmo leves flutuações, na demanda ou nas condições de produ­
ção poderia acarretar mudanças profundas na participação de cada
um nos mercados.
Ora, o elemento aleatório existia, em detrimento do Sertão. En­
quanto o gado do sul contava com melhores pastos e manejo mais
adequado, o gado do Sertão estava sujeito às secas periódicas.
Um levantamento das principais secas da região, entre 1 605 e
1915, nos mostra que os anos de 1 705, 1 711 e 1 715 foram anos de
seca; em 1 723-25 houve uma grande seca atingindo os sertões da
Bahia, Pernambuco e Piauí; em 1777-89, outra grande seca, seguida
de verdadeira calamidade, com a seca de 1 790-94, que atingiu todo
o Nordeste; mais uma vez deu-se o flagelo em 1805-1807. Descrições
coevas nos falam da perda dos pastos em 1 711 e 1 728, com criado­
res sendo obrigados a liquidar o que restava dos rebanhos, para
evitar a perda total. A maioria não conseguia realizar a travessia
até as feiras, que, por sua vez, feneciam por falta do que vender.
No mais das vezes, os currais eram totalmente esvaziados. Stu­
dart, ao descrever a seca de 1 777-78, nos fala que " . . . nesse ano ma­
nifestou-se uma seca, em conseqüência da qual ficou reduzido a
um oitavo o gado da capitania [Ceará ] e suas vizinhas"56•
Em três ocasiões no século XIX, as secas destruíram os plantéis
de forma a quase impossibilitar a retomada das atividades. Após
a seca de 1824-25, inúmeros currais no Sertão do Ceará , Rio Gran­
de do Norte e Piauí tomaram-se baldios; outras fazendas, como na

56 Ver Studart Filho, Carlos. Vias de comunicação do Ceará colonial. Re­


vista do Instituto Histórico do Ceará. Fortaleza, v. 51, p. 15-45. 1937.

1 56 1 Francisco Carlos Teixeira da Silva


Bahia, com a produção /ano de mil bezerros ficaram reduzidas a
vinte57• Na seca de 1 861, no Ceará, inúmeros currais e fazendas dei­
xaram de existir.
O Livro do Gado, da fazenda do Brejo Seco, no Rio de Contas,
nos dá uma perfeita visão do impacto da seca nas condições de
produção.

QuADR0 6
Bezerros nascidos na Fazenda do Brejo Seco, Bahia

Anos Bezerros
1 792 12
1 793 22 Ano de seca
1 794 29
1795 150
1 796 207
1 797 253
1 798 195
1 799 325
1800 233
1801 316
1 802 220
1803 291
1804 358
1805 198
1806 52
1807 72 Ano de seca
1809 84
1810 96
1811 68

A seca de 1806-7 produziu uma violenta queda no número de


crias nascidas, marcando o início da decadência do Brejo Seco (a
variação de ano para ano é devida ao longo período de gestação
das vacas). O poderoso Canguçu anotava, com parcimônia e estoicis­
mo sertanejo, no seu Livro de G�do: " . . . perdy 300 cabeças de gado
de criar com a seca". A permanência da seca, que durou até 1808,
iria compelir inúmeros fazendeiros a se desfazer das reses que res­
tavam - cerca de 150 animais no Brejo Seco, que foram vendidas
na feira de Maracás, e outros 183 bois, em Salvador.
Com a seca, quase se extinguiu a criação nos Sertões do Rio de
Contas.

57 Santos Filho, L. Op. cit., p. 227.

Pecuária, agricultura de alimentos e recursos naturais no Brasil-Colônia 1 57


Para recuperar o rebanho comprava-se animais novos, seja em
Minas Gerais, seja no Piauí. Para os grandes senhores, com fazen­
das diversificadas e crédito, havia sempre a possibilidade de re­
compor o plantel. O Parnaíba desempenhava um papel de monta
como reservatório capaz de fornecer matrizes nos momentos de
crise, graças a perenidade dos campos e dos pastos ribeirinhos (o
folclore registra: "meu boi morreu! - manda buscar outro lá no
Piauí"). Entretanto, para um número significativo de unidades
especializadas, em especial os produtores mais humildes, a seca
representava pura e simplesmente, a desaparição enquanto agen­
tes econômicos.
Tal como nas crises de subsistência, que no Agreste e na Zona
da Mata atingiam as roças de mandioca, as secas eram um fator
estrutural de crise; eliminavam periodicamente um determinado
número de unidades produtivas, as mais frágeis, de recursos mais
escassos e, ciclicamente, atingiam o próprio coração do sistema
produtivo, provocando, então, mudanças inesperadas. Nestas con­
dições, a capacidade de poupança, acumulação e reinvestimento
no interior do sistema eram seriamente limitadas58•
A grande seca de 1790-94 foi um destes momentos. Ao atingir
fortemente os criatórios cearenses, em especial o Jaguaribe e Icó,
deixaram as charqueadas de Aracati sem fornecimento de carne,
paralisando inteiramente suas atividades. Ocorre que, nesse mo­
mento, as charqueadas gaúchas estavam plenamente organizadas
e ocuparam rapidamente os mercados de Salvador e do Recife. Mes­
mo Parnaíba, aproveitando-se da crise no Ceará, ampliaria, em di­
reção a São Luís e Belém, seu raio de ação.
Quando, em 1 795, recomeçaram timidamente os abates em Ara­
cati, os mercados tradicionais do charque cearense já estavam ocu­
pados. A produção gaúcha chegara ao próprio Ceará. Por fim, a
concorrência gaúcha se fez sentir no Parnaíba, com o fechamento
de charqueadas entre 1 820 e 1827, também após uma série de du­
ras secas. As fazendas do Sertão do Jaguaribe, de Icó e de Inhamuns,
bem como ao longo do Parnaíba, jamais se recuperaram do golpe.
Poderíamos, assim, falar em duas formas de flutuações causa-

58 Para um debate sobre a noção de crise nas sociedades agrárias tradi­


cionais, em especial de Antigo Regime, · ver: Abel, W. Agrarkrisen und
Agrarkonjunktur. Hamburgo: Paul Parey. 1978, p. 13-27.

1 58 1 Francisco Carlos Teixeira da Silva


das pela ampliação da oferta: (a) uma circunscrita a pequenos mer­
cados locais, que poderiam, eventualmente, continuar comprando
marginalmente nos velhos centros fornecedores; (b) uma concor­
rência especializada, de porte interregional, resultante do surgi­
mento de outro centro produtor de grande raio de atuação.
A interveniência de secas, ou fortes invernos, poderia favorecer
um dos núcleos produtores, eliminando provisória ou permanen­
temente várias unidades produtivas do núcleo concorrente. Sem
este fator aleatório, a concorrência se daria, muito provavelmente,
em termos de qualidade e preços (vinculados aos custos e técnicas
de manejo e transporte). Com as secas, a retirada temporária de
núcleos atingidos poderia representar a perda permanente dos
mercados tradicionais. No caso de Aracati e Parnaíba, em função
do baixo nível técnico e da reduzida capitalização das fábricas, não
existia a possibilidade de uma retomada técnica do mercado (mo­
dernização, investimentos). Novamente, a pecuária nordestina, no
alvorecer do século XIX, restringir-se-ia às carnes-verdes.
O sistema, que chegou a ter porte quase continental, envolven­
do um amplo comércio atlântico (inclusive com a Á frica), foi, as­
sim, reduzido às suas dimensões regionais, perdendo, desta for­
ma, a oportunidade de integrar-se aos mecanismos interregionais
de produção de renda. Flutuações de mercados e secas continua­
riam sendo mecanismos básicos da crise da pecuária nordestina,
agora reduzida a um complexo regional, sofrendo a concorrência
de outros centros em suas próprias áreas produtoras.

Pecuária, agricultura de alimentos e recursos naturais no Brasil-Colônia 1 59


IV
O F ÍC I OS, MAN U FATU RAS E
C O M É RC I O I NTERNO
José Roberto do Amaral Lapa
Centro de Memória, U N ICAM P

O I NT E R I O R DA ESTRUTU RA

Embora o tema desta mesa-redonda associe, acreditamos que de


maneira pertinente, os ofícios e manufaturas ao comércio interno
do Brasil na economia colonial, vamos tratar em nossa comunica­
ção apenas do último componente - i.é, do amplo e complexo sis­
tema de troca (escambo), economia natural e compra e venda (eco­
nomia de mercado) - que cobria em extensão o território da Co­
lônia.
A circulação dos produtos naturais, agrícolas, semimanufatu­
rados e manufaturados, que ocorria em circuitos locais, vicinais,
regionais e até coloniais, deixa de lado pela sua explicitação, desde
logo, a idéia de prevalência de uma economia de autoconsumo fe­
chada ao nível da comunidade isolada, ou simplesmente depen­
dente na sua função pura e simples de suporte da grande lavoura
de exportação, latifundiária, monocultora e escravista, inteiramen­
te voltada para os mercados externos.
Dada a lógica, assim chamada, do Sistema Colonial, compreen­
de-se certo descaso da história econômica do Brasil em tentar recu­
perar esses circuitos penumbrados pelo comércio exterior, este sim
merecedor privilegiado das atenções de historiadores e economis­
tas. E isto pelo que significa em termos das mobilizações e inter­
venções do Estado, dos padrões de acumulação que estrutura, do
recrutamento, volume e qualidade da força de trabalho que requer,
do movimento do capital que absorve, do status social que oferece
à camada que o gerenciava, associada ou não a grupos estrangei­
ros, para não falarmos do sistema de transportes que estabelece e
das implicações de ordem social e cultural que envolve.
Contribuindo mais para esta preterição do seu estudo, havia ain-

O interior da estrutura 1 1 63
da a falta de consistência de um mercado interno de âmbito colo­
nial, cuja população escrava, como se sabe, tinha o seu poder aqui­
sitivo achatado ou inexistente, enquanto a população livre e pobre,
que representa em todas as regiões um percentual muito alto do
total de habitantes que se calcula a colônia tinha, parece ter sido
pouco expressiva como mercado consumidor.
Em outra oportunidade tratamos do tema, retomado em 1991,
sem que entretanto conseguíssemos avançar o desejável1, sobretu­
do diante das obras que fundamentaram nossas hipóteses, de au­
tores como Ciro Flamarion Cardoso, Maria Yedda Unhares, Akir
Lenharo, Roberto Borges Martins, Jacob Gorender e Antonio Bar­
ros de Castro, em livros que relacionamos na bibliografia final. O
que agora pretendemos, ao voltar ao tema, é abordá-lo diante de
algumas questões que nos escaparam naquelas oportunidades.
A primeira é um cotejo com o que ocorreu com o mercado inter­
no e o cmnércio colonial nas economias da América Hispânica, es­
tudadas por vários autores como Carlos Sempat Assadourian, E.
Arcila Farias, Heraclio Bonilla, Silvia Palomeque e outros, preocu­
pados em conhecer como ocorriam as relações econômicas vicinais
e interregionais. A sua composição em termos de produtos, o al­
cance do capital mobilizado, a apropriação do excedente gerado e
as implicações sociais e políticas dos grupos e camadas envolvidos
no seu trato têm sido assuntos estudados em profundidade por di­
versos autores. Embora guarde diferenças substantivas em relação
ao Brasil, a economia colonial nos países de origem hispânica desta
parte do continente apresentava aproximações e impulsos de de­
senvolvimento interno, que nos levam a acreditar na pertinência
de sua comparação ao nosso desenvolvimento colonial.
A regionalização espacial que definia a nossa economia colonial
e assegurava o seu secular desempenho com certo grau de autono­
mia em relação à grande lavoura de exportação, tem pontos em
comum com as economias regionais das colônias espanholas, em­
bora estas, naturalmente, acabassem por cumprir um papel diver­
so, desde que o processo de descolonização acabou por fragmentar
o império colonial hispânico, do que resultaria a formação de uns
tantos países independentes.

1 Lapa, José Roberto do Amaral. O Antigo Sistema Colonial. Coleção Pri­


meiros Vôos, vol. 8. São Paulo: Brasiliense. 1982; O Sistema Colonial.
Série Princípios, vol. 209. São Paulo: Á tica. 1991.

1 64 1 José Roberto do Amaral Lapa


Na verdade, no mesmo ano que publicamos o livrinho O Antigo
Sistema Colonial, saía uma coletânea de artigos do historiador ar­
gentino Carlos SempatAss á dourian, ambos trabalhos se desconhe­
cendo, mas abordando questões de interesse comum. Cruzamos
com Assadourian em vários encontros da Asociación de Historia­
dores Latinoamericanos y del Caribe - ADHILAC - sem que en­
tretanto essas oportunidades permitissem vencermos esse mútuo
desconhecimento.
Só agora, tantos anos passados, caiu-nos às mãos o seu livro El
Sistema de la Economia Colonial, graças à gentileza da professora
Maria Irene de Queiroz Ferreira Szmrecsányi, que nos emprestou o
seu exemplar, quando elaborávamos esta comunicação. Na leitura
dessa obra, verificamos como nossa caminhada, inspirada em au­
tores brasileiros, foi, de certa maneira, mas com pesquisas e alcan­
ce consideravelmente menores, paralela a de Assadourian na me­
dida do resgate do mercado interno como realidade econômica, ca­
paz de identificar circuitos de comércio insuspeitados pela historio­
grafia econômica predominante.
No caso da América Hispânica ressalte-se desde logo a projeção
e continuidade dos complexos de mineração de Potosi e Lima, de­
nominados por esse Autor de pólos de crescimento do mercado inter­
no, e que têm funções, em termos de bens e serviços, que podemos
aproximar de nossas áreas de mineração em Minas Gerais, Mato
Grosso e Goiás, estudadas por vários autores, referenciados na bi­
bliografia ao final deste texto.
Circuitos comerciais, a formação e atuação da classe de merca­
dores e sociedades mercantis, deslocamentos demográficos, circu­
lação monetária, flutuações regionais, montagem de um sistema
de transportes, incorporação do trabalho escravo indígena e afri­
cano, a prática do trabalho livre, são algumas questões ligadas ao
mercado interno examinadas na obra deAssadourian2, naturalmen­
te em escala diferente daquela em que ocorrem no Brasil, mesmo
porque as nossas pesquisas nessa direção, particularmente em ter­
mos quantitativos, ainda são tímidas.
Em todo caso, em ambas as economias verifica-se nas Américas
Hispânica e Portuguesa a vinculação comercial da população en-

2 Assadourian, Carlos Sempat. El Sistema de la Economia Colonial: Merca­


do Interno, Regiones y Espacio Económico. Lima: Instituto de Estudios
Peruanos. 1982, p. 20.

O interior da estrutura 1 1 65
tregue à mineração com setores outros de áreas absorvidas na
pecuária de corte e de transporte, na produção têxtil, mesmo que
em escala doméstica e é claro na subsistência de pequenos produ­
tores. E o que nos mostram essas performances, se não certo grau de
autonomia e desenvolvimento interno e de integração regional, que
se constrói contínua e significativamente sob o ponto de vista eco­
nômico e social, não deixando de ter certo alcance e atuação polí­
ticas.
É claro que esse comércio interno se faz com conexões ao comér­
cio europeu e intercolonial, este desenvolvido em dimensões que
abrangem praticamente todo o universo colonial, em termos ecumê­
nicos, pois se faz entre a América Portuguesa, América Hispânica,
África e Oriente. Ambos - comércio europeu e intercolonial -
contam também com estudos incluídos na bibliografia final.
Como o nosso tema - o comércio interno - é um tema como
dissem0s relativamente novo no conhecimento histórico brasileiro,
residindo muitas vezes o seu estudo muito mais em insinuações e
hipóteses, deduz-se que ainda reclama pesquisas exaustivas, uma
vez que as suas articulações atingem, como é natural, a produção e
o consumo, os transportes e as comunicações, o Estado e a iniciati­
va privada, a importação e as exportações.
Dessa maneira, para um programa de estudos de sua inserção
na economia colonial, acreditamos que sua viabilização está ainda
muito centrada em pesquisas que de certa maneira e num momen­
to preliminar deverão ser feitas em termos regionais. Entre outras
questões a serem abordadas, gostaríamos de apontar algumas de
maneira explícita, mas apenas mencionando-as sobretudo tendo
em vista que muitos participantes deste Congresso são mestrandos
e doutorandos em busca de temas para suas dissertações e teses . . .
Assim, a atuação dos grupos mercantis que s e formam e têm
ativa atuação interregional: o capital capital que levantam, os in­
vestimentos que fazem, o seu grau de organização e composição
com o Estado e outros setores; o crédito, a formalização e contabili­
dade dos negócios, as relações com as autoridades coloniais e me­
tropolitanas e os órgãos fazendários e fiscalizadores que aquelas
representam; as relações com produtores e consumidores, o alcan­
ce do seu domínio comercial, o transporte marítimo (de cabotagem),
fluvial e terrestre, seus fretes, origem e destino das mercadorias
transportadas, a operacionalidade do -fisco e o sistema tributário,
seu destino e redistribuição.

1 66 1 José Roberto do Amaral Lapa


A vinculação da subsistência e sua comercialização com a gran­
de lavoura de exportação e com os setores de importação, o desem­
penho de ambas nos períodos de crise e expansão. Nesse sentido,
as reações às flutuações dentro e fora da plantation. Até onde se
pode identificar uma unidade de produção no que diz respeito à
exportação e à subsistência, a regionalidade da economia, a espe­
cialização da produção agrícola, do extrativismo e da mineração
como pólos geradores de mercados consumidores de curta e longa
distância?
Quanto à produção, a comercialização de certos produtos em
termos do mercado interno é pouco conhecida. Assim acontece
com a mandioca, o milho, o açúcar, o trigo, o tabaco, o cacau - pa­
ra falarmos apenas de alguns - sendo que os três primeiros en­
tram na dieta alimentar frugal de amplas camadas da população
colonial, enquanto os demais atendem um mercado consumidor
de maior poder aquisitivo.
Também reclamam estudo o comércio de redistribuição, opera­
do em centros portuários e do Interior, a cancha empresarial dos
comerciantes do meio urbano, sobre os quais já dispomos de estu­
dos, que também vão arrolados na bibliografia final. Por sua vez, o
extrativismo com a madeira e as drogas do sertão cumpre longos e
penosos roteiros desde os centros produtores até os consumidores,
sem que tenhamos estudos sistemáticos que possam passar-nos uma
visão de conjunto.
A importantíssima questão do abastecimento urbano foi estuda­
da por Maria Yedda Unhares, motivando circuitos sobre os quais
pouco conhecemos, envolvendo o artesanato, a manufatura, os ser­
viços e o próprio comércio, quase todo legislado a partir do contro­
le das Câmaras Municipais. A vinculação urbano-rural e sua proje­
ção no mercado interno são temas, entre outros muitos, que perma­
necem em aberto.
Mas, vejamos como se processa essa articulação entre fornece­
dores e consumidores intermediados pelo comércio urbano estabe­
lecido e por um sistema de fornecimento baseado sobretudo nas
tropas de muares - que não representam apenas um sistema de
transporte de mercadorias, mas chegam a negociar com a própria
produção dos tropeiros ou então com as compras que fazem para
revenda e com os produtos que pegam em consignação para ven­
der nas praças que dependem do seu abastecimento.
Para referir-nos aos exemplos mais conhecidos, é suficiente ten-

O interior da estrutura 1 1 67
tar visualizar o que ocorreu com a sede da Corte, a cidade do Rio
de Janeiro, no primeiro quartel do século XIX. Com a transmigração
da Corte formou-se aí um mercado consumidor, cujo poder aquisi­
tivo justificava a montagem de um sistema de abastecimento que
cobria consideráveis distâncias desde os seus fornecedores que se
distribuíam por Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais, de onde des­
ciam gado em pé, porcos, galinhas, carneiros, toucinho, queijos, ce­
reais, tecidos grosseiros de algodão, incluindo ainda São Paulo e
Santa Catarina, que mandavam milho, feijão, arroz, trigo, cebola e
farinha de mandioca.
Esse elenco de produtos completava-se com hortaliças, peixes,
cuja rede de pequenos produtores também estava articulada com
o sistema de transporte, representado sobretudo pelas tropas de
muares que serviam a maior parte do território. Mas, esse é um
exemplo sobre o qual na verdade as pesquisas têm se concentrado
e despertado até polêmicas.
Vejamos outras áreas da Colônia, onde nem sempre o mercado
se urbanizou, permanecendo de certa maneira disperso, mas nem
por isso era desprezível pela sua demanda, antes justificando uma
empresa que se revelou excepcional no esforço do seu abastecimen­
to, cruzando - pelos rios e por terra - largas porções do território
com incrível variedade de cargas, capaz de satisfazer as necessida­
des primárias e secundárias de numerosos contingentes popula­
cionais com diferentes perfis de consumo. Referimo-nos às áreas
de mineração - Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso - todas so­
frendo um fluxo demográfico que se estendeu por quase um sécu­
lo, caracterizado pelo volume e heterogeneidade das categorias so­
ciais que o compunham, bem como ainda pelo rígido controle fis­
cal que se abatia sobre o comércio que ali era praticado, visando
dificultar o contrabando.
No seu atendimento mobilizaram-se centenas de pequenos pro­
dutores, roceiros, sitiantes, criadores de gado, artesãos e oficiais
mecânicos, que ativaram um comércio permanente, de largo alcan­
ce econômico, social e até político. Mas houve ainda outros pólos
de consumo, no litoral e no interior da Colônia, que atraíram para
o seu abastecimento o concurso da economia de subsistência.
Este foi o caso de Salvador (Bahia), para onde se dirigiam pro­
dutores e transportadores levando milho, feijão, farinha, açúcar, car­
ne-seca, peixes salgados e secos, vindos do rio São Francisco e de
capitanias como o Ceará, Pernambuco, Porto Seguro, Sergipe d'El

1 68 1 José Roberto do Amaral Lapa


Rei e até de São Paulo, que mandava carne de porco conservada
em barricas cheias de banha, bem como farinha de mandioca. Ao
que tudo indica, esse fornecimento era regular e não esporádico, o
que naturalmente assegurava aos roceiros e / ou transportadores
sistematizar suas atividades, girar o capital, planejar a continuida­
de em termos de reprodução em sua propriedade rural ou empresa
urbana.
Essa funcionalidade do comércio interno com certeza teve um
papel que não pode ser ignorado na unidade da Colônia e do futu­
ro país independente. O abastecimento, percorrendo muitas vezes
grandes distâncias, levava produtores, transportadores e comer­
ciantes a negociarem, ofertando os seus produtos diretamente aos
consumidores, através das feiras e pontos de venda nas cercanias
ou no próprio perímetro urbano das cidades.
Se o caso do Rio de Janeiro como capital da Colônia, que acabara
de receber a corte e cerca de 10 mil pessoas, apresentando assim
um público consumidor exigente e de bom poder aquisitivo, acos­
tumado a um padrão de vida bastante superior àquele que se vivia
na Colônia, constituiu um mercado certo para o comércio interno,
estavam no mesmo caso as áreas de mineração e a antiga capital,
Salvador, cidade que também concentrava um mercado atraente.
Vejamos porém o que acontecia com as demais áreas da Colônia,
situadas à margem da grande lavoura e dos fluxos demográficos
mais acentuados.
Para a Colônia do Sacramento, no extremo Sul, seguia atrdvés
do porto de Paranaguá, a farinha de mandioca de São Paulo, en­
quanto que do Rio Grande do Sul, com o mesmo destino, temos o
fornecimento de trigo. Na Amazônia, a produção das chamadas
"drogas do sertão" alimentava ativo extrativismo, ao que se acres­
centava regular produção de cacau, café, algodão, cana-de-açúcar
etc., exportando-se para Mato Grosso e Goiás erva-doce, redes,
sabão, carimã, marmelada, feijão, açúcar, carne-seca, aguardente,
manteiga, cacau, salsa, baunilha, jalapa, resina de assafétida, sal­
saparrilha, cravo, "pixeri", borracha, gomas etc.
De Mato Grosso, em toma-viagem, através de complexo siste­
ma de navegação fluvial, seguiam para o Pará e Amazonas: cravo­
do-Maranhão, copaíba, alemi, almécega, sangue-de-drago, madei­
ras diversas, ervas cromáticas, sal (dos rios), açúcar, tecidos gros­
seiros de algodão, artesanato indígena, polga de tamarindo, além
de naturalmente ouro.

O interior da estrutura 1 69
Acrescente-se que os centros mineradores da Colônia atraíam
ainda produtos das colônias espanholas e das colônias portugue·­
sas da África e da Ásia, no que se incluíam produtos agrícolas, dro­
gas e manufaturas.
Do exposto verifica-se que no que podia ser reconhecido como
mercado interno na Colônia havia suficiente regularidade de con­
tatos entre compradores e vendedores para afetar as condições de
compra e venda da população que dependia desse sistema. Esse
mercado era disperso e se efetivava quer através dos estabeleci­
mentos localizados nas praças urbanas, quer diretamente nas por­
teiras das propriedades rurais, nos bairros rurais, povoados, vilas e
às vezes até em consumidores isolados, visitados periódica e regu­
larmente pelos que negociavam de maneira itinerante. Atendendo
a esse mercado estruturou-se o comércio interno, trocando valores
e / ou produtos em busca de lucro e com isso nutrindo os meios de
transporte e comunicação e o intercâmbio cultural das comunida­
des por ele atingidas.

I ndicações bibliográficas

Andrade, Rômulo Garcia de. Burocracia e Economia na Primeira Metade do


Século XIX (a Junta do Comércio e as Atividades Artesanais e Manufatureiras
na Cidade do Rio de Janeiro 1 808-1 850). Niterói: Universidade Federal
Fluminense. Dissertação de mestrado. 1980.
Arruda, José Jobson de Andrade. O Brasil no Comércio Colonial. São Paulo:
Á tica. 1980.
Castro, Antônio Barros de. A Organização Social e Econômica da Escravidão.
Campinas: IFCH-Unicamp. 1975.
Ellis, Myriam. Contribuição ao Estudo do Abastecimento das Á reas Mineradoras
do Brasil; Século XVIII. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultu­
ra. 1961 .
Gorenstein, Riva. O Enraizamento de Interesses Mercantis Portugueses na Re­
gião Centro-Sul do Brasil: 1 808-1 822 (uma contribuição ao estudo de estru­
turação da sociedade da Independência). São Paulo: USP. Dissertação de
mestrado. 1978.
Lapa, José Roberto do Amaral. Economia Colonial. São Paulo: Perspectiva.
1973.
Lenharo, Alcir. As Tropas da Moderação. São Paulo: Símbolo. 1979.
Linhares, Maria Yedda & Silva, Francisco Carlos Teixeira da. História da
Agricultura Brasileira, Combates e Controvérsias. São Paulo: Brasiliense.
1981 .
--. História Política do Abastecimento. 2 vols. Brasília: Binagri-Ministério
da Agricultura. 1979.

1 70 1 José Roberto do Amaral Lapa


Lisanti, Luís. Negócios Coloniais (uma correspondência comercial do século
XVIII). 5 vols. Brasília: Ministério da Fazenda-União Editorial. 1975.
Lobo, Eulália Maria Lahmey�r. "O comércio atlântico e a comunidade de
mercadores no Rio de Janeiro e em Charleston no século XVIII". Revis­
ta de História, n.º 10. 1975.
-- . "Estudo das características socioprofissionais, dos salários e do cus­
to da alimentação no Rio de Janeiro de 1820 a 1930". Revista Brasileira
de Economia, n.º 27. 1973.
Martinho, Lenira Menezes. Organização do Trabalho e Relações Sociais no In­
terior das Firmas Comerciais do Rio de Janeiro na Primeira Metade do Século
XIX. São Paulo: FFCH. Dissertação de mestrado. 1977.
Martins, Roberto Borges. Growing in Silence: the Slave Economy of Nineteenth­
Century Minas Gerais, Brazil. Tennessee-Nashville. Dezembro, 1980.
--
. A Economia Escravista de Minas Gerais no Século XIX. Belo Horizonte:
Cedeplar / Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Federal de
Minas Gerais. 1980.
Novais, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial 1 777-
1 808. São Paulo: Hucitec. 1979.
Palomeque, Silvia. "Loja en el Mercado Interno Colonial". Hisla, n.º 1 . Peru,
Lima. 1983.
Pantaleão, Olga. "Aspectos do comércio nos domínios portugueses no
período de 1808-1831". Revista de História, n.º 41 . 1960.
Petrone, Maria Thereza Schorer. Comércio e Tributações de Gado na Província
de São Paulo, Segundo a Documentação Particular de Antonio da Silva Pra­
do, 1 81 8-1 830. São Paulo: FFCH/USP. Tese de livre-docência. 1974.
Santos, Corcino Medeiros dos. Relações Comerciais do Rio de Janeiro com Lis­
boa 1 763-1 808. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1980.
Souza, José Soares. "Aspectos do comércio do Basil e de Portugal, no fim
do século XVIII e começo do século XIX". Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, n.º 289. 1970.
Zemella, Mafalda P. O Abastecimento da Capitania de Minas Gerai:; no Século
XVIII. São Paulo: Hucitec. 1990.

O interior da estrutura 171


Maria Helena Ochi Flexor
Escola de Belas Artes, U FBA

O F ÍC I OS, MAN U FATU RAS E COM É RC IO

No Brasil, d o século XVI ao início d o XIX, os ofícios exercidos


por artesãos apareciam sob a denominação de ofícios mecânicos,
excluindo os pintores, escultores, engenheiros e "arquitetos". O es­
tudo desse grupo de profissionais é importante, pois a ele se deve
quase toda a atividade artesanal e comercial de cada vila ou cidade
no período.
Há alguns anos foi feito um estudo sobre os oficiais mecânicos
da cidade do Salvador1• Posteriormente, realizou-se pesquisa so­
bre o mesmo assunto na cidade de São Paulo2• O confronto e com­
paração das duas regiões permite visualizar as peculiaridades pró­
prias desses espaços geográficos e não deixam generalizar determi­
nadas constatações para toda a realidade brasileira daquela época
e indica a necessidade de estudo sistemático acerca de "Minas Ge­
rais, Rio de Janeiro, Pernambuco etc.
Os oficiais agrupavam-se em "corporações", "associações" ou
irmandades3 e submetiam-se a certa burocracia para poder traba­
lhar. Se a burocracia normativa para o exercício de ofícios não foi
muito respeitada em Salvador, praticamente inexistiu em São Pau-

1 Flexor, Maria Helena. Oficiais Mecânicos na Cidade do Salvador. Salvador:


Prefeitura Municipal, 1974. Idem. O Mobiliário Brasileiro - Bahia. São
Paulo: Espade. 1978.
2 Idem. Oficiais mecânicos. ln: O trabalho livre em São Paulo - século XVIII.

Salvador, 1984. Tese de doutoramento em História Social apresentada


à FFLCH da USP.
3 Colocamos "corporações" e "associações" entre aspas por terem sido

informais, sem estrutura regimental rigorosa.

Ofícios, manufaturas e comércio 1 73


lo. A organização administrativa era a mesma, mas as condições
políticas, sociais, econômicas, geográficas etc., criaram mentalida­
des, atitudes e situações diversas. Os paulistas nem fizeram uma
primeira tentativa para se organizar em "corporações". Beyer fez
uma referência bastante curiosa em relação a isso, no início do
século XIX. Dizia ele que o farmacêutico fazia as vezes de médico,
mas " . . . de seus armários distribuem Deus sabe o que, porque pode-se
comprar delles ferraduras com a mesma facilidade que um ferreiro vende
vomitórios, e seguese d' aqui que ainda não existem as associações de
officios "4• Em 1638, a Câmara de São Paulo já requeria que se "pu­
sessem cobro nesta vila para que os oficiais alfaiates e sapateiros usem de
seus ofícios e não de vendedeiros e que haja vendedeiros e taverneiros sepa­
rados "5. No início do século XIX o problema persistia.
O fato de não se terem organizado em "corporações", "asso­
ciações" ou irmandades de ofícios em São Paulo não exclui a idéia
da existência de oficiais mecânicos nessa região. Existiram e, evi­
dent�mente, a manutenção de monopólios e as proibições de exe­
cução de certas manufaturas por parte de Portugal permitiram,
forçosamente, apenas o desempenho das atividades mecânicas
essenciais.
A organização dos ofícios dava-lhes força, porque tinham repre­
sentação na Câmara, através do Juiz do Ofício e Mesteres, desde
que não podiam, em princípio, ocupar os cargos da edilidade, nem
tinham acesso direto às sessões. Existia esse tipo de representação
em Lisboa, Porto, Evora e Bahia por serem cidades privilegiadas.
Dentro da estrutura lusa, para facilitar a resolução das causas e
seguir o exemplo da Casa dos 24 de Lisboa, que não permitia a
multiplicação de Juízes do Povo e Mesteres, os mecânicos eram
agrupados por afinidade de atividade, nem sempre muito lógica,
respondendo um ofício como "cabeça" do grupo e os demais eram
considerados "anexos"6• Os paulistas não se organizaram indican-

4 Beyer, G. Ligeiras notas de viagem do Rio de Janeiro à capitania de São


Paulo, no Brasil, no verão de 1813. Revista do Instituto Histórico e Geo­
gráfico de São Paulo, n.º 12. São Paulo, 1908, p. 287.
5 Arquivo Municipal de São Paulo. Atas da Câmara de São Paulo. São Pau­
lo: Prefeitura Municipal de São Paulo, v. 4, p. 380-1 . Nas próximas no­
tas serão denominadas Atas da Câmara de São Paulo.
6 Vide Flexor, M. H. Oficiais mecânicos . . . , p. 15-6; Atas da Câmara de Sal­
vador, 1697-1 702, L. 24, f. 83v-86v, ms; Langhans, Franz-Paul. As Cor-

1 74 1 Maria Helena Ochi Flexor


do o cabeça e anexos dos ofícios, nem tiveram Juiz do Povo e Mes­
teres. Quando muito, apresentavam-se socialmente agrupando os
componentes de uma mesma atividade.
Em Salvador, os Juízes do Povo e Mesteres foram criados nos
meados do século XVII (1641 )7. A Carta Régia de 25 de fevereiro de
1713 extinguiu-os8 a pedido da própria Câmara de Salvador. Isto
porque eles começaram a interferir nos negócios da Câmara e a
opinar, por exemplo, acerca dos preços dos gêneros em geral, dos
impostos, e a lutar pelos direitos dos brasileiros, chegando até a
fazer aprovar a proibição da venda e uso da aguardente, não colo­
cada em prática. Foram acusados de conspirar contra a Câmara, o
Governo Geral e até contra o Rei. Como representantes dos grupos
de artesãos restaram apenas o Juiz e Escrivão do ofício.
A partir da abolição dos Juízes do Povo e Mesteres na Bahia,
quando os oficiais mecânicos queriam agravar contra a Câmara,
deviam fazê-lo por meio do Requerente dos Auditórios, como as
demais pessoas, não tendo o Juiz do ofício acesso direto à justiça do
Juiz Ordinário.
Em Salvador, os oficiais mecânicos chegaram a ocupar alguns
cargos, cuja função não intervinha nos problemas de primeiro inte­
resse dos camaristas, como almotaces, quadrilheiros, afiladores de
pesos e medidas9• Ao lado dos engenheiros, existiam sempre peri­
tos de carpinteiro e pedreiro com a função de colaborarem na cate­
goria de "mestres peritos" nos arruamentos, alinhamentos, medi­
ções, vistorias, avaliações das obras públicas e particulares10•
O espírito paulista de não se fixar ao solo, fruto de diversos fato­
res, não permitiu a organização da infra-estrutura da vila, e depois
cidade de São Paulo, tão rapidamente e da mesma forma como da
primeira capital do Brasil11• Por isso mesmo, a participação dos ofi-

porações dos Ofícios Mecânicos. Lisboa: Imprensa Nacional, 1943, v. 1 .


7 Flexor, M . H. Op. cit., p. 9-10.

8 Prefeitura Municipal do Salvador. Cartas do Senado a sua Majestade, 1 710-

1 745. L. 181, f. 12, ms.


9 Atas da Câmara de São Paulo, v. 1 ., p. 327; v. 3, p. 272; v. 4, p. 33-4.
1 0 Flexor, M. H. Op. cit., p. 39.

1 1 Idem. Os Núcleos Urbanos Planejados do Século XVIII: Porto Seguro e

SãoPaulo. Salvador: Centro de Estudos Baianos, 1989. Universidade


Federal da Bahia, p. 135.

Ofícios, manufaturas e comércio 1 1 75


ciais mecânicos paulistas no governo da Câmara foi uma realidade
até meados do século XVII, mais ou menos, não sob a forma de re­
presentação, mas ativamente como oficiais do próprio Senado ou
como funcionários, gozando do mesmo prestígio e privilégios que
os demais componentes da sociedade paulista12•
Alguns oficiais mecânicos foram tirados de seus postos muito
mais pelo seu estado de pobreza que devido ao ofício que exer­
ciam 13. Nas vilas de menor porte, essa participação efetiva conti­
nuou a registrar-se até o século XIX. Aguns dos "famosos bandei­
rantes" eram oficiais mecânicos na sua origem. Foi o caso de
Bartolomeu Bueno, conhecido como o Velho, oleiro que, em 1587,
era juiz do ofício de carpinteiro e afilador da Câmara14•
Aqui deve-se esclarecer que era determinado pela Ordenação
lusa os homens de "nação" e os oficiais mecânicos não poderem
ocupar serviços públicos, porque as ocupações destes últimos eram
considern.das "desprezíveis" ou "vís". Alguns autores transplan­
taram o mesmo critério para a Colônia. Entretanto, verifica-se não
ser verdadeira, principalmente em São Paulo, onde os artesãos par­
ticiparam, como se disse, diretamente da administração pública.
Vê-se isso por um depoimento de Morgado de Mateus, que falava
em "desprezadas" e não "desprezíveis" ocupações. Dizia respeito
ao abandono dos ofícios e não que os ofícios eram marca de des­
prezo social15• Evidentemente, não exercê-los dava o almejado "pres­
tígio social". Em 1639, Antonio Alves Couceiro, que usava do ofício
de seleiro, e juiz do dito ofício, "porquanto ele era um homem velho e
tinha bens bastantes para poder sustentar-se sem usar do dito oficio para
gozar de honras, liberdades dos homens nobres, desistia do dito oficio e do
ju iz do oficio e mais dele não queria usar em tempo algum "16• Ao contrá­
rio, em 1648, Francisco de Gaia foi eleito procurador da Câmara e

12 Atas da Câmara de São Paulo, v. 1, p. 298-9, 304-5; v. 2, p. 11, 18, 27, 145,
271, 438; V. 3, p. 159, 161; V. 5, p. 20, 57.
13 Departamento de Arquivo do Estado de São Paulo. Documentos Inte­
ressantes para a História e Costumes de São Paulo. São Paulo: Secretaria de
Cultura, Esportes e Turismo, v. 76, p. 83-4. Nas próximas notas serão
denominados Documentos Interessantes.
14 Atas da Câmara de São Paulo, v. 1, p. 316, 330.
15 Documentos Interessantes, v. 19, p. 402. .
16 Atas da Câmara de São Paulo, v. 4, p. 440.

1 76 1 Maria Helena Ochi Flexor


"se escusava do dito cargo por razão de ser oficial de alfaiate e que estava
trabalhando por seu ofício " 17• Carecendo de habitantes, não podiam
os paulistas dar-se a discriminações.
As generalizações têm levado alguns historiadores a ter uma idéia
bastante distorcida dos oficiais mecânicos como aquela de seu cor­
po ser constituído, em Salvador, por exemplo, em sua maioria só
de negros e mulatos sem possibilidade de ascenção social. Buscan­
do a documentação específica desses artífices, verificou-se que al­
gumas atividades eram quase que exclusivamente exercidas por
brancos e outras só por negros. O mesmo engano é cometido em
relação a São Paulo.
Com a sociedade paulista em vias de organização, a partir do
século XVIII, apareceram questionamentos quanto à posição do
oficial mecânico nessa sociedade. Pedro Taques foi um dos apolo­
gistas da degradação do trabalho manual, obscurecendo, em sua
"Nobiliarquia Paulistana", o passado de muitos paulistas (inclusi­
ve de seu próprio avô), que tinham sido oficiais mecânicos18.
Aqui se deve realçar que, nas duas regiões, as tropas de Solda­
dos Auxiliares tinham privilégios iguais aos das Tropas Pagas19.
Esses privilégios, para o quadro de oficiais, ultrapassavam aqueles
concedidos aos Oficiais da Câmara, justamente para que os homens
úteis servissem nas tropas e não buscassem prestígio social e políti­
co participando apenas da administração municipal. Quando o Rei
concedeu esses privilégios, diz um documento, "lhe foi presente, que
aos referidos Auxiliares se lhes fazia indispensável viverem dos offcios
mecânicos "2º. Deve-se ressaltar que os Auxiliares não recebiam sol­
do e deviam sobreviver de suas ocupações civis e, entre elas, as de
oficiais mecânicos. Em Salvador e em São Paulo, encontraram-se
vários Auxiliares graduados brancos dedicando-se aos ofícios me­
cânicos21 .
Tanto existiam artesãos de maiores, quanto de menores posses.

17 Idem, v. 5, p . 324. Deve-se lembrar que o cargo municipal não era re­
munerado.
s
1 Leme, Pedro Taques de A. P. Nobiliarquia Paulistana, Histórica e Genea-
lógica. 5.ª ed. São Paulo: ltatiaia /Edusp. 1960, 3 v.
19 Flexor, M. H. O. O Trabalho Livre .. , p. 17-22.
.

20 Documentos Interessantes, v. 81, nota 8, p. 137.


21 Flexor, M. H. Oficiais Mecânicos . , p. 40.
. .

Ofícios, manufaturas e comércio 1 1 77


Seu posicionamento dentro da estrutura social baiana e paulista
deve ser reanalisado. Há referências classificando-os socialmente
como proletários e operários22, burgueses23, classe média, "povo
miúdo, raia miúda", usando a denominação lusa, bem como gente
de nível inferior ou equiparações de consumo equivalentes à dos
escravos urbanos.
Encontraram-se inventários e testamentos de oficiais mecânicos
negros, e pardos forros que tinham posses, determinadas pela pre­
sença em seus bens não só de objetos de ouro e prata, como tam­
bém objetos e roupas importados e, principalmente, dinheiro e dí­
vidas que demonstram terem tido crédito na praça24 que, na época,
determinava prestígio social. Seria um contrasenso colocá-los na
"classe inferior", ou equipará-los aos escravos, quando tinham
melhores condições que alguns de seus vizinhos, ditos de classe
social mais alta, pelo fato destes serem brancos, livres e se dedica­
rem a uma outra atividade.
Os mecânicos também participaram de irmandades religiosas,
alguns chegando a compor a mesa, o que indica um posicionamento
de consideração social25• Pertenceram a diversas irmandades, já que
não possuíam irmandades específicas, como a de São José, por exem­
plo, da qual faziam parte os carpinteiros baianos26•
Tanto na Bahia quanto em São Paulo, brancos, mulatos e negros,
ricos e pobres exerciam ofícios mecânicos. Na Bahia alguns ofícios
eram ocupados pelos brancos e outros quase que essencialmente

22 Ruy, Affonso. História da Câmara Municipal da Cidade do Salvador.


Salvador: Câmara Municipal do Salvador. 1953, p. 31, 1 77, 181, 188.
Pessoalmente, defendo a tese de que a posição social, no período colo­
nial, era dada pelo prestígio social, e não pelos bens materiais.
23 Azevedo, Fernando de. A Cultu ra Brasileira; Introdução ao Estudo da
Cultura no Brasil. 4.ª ed. Brasília: Universidade de Brasília. 1963, p. 31.
Col. Biblioteca Básica Brasileira, 41.
24 Divisão de Arquivo do Estado de São Paulo. Inventários e Testamen­
tos Não-Publicados, 1777-1780, n. de ordem 554, ex. 77.
25 Ortamann, A História da Antiga Capela da Ordem Terceira da Penitência
de São Francisco de São Paulo. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e
Saúde. 1951, p. 66-7. Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Na­
cional, 16.
26 Flexor, M. H. Op. cit., p. 43-4; Arquivo · Ultramarino de Lisboa, Doe.
1 .283, ms.

1 78 1 Maria Helena Ochi Flexor


pelos mulatos e negros27• Em São Paulo os brancos predominaram
como ferreiros e oleiros e os mulatos nos ofícios de alfaiates, car­
pinteiros e sapateiros e os negros no de pedreiro28•
Pelos cálculos de Sérgio Buarque de Holanda, vê-se que, em 1765,
os maços de população mostram que 75% dos mecânicos existen­
tes em São Paulo eram brancos, e 18% negros e mulatos, ao passo
que os restantes, isto é, 7%, figuravam como "bastardos" (mestiços
de índios e brancos). Pouco mais de meio século depois, quando
a lavoura canavieira estava em seu auge, as proporções mudam:
60% dos "mecânicos" recenseados nos maços de população consti­
tuíam-se agora de pretos e pardos. Os bastardos já não são mencio­
nados nos arrolamentos, talvez porque tinham sido assimilados
pelos brancos, ou porque se confundiam com os pardos29•
O número maior de escravos negros e mulatos, ocupados nos
ofícios mecânicos e que os exerceram, aparece no século XIX, quan­
do os poderes da Câmara já não tinham o controle dos que ingres­
savam nas profissões mecânicas e as Irmandades profissionais não
possuíam mais sua antiga organização rígida ou então haviam de­
saparecido. Grande parte dos escravos oficiais mecânicos, além de
trabalhar para seus amos, eram alugados, rendendo aqueles o jor­
nal contratado. O maior número de oficiais mecânicos escravos se
concentrava nos engenhos. No século XIX, a indústria estrangeira
começou a invadir o mercado nacional, o mesmo se dando com os
artífices ingleses, franceses e italianos.
Também os índios aprendiam ofícios. Em casos específicos era
interditado o ensino de ofícios a índios. Em 1578 proibiu-se em São
Paulo a Bartolomeu Fernandes, ferreiro, ensinar a um índio o seu
ofício "porque era grande prejuízo da terra "30• Já em Porto Seguro, nos
meados do século XVIII, obrigou-se a se alocar os meninos índios
em casas de oficiais mecânicos para separá-los da fanu1ia, para que

27 Idem, p. 37-40.
28 Rabelo, Elizabeth O. Os oficiais mecânicos e artesanais em São Paulo
na segunda metade do século XVIII. Revista de História, São Paulo, n.
55, V. 112, p. 586. 1977.
29 Buarque de Holanda, Sérgio (pref.). ln: Queiroz, Suely R. Reis de. Es­
cravidão Negra em São Paulo, um Estudo das Tensões Provocadas pelo Escra­
visno no Século XIX. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro/José
Olympio. 1977, p. xiii. Documentos Brasileiros, 176.
30 Atas da Câmara de São Paulo, v. 1, p. 118-9.

Ofícios, manufaturas e comércio 1 79


não continuassem a falar a língua nativa, para que aprendessem
ofícios e se "civilizassem"31 •
Um componente importante da sociedade paulista, o agregado,
exercia em muitos casos a atividade mecânica, ganhando sua pró­
pria subsistência. Nem todos os agregados, entretanto, exerciam os
ofícios mecânicos, pois, sabe-se que podiam ser agregados de vá­
rios tipos, dependendo da relação que tinham com o núcleo fami­
liar que os abrigava32•
O trabalho mais duro e pesado como, por exemplo, o de serrar
madeiras ou transportá-las, era deixado aos escravos e índios. Os
índios trabalhavam como serradores, tanto nas obras públicas, quan­
to nas particulares, e eram considerados bons no ofício.
É difícil avaliar-se o percentual dos mecânicos em relação às
outras atividades. Eram, entretanto, em grande número, principal­
mente na cidade, tendo em vista que ocupavam o segundo e tercei­
ro lugares dentro das profissões que apareciam nas capitais de São
Pau1'.> e da Bahia na segunda metade do século XVIII.
As principais ocupações, grosso modo, encontradas em São Pau­
lo, eram as de alfaiate, sapateiro, ferreiro e, depois carpinteiro. Tra­
tava-se das profissões, então indispensáveis e constantes. Devido
a inúmeros fatores, outras ocupações apareceram no início do po­
voamento, e depois desapareceram, por serem desnecessárias, como
as de oleiros e anzoleiros, por exemplo. Em contrapartida, devido
ao desenvolvimento de outras atividades - como a mineração do
ouro, apareceu e aumentou o número de outras ocupações pró­
prias de uma sociedade mais estruturada. Posteriormente, apare­
ceram atividades ligadas a uma sociedade já mais sofisticada, sem
ser, no entanto, luxuosa - como a de cabeleireiros, no século XVIII,
tanto em São Paulo como na Bahia.
Os ourives de São Paulo apareciam sempre na cidade e nas vilas
- sendo que a maioria ia para Minas Gerais - entrando em cena
mais ou menos a partir de 1610, mantendo-se até meados do sécu­
lo XVIII em atividade crescente. A Carta Régia que proibiu o ofício
de ourives, e que mandou fechar todas as tendas de ourivesaria,
data de 30 de junho de 1 766, justamente a década em que desapa­
recem do cenário paulista, ou, pelo menos, os documentos da Câ-

31 Flexor, M. H. O. Os Núcleos Urbanos . . . , p. 10-2.


32 Idem. Trabalho Livre . , v. 2, p. 431-2.
. .

1 80 1 Maria Helena Ochi Flexor


mara não falam mais a seu respeito. Os únicos admitidos daí por
diante eram os que trabalhavam oficialmente para o Governo. De­
sapareceram dos registros, mas, evidentemente, continuaram a tra­
balhar clandestinamente33.
Deve-se notar, em São Paulo, a falta de oficiais seleiros, can­
galheiros e corrieiros, desde que a criação e comércio de gado e
as tropas tiveram importância vital na vida econômica paulista.
Apareciam em número pouco significativo apenas em Sorocaba,
ponto para onde convergiam as tropas vindas do Sul. Provavel­
mente, o material necessário para a montaria vinha de outras par­
tes e era somente comercializado em São Paulo.
Não existiam em terras paulistas notícias de alguns oficiais con­
tados entre os baianos como: palmilhadores, botoeiros, alvineos,
confeiteiros. Os produtos elaborados por eles vinham de Portugal
ou eram, em alguns casos, de execução caseira. Por outro lado, exis­
tem referências freqüentíssimas, além de tecelões, a oleiros,
louceiros, balaieiros, chapeleiros, fazedores de peneiras e cerieiros
que executavam obras de extrema necessidade para o uso cotidia­
no. Algumas atividades, entre 1560 e 1 770, aparecem esporadica­
mente representadas por um ou dois indivíduos. Nesse período,
tiraram licença na Câmara, pelo menos de acordo com os registros,
um latoeiro, dois espadeiros, um caldeireiro, um marceneiro, um
cutileiro, três sirgueiros ou passamaneiros e um torneiro.
Nas duas regiões os barbeiros aparecem em maior número no
período anterior a 1700. Deve-se dar atenção a esse oficial mecâni­
co devido às atividades que exercia.
A cirurgia foi, durante séculos, considerada como indigna dos
físicos, exercida por gente de baixa condição social, por ser ofício
manual, diz Lycurgo Santos Filho34 e, principalmente porque en­
volvia sangue. O barbeiro, em muitos lugares, e especialmente em
São Paulo, fazia as suas vezes, bem como as de médico e tiraden­
tes35. Além disso, ensinavam música.

33 Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Catálogo de Do­


cumentos sobre a História de São Paulo existentes no Arquivo Histórico Ul­
tramarino, de Lisboa. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacio­
nal, v. 6, p. 162.
34 Santos Filho, Lycurgo. História Geral da Medicina Brasileira. São Paulo:
Hucitec /Edusp. 1977, v. 1, p. 63, 291-2.
3s Atas da Câmara de São Paulo, v. 2, p. 27.

Ofícios, manufaturas e comércio 181


Os oficiais mecânicos tinham atuação em sua vila ou cidade, sem
manter contato, a não ser de amizade, com aqueles de outros luga­
res. A mudança de vila, ou de cidade, implicava no dever de regis­
trar os documentos na nova Câmara, prestar juramento, pagar li­
cença e prestar fiança para exercer o ofício naquele novo lugar.
Hierarquicamente, encontravam-se em São Paulo o mestre, o
oficial, os aprendizes e serventes, enquanto na Bahia existiam o
mestre, o oficial, os aprendizes e jornaleiros, equivalentes aos ser­
ventes paulistas. Com exceção destes últimos, os demais podiam,
e deviam, prestar exames para galgar os títulos superiores.
As condições para o exercício da profissão - como abertura de
lojas ou tendas - eram impostas pela Câmara (cargas, licenças, fian­
ças) . As condições de exploração das atividades cabia também a ela
(regimentos) e a fiscalização dos preços era feita pela Câmara e pelo
povo, que tinha direito de acusar os infratores (posturas, correições,
acusações). Durante o período colonial, houve a figura do "acusa­
dor" que desempenhava o papel de fiscal da sociedade. No caso
dos ofícios mecânicos, a multa resultante das infrações era dividi­
da: metade para as obras do Conselho e metade para o acusador36.
Segundo o procedimento luso, os mecânicos deviam realizar
anualmente, em data mais ou menos fixa, as eleições para Juiz e
Escrivão de cada ofício. Estes oficiais tinham como função não ape­
nas examinar os aprendizes e oficiais que quisessem alcançar um
grau superior, mas, também, zelar pelos interesses da profissão,
tanto sob o ponto de vista administrativo, quanto político, econô­
mico, social, material e mesmo espiritual.
Ao contrário do que sucedia em Salvador37, o controle dos Juízes
e Escrivães de ofícios sobre os oficiais mecânicos em São Paulo foi
precário, além de não proteger devidamente os interesses de seus
ofícios. Com essa função, raramente os Juízes de Ofício paulistas
tomaram a frente de uma luta quando necessário. Quase sempre,
pediam demissão do cargo quando uma situação mais vexatória se
apresentasse exigindo sua atuação38• Tinham atitudes diversas das
mulheres-padeiras que, com freqüência, desafiavam as autorida­
des para sustentar suas reivindicações.

36 Idem, v. 3, p. 162.
37 Flexor, M. H. Op. cit., p. 25-9.
38 Idem. Trabalho Livre . , v. 2, p. 232.
. .

1 82 1 Maria Helena Ochi Flexor


A esses líderes cabia, ainda, em determinadas ocupações, com­
prar os materiais para serem vendidos a preços menores aos com­
-
ponentes do corpo sob seu controle.
A eleição dos dirigentes dos grupos profissionais em São Paulo
nem sempre era espontânea39• Às vezes, os Juízes eram impostos e
mesmo nomeados pela Câmara. Outras vezes eram eleitos pelos
companheiros sob a pressão da Edilidade40• Em alguns casos, os
Escrivães eram escolhidos pelos Juízes de Ofício, em lugar de se­
rem eleitos por seus pares.
Em Salvador, de acordo com os registros, não havia data exata
para essa eleição. No início do século XVI, preceituava-se em São
Paulo que a eleição dos Juízes e Escrivães se fizesse no mês de ja­
neiro, período em que "estão todos na vila "41 •
Eleitos o u nomeados o s Juízes e Escrivães d e ofícios, a Câmara
passava-lhes Provisão, que comprovava a eleição ou nomeação, e
servia de documento enquanto permanecessem no cargo. Deviam
prestar juramento, que ia transcrito no verso da Provisão42•
Para preencher esses cargos, deviam atender a certos pré-requi­
sitos: ser mestre, saber ler, escrever e contar. Se na Bahia, havendo
maior número de oficiais mecânicos, nem todos preenchiam essas
condições, que se diria de São Paulo que possuía um número re­
duzidíssimo de mecânicos. Por isso mesmo, a reeleição de Juízes
de Ofício e Escrivães era normal, embora não pudessem ser recon­
duzidos um ano após o outro, segundo o uso e as leis de Portugal.
Todos os oficiais mecânicos deviam pedir licença à Câmara, pa­
gando uma taxa e apresentando fiador, para exercer publicamente
sua atividade. Esse pagamento era válido por seis meses ou um
ano, a depender da atividade43• Embora não estejam regularmente
registradas nos documentos da Câmara de São Paulo, pode-se con­
cluir que as licenças eram pagas, pois esta era uma das exigências
averiguadas pelos almotaces em suas correições anuais. Os ouri­
ves, além dessa obrigação, deviam registrar suas marcas e contras­
te na Câmara44•

39 Atas da Câmara de São Paulo, v. 1, p. 213.


4º Idem, v. 4, p. 404.
41 Idem, v. 2, p. 340.
42 Flexor, M. H. Oficiais Mecânicos . , p. 25-9.
. .

43 Idem, p. 41-55.
44 Alves, Marieta. Mestres Ourives de Ouro e Prata. Bahia: Imprensa Ofi-

Ofícios, manufaturas e comércio 1 83


Os senhores de escravos se responsabilizavam pelos mesmos
monetária, moral e profissionalmente. Além da licença, deviam
apresentar fiador para garantir o pagamento das multas a que es­
tavam sujeitos em caso do não-cumprimento do determinado pela
Câmara, ou por serviços não-realizados ou mal-feitos. Garantiam
também o material que os fregueses, por vezes, forneciam aos ofi­
ciais45.
As fianças são mais freqüentes a partir de 1 637 em São Paulo46,
enquanto que na Bahia o seu registro foi constante. No caso de duas
atividades, deviam cumprir as condições para ambas. Não apre­
sentando fiador e não pagando multa, os bens móveis dos mecâni­
cos eram penhorados para cobrir a quantia equivalente. Se neces­
sário, eram penhorados até os bens de raiz47•
Na cidade do Salvador, e em São Paulo, a regulamentação e fis­
calização dos ofícios foram levados mais a sério somente a partir
do início do século XIX48, praticamente no ocaso da antiga estrutu­
ra das Câmaras Municipais.
Frei Gaspar da Madre de Deus dava como de "grande apreço " os
oficiais dos engenhos de açúcar do litoral de São Paulo serem exa­
minados antes de exercitar seu ofício49• Não só estes, mas todos os
oficiais - conforme o prescrito e o costume de Portugal - deviam
prestar exame, receber Carta de Exame e registrá-la na Câmara.
Deviam pedir confirmação da mesma, prestar juramento prévio de
exercer bem o ofício, além de pagar a licença e apresentar fiador,
antes de instalar sua tenda ou "loje", e exercer suas funções publi­
camente50.
Nem todos os oficiais baianos tiveram suas cartas registradas na
Câmara, mas um número reduzido deixou de fazê-lo51. Não existe

cial, 1967 (Museu do Estado da Bahia, 16).


45 Câmara Municipal de São Paulo. Registro Geral da Câmara, v. 5, nota 4,
5 9; Atas da Câmara de São Paulo, v. 4, p. 127.
46 Atas da Câmara de São Paulo, v. 4, p. 138, 330.
47 Revista do Arquivo Municipal. São Paulo, v. 64, 1940, p. 159-60.
48 Ibidem.
49 Madre de Deus, G. (Frei). Memórias para a História da Capitania de São
Vicente, hoje chamada São Paulo . . . Lisboa: Academia. 1797, p. 171-2.
50 Flexor, M. H. Op. cit., p. 31-4.
51 Idem, p. 87.

1 Maria Helena Ochi Flexor


documentação em São Paulo que comprove que todos os oficiais
mecânicos fizessem seu exame e registrassem sua Carta de exame.
Provavelmente prestavam éxames diante dos Juízes e Escrivães de
ofícios, apenas a sua documentação não era registrada em livros
próprios (muitas vezes por falta de papel) . Aparecem algumas no­
tícias em documentos avulsos publicados na Revista do Arquivo
Municipal de São Paulo52• Pelo menos, constantemente, a Câmara
mandava que se examinassem53•
Os portugueses, ou originários de regiões diversas do Brasil, não
precisavam prestar novo exame, mas portar a Carta de Exame -
devidamente confirmada e contendo o registro do juramento - e
registrá-la na Câmara da cidade ou vila onde fosse exercer suas
funções. Recebiam então Licença Geral, diferente da licença comum,
dada àqueles que se examinavam na mesma localidade.
A aprendizagem era direta, feita através da convivência, da ob­
servação e de muito trabalho. Manoel Mendes dos Santos, após a
morte de sua mulher, por 1 715-1716, Antônia da Conceição, colo­
cou seu filho, João de Passos, para aprender o ofício de alfaiate, em
São Paulo, com o mestre Martinho Rodrigues. Na ocasião assinou
um termo de compromisso pelo qual se obrigava a pagar 30 mil
réis ao mestre se seu filho fugisse ou adoecesse. O compromisso
valia por dois anos. José de Passos contava, então, 18 anos54•
Nem todos os pais faziam um contrato por escrito. Este podia
ser oral, permanecendo entre ambos - pai e mestre - um contrato
moral. Não havia idade certa para o início da aprendizagem. O
aprendiz era colocado sob a guarda do mestre ou, como chama­
vam, do amo. Este não somente ensinava o ofício, mas educava,
como também servia-se dele - como forma de educação - para
todos os demais serviços, principalmente domésticos.
Entre os índios, a exemplo de Porto Seguro, aplicava-se a prática
corrente em alguns lugares da Europa, e de Portugal em especial,
estabelecida pelas Ordenações, pela qual os filhos órfãos de pais
mecânicos ou pais vivos dementes deviam aplicar-se aos ofícios
mecânicos ou trabalhar "a soldada". O mesmo parece justo que se ob-

52 Revista do Arquivo Municipal. São Paulo, v. 36, p. 261 .


53 Atas da Câmara de São Paulo, v. 2, p. 56.
54 Divisão de Arquivo do Estado de São Paulo. Inventários, 1 715-1 71 6,
nota 11, n. de ordem 503, lata 26, ms.

Ofícios, manufaturas e comércio 1 1 85


serve com os filhos de índios ainda que tenham pays vivos; porque por
demen tes e pródigos se reputam governados por Diretores como seus tuto­
res "55. Ficavam em companhia dos mestres, ou amos, até o tempo
do casamento. Parte do produto dos pagamentos dos rapazes de­
via ser aplicado no vestuário. O resto deveria ser empregado na
.
compra de gado ou de ferramentas para a lavoura, telha e feitio de
suas casas56• Em Salvador e Porto Seguro, como compensação pela
ajuda, os mestres e amos deviam sustentar seus aprendizes, dar­
lhes vestuário de uso semanal e festivo, além de remuneração por
outros serviços prestados57•
No aprendizado, o treinamento era mais dos músculos e dos
sentidos do que da imaginação, pois ele era baseado unicamente
na imitação. Esse tipo de aprendizagem direta permaneceu, no que
se relaciona aos ofícios, praticamente até os dias atuais.
Raramente, ao contrário do que aconteceu em algumas partes
do Brasil, os ofícios passavam de pai para filho na capitania de São
Paulo. Sendo uma sociedade mais aberta, novas oportunidades
deslocavam os interesses para outras atividades. É de notório sa­
ber que as minas desviavam muita mão-de-obra, especializada ou
não, ou ainda a escrava e a índia. Em Salvador, encontram-se ca­
sos de passagem do ofício de geração em geração, por ser socieda­
de mais estável.
Como no caso baiano58, também em São Paulo se dava o nome
de Regimento à lista de preços ou taxas dos produtos ou serviços
prestados pelos oficiais mecânicos. As taxas deviam ser feitas "con­
forme el rei manda em suas ordenações e posturas "59• A regulamentação,
portanto, era feita através das posturas. Deviam retirar seus Regi­
mentos na Câmara, pagando 600 réis, e estes serviam até a fatura
de novas posturas60• Com freqüência eram convocados a apresen­
tar seus regimentos para verificar se estavam "em dia"61•

55 Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, v. 32, p .


373. 1914.
56 Flexor, M. H. O. Núcleos Urbanos ... , p . 11.
57 Ibidem.
58 Idem. Oficiais Mecânicos . . . , p . 17-20.
59 Atas da Câmara de São Paulo, v. 5, p. 185.
60 Idem., v. 1, p. 461-2; v. 2, p. 485.
61 Idem., v. 5, p . 121, 195.

1 86 1 Maria Helena Ochi Flexor


A maior parte das posturas era fruto de alterações daquelas já
vigentes anteriormente, ou de adicionamentos de outras novas que
surgiam, naturalmente, coni a mudança da própria sociedade. Eram
os próprios oficiais mecânicos que pediam à Câmara as alterações,
adições ou subtrações62• Em comum acordo, a câmara e Juízes de
ofício - depois da extinção do Juiz do Povo nos lugares em que
esta figura representativa existia - realizavam essas alterações63•
A indisciplina administrativa paulista era tão grande que, muitas
vezes, os camaristas aceitavam outros mestres, em lugar dos Juízes
de Ofício, nas vereações em que essa tarefa era cumprida64•
Na falta de iniciativa dos interessados, a própria Câmara toma­
va as providências necessárias para modificar as posturas que eram,
então, impostas aos oficiais mecânicos65• Para legitimar seus atos, a
Câmara chamava um oficial mecânico e um "homem da governan­
ça" lmpara, em conjunto, estabelecerem as taxas67• Muitas vezes, o
Juiz do ofício, logo depois de eleito, era chamado a fazer as taxas68•
Os preços não previstos no rol de taxas eram postos pela Câmara
que pedia uma avaliação do Juiz do ofício ou pessoa perita69• O
preço de obras mais luxuosas era acertado entre as partes.
As posturas municipais sobre os oficiais mecânicos raramente
aparecem registradas em São Paulo. Estes, porém, seguiram, no
geral, os preceitos estabelecidos pelos usos e costumes do Reino ou
da Bahia.
Os próprios oficiais mecânicos paulistas mostravam a impor­
tância que davam à administração municipal e ao Regimento im­
posto pela Câmara. Em 1588, para citar um exemplo mais remoto,
Domingos Fernandes, ferreiro, estava vendendo seus trabalhos por
preço mais elevado e não queria obedecer as taxas impostas pela
Câmara. Seus aprendizes, Clemente Á lvares70, Pedro e Álvaro, sob

"2 Idem., v. 1, p. 426, 427.


63 Idem., v. 17, p. 246-7, 250-4.

64 Idem., v. 15, p. 254, 257, 258.

6 5 Idem., v. 1, p. 313, 314, 322-3, 324-5.

66 Idem., v. 1, p. 213. 234-6.

6 7 Idem., v. l, p. 461; v. 2, p. 426-7; v. 3, p. 309, 310, 312, 313, 329.

68 Idem., v. 4, p. 313.
6 9 Idem., v. 1, p. 215.

7 ° Ferreiro, em 1606, registrava minas de ouro na Câmara. Atas da Câmara

Ofícios, manufaturas e comércio 1 87


juramento, declararam que seu amo não obedecia as posturas e
que mandava ao primeiro pregar o Regimento que lhe fora dado
na "ilharga do esteio " de sua casa, tão alto que ninguém conseguia
lê- lo. O mestre afirmava então que "q uem q u izesse ver o fosse ler
ou dissesse que lho descessem "71 •
Os Regimentos deviam ser pendurados nas portas das tendas
ou lojas para que todos tivessem conhecimento dos preços cobra­
dos. As posturas e preços eram apregoados em praça pública para
que todos tomassem conhecimento72 ou eram afixados "quartéis "
ou editais nos lugares mais importantes73• Deviam ser renovados
anualmente. Se os preços não fossem colocados à vista, os infrato­
res estavam sujeitos a multa74• Constantemente, os paulistas se quei­
xavam dos oficiais mecânicos que não cumpriam corretamente seus
deveres, desobedecendo, com freqüência, as posturas75•
Segundo os regimentos, algumas atividades recebiam pagamento
por peçQs elaboradas como alfaiates, sapateiros, ferreiros, marce­
neiros. Outras eram pagas por jornais, por dia, como os carpintei­
ros e pedreiros.
Pelos Regimentos registrados nos Livros da Câmara de São Pau­
lo e Salvador, pode-se perceber, através da comparação, as diferen­
ças de usos e costumes, bem como do padrão de vida das duas re­
giões. As vestimentas, os calçados, em São Paulo, eram em geral
mais simples e menos variados que os da região nordestina. Veri­
fica-se não só que os materiais e tipos de produtos diferiam, como
também que os preços que na capitania do Sul eram muito mais
altos76• Sem obediência à regulamentação, os oficiais mecânicos
paulistas abusavam dos preços e jornais77•
Além de poucos em número, os oficiais mecânicos paulistas eram
ineficientes, como pôde constatar Morgado de Mateus, que pedia

de São Paulo, v. 2, p. 171-2.


71 Atas da Câmara de São Paulo, v. 1, nota 5, p. 350-351, 354-355.
72 Idem, p. 215.
73 Idem, v. 3, p. 219; v. 4, p. 112-3, 300-1.
74 Idem, v. 1, p. 326; v. 4, p. 206, 207, 428, 433-4.
75 Idem, v. 2, p. 26. 76 Idem, v. 17, p. 250-4.
77 Docu mentos Interessantes . . . , v. 23, nota 8, p. 292-6; Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v. 6, p. 58. 1957, núme­
ro especial.

1 88 1 Maria Helena Ochi Flexor


oficiais mecânicos mais eficientes no Rio de Janeiro, e como foi re­
gistrado pelos viajantes que estiveram na região no princípio do
século passado78• Provavelmente, devido à pobreza da capitania
paulista, ou mesmo por terem-se tomado comuns as construções
de taipa-de-mão ou de pilão até o início do século XIX, como acu­
sava o Governador Franca e Horta, não havia ainda, em 1804, mes­
tre pedreiro e mestre carpinteiro hábeis como os havia no Rio de
Janeiro e Bahia79•
O controle dos oficiais mecânicos era feito, ainda, pelosAlmotaces
e Ouvidores Gerais das Comarcas, a quem, durante as correições,
deviam apresentar os papéis indispensáveis ao exercício da pro­
fissão. Havia casos em que o próprio Governador intervinha, mes­
mo sendo fora de sua alçada, principalmente na capitania de São
Paulo80•
Cabia ao Alcaide fazer as comunicações oficiais sobre as resolu­
ções da Câmara acerca dos ofícios àqueles que os exerciam. As san­
ções impostas pela Câmara, pelas contravenções às posturas, eram
as mesmas nas duas regiões, sendo bastante custosas para a época.
A maioria constava de 6$000 réis, quando pecuniária, e trinta dias
de cadeia como sanção física e moral, havendo casos em que ambas
eram impostas: multa de 6$000 réis pagos na cadeia. Até os mea­
dos do século XVIII, as multas em São Paulo eram arbitrárias.
Todas as profissões ofereciam a possibilidade, mais comum, do
cliente fornecer o material81• Este, no entanto, também poderia ser
dado pelo profissional. Quando um deles trabalhava a jornal, era
obrigado, por sua conta, a fornecer as ferramentas, declarando
o peso das mesmas para ser pago pelo prejuízo que tivesse por
perda, quebra ou descaminho. Quando a obra era feita de emprei­
tada, ajustava-se entre as duas partes o fornecimento das ferra­
mentas.
Até o início do século XVII, o pagamento dos produtos dos ofí­
cios mecânicos era feito em espécie, por falta de moeda, especial­
mente em São Paulo, onde até aos mercadores era proibido tirar as

78 Documentos Interessantes . . , v. 73, nota 8, p. 49; Revista do Instituto Histó-


.

rico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v. 6, p. 236.


79 Flexor, M. H. O Trabalho Livre . , v. 2, p. 257.
. .

80 Documentos Interessantes , v. 81, nota 8, p. 17-8.


. . .

81 Atas da Câmara de São Paulo, v. 2, p. 302.

Ofícios, manufaturas e comércio 1 1 89


moedas de seus lirnites82• A partir daí comercializava-se das duas
formas: espécie ou rnoeda83•
Não era fácil montar-se tenda de oficial mecânico, já que muitos
instrumentos vinham de Portugal ou, no caso de São Paulo, também
de outras capitanias. Os barbeiros possuíam loja ou tenda, mas po­
diam atender a domicílio ou em qualquer parte quando necessário.
Deve-se salientar, especialmente no caso de São Paulo, que nas
expedições, oficiais ou particulares, iam mecânicos os mais preci­
sos corno: sangradores, carpinteiros, ferreiros, pedreiros e calafates84•
Com freqüência proibia-se aos ferreiros levar forjas para o sertão,
de um lado para não ensinar o ofício aos índios e, por outro, para
não arrná-los85•
Os processos artesanais mantinham-se constantes em ambas re­
giões, embora houvesse maior preciosismo na Bahia. Os modismos,
em certos setores, permitiram algumas modificações nos modelos,
mas o fato de ser considerado um bom artesão aquele que atingisse
o mais alto grau de perfeição na execução de urna obra copiada de
outra, cerceou, de certa forma, a criatividade, e com isso a desco­
berta de novos processos. O instrumental encontrado entre os bens,
nos Inventários e Testamentos dos artífices permanecia invariável.
Poucos e sempre os mesmos.
O trabalho mecânico estava ligado estreitamente à habilidade
manual, embora fosse totalmente imbuído de processos empíricos
herdados, reforçada pela observação e prática contínuas, sem pre­
ocupação científica de nenhuma ordem ou racionalização das ati­
vidades. Assim, os processos de trabalho mecânico baseavam-se
quase que exclusivamente na tradição, portanto sem regras escri­
tas, do costume corporativo europeu, com raríssimas inovações.
Estas, quando apareciam, eram provocadas pelas condições locais
deficientes que, na maioria dos casos, provocavam retrocesso em
vez de avanços. E isso aconteceu não só em São Paulo, corno tam­
bém na Bahia . Faltava, igualmente, incentivo da Metrópole.
Não havia competição no mercado de trabalho, o que provoca­
va, do mesmo modo, estagnação de processos, vagareza na elabo-

82 Idem, p. 340.
83 Docu mentos Interessantes , v. 45, p. 133-75.
. . .

84 Flexor, M. H. O. Op. cit., p . 249. .


85 Atas da Câmara de São Paulo, v. 1, p. 221, 302; v. 2, p. 278.

1 Maria Helena Ochi Flexor


ração das obras e a conseqüente idéia, por parte dos consumidores,
de que esses profissionais eram ineficientes, que faltavam no cum­
primento dos contratos e eram vadios, especialmente nos centros
urbanos. Alguns dos oficiais mecânicos trabalhavam sob encomen­
da, portanto só estavam em atividade quando aquela aparecia e,
por isso mesmo, eram considerados vadios, não só em São Paulo,
como, também, no Norte e Nordeste, como testemunharam Luís
dos Santos Vilhena na Bahia e João Francisco Lisboa no Maranhão.
Os mecânicos eram sedentários, deviam ficar, sem exceções, pre­
sos à sua cidade ou vila e pequena região de produção. Eram tam­
bém comerciantes, porém menos aventureiros que os grandes co­
merciantes. Seu comércio era direto - produtor-consumidor - sem
intermediários.
Sem contato com o grande comércio, ou melhor, sem realizar
grande comércio, ficaram à deriva de todas as mudanças efetuadas
nos negócios internacionais. (Houve exportação, por exemplo, de
móveis baianos para o resto da América Latina do lado atlântico,
porém feita pelos grandes negociantes.) Assim, permaneceram, por
longo tempo, enclausurados dentro das mesmas técnicas, das mes­
mas formas rotineiras de trabalho, da mesma forma de produzir e
comercializar. Trabalhando individualmente, ou em família, por
muito tempo, numa espécie de sociedade fechada, na mesma pro­
porção, levaram tempo para adquirir um estado de espírito de em­
presa.
Segundo Jacques Le Goff, os oficiais mecânicos procuravam con­
sideração social usando a religião, ins trumento necessário a toda
ascensão material e espiritual no mundo medieval. Por isso cada
oficial tinha seu santo patrono, por vezes vários, e as corporações
faziam representar seus santos protetores no exercício de sua pro­
fissão ou com seus instrumentos, os símbolos de seus ofícios, valo­
rizando suas ocupações, afastando o desprezo representado por
tão poderosos e temíveis representantes86•
Os paulistas cumpriam o ritual muito mais por tradição e obri­
gação do que visando essa valorização. Enquanto na Bahia os ofi­
'
ciais mecânicos chegaram a organizar confrarias, em São Paulo
eles apenas adotaram os tradicionais santos protetores de cada ofí-

86
Le Goff, J. Pour un autre Moyen Age; temps, travail et culture en Occident:
18 essais. Paris: Gallimard, e. 1977, p. 104.

Ofícios, manufaturas e comércio 191


cio ou conjunto correlato de ofícios como, por exemplo, São José
como protetor de carpinteiros, marceneiros e pedreiros; Santo Eloi
como protegor dos latoeiros; São Jorge como protetor dos ferreiros,
s�rralheiros etc.
Ainda que não formassem confrarias específicas dos ofícios, en­
travam para as Irmandades, especialmente Ordens Terceiras, que
lhes garantiam os benefícios sociais e espirituais comuns a todas
elas. Cabia à Câmara o brilhantismo das Procissões Reais e à Igreja
o cerimonial litúrgico. Os oficiais mecânicos eram obrigados a
acompanhá-las, seguindo a bandeira do protetor de seu ofício e
contribuindo para a ornamentação. Para tanto, escolhia-se, ou ele­
gia-se, com antecedência, um encarregado dos festejos - o cabo ou
juiz - que devia comparecer ao Paço Municipal para assinar ter­
mo de responsabilidade.
Era uso, em Lisboa, realizarem-se as Procissões "del Rey", regidas
pelas Ordenações Filipinas. Esse costume passou para a Colônia e
na Bahia as procissões reais eram, além da de "Corpus Christi", as
de São Sebastião, São Felipe e Santiago, Santo Antonio de Arguir,
bem como São João Batista. Na segunda metade do século XVIII, e
princípios do XIX, algumas outras procissões foram acrescentadas
àquelas patrocinadas pela Câmara, em nome do Rei, como a de
Santa Isabel. A do Anjo Custódio foi renovada87•
Em São Paulo a regulamentação das procissões fez-se a partir da
primeira correição de 1 628 e definitivamente estabelecida pelo
Ouvidor Geral Castelo Branco. Eram três as procissões oficiais, a
cargo da Câmara, pelo menos na cidade: a da "Festa Real " ou "Cor­
po de Deus " a de Santa Isabel, "a rainha santa de Portugal", "conforme
a ordenação do rei"88 e a do Anjo da Guarda do Reino de Portugal ou
Anjo Custódio. Instituiu-se também a de São Sebastião, na Bahia.
São Francisco Xavier tinha sua procissão oficial por ter-se tomado,
depois de uma grande peste, o protetor dos soteropolitanos.
Embora São Paulo fosse o nome da Capitania, o santo não pos­
suía a deferência de ser considerado protetor ou ter procissão ofi­
cial. Nessa Capitania, a procissão que tomou um caráter público
sem ser oficial, foi a de Nossa Senhora da Penha, por ocasião das
grandes calamidades.

87 Flexor, M. H. Oficiais Mecânicos , p. 20�.


. . .

88 Atas da Câmara de São Paulo, v. 1, p. 180.

1 92 1 Maria Helena Ochi Flexor


A participação em atos públicos, principalmente nas procissões
de "Corpus Christi " era obrigatória. O não-comparecimento pode­
ria estar sujeito a multa sé não se justificasse a ausência89. Nessas
ocasiões todos os moradores deviam limpar e carpir as testadas de
suas casas e ruas, podendo sofrer multa se não o fizessem90.
Os oficiais mecânicos acompanhavam as procissões agrupados
por ofícios, portando varas e bandeiras identificadoras de suas ocu­
pações91. Não há notícias de que os paulistas tenham formado Con­
frarias específicas de oficiais mecânicos como a de São José dos
carpinteiros e pedreiros baianos. Além das alegorias - a serpente,
dragão, cavalinhas, gigantes, anões, tourinhas e São Jorge monta­
do a cavalo e acompanhado de pagens, alferes e sargentos da guar­
da, vivos e trajados a rigor -, eram obrigados a abrilhantar o even­
to à própria custa. Entre outras coisas deviam apresentar as danças
e ornamentar as ruas com flores e folhas92.
As danças, justamente, servem para ilustrar a afirmação ante­
rior de que os oficiais mecânicos seguiam apenas a tradição, pois
de há muito elas tinham sido abolidas na Europa, vistas como eram,
como coisa profana num ato religioso. Desde 1752 já tinham sido
proibidas em Portugal93.
Existe no Museu de Arte Sacra de São Paulo um exemplar mag­
nífico de São Jorge. É um dos poucos exemplares sobreviventes,
desde que, de ano para ano, era elaborada nova imagem e destruí­
da a anterior. Conta a tradição que esse São Jorge, ao cair do cavalo,
matara um dos acompanhantes da procissão, pelo que foi juigado
e condenado. Se a estória for verdadeira, explica a sobrevivência
da imagem.
Além das festas religiosas, deviam participar dos atos públicos
de recepções a autoridades como capitães-mores, bispos, governa­
dores etc. e festejos comemorativos de nascimentos das figuras da
realeza.
As corporações mecânicas já tinham sido extintas na França, por
exemplo, desde a Revolução Francesa. Encontravam-se em pleno

89 Idem, v. 1, p. 184-92, 296; v. 3, p. 40.


90 Idem, v. 3, p. 40, 43.
91 Registro Geral da Câmara, v. 11, nota 4, p. 552.
92 Revista do Arqu ivo Municipal de São Paulo, v. 68, p. 154.
93 Flexor, M. H. Op. cit., p. 23-4.

Ofícios, manufaturas e comércio 1 93


declínio em Portugal por 180894• No Brasil, embora não formados
em "corporações", os oficiais mecânicos continuaram a seguir as
mesmas formas de trabalho e organização até que foram retirados
da alçada administrativa da Câmara em 1828. Assim mesmo, anos
mais tarde, ainda se encontravam registros que demonstram a con­
tinuação dos procedimentos antigos, tanto na Bahia quanto em São
Paulo.
As medidas tomadas a favor da indústria brasileira por D. João
VI atingiram, até 1830, apenas o Rio de Janeiro. São Paulo conti­
nuou a viver com a incipiente mão-de-obra artesanal da mesma
forma como acontecia na Bahia.
A criação de escolas técnicas e de artes e ofícios concretizou o
desaparecimento dessas organizações medievais, mas o conjunto
de características que qualificavam os oficiais mecânicos permane­
ceram até os dias de hoje.

94 Bernstein, Harry. O juiz do povo de Lisboa e a Independência do Bra­


sil: 1750-1822; ensaio sobre o populismo luso-brasileiro. ln: Henry H.
Keith e S. F. Edwards (orgs.). Conflito e Continuidade na Sociedade Brasi­
leira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970, p. 239. Col. Retratos
do Brasil, 79.)

1 94 1 Maria Helena Ochi Flexor


Leila Mezan Algranti
Dep.tº de H istória, U N I CAMP

OS O F ÍC I OS U RBANOS E OS ESC RAVOS


AO GAN H O N O RIO D E JAN E I RO
C O LO N IAL ( 1 808- 1 822)

A escravidão africana constituiu o elemento básico da vida eco­


nômica e social do Brasil durante quase quatro séculos. Apesar do
caráter essencialmente agrícola da economia colonial, os centros
urbanos nela tiveram papel de destaque, servindo de entrepostos
comerciais, sede do poder administrativo e eclesiástico. Os escra­
vos, paulatinamente, acabaram constituindo-se numa parcela sig­
nificativa das populações urbanas, tornando-se fundamentais
para o desenvolvimento das vilas e cidades. Cidade e campo in­
teragiam num mesmo sistema, não podendo ser separados. Se a
escravidão, enquanto forma preponderante de trabalho, instala­
ra-se na sociedade, não poderíamos ter escravismo no campo e tra­
balho livre na cidade. Outras formas de trabalho que não o escra­
vo desenvolveram-se, portanto, à margem do sistema dominante
que era o escravismo, tanto no mundo rural como no mundo ur­
bano.
A importância dos escravos na economia urbana em sociedades
escravistas - como as que se desenvolveram na América - tem
sido enfatizada pela historiografia, quer em estudos mais gerais
sobre a escravidão e sobre o escravismo coloniaP, ou em análises
específicas que contemplam o fenômeno da escravidão nos núcleos

1 Veja-se dentre outros estudos: Gilberto Freyre. Sobrados e Mucambos. 5.ª


ed. Rio de Janeiro. 1977; Emília Viotti da Costa. Da Senzala à Colônia. 2.ª
ed. São Paulo. 1982; Jacob Gorender. O Escravismo Colonial. São Paulo.
1978; Genovese e Miller. Plantation, Town and County. Chicago, 1974;
Barbara J. Fields. Slavery and Freedom on the Middle Grou nd. New Haven.
1985.

Os ofícios urbanos e os escravos ao ganho no Rio de Janeiro colonial ( 1 808- 1 822) 1 95


urbanos2• De qualquer forma, o que esses trabalhos trazem à tona,
é a presença de um grande contingente de escravos no ambiente
urbano devido à necessidade de se suprir a crescente demanda de
mão-de-obra nos diversos setores das economias urbanas em ex­
pansão. Quanto mais a vila ou cidade se desenvolvia, mais escra­
vos eram requisitados para a prestação de serviços - públicos ou
privados - nos ofícios mecânicos, especializados ou não, nas in­
dústrias e demais atividades próprias da vida nas cidades.
Os historiadores que se dedicaram ao estudo da escravidão ur­
bana procuraram de maneira geral compreender a vida dos escra­
vos, a natureza do trabalho escravo, assim como as transformações
sofridas pela instituição no novo ambiente, pois, embora se tratas­
se do mesmo fenômeno e mantivesse os princípios básicos, o siste­
ma compulsório de trabalho precisou adaptar-se às características
próprias da vida urbana3.
Amplamente comentado pelos estudiosos do escravismo moder­
no, e ponto central da questão, é o caráter de maior liberdade e
flexibilidade que a escravidão assumiu no ambiente urbano. Os
escravos nas cidades passavam grande parte de seu tempo fora de
casa e longe do controle dos senhores, ocupados em diversas ativi­
dades. Esse enfraquecimento da disciplina rígida, e a ausência de
um domínio total dos senhores sobre seus escravos, induziram à
idéia de que a vida nas cidades acabava por alterar as relações se­
nhor-escravo4. A partir dessa constatação, procurou-se estudar os
mecanismos que propiciavam tais mudanças no sistema e chegou­
se a considerar - em alguns casos - que as alterações eram de tal
importância que, entre senhores e escravos, estabeleciam-se rela-

2 Veja-se: Richard Wade. Slavery in the Cities. 1 820-1 860. Londres. 1977;
Mary Karasch. Slave Life in Rio de Janeiro. 1 808-1 850. Wisconsin. 1972;
Leila M. Algranti. O Feitor Ausente - estudo sobre a escravidão urbana no
Rio de Janeiro. Petrópolis. 1988; Luís Carlos Soares. Urban Slavery in
Nineteenth Century. Tese de doutoramento apresentada ao University
College, Londres. 1988; Marilene Rosa Nogueira da Silva. A Nova Face
da Escravidão. São Paulo. 1988; Maria Cristina Cortez Wissembach. "Ar­
ranjos da sobrevivência escrava na cidade de São Paulo no séc. XIX".
Revista de História (119):107-8. 1988.
3 Cf. Richard Wade. Op. cit., p. IX; Leila Algranti. Op. cit., p. 46-58.
4 Cf. R. Wade. Op. cit., p. 242-5; Claudia · Goldin. Urban Slavery in the

American South 1 820-1 860. Chicago. 1974, p. 127.

1 96 1 Leila Mezan Algranti


ções não-escravistas5• O exemplo mais utilizado nesses casos é o
trabalho "ao ganho" efetuado pelos escravos das cidades, quando
os cativos recebiam de tercei ros, um valor em dinheiro pelos servi­
ços prestados.
O sistema de ganho, uma das formas específicas do trabalho es­
cravo nas cidades, possibilitou interpretações divergentes entre os
historiadores brasileiros sobre a natureza da contrapartida recebi­
da e conseqüentemente sobre as relações que se estabeleciam entre
senhores e escravos, o que de certa forma acabava interferindo na
própria continuidade do sistema.
O objetivo deste estudo é empreender, primeiramente, uma aná­
lise da presença escrava nos ofícios urbanos, na cidade do Rio de
Janeiro (1808-1822), com especial destaque para as formas que o
trabalho escravo assumiu na cidade: o ganho e o aluguel. Num se­
gundo momento, pretende-se privilegiar o "sistema de ganho" e
suas interpretações presentes na historiografia brasileira nos últi­
mos dez anos.

Os escravos e o trabalho na cidade

No início do século XIX, à época da chegada da Corte ao Rio de


Janeiro, a população escrava da cidade era de aproximadamente
12 mil cativos, representando 20% do total de habitantes. No final
do período estudado, de acordo com o censo de 1821, os escravos
tinham chegado a 36.182 indivíduos entre homens e mulheres com­
pondo, segundo os dados oficiais, 45,6% da população6• Embora
parciais, os números indicam um crescimento significativo da po­
pulação escrava. O mesmo deve ter ocorrido com os libertos, possi­
velmente atraídos pelo desenvolvimento pelo qual passou a cida­
de, após a sua transformação em sede do governo português. De
qualquer forma, preservados os possíveis erros de cálculo, a popu­
lação negra da cidade era relevante e indicadora do papel que es­
cravos e libertos desempenhavam na sua economia. Grande parte

s Cf. Décio Freitas. As Insurreições Escravas. Porto Alegre. 1976, p. 97.


6 Cf. J. Luccock. Notas sobre o Rio de Janeiro e Partes Meridionais do Brasil.
Belo Horizonte. 1975, p. 28; Censo de 1821, ANRJ, Estatísticas 1790-
1 865.

Os ofícios urbanos e os escravos ao ganho no Rio de Janeiro colonial ( 1 808- 1 822) 1 97


dos viajantes estrangeiros que visitaram o Rio de Janeiro no início
do século XIX, manifestou espanto, estranheza ou curiosidade pela
presença de tão destacado número de negros circulando nas ruas
durante todas as horas do dia e da noite7•
Certamente, esse aspecto era também notado pela população
branca e pelas autoridades, que, ao longo do período estudado,
tiveram o cuidado de legislar e adotar medidas de controle sobre a
população negra8. Contudo, um dado que merece ser lembrado é o
tamanho da propriedade escrava nas cidades. Bastante reduzido,
se comparado com o mundo rural, onde se chegava a ter numa
mesma fazenda cem ou mais cativos. Por outro lado, a prática da
escravidão era amplamente divulgada, sendo grande o número de
senhores que dispunham de um, dois ou três escravos9• Indepen­
dentemente do tamanho que a propriedade escrava tenha assumi­
do nas cidades, o que cabe destacar é o uso que os senhores faziam
do trabalho escravo, uma vez que também no campo encontrare­
mos pequenos sitiantes e lavradores utilizando-se da mão-de-obra
de poucos escravos.
Numa classificação que já se tornou clássica, Mary Karasch em
seu estudo pioneiro distinguiu os ofícios desenvolvidos pelos cati­
vos na cidade do Rio de Janeiro em três categorias: ocupações ma­
nuais especializadas, semi-especializadas, e ocupações não-ma­
nuais. Seu objetivo era perceber o movimento dos escravos de um
nível para outro e também o movimento dentro da mesma catego­
ria, preocupada que estava em estudar a mobilidade social dos es­
cravos10.
Entre as atividades especializadas, destacavam-se os escravos

7 Veja-se por exemplo: H. Brackenridge. Voyage to South America. Baltimo­


re. 1819, p. 122; Clark Abel. Narrative of a /ourney in the Interior of China
to andfrom that Cou ntry in the Years of 1 81 6-1 81 7. Londres. 1819, p. 15.
8 Pelo edital de 6 de dezembro de 1816 proibia-se o porte de armas aos
negros e reforçava-se a fiscalização contra os capoeiras. Cf. ANRJ, Có­
dice 323, vol. 6, fs. 35-6 (11-11-1820).
9 Cf. R. Wade. Op. cit., p. 22; Luis Carlos Soares e Marilene da Silva
estudando a escravidão no Rio de Janeiro na segunda metade do sécu­
lo XIX indicaram alguns grandes proprietários de escravos na cidade.
Soares. "Os escravos ao ganho no Rio de Janeiro no século XIX". Revis­
ta Brasileira de História, n.º 16, 1988. p. 1-2 8.
1° Cf. M. Karasch. Op. cit., p. 411 .

1 98 1 Leila Mezan Algranti


que possuíam uma profissão ou certas habilidades, como os arte­
sãos: sapateiros, costureiras, alfaiates, ajudantes de ourives, ferrei­
ros, marceneiros etc.; padeiros, barbeiros, cirurgiões e músicos tam­
bém se incluíam nessa categoria 11• Nos serviços semi-especializados
podemos agrupar todo tipo de vendedores ambulantes e as famo­
sas negras quitandeiras que circulavam pela cidade vendendo des­
de cedo seus produtos de porta em porta, ou em pontos fixos com
barracas montadas. Eram esses escravos que supriam a cidade de
todos os produtos necessários ao consumo doméstico básico: pão,
leite, lenha, frutas e legumes, além de toda sorte de produtos ma­
nufaturados vendidos muitas vezes também a domicílio.
Pelas ocupações acima mencionadas, fica claro que os escravos
se envolviam a serviço de seus senhores em múltiplas atividades
próprias do ambiente urbano, como as manufaturas e o comércio,
além de todo tipo de prestação de serviços. Com o crescimento da
cidade e o aumento da demanda de serviços tomou-se de interesse
dos senhores, principalmente dos pequenos proprietários, treina­
rem seus escravos para que pudessem trabalhar em profissões mais
rentáveis. Manteve-se, entretanto, a prática comum às sociedades
escravistas, de que todo trabalho manual - ou pelo menos aquele
desqualificado - ficava a cargo dos cativos. A cidade vivia portan­
to basicamente do trabalho escravo, embora, como já foi menciona­
do, houvesse um razoável número de libertos e de outros trabalha­
dores livres, que não são objeto de análise no presente estudo.
Já entre as tarefas menos qualificadas, destacavam-se os escra­
vos domésticos e todo tipo de carregadores ou transportadores de
pequenos e grandes volumes que transitavam pela cidade em gru­
pos ou isoladamente. Estes últimos foram especialmente registrados
pelas mãos hábeis de Debret, Rugendas, Chamberlain e de outros
artistas estrangeiros em suas famosas pranchas12• Os escravos do-

11
Cf. L. Algranti. Op. cit., p. 85-95.
12
Debret é o grande mestre desse tipo de representação e amplamente
citado. Mas, outros artistas também imortalizaram em suas pranchas
cenas do cotidiano dos escravos nas ruas transportando imensos far­
dos ou vendendo seus produtos. Cf. J. B. Debret Viagem Pitoresca e
Histórica ao Brasil (1 834). Tomo I, trad. São Paulo. 1954; Henry Cham­
berlain. Views and Customs of the City and Neighbourhood of Rio de Janeiro.
Londres. 1822; J. M. Rugendas. Viagem Pitoresca através do Brasil (1 835).
Trad. Rio de Janeiro. 1940.

Os oficios urbanos e os escravos ao ganho no Rio de janeiro colonial ( 1 808- 1 822) 1 99


mésticos - embora um grupo bastante significativo, e que segun­
do Karasch desfrutava de maior status, devido às melhores condi­
ções de vida - nem sempre se dedicavam apenas às tarefas de lim­
peza, arrumação e cozinha. Serviam de acompanhantes de seus se­
nhores, de barbeiros e de jardineiros. Era freqüente também - nas
casas com poucos escravos - desenvolverem outras atividades
após se desincumbirem das tarefas domésticas.
Mas, a demanda de mão-de-obra em economias urbanas em ex­
pansão não atingia apenas o setor privado ou doméstico; os ser­
viços públicos de limpeza, conservação das ruas e construção de
estradas, além do abastecimento de água exigiam um número pelo
menos constante de trabalhadores. Todas essas tarefas ficavam a
cargo da administração da cidade, que, na falta de escravos pró­
prios, lançava mão ou de escravos particulares através de aluguel,
ou da mão-de-obra dos presos - escravos ou libertos - que se
encontravam na cadeia pública. Devido à fama de mau pagador, o
governo da cidade do Rio de Janeiro teve quase sempre de utilizar­
se dos prisioneiros para as tarefas básicas e, na falta destes, retar­
dar a saída da prisão daqueles que deveriam voltar para seus se­
nhores, encarcerados por motivo de fugas e pequenos crimes13• Es­
cravos de particulares ou do Estado, quem fazia grande parte des­
ses serviços públicos eram os negros escravizados.
Com exceção dos escravos exclusivamente domésticos, pratica­
mente todos os demais deslocavam-se constantemente pela cidade
em função das atividades que desempenhavam, passando grande
parte do dia distantes do controle efetivo de seus senhores e senho­
ras. Eram por assim dizer " donos" de seu próprio tempo. Essa mo­
bilidade física dos escravos propiciava também a ampliação de seu
mundo social. Neste constante ir e vir de casa ao trabalho, relacio­
navam-se com indivíduos de vários grupos sociais e de diferentes
raças. Estreitavam seus laços afetivos com outros escravos, libertos
ou livres. Mas, o auge dessa suposta "independência" parecia ser
conferida por uma forma de trabalho escravo, ao que tudo indica,
exclusiva do ambiente urbano, o sistema de ganho.
Tantas vezes confundido com a forma de aluguel, o trabalho ao
ganho dos escravos começou a receber atenção especial dos histo-

13 Para maiores detalhes sobre o aproveitamento dos presos nos serviços


públicos veja-se L. Algranti. Op. cit., p. 77-82.

200 1 Leila Mezan Algranti


riadores a partir dos estudos mais específicos sobre a escravidão
urbana. Richard Wade, no início dos anos 1960, ao estudar a insti­
tuição nas cidades do Dixi:e do sul dos Estados Unidos, apontou
para a essência da diferença: enquanto os escravos de aluguel
proporcionavam uma boa renda para seus senhores que os aluga­
vam a terceiros, os escravos de ganho "alugavam", ou "vendiam"
provisoriamente seu tempo e força de trabalho a quem bem enten­
dessem, sem intermediários, e recebiam diretamente pelos servi­
ços prestados uma contrapartida em dinheiro14• A forma do ganho,
o excesso de liberdade de movimentação que a cidade conferia e a
ausência de um controle permanente levou alguns especialistas
norte-americanos a questionarem a viabilidade da escravidão nas
cidades e sua continuidade até o momento da emancipação geral.
Campo e cidade tenderiam a ter sistemas de trabalho diferentes:
no campo predominaria o trabalho compulsório em sua forma ex­
trema que era a escravidão, mas nas cidades a tendência, devido a
necessidades próprias da vida urbana, seria o trabalho livre. Se a
Guerra Civil não se tivesse encarregado de pôr fim à escravidão, o
sul dos Estados Unidos só teria tido escravos no ambiente rural: os
trabalhadores das cidades tornar-se-iam com o tempo todos livres,
pois os escravos acabariam sendo vendidos para o campo, toda
vez que houvesse uma crise de braços na lavoura15•
Uma outra vertente da historiografia norte-americana não vê in­
compatibilidade entre escravidão e vida urbana, mas sim, uma cer­
ta concorrência entre trabalhadores livres e escravos; as necessi­
dades de mão-de-obra para a lavoura proporcionavam a venda de
escravos da cidade para o campo. Segundo essa corrente, após a
Guerra Civil, os escravos teriam voltado para as cidades, porque
todo um complexo de restrições controlava a população negra nas
cidades16•
Na historiografia brasileira, aqueles que nos últimos dez anos se

14 Veja-se R. Wade. Op. cit., p. 38; veja-se também, sobre as diferenças


entre o aluguel e o ganho, Lenira Menezes Martinho. Organização do
Trabalho e Relações Sociais no Interior das Firmas Comerciais do Rio de Ja­
neiro na Primeira Metade do Século XIX. Tese de mestrado apresentada
ao Departamento de História da USP. São Paulo. 1977, p. 31.
15 Cf. R. Wade. Op. cit., p. 242-5.
16 Claudia Goldin. Op. cit., p. 127.

Os ofícios urbanos e os escravos ao ganho no Rio de Janeiro colonial ( 1 808- 1 822) 1 20 1


dedicaram à análise da escravidão nas cidades, não privilegiaram
essa dicotomia: trabalho escravo no campo e trabalho livre nas ci­
dades como possibilidade de resolver as contradições que o siste­
ma escravista engendrava no mundo urbano. Em suas análises,
desvendaram a vida dos escravos, as insurreições17, as relações en­
tre escravos e senhores, e escravos e homens livres ou libertos18,
apontando para os laços frouxos de controle sobre a massa dos es­
cravos e seus agentes substitutos. Mas, qualquer que tenha sido o
aspecto mais enfatizado nesses estudos, eles registraram a presen­
ça dos escravos ao ganho e a ameaça que causavam à continuidade
da escravidão. O debate entre os historiadores brasileiros, na ver­
dade, enveredou por outro caminho: o caráter do trabalho escravo
ao ganho e as relações de produção que determinava (relações es­
cravistas ou não-escravistas) e conseqüentemente, a natureza da
contrapartida em dinheiro que os negros de ganho recebiam. Seria
salário?19
O aspecto fundamental da questão continua a configurar-se pa­
ra mim exatamente como o coloquei há dez anos: isto é, o que mu­
dava e o que não mudava na relação escravista e em que medida o
trabalho ao ganho comprometia a sobrevivência da escravidão nas
cidades20• Vejamos como desenvolvi a questão e como ela foi reto­
mada por estudos subseqüentes, e também se é possível avançar­
mos um pouco mais nesse debate.

O trabalho ao ganho dos escravos e suas i nterpretações

O sistema de aluguel de escravos e o sistema ao ganho configu-

17 João José Reis. Rebelião Escrava no Brasil - a História do Levante dos Malés.
São Paulo. 1986.
1 8 Cf. L. Algranti. Op. cit., p. 121-56; Luiza Rios Ricci Volpato. Cativos do
Sertão - Vida Cotidiana e Escravidão em Cuiabá em 1 850-1 888. São Paulo,
1993, p. 190-228.
19 M. da Silva. Op. cit., p. 117-8 e 158 (livro). Jacob Gorender. A Escravidão
Reabilitada. São Paulo. 1990, p. 91-5. Soares. Os escravos ao ganho no
Rio de Janeiro. Op. cit., p. 130-1 .
20
Leila M. Algranti. O Feitor Ausente - estudo sobre a escravidão u rbana no
Rio de Janeiro. 1808-1822. Tese de mestrádo apresentada ao Departa­
mento de História da USP. São Paulo, 1983.

202 1 Leila Mezan Algranti


ram-se como formas de exploração do trabalho escravo e foram
colocadas em prática por vários senhores, seja no Mundo Antigo,
seja na América. Logo, elas não são específicas do escravismo mo­
derno. Nas cidades greco-romanas era dado ao escravo o direito de
formar um pecúlio com o restante do foro quotidiano que deveria
entregar a seu senhor; o foro era arrecadado através de tarefas
exercidas para particulares. Sem dúvida, não há como pensar numa
continuidade entre a escravidão antiga e a moderna, nem se trata
do mesmo fenômeno, questão, aliás, já amplamente debatida pelos
que se envolveram no problema da gênese do escravismo moder­
no21. Não se pretende tampouco comparar tais práticas, mas lem­
brar que a existência da escravidão não impedia adaptações e ajus­
tes. O sistema de aluguel e de ganho foram, portanto, formas utili­
zadas em regimes escravistas, visando dar maior rentabilidade da
exploração do trabalho escravo.
No Rio de Janeiro, escravos ao ganho ou negros (negras) de gan­
ho eram todos que, em tempo integral ou parcial, deixavam a casa
de seus senhores em busca de trabalho. Alugavam seu tempo e
força de trabalho a um e a outro, e deviam no final de um determi­
nado período entregar a seus senhores uma soma previamente
estabelecida. Não importava como a quantia havia sido atingida, e
nem mesmo se havia sido ultrapassada. O fundamental era não
faltar ao pagamento e evitar o castigo22.
Muitos negros de ganho viviam de biscates e empreitadas, e não
tinham uma profissão determinada. Prestavam qualquer tipo de
serviço que aparecesse. Alguns eram carregadores, outros ven­
diam produtos; havia os que só saíam ao ganho após fazerem o
serviço doméstico. Homens ou mulheres dedicavam-se a arreca­
dar a quantia estabelecida na esperança de poderem guardar a di­
ferença para si. A prostituição era também uma forma das escravas
aumentarem o seu "pecúlio" ou de completarem o valor exigido
pelos senhores.

21
David Brion Davies. The Problem of Slavery in Western Culture. Nova
York. 1969, p. 29. Fernando Novais. "Estrutura e dinâmica do Antigo
Sistema Colonial, séculos XVII e XVIII". Cadernos CEBRAP, n.º 17. São
Paulo. 1974, p. 65, nota 10 e 105. Jacob Gorender. O Escravismo Colonial.
Passim.
22
Cf. L. Algranti. Op. cit., p. 49.

Os ofícios urbanos e os escravos ao ganho no Rio de janeiro colonial ( 1 808- 1 822) 1 20 3


Mas, havia também escravos envolvidos em trabalhos mais es­
pecializados que trabalhavam ao ganho, como lembrou Mary Ka­
rasch, principalmente os artesãos. Enfim, o ganho era uma forma
de trabalho escravo desvinculada de uma atividade específica. Ao
contrário, era tão amplamente utilizada nas cidades que acabou
por se configurar como uma das características mais importantes
da escravidão urbana, juntamente com o aluguel, embora esta úl­
tima não fosse uma forma exclusiva das cidades.
O sistema de ganho parece ter sido altamente rentável, uma vez
que havia senhores que viviam exclusivamente do ganho de seus
escravos. A prática estendeu-se na cidade, ao longo do Império,
quando se procurou até organizar formalmente esse tipo de explo­
ração. Os senhores passaram a ter que requerer licenças nominativas
especiais para seus escravos saírem ao ganho23•
Talvez pela importância que os escravos de ganho assumiram
no desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro, ou quem sabe, ao
conhário, devido à importância que a cidade assumiu a partir do
século XIX, o fato é que os escravos de ganho foram bem mais estu­
dados nessa localidade do que nas demais cidades do País. O mes­
mo sucede com o estudo da escravidão urbana. Em quatro traba­
lhos, com intervalos relativamente curtos entre si, a questão dos
escravos de ganho veio à tona tendo como palco a mesma cidade,
dando margem a interpretações diferentes sobre o caráter dessa
forma de trabalho 24•
Em seu estudo pioneiro, Mary Karasch aborda amplamente a
questão; esclarece seu funcionamento, mas não se detém na análise
das contradições que o ganho introduzia no funcionamento do
escravismo nas cidades ou nas relações entre senhores e escravos,
como fariam trabalhos futuros. Enfatizou, no entanto, a importân­
cia que o trabalho ao ganho assumia nas possibilidades de mobili­
dade social - mudanças de profissão e status - e até de conquista
da liberdade devido ao pecúlio25• A Autora privilegia em seu traba­
lho o grupo dos escravos e as relações que estabeleciam entre si.
Talvez por esse fato, não se tenha detido em outras questões relati­
vas aos escravos de ganho.

23 Cf. Marilene da Silva. Op. cit., p. 121-3.


24 Vejam-se: Karasch. Op. cit. (1972). Algranti. Op. cit. (1983). Silva. Op.
cit. (1986). Soares. Op. cit. (1988). -
25 Cf. Mary Karasch. Op. cit., p. 411-44 e 462-79.

204 1 Leila Mezan Algranti


Alguns anos depois, em O Feitor Ausente, eu retomava a questão
dos escravos de ganho, à luz dos estudos recentes da historiogra­
fia norte-americana26, incorporando algumas posições como as re­
ferentes às transformações que a escravidão sofria nas cidades, e as
adaptações necessárias para a sua sobrevivência. Discordava, po­
rém, num aspecto básico: não era possível pensar em um sistema
de trabalho diferente para cidade e campo. As mudanças e trans­
formações ocorridas na escravidão como um todo e nas relações
entre escravos e senhores solapavam o sistema e poderiam, a longo
prazo, colaborar para levá-lo à extinção, mas não eram fundamen­
tais; preservava-se a essência da exploração e seus princípios: a pos­
se, a hereditariedade e a dominação. Com base nesses pressupos­
tos, como pensar o trabalho ao ganho e seus desdobramentos? Se­
ria o trabalho ao ganho trabalho escravo, ou outra forma de traba­
lho compulsório, como tantas que se desenvolveram na América
(mita, encomienda, indentured service)? Um estudo retrospectivo des­
sas formas de trabalho compulsório logo assinalou que não havia
pontos de convergência, pois o escravo de ganho, independente­
mente do pecúlio, da mobilidade, e até da liberdade concedida para
morar sozinho, continuava preso a seu senhor, através do direito
de propriedade, podendo inclusive ser vendido ou penhorado27•
Duas questões fundamentais precisavam ser esclarecidas: de
um lado, as relações que se estabeleciam entre o escravo e seu se­
nhor, e entre o escravo e o "comprador" de sua força de trabalho;
do outro, a natureza do valor adquirido: seria salário o que o es­
cravo recebia de terceiros? Mas, e o valor que era entregue ao se­
nhor? Sabe-se que grande parte, ou a totalidade, da quantia recebi­
da não permanecia com o escravo; logo, configurava-se como uma
espécie de renda.
Renda e salário foram as duas alternativas que avaliei extensa­
mente, e a resposta, de certo modo, como apontou Jacob Gorender,
foi indefinida28• Indefinida porque não as excluí totalmente de mi­
nha análise, nem as acatei por inteiro. Eram duas possibilidades de
análise. Para o escravo - o valor em dinheiro - poderia ser consi­
derado uma "variante de salário", embora não fosse de forma al-

26 Basicamente a partir dos estudos de Wade e Goldin. Op. cit.


27 L. Algranti. Op. cit., p. 65-73.
28 Cf. J. Gorender. A Escravidão Reabilitada. Op. cit., p. 91.

O s ofícios urbanos e o s escravos a o ganho n o Rio d e Janeiro colonial ( 1 808- 1 822) 1 205
guma regime assalariado; para o senhor, o dinheiro transformava­
se em renda advinda dos juros do capital investido na compra do
escravo. Renda ou variante de salário, cada uma delas eram inter­
pretações que só davam conta de um dos lados da questão e não
abarcavam o conjunto das relações de produção, sobretudo, as re­
lações entre o escravo e o "comprador" de sua força de trabalho.
Este me parece hoje o ponto nevrálgico da análise. Não percebia
com clareza a complexidade das relações engendradas pelo traba­
lho ao ganho e deixei em aberto os dois caminhos a seguir, pois me
pareciam insuficientes para uma análise total, que era o que eu
buscava29•
Os trabalhos subseqüentes, levando em conta a discussão que
empreendi sobre "trabalho ao ganho e salário" e / ou a análise de
Ciro Flamarion Cardoso sobre as "brechas" nos sistemas escravistas,
optaram pela forma de salário (brecha assalariada) procurando es­
clarecer ô. relação entre o escravo e aquele que comprava sua força
de trabalho30• No mais, concordamos que a relação entre o escravo
de ganho e seu senhor, no momento da apropriação do dinheiro
adquirido, emergia como essencialmente escravista. Era o direito
de posse do senhor sendo exercido, mesmo que o escravo manti­
vesse algo para si.
Luis Carlos Soares, entretanto, observou que havia relações dis­
tintas entre os diversos negros de ganho e seus senhores: " . . . suge­
rimos, diz ele, que as formas de escravidão de ganho que permi­
tiam uma remuneração salarial aos cativos sejam vistas como uma
'brecha assalariada' na economia escravista urbana" . Para o Autor,
esses escravos estavam envolvidos numa relação de trabalho com
um duplo aspecto. Se na relação com seus senhores eles eram es­
cravos, com os seus empregadores eram autênticos assalariados.
Mas, a situação dos vendedores ambulantes, pescadores, quitan­
deiros de loja, segundo o Autor, era diferente, pois vendiam muitas
vezes mercadorias que tinham sido fornecidas pelos seus senhores,
logo não seria salário. Ou seja, quando o escravo trabalhava por
conta própria, em qualquer serviço, o dinheiro que ele recebia em

29 Cf. L. Algranti. Op. cit., p. 65-72.


3° Cf. Ciro Flamarion Cardoso. Escravo ou Camponês ? O Protocampesinato
Negro nas Américas. São Paulo. 1987, p. 54-90. Soares. Op. cit., p. 131.
Silva. O Escravo ao Ganho - uma Nova Face da Escravidão. Tese. Op. cit.,
p. 107, 131-2.

206 1 Leila Mezan Algranti


troca seria salário, mas quando vendia produtos do seu senhor não
era salário31•
Duas observações podém ser feitas. A primeira é que as diferen­
ças apontadas entre os vários tipos de trabalho ao ganho são ape­
nas variantes de uma mesma situação - isto é, da mercantilização
da força de trabalho que o sistema de ganho propiciava. Contudo,
por mais que na prática tenha havido mercantilização da força de
trabalho, o escravo não era um trabalhador livre, e qualquer que
fosse o tipo de serviço prestado ou a forma assumida, ele estaria
sempre trabalhando em primeira instância para o seu senhor sen­
do propriedade deste; somente se houvesse excedente ele o guar­
daria para si. Mesmo trabalhando numa loja própria, como no caso
do escravo Henrique, que o Autor cita para justificar a interpreta­
ção, sua condição de escravo se sobrepunha a qualquer outra que
viesse a obter (lojista, trabalhador "independente", proprietário de
outros escravos etc.). Eram casos-limite desdobramentos da forma
ao ganho, que se sofisticava com o desenvolvimento da prática
escravista. O mesmo sucedia com os escravos ao ganho que viviam
sozinhos e que deveriam se sustentar.
O escravo ao ganho não era de forma alguma um assalariado
"típico" como se afirmou. Ligado a esse aspecto, cabe a segunda
observação: os autores que analisaram o trabalho ao ganho dos es­
cravos como brecha assalariada esbarraram no mesmo ponto ne­
vrálgico com o qual me deparei ao entendê-lo como variante de sa­
lário - isto é, consideraram a contrapartida em dinheiro o fator
fundamental da relação. Certamente, há diferenças nas interpreta­
ções, pois não a considerei uma relação típica do salariato. Mas,
hoje, o aspecto que sobressai para mim é a condição legal do indi­
víduo, a forma como ele era visto pela sociedade e como ele pró­
prio se via. É no sistema de dominação, na posse, que repousa a
essência das relações numa sociedade escravista.
Por mais que a forma de trabalho ao ganho iluda os estudiosos
da escravidão, por tudo o que ela acarreta em termos de vivência
do escravo, ele será sempre considerado um trabalhador não-livre,
até e principalmente por si próprio e também pelo que contrata
seus serviços, que sabe perfeitamente que desfruta do trabalho de
um escravo de outro senhor. É impossível desmanchar a força de

31 Cf. Luis Carlos Soares. Op. cit., p. 131-3.

Os ofícios urbanos e os escravos ao ganho no Rio de Janeiro colonial ( 1 808- 1 822) 1 207
séculos da dominação escravista, e os efeitos que imprimia nas
mentalidades dos indivíduos, nos costumes e posturas entre as
pessoas. Ambos os contratantes tinham percepção de que apesar
da transação monetária, pouco ou nada mudava entre eles e na
posição que ocupavam na sociedade. Talvez esse seja o aspecto mais
importante da questão.
Jacob Gorender, no início da década de 1990, revisitando a his­
toriografia da escravidão com o objetivo de analisar o novo perfil
que ela assumiu nos últimos anos - "uma escravidão reabilita­
da", segundo o Autor - abordou a questão do ganho dos escravos
e criticou as visões que o analisaram em termos de salário (brecha
assalariada) ou perceberam relações não-escravistas. Para o Autor,
o escravo-camponês, escravo assalariado, escravo indiferenciado
do operário do regime capitalista, fazem parte desse novo perfil do
escravo brasileiro, redesenhado pela historiografia. Gorender faz
um balanço das várias interpretações sobre o trabalho ao ganho e
conclui: que o negro de ganho era escravo e só escravo. "Como
todo escravo definia-se não pela atividade exercida, porém pela
condição de propriedade semovente, de mercadoria humana"32•
Não vê relação não-escravista entre o escravo e aquele que se utili­
za de seus serviços, ou uma forma precursora do capitalismo. Mas,
também não aponta nem aborda as contradições que o ganho cau­
sava ao sistema. Considera que as atividades poderiam até ser as
mesmas de um trabalhador livre. Penso que o trabalho ao ganho
introduz aspectos importantes à análise da escravidão no Brasil e
que a discussão é válida, pois aponta para os desdobramentos do
sistema escravista, para as experiências dos escravos e colabora
com novos elementos para se pensar a decadência da escravidão
no país.
Quanto ao valor recebido pelo escravo - ponto central da dis­
cussão - não é salário, embora pareça, pois não podia usufruí-lo
na sua totalidade, nem dispor dele como bem lhe aprouvesse. Não
há relação não-escravista, posto que de um lado temos um homem
livre e de outro um escravo33• Os desdobramentos que fiz sobre

32 Cf. J. Gorender. Op. cit., p. 92.


33 Segundo Marx, " ... a força de trabalho só pode aparecer no mercado
como uma mercadoria, sempre e quando seja oferecida e vendida como
uma mercadoria por seu próprio possuidor, isto é, pela pessoa a quem

208 1 Leila Mezan Algranti


essa questão, apoiada nas formulações de Marx sobre o trabalha­
dor livre, sempre apontav � m na direção de uma prática à margem
do sistema e me levavam a uma posição indefinida. Isto é, desven­
dava de um lado e de outro, apontava para a situação histórica
concreta, e acabava por não optar entre a teoria e a prática.
Marilene Nogueira da Silva também enveredou pela análise da
brecha assalariada, considerando porém o excedente que o escravo
guardava para si, como uma forma de salário. "Consideramos, diz
ela, que esta brecha no sistema escravista apresentar-se-ia como
um dos aspectos que tomou o escravismo colonial para atender as

situações específicas de cada região. O escravo ao ganho não de­


finiria o sistema escravista, nem fora o seu ponto de sustentação.
O seu desaparecimento não comprometia o sistema como um
todo. "34• Observação semelhante se encontra no Feitor Ausente so­
bre a variante de salário35• Como apontou Jacob Gorender, a Auto­
ra viu no sistema de ganho um elemento de desagregação do es­
cravismo e de evolução no sentido do capitalismo36• Para a Autora,
haveria uma espécie de treinamento de mão-de-obra que serviria
de transição para o trabalho livre37•
O que podemos dizer sobre as observações acima é exatamente
o que afirmamos há dez anos atrás. As formas que a escravidão
assumiu nas cidades minavam o sistema, corrompiam a institui­
ção, acirravam as tensões e contradições e poderiam a longo prazo
contribuir para sua decadência. Mas, qualquer que fosse o efeito a
longo prazo, a escravidão continuava a ser a forma dominante de
exploração do trabalho e só se extinguiria com a decretação da abo­
lição da escravatura. Sabe-se porém, pelo próprio trabalho de Ma­
rilene Nogueira da Silva e de outros historiadores que estudaram a
escravidão no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX,

pertence. Para que esse possuidor possa vendê-la como uma mercado­
ria é necessário que disponha dela, isto é, que seja livre proprietário de
sua capacidade de trabalho, de sua pessoa." O escravo, como sabe­
mos, não preenche esses requisitos. K. Marx. El Capital. Trad. 2.ª ed.
México. 1973. Tomo 1, livro 1, seção 2.ª, cap. IV, p. 21. Apud Algranti,
p. 67.
3-1 Marilene Nogueira da Silva. Op. cit., p. 134-5.
35 Cf. L. Algranti. Op. cit., p. 69.
36 Cf. J. Gorender. Op. cit., p. 92.
37 Marilene Nogueira da Silva. Op. cit., p. 167.

Os ofícios urbanos e os escravos ao ganho no Rio de Janeiro colonial ( 1 808- 1 822) 1 209
que o auge do sistema de ganho ocorreu na década de 1860, de­
caindo paulatinamente nos anos setenta e sensivelmente nos anos
seguintes38•
Muitos escravos foram vendidos para zonas prósperas de agri­
cultura. Logo, não parece haver vinculação entre escravos de ga­
nho e transição para o trabalho livre, até porque somente com mui­
ta dificuldade os negros de ganho conseguiam comprar sua liber­
dade. A escravidão como um todo extinguia-se lentamente a partir
de contradições internas e não especialmente devido à prática do
ganho. No período estudado, contudo, ela mantinha ainda sua for­
ça. Além disso, o trabalho livre sempre conviveu com o trabalho
escravo no campo e na cidade desde o período colonial até o Impé­
rio. Houve, sim, formas múltiplas de escravidão, e o ganho é uma
delas, e específica do mundo urbano; uma acomodação para en­
frentar as características da vida nas cidades.
Ligada essencialmente a essa questão, coloca-se o problema do
controle dos escravos no mundo urbano, pois, além dos que saíam
ao ganho, a maior parte dos cativos circulava intensamente pelas
ruas da cidade e seus arredores. Como comentei anteriormente, uma
série de posturas municipais regulava a vida dos escravos urbanos
na primeira metade do XIX: proibição de porte de armas e toque de
recolher eram algumas delas. Conforme aumentava a população
negra na cidade, crescia a suspeição em relação aos negros - es­
cravos ou livres, o medo da sociedade a possíveis revoltas e conse­
qüentemente a repressão (mais prisões e aumento das penas às in­
frações) . Por outro lado, também aumentavam os crimes dos escra­
vos e outras pequenas infrações em resposta a essas posturas. To­
das essas questões foram objeto de estudo e documentadas no Fei­
tor Ausente39•
Mas, há duas críticas que têm sido feitas à minha análise a res­
peito do controle exercido pelo Estado sobre a população negra
do Rio de Janeiro de D. João, que gostaria de comentar. Uma das
críticas refere-se ao próprio título da tese "O Feitor Ausente" e à
idéia de que nas cidades não há, como no campo, a figura do feitor
mediando as relações entre senhores e escravos: seguindo os pas­
sos do escravo, aplicando o castigo, controlando o trabalho. A

38 Apud J. Gorender. Op. cit., p. 93.


39 Cf. L. Algranti, p. 187.

2 1 O 1 Leila Mezan Algranti


essa visão, contrapõem-se exemplos da existênci a de feitores em
chácaras, oficinas mecânicas, lojas e indústrias40.
Elencar casos em que foi detectada a presença de feitores seria
realmente uma tarefa árida, como bem lembrou um dos críticos41.
O fato é que, possivelmente, a maior parte dos escravos - todos os
que trabalhavam nas ruas, que saíam ao ganho, que trabalhavam
de forma independente e até mesmo os escravos domésticos - não
tinham um feitor a seguir-lhes os passos. A figura do feitor desapa­
rece das cenas urbanas do Rio Antigo, e é essa liberdade de movi­
mentos, inclusive para ser preso sem que o senhor soubesse duran­
te dias do seu paradeiro, que confere vida à "Cidade Negra"42. É a
mobilidade física dos escravos que apavora a cidade branca, com
seus bandos de capoeiras, congadas, jogos, bebedeiras e esconde­
rijos de fugitivos, que eu tanto enfatizei, assim como outros auto­
res43. É a ausência do feitor que chama a atenção; se a presença
fosse marcante, não caberia assinalar a diferença.
Tantos anos depois do trabalho com as fontes, é essa imagem
que ainda permanece fortemente presente, tendo sido muito bem
captada por Josué Montello, em Os Tambores de São Luís e apresen­
tada como epígrafe do livro44• Na documentação da polícia no pe­
ríodo estudado, não há registros de crimes de escravos contra fei­
tores, nem menção alguma a qualquer capataz45. Os escravos circu­
lavam livremente, como continuariam a fazê-lo na segunda meta­
de do século XIX, e as medidas de controle eram semelhantes, com
a agravante, é claro, de que o Rio de D. João não era nem de longe

40 A crítica é feita por Luis Carlos Soares e endossada por Sidney Chaloub
e Jacob Gorender. Cf. Soares. Urban Slavery. . . Op. cit., p. 276-8. Sidney
Chaloub. Visões da Liberdade - uma História das Últimas Décadas da Es­
cravidão na Corte. São Paulo. 1990, p. 271, nota 58. J. Gorender. Op. cit.,
p. 94-5.
41 Veja-se S. Chaloub. Op. cit., p. 271 .
42 "Cenas da cidade negra" é o título de um capítulo do livro de S. Cha­
loub.
43 Veja-se L. Algranti. Op. cit., p. 145-6, 169-70, 181 . Na segunda metade
do XIX, com o aumento da população negra, essas questões ficam ain­
da mais evidentes.
44 Josué Montello. Os Tambores de São Luís. 4.ª ed. Rio de Janeiro. 1981, p.
133.
4s Cf. ANRJ. Cod. 323 e 404.

Os ofícios urbanos e os escravos ao ganho no Rio de Janeiro colonial ( 1 808- 1 822) 1 21 1


a grande cidade do final do século com 50 mil negros. Era uma
cidade em crescimento na qual a questão negra já se fazia sentir.
Nas indústrias e manufaturas, é evidente que deveria haver um
responsável pela produção e controle dos trabalhadores, como
ocorre também quando a mão-de-obra é livre. No caso dos escra­
vos, certamente, a fiscalização seria ainda maior. Não estudei o tra­
balho escravo nesses estabelecimentos, e considero importante o
fato de outros o terem feito.
A outra crítica é de que eu exagero o papel do Estado no controle
da população negra no Rio de Janeiro no período estudado (1 808-
1822), atribuindo-lhe as funções do "feitor ausente". O "meu" Es­
tado-Feitor seria - segundo foi dito - um ajuste para resolver as
adaptações que a escravidão sofreu nas cidades e manter o contro­
le dos escravos. O ajuste mais importante46• Segundo os críticos, as
interferências do Estado seriam restritas aos locais públicos, aos
crimes prnticados pelos escravos e à aplicação de castigos a pedido
dos senhores. "A participação dos burocratas governamentais nas
relações de trabalho só iria se consolidar meio século depois. "
Não creio que exagero o papel d o Estado como feitor. Soares,
com a aquiescência de Chaloub, é quem reduziu sensivelmente a
minha visão do Estado com respeito à feitorização.
Não há um Estado Feitor na minha análise, nem as funções de
feitor assumidas pelo Estado são o grande esforço de ajuste da es­
cravidão às cidades. Caso fosse, eu defenderia a idéia de que escra­
vidão e cidades é algo incompatível, como fez Richard Wade, para
quem a questão do controle dos escravos foi considerada vital, in­
solúvel e responsável pela decadência da instituição nas cidades
sulistas. Assim como no sul dos Estados Unidos, várias medidas
foram tomadas para controlar o crescente número de negros. Mas,
assim como os feitores não deram sempre conta das suas funções,
as medidas de controle adotadas pelo Estado também não surti­
ram sempre efeito, haja vista a lista de prisões por crimes, fugas e
pequenas infrações, com a qual trabalhei no curto período de doze
anos. As medidas eram constantemente desrespeitadas, os alvarás
reiterados e as rondas não poderiam estar em todos os lugares.
Muitos outros negros escaparam da polícia, e assinalei na tese o
caráter parcial da documentação.

46 Apud L. C. Soares. Chaloub. Op. cit., p. 271, nota 58.

212 1 Leila Mezan Algranti


O espaço deixado aberto pela ausência do feitor foi ocupado pelo
Estado que assumiu funções geralmente atribuídas a um feitor: se­
guir os passos (rondas), aplicar castigos, fiscalizar ao máximo os
movimentos dos escravos (cumprimento das normas de conduta).
É por esses motivos que afirmei:

"Os direitos do Estado estavam acima daqueles dos senhores, prin­


cipalmente no que concerne às questões de segurança, ou quando seus
próprios interesses eram ameaçados. Entre o senhor e o escravo inter­
punha-se o Estado. Era através de seus agentes que se efetuava a puni­
ção dos cativos no Rio de Janeiro. Após 1 830 definitivamente a punição
dos escravos tornou-se assunto do Estado, enquanto as decisões sobre a
necessidade do castigo permanecia nas mãos dos senhores. Ora, essa
era precisamente a postura dos feitores e capatazes que no mundo rural
aplicavam os castigos sob orientação dos senhores. Nas grandes cida­
des, portanto, ao Estado cabia o papel do feitor, embora o feitor de fato
estivesse ausente. "47

Mas, o Estado não agia apenas como feitor. Interferia também


nas relações de trabalho entre escravos e senhores, e servia como
mediador entre disputas de escravos que recorriam à intendência
da polícia para resolver querelas entre si ou com seus senhores.
Esses aspectos foram enfatizados em vários momentos do trabalho
com apoio de fontes primárias. Ora era o Estado protegendo o es­
cravo contra maus tratos do senhor com base em denúncias de ou­
tros escravos e vizinhos48, ora privava o senhor dos serviços do es­
cravo prendendo-o por vários dias e além do tempo necessário só
para poder utilizar-se de seus serviços na esfera pública. Para o
mesmo fim, obrigava através de alvarás particulares, a cederem os
serviços de seus escravos49• Chegava até a envolver-se em questões
de alforria, posicionando-se tanto a favor dos escravos como dos
senhores 50• Como se sabe, casos de amasiamento e sevícias eram
bem utilizados pelos próprios negros visando a liberdade. Logo,
como se pode ler no trecho acima, o Estado se colocava acima da

47 Cf. L. Algranti. Op. cit., p. 198.


48 Idem, p. 115-6.
49 Idem, p. 78, 81-2.
50 Idem, p. 106-13.

Os ofícios urbanos e os escravos ao ganho no Rio de Janeiro colonial ( 1 808- 1 822) 1 213
relação senhor-escravo e agia muitas vezes contra os interesses dos
senhores, mas também em outras situações assumia as funções do
feitor.
Sem dúvida, não se trata do Estado pós-1850, nem de um Estado
Nacional independente. As ações se passam no Rio de Janeiro, sede
da Corte portuguesa, quando o Brasil ainda vivia sob o jugo colo­
nial e a cidade esparramava-se além de limites jamais sonhados.
As medidas de controle sobre os negros foram surgindo a partir
das necessidades e a instituição da escravidão ia moldando-se às
necessidades também da cidade. Era o trabalho ao ganho, o alu­
guel, os escravos usufruindo de mobilidade e liberdades às quais
não estavam acostumados (trabalhando para comer, morando so­
zinhos) e todos juntos aprendendo a conviver sem a figura do fei­
tor e de seu chicote51• São vários, portanto, os ajustes que a escra­
vidão vivenciou na cidade e não apenas, ou principalmente a fei­
torização do Estado como foi dito.
Sem dúvida, o controle social era fundamental, e quanto à eficá­
cia da "feitorização", ficará a cargo da historiografia dar conta do
porquê da ausência de rebeliões escravas numa cidade que atingi­
ra tão grande proporção de negros - escravos e livres.

51 Cf. L. Algranti. Op. cit., p. 203.

214 1 Leila Mezan Algranti


V
CO M É RC I O C O LO N IAL
E EXC LUSIVO M ETRO POLITANO
José Jobson de Andrade Arruda
Dep.tº de H istória, FFLCH-USP

EXP LO RAÇÃO C O LO N IAL


E CAP ITAL M E RCANTI L

A temática da exploração colonial é sempre atual. Seja no qua­


dro historiográfico que sobreleva a totalidade, que busca as articu­
lações e mediações, seja no contexto dos símbolos, das mitologias,
em suma, do imaginário. Jamais poderíamos descartar a idéia de
que fomos ou somos, de alguma forma, explorados. Esta idéia jaz
em nós que vivemos um ponto determinado na escala histórica dos
povos que um dia foram Colônias. Não adentraremos o universo
das representações envolvidas no jogo da condição colonial e suas
implicações. Sem desconsiderar a sua importância, retomaremos a
questão a partir do jogo duro dos números e do seu significado
transparente, desde que remetido às condições mais gerais de sua
própria produção - isto é, às determinações mais amplas engen­
dradas pela específica natureza do capital mercantil.
A polêmica em torno da questão da lucratividade das colônias
é clássica. Não pode ser descartada como peça surrada de um ve­
lho baú historiográfico. A questão, como se sabe, remonta a Adam
Smith. Nos anos sessenta foi retomada pelo debate entre R. P.
Thomas e R. B. Sheridan. Para Thomas, a exploração colonial rea­
lizada pela Inglaterra no quadro do antigo Império representou per­
das significativas, porque os investimentos realizados nas colônias
retardaram o desenvolvimento econômico da própria Inglaterra1•
Nos anos setenta, Philip Coelho retomou essa mesma linha de ar-

1 Thomas, Paul Robert. "The Sugar Colonies of the Old Empire: Profit
or Loss for Great Britain?". Economic History Review XXI (1). 1968, p.
30-45.

Exploração colonial e capital mercantil 1 217


gumentação, analisando a lucratividade do imperialismo britânico
nas Í ndias Ocidentais e concluindo que os verdadeiros ganhadores
foram os proprietários das plantations, que se garantiram preços
mais altos do que os obtidos no mercado mundial, além da incisiva
proteção militar garantida pelo escudo britânico2•
Num sentido contrário argumentava R. B. Sheridan, cujos tra­
balhos publicados nos anos sessenta apontam para o crescimento
econômico da Inglaterra no século XVIII e sua inabalável caminha­
da em direção à Revolução Industrial, estritamente ligada às suas
vinculações diretas ou indiretas com o mundo colonial. Sheridan
calcula que, em apenas um ano (1 773), os ingleses extraíram 1,5
milhão de libras esterlinas da Jamaica3• Comparativamente, Michel
Morineau mostrou que o lucro do comércio inglês com Portugal
em 1 760 foi de l .309.909 libras4• Considera-se que eram lucros ele­
vados contra modestos investimentos de capital no aparelho pro­
dutivo da Colônia.
No final do século, entre 1 796 e 1811, quando o valor global das
exportações coloniais brasileiras para Portugal atingiu a cifra de
154 mil contos, os onze principais produtos de exportação (açúcar,
algodão, couros secos, arroz, tabaco, café, vaquetas, aguardente,
couros salgados, meios de sola e atanados) contabilizaram lucro
de 68 mil contos, equivalendo a mais de 50%, considerando-se que
a exportação destes onze produtos no período custaram aos im­
portadores portugueses 127 mil contos e geraram 195 mil na reven­
da. A Colônia brasileira garantia o superavit da balança comercial
portuguesa em relação às nações estrangeiras, até mesmo em rela­
ção à Inglaterra, no final do século XVIII, gerando acumulação in­
terna em Portugal e criando um potencial de investimentos que se
expressa no arranque das fábricas portuguesas no final do século,
fábricas estas que tinham no mercado colonial cativo sua condição
sine qua non de expansão. De fato, no quadro geral das importações
coloniais, 30% eram representados por produtos das fábricas portu-

2 Coelho, Philip R. P. "The Profitability of Imperialism: the British


Experience in the West Indies 1768-1772". Explorations in Economic
History, vol. 10, n.º 3. 1973, p. 253-80.
3 Sheridan, Richard B. "The Wealth of Jamaica in the Eighteenth Cen­
tury". Economic History Review XVIII. 1965, p. 292-311.
4 Morineau, Michel. Incroyables Gazettes ef Fabuleux Métaux. Editions de

la Maison des Sciences de l'Homme. Paris. 1985, p. 182.

218 1 José Jobson de Andrade Arruda


guesas, produtos rústicos, perfeitamente adequados à natureza
escravista da sociedade colonial e ao processo técnico rudimentar
característicos das industrializações neófitas. A prova da correla­
ção entre estes dois pólos, mercado colonial e industrialização por­
tuguesa, é atestado pelo desmoronamento das fábricas portugue­
sas com a abertura dos portos brasileiros5•
A correlação estabelecida por Sheridan, entre a Revolução In­
dustrial inglesa e seus liames com o mundo colonial, é relativizada
ou simplesmente descartada por autores como Ralph Davies, M.
W. Flinn e Paul Bairoch6• Opostamente, Peter Mathias, W. E .
Minchinton, P. Deane e W. A. Cole7 sobrelevam o papel d o mercado
externo e; sobretudo, colonial. Deane e Cole afirmam que a existên­
cia de mercados ultramarinos consumidores de manufaturas in­
glesas, fornecedores de matérias-primas industriais e alimentos,
foram uma condição estratégica do processo de industrialização
em todos os seus estágios. O comércio exterior ampliou a poupan­
ça interna, e este capital foi decisivo para o aceleramento econômi­
co precipitado nas últimas décadas do século XVIII, concentrando­
se em indústrias que tinham custos decrescentes e mercados mais
elásticos. O setor exportador foi, sem dúvida, o setor mais dinâmi­
co da economia inglesa neste período.
Enquanto a renda real crescia 44% entre 1700 e 1770, os produ­
tos originários da indústria de exportação cresceram 156%, a pro­
dução para mercado interno 14% e o setor agrícola 1 7%. O perfil
das exportações mudou substancialmente e aponta na mesma di­
reção: para a Europa reduziram-se de 85% para 30%; para a Amé­
rica do Norte cresceram de 6% para 32%; para as Índias Ociden­
tais de 5% para 25%; para as Índias Orientais e Á frica de 4% para

5 Arruda, José J. A. O Brasil no Comércio Colonial. São Paulo: Á tica. 1980,


p. 353 e segs.
6 Davies, Ralph. "English Foreign Trade 1700-1774". Economic History
Review XV (2). 1962, p. 295. Flinn, M. W. Origins of Industrial Revolution.
Londres: Longmans. 1966, p. 60. Bairoch, Paul. "Le rôle du grand
commerce dans la Révolution Industrielle Anglaise". Annales, E.S.C.
(2). 1973, p. 543.
7 Mathias, Peter. The First Industrial Nation. Londres: Methuen. 1972.
Minchinton, W. E. "Introduction", in: The Growth of the English Overseas
Trade. Londres: Methuen, 1969, p. 44. Deane, P. & Cole, W. A. British
Economic Growth 1 688-1 959. Cambridge: C.U.P. 1962, p. 28, 32, 35, 68.

Exploração colonial e capital mercantil 219


13%. Isto prova que o mundo colonial disperso em três continentes
- América, África e Ásia - que consumiam apenas 15% das ex­
portações inglesas no início do século XVIII, passaram a 70% no
final do século.
É inegável, portanto, a decisiva importância do impacto do mer­
cado mundial e, sobretudo, colonial, na transformação da estrutu­
ra técnica da produção industrial inglesa, até então assentada no
binômio ferramenta/ energia humana. Isto demonstra que o mun­
do colonial cumpriu um papel, desempenhando funções precípuas
de elo alimentador do processo de acumulação primitiva de capi­
tais, promovendo a transferência de riquezas das colônias para as
metrópoles que se degladiavam em torno da apropriação do exce­
dente colonial. O excedente, sob a forma de transferências líquidas
ou créditos na Balança Comercial, sustentou os tesouros públicos,
alimentou a dívida pública, engurgitou os cofres particulares dos
colonizadores. Como se explica que as Colônias tenham preenchi­
do este papel no cenário da colonização? A simples constatação
empírica, documental, é suficiente para encerrar a questão? Pare­
ce-nos que não, que é necessário remeter o problema aos paradig­
mas mais amplos da formação e desenvolvimento do capital mer­
cantil.
De fato, a era do capital mercantil corresponde ao período de
formação histórica do capitalismo, na qual o capital fixo jogava um
papel relativamente pequeno no processo de reprodução. Excluin­
do a terra, uma parcela considerável da riqueza consistia em capi­
tal circulante, que exigia pagamentos monetários quase imediatos
e, ao mesmo tempo, criava enorme disponibilidade de capitais sem­
pre à procura de bons investimentos, capazes de atender à exigên­
cia de rápida circulação dos investimentos mercantis. Isto explica
porque os grandes empresários capitalistas desconheciam a espe­
cialização, constante virtual entre os membro& de pequena burgue­
sia, mestres, lojistas etc. Os mercadores de grosso trato eram, de
acordo com as oportunidades do momento, armadores, financis­
tas, seguradores, banqueiros e, no limite, empresários industriais
ou agrícolas. Uma volubilidade intrínseca jazia no movimento do
capital mercantil: se perdia no comércio da pimenta do malabar,
ganhava na cochonilha, se perdia nos financiamentos para o Esta­
do, recuperava nos empréstimos aos pequenos agricultores, se per­
dia no frete das cargas, recuperava no seguro, se perdia na armaze­
nagem das mercadorias, ganhava na construção dos barcos. Nestes

220 1 José Jobson de Andrade Arruda


termos, percebe-se um elo perdido, uma certa identidade operativa
entre o capital mercantil e o capital monopolista na sua fase finan­
ceira, com tendência crescénte a expatriar-se, a dominar, via siste­
ma financeiro, a estrutura produtiva do sistema, reservando-se para
fugas rápidas, quando ameaçado pela perda de lucratividade ou
circunstâncias políticas fortuitas; mas incontroláveis.
Seria, então, o capital mercantil mais "moderno" do que o capi­
tal industrial, visceralmente enraizado na produção, mas por isso
mesmo sujeito ao destino do objeto de seus investimentos? Braudel
sugere que não havia um ramo de atividade econômica substan­
cialmente remunerador, capaz de absorver toda a potencialidade
do capital mercantil. Daí sua tendência a buscar outros campos de
aplicação, refugiando-se na procura de investimentos atribuidores
de prestígio social, na aquisição de terras, mas também de terras
exploráveis em moldes modernos, nas especulações imobiliárias,
nas atividades mineiras e, até mesmo, industriais8•
Qual era a "vocação" do capital mercantil, se lhe pudéssemos
atribuir uma certa "vontade"? Certamente, o investimento em meios
afins à realização e agilização do circuito do capital: matérias-pri­
mas, mercadorias, armazéns, equipamentos, navios, moedas. Mas
também crédito para os clientes e agentes, serviços de câmbio, ope­
rações bancárias e securitárias. Como era próprio ao capital mer­
cantil, buscava-se estreitar o circuito monetário, cujos resultados
eram lucros excepcionais, o que, por sua vez, era facilitado pela
multiplicidade de oportunidades de investimentos. Por esta prece­
dência essencial, o capital mercantil resistia adentrar à produção e
submetê-la diretamente ao seu controle, subsumi-la integralmente,
preferindo uma forma de subordinação indireta, mesmo que isto
significasse (e de fato significava) que a maior parcela do capital
circulante representasse gastos com o trabalho. Gastos elevados
porque os produtores independentes (artesãos, mestres manufa­
tureiros) não vendiam a sua força de trabalho, mas o produto do
seu trabalho incorporado na mercadoria. Em compensação, para o
capital mercantil, os dois pontos extremos do circuito do capital
aproximavam-se, na medida em que não havia imobilização em
fatores de produção (ferramentas, máquinas, oficinas etc.), ao mes-

8 Braudel, Femand . Civilização Material, Economia e Capitalismo. São Pau­


lo: Martins Fontes. 1966. 2.º vol. O fogo das Trocas, p. 201 e segs.

Exploração colonial e capital mercantil 1 22 1


mo tempo que garantia sua versabilidade, a liberdade para trans­
mitir rapidamente às melhores oportunidades do mercado. Por esta
razão, tem lugar assegurado, na era do capital mercantil, tanto o
trabalho independente do produtor europeu, integrado ou não no
putting-ou t system, quanto o trabalho escravo das plantações tro­
picais, representando ambos custos elevados para o capital circu­
lante, mas cujos ônus de gerência e reposição ficavam para seus
controladores imediatos. Não pode causar espécie, portanto, a
maior importância adquirida pelo capital circulante, ainda mais
que o sistema monetário dependente da oferta de metais, e com ele
identificado, era determinado pelo fluxo do comércio exterior. Con­
siderando-se a noção de mercado inelástico, imperante na época
mercantilista, resultava um nacionalismo agressivo, no qual a polí­
tica monetária e comercial eram peças vitais do sistema de poder,
realçando o papel do Estado na vida econômica.
Assim, não é observando o capital mercantil em relação ao seu
devi; (o capital industrial), mas em função do seu ser, que se poderá
equacionar historicamente, naquele momento determinado, o sig­
nificado da colônia e do próprio sistema colonial no processo de
constituição histórica do capitalismo, êmulo do capital mercantil é
a sua resistência a penetrar visceralmente na produção, e não sua
tendência incontida a dela assenhorear-se. Se pudesse simplesmente
combinar (do lado de fora) as formas várias de produção pré-exis­
tentes, sua meta seria atingida, como magistralmente apontou
Mantoux, ao definir o papel dos comerciantes manufatureiros. Isto
explica a natureza conservadora, não-revolucionária do capital
mercantil. Foi somente, e tão-somente, quando as oportunidades
de lucro pelo rápido giro mercantil declinaram, que se fundiram o
capital mercantil e a produção, e isto significava imobilização em
capital fixo, enrijecimento, perda substancial de versatilidade, que
sempre fora sua marca indelével. Nessa fase heróica, as C"lônias
jogaram um papel decisivo, pois exatamente aí, no mundo das co­
lônias, realizavam-se altos lucros, com pequena imobilização de
capital, seja do Estado, seja da burguesia mercantil metropolitana.
O ônus desta expropriação recaía sobre os "homens coloniais". Essa
era a força e a fraqueza do capital mercantil, sua magna contradi­
ção, pois gestavam-se, incontroláveis, as chamas da autonomização
colonial.
Em suma, os investimentos comerciais nas colônias, integrados
no circuito do capital mercantil e enredados nos liames da política

222 1 José Jobson de Andrade Arruda


mercantilista, contribuíram substancial e estrategicamente para o
crescimento econômico da Europa Ocidental, porque abriram no­
vos espaços para investimentos, essenciais à mobilidade orgânica e
nutritiva do capital circulante e, conseqüentemente, para a afirma­
ção do capitalismo como sistema econômico hegemônico.

Exploração colonial e capital mercantil 1 22 3


Francisco J . C . Falcon
Dep.tº de História, I FCS/U FRJ

C O M É RC I O C O LO N IAL
E EXC LUS IVO M ETRO PO LITANO:
Q U ESTÕ ES RECE NTES

Antes do expositor, há o leitor; e é da leitura, sua leitura de um


certo enunciado temático, que o expositor parte para a construção
do texto que deverá expor. Variadas, porém, são as leituras possí­
veis, pois diferentes hão de ser sempre as cadeias de relações e sig­
nificações que o enunciado de um tema coloca em ação na mente
de cada leitor; diferentes leituras, abordagens diversas de um mes­
mo enunciado.
Lemos e refletimos muito sobre o tema desta sessão. Tentáva­
mos perceber quais as questões, ou as abordagens, que os organiza­
dores poderiam ter tido em vista quando o propuseram. Acabamos
por concluir que haveria pelo menos duas interpretações bastante
prováveis: a primeira poderia ser uma espécie de convite à apesen­
tação de trabalhos embasados na premissa da validade histórica
indiscutível da relação decisiva entre o comércio colonial e o exclu­
sivo metropolitano; no caso da segunda, pelo contrário, podería­
mos supor a possível presença de uma indagação, ou mesmo desa­
fio, a respeito de eventuais questões historiográficas ou teóricas cujo
ponto de partida, ainda que como mera hipótese de trabalho, con­
sistisse no questionamento da própria pertinência histórica da re­
lação que se contém no tema proposto.
Escolher para este trabalho a primeira dessas "leituras" signi­
ficaria, para nós, o compromisso de produzir uma comunicação
destinada a esclarecer, de forma mais ou menos pontual, alguns
aspectos históricos concretos constitutivos do funcionamento do
exclusivo do comércio colonial. Optar pela segunda daquelas
duas "leituras", como de fato fizemos, significaria tentar trazer
ao debate certas questões historiográficas e algumas indagações

Comércio colonial e exclusivo metropolitano: questões recentes 225


um tanto polêmicas que vêm ultimamente atraindo nossa atenção.
Convém deixar claro que nossa opção resulta também do fato
de percebermos, no referido enunciado temático, algo que denomi­
naríamos de (re)conhecimento; para nós, nele estão implícitos dois
grandes eixos de reflexão - um é a questão do Mercantilismo, o
outro é a própria noção de comércio colonial.

Mercantil ismo: sob o signo da produção


e do "sistema mundial"

Voltar ao Mercantilismo! Mas, ainda o Mercantilismo?


O espanto procede, até certo ponto. Afinal, o Mercantilismo não
chega a ser propriamente um tema novo, um "novo objeto"; pelo
contrário, enquanto tema ou objeto, ele é para muitos algo "fora de
moda"; um tema pouco freqüentado nas duas últimas décadas, se
procedermos ao levantamento, na historiografia econômica desse
período, da publicação de livros e artigos que enfocam as idéias e
práticas mercantilistas.
O "comércio colonial" integra o Antigo Sistema Colonial e este
por sua vez faz parte do chamado "Sistema" Mercantilista, ou, sim­
plesmente, Mercantilismo. Durante bastante tempo, os historiadores
abordamos a chamada Idade Moderna, ora como " É poca Mer­
cantilista", ora como "Transição Feudal-Capitalista". A partir dos
escritos de Braudel, Gunder Frank e, sobretudo, Wallerstein, um
número crescente de historiadores vem dando preferência a no­
ções como "Sistema Mundial Moderno" e "Economia-Mundo", ca­
pitalista e européia, já a partir do século XVP.
Independentemente de denominações, registre-se, como o que
de fato ora nos interessa, a tendência a situar tanto o Antigo Siste-

1 Wallerstein, 1. The Modern World System. Capitalist Agriculture and the


Origins of the European World Economy in the Sixteenth Century. Nova
York: Academic Press. 1974. Idem. El moderno sistema mundial II. El
Mercantilismo y la Consolidación de la Economía-Mundo Europea, 1 600-
1 750. México: Siglo XXI. 1984. Braudel, F. Civilização Material, Economia
e Capitalismo - sécs. XV/XVIII. Tomo II. Os Jogos das Trocas. Lisboa:
Cosmos. 1985. Idem, ibidem, III. O Tempo do Mundo. Lisboa: Teorema.
1993. Gunder Frank, A. Acumulação Mundial 1492-1 789. Rio de Janeiro:
Zahar. 1977.

226 1 Francisco J. C. Falcon


ma Colonial quanto o Mercantilismo como um todo num contexto
infinitamente mais vasto que o das economias nacionais da Europa
moderna, ou nos quadros te óricos do conceito de "transição feudal
capitalista". Estamos, assim, diante de um primeiro dado historio­
gráfico que contrasta bastante, com certas concepções históricas e
alguns hábitos mentais já cristalizados.
Habituamo-nos a interpretar as idéias e práticas mercantilistas
segundo os termos de uma espécie de " (pequeno) universo mer­
cantil", preso à circulação, às trocas, aplicando, ao pé da letra, a
própria noção de "mercantil(ismo) ". No entanto, sobretudo nestes
últimos vinte anos, aumentou o interesse do pequeno grupo de his­
toriadores e economistas, que ainda mantêm vivo seu apego às
questões do Mercantilismo, em reexaminar e rever muitos daque­
les pontos tidos como "adquiridos" ou "indiscutíveis" acerca das
práticas e, sobretudo, das idéias mercantilistas.
Estamos assim face a duas tendências:
1 .ª) O Mercantilismo propriamente dito perde em significação e
importância face às perspectivas de conjunto mais abrangentes, ou
ambiciosas, como aquelas elaboradas por F. Braudel e 1. Wallerstein,
na medida que, em ambas, o conceito de capitalismo é esvaziado
da especificidade histórico-social que Marx lhe atribuiu2•
Mas também se trata de um processo que conduz ao esvazia­
mento historiográfico de nossa visão da época do Mercantilismo -
tanto em sua face de "política econômica de uma era de acumula­
ção primitiva", quanto no seu sentido de "política econômica dos
Estados modernos monárquico-absolutistas", uma vez que, con­
forme o caso, relega-se a plano secundário, ou "pré-histórico", o
conceito de transição ou se minimiza a "razão de Estado", no be­
nefício, em ambas as hipóteses, de uma lógica ou racionalidade
explicativa que se remete ao chamado "mercado mundial"3•
2.ª) Quanto ao Mercantilismo em si, os resultados dos estudos
recentes tendem: primeiro, a separar de forma radical as idéias das
práticas; segundo, reexaminar a fundo as categorias básicas do pen­
samento mercantilista.

2 Braudel, F. Op. cit., II, p. 183, 363-4, 367, 489-93.


3 Dobb, Maurice H. Studies in the Development of Capitalism. Londres:
Routledge & Kegan Paul, 1946. Heckscher, Eli. Mercantilism. Londres:
Allen & Unwin. 1935. 2 vols., Falcon, F. J. C. Mercantilismo e Transição.
São Paulo: Brasiliense. 1976.

Comércio colonial e exclusivo metropolitano: questões recentes 1 227


No capítulo das práticas mercantilistas, as interpretações ten­
dem a sublinhar-lhes as determinações conjunturais e as limitações
dos resultados alcançados. Quanto às idéias, observa-se como ten­
dência principal a preocupação de resgatar, de acordo com as for­
mulações originais, um universo de concepções esquecidas ou de­
turpadas por interpretações já viciadas, "a priori", pelo seu lugar
teórico de produção - a teoria econômica clássica e (ou) neoclás­
sica.
Tendo em vista que a ênfase principal, no caso das idéias mer­
cantilistas, tem recaído sobre os conceitos de produção e trabalho
produtivo realmente presentes nos textos, utilizamos como rotei­
ro o plano do livro de Cosimo Perrotta4• Por outro lado, resolvemos
dar um certo relevo entre as atividades produtivas da É poca Mer­
cantilista, e em função do crescente interesse dos historiadores es­
pecializados, àqueles aspectos, problemas e perspectivas que cons­
tituem a linha de investigação histórica intitulada de "industriali­
zaçã0 antes da industrialização".

a) As visões de conjunto das grandes sínteses


Referimo-nos aqui, apenas para exemplificar, aos textos de F.
Braudel e de 1. Wallerstein. A análise atenta de ambos não cabe
dentro dos limites desta comunicação, mas vale talvez mencionar
aqueles pontos mais ligados ao nosso objeto.

a.1) Braudel
1. º) ao analisar de que maneira "a circulação coloca frente a
frente as diversas economias nacionais" o Autor faz o Mercan­
tilismo entrar em cena através da "Balança do Comércio" mas
apenas para concluir, para desespero dos estudiosos mais recen­
tes do assunto, que "a balança comercial é o sonho de todos os
governos mercantilistas que identificam riqueza nacional e re­
servas monetárias".
2.º) ao observar, ironicamente, que a idéia de que "o comércio
a longa distância representou, sem dúvida, o primeiro papel na
gênese do capitalismo mercantil" vem sendo hostilizada pelos
historiadores atuais, "preocupados em demonstrar a suprema-

4 Perrotta, Cosimo. Produzione e lavoro produ ttivo nel mercantilismo e


nell'illuminismo. Galatina: Congedo Editore. 1988.

228 1 Francisco J. C. Falcon


eia do comércio interno e interregional", o Autor toca, exatamente,
numa questão hoje em dia fundamental. ..
3. º ) ao citar Kellenbenz - "o mercantilismo é a direção domi­
nante da política econômica no tempo dos príncipes absolutos
da Europa", o Autor sublinha no Mercantilismo a diversidade,
a conexão com o Estado e a associação com o nacionalismo e o
egoísmo nacional. Estamos, já agora, no mesmo terreno de:

a.2) Wallerstein
Neste, com efeito, o subtítulo de seu II volume não deve nos
iludir, pois, embora sua referência historiográfica mais recente
seja Coleman, o que, em si, seria ótimo, ele a utiliza às avessas,
de ponta-cabeça, como paródia, ao afirmar que " . . . as teorias
(mercantilistas) eram incoerentes por que apologias, porém os
países que se encontram em certas circunstâncias tendem a ado­
tar uma política que chamamos de mercantilista"; logo, o que de
fato deve interessar são "as práticas reais dos Estados da época,
independentemente de sua justificação ideológica". Ora, segun­
do Wallerstein, tais práticas não constituem característica de uma
certa época em particular mas, sim, têm sido utilizadas por al­
guns Estados em quase "todos os momentos da história da eco­
nomia-mundo capitalista, mesmo que hajam variado as suas
justificativas ideológicas". Em resumo, para este autor, o Mer­
cantilismo, além de fenômeno que transcende as épocas, resu­
me-se a duas coisas: uma política estatal de nacionalismo eco­
nômico e uma ênfase acentuada na circulação de mercadorias
- o movimento dos metais preciosos e a criação de balanças
comerciais positivas.

Estes exemplos, pinçados no corpo de uma análise bem mais


ampla e minuciosa, ilustram apenas o que já havíamos anunciado
a respeito das conseqüências possíveis dessas interpretações de
conjunto para nossa visão habitual / tradicional do Mercantilismo
(idéias e práticas) em geral e do Antigo Sistema Colonial em parti­
cular.

b) "Industrialização antes da industrialização "


O tema da natureza, características e importância das ativida­
des "industriais" e das mudanças tecnológicas durante os séculos
XVI-XVIII também está presente nos trabalhos de Braudel e Wallers­
tein. Preferimos, porém, usar como referência a coletânea de arti-

Comércio colonial e exclusivo metropolitano: questões recentes 229


gos publicada por P. Kriedte, H. Medick e J. Schlumbohm, cujo tí­
tulo é o mesmo que demos a este item5•
Os trabalhos já publicados sobre este tema sublinham a impor­
tância da "indústria", sobretudo da "indústria rural", doméstica
ou não, durante os séculos que antecedem o surgimento do capi­
talismo industrial. Se, em si mesmo, este tema não é exatamente
"novo" na historiografia econômica, para nós ele possui uma sig­
nificação especial: 1 . º) pela quantidade de trabalhos mais ou me­
nos recentes, cuja tendência é crescer, em que são postas em relevo
as relações entre idéias e práticas mercantilistas e o desenvolvimen­
to geral de atividades ditas "industriais" que fogem, em muitos
casos, à concepção tradicional, quase sempre circunscrita ao mo­
delo das manufaturas concentradas; 2. º) por que vem corroborar,
inclusive empiricamente, para um setor-chave da vida econômica
moderna, as mais recentes interpretações acerca da importância do
conceito de produção e de trabalho produtivo, bem como o de "pro­
dução de valores de uso" no universo das idéias mercantilistas.
Todavia, por ora, ficaremos apenas com estas breves indicações; o
desenvolvimento deste tópico deverá ser realizado em outro tra­
balho.

e) Produção e trabalho produtivo no pensamento mercantilista


Nos dois itens anteriores enfocamos sobretudo práticas político­
econômicas mercantilistas, se bem que em contextos textuais bem
distintos. Desejamos, agora, abordar as idéias e formas de pensa­
mento dos autores pré-smithianos, ou seja, aqueles cujos textos re­
montam aos séculos XV / XVI a XVIII.
Como questão básica e ponto de partida, devemos colocar a ne­
cessidade de (re)lermos os autores mercantilistas sem os dois tipos
mais comuns de distorção que são freqüentes nas análises, históri­
cas ou não, das idéias mercantilistas, a saber:
1 .0) o preconceito que afirma o caráter "interessado", apologético
mesmo, dos discursos mercantantilistas sobre os mais diferentes
tópicos político-econômicos;
2. º) o pressuposto da cientificidade universal inerente à ciência
econômica construída a partir de Smith e da Escola Clássica como
um todo, pois, a partir de tal premissa projeta-se sobre as idéias

5 Kriedte, P.; Medick, H. & Schlumbohm, J . . Jndustrialization before Indus­


trialization. Cambridge: Univ. Pres. 1981.

23 0 1 Francisco J. C. Falcon
econômicas mercantilistas, historicamente anteriores, a marca da
"pré-cientificidade".
Nas origens destes dois tipos de juízos preconceituosos e ahis­
tóricos sobre as idéias mercantilistas, encontramos os pressupostos
de uma "ciência econômica" que, apesar da crítica de Marx, reve­
ladora de seu caráter eminentemente histórico, burguês, ignora
suas próprias determinações histórico-sociais, e assim se esquece
do fato de que também a ela se poderiam aplicar aquelas mesmas
restrições e desqualificações que geralmente endereçou aos pré­
smithianos. Trata-se, portanto, ainda e sempre, da velha e rígida
distinção entre "ciência" e "ideologia", não importa se baseada em
pressupostos positivistas ou marxistas. "Ideológico", neste caso, é
apenas o pensamento mercantilista . . .
Mais importante talvez, pelas conseqüências reais que tem gera­
do, vem a ser o fato de que as avaliações e críticas das idéias mer­
cantilistas têm sido produzidas a partir de conceitos, categorias e
postulados teórico-metodológicos formulados no interior de ou­
tros campos teóricos; a partir destes, buscaram-se os equívocos e
erros dos mercantilistas, ou, então, exaltaram-se os autores e idéias
pré-smithianas em que se identificou o valor de verdadeiros "pre­
cursores" da ciência econômica.
Por outro lado, são muito mais raros os estudos que tentam in­
terpretar as idéias mercantilistas na sua própria época, isto é, apre­
ender-lhes os sentidos em função de seus próprios condicionantes
históricos, formas de pensamento dominantes etc. Aliás, mesmo
em algumas destas tentativas, como é o caso da Escola Histórica
Alemã, as interpretações compreensivas raras vezes escaparam a
preocupações e interesses de viés "presentista". Daí, as leituras di­
ferentes mas não de todo isentas de certos equívocos e simplifica­
ções mais ou menos anacrônicas.
J. Schumpeter, por exemplo, um dos leitores mais atentos e com­
preensivos dos autores pré-smithianos, empenhado, até, em fazer
a distinção entre textos "panfletários" e textos realmente portado­
res de reflexões sérias ou "analíticas", mesmo Schumpeter, repeti­
mos, fundamenta sua análise nos pressupostas de cientificidade
(econômica) típicas da economia neoclássica quando trata de defi­
nir o valor "analítico" das concepções econômicas mercantilistas6•

6 Schumpeter, J. História da Análise Econômica. Vol. 1 . Rio de Janeiro: Fun­


do de Cultura. 1964.

Comércio colonial e exclusivo metropolitano: questões recentes 1 23 1


No entanto, a bem da verdade, devemos frisar que Schumpeter
não chega a ser uma exceção. Afinal, tanto Marx quanto a maioria
dos autores de histórias das idéias econômicas, sejam eles "bur­
gueses" ou "marxistas", foram vitimados, em grau maior ou me­
nor pelo vírus da precedência, segundo Perrotta - ou seja, cede­
ram diante da tentação de interpretar e avaliar os textos mercan­
tilistas em termos de "erros" ou "acertos", de "antecipações bri­
lhantes" ou "equívocos desastrosos"; enfim, alguns "contribuíram",
outros, a maioria, nada fizeram em prol do advento de uma "ver­
dadeira" ciência econômica; se é que não atrapalharam sua evo­
lução . . .
Cosimo Perrotta, no livro j á mencionado, livro que é a síntese de
dezenas de outros livros e artigos, baseia-se, em princípio, nos tex­
tos dos próprios autores mercantilistas. Trata de investigar e de­
monstrar uma tese central: os mercantilistas têm conceitos próprios
e consistentes para "produção" e "trabalho produtivo", e são estes
conceitos que permeiam e embasam o conjunto das suas idéias eco­
nômicas. Assim sendo, faz-se urgente esclarecer/ superar dois ou­
tros grandes equívocos muito difundidos na historiografia econô­
mica:
1 .º) o de que o pensamento mercantilista, por definição, é um
pensamento voltado quase exclusivamente para a circulação, as
"trocas", e que, portanto, privilegia sempre o comércio, a atividade
mercantil e relega a plano secundário ou mesmo ao silêncio, a pro­
dução e o trabalho produtivo;
2.º) o de que os fisiocratas representam um notável avanço sobre
as concepções mercantilistas, pois, produziram o conceito de "ex­
cedente" e/ou "produto líquido".
Ocorre que, contrariamente a algumas das versões mais consa­
gradas sobre "idéias econômicas", os mercantilistas elaboraram os
conceitos de trabalho produtivo e trabalho improdutivo e distin­
guiram um do outro. Reconheceram, como produtivo, o trabalho
que contribui para a reprodução da riqueza social, produzindo, pelo
menos, tanta riqueza quanto aquela que esse mesmo trabalho con­
some; definiram como trabalho produtivo, também, o trabalho que
produz um excedente de riqueza em relação àquela por ele consu­
mida; sobretudo, num e noutro caso, existe uma valoração positiva
tanto do trabalho quanto do enriquecimento.
Assim, segundo Perrotta, haveria dois modos de entendermos a
concepção mercantilista de "trabalho produtivo": 1 .0) são produti-

23 2 1 Francisco J. C. Falcon
vos os trabalhos que contribuem para produzir um "excedente de
riqueza" em termos de valores de uso - isto é, de "utilidade so­
cial" (= satisfação de necessidades); esses trabalhos "aumentam a
riqueza da nação" ao aumentarem os valores de uso à sua disposi­
ção, quer diretamente - através da produção propriamente dita
-, quer indiretamente - através do comércio com o exterior, sen­
do sempre fundamental a maior ou menor utilidade desses mes­
mos valores para o acrescentamento (crescimento) da riqueza na­
cional. 2.º) são produtivos os trabalhos que produzem um exceden­
te de riqueza em termos de valor ( = a qualquer expressão quantita­
tiva de riqueza), ou de lucro (na concepção de Adam Smith).
Da diferença entre estes dois conceitos em presença resultaram
conseqüências distintas, do ponto de vista histórico para o ulterior
destino da diferenciação entre trabalho produtivo e improdutivo,
e também para os distintos conceitos de "trabalho produtivo".
Perrotta assinala que a abordagem centrada na produção de va­
lores de uso nasceu e se consolidou com Petty e predominou até
mais ou menos 1 770; já a abordagem baseada na produção de valor
apenas se afirmou com Quesnay e expandiu-se até 1776 - o ano
de Smith e de Condillac7• A primeira perspectiva desaparece da
história do pensamento econômico já no final do século XVIII, en­
quanto a segunda, apropriada por Smith e depois retomada por
Marx, acabou desacreditada entre os não-marxistas, e substituída
pelo postulado de que todos os trabalhos presentes no mercado
são produtivos.
Desta forma, foi perdida a perspectiva de que a abordagem ba­
seada no valor de uso constituira um elemento essencial do pensa­
mento mercantilista, e o quanto lhes parecia fundamental estabe­
lecer distinções entre trabalho produtivo e improdutivo, bem como
hierarquizar os diversos trabalhos produtivos entre si. Tanto é ver­
dadeiro tal "esquecimento" que Schumpeter chegou a considerar
como "estranha" a "digressão" de Adam Smith sobre esse tema,
ignorando assim o quanto o próprio Smith era devedor de muitas
das concepções mercantilistas8• Por sua vez, Marx, depois acompa­
nhado por Heyking, estendeu para todo o pensamento mercantilista
o conceito de trabalho produtivo baseado em valores de uso, mas o

7 Perrotta, C. Op. cit., p. 3.


8 Idem, p . 4 e nota 7.

Comércio colonial e exclusivo metropolitano: questões recentes 1 23 3


associou a um suposto "criso-hedonismo" mercantilista e deduziu
então que se trataria ainda de uma aproximação "imperfeita" do
conceito de trabalho produtivo presente em Adam Smith.
Na realidade, porém, não foi apenas o conceito mercantilista de
trabalho produtivo de valores de uso a sofrer um ocultamento /
esquecimento posterior; outros conceitos pré-smithianos fundamen­
tais tiveram o mesmo destino - o conceito de divisão do trabalho,
o de riqueza, o de excedente (de valores de uso) . E, no entanto,
todos estes conceitos eram categorias básicas da concepção mer­
cantilista de desenvolvimento econômico e da sua visão da econo­
mia política como sendo um meio de aumentar a produção, a pro­
dutividade e a partir daí aumentar a riqueza nacional.
Enfim, apenas como citação, já que sua análise ficará para outro
trabalho, eis os três grandes tópicos em tomo dos quais se concen­
tra o texto de Perrotta:
1 . O trabalho como fonte de riqueza;
2. As relações entre o comércio externo e o trabalho produtivo; e
3. O trabalho produtivo de valores de uso no mercantilismo.
Vejamos, então, somente alguns aspectos destes tópicos.
No primeiro, destaca-se a questão da crítica ao suposto criso-he­
donismo mercantilista; à idéia de "tesouro" como uma acumula­
ção física, inerte, de metais preciosos, pois, lendo os textos, vemos
que para a maioria dos autores "tesouro" significa dinheiro a ser
investido de maneira produtiva, um "capital social" monetizado,
apto a produzir valores (sociais) de uso. Logo, sabiam os mercan­
tilistas que o metal não é a riqueza mas, antes, o meio para produ­
zi-la ou alcançá-la, pois, a todo momento se encontram afirmações
que dizem ser o trabalho o verdadeiro e único criador de riqueza.
Decorrem certamente daí as constantes preocupações com a neces­
sidade de ampliação das atividades produtivas e com o aumento
da produtividade do trabalho. Aumentar a produção, esta sim a
questão principal:

"Os pré-smithianos dedicaram uma grande atenção às for­


mas de (cada nação) apoderar-se de riqueza externa, especial­
mente através do comércio exterior. Isto, porém, não significa,
como querem seus críticos, que atribuíssem ao comércio a ori­
gem da riqueza, ou que considerassem como fonte de riqueza
apenas o trabalho ligado ao comércio _exterior. . . Os autores (mer­
cantilistas) não negam jamais que a fonte última do enriqueci-

2 34 1 Francisco J- C. Falcon
mento é a ampliação da produção interna, sendo esta indispen­
sável, até, para obter e conservar no país a riqueza vinda de fora"'J.

As teorias mercantilistas ao abordarem o problema da expan­


são da produção fixaram-se em tomo de certos pontos ou temas
básicos:
1 . O aumento da população mas, principalmente, sua adequa­
ção aos recursos disponíveis para sua subsistência e trabalho;
2. O incremento das manufaturas;
3. A luta contra o "ócio", que engloba as diferentes formas de
desemprego e não hesita ante algumas modalidades de trabalho
compulsório;
4. A ênfase no sentido da qualificação do trabalho;
5. O interesse e esperança em relação aos progressos técnicos; e
6. A divisão do trabalho.
Finalmente, os mercantilistas têm uma noção implícita do exce­
dente capitalista:

"Em todos estes autores (mercantilistas) está presente, por­


tanto a idéia do excedente capitalista, entendido como aumento
de riqueza em termos de valores de uso, e não como um aumen­
to da quantidade física ou como sim ples aumento do lucro. Des­
te ponto de vista a concepção fisiocrática do excedente represen­
ta um grave retrocesso na análise econômica e não, como se afir­
ma em geral, a primeira descoberta do conceito de excedente"10•

Quanto ao segundo tópico - comércio exterior e trabalho pro­


dutivo - pensamos que talvez seja precisamente este o passo mais
intrinsecamente ligado ao nosso tema inicial. Trata-se, com efeito,
de retomar e esclarecer dois conjuntos de questões:
1.0) a concepção mercantilista a respeito da importância do comér­
cio externo para o enriquecimento da nação foi quase sempre obs­
curecida, na historiografia, por uma questão secundária, ou pseudo­
questão - os debates entre liberdade comercial e protecionismo,
ou dirigismo comercial, envolvendo os privilégios e monopólios e
o intervencionismo estatal. Em geral, o debate mercantilista real

9 Idem, p. 44.
10
Idem, p. 59.

Comércio colonial e exclusivo metropolitano: questões recentes 1 23 5


tem sido anacronicamente deturpado por uma abordagem histo­
ricamente posterior, calcada na oposição entre mercantilismo e
"laissez-faire";
2. º ) as três teorias mercantilistas da balança comercial. Tendo
como premissa básica e geral a teoria da balança comercial "ativa"
(o valor das exportações deve superar o valor das importações), os
mercantilistas trabalham de fato com pelo menos três concepções
diferentes: 1 . ª) a troca comercial processa-se normalmente entre
valores desiguais, logo "o ganho de um país significa perda para
um outro" (a riqueza que se transfere seria a diferença de valores
entre as mercadorias, ou entre a moeda e a mercadoria) . . . A varian­
te mais conhecida desta teoria é, segundo Perrotta, il fantomatico
"profit upon alienation ", referindo-se no caso à expressão cunhada
por Steuart e apropriada por Marx11; 2.ª) a possibilidade de um país
manter um excedente constante de suas exportações sobre as im­
portações . . . ; 3. ª) embora a troca se processe entre valores iguais, e
se bem que a longo prazo o comércio entre dois países deva igua­
lar exportações e importações, os mercantilistas afirmam existir no
comércio uma diferença de vantagens entre as partes, conforme
sejam os valores de uso dos bens comercializados, e sobretudo con­
forme sejam diversas as potencialidades produtivas de tais valores
de uso . . . (Esta seria a teoria mais importante e difundida, mas foi
precisamente a mais ignorada pelos historiadores)12•

A questão do "comércio colonial"

Há naturalmente todo um elenco de indagações possíveis quan­


do pretendemos refletir sobre possíveis implicações de algumas das
perspectivas indicadas na primeira parte deste texto sobre os ele­
mentos integrantes do Antigo Sistema Colonial Mercantilista. As­
sim, tanto o lugar quanto a importância do exclusivo metropolita­
no para o comércio colonial dependem, em primeira linha, de quais
sejam as teorias que temos em vista acerca do Mercantilismo, da
acumulação de capital, sobretudo a acumulação originária, ou pri­
mitiva, e da inserção da economia portuguesa, luso-brasileira, em
algo como a chamada "economia-mundo".

11
Idem, p. 73.
12
Idem, p. 98.

23 6 1 Francisco J. C. Falcon
Trata-se, assim, de diferentes tipos de "janelas", ou postos de
observação, dos quais se pode projetar diversos olhares sobre pai­
sagens teóricas mais ou menos familiares. Muito provavelmente,
tais olhares descobrirão novidades, provocarão novas perguntas,
"estranharão" antigos cenários e paisagens outrora muito "conhe­
cidos". Daí talvez resultem, quem sabe, mudanças quanto ao nosso
modo de equacionar historicamente as relações entre o exclusivo e
o comércio colonial.
Por ora, entretanto, temos que restringir bastante tais ambições
um tanto heterodoxas. Devemos restringi-las a alguns poucos tópi­
cos e apresentá-las ainda como simples indagações oriundas de lei­
turas e da observação do panorama historiográfico brasileiro nes­
tes anos mais próximos.

1.0) O comércio colonial


Por muitos anos a nossa visão do comércio colonial esteve sem­
pre muito mais atenta ao caráter "colonial" do que ao conhecimen­
to do comércio da Colônia. Acostumamo-nos a enxergar em alto­
relevo a exportação "natural" dos produtos "coloniais" pelos co­
merciantes colonizadores para a metrópole portuguesa, bem como
a importação das mercadorias destinadas ao consumo da Colônia,
tanto as oriundas da produção metropolitana quanto as simples­
mente reexportadas por Lisboa. Uma vez integrado também nesse
movimento o tráfico de escravos africanos, todo o conjunto do co­
mércio colonial parece devidamente estruturado e equacionado. E,
com ele, o enigma da colonização.
Temos lido e observado nestes últimos anos diversos trabalhos,
impossíveis de listar aqui, os quais tendem a demonstrar que a so­
ciedade colonial seria alguma coisa muito mais complexa e diver­
sificada, em sua estrutura do que se poderia imaginar tomando
apenas como referência a tradicional dicotomia entre senhores e
escravos, ou entre senhores de engenho e comerciantes.
Começamos a desconfiar que o "comércio colonial" pode ser,
ou deveria ser, antes de tudo, o "comércio da Colônia" e que este
era muito mais amplo, intenso, diversificado e complexo que o co­
mércio incluído no âmbito do exclusivo metropolitano. Mais ou
menos importante, dependente ou autônomo, eis aqui questões ain­
da em discussão. Por enquanto, sabemos talvez apenas que, pelo
menos quanto ao século XVIII, a questão do comércio colonial não
consiste unicamente na avaliação do comércio "externo", ou em

Comércio colonial e exclusivo metropolitano: questões recentes 23 7


tentativas de calcular em suas respectivas dimensões o comércio
"legal" e o "ilegal", ou de contrabando. O comércio colonial, en­
quanto comércio que se dá também na própria Colônia, por via
terrestre, marítima, fluvial, com dimensão local, regional, interre­
gional, dentro dos centros urbanos, ou entre estes e as áreas rurais,
apesar de avanços historiográficos significativos, continua como
um continente a pesquisar.

2.º) Economia e sociedade urbana


Decorrência, em parte, dessa (re)avaliação da natureza e impor­
tância do "comércio colonial", a revisão historiográfica das reali­
dades sócio-econômicas e político-administrativas urbanas tende
a provocar a entrada em cena de temas ignorados ou esquecidos,
ou, ainda, aprioristicamente minimizados: o universo sócio-econô­
mico da agricultura dita de subsistência; os problemas do comércio
interno e do abastecimento; as formas de comercialização; o crédi­
to; os transportes.
O capital mercantil, residente na Colônia, com suas formas de
acumulacão, seus mecanismos de crédito, e, enfim, sua reprodu­
ção, parecem atestar, no mínimo, a existência daquela outra dimen­
são do comércio colonial que mencionamos. A estratificação social
dos grupos urbanos, sobretudo o ascenso, no Setecentos, dos gru­
pos mercantis, modificam as relações entre a sociedade colonial,
em particular as suas "elites", e os agentes e instituições da admi­
nistração colonial.
Enfim, preferimos concluir com algumas perguntas:
1. Que significa de fato repensar, hoje, o sistema colonial mercan­
tilista e, sobretudo, o exclusivo colonial, em função do que ficou
exposto na Parte 1 deste trabalho?
2. Qual a realidade e significação históricas do exclusivo metro­
politano quando colocamos em jogo as especificidades ibéricas, mais
gerais, lusas, em particular, e as propriamente "coloniais" ( = Bra­
sil-Colônia)?

23 8 1 Francisco J. C. Falcon
Pedro Pu ntoni
De p .tº de H i stória, FFLCH-USP

OS H O LAN DESES N O COM É RC I O


COLON IAL E A CONQU I STA DO B RAS I L,
1 540- 1 63 5 1

De Olinda a Holanda não há aí mais que a mudança de um l, em A, e


esta vila de Olinda se há-de m udar em Holanda, e há-de ser abrasada por os
holandeses.
Frei Antônio Rosado da Ordem do Patriarca de São Domingos,
em fevereiro de 16302.

Mesmo antes de o Brasil firmar-se como um importante produ­


tor de açúcar, no início do século XVII, alguns comerciantes holan­
deses já participavam de sua indústria e do seu comércio regular. O
açúcar era produzido e negociado por gente da nação holandesa
antes da rebelião contra Espanha, e mesmo quando da União Ibé­
rica (1580-1640), nos tempos em que o fato de Portugal ser vassalo
de Espanha não interferia nos negócios de sua colônia3• O comércio

1 Este texto é versão modificada de trabalho apresentado no encerra­


mento das atividades do Programa de Formação de Quadros Profissio­
nais do Cebrap, no dia 15.3.93, tendo sido discutido pelos debatedores
John Monteiro e Laura de Mello e Souza; a eles e a Fernando Novais,
Vera Ferlini, Luiz Felipe de Alencastro e aos colegas da pós-graduação
e do Cebrap, agradeço as sugestões e críticas. O trabalho não seria
possível sem o apoio da CAPES, do CNPq, da USP e do Cebrap.
2 Frei Manoel Calado, O Valeroso Lucideno e o Triunfo da Liberdade (1 648),
Belo Horizonte/São Paulo. 1987, p. 48.
3 No início do século XVI, da "nação holandesa" eram apenas aqueles

naturais das províncias dos Países Baixos, então parte do Império es­
panhol. O Estado holandês, isto é, a República que federava as Provín­
cias rebeldes, surge no final do século como o resultado do que se cos-

Os holandeses no comércio colonial e a conquista do Brasil, 1 540- 1 635 23 9


colonial holandês no Brasil sofreu, no entanto, grandes transfor­
mações nas primeiras décadas do século XVII, que resultaram da
formação de uma Companhia de Comércio orientada para as colô­
nias do Ocidente (1621), tal como aquela que se fundara objetivando
conquistar as redes comerciais com a Índia (1602). Os holandeses,
importantes agentes da intermediação do comércio colonial do açú­
car das capitanias do Nordeste brasileiro, cumpriam a função cen­
tral do transporte; subordinados, no entanto, ao controle do mono­
pólio do comércio, que era garantido aos súditos da Coroa portu­
guesa.
A Unificação Ibérica, ao motivar políticas restritivas à presença
dos comerciantes holandeses nas colônias portuguesas, tem tradi­
cionalmente explicado a fundação da Companhia das Índias Oci­
dentais (1621) e a decisão de atacar a região produtora de açúcar
no Brasil. No entanto, são antes transformações internas à própria
jovem República Holandesa que nos ajudam a explicar as mudan­
ças que ocorreram nos padrões que se mantinham desde o século
XVI. A formação das companhias de comércio, e particularmente a
destinada ao Ocidente, são resultado da nova situação política das
Províncias Unidas em oposição ao Império espanhol, mas também
de evoluções da própria dinâmica interna dos interesses do tráfico
colonial. Desta maneira, o estudo das transformações nos padrões
do comércio colonial holandês nos permite compreender melhor
as expedições de conquista da região produtora de açúcar no Brasil
(Bahia, 1625 e Pernambuco, 1 630). O episódio, que prossegue com
seus desdobramentos na costa da Á frica Ocidental, ilumina, ainda,
o desenho geográfico das redes comerciais e, portanto, do sistema
colonial.

tumou chamar de "a revolta holandesa", iniciada em 1565, bem como


dos episódos da independência das Províncias Unidas (o ato de alian­
ça e união de 23 de janeiro de 1579, em Utrecht) e da união em Utrecht,
em 1585. Cf. Geoffrey Parker, The Dutch Revolt, London, 1988; os ca­
pítulos de George Edmundson: "The Revolt of the Netherlands",
"William the Silent", e "The Dutch Republic", na Cambridge Modem
History, Cambridge University Press, 1 934, v. III, pp. 182-220, 221-59 e
61 7-56, respectivamente; ou o mais resumido H. A. ennd van Guelder,
Histoire des Pays-Bas du XV/e siecle à naus jours, Paris, Armand Colin,
1936.

240 1 Pedro Puntoni


O comércio colonial

O contato de alguns holandeses com a indústria brasileira do


açúcar data do século XVI. Talvez o caso mais conhecido, e certa­
mente o mais antigo, de um holandês envolvido diretamente com a
produção e o comércio de açúcar no Brasil seja o do comerciante
Erasmo Schetz, que comprou no ano de 1540, do próprio Martim
Afonso de Souza, um engenho em São Vicente e o manteve funcio­
nando através de feitores4• Todavia, a presença dos holandeses se
fazia sentir no comércio do açúcar em que dominavam não só a
compra e venda, como o transporte e a distribuição na Europa.
As relações mercantis que envolviam holandeses e a Colônia do
Brasil até as décadas inicais dos Seiscentos foram constantes, mas
nunca regulares. Os comerciantes holandeses, apesar de necessita­
rem licenças da Coroa portuguesa e precisarem pagar tarifas em

4 O engenho dos Erasmos, chamado inicialmente de São Jorge, erguido


na Ilha de São Vicente, foi uns dos primeiros do Brasil-Colônia e insta­
lou-se no ano de 1533. Sociedade de Martim Afonso, Pero Lopes, Fran­
cisco Lobo e João Veniste, acabou sendo comprado por Schetz no ano
de 1 540. Ainda na família no ano de 1615, o Engenho dos Erasmos, foi
queimado e destruído pelos portugueses de São Vicente. Cf. Herman
Kellembenz, 11Relações econômicas entre Antuérpia e o Brasil no sécu­
lo XVIl11, Revista de História (37):295. 1962; e Eddy Stols, 110s mercado­
res flamengos em Portugal e no Brasil antes das conquistas holande­
sas", Anais de História 5; 22-5. 1973. Não eram, portanto, apenas merca­
dores os holandeses que habitavam a Colônia, mas também senhores
de engenho e lavradores. No ano de 1618, da expulsão dos estrangei­
ros, antes de realizar as ordens do Rei (talvez por ainda não as saber),
o governador do Brasil, D. Luís de Souza, mandou-lhe uma relação
dos estrangeiros que havia nas capitanias de Pernambuco, Itamaracá,
Paraíba e Rio Grande do Norte. Entre eles, havia franceses, alemães,
navarros, ingleses, florentinos e holandeses. Estes últimos, Jacques fr-z
[Fernandes], 11filho de flamengos porém nascido em Lisboa, há 24 ou
25 anos que reside neste estado, é lavrador de cana, vive nas frontei­
ras11. Jaques Vandernes, outro flamengo, casado e morador de Goiana,
era também lavrador de cana. Pero Salomão era lavrador e pobre.
Rodrigo Ermeles viveu muitos anos nesta mesma capitania de Ita­
maracá. Apesar de casado e com filhos, Ermeles era velho, 11pobríssimo"
e vivia de esmolas. Cf. 11Memorial de Todos os Estrangeiros que vivem
nas capitanias de Rio Grande do Norte, Paraíba, Itamaracá e Pernam­
buco e bahia dos quias não se pode ter suspeita" (1618), Livro Primeiro
do Governo do Brasil, 1 607-1 633. Rio de Janeiro. 1 958, p. 1 83-5.

Os holandeses no comércio colonial e a conquista do Brasil, 1 540- 1 63 5 1 24 1


Lisboa, acabaram dominando a exportação do produto brasileiro.
De fato, desde muito antes da revolta dos Países Baixos, por volta
dos anos 1500, a cidade de Antuérpia era o entreposto que domina­
va a comercialização e o refino do açúcar produzido, de forma ain­
da tosca, nas colônias portuguesas do Atlântico Norte5• Para o his­
toriador Eddy Stols, havia nos anos finais dos Quinhentos e inícios
dos Seiscentos, um "movimento colonial em Flandres", que se cons­
tituiu em "contatos triangulares entre Antuérpia, Lisboa e o Bra­
sil". De maneira que a conquista de Portugal por Espanha, em 1580,
não ameaçou de início as posições de uma elite de mercadores en­
volvidos neste tipo de trato.
Desde os anos setenta do século XVI, flamengos vinham se es­
tabelecendo em portos portugueses e constituindo uma colônia de
correspondentes comerciais, de acordo com os novos padrões de
organização das casas comerciais. Todavia, o padrão de firmas e
relações familiares não desapareceu. Típico destas relações familia­
res no comércio colonial é o caso dos Hulscher. Entre os vários es­
trangeiros descritos na lista de D. Luís, o caso mais interessante é
de um certo Duarte Osquer, flamengo, e que, de acordo com o mes­
mo documento, era morador no Brasil havia 39 anos, onde vivia de
"sua roça pobremente"6• Hoje, sabemos que a declaração de D. Luís
queria na verdade acobertar Evert Hulscher, o verdadeiro nome de
Duarte Osquer, importante negociante e produtor de açúcar7• Mem­
bro de uma família flamenga de comerciantes, Evert era, também,
dono de um engenho em ltaparica e de um navio. Segundo Frei
Vicente do Salvador, Osquer ("mercador flamengo que ali residia")
perdeu um navio para os piratas ingleses Robert Withrington e
Christopher Lister, no ano de 15871. Há indícios de que, em 1599,

5 Para uma história do desenvolvimento de Antuérpia, veja-se Femand


Braudel, Civilización Material, Economía y Capitalismo, siglos XV-XVIII.
Madri, trad. esp. 1984, tomo 3, pp. 108-24.
6 Cf. "Memorial de Todos os Estrangeiros que vivem nas capitanias de
Rio Grande do Norte, Paraíba, Itamaracá e Pernambuco e bahia dos
quias não se pode ter suspeita" (1618), Livro Primeiro do Governo do Bra­
sil, 1 607-1 633, loc. cit.
7 Cf. Eddy Stols, op. cit., p. 36; e Herman Kellembenz, op. cit., p. 296-7.

8 Cf. Frei Vicente do Salvador, História do Brasil: 1500-1 627 [1627]. São
Paulo /Belo Horizonte. 1982, p. 252. Segundo a nota de Rodolfo Garcia,
foi somente Capistano de Abreu que conseguiu elucidar o episódio, cf.

242 1 Pedro Puntoni


participou, junto com Hans van Huffele e Jacques Casembroot, da
carga de um navio, o São Jorge, que foi levado da Bahia para Ams­
terdam. Kellenbenz nos d á outras informações sobre este persona­
gem. Para ele, "parece não caber dúvida que se trata de um irmão
de João Hulscher de Lisboa, de Heinrich Hulscher de Antuérpia e
de Adam Hulscher", todos comerciantes. O que caracteriza a ca­
deia mercantil, com implicações no mundo da produção: enquanto
os irmãos estavam nos centros comerciais, Evert punha seus ne­
gros a plantar cana e a moer açúcar nos confins do Novo Mundo.
Ao que parece, morreu no planalto paulista em 162'.79. No entanto,
como o mostra Stols, as firmas de caráter familiar, com uma buro­
cracia assalariada, cediam espaço para uma rede de corresponden­
tes ligados por prestações recíprocas de serviços e comissões, e não
mais por rígidas obrigações contratuais10•
Os holandeses controlavam, de forma quase absoluta, a indús­
tria do refino do açúcar e, portanto, se esforçavam para fazer o mes­
mo com o seu comércio colonial. O comércio holandês de produtos
coloniais passaria, no entanto, por mudanças que implicariam uma
alteração deste padrão. Em primeiro lugar, Amsterdam iria suce­
der a Antuérpia na primazia do comércio e refino do açúcar. No
ano em que Antuérpia foi saqueada (1585), Amsterdam - "o am­
bicioso subúrbio da União de Utrecht", nas palavras de von Lipp­
mann11 - erguia a sua primeira refinaria. Já no ano de 1620, eram
25 as refinarias nas redondezas da cidade12• Ao mesmo tempo, a
demanda pelo açúcar refinado crescia na Europa em geral e "os

Francisco Adolfo de Varnhagen, História Geral do Brasil - antes de sua


preparação e indepência de Portugal. São Paulo. 1975, v. 1, 2, p. 69
(nota 1).
9 Cf. Eddy Stols, op. cit., p . 36; e Herman Kellembenz, op. cit., p.
296-7.
10
Cf. Eddy Stols, op. cit., p. 27-8 e 30.
11
Edmund Oskar von Lippmann, História do Açúcar desde a época mais
remota até o começo da fabricação de açúcar de beterraba. Rio de Janeiro,
trad. port. 1 941-42, vol. 2, p. 36.
12
Em 1621 havia na República 29 refinarias, sendo que, em 1594, eram
apenas 3. Em Amsterdam eram 25, 2 em Middelburgo, 1 em Delft e 1
em Wormer. Cf. J. W. Ijzerman, Jounael van der Reis naar Zuid-Amerika
door hendrik Ottsen, Haia, 1918, p. 99-100 e 1 03, apud J. A. Golsalves
de Mello, Gente da Nação, Recife, 1990, p. 203.

Os holandeses no comércio colonial e a conquista do Brasil, 1 540- 1 635 1 243


holandeses tornaram-se rapidamente os seus principais fornece­
dores", escreveu Matthew Edel13•
Por outro lado, desde a união à Espanha, Portugal e suas colô­
nias viram-se envolvidos nas políticas restritivas da Monarquia
Católica. Felipe II havia determinado em alvará de 9 de fevereiro
de 1591, que "nenhuma Nau, nem navio estrangeiro" pudesse ne­
gociar em Portos do Reino ou das Conquistas, sem licença expressa
e assinada pelo Rei14• Em março de 1605, o Rei revogou este alvará,
por saber que estava sendo grandemente burlado, e proibiu por lei
a qualquer navio estrangeiro ir ao Brasil e a outras terras portugue­
sas. Na mesma ocasião, proibiu ainda a todos os estrangeiros de
irem para os domínios do ultramar de Portugal, devendo toda esta
gente voltar ao Reino o mais breve possível15• Se hoje sabemos que
estas medidas, como várias outras, não tiveram curso, elas acelera­
vam, no entanto, o desenvolvimento inevitável de novas formas de
comércio colonial holandesas, ou seja, a criação das companhias de
comércio. Os comerciantes batavos viam então o momento certo
para iniciar a comerciar diretamente com a terra das especiarias ao
Oriente, o que não significa que os fatos estivessem exclusivamen­
te implicados16; outras questões motivavam estas atitudes, como
veremos.

13 Martin Edel. "The Brazilian Sugar Cycle of the Sevententh Century


and the Rise of West Indian Competition", Caribbean Studies, vol. 9, I;
27, abril 1969.
14 "Nenhuma nau, nem navio estrangeiro ou estrangeiras, de qualquer
sorte, e qualidade que seja, possa ir de nem vá nos portos deste Reino,
nem de fora deles as conquistas do Brasil, Mina, Costa da Malagueta,
Reino de Angola, Ilha de São Tomé, e Caboverde e quaiquer outros
lugares da Guiné sem licença minha, passada por alvará por mim as­
sinado", e tampouco "possam fretar naves estrangeiras" os súditos
da Coroa espanhola. "Alvará de 9 de fevereiro de 1 591 proibindo o
comércio com os estrangeiros" in: Documentos para a História do Açúcar,
Rio de Janeiro, 1954, v. 1, p. 380.
15 Cf. Sérgio Buarque de Holanda & Olga Pantaleão, "Franceses, Holande­
ses e Ingleses no Brasil Quinhentista", in: S. Buarque de Holanda [ org. ],
História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo. 1 966, vol. I, p. 163.
16 Esta tem sido a tese mais defendida pela historiografia brasileira, desde
F. A. de Varnhagen, na sua História Geral do Brasil, São Paulo, 1981 (1854-
1 857), t. 2, p. 1 63, passando por Capistrano de Abreu, em Capítulos de
História Colonial,Brasília, 1963 (1907), p. 99.:100 e J. H. Rodrigues e J. Ribei­
ro, Civilização Holandesa no Brasil, São Paulo, 1940.

244 1 Pedro Puntoni


De toda maneira, a política restritiva dos Habsburgo estimulava
uma reação na Holanda. Depois de o rei Felipe II ter ordenado o
confisco de grande número de navios holandeses em Lisboa, em
1585 - no ano em que as sete províncias coligadas em Utrecht re­
solveram formar uma república independente, a idéia de que era
possível ir diretamente ao Oriente comprar especiarias, abando­
nando o tradicional entreposto português, ganhou força nos Países
Baixos. Nos termos de P. J. Blok, com as restrições espanholas a
Holanda via-se forçada a "seguir caminhos que de outro modo não
havia cogitado", orientando o curso das suas navegações direta­
mente para as regiões produtoras das especiarias. Como escreveu
Sluiter, "estas prisões claramente não iniciaram a expansão maríti­
ma dos Holandeses, mas fizeram muito para acelerar este movi­
mento, especialmente em direção à área do Caribe, para a qual eles
se voltariam agora"17• Por outro lado, ultimava-se então um movi­
mento de crítica ao contrabando em suas próprias fileiras. Isto é,
alguns holandeses queixavam-se de mercadores compatriotas que
negociavam cereais e madeira para a construção de navios, com o
inimigo, mantendo vivo um comércio antigo18•
Uma companhia de comerciantes foi criada, no ano de 1594, para
intentar esse negócio com a Índia, no Oriente. A Compagnie van
Verre19, como foi chamada, era uma entidade completamente pri­
vada, resultado da união do capital de nove burgueses de Amster­
dam. No ano seguinte à sua fundação, já enviava quatro navios
para o Oriente, chefiados por Comelis de Houtman, sendo que três
voltaram. Por causa do escorbuto, dos 248 homens envolvidos na
viagem, apenas 82 sobreviveram. A despeito deste fracasso, "a por­
ta para as Índias estava aberta", escreveu Masselman; iniciava-se
uma nova etapa no comércio colonial holandês. Cerca de dez com­
panhias semelhantes foram fundadas depois desta, tendo sido cha­
madas, posteriormente, de "pré-companhias" (vóor-compagnies).

17 Engel Sluiter. "Dutch- Spanish rivalry in the Caribbean Area, 1594-


1 609". Hispanic Arnerican Historical Review. V. XXXVIII, 2; 165-96, maio
1948, p. 1 70.
1s C Ê J. P. Blok, De Handel op Spanje en bet Begin der Groote Vaarl, 1913
apud Hennann Watjen, O Domínio Colonial Holandês no Brasil, São Pau­
lo, trad. port., 1938, p.67.
19 Cornpagnie van Verre significa algo como "Companhia para o lugar dis­
tante".

Os holandeses no comércio colonial e a conquista do Brasil, 1 540- 1 63 5 1 245


Estas eram formadas dentro do espírito da livre concorrência, sen­
do, na verdade, o agrupamento de capitais interessados nas aven­
turas mercantis que o Oriente proporcionava. Os riscos eram gran­
des, e logo os holandeses viram-se envolvidos numa situação de
real monopólio por parte dos vendedores: comerciantes nativos que
controlavam a oferta das especiarias. De tal maneira que, de acor­
do com Masselman, "em poucos anos o preço das especiarias tinha
quadruplicado"20•
Agindo apenas como comerciantes, não estavam dispostos, por­
tanto, a conquistar e arcar com o custo da manutenção do domínio
de nenhuma área produtora nas Índias. Como escreveu Masselman,
os holandeses "tinham ido para as Índias Orientais, não como con­
quistadores, ou para alargar sua fé protestante, mas simplesmente
como mercadores, prontos para pagar o preço combinado"21 • A pri­
meira reação ao aumento dos preços foi a criação de cartéis de com­
pra, como a Companhia de Amsterdam, formada pela junção das
voor-compagnies daquela cidade. Desiludidos com os parcos resul­
tados destes cartéis, imaginaram a criação de uma grande Com­
panhia de Comércio que monopolizasse a demanda, forçando os
nativos a vender em novas condições. Esta companhia de Amster­
dam (também chamada de a "Velha") pedia o monopólio total do
comércio com o Oriente, argumentando: "É recomendável que este
comércio seja conduzido por uma única administração, porque se
for deixado nas mãos de várias companhias, então este promis­
sor comércio tomar-se-á impraticável"22• Wallerstein mostrou que
se tratava de uma solução para um real dilema: ou se transfor­
mava a natureza do comércio incorporando as Índias como uma
área semi-periférica da economia mundial, o que demandaria o
controle político e a colonização, ou se administrava o comércio

20
George Masselman. "Dutch Colonial Policy in the Seventeenth Centu­
ry". /ournal ofEcon0 1JlÍC History, XXI, 4; 456-7, dez. 1961 . Veja-se, também,
E. F. Heckscher. La Epoca Mercantilista. México. 1983, p. 338-9. Para uma
história da Compagnie van Verre e destas pré-companhias, veja-se Charles
De Lannoy. "Expansion coloniale de la Néederlande (XVIIe et :XVIIIe
siecles)", in: C. De Lannoy e H. Vander Linden. Histoire de l'expansion
coloniale des peuples européens. Bruxelas/Paris. 1911, p. 28-47.
21
George Masselman. Op. cit., p. 457.
22 "Remostration submitted to the States óf Holland by the directors of
the East-India Company within in Amsterdam". Apud idem, p. 459.

246 1 Pedro Puntoni


nas bases tradicionais do comércio a longa distância entre impé­
rios-mundo23.
Razões políticas e militá res também conduziam para a unifica­
ção administrada do tráfico, porque a situação de dispersão impe­
dia a formação de uma frente única contra o Rei de Espanha e Por­
tugal nas águas do oceano. Apesar dos receios e negaceios da pro­
víncia de Zelândia, temerosa das intenções hegemônicas de Ams­
terdam, estas sugestões acabaram - sob a liderança de Joah van
Oldenbamevelt, o Grande Pensionário nos Estados Gerais - por
resultar na fundação da Companhia Privilegiada das Ín dias Orien­
tais (VOC) no ano de 1 60224•
Esta companhia combinava aquelas diversas em ação na Holan­
da sob o comando de um Conselho de Diretores formado por de­
zessete membros (os Heeren XVII), representando os acionistas por
meio das Câmaras das Províncias Unidas. Apesar de o artigo 34 da
carta de concessão ser o mais importante, porque garantia o mono­
pólio do comércio com as Índias do Oriente, o artigo 36 revelava
uma outra motivação que sustentara esta mudança na estrutura do
comércio colonial: a guerra. De acordo com este parágrafo, podia a
Companhia fazer acordos com outros países, erguer fortes, atacar
e saquear os navios que julgasse conveniente para a consecução
de seus objetivos mercantis, os quais, na prática, se aproximavam
dos políticos. O que estava em jogo era a decisiva vontade de am­
pliar o conflito com a Espanha ao além-mar, como parte de uma
política não muito unânime na Holanda. Manter-se no centro da
economia-mundo européia implicava, a longo prazo, no controle
do comércio distante da Ásia e da América. Esta última, "tardia­
mente atacada", escreveu Braudel,

escapará ao minúsculo adversário, mas no cenário do Extremo


Oriente, no reino das pimentas e especiarias, das drogas, péro­
las e seda, os holandeses fizeram uma entrada brilhante, com

23 Immanuel Wallerstein. The Modern World-System. Nova York. 1980, vol.


2, p. 47-8.
24 A carta patente foi dada pelos Estados Gerais no dia 20 de março de
1602. Cf. ibidem, p. 459 e E. F. Heckscher, op. cit., p. 338-9. Odelbemevelt
iria, mais tarde, opor-se ao grupo que pedia a fundação de uma com­
panhia para o Ocidente.

Os holandeses no comércio colonial e a conquista do Brasil, 1 540- 1 635 1 247


vigor, e souberam levar a parte do leão. Ali terminaram por ga­
nhar o cetro do mundo25•

Em razão dos diferentes interesses das províncias que se coliga­


ram em Utrecht, sempre houve conflitos entre elas. Grosso modo, a
disputa era entre a província de Holanda e as demais. Estas últi­
mas eram representadas, no âmbito dos Estados Gerais (isto é, do
poder central da Federação), pelos príncipes da família Orange cha­
mados de Stadhouder (governador), enquanto a província de Holan­
da impunha a sua liderança através da figura do Grande Pensio­
nário (o secretário do Conselho de Estado) . Na verdade, na intrin­
cada forma de ordenar o poder da Federação, tratava-se de uma
dualidade que se refletia na diferença de interesses em j ogo26•
A política dos mercadores da província de Holanda, dominante
pela influência de Odelbarnevelt nos Estados Gerais, dispunha-se
sempre para o prosseguimento do comércio, como é natural. Estes
conflitos estavam refletidos nos termos da disputa religiosa que
opunha Gomaristas e Arminianos, desde 159227• Os primeiros eram

25 Fernand Braudel. Op. cit., p. 1 72. Os holandeses tomaram Malaca


(1641), Colombo (1656) e Mombaça (1698) aos portugueses. Para Boxer,
isto talvez se explique pelo que os holandeses chamavam o slofheid van
den vijand, isto é, a "negligência do inimigo", ou ainda, aquilo que
Sérgio Buarque de Holanda carac�erizou como o "desleixo" do portu­
guês. Cf. Charles Ralph Boxer, A India Portuguesa em Meados do Século
XVII, Lisboa, trad. port., 1980 e A. R. Disney, A Decadência do Império da
Pimenta, comércio português na Índia no começo do século XVII, Lisboa,
trad. port., 1981.
26 "Toda decisão importante deve ser remetida aos Estados Provinciais e
aprovada por eles por unanimidade. Por causa dos interesses divergen­
tes das Províncias este sistema é uma fonte contínua de conflitos. Não
são as Províncias Unidas, mas as Provindas Desunidas, dizia Willian
Temple [embaixador inglês], em 1672". Fernand Braudel. Op. cit., p.
1 56. Para a organização política e social das Províncias Unidas veja
Charles De Lannoy, op. cit., p. 11-21 .
27 "Arminius rejected the view that grace is salvation, a view espoused
by his chief opponent, François Gomar. He proposed as an alternative
that grace is the indispensable prerequisite for salvation, the necessary
instrument of salvation. This may seem, to the jaundiced eyes os
twentieth-century persons, a picayune distjnction, but it led to greatest
theological debate of seventeenth-century". Immanuel Wallerstein.
Op. cit, p. 67-8.

248 1 Pedro Puntoni


recrutados entre as pessoas simples e sustentados por grupos eco­
nômicos contrários ao domínio de uma clara minoria social, "mas
poderosa porque sua base política era o produto de relações sociais
com os mercadores-patrícios"28• Os Gomaristas - ou Contra-Re­
monstrantes como eram chamados desde o Sinodo de Dordrecht,
em 1619 - mais radicais quanto ao prosseguimento da guerra de
religião, clamavam pela morte aos "papistas" . O conflito entre es­
tes dois poderes refletia-se na política militar adotada para a con­
dução da guerra contra Espanha.
Em sua especificidade, os conflitos coloniais desdobravam os
conflitos entre as nações colonizadoras ou mesmo gestavam confli­
tos de escala mundial29• Os episódios da Guerra dos Trinta Anos,
que se desdobram nas guerras de religião dos Quinhentos, estão
diretamente envolvidos nos episódios dos conflitos coloniais. Des­
ta maneira, o final da Trégua dos Doze Anos entre Países Baixos e
Espanha (que era, para Boxer, "o reconhecimento tácito da derrota
por parte desta última"30), em 1621, resultaria na reabertura das

28
Ibidem.
29
Até mesmo o cotidiano do europeu dos Seiscentos participava destes
conflitos. Como sabemos hoje, os acontecimentos na guerra do Brasil,
no nordeste da Colônia, eram detalhadamente acompanhados na Ho­
landa e na Espanha através dos panfletos (panfleten); ou, mesmo, eram
objeto de apostas, que foram levadas a registro público. Como nos
mostrou J. A. Gonsalves de Mello, várias foram as apostas feitas na
Holanda relativas aos acontecimentos no Brasil. No dia 5 de janeiro de
1635, por exemplo, Pieter Meulemans e Matheus de Vick Jonge, co­
merciantes, "apostaram mil libras flamengas como 'o forte chamado
Nazaré, como os portos e fortificações que dele dependem, situado no
cabo de Santo Agostinho no Brasil' não estaria no poder das armas da
WIC antes do dia 19 de março (Meulemans) ou estaria no próprio dia
19 ou antes (De Vick)". Sabemos, hoje, que o vencedor foi Meulemans.
O que, no entanto, este episódio ilustra muito bem era o incrível inte­
resse que as guerras coloniais instigavam nos homens comuns de Ho­
landa, ou, no caso, nestes comerciantes provavelmente interessados
nos sucessos desta grande empresa mercantil. Cf. Gente da Nação, Reci­
fe, 1 990, p. 21 7. Estas apostas eram muito comuns, isto porque apos­
tava-se de tudo nos Países Baixos, até mesmo qual seria a identidade
do novo Papa (em 1555 e em 1559). "The Antwerp brokers", escreveu
Parker, "took bets on everything: on the safe retum of ships, on the
outbreak of war (or peace) between states, on the death dates of the
great". Geoffrey Parker. Op. cit., p. 27-8.
30 Charles Ralph Boxer. The Dutch in Brazil, 1 624-1 654. Oxford. 1959, p. 1 .

O s holandeses n o comércio colonial e a conquista d o Brasil, 1 540- 1 635 1 249


mútuas hostilidades e, dentro deste quadro específico, na funda­
ção de uma Companhia de comércio orientada para o Ocidente.
Todavia, desta vez tratar-se-ia, desde o início, de propor não a admi­
nistração de um comércio tradicional, mas a conquista dos merca­
dos e mesmo dos dos espaços produtivos coloniais.
Fundar esta companhia foi, inicialmente, uma idéia do holandês
Willen Usselincx. Mercador, nascido em Antuérpia no ano de 1567,
esteve na Espanha, em Portugal e nos Açores onde era agente de
casas comerciais. Tendo feito fortuna, estabeleceu-se, no início dos
anos 1590, emAmsterdam. Já naquele tempo, Usselincx queria criar
uma nova companhia de comércio, a exemplo da Companhia das
Índias Orientais, nas mãos da qual deveriam os Estados Gerais de­
positar o monopólio do comércio com a África e a América. Esta
Companhia das Índias Ocidentais (West-Indische Compagnie -WIC)
teria como objetivos imediatos a fundação de colônias no Novo
Mundo e a promoção do comércio, e, de outra parte, o deslocamen­
to das lutas nas quais estavam envolvidos os Países Baixos para as
regiões ultramarinas31 •
Usselincx insistia na criação dos núcleos coloniais e no incre­
mento do comércio, enquanto alguns potentados das províncias de
Holanda só viam no projeto da Companhia um instrumento mili­
tar. Para Usselincx, no entanto, as duas motivações estavam total­
mente imbricadas. Nos seus folhetos de 1608, Bedenckinghen over de
staet vande Veerenichde Nederlanden (Considerações sobre o estado
dos Países Baixos) e Naerder Bedenckinghen over de zee waendt (Ul­
teriores considerações sobre o comércio marítimo), procurou in­
fluenciar os que estavam a negociar a paz com a Espanha a aban­
donar seus esforços. Usselincx especulava que, com a paz, declina­
ria o comércio dos Países do Norte e os refugiados (principalmente
os judeus com seus capitais) iriam embora32• No entanto, quando
se acertou a paz com a Espanha, o projeto da Companhia teve de
ser abandonado. Os potentados dos Estados Gerais sabiam, escre­
veu Watjen, "que Felipe II não poderia dar a sua aquiescência à
fundação de uma companhia que estava destinada a cavar a ruína

31 Cf. Charles De Lannoy. Op. cit., p. 52-4; e Hermann Watjen. Op. cit., p.
72-3.
32 Cf. J. H. Rodrigues. "Usselincx e a formação da Companhia das Índias
Ocidentais", Brasil Açucareiro, p. 36-9, set: de 1 944.

250 1 Pedro Puntoni


do comércio espanhol na América, e que ele jamais se submeteria
a uma condição de paz que lhe deixasse um 'espinho na própria
came"'33• O conflito batav·o-espanhol no Caribe em tomo da ex­
ploração das salinas de Araya, no entanto, deixava claro que sem
uma ação unida e coordenada, o comércio holandês com aquela
parte do globo não prosperaria. De acordo com o historiador Slui­
ter, foi neste tempo que tanto o governo como os comerciantes ho­
landeses começaram a levar a sério o projeto de uma companhia
para o Ocidente34•
A trégua de doze anos, firmada com a Espanha em 9 de abril de
1 609, punha em compasso de espera os planos de Usselincx e de
parte dos comerciantes holandeses. Apesar de ser observada tanto
na Europa como no além-mar, que então faziam parte dos conflitos
europeus, esta trégua não permitia o comércio com as possessões
do rei de Espanha. Pelo contrário, e como já havíamos visto, a polí­
tica do Rei Católico vinha cada vez mais restringindo o acesso de
comerciantes estrangeiros nos portos de seu Império. Entre os anos
de 1 604 e 1 606, outras providências foram tomadas para impedir o
comércio de naus estrangeiras com a costa do Brasil e das demais
conquistas de Espanha; a monarquia preocupava-se com o contra­
bando crescente e com a intensa atividade das companhias inglesa
e holandesa de comércio com o Oriente, recém-fundadas como vi­
mos. A provisão de 5 de janeiro de 1605 proibia todo o comércio
com os holandeses, devendo ser condenados na própria Colônia
aqueles que a infringissem. Os estrangeiros que navegassem para
as conquistas de Espanha podiam estar sujeitos à pena de morte35•
Mais tarde, a Espanha reforçava a sua xenofobia, proibindo defini­
tivamente a presença de estrangeiros na colônia brasileira. D. Luís
de Souza, governador-geral do Brasil, que havia enviado ao Rei, no
ano de 1618, uma relação com os estrangeiros que havia nas capita­
nias de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande do Norte e
dos quais "não se pode ter suspeita", assinou um mandato no dia 8
de j aneiro (do mesmo ano!) onde dizia que, de acordo com a carta
de S. M . de 6 de setembro de 1617, era sua ordem que "saiam logo

33 Hermann Watjen. Op. cit., p. 74.


34 Cf. Engel Sluiter. Op. cit., p. 191.
JS Cf. Francisco Adolfo de Varnhagen. História das Lutas com os Holandeses
no Brasil desde 1 624 até 1 654. Rio de Janeiro. 1971, p. 321 .

O s holandeses n o comércio colonial e a conquista d o Brasil, 1 540- 1 635 1 25 1


deste dito Estado todos os estrangeiros que nele viverem, sem de­
manda" até a partida da frota em maio. Da mesma maneira, defi­
nia ainda o mandato: "os capitães de navios onde estarão estran­
geiros estarão sujeitos ao rigor da lei"36•
Apesar desta legislação estorvar o comércio entre holandeses e
luso-brasileiros, devemos seguir a advertência do historiador Stols:
não se pode confundir a legislação com os fatos. O fato é que a
colônia dos comerciantes holandeses em Portugal e as relações trian­
gulares descritas acima já se haviam estabelecido de uma maneira
suficientemente forte para que possamos concluir, seguindo Stols,
que "as medidas discriminatórias da Coroa Espanhola tiveram bem
pouco efeito sobre a intensidade do intercâmbio comercial"37• Pode
se ter uma idéia desta intensidade ao observar os dados levantados
pelo casal de historiadores Egon e Frieda Wolff, nos arquivos tabe­
lionáticos deAmsterdam. Aí vemos vários comerciantes, particular­
mente judeus, envolvidos nos negócios feitos na colônia durante
este período38• A indicação da mais recente participação destes co­
merciantes judeus no comércio Brasil-Holanda, encontrada nestes
registros notariais, é a de um certo Manoel Rodrigues Vega e a de
outros comerciantes flamengos que declararam, no ano de 1601,
por diversas vezes haver levado do Brasil navios carregados de
açúcar e pau-brasil diretamente para a Holanda, apesar de terem
informado Portugal como seu destino39• Sluiter afirma que lhe foi

36 Cf. "Memorial de Todos os Estrangeiros que vivem nas capitanias de


Rio Grande do Norte, Paraíba, Itamaracá e Pernambuco e bahia dos
quias não se pode ter suspeita" (1618), Livro Primeiro do Governo do
Brasil, 1 607-1 633, loc. cit. Dois dias antes, no 6 de janeiro, D. Luís rece­
bia uma carta de João Mendes, capitão-mór do Sergipe, onde relatava
estar envolvido com a atividade de uns franceses ("seis naos de inimi­
gos, um pataxo e uma lancha") que entraram no rio Real e "tomaram
muitos porcos, e galinhas, e roubaram o mais que havia na casa de um
morador onde derâo,e assim limparam as cacimbas as entendo que
com necessidade de muita água". Livro Primeiro do Governo do Brasil,
1 607-1 633, p. 200-1 .
37 Eddy Stols. Op. cit., p. 34-42.
38 Veja principalmente o capítulo "As relações comerciais entre Amster­
dam e o Brasil" de Egon e Frieda Wolff, Judeus em Amsterdã. Seu relacio­
namento com o Brasil. Rio de Janeiro. 1989, p. 39-69.
39 Cf. "Registro no tabelionato de Bruyningh, L. 89, f. 1 56-7", apud ibidem,
p. 40.

252 1 Pedro Puntoni


possível encontrar, nos documentos, "mais de cem casos de tais na­
vios holandeses e alemães-holandeses no comércio e transporte do
Brasil para os anos de 1587-1599 . . . Para o período de 1 600-1 605 há,
pelo menos, o dobro, mas a conta final ainda há de ser feita"40•
Como tenho reiterado, não era de agora que os comerciantes
portugueses dependiam da navegação dos holandeses para o trato
do açúcar e de cereais. Todavia, com a Trégua dos Doze Anos (1609-
1621), apesar das medidas do Rei Católico, este comércio luso-ho­
landês foi retomado em larga escala, tendo então a Holanda inten­
sificado seus interesses pelos gêneros do Brasil. Frei Vicente do Sal­
vador escreveu, em 1 627, que "custumavam vir ao Brasil urcas fla­
mengas despachadas e fretadas em Lisboa, Porto e Viana, com fazen­
das da sua terra e de mercadores portugueses, para levarem açúcar" .
A opção pelas naus estrangeiras fazia-se em razão de serem "essas
urcas mais fortes e artilhadas", mais seguras portanto, de modo
que todos as preferiam41 • Ou ainda, segundo Wallerstein, devido às
taxas de frete serem mais baratas em razão do desenvolvimento e
do baixo preço da construção de navios da indústria holandesa42•
Segundo o historiador Boxer, ao findar a Trégua dos Doze Anos,
eram construídos quinze navios todos os anos na Holanda para
atender a um crescente tráfico de mercadorias com o Brasil. Nave­
gando sob a bandeira e proteção dos portugueses, principalmente
de Viana do Castelo e do Porto, os holandeses importariam, via
Portugal, grande quantidade de caixas de açúcar por ano, além do
pau-brasil e outras drogas43• Seguindo uma relação da época, Boxer

40 Engel Sluiter. "Os holandeses no Brasil antes de 1621 . Revista do Mu-


"

seu do Açúcar, 1; 76, 1 968.


41 Cf. Frei Vicente do Salvador. Op. cit., p. 292.
42 Immanuel Wallerstein. Op cit., p. 55.
43 Cf. The Dutch in Brazil, 1 624-1 654. Oxford. 1959, p. 20-1 . Boxer diz se­
rem 50 mil caixas de açúcar por ano. Número certamente muito exage­
rado, uma vez que este número de caixas importaria num total de cer­
ca de um milhão de arrobas, mais do que todo açúcar exportado pela
Colônia no período (960 mil arrobas). As caixas de açúcar tinham en­
tre 20 e 24 arrobas no tempo do comércio com os holandeses; diferença
que resultaria em 200 mil arrobas a mais. Para o total do açúcar expor­
tado em 1623 e para o tamanho das caixas de açúcar veja-se Stuart
Schwartz. Segredos Internos. São Paulo, trad. port. 1988, p. 150 e 113-6 e
também a "Lista do que o Brasil pode produzir anualmente", FHBH,
1;15-20.

Os holandeses no comércio colonial e a conquista do Brasil, 1 540- 1 635 1 2 53


conclui que o comércio Brasil-Europa, neste momento, achava-se
entre metade a dois terços nas mãos dos comerciantes holandeses.
O autor da relação, citada por Boxer, mostrou que "muitos bons e
honestos portugueses, na sua maioria vivendo em Viana e Porto"
intermediavam o tráfico destes barcos holandeses que conseguiam,
por vezes, impostos reduzidos por meio de suborno. Os portugue­
ses envolvidos neste contrabando faziam o negócio com tamanho
zelo que pareciam "tal como se fossem os nossos próprios pais e
vivessem aqui em nosso meio"44• O historiador pernambucano José
Antonio Gonsalves de Mello conclui que "pode aceitar-se que, du­
rante a trégua de 1609-1621, duas terça-partes da produção do açú­
car nordestino tenham atingido o mercado holandês, isto é, de 23.300
caixas" . Além desse interesse comercial, como vimos, havia o inte­
resse das refinarias em Holanda, que processavam o produto bruto
que vinha do Brasil, e o da distribuição do açúcar refinado aos por­
tos da Europa Ocidental e do Mediterrâneo45• O volume deste tráfi­
co, no entanto, fica no terreno da pura especulação. O que importa
notar é que, se a alternativa de controle do comércio colonial via
Companhias se daria aqui pela conquista dos espaços coloniais, di­
ferentemente do caso da Companhia das Índias Orientais, ela es­
barraria, ou trombaria, de imediato com estes interesses já sedi­
mentados e com as redes mercantis preexistentes.
Ainda em trégua com os espanhóis, no ano de 1618, o príncipe
Maurício de Nassau, o stadhouder, em razão da crise religiosa que
grassava entre os protestantes, mandou prender o Grande Pen­
sionário, e executá-lo. Com a morte do estadista Johan van Olden­
barnevelt, em 1619, ganharam força os "partidários da guerra".
Entre estes estavam os comerciantes interessados no acesso ao novo
mercado, aqueles interessados na normatização do espaço do con­
trabando e o clero calvinista. Todos defendiam a necessidade de
fundar-se uma Companhia para o Ocidente. As propostas de Usse­
lincx foram reexaminadas e, depois de um longo debate nos Esta­
dos Gerais, deliberou-se pela criação da WIC, em 3 de junho de

44 A relação anônima chama-se "Deductive varvaetende den oonspronck


ende progres van de vaert ende handel op Brasiluijt dese landen over
het coninkrijck Portugael (1622)", in: J. W. Ijzerman, e.d., /ournael van
de reis naar Zuiud-Amerika door Hendrick Ottsen. Haia. 1918, p. 98-106,
apud Charles Ralph Boxer. Op. cit., p. 20.
45 J. A. Golsalves de Mello. Op. cit., p. 203-4.

2 54 1 Pedro Puntoni
1 62146• Dos 45 artigos de seu Regulamento recebido na ocasião, os
mais importantes eram: a exclusividade por 24 anos do comércio
com as costas da Á frica, abaixo do Trópico de Câncer, com as terras
e ilhas da América e, no Oceano Pacífico, da costa ocidental da
América à extremidade oriental da Nova Guiné. A Companhia po­
dia construir fortes, possuir exércitos e negociar com outras nações
e soberanos estrangeiros; as tropas seriam fornecidas pelos Esta­
dos Gerais, sendo o soldo de responsabilidade dos cofres da Com­
panhia47.
Os Estados Gerais subsidiaram-na fortemente. Durante cinco
anos pagariam, todo ano, a quantia de 200 mil florins à Compa­
nhia, participando dos seus lucros. Se envolvida em conflitos mili­
tares, a Companhia contaria com a sua ajuda. O capital inicial, acu­
mulado até 31 de agosto de 1 623, foi de 7.108.161 florins, obtidos
através da contribuição dos Estados e da compra de ações por par­
ticulares. Por estar muito mais inspirada nos objetivos bélicos que
na criação dos núcleos coloniais e no incremento do comércio, a
Companhia não empolgou de imediato; as subscrições das ações
tiveram curso lento48• Os lotes de ações, de toda maneira, estavam
divididos entre cinco câmaras regionais, nas seguintes proporções:
Amsterdam, 4/9; Zelândia, 2/9; Rotterdam, 1 /9; Hoom e Frísia,
1 /9; a cidade e o campo de Groningen, 1 /9. Um corpo de 19 direto­
res formava a administração central (chamada de Heeren XIX -

senhores 19), acompanhando a proporção anterior: Amsterdam 8


diretores; Zelândia, 4 diretores; Rotterdam, 2 diretores; Hoom e
Frísia, 2 diretores; a cidade e o campo de Groningen, 2 diretores. Os
Estados Gerais indicavam o último49•

46 Cf. Charles De Lannoy. Op. cit., p. 73-83; e Charles Ralph Boxer. Op.
cit., p. 4-7.
47 Cf. "Privilégio concedido pela Altas Potencias os Senhores dos Es­
tados Gerais à WIC em data de 3 de junho de 1621 ", in: Johannes De
Laet. História ou Anais dos feitos da Companhia Privilegiada das Índias Oci­
dentais (1644). Rio de Janeiro, trad. port. Anais da Biblioteca Nacional, 30;
8-2 1 .
48 Cf. Hermann Watjen. Op. cit., p.80-3.
49 Cf. "Privilégio concedido pela Altas Potencias os Senhores dos Estados
Gerais à WIC em data de 3 de junho de 1621 ", in: Johannes De Laet.
Op. cit., p. 8-21; Petrus Marinus Netscher. Os Holandeses no Brasil. São
Paulo, trad. port. 1942, p. 51-2; e Charles Ralph Boxer. Op. cit., p. 8-9.

Os holandeses no comércio colonial e a conquista do Brasil, 1 540- 1 635 1 255


Se o forte caráter militar da Companhia era resultado do desejo
de arrancar do Rei de Espanha seus territórios coloniais, entre os
quais as colônias de Portugal, ele se chocava, no entanto, com os
interessados na manutenção das relações informais e intensas com
a região produtora de açúcar no Nordeste do Brasil. Assim, a Com­
panhia das Índias Ocidentais foi sustentada, inicialmente, apenas
pelo partido da guerra (war party) das Províncias Unidas. Este "par­
tido da guerra" conseguia o seu poder da Casa de Orange e nos
seus próximos, dos ministros calvinistas (influentes na Zelândia) e
das comunidades marítimas das cidades. Já o partido da paz (peace
party), era apoiado pela oligarquia dos comerciantes de Amsterdam
que formava a classe governante, com grande influência sobre as
nomeações municipais e administrativas, e com 9rande parte do
poder econômico, controlando a Companhia das Indias Orientais.
Como já dissemos, Grande Pensionário, Johan van Oldenbamevelt,
baseava sua força nessa mesma oligarquia burguesa50• Quando a
Companhia foi fundada, em 1621, o capital de Amsterdam tam­
bém entraria, como vimos, e a idéia de uma "corporação missioná­
ria" transformar-se-ia na de uma instituição privada51•
Em suma, não podiam ser apenas os empecilhos ao comércio,
colocados pela monarquia espanhola, que motivavam estes holan­
deses a fundar uma companhia, cuja principal característica (nos
seus primeiros momentos) seria a agressividade. Tampouco eram
apenas impulsos religiosos e patrióticos contra o Rei de Espanha.
Neste ambiente estavam articulados os concretos interesses dos
comerciantes envolvidos numa disputa pelo controle do comércio
colonial, representados nos partidos em questão. A disputa que re­
sultara na fundação da Companhia fazia-se antes na própria Holanda;
seus móbiles eram internos. Segundo Eddy Stols, o grupo de merca­
dores ligados à aventura colonial da Companhia das Índias Oci­
dentais era um "novo grupo de empreendedores corsários, in­
cipiente burguesia popular e nacionalista", em oposição à "bur­
guesia tradicional" que tinha os seus interesses comerciais j á de­
finidos, seja ao Oriente, seja no Brasil, particularmente. O "novo

50 Cf. Charles Ralph Boxer. Salvador de Sá e a Luta pelo Brasil e Angola 1 602-
1 686. São Paulo, trad. port. 1 973, p. 57.
51 Cf. Cornelis Ch. Goslinga. The Dutch in the Caribbean and on the Wild
Coast. Gainesville. 1971, p. 39.

256 1 Pedro Puntoni


grupo" procurava o estabelecimento de uma nova dinâmica e a
conquista de espaço no lucrativo comércio de produtos tropicais52•
Opunha-se, portanto, àquele grupo que realizava, como nunca, o
comércio com o Brasil sob a bandeira do contrabando, como vimos
acima.
Destarte, a fundação da Companhia atendia a necessidade de contro­
lar o conflito entre os dois grupos de interesses. Tratava-se, segundo
esse autor, de uma solução para que os Estados Gerais mantives­
sem o controle e a organização da vida econômica das Províncias
Unidas, ameaçadas de uma " �erra civil, no nível econômico". A
fundação da Companhia das lndias Ocidentais teria sido, em suas
palavras, uma "nacionalização" avant la lettre. De acordo com Stols,
a instabilidade de preços do açúcar em Amsterdan, depois da con­
quista do Brasil, demonstra que o conflito não se resolveu de pron­
to: "a instabilidade devia permanecer até um ou outro partido con­
seguir apossar-se da distribuição de toda produção açucareira bra­
sileira e impor seus preços"53•

A conquista do B rasil

Os quinze primeiros navios da Companhia das Índias Ociden­


tais operavam inicialmente na Á frica Ocidental e no delta do rio
Amazonas. Mas, este era um comércio apenas de ocasião54• Muitos

52 Cf. Eddy Stols. Op. cit., passim.


53 Idem p. 48. A hipótese de Stols, muito interessante, necessita ainda de
uma análise do processo de formação dos preços no Brasil, em Portu­
gal e na Holanda, e das relações entre a flutuação em cada momento,
coisa de dificil consecução por exigir, certamente, um esforço de equi­
pe; intento quase impossível de lograr no atual estágio da política pro­
fissional dos historiadores no Brasil. No entanto, o último livro de J. A.
Golsalves de Mello permite vislumbrar o acerto da hipótese de Stols.
Os conflitos surgidos no Brasil Holandês, entre os anos 1638 e 1 645
entre o grupo de comerciantes holandeses e a comunidade judaica,
que eram "antes de natureza econômica que religiosa", podem ser ri­
cochetes das disputas travadas na Holanda. Cf. Gente da Nação, p. 261 .
54 Apesar de a maior parte do interesse holandês fluir por ess�s vias nor­
mais, o comércio direto realizado por holandeses com as Indias, Oci­
dentais ou Orientais no século XVI não era de somenos importância.
As viagens realizadas diretamente por comerciantes holandeses à nova

Os holandeses no comércio colonial e a conquista do Brasil, 1 540- 1 635 257


eram aqueles que advogavam saídas ma is belicosas para as ativi­
dades da Companhia, afinados com as motivações de sua funda­
ção, que, como vimos acima - diferentemente do que propusera
Usselincx - nascia organizada como "Sociedade de Corso grand
style"55• Os diretores da Companhia eram estimulados pelos Esta­
dos Gerais, que estavam persuadidos que todos esforços emprega­
dos dentro do País não eram por si só suficientes para terminar a
guerra, "e que necessário se fazia cortar a Espanha o nervo, por
assim dizer, de suas rendas anuais, e com o tempo estancar as fon­
tes, donde o sangue e a vida se derramam naquele grande corpo"56•
Sugeriam, às vezes, a captura de portos e colônias nas Antilhas,
sempre de olho na frota da prata que anualmente levava o metal
americano para Sevilha, na Espanha. Chegou-se até a pensar na
tomada de um porto na própria península Ibérica. Alguns dos di­
retores da Companhia achavam que interceptando as flotas espa­
nholas, a partir de um ponto ocupado no continente, acabariam
por "meter grande medo ao Rei da Espanha", obrigando-o a fazer
enormes despesas para a defesa de suas conquistas57•
Em abril de 1623, J . A. Moerbeeck enviou a Sua Alteza Real, Prín­
cipe de Orange, e aos Estados Gerais uma sugestão de ataque à
colônia do Brasil. "Estando a Companhia das Índias Ocidentais em
perfeito estado", escreveu, "ela não pode projetar coisa melhor e
mais necessária do que tirar ao rei de Espanha a terra do Brasil,
apoderando-se dela". Argumentava em vários pontos o porquê da

colônia brasileira datam do final do século XVI. Há indícios de os co­


merciantes batavos terem feito viagens "por sua conta", do Reino ao
Brasil, já no ano de 1594. A parte mais animada deste comércio direto
foi reservada à região norte, ao curso dos rios Amazonas e Negro. Este
trato parecia próspero, pois, em 1599, um português reclamou, com
certo exagero, junto ao Rei: "Um enxame de navios holandeses dirige­
se às várias ilhas e portos da costa continental e, achando-os desprovi­
dos de fazendas, por falta de suprimento espanhol, as vendem por
preço muito barato". Cf. Hermann Watjen. Op. cit., p. 70.
55 Ibidem, p. 84. Edmundson escreveu: "A trading company in name, an
armed and semi-independent corporation in reality, aiming indeed at
profit, but profit by war rather than peace, ... ". George Edmundson.
"The Dutch on the Amazon and Negro in the 17th century". English
Historical Review, 15; 234-5. 1903.
56 Johannes De Laet. Op. cit., 36.
57 Cf. Charles Ralph Boxer. Op. cit., p. 58.

258 1 Pedro Puntoni


validade de sua proposta, calculando, de forma otimista que à Com­
panhia restaria um lucro anual de 77 toneladas de ouro58•
À vontade de expandir o conflito Holanda-Espanha para as re­
giões periféricas da economia-mundo, associavam-se as ambições
daquele novo grupo de comerciantes. No entanto, vários foram os
que se opuseram à iniciativa de atacar o Brasil, entre eles o próprio
Usselincx. Como vimos, havia interesses já constituídos no comér­
cio Brasil-Holanda que, apesar das proibições da monarquia es­
panhola, continuavam a realizá-lo de forma ilegal e assim preten­
diam mantê-lo. Os interessados neste próspero contrabando se
assustavam com "a idéia de um ataque às colônias ou aos navios
luso-americanos, o que poderia expor os seus próprios barcos e os
seus agentes no Porto e em Viana a represálias", escreveu Boxer59•
No entanto, os tempos eram de guerra e o recém-instituído Con­
selho dos XIX (Heeren XIX) decidiu-se pela conquista do Brasil, mais
precisamente pela conquista da próspera economia açucareira das
capitanias do Nordeste. Os lucros esperados destas seriam sufi­
cientes para arcar com os custos da conquista e da ocupação, e,
caso os portugueses ali instalados não quisessem cooperar e resol-

58 Moerbeeck imaginava que o Brasil produzia cerca de 60 ,mil caixas de


açúcar que valeriam por volta de 35 toneladas de ouro. A Companhia
restaria o equivalente a 3 toneladas de ouro pelos direitos de seu co­
mércio. Como podia pagá-las no Brasil com mercadorias de Et!ropa,
podia tirar ainda 60% de vantagem. O pau-brasil, o gengibre, o tabaco,
os xaropes e doces mobilizariam umas 4, toneladas de ouro. "Da comu­
nidade aí residente, a Companhia das Indias Ocidentais poderá tirar
anualmente, com emprego de bons métodos, cuja enumeração é aqui
desnecesária, pelo menos três a quatro toneladas de ouro", escreveu.
Dos dízimos e das terras e rendas confiscadas ao Rei, tirariam ainda
umas seis ou sete toneladas de ouro. Em suma, a Companhia, caso
fosse senhora do Brasil, embolsaria cerca de 77 toneladas anuais de
ouro, menos 27 que seriam destinadas às "despesas anuais de guerras,
tanto no mar como na terra, a fim de manter em sujeição tais lugares e
defendê-los contra o rei de Espanha". Afora esse lucro de 50 boas tone­
ladas de ouro, devia se pensar no fator multiplicador; afinal era preci­
so apetrechar os exércitos, construir navios, produzir e comerciar mer­
cadorias, em suma, aumentar as atividades na Holanda. Cf. J. A.
Moerbeeck. Motivos porque a Companhia das Índias Ocidentais deve tirar
ao Rei de Espanha as terras de Portugal, (1624). Rio de Janeiro, trad. port.
1942. O texto foi impresso em um panfleto no dia 6/9/1624.
59 Charles Ralph Boxer. The Dutch in Brazil, 1 624-1 654. Oxford. 1959, p. 21 .

Os holandeses no comércio colonial e a conquista do Brasil, 1 540- 1 63 5 1 259


vessem abandonar suas plantações, seriam substituídos por capi­
talistas holandeses nelas interessados60• Ao mesmo tempo, enviar­
se-iam armadas para a captura dos entrepostos portugueses de es­
cravos na Á frica. Resolveu-se, então, que fosse acometida a cabeça
da colônia do Brasil: a Bahia de Todos os Santos61 •
A armada de 26 navios comandada por Jacob Willekens, que ha­
via partido de Holanda carregando 450 bocas de fogo e 3.300 ho­
mens, chegou à Bahia no dia 8 de maio de 1 62462• Após uma série
de escaramuças, os holandeses controlaram a cidade, mas não con­
seguiram evitar que os moradores, que haviam fugido, organizas­
sem a resistência nos arredores63• No ano seguinte, a Bahia foi reto­
mada pelos ibéricos através de uma monumental operação militar
que ficou conhecida com a Jornada dos Vassalos, porque para o
reforço da gente deveriam concorrer, não só Portugal, mas todos os
outros reinos vassalos de Sua Majestade. Grande era o número de
nobres, o que causou admiração a vários cronistas da época64•

60
Idem, p. 19-20.
61
Para uma discussão dos argumentos que justificavam o ataque à Bahia,
veja-se Charles Ralph Boxer. Salvador de Sá e a Luta pelo Brasil e Angola
1 602-1 686. São Paulo, trad. port. 1 973, p. 57-60.
62
Boxer mostra que o Governador D. Diogo de Mendonça procurou se
preparar para o ataque dos holandeses que sabia destinado a "algum
ponto do Brasil". Os lavradores do Recôncavo, no entanto, viam com
indiferença ou mesmo oposição estes esforços. Daí Vieira ter relatado
que a surpresa havia sido grande. Cf. ibidem, p. 61-2.
63 "Ao Geral da Companhia de Jesus, 30/09/1626", nas cartas do Pe.
Antônio Vieira editadas por J. L. de Azevedo, Cartas do Padre Antônio
Vieira. Coimbra, 1925-26, vol. 1, p. 10-4.
64 Stuart Schwartz procurou mostrar recentemente que a Jornada dos
Vassalos "marked a turning point in the history of the Iberian Atlantic,
a last enactment of the old ties between the nobility and the Crown,
and a theater in which the roles of a unifying state, a mercantile bour­
geoisie of suspect ortodoxy, and an increasingly disenchanted Por­
tuguese nobility were played out". "The Voyage of the Vassals: royal
power, noble obligations, and merchant capital before the portuguese
restoration of independence, 1624-1640". American Historical Review, p.
737, june 1 991 . São muitas as descrições e histórias destes sucessos.
Várias delas contemporâneas como a de Johannes Gregorius Alden­
burgk, Relação da Conquista e Perda da cidade de Salvador pelos holandeses
em 1 624 e 1 625. São Paulo, trad. port. 19�1, a carta de Vieira, já citada
acima, e, a mais famosa, de Bartolomeu Guerreiro, ]ornada dos Vassalos

260 1 Pedro Puntoni


Os diretores da Companhia, no entanto, não se resignaram com
a perda da Bahia. Depois de conseguir enormes lucros com a cap­
tura da "frota da prata" em Matanzas (Cuba) no ano de 1 628, a
WIC tinha todas as possibilidades de financiar uma nova invasão.
De fato, a Bahia havia sido atacada novamente pelo mesmo autor
desta façanha no ano de 1627, tendo sido inteiramente saqueada65•
Isto talvez houvesse pesado na decisão para que o novo ataque ao
Brasil fosse dirigido à também rica, porém mais desprotegida, ca­
pitania de Pernambuco. De toda maneira, os holandeses já sabiam
da primazia desta região na indústria do açúcar e sua admirável
riqueza66• A este conhecimento somavam-se as informações obti-

da Corôa de Portugal para se recuperar a cidade de Salvador, na Bahia de


Todos os Santos, tomada pelos holandeses a 8 de maio de 1 624. Lisboa. 1 625.
Mas a narrativa condensada de Boxer é certamente a mais indicada
para um rápido contato com estes acontecimentos. Charles Ralph Boxer,
Op. cit., principalmente o cap. 2 ("A Expedição dos Vassalos"), p. 55-
82.
65 Piet Heyn, o autor da façanha, havia estado na armada de Willenkens
em 1623 e visitado outras vezes as costas da Bahia. Em 1625 iremos vê­
lo tentando apoderar-se de Angola. Em março de 1627 atacou Salva­
dor levando consigo, ao que consta, três mil caixas de açúcar que en­
contravam-se nos porões dos navios ali apartados. No mesmo ano,
três meses mais tarde, atacou novamente a cidade. No entanto, o mais
importante ato de pirataria do "tenor dos nubles de Delfshaven", como
era conhecido, foi sem dúvida ter capturado a frota da prata. Calcu­
lou-se o tesouro em 12 milhões de florins, o que não só recuperou to­
dos os prejuízos da Companhia até então, como fez pagar um dividen­
do de 75% aos acionistas naquele ano. Cf. Francisco Adolfo de
Varnhagen, História das Lutas com os Holandeses no Brasil desde 1 624 até
1 654. Rio de Janeiro. 1871, p. 40-4. E Charles Ralph Boxer. The Dutch in
Brazil, 1 624-1 654. Oxford. 1959, p. 29-31. O infeliz general espanhol D.
Juan de Benavides y Bazán, responsável pela frota, foi condenado e
decapitado, seis anos depois. Na ocasião, seu carrasco o acusou pela
negligência e disse "Quien tal hizo, que tal pague! " Charles Ralph Boxer.
Salvador de Sá e a Luta pelo Brasil e Angola 1 602-1 686. São Paulo, trad.
port. 1 973, p. 81. Uma descrição do acontecido e uma lista das merca­
dorias capturadas está em Johannes Gregorius Aldenburgk, Relação da
Conquista e Perda da Cidade de Salvador pelos Holandeses em 1 624 e 1 625.
São Paulo, trad. port. 1961, p. 243-54.
66 Pernambuco era, já no século XVI, uma das mais ricas capitanias em
razão do cultivo da cana e da produção do açúcar. No ano de 1 542, o
donatário informava ao Rei que o seu cunhado, Jerônimo deAlbuquer­
que, havia posto em funcionamento um engenho, o Nossa Senhora da

Os holandeses no comércio colonial e a conquista do Brasil, 1 540- 1 63 5 26 1


das pela interceptação das cartas do governador Matias de Albu­
querque, que davam conta da precariedade das fortificações. A
decisão foi provavelmente tomada entre o fim do ano de 1628 e o
início de 162967•
A expedição, sob o comando de Hendrick Corneliszoon Loncq,
partiu no dia 27 de junho de 1629, e contava com sessenta e sete
navios. Chegou a Olinda no início de fevereiro e se lançou ao ata­
que no dia 15. Apesar das tentativas de organizar a resistência sob
o comando de Matias de Albuquerque (enviado à Capitania com
esta missão) optou-se, logo no dia seguinte, pelo abandono da ci­
dade. Os fortes de Recife ainda resistiram por uma quinzena, ten­
do sido abandonados no dia 3 de março68•
De imediato, aprestou-se em Lisboa uma armada, sob o coman­
do de D. Antonio de Oquendo, para ir em socorro da colônia captu-

Ajuda. Oito anos mais tarde, já eram cinco as fábricas moendo. Em


15'.10, eram 66 os engenhos de acordo com o pe. Fernão Cardim. No
início dos Seiscentos, eram muitos os engenhos em Pernambuco, que
nucleava a mais promissora região da Colônia. A indústria do açúcar
havia se desenvolvido rapidamente nos anos precedentes à conquista
pelos batavos, em 1630. Segundo a Lista do que o Brasil pode produzir
anualmente, que resumia informações da economia do Nordeste brasi­
leiro em 1623, havia 137 engenhos funcionando (moentes) entre o Rio
São Francisco e o Rio Grande, isto é, nas capitanias de Pernambuco e
Paraíba. Logo após a invasão holandesa, as fábricas de açúcar que
moíam eram, em Pernambuco, entre 99 e 106. Em Itamaracá, havia
cerca de 20 engenhos; na Paraíba, entre 1 9 e 20; e no Rio Grande do
Norte, apenas três engenhos moíam. No total, por volta de 1630, a
região Norte (formado ainda pelas capitanias de Itamaracá e Rio Grande
do Norte) tinha por volta de 149 engenhos em funcionamento. Cf. J. A.
Gonsalves de Mello que o traduziu e fez publicar A Lista nas FHBH
[Vol. 1, Economia Açucareira] (vários relatórios e listas). Recife. 1 981,
p. 15-20. E Célia Freire A. Fonseca. A Economia Européia e a Colonização
do Brasil (a experiência de Duarte Coelho). Rio de Janeiro. 1 978, p.223-300;
Stuart Schwartz. Segredos Internos. São Paulo, trad. port. 1988, p. 33;
Frédéric Mauro, Portugal, o Brasil e o Atlântico (1570-1 670). Lisboa, trad.
port. 1 989, v. l, p. 255; e a "Descripção das Capitanias de Pernambuco,
Itamaracá, Paraíba, e Rio Grande do Norte. Memória apresentada ao
Conselho Político do Brasil por Adriano Verdonk, em 20 de maio de
1630". RIAGP, 55; 215-27. 1901 .
67 Cf. Charles Ralph Boxer. The Dutch in Brazil, 1 624-1 654. Oxford. 1 959,
p. 32-7.
68 Idem, p. 37-9.

26 2 1 Pedro Puntoni
rada. Mas esta expedição não repetiria a importância e a nobreza
daquela dos Vassalos69• Os navios de Oquendo encontraram-se
com os do holandês Paters, em 12 de setembro de 1631, nas águas
da Bahia, onde se deu uma grande batalha. O comandante espa­
nhol disse, um pouco antes da batalha, que as naus do inimigo eram
"pouca roupa", mas, apesar de o almirante holandês Paters mor­
rer, "envolto no estandarte da Holanda", como quer a crônica da
época, os espanhóis tiveram grande derrota, não podendo mais do
que deixar alguns reforços para os pernambucanos que resistiam.
"Parece que tudo concorria para a perda total de Pernambuco",
lamentava-se o donatário Duarte de Albuquerque70•
Com o fracasso da armada espanhola de Oquendo em 1631, a
resistência à invasão limitou-se a uma estratégia de "guerra lenta" .
Essa estratégia, perseguida pela Coroa ibérica, buscava a manu­
tenção do impasse inicial, dos anos 1 630 a 1 632; quer dizer, procu­
rava deixar aos holandeses o controle das praças-fortes, mas man­
ter o da zona produtora de açúcar, à espera de uma intervenção da
Armada naval, quando isso fosse realizáveF1• Então, acentuava-se
a campanha de guerrilhas, a chamada "guerra brasílica" . Também
chamada de "guerra volante" ou "guerra de emboscadas", era na
verdade uma maneira de combate e uma estratégia militar que usa­
va dos novos elementos típicos da situação da Colônia72•
A "guerra lenta", uma vez impossibilitado o apoio esperado pelo
mar, não poderia manter o domínio do Interior por muito tempo.

69 Stuart Schwartz procura mostrar o porquê em seu já citado artigo. "The


Voyage of the Vassals: royal power, noble obligations, and merchant
capital before the portuguese restoration of independence, 1624-1640".
70 A descrição da batalha aparece em cores vivas nas Memórias Diárias de

la Guerra dei Brasil, por discurso de nueve aiíos, empeçando desde el MDCXXX
(1654), de Duarte de Albuquerque Coelho. Recife. 1944, p. 94-8.
71 Evaldo Cabral de Mello. Olinda Restaurada. Rio de Janeiro. 1975, p. 24.

72 "O sistema de defesa que Matias de Albuquerque aplica contra os ho­


landeses de 1630 a 1 636 é um sistema misto, pelo qual as forças con­
vencionais estão concentradas numa praça forte, o Arraial, guarnecida
pela artilharia e pelas tropas regulares e situada à retaguarda de uma
linha de postos avançados, as estâncias, ocupadas por tropas irregula­
res de índios, negros e soldados da terra. Entre uma e outra estância,
vagam as esquadras volantes que continuadamente emboscam e as­
saltam os invasores. Enquanto o Arraial preenche uma função estraté­
gica, as estâncias e as esquadras volantes têm um objetivo puramente
tático". Idem, p. 21 7-48.

Os holandeses no comércio colonial e a conquista do Brasil, 1 540- 1 635 1 26 3


Os holandeses, nos anos que se seguiram, conquistaram aos pou­
cos as outras capitanias vizinhas e a região do interior de Pernam­
buco: a ilha de Itamaracá (em 1633), o Rio Grande do Norte (isto é,
o forte dos Reis-Magos, em 1634), a Paraíba (isto é, o forte de Cabe­
delo, em 1 634) e finalmente o Arraial do Bom Jesus, como era co­
nhecido o reduto da resistência luso-brasileira (no dia 6 de junho
de 1 635). A estes sucessos, ainda em 1635, seguiu-se a rendição da
fortaleza de Nazareth, no cabo de Santo Agostinho, ao sul de Reci­
fe. De modo que, no dia 3 de julho, Albuquerque comandava a re­
tirada, por terra, das tropas e moradores fiéis ao Rei Católico para
o forte do Porto Calvo, mais ao sul, então sob o comando holandês.
Este forte capitulou frente ao maior número dos luso-brasileiros,
mas Albuquerque e sua gente tiveram de abandonaram o local aos
holandeses que vinham em seu encalço e seguiram para a Bahia. A
resistência enfraquecia em terra. Na verdade, o esquema estratégi­
co português, armado por Matias de Albuquerque, havia sido des­
monta do com a queda do forte dos Afogados em 1 633. "As tropas
holandesas têm agora acesso à Várzea, o que toma insustentável a
linha de estâncias em tomo do Recife, a qual já pode ser flanqueada
facilmente pelo Sul", escreveu Evaldo Cabral de Mello. A solução
foi "transformar a guerra volante de tática em estratégia"73•
Em 1 635, foi enviada outra armada sob o comando de Dom Luiz
de Rojas y Borja, com 30 navios. Este conseguiu desembarcar parte
de suas tropas em Jaraguá, nas Alagoas, e seguiu para a Bahia. Logo,
marchou para Porto Calvo com uma coluna de 2.600 homens, na
esperança de enfrentar os holandeses e derrotá-los. Apesar de to­
marem de volta Porto Calvo, o que se deu foi uma tragédia. As
tropas espanholas foram desbaratadas e Rojas y Borja morto pelos
comandados do temível Artischofsky (ou Arciszewsky), coronel
holandês, em janeiro de 1 636. A resistência restava, então, nas mãos
dos próprios portugueses e do que sobrara das tropas que para lá
haviam sido enviadas, agora sob o comando do napolitano Bagnuolo
Goão Vicente de San Pelice), das colunas do índio Felipe Camarão e
do negro Henrique Dias, entrincheirados em Porto Calvo, que ha­
via sido reconquistado74•

73 Evaldo Cabral de Mello. Op. cit., p. 233-4.


74 Cf. Hermann Watjen. Op. cit. , p. 1 28-34, e Charles Ralph Boxer. Op.
cit., p. 42-64.

264 1 Pedro Puntoni


Convencidos de que era necessário consolidar o domínio da Co­
lônia e reconstruir a economia devastada para que a terra pudesse
sustentar-se às próprias custas, os diretores da WIC, nos Países Bai­
xos, acharam melhor substituir o "Conselho de Governo" (com­
posto por cinco membros) por um "grande líder". A escolha recaiu
sobre João Maurício, conde de Nassau-Siegen, primo de Maurício
de Orange (o Stadthouder)75• Logo nos meses seguintes à sua chega­
da a Pernambuco, em janeiro de 1637, com o título de "Governador
Geral do Brasil", Nassau apenas se preocupou em derrotar os últi­
mos focos da resistência nativa, que se pôs definitivamente em fuga
para o Sul. Bagnuolo e seus homens foram derrotados em Porto
Calvo no dia 1 8 de fevereiro de 1637, e retiraram-se às pressas para
Sergipe. O rio São Francisco ficaria, então, como uma espécie de
fronteira natural entre o Brasil Holandês e o Brasil Luso-Espanhol.
Aquele constituía-se, portanto, das capitanias conquistadas de Per­
nambuco, Paraíba, Itamaracá e Rio Grande do Norte.
No entanto, mais do que a fuga das tropas do Rei Católico sob o
mando do napolitano Bagnuolo, ou a rendição do Arraial do Bom
Jesus, foi a queda da fortaleza de Nazareth, no cabo de Santo Agos­
tinho, no ano de 1 635, que poria termo à guerra de resistência76•
Perdido o controle desta praça, acabavam-se as possibilidades do
autofinanciamento da resistência, padrão que tinha caracterizado
a estratégia militar dos luso-brasileiros desde a queda do Recife em
1 630. As "guerras do açúcar", como as chamou o historiador Evaldo
Cabral de Mello, o eram não só porque a ambição que as mov ia era
a desse produto, como pelo fato de que os recursos necessários para
a guerra recaíram em grande parte sobre a sociedade colonial bra­
sileira - isto é, sobre o setor produtivo. A estratégia de guerra len­
ta, a que nos referíamos acima, ajustava-se com a impossibilidade

75 Idem, p. 66.
76 Como escreveu o conselheiro político Walbeek: "Meu parecer dado a
Vossas Graças em minha carta de 20 de maio de 1631, o qual sinto cada
vez mais confirmado até agora e no qual continuo a persistir, é que a
conquista desta região consiste na conquista e anexação do cabo de
Santo Agostinho, do Recife, da ilha de Itamaracá e da cidadela em Pa­
raíba, pela realização do que toda a costa poderá ser fechada ao comércio com
Portugal" (os grifos são meus), "Relatório do Conselheiro político Jan
de Walbeek, apresentado aos diretores da WIC a 2 de julho de 1633,
lido pelos Estados Gerais a 11 de julho de 1633". Documentos Holande­
ses. Rio de Janeiro, trad. port. 1945, v. 1, p. 125.

Os holandeses no comércio colonial e a conquista do Brasil, 1 540- 1 635 1 265


de a Coroa enviar uma armada; o que significava que a resistência
havia ficado, nestes anos iniciais, a cargo e custas dos luso-brasilei­
ros77.
A conquista do Brasil não significaria, entrentanto, o controle do
sistema produtivo açucareiro. Ao se colocar a tarefa de reconstruir
o sistema produtivo devastado, havia a necessidade de "reencai­
xá-lo" na dinâmica atlântica que garantia a sua reprodução e, em
suma, com a necessidade de afirmar a opção pelo trabalho escravo
do africano. Ainda nos primeiros anos da década de 1620, realistas
quanto aos seus objetivos, os diretores da Companhia, ao formula­
rem a estratégia de conquista das zonas produtoras de açúcar, esta­
vam convencidos de que era necessário capturar não só o Brasil,
mas os mercados portugueses de escravos na costa africana78• Como
mostrou o historiador Alencastro,

a exploração da agricultura escravista americana, no século XVII,


pressupunha o comando dos dois pólos do sistema: os portos de
tráfico africanos e as zonas americanas de produção escravista.
Desde logo, os combatentes consideram o Brasil e Angola como
um campo estratégico unificado79•

77 A perda do Recife, e apenas do Recife, fez com que a navegação fosse


dirigida para outros portos, de onde o açúcar produzido no interior da
capitania de Pernambuco e vizinhanças podia ser embarcado para
Portugal. Os portos de Goiana, Itamaracá, Cabo de Santo Agostinho,
Serinhaém, Rio Formoso, Porto das Pedras, Porto Francês, Rio Paraíba,
Baia da Traição, entre vários outros, foram visitados pelas naus portu­
guesas e espanholas para o embarque de açúcar, nos anos de 1630 até
1634. A grande diversidade do sistema fluvial e a variedade dos por­
tos naturais na costa da capitania de Pernambuco dificultava o traba­
lho dos holandeses de fechar as "escápulas" do açúcar. Segundo os
dados de Evaldo Cabral de Mello, é muito evidente o colapso da nave­
gação entre Portugal e o norte da Colônia no ano de 1635; apenas dois
navios ali estiveram neste ano, dos quarenta e nove em 1634. Cf. Evaldo
Cabral de Mello. Op. cit., p. 58-62.
78 "Since profit was the vital artery of the WIC, even in the earliest
discussions of the Herren XIX the pros and cons of the slave trade
were aired. Only the lack of markets detained the directors from
pursuing the objective [de ingressar no comércio de escravos]". Cornelis
Ch. Goslinga. Op. cit., p. 342.
79 Para ele, "o cotejo dos documentos lusos e holandeses, assim como a
seqüência geográfica das operações militares - tanto navais como ter-

266 1 Pedro Puntoni


Ao fracasso das tentativas de Piet Heyn e Philips van Zuylen, no
ano de 1 623, suceder-se-iam as expedições mais fortes e organiza­
das sob o comando do corónel Hans Koin (ou Horn, ou Coen), para
a conquista de São Jorge da Mina, em 1637, e do Almirante Jol (tam­
bém conhecido com "Houtbeen " perna-de-pau), para São Paulo
-

de Luanda, em Angola, no ano de 1 64180• O bom sucesso destas


garantiria o abastecimento da economia açucareira do Brasil ho­
landês, assim como o controle do sistema sul-atlântico. No entanto,
senhores nas duas margens do oceano, os holandeses aprenderiam
amargamente que era preciso mais para a reprodução da produção
escravista do açúcar. A rebelião dos luso-brasileiros, iniciada em
1 645, iria mostrar que o Império não podia tramar apenas a explo­
ração e o proveito, como desejava o capital do comerciante, mas
deveria também garantir a manutenção da vida social e da repro­
dução do modo da produção das mercadorias, assim como das
motivações que lhe permitiam a existência.

restres - demonstram que os tiros trocados na Á frica não são simples


ricochetes da guerra travada no Brasil. Dado o monopólio de facto
português sobre o tráfico no século XVII, as ZO l}as abertas ao trato de
escravos ainda eram relativamente restritas na Africa". Luiz Felipe de
Alencastro. Le Commerce des Vivants: traite d'esclaves et "Pax Lusitana "
dans l'Atlantique sud. Paris, these de doctorat/Université de Paris X,
1985-1986. Trata-se, aqui, de uma versão ampliada do capítulo 4 "As
Guerras pelos Mercados de Escravos", que nos foi cedida pelo Autor,
p. 39. Para o desenho geográfico do Sistema Colonial Atlântico, veja
sobretudo o artigo desse mesmo autor, ''The apprenticeship of coloni­
zation", in: Barbara L. Solow (ed.). Slavery and the Rise ofAtlantic System.
Nova York. 1991, p. 151-76.
80 Veja-se o capítulo 3 ("Os holandeses na Á frica"), de minha dissertação
de mestrado A Mísera Sorte. A Escravidão Africana no Brasil Holandês e as
Guerras do Tráfico no Atlântico Sul, 1 621-1 648. São Paulo: FFLCH /USP.
1992, p. 93-134.

Os holandeses no comércio colonial e a conquista do Brasil, 1 540- 1 635 1 26 7


Eddy Stols
U n iversidade Católica de Louvain, Bélgica

OS PAÍSES BAIXOS M E RI D I O NAIS


N O S E C U LO XVI I : UM CONTRAMO D E LO
DO M I LAG RE H O LAN D ÊS
NA EXPAN SÃO MARÍTI MA E COLO N IAL

Com as atuais tendências meio neoliberais e revisionistas, o in­


teresse renovado pela história das Províncias Unidas nos deu ulti­
mamente obras tão importantes como as de Morineau, Van Deursen,
Israel e Schama, mas deixou, por contraste, numa sombra maior
ainda os Países Baixos Meridionais. Estes territórios reconquista­
dos e reincorporados ao Império Espanhol - ou seja, os Países Bai­
xos Espanhóis têm merecido pouca ou nenhuma atenção nos deba­
tes sobre as crises e as mudanças no sistema de economia mundial
do século XVII. Parafraseando Jacques Brel, diria que o forte vento
do Norte deixou-os ainda mais curvados e humildes diante do mi­
lagre holandês, do êxito espetacular dos Países Baixos Setentrio­
nais - ou, seja das Províncias Unidas. Assim, pelo menos, também
não sofreram do embarassment of the riches.
Não tenho aqui a pretensão de esboçar uma contra-ofensiva mas
me parece que a evolução econômica e social destes Países Baixos
Espanhóis oferece elementos interessantes e surpreendentes quan­
do se trata de discutir o impacto das idéias e das religiões, do po­
der estatal e militar sobre o sistema econômico da época, de avaliar
a profundidade da crise do século XVII, e de relegar eventualmen­
te o mundo ibérico à periferia do novo centro capitalista.
O descaso por estes territórios reconquistados por um império
em decadência, vem, na verdade, de longe e tem muito a ver com a
difusão da lleyenda negra, espanhola por toda a Europa e mais, par­
ticularmente, com a incorporação desta visão negra pela histo­
riografia liberal do novo Estado belga do século XIX. Esta, confron­
tada com uma nova contra-reforma católica, ao mesmo tempo ul­
rramontana e social-cristã, tinha forçosamente que desacreditar,

Os Países Baixos Meridionais no século XVI I 1 269


entre todos os domínios estrangeiros que a Bélgica conheceu, o
domínio espanhol, pois este encarnara em toda evidência as maio­
res ameaças de intolerância e de conservadorismo econômico. As­
sim, o arauto de maior destaque desta hístoriografia, Henri Pirenne
- na verdade mais um medievalista do que um especialista das
origens do Estado moderno - culpabilizou sem mais nem menos
o domínio espanhol pela exclusão ou pelo fraco desempenho das
províncias meridionais neste salto para a modernidade. O império
espanhol devia ser o responsável pelo atraso e conseqüentemente
pelo século de miséria como se qualificou doravante o século XVII.
Posteriormente, a historiografia nacionalista flamenga, que de­
nunciava a construção artificial do Estado belga, ou a corrente grã­
neerlandesa, que advogava a reunificação dos Países Baixos Seten­
trionais e Meridionais, certamente não iria corrigir esta imagem
negativa do período espanhol.
Não pretendo correr o risco de identificar-me com as forças di­
tas reacionárias do clericalismo obscurantista do século XIX, quan­
do contesto, com certa ênfase, esta visão enegrecida do século XVII
nos Países Baixos Meridionais.
Em primeiro lugar e como ponto de partida, não há como negar
que estas províncias conheceram depois da queda de Antuérpia
em 1585 uma surpreendente estabilidade e continuidade política.
À diferença de outras regiões do Império Espanhol, da Catalunha,
de Portugal ou de Nápoles não se produziu aí nenhuma revolta de
vulto ou de conseqüências irreversíveis. Esta ausência de revoltas
dificilmente poderia passar por uma prova da profundidade da
crise, pois ocorreram sim alguns distúrbios, sinais de vida, mas sem­
pre circunscritos a uma ou outra cidade e sem alastrar-se por re­
giões inteiras. Malograram rapidamente tentativas de complô con­
tra a monarquia espanhola em favor dos Orange, e não houve ma­
nifestação de qualquer movimento importante em favor da reu­
nificação com os supostos irmãos separados do Norte.
Pelo contrário, as repetidas incursões de tropas holandesas for­
taleceram um sentimento popular anti-holandês, que ficaria arrai­
gado por vários séculos e provocaria finalmente a revolução belga
de 1830. Forjou-se assim um sentimento pré-nacional, que se ex­
primiu em livros panegíricos dedicados à Antuérpia, ou como na
Flandria Illustrata de Antonius Sanderus. Perfila-se aqui um parale­
lo curioso com o nativismo pernambucano em reação a ocupação
holandesa.

270 1 Eddy Stols


Apesar das guerras e das reconquistas holandesas, firmou-se
rapidamente uma fronteira entre o Norte e o Sul, como entre dois
mundos, entre duas culturas bastante distintas. Fronteira que, en­
tretanto, não impedia os contatos, a correspondência e as visitas
familiares nem o comércio, chamado de comércio com o inimigo,
taxado por um imposto especial, as licencias que se cobravam na
fronteira para a navegação sobre o Escalda ou a Mosa e nos postos
de fronteira terrestre.
Poder-se-ia atribuir essa tranqüilidade, esse conformismo com o
domínio espanhol ao cansaço da violência, ao grande silêncio dos
cemitérios, à passividade daqueles que não puderam acompanhar
a "fuga de cérebros" para o Norte. Fuga esta ainda hoje contabiliza­
da e lamentada quando se discute a mediocridade e os problemas
da Bélgica atual, como no romance contemporâneo, Le chagrin des
Belges, de Hugo Claus. Este gosto pela autocrítica tem, aliás, muito
em comum com tendências similares na cultura ibérica. Acreditar
no impacto duradouro desta fuga equivale a privilegiar exagerada­
mente as seqüências da hereditariedade e um certo racismo, como
se somente os fracos teriam remanescido nas Províncias Meridio­
nais. É subestimar também os efeitos de todo um poderoso siste­
ma de educação, posto a funcionar rapidamente com os novos e
numerosos colégios de jesuítas, agostinianos e oratorianos, como
se este não tivesse sido capaz de reconstituir em pouco tempo no­
vas elites. É finalmente ignorar o fenômeno do retorno de emigra­
dos - entre eles o próprio Rubens - e da chegada de refugiados
católicos ingleses ou holandeses.
Mais parece ter ocorrido um pequeno milagre ao avesso: em
pouco tempo, os territórios resgatados à aventura calvinista-oran­
gista se constituíram em um novo Estado, que encontraria sua via­
bilidade original numa região disputada por tantas potências -
holandesa, francesa, inglesa, austríaca, prussiana - e, que, apesar
de alguns desmembramentos dolorosos e seguidos, escaparia à sor­
te das contínuas e fatais divisões como na Polônia. Se a rivalidade
entre estas potências explicou muita coisa , se a Inglaterra se opôs
ao desaparecimento destas Províncias Meridionais - talvez por­
que dificilmente podia incorporar sua parte de um território católi­
co -, há de se insistir muito mais nos méritos políticos e militares
dos construtores do novo Estado. Os talentos estratégicos e admi­
nistrativos invulgares de Alexandre Farnese, de Ambrosio Spinola,
do arquiduque Alberto - anteriormente vice-rei de Portugal - e

Os Países Baixos Meridionais no século XVI I 27 1


de sua esposa, a arquiduquesa Isabel, - por sinal filha predileta e,
pelo visto, a mais inteligente de Felipe II -, do cardeal-infante dom
Fernando colocaram, certamente, um contrapeso valioso à fuga de
cérebros.
O casal Alberto-Isabel, soberanos durante 23 anos, se bem que
controlados e dependentes da Corte de Madrid, constituiu um mo­
delo de savoir-faire, de tática política, que encontraria adeptos até
nossos dias na dupla Balduíno e Fabíola, e inventou em primeira
edição 'o famigerado compromisso dos Belgas'. Efetivamente, im­
plantaram uma mistura original e excepcional de Estado moderno
e de tradições medievais, aperfeiçoando as instituições e respeitan­
do os particularismos. Depois da morte de Alberto, a autonomia
desapareceu, mas os governadores-gerais, mesmo os mais fracos
entre eles, continuaram no mesmo estilo de dosagem sutil de po­
der central e de poder regional ou municipal. Os ofícios e as cor­
porações fortaleceram-se como pedra angular do novo Estado, ao
passe que as Províncias ou antigos Condados e Ducados sobrevi­
veram exemplarmente dentro de uma reunificação que precedeu
em dois séculos àquela dos estados italianos e alemães. Este dolo­
roso processo político do século XIX seria assim poupado aos Paí­
ses Baixos Meridionais pelo domínio espanhol.
Essencial nesta elaboração de um Estado viável, de pacificação
interna no meio de guerras quase contínuas, foi a colaboração da
Igreja da contra-reforma. Esta foi certamente uma das mais atuan­
tes, bem sucedidas, segundo os novos moldes do Concílio de Trento
e os métodos elaborados por jesuítas, agostinianos, capuchinos e
oratorianos. Esta reconquista católica se fez, aliás, com mão firme,
com raros excessos de violência, e já sem tribunais de exceção ou
de inquisição. A reforma desapareceu em pouco mais de uma déca­
da, ao passo que um jansenismo menos virulento e mais tolerado
do que na França, funcionou como catalizador de inclinações hete­
rodoxas. A nova Igreja popular se fez presente por uma construção
e reconstrução febril de igrejas, conventos, hospitais e escolas. Sur­
giu até um centro de peregrinações em tomo de Nossa Senhora de
Scherpenheuvel ou Montaigu, algo comparável com Guadalupe no
México ou Copacabana no Lago Titicaca. Este não é o único parale­
lo entre a reconquista religiosa dos Países Baixos Meridionais e a
evangelização da América Espanhola.
Tanto o Estado como a Igreja desempenharam um papel primor­
dial na promoção de uma ordem social bastante diversificada e rica

2 72 1 Eddy Stols
de oportunidades variadas. A nobreza, que teve a responsabilida­
de pesada no desencadeamento da crise de 1566, reajustou-se den­
tro do novo Estado e pôde recuperar suas posições anteriores, à
diferença do que ocorreu nas províncias setentrionais. Ao mesmo
tempo, teve que abrir suas fileiras a burguesias enobrecidas, mas
dentro de regras de jogo fixadas e respeitadas sob controle dos Reis
de armas vigilantes. Data provavelmente deste período o início da
participação bastante ativa da nobreza belga na vida econômica.
Por outro lado, a carreira militar atraía outros elementos desta clas­
se, que estabeleceriam uma tradição de serviço, quase mercenário,
à Coroa Espanhola, que perduraria até depois do fim do domínio
espanhol, durante o século XVIII, com nobres militares desempe­
nhando as funções de vice-rei ou de governador dentro do Impé­
rio, ou com engenheiros militares construindo fortificações milita­
res em toda parte.
Se a Igreja desfrutou de um poder jamais igualado, foi também
porque ela se integrou com a sociedade através de um leque de
carreiras e posições eclesiásticas melhor definidas e acessíveis. Es­
ta clericalização da sociedade tinha, apesar de tudo, também sua
racionalidade e importância econômica. Basta lembrar aqui a fun­
ção específica dos béguinages dentro da política patrimonial de mui­
tas farm1ias, já que nesses recolhimentos as mulheres não renuncia­
vam definitivamente à posse individual de bens, e se evitava assim
a acumulação estéril das propriedades de mão morta. Pelo grande
número de meninas e mulheres pobres, alguns béguinages se pare­
ciam mais com os obrajes de México ou do Peru que com conventos
tradicionais. O serviço litúrgico e a vida religiosa constituíram-se
numa atividade econômica de primeira importância. Basta referir
a construção de inúmeras igrejas e conventos, que foi a geradora de
trabalho e de novas fortunas. Só os jesuítas levantaram uma dúzia
de novas igrejas de grande esplendor, como São Carolo Borromeu
em Antuérpia, e fundaram até 1626 nada menos que 34 colégios.
Fenômeno igual dificilmente se registrará nas cidades das Provín­
cias Unidas, onde apenas prosperou a construção civil. Agora, esta
última também se manifestou nas Províncias Meriodionais e trans­
formou cidades de aspecto medieval em cidades modernas. A his­
tória econômica deste período precisaria avaliar melhor o peso des­
tes setores: construção e gastos religiosos.
O comando político e o controle religioso impostos de acima só
encontraram receptividade porque foram acompanhados de uma

Os Países Baixos Meridionais no século XVI I 27 3


notável reativação da vida econômica numa política bastante pro­
tecionista e mercantilista. Um instrumento de primeira ordem para
tal foi, evidentemente, o dinheiro das Américas que regou abun­
dantemente os campos de Flandres. Pierre Chaunu sugeriu que
Sevilha permitiu a existência e a sobrevivência da Bélgica. Esta tese
merece um estudo mais cuidadoso, mesmo que Geoffrey Parker
tenha razão quando assinala a defasagem cronológica do dinheiro
remetido com os êxitos militares. Por outro lado, também, as tro­
pas dos Orange se pagavam com a prata vinda, desviada ou rou­
bada da América. Assim Potosi foi o temblor de Flandes, para os dois
lados beligerantes. Importante, sobretudo, é salientar que esse di­
nheiro não escorregou inutilmente nos 'desagua douros de Flandres',
mas penetrou, pelo menos parcialmente, a fundo nos sedimentos
das atividades econômicas.
A agricultura dos Países Baixos Meridionais pouco ou nada fi­
cou a dever à renascença agrícola do Norte. As destruições da guerra
ficaram finalmente limitadas a um corredor de guerras e a deman­
da militar - os soldados espanhóis exigiam boa comida - junto
com a existência de uma Corte em franca expansão - a famosa
auberge des princes en exil - estimularam a produção. Um memo­
rialista, Manuel Lopes Sueiro, argumentou que o armistício de 1 609
a 1621 chegou a prejudicar os agricultores. Os mercadores burgue­
ses investiam de novo na compra de terras e instalaram em grande
número suas maisons de plaisance ou casas de campo, de onde vi­
nham estimular e controlar as atividades de seus arrendatários. As
abadias reanimadas e repovoadas dos beneditinos e dos premons­
tratenses também, tiveram um papel de destaque na revalorização
e renovação da agricultura. A produção de cereais se intensificou e
concentrou-se, em áreas mais meridionais, no Henan e na Artésia.
Além disso, houve um avanço notável na diversificação: por
exemplo, o lúpulo se cultivava em quantidades suficientes para a
exportação para a Inglaterra, que começou a apreciar o 'beer ' em
vez do 'ale'. A utilização das plantas tintoriais e medicinais se di­
fundiram. Chegaram as primeiras plantas americanas: a batata foi
plantada em campo raso e invadiu regiões inteiras, enquanto o ta­
baco oferecia lucros inesperados. Em Antuérpia preparava-se en­
tão o melhor chocolate da Europa. Somente o milho, se bem que
conhecido botanicamente e representado nas artes e até aceito para
a fabricação do pão de comunhão pelos jesuítas, não se fez adotar
como alimento humano, foi o caso do norte de Portugal e da Espa-

2 74 1 Eddy Stols
nha. Seria talvez mais um sinal de auto-suficiência desta agricul­
tura do que de conservadorismo. Finalmente, lembramos que nes­
te período se aperfeiçou é generalizou a combinação exemplar da
agricultura com a criação do gado de estábulo, para obter os fertili­
zantes doravante insubstituíveis.
O setor agrícola, ou melhor, os pequenos camponeses souberam
também melhorar sua renda com a atividade artesanal durante o
inverno: tecer linho ou lã, fundir ferro e bater pregos. Sua força de
trabalho era tanto mais apreciada que muitos tecelões a tempo ple­
no tinham se mudado ou fugido para as províncias setentrionais,
para a Inglaterra ou mesmo para a Alemanha. Assim mesmo, o co­
lapso da produção têxtil foi de curta duração, e mesmo os centros
tradicionais mais atingidos como Hondschoote, produtor das fa­
mosas anascotas, voltaram a trabalhar. Em Bruges, a produção têx­
til conheceu uma nova expansão. É provável que uma boa parte
dos panos holandeses de exportação vinham na verdade do sul.
Por outro lado, as Províncias Meridionais reagiram e se especializa­
ram em setores de boa procura como a fabricação de telas de linho
(brabantes, gantes e outras), da seda, sobretudo em Antuérpia, de
tecidos de fios mesclados como as bouratas, e de rendas. Esta últi­
ma atividade beneficiou sobretudo as mulheres - religiosas, be­
guinas, órfãs, empregadas e patroas - e promoveu uma melhor
integração das mulheres na economia doméstica e monetária, um
aspecto que foi ainda insuficientemente avaliado.
A atividade artesanal compensou outrossim suas perdas com
uma maior diversificação. Além do setor de construção já assina­
lado, há de contar-se com outro setor em alta, o equipamento da
soldadesca em roupa, armas e outros instrumentos. Merece maior
destaque todo o trabalho com o couro, para a sapataria, as bolsas e
até o revestimento de cadeiras e paredes. Surgiu também aqui uma
'civilização do couro', se bem que algo diferente daquela dos ser­
tões brasileiros ou mexicanos. Os couros passariam doravante a ser
importados em quantidades bem superiores àquelas do século XVI.
Basta ver a evolução da zapatilha leve para a bota de cano alto dos
mosqueteiros, ou dos galões da época. Qualquer salão de burguês,
ou de autoridades municipais ou religiosas tinha suas cadeiras de
couro e os muros revestidos com os couros dourados de Malines,
versão flamenga dos cordovãos ou guadamecis espanhóis.
Outro setor em expansão foi o das armas, em parte concentrado
em Liege, mas também com fábricas de importância em Malines.

Os Países Baixos Meridionais no século XVI I 275


Em Antuérpia, florescia o trabalho com o cobre, para instrumentos
científicos. Havia mais o incipiente setor químico e farmacêutico e
as novas fábricas de vidros. Sobretudo as indústrias de luxo pro­
grediram. E foram várias: em primeiro lugar a do açúcar. Se as refi­
narias não exportaram mais em grandes quantidades para o norte,
elas forneciam tanto mais a os confeiteiros locais. É neste período
que cada cidade ganhou seu biscoito, sua iguaria, típica, sua doça­
ria. Aliás, o impacto da culinária ibérica e ibero-americana foi cada
vez maior, e a reconquista não atingiu só os espíritos como passou
também pelos estômagos. As festanças das Províncias Meridionais
perduraram, não sofreram das restrições calvinistas e se enrique­
ceram com o prato do inimigo, a famosa olla podrida espanhola, ao
passo que o peru orgulhosamente se impôs nos pratos da avicul­
tura.
Um luxo mais duradouro promoveu o setor da joalheria, que,
este sim, não só alcançou uma dimensão de consumo local, mas
entrou nas exportações, muito difíceis, aliás, de medir. Importa­
ram-se pedras preciosas da Índia, das Américas e exportaram-se
jóias para a Índia, para Paris, Viena e Praga. Algo mais fácil a con­
tabilizar mas, ainda, subestimado foi o setor das pinturas e gravu­
ras. A produção de livros - e não só de Plantin-Moretus em forma
de monopólio para os missais no mercado ibérico e ibero-america­
no - mas também de outras impressoras menos conhecidas, atin­
giu uma importância bem maior do que no século de ouro de An­
tuérpia. Aliás, ao lado de Antuérpia, outras cidades, como Bruxe­
las, também instalaram agora suas impressoras. Além dos livros,
deve-se mencionar a fabricação dos instrumentos musicais e sobre­
tudo das tapeçarias. Se esta últimas perderam em nível artístico,
elas se expandiam em quantidades.
Boa parte desta produção artesanal só encontrava saída no mer­
cado exterior, e este não podia ser alcançado sem uma notável rea­
tivação do comércio internacional. Aqui se deve fazer tábula rasa
de um chavão presente en quase todos os livros de síntese de his­
tória econômica daquela época. A queda de Antuérpia e o fecha­
mento do Escalda não acabou com o comércio internacional daque­
le ponto. É verdade que muitos mercadores fugiram, em conseqüên­
cia da fúria espanhola e da intolerância religiosa; desapareceram
efetivamente os grupos importantes de ingleses, alemães e france­
ses. Mas, alguns voltaram no início do s�culo XVII, e subsistiram
ainda grupos de certo vulto de mercadores portugueses, cristãos-

2 76 1 Eddy Stols
novos, espanhóis e até italianos. Chegaram depois os ingleses per­
seguidos ou em dificuldades políticas na sua terra.
Ao mesmo tempo, os mercadores estrangeiros foram cada vez
mais sendo substituídos por elementos nativos, de Antuérpia ou
de cidades como Lille, Gand e Bruges. Muitas vezes, estes merca­
dores realizavam casamentos mistos como, por exemplo, com fa­
rm1ias espanholas de Bruges, ou italianas de Antuérpia. Por outro
lado, é preciso assinalar que as referidas cidades se beneficiavam
de certa maneira da decadência de Antuérpia. Houve um reequilí­
brío na estrutura comercial, e certamente Bruges pôde conservar
senão melhorar sua participação no comércio com o mundo ibero­
americano, depois de haver sido quase eliminada pela expansão
de Antuérpia no início do século XVI. Outro indício desta redis­
tribuição da função centralizada de Antuérpia foi a fundação, en­
tre 1618 e 1633, de nada menos do que quinze Montes de Piedade
(Casas de Penhores), que, de acordo com o modelo italiano, conce­
diam, a juros reduzidos, um crédito limitado sobre jóias e outros
haveres e representavam de certa maneira uma forma mais socia­
lizada dos Bancos surgidos no Norte da Europa. Sobretudo os pe­
quenos comerciantes e artesãos se beneficiaram destas novas ins­
tituições.
Este comércio com o mundo ibérico e ibero-americano fixar-se­
ia agora como a espinha dorsal da economia dos Países Baixos Me­
ridionais. Já era importante antes da queda de Antuérpia, e talvez
mais do que muitos historiadores aceitam. Os comerciantes fla­
mengos estavam presentes em Lisboa, Sevilha, Cadiz, Madri, Valla­
dolid, Porto antes de 1566. Já estavam na Madeira, nos Açores, nas
Ilhas Canarias e também em Santo Domingo, no México, no Peru e
no Brasil. Ocuparam-se além do tradicional comércio de têxteis e
de miudezas como cofres, tesouras, campainhas, também do equi­
pamento e do armamento das frotas americanas. Assim, alguns co­
merciantes implantaram-se nas Atarazanas de Sevilha. De artesãos
lombardeiros e mineradores passaram a grandes comerciantes, ex­
ploradores de minas como em Potosi, de engenhos e plantações
nas Canarias, na Madeira e nas costas do Brasil, não só com os Es­
quetes ou Schetz em São Vicente mas com outras famílias como os
Lins, Holanda, Campos, Mere e outros no Nordeste.
Com as dificuldades religiosas e políticas dos anos 1566-85, a
sua atuação no mundo ibérico e ibero-americano cresceu mais ain­
da. A fuga para o Norte correspondia também uma emigração para

Os Países Baixos Meridionais no século XVI I 277


o sul, para a França e a Itália e sobretudo para a Península Ibérica.
Não se tratava de dezenas de milhares de fugitivos, como para a
Holanda, mas pelo menos de vários milhares. Esses comerciantes
flamengos tomaram-se algo mais do que testas de ferro dos rebel­
des holandeses, excluídos pelos consecutivos embargos impostos
por Felipe II nos portos ibéricos. Tinham seus próprios negócios e,
se às vezes atuavam como intermediários para os holandeses, fa­
ziam-no igualmente em sentido inverso. Havia ainda muitos mer­
cadores mais ou menos católicos ou indecisos em Amsterdã e ou­
tros portos holandeses, prontos a reconciliar-se ou a mudar de
campo. Ao mesmo tempo, estes flamengos de Sevilha ou Cadiz
serviam de intermediários para o comércio francês, sobretudo o de
Ruão, ou para o comércio inglês.
O comércio flamengo daquela época, depois de 1585, adquiriu
uma dimensão da grande autonomia, e, no fundo, tomou-se ainda
mais internacional do que antes. O chamado eigenhandel ou comér­
cio dos nativos era, antes de 1585, bastante modesto em relação
àquele dos grandes negociantes italianos, alemães, portugueses
ou espanhóis. Após aquela data, o comércio dos Países Baixos Es­
panhóis sem dúvida não alcançou a dimensão dos grandes comer­
ciantes holandeses que tratavam com navios inteiros, o famoso 'bulk
trade', mas ele brilhou na escuridão. Basta referir-nos aqui ao caso
dos Helmans: grandes comerciantes de jóias, mas também de ou­
tras mercadorias, com ramificação não só em Sevilha, Lisboa e
Veneza, mas até com emissários na Índia portuguesa e na Terra
Firme americana.
Ao lado do grande comerciante surgiu agora uma categoria bas­
tante numerosa de mercadores de porte médio ou até pequeno. São
firmas de uma ou duas pessoas, pequenas companhias, temporá­
rias ou até limitadas a uma operação comercial, familiarizadas com
a moderna técnica comercial, desde a correspondência regular e
pontual, à contabilidade dupla até o manuseio das letras de câm­
bio. Praticavam com esmero entre si a participação mútua nas ope­
rações comerciais e o seguro das mesmas, como mantinham tam­
bém relações de amizade através de troca de civilidades e de pre­
sentes. Reciprocavam até na recepção em casa e no treinamento co­
mercial dos filhos.
Além do mais, demonstraram uma capacidade de grande mo­
bilidade, deixando, se fosse preciso, Antuérpia ou Bruges para es­
tabelecer-se em Sevilha ou Lisboa por alguns anos, ou por várias

278 1 Eddy Stols


gerações, casando-se com mulheres da terra ou filhos de Flamengos,
já nascidos em terras ibéricas. Atravessaram o Oceano, embarcan­
do clandestinamente, ou · mandando filhos ou parentes mais po­
bres como peruleros. Conseguiram cartas de naturalização e for­
maram o segundo grupo em importância, depois dos portugueses,
entre os estrangeiros autorizados oficialmente a tratar nas Índias.
O poder real espanhol ou português, depois de ter operado por
meados do século XVI, através da Inquisição, uma primeira limpe­
za entre esses nórdicos suspeitos de protestantismo, passou a uma
maior tolerância para com os súditos flamengos obedientes. Se ocor­
reram algumas expulsões no Brasil no começo do século XVII, pelo
contrário na América Espanhola a coroa mandou facilitar a perma­
nência dos Flamengos presentes no México ou no Peru através do
pagamento de composiciones, o grupo de uns dez Flamengos, pro­
cessados pela Inquisição no auto da fé no México em 1 602 era so­
bretudo constituído por artesãos imprudentes, ao passo que os co­
merciantes de alguma importância nem sequer foram denuncia­
dos.
Em Sevilha, em Cadiz, em Lisboa as nações dos flamengos ti­
veram seus privilégios e seus cônsules reconhecidos, ao passo que
as suas irmandades praticavam nas suas capelas em conventos de
prestígio e com a assistência de capelões dominicanos ou jesuítas a
sua vida religiosa e social. Encomendaram para os altares de suas
capelas ou hospitais a grandes pintores como Rubens ou De las
Roelas quadros majestosos sobre o tema do martírio de seu santo
padroeiro Santo André e recepcionaram com custosos arcos de
triunfo os reis Felipe II, Felipe III e Felipe IV nas suas entradas so­
lenes em Lisboa e Sevilha.
A penetração destes Flamengos no comércio colonial foi notá­
vel, se bem que em escalas diversas - do traficante pequeno, qua­
se clandestino, até o grande comerciante bem estabelecido, como
os Neve ou Sirman no México. É verdade que boa parte dos lucros
deste comércio se investiria em Sevilha, Lisboa ou no México, na
aquisição de casas ou de terras e até de títulos de nobreza. Assim
mesmo alguns Flamengos enriquecidos continuaram, muitas ve­
zes em relações com os parentes nos Países Baixos, que até pude­
ram herdar propriedades ou quantidades de pesos nos testamen­
tos. A remessa de algum dinheiro por um tio americano, aos seus
sobrinhos em Flandres não era nada excepcional.
Este comércio colonial atingira certamente seus limites. Com ra-

Os Países Baixos Meridionais no século XVI I 279


ras exceções, não existiu o fretamento de barcos inteiros; dependia
portanto da mediação espanhola, ou portuguesa, para a travessia
do Oceano Atlântico, e dos navios hamburgueses e ingleses, ou até
dos próprios holandeses para o trajeto Mar do Norte-Península Ibé­
rica. Mas, esta dependência já era o caso de Antuérpia na sua época
áurea e, sob este aspecto, não houve retrocesso, mas antes conti­
nuação. Apareceu sim uma frota dunquerquesa bastante ativa na
pirataria contra os Holandeses. Limites encontrou este comércio
também do lado financeiro. Faltaram os bancos que surgiram no
Norte, mas, graças a um intenso tráfico de crédito e de letras de
câmbio, a praça financeira de Antuérpia animou-se bastante e man­
teve seu status internacional.
Certamente sofreu limitações pela dependência, de um lado, da
boa vontade e da confiança do Rei da Espanha, e do outro pela in­
terferência dos Holandeses. Estes deixaram sentir sua força de fogo
em várias ocasiões: ataques diretos sobre diversas regiões de Flan­
dres sem alvejar ou conseguir tomar a praça fortificada de An­

tuérpia -, mas com maior efeito psicológico em Cadiz, nas Canarias


e no Ultramar. Incendiaram o engenho dos Erasmos, e em Pernam­
buco, hostilizaram ou mataram Flamengos considerados agentes
da coroa espanhola ou portuguesa ou como traidores. Assim o co­
mércio colonial dos Países Baixos Meridionais nunca alcançaria
uma autonomia assegurada e contínua. Por causa das incursões
holandesas, os Flamengos se retirariam ou seriam afastados de al­
gumas áreas ultramarinas e se concentrariam em Sevilha e Cadiz;
Lisboa seria, aliás, parcialmente abandonada em conseqüência das
aventuras holandesas no Brasil. Entretanto, a retirada e a retração
sobre Sevilha e Cadiz ocorreram também por sua lógica interna.
Dali, sem maiores riscos e esforços, e com poucas inversões de ca­
pital, podia-se obter uma fatia apreciável do bolo colonial. Foi o
caso destes Flamengos, que se reservaram pelo menos mais de 10%
ainda no fim do século XVII, quando este modelo de comércio co­
lonial já passava por um período de crise e decadência.
Certamente, deve-se concluir que, ao lado das grandes compa­
nhias holandesas e inglesas do ultramar, uma outra parte do Norte
da Europa beneficiou-se de maneira substancial do comércio colo­
nial. Este não somente proporcionou aos Países Baixos Meridionais
um longo lndian s u m mer, cheio de riquezas americanas, mas funda­
mentou ao longo prazo a economia da futura Bélgica em moldes
de uma prometedora preindustrialização. Esta se orientaria com

280 1 Eddy Stols


grande maleabilidade para mercados distantes, sem precisar de
grandes estruturas marítimas e comerciais. Assim, ainda hoje a in­
dústria belga procura sobreviver quase exclusivamente com peque­
nas e médias empresas, quase sem multinacionais, e com apenas
um modesto sistema bancário. E, paralelo curioso, culturalmente
também existiu aí uma notável abertura sobre culturas não-euro­
péias, mas sem institutos especializados.

Bibliografia

Para referências e dados complementares ver Flandre et Amérique


Latine, cinq siecles de confrontation et métissage, E. Stols & R. Bleys
(eds.). Antuérpia: Fonds Mercator. 1993. E Studia Historica Oecono­
mica, Liber Alumnorum et Liber Amicorum Herman Van der Wee. Leu­
ven: University Press. 1993, 2 volumes.

Os Países Baixos Meridionais no século XVI I 1 28 1


Título História Econ ômica do Período Colônia!
O rgan izado r Ta1:11 á s S zmrecsányi
Produção Edusp
Projeto da Capa Ricardo A s s i s
Projeto Gráfico Thiago S z mrecsányi
Editoração Eletrôn ica Tera Dorea
R e v isão de Texto e Provas Tamás S zmrecsányi
A rte -final Julia Doi
Tereza Harumi Ki kuchi
Divulgação Regina B randão
Daniel M aganha
G u i lherme Maffei Leão
Sec retaria Edito rial Eliane Rei mberg
For11Zato 14 x 2 1 cm
Tipologia Palatino 1 OI 1 2
Papel Cartão S u premo 2 5 0 g/m2 (capa)
O ffs e t 7 5 g/m2 (miolo)
Núm e ro de Pág inas 296
Tiragelll 2 000
Las e r.film H u ci tec
Fotolito de capa B i nhos
Imp ressão e A cabamento I mprensa Oficial do Estado

También podría gustarte