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ORGANIZAÇÃO

CÂMARA MUNICIPAL DE MATOSINHOS


CÂMARA MUNICIPAL DO PORTO
COORDENAÇÃO
FILIPA LOWNDES VICENTE
ORGANIZAÇÃO
CÂMARA MUNICIPAL DE MATOSINHOS
CÂMARA MUNICIPAL DO PORTO

LISBOA
TINTA-DA-CHINA
MMXVI
EXPOSIÇÃO

ORGANIZAÇÃO
Câmara Municipal de Matosinhos
Câmara Municipal do Porto

C Â M A R A M U N I C I P A L D E M AT O S I N H O S CÂMARA MUNICIPAL DO PORTO

4 PRESIDENTE COMISSÁRIA CIENTÍFICA FOTOGRAFIA PRESIDENTE COMISSÁRIA CIENTÍFICA EQUIPA TÉCNICA


Guilherme Pinto Filipa Lowndes Vicente Antonio Venda Lopes Rui Moreira Filipa Lowndes Vicente D E M O N TA G E M
Fernando Nogueira Ana Maria Osório
P E L O U R O D A C U LT U R A APOIO AO Guilherme Carmelo P E L O U R O D A C U LT U R A ARQUITETURA Armando Sucena
V E R E A D O R D A C U LT U R A COMISSARIADO CIENTÍFICO Nuno Leal ADJUNTO José António Guerra Isabel Lopes
Fernando Rocha Joana Brito Guilherme Blanc José Joaquim Rocha
Luis Soares A P O I O A O V I S I TA N T E DESIGN GRÁFICO José Manuel Leite
D I R E T O R A D E D E P A R TA M E N T O Mónica Azevedo José Carlos Oliveira DIRETORA MUNICIPAL Joana Monteiro Júlio Vieira
Clarisse Castro Maria de Fátima Alves D E C U LT U R A E C I Ê N C I A Manuela Oliveira
DESIGN GRÁFICO Marisa Ramos Mónica Guerreiro C A S A M U S E U M A R TA Octávio Vieira
D I V I S Ã O D E C U LT U R A Joana Monteiro ORTIGÃO SAMPAIO Sandra Araújo
Maria José Rodrigues COMUNICAÇÃO D I R E T O R A D E D E P A R TA M E N T O COORDENAÇÃO Zita Rocha
EQUIPA TÉCNICA Jacinta Baptista D E C U LT U R A Manuel Azevedo Graça
M U S E U Q U I N TA D E S A N T I A G O D E M O N TA G E M Jorge Marmelo Sofia Alves Maria da Luz Paula Marques FOTOGRAFIA
Cláudia Almeida Fernando Raeiro Fernando Noronha Soares
S E R V I Ç O E D U C AT I V O CHEFE DE DIVISÃO
Rute Alves MUNICIPAL DE MUSEUS S E R V I Ç O E D U C AT I V O
E P AT R I M Ó N I O C U LT U R A L Isabel Andrade Silva
Maria Augusta Marques

AGRADECIMENTOS

António Caiado de Sousa Carlos Manuel de Bessa Faculdade de Belas-Artes da José Caiado de Sousa Maria Mabilde Fernandes Museu Nacional de Arte
António Carlos Gilbert Ribas Monteiro Universidade do Porto José Manuel Trêpa da Rocha Contemporânea —
de Bessa Ribas Casa Museu Teixeira Lopes Fundação Instituto Arquiteto Luísa Maria Vasques Carvalho MMIPO — Museu da Museu do Chiado
António Silva Pereira — Câmara Municipal de José Marques da Silva Margarida Trepa Misericórdia do Porto Museu Nacional de
Biblioteca Pública Vila Nova de Gaia Guilherme António Andresen Maria de Fátima Brito Museu da Quinta de Santiago Soares dos Reis
Municipal do Porto Centro Português de Fotografia de Castro Henriques Maria Eduarda Caiado — Câmara Municipal Nelson Raposo Bernardo
Carlos Barbosa da Cruz Cristina Silva Pereira Henrique do Vale Silva Pereira de Matosinhos Rita Seabra Caiado Silva Pereira
João Moura Martins Maria João Sousa Lynch Couto Museu do Abade de Baçal
ÍNDICE
8 A P R E S E N TA Ç Ã O 12 5 Mulheres artistas antes de Aurélia de
Sousa: a lenta metamorfose de uma
INTRODUÇÃO condição no espaço da Academia
13 Aurélia de Sousa, Portuense de Belas -Artes
mulher artista (1866-1922) Susana Moncóvio
Filipa Lowndes Vicente
13 6 Condenar sem ver: as outras
I — B I O G R A F I A : R E T R AT O S D E U M A A R T I S TA que não eram Aurélia
6
© 2016, Edições tinta-da-china, Lda.
35 Aurélia de Sousa, fragmento Sandra Leandro
Rua Francisco Ferrer, 6A Maria João Lello Ortigão de Oliveira
1500-461 Lisboa
Tels: 21 726 90 28/9
52 A estrangeira 147 CRONOLOGIA
E-mail: info@tintadachina.pt
Ana Soromenho
www.tintadachina.pt
65 Encontros e desencontros sem C ATÁ L O G O
Título:
Aurélia de Sousa — Mulher Artista (1866-1922) importância: Aurélia de Sousa 15 0 1. Fotografia: prática, objeto e pesquisa
e Aurélio da Paz dos Reis 16 4 2. Além da pintura:
Coordenação: Maria do Carmo Serén desenho e ilustração
Filipa Lowndes Vicente
176 3. Autorretrato: do outro lado do
Textos: I I — O B R A : P I N TA R E E X P O R espelho, do outro lado da lente
Adelaide Duarte, Ana Soromenho, Bruno Monteiro, Filipa Lowndes Vicente, 79 Aproximação à pintura de temática 18 6 4. Álbum de família: retratos individuais
Isabel Andrade Silva, Manuel de Sampayo Pimentel Azevedo Graça,
religiosa de Aurélia de Sousa: 206 5. Postal fotográfico:
Maria do Carmo Serén, Maria João Lello Ortigão de Oliveira, Maria da Luz Paula Marques,
Raquel Henriques da Silva, Sandra Leandro, Susana Moncóvio o feminismo em ação dentro de casa, longe de casa
Raquel Henriques da Silva 228 6. Paisagens próximas,
Legendas: paisagens anónimas
Isabel Andrade Silva (IAS), Maria da Luz Paula Marques (MLPM),
Raquel Henriques da Silva (RHS) 91 Aurélia de Sousa exposta: 242 7. Flores domesticadas
a construção de uma carreira de artista 258 8. Sofia de Sousa. Pintora
Fotografia: Adelaide Duarte e irmã de Aurélia
Fernando Noronha Soares
2 76 9. Materialidades: instrumentos
Revisão: Paula Almeida I I I — O P O R T O E M C O N T E X T O: de trabalho e diários gráficos
Composição: Tinta-da-china (P. Serpa) OUTRAS MULHERES, OUTRAS PINTORAS 288 10. As outras pintoras do museu: entre
Capa: Tinta-da-china (P. Serpa sobre ideia de Joana Monteiro)
99 Porto. Entre dois séculos o amadorismo e a profissionalização
Fotografia da capa e da página 2: Aurélia de Sousa junto ao seu autorretrato, 1897 (?), Manuel de Sampayo Pimentel Azevedo Graça
Aurélio da Paz dos Reis, PT/CPF/APR/8908, Centro Português de Fotografia, Porto
110 Outras entre as mulheres. Representações 302 N O TA S B I O G R Á F I C A S D O S A U T O R E S
1.ª edição: novembro de 2016
e realidades das operárias, criadas
ISBN 978-989-671-339-3
Depósito Legal n.º 414652/16
e prostitutas do Porto (1880-1910)
Bruno Monteiro
a

Há datas e factos marcantes. O ano de 2016, em niente da família através de Maria Feliciana, irmã Aurélia de Sousa nasceu há 150 anos no dia de ca da artista, pretendemos com este projeto reati-
Matosinhos, está a ser assinalado indelevelmente de Marta Ortigão Sampaio. Santo António, em Valparaíso, no Chile, mas foi var a Casa Museu Marta Ortigão Sampaio, dando
pela circunstância de sermos Capital da Cul- Pareceu-nos natural que esta parceria tivesse, no Porto que viveu quase toda a sua vida. Viveu um passo relevante para o seu reenquadramento
tura do Eixo Atlântico. Numa aposta claríssima desde logo, sucesso. Ambos os museus estão na Quinta da China, a chegar a Campanhã e com no contexto do Museu da Cidade e reforçando a
da Autarquia neste sector de atividade, temos vocacionados para as coleções municipais e debruçada vista sobre o rio Douro, onde agora sua dimensão museológica, de interpretação das
vindo a produzir uma intensa programação cul- ambos possuem um vasto leque de temáticas da lançamos este catálogo dedicado a pensar a sua coleções e de acolhimento de públicos.
tural, com particular destaque para a abertura obra da artista. Mas, mais do que mostrar a quali- obra e a desvendar detalhes do seu percurso. Aurélia (portuense por adoção, por aqui ter
8 9
da Casa do Design e para a Casa da Arquitetura, dade técnica e artística de Aurélia, interessou-nos Conservadora nos motivos, genial e inova- sido criada, por aqui ter vivido quase toda a sua
no espaço da antiga Real Vinícola, e da Casa da sobretudo contextualizar a sua obra e apresentar dora no traço e na composição, Aurélia de Sousa vida e por aqui ter morrido, na mesma Quinta
AU RÉLIA DE SOUSA , M ULHER A RTI STA

AP RESENTA ÇÃO
Memória de Matosinhos, muito brevemente. uma nova narrativa. Uma narrativa onde outras deu continuidade ao naturalismo que impe- da China), já há muito que entrou para a catego-
Há datas e factos marcantes. Em 2016 celebra- mulheres pintoras, também parte da coleção da rava na pintura portuguesa do seu tempo, ria dos expoentes máximos da arte portuguesa.
-se o 150.º aniversário do nascimento da insigne autarquia, estão em destaque; uma narrativa onde acrescentando-lhe apontamentos impressionis- Sendo mulher, tornou-se mesmo um caso exem-
pintora Aurélia de Sousa, um dos expoentes a fotografia assume também um papel fulcral, não tas, realistas e até mesmo neorrealistas. Pintou plar do seu tempo e da sua condição. Assim, a
máximos do panorama artístico português de apenas como forma artística mas como objeto retratos, captando de forma invulgar a persona- Câmara Municipal do Porto não podia deixar de
finais da centúria de oitocentos e das primeiras de estudo e de base para os seus tão imponentes lidade dos representados; pintou paisagens, ab- evocar — mais, de comemorar — a passagem
décadas do século XX, que viveu grande parte da autorretratos. Para tal foi fundamental a colabo- sorvendo de forma não menos singular as cores dos 150 anos do seu nascimento e a relevância
sua vida na Cidade Invicta, mas que frequentou ração de uma outra entidade, o Centro Português da natureza; pintou cenas de género, muitas das da sua obra para a cultura contemporânea.
as praias de Leça e Matosinhos, à semelhança de Fotografia, a cargo do qual ficou a curadoria quais em torno dos elementos da sua família; mas  
de outras ilustres figuras, como António Nobre, de uma das salas do museu de Matosinhos, sob a são sobretudo os seus autorretratos que distin-  
António Carneiro ou Óscar da Silva. temática «uma breve história da fotografia», onde guem a sua obra e a posicionam como um nome Rui Moreira
Há datas e factos marcantes. Dado que as edili- as ligações a Aurélio da Paz dos Reis não pode- fundamental da arte portuguesa. Com a exposi- Presidente da Câmara Municipal do Porto
dades de Matosinhos e do Porto possuem as maio- riam ser negligenciadas. ção Aurélia, Mulher Artista — resultado de mais
res coleções públicas de obras de arte de Aurélia Desta sinergia entre instituições, regionais e uma importante parceria entre a Câmara Muni-
de Sousa, a exposição Aurélia, Mulher Artista resulta nacionais, nasceu a exposição, que se materia- cipal do Porto e a Câmara Municipal de Matosi-
de uma parceria inédita entre as duas autarquias, liza agora neste livro, onde especialistas comple- nhos, ambas detentoras de importantes acervos
que congregaram esforços na realização de uma mentam teoricamente a base, a macroestrutura da artista —, temos a excecional oportunidade
mostra que assinalasse devidamente a vida e obra desta mostra. Orgulhamo-nos desta exposição, de conhecer algumas das suas obras mais signi-
da pintora, em dois polos distintos, mas que se e orgulhamo-nos também da forma como todos ficativas. E, não menos estimulante, de descobrir
complementam, no Museu da Quinta de Santiago, os envolvidos foram capazes, de um modo pro- também a Casa Museu que Marta Ortigão Sam-
em Leça da Palmeira, e na Casa Museu Marta Orti- fissional e, também, apaixonado, de partilhar paio, sobrinha da pintora, doou à cidade e que
gão Sampaio, no Porto. conhecimento e vontade na sua conceção. está aberta ao público desde 1997.
De facto, a Autarquia de Matosinhos possui, Tendo por mote os 150 anos do seu nasci-
desde 1995, um vasto espólio da pintora, numa Guilherme Pinto mento e a partir do facto de a Câmara Municipal
doação realizada pelo Professor Correia de Oli- Presidente da Câmara Municipal de Matosinhos do Porto possuir a mais importante coleção públi-
veira. Este espólio doado a Matosinhos é prove-
INTRODUÇÃO. AURÉLIA
DE SOUSA, MULHER
ARTISTA (1866-1922)
F I LI PA LOWN D E S VI C E NTE

13
«UM QUARTO SÓ PARA SI»:
AURÉLIA DE SOUSA, 1866 -1922

IN T RO DUÇÃ O
Em 1928, seis anos depois da morte de Aurélia de Sousa, a
escritora britânica Virginia Woolf (1882-1941) deu uma con-
ferência em Oxford sobre as condições necessárias à criação
de obras de arte, da ficção à pintura. Como é que o facto de
se ter nascido mulher ou homem determinava o acesso à cria-
tividade?
Publicado em 1929 com o título A Room of One’s Own [Um
Quarto só para si], o ensaio tornou-se um texto central para pen-
sar as relações entre a identidade feminina e a produção literá-
ria e artística: «uma mulher tem de ter dinheiro e um quarto só
para si, se quiser escrever ficção».
No seu ensaio, Woolf explicou porque é que «a irmã de
Shakespeare» nunca poderia ter escrito o que o irmão escre-
veu. Porque a sua educação, a sua família, o seu meio social não
teriam permitido nem incentivado o seu eventual talento. Por
ser uma mulher — e não um homem — estaria exposta a todos
aqueles constrangimentos que dificultam a criatividade.
Por um lado, estavam os obstáculos formais ou legais —
a impossibilidade de as mulheres estudarem nas melhores esco-
las, de entrarem na universidade ou de pertencerem a institui-
ções literárias, artísticas ou científicas; ou, até, a impossibilidade
legal de gerirem bens materiais, o que as colocava na dependên-
cia económica de pais e maridos.
Por outro lado, encontravam-se os obstáculos informais e
Virginia Woolf em 1902, fotografada
inconscientes que podiam ser tão poderosos como os outros: por George Charles Beresford.
a falta de incentivo familiar e educacional ao desenvolvimento montou o seu ateliê de pintura e o laboratório fotográfico, o seu
de talentos e ambições, o «parece mal», o medo do ridículo, o «quarto só para si».
temor de não corresponder às expectativas sociais, familiares e
culturais que determinavam os caminhos possíveis às mulheres. Educação
O ensaio, brilhante e pioneiro, de Virginia Woolf inspirou As aulas particulares de desenho e pintura não foram suficien-
as muitas abordagens feministas que, desde a década de 1970, tes. Seguiu-se a Academia Portuense de Belas-Artes e, depois, a
enriqueceram a história da arte, fazendo-a refletir sobre as con- ida para Paris, lugar de todas as ambições artísticas. A resistên-
dições da prática artística e da perceção que os outros têm cia familiar inicial foi ultrapassada pela determinação de Aurélia
dessa mesma prática. A geografia, o género, o contexto social de Sousa em aprender mais e melhor. O acesso aos espaços de
e intelectual — ou seja, a vida — são indissociáveis da obra. ensino de prestígio constituía uma das principais fronteiras entre
Contudo, quem define que obras e que nomes devem ficar para o amadorismo — associado à pintura realizada por mulheres — e
a história também pertence a um lugar e a um tempo específi- a profissionalização — associada à arte produzida por homens.
14 Aurélia de Sousa, Auto-retrato, 15
s.d., arquivo CMMOS, CMP. cos. E durante muito tempo as mulheres, artistas, escritoras,
criadoras, foram secundarizadas. Só quando a história da lite- Dinheiro
AU RÉLIA DE SOUSA , M ULHER A RTI STA

IN T RO DUÇÃ O
ratura ou da arte tomou consciência dos seus mecanismos de Era prosaico, trivial e até indelicado falar de dinheiro. Porém, sem
seleção é que foi capaz de «encontrar» aquelas mulheres que já o dinheiro obtido na experiência de emigração paterna, Aurélia
lá estavam. e as suas irmãs não teriam tido uma educação semelhante à da
burguesia ou aristocracia endinheirada daquele período. E, mais
tarde, sem o apoio económico dos cunhados, dificilmente Aurélia
BIOGRAFIA: ESPAÇO, de Sousa poderia ter partido para Paris e inscrever-se na Academia
EDUCAÇÃO, DINHEIRO, TEMPO Julian ou viajado pela Europa para ver e aprender. Por outro lado, o
dinheiro obtido com a venda das suas pinturas e com as aulas par-
Aurélia de Sousa tinha o talento, a vontade e a determinação. ticulares que também deu terá sido determinante para que a artis-
E, como escreveu Virginia Woolf, teve «um quarto só para si». ta pudesse prosseguir a sua prática artística e profissionalizar-se.
Teve o espaço, a educação, o dinheiro e o tempo que lhe permi-
tiram dedicar-se à prática artística. Tempo
Sem tempo disponível não há talento que se possa manifes-
Espaço tar. O casamento, a maternidade e a gestão da casa ocupavam
1. A investigação e as publicações já
realizadas sobre Aurélia de Sousa, Nasceu na América do Sul, em 18661. O pai fora trabalhar para o tempo e a energia da maior parte das mulheres do seu meio.
sobretudo por Raquel Henriques da
Silva e Maria João Lello Ortigão de
o Chile à procura de melhores condições de vida, como tantos Também por não se ter casado nem ter tido filhos, teve a dispo-
Oliveira, foram essenciais para o meu outros portugueses deste período, que partiam sobretudo para nibilidade de tempo para pintar, para fotografar, para viajar pela
trabalho de curadoria da exposição e
de organização deste catálogo. Assim,
o Brasil. A fortuna feita na construção dos caminhos de ferro Europa ou para passear de bicicleta nos arredores do Porto. Para
é com grande satisfação que conto contribuiu para o regresso ao Porto em 1869 e para a compra transformar em profissão aquilo que começara por ser apenas
com a sua participação neste catálogo:
Adelaide Duarte, Aurélia de Sousa, de uma propriedade às portas da cidade do Porto e sobre o rio mais uma aprendizagem ou um passatempo adequado às meni-
Col. Pintores Portugueses (Matosinhos: Douro. Foi logo aqui que Aurélia começou por ser «estrangeira», nas privilegiadas da segunda metade do século XIX: o desenho e
QuidNovi, 2010); Maria João Lello
Ortigão de Oliveira, Aurélia de Sousa ideia que Ana Soromenho explorará na sua análise biográfica. a pintura, ao lado do piano, do canto ou dos bordados.
em Contexto. A cultura artística no fim A Quinta da China foi a principal morada de Aurélia de Sousa
de século (Lisboa: Imprensa Nacional-
-Casa da Moeda, Col. Arte e Artistas, até ao fim da vida, em 1922. Lá, tanto pôde ter acesso ao silêncio Independentemente da sua vontade, talento ou determinação indi-
2006); Raquel Henriques da Silva, Aurélia
de Sousa, Col. Pintores Portugueses
e ao isolamento, como à companhia e partilha das atividades viduais, o contexto pessoal de Aurélia de Sousa possibilitou-lhe ter
(Lisboa: Inapa, 2004 [1.ª ed. 1992]). domésticas que marcavam o quotidiano feminino. Foi lá que «um quarto só para si». Um espaço físico e metafórico para criar.
«MULHER -ARTISTA»

Ser «mulher-artista» era diferente de ser «artista», que continuava


a subentender uma masculinidade. A construção do significado
da dupla identidade de «mulher-artista», numa altura em que esta
passa a ter cada vez mais visibilidade, como acontece no século
XIX, está imbuída de uma inferiorização do seu estatuto. A falta
de «qualidade artística» de algumas daquelas mulheres levou a
generalizações por parte da crítica em relação à criação artística
feminina — uma mulher-artista tendia a representar «as» mulhe-
res artistas, enquanto um homem artista representava-se apenas
a si próprio.
16 17
Assim, houve uma tendência para associar a falta de qualidade
ao facto de uma artista ser mulher: se uma mulher fosse consi-
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IN T RO DUÇÃ O
derada «má artista», isso tornava-se indissociável do seu género,
numa generalização coletiva, mas, se fosse um homem a ser con- Capa da revista L’Amour. Journal Illustré, Capa da revista O Século Ilustrado, n.º 438, «La Peinture», postal fotográfico
siderado mau artista, não se dava uma extrapolação para «os» [«— Il y a des hommes qui ne veulent pas 10 de maio de 1947. Fotografia de capa com francês, exemplar n.º 6 da série
que les femmes peignent... C’est parce qu’ils a legenda «Marie Macdonald é uma vedeta «Les Arts», c. 1900, col. F.L.V.
homens em geral, limitando-se essa avaliação à sua identidade aiment mieux les... dépeigner!»], 12 de julho bonita e pintora de mérito», col. F.L.V.
individual. As mulheres podiam ser «exceções», exemplos raros e de 1903. Ilustração de capa, ass. ilegível,
publicação ilustrada francesa, col. F.L.V.
singulares de talentos considerados masculinos, mas não podiam
ser «artistas» tão «más» como outros homens artistas, sem que
isso fosse atribuído às características do seu sexo. Compreender
esta diferença, construída no período histórico em que aumenta
significativamente o número de mulheres artistas, ajuda-nos a
abordar Aurélia de Sousa nos cruzamentos entre biografia e obra.
As mulheres artistas com pretensões a uma carreira artís-
tica, com tudo o que ela implicava de exposição pública, tinham
de conviver com a condescendência generalizada que a força da
imagem do diletantismo artístico feminino pressupunha. Eram
as artistas amadoras. Júlio Brandão, ao escrever sobre a «rara
originalidade» e «técnica» de pintura das irmãs Sousa, fez ques-
tão de frisar como «não era a de um diletantismo frágil, ou a
habitual exibição de meninas prendadas2. No seu artigo «Conde-
nar sem ver: as outras que não eram Aurélia», Sandra Leandro
irá explorar esta tensão através dos casos das «outras» pintoras
contemporâneas, muitas delas «amadoras».
Capa da revista Femina. Literatura, arte e moda, Capa da revista O Cruzeiro, n.º 50, 28 de «La Peinture», cromo publicitário,
Em finais do século XIX, tal como na primeira metade do XX, n.º 9, Lisboa, 5 de março de 1931. Fotografia de setembro de 1957. Fotografia de capa com «Magasin de Chaussures L. Deschanel,
2. Júlio Brandão, «D. Aurélia de Sousa a «mulher-artista» tornou-se um tipo, sem nome nem identidade capa assinada por Horácio Novaes, publicação a legenda «Srta Maria de Lourdes Monteiro Rue Trésorerie, 11, et Rue Dorée, 2, Nîmes»
e D. Sofia de Sousa», Sombra e Luz. semanal dirigida por Helena de Aragão, col. F.L.V. em ektachrome de António Rudge especial [França], litografia colorida, s.d., col. F.L.V.
específica. De preferência, bonita. Em postais fotográficos, postais para a revista O Cruzeiro», col. F.L.V.
Revista de Fotografia e Arte, Porto:
Typographia Século XX, 1901, pp. 178-180. ilustrados, capas de revista, fotografias estereoscópicas, cromos
publicitários, ou ilustrações humorísticas, a mulher ou menina
junto aos materiais da prática pictórica, em ação ou a olhar para
nós, observadores, banalizou-se na cultura visual da época.

PRÁTICA E PESQUISA FOTOGRÁFICA:


AURÉLIA FOTÓGRAFA

No tempo de Aurélia de Sousa, as técnicas fotográficas já tinham


evoluído muito desde a sua invenção em 1839. Na década de
1880, a empresa Kodak divulgou a máquina fotográfica de rolo,
que tornou muito mais fácil e económico revelar as imagens.
18 «Saint-Cast (C.-D.-N.). — Bois de la Vieuxville» [Bretanha, França], 19
«Cliché Varignon», postal fotográfico, c. 1910, col. F.L.V.
A fotografia democratizou-se. Os aparelhos passaram a ser
mais leves, portáteis e fáceis de manusear, e a fotografia dei-
AU RÉLIA DE SOUSA , M ULHER A RTI STA

IN T RO DUÇÃ O
xou de ser apenas para profissionais ou especialistas. Passou
a ser uma prática globalmente difundida, popular e usada de
múltiplas formas.
Aurélia de Sousa usou a fotografia de formas diferentes. Em
«Chocolat Magniez-Baussart, Amiens» primeiro lugar, como a maior parte das pessoas, para fazer os
[França], cromo publicitário, s.d., col. F.L.V.
seus «álbuns de família» — essa invenção oitocentista que per-
mitiu que muitas pessoas construíssem a sua própria história
para além da história universal ou nacional. Na primeira secção
do catálogo, podemos observar algumas das fotografias feitas
«The Child Artist», estereoscopia fotográfica, s.d., col. F.L.V. no espaço familiar por membros da família, ao lado das que
foram realizadas nos estúdios profissionais, como o de Emílio
Biel, um alemão que viveu no Porto e em Lisboa e foi um dos
mais conhecidos fotógrafos deste período.
Depois, Aurélia experimentou a fotografia como uma prática
artística. Ao ar livre, no campo, no jardim, no espaço domés-
tico ou urbanizado, procurou obter imagens fotográficas que
sublinhassem a beleza do objeto representado. Prestando
uma especial atenção à composição, à estética e à tonalidade,
esta maneira de fotografar aproximava-se da pintura. Por isso,
chamava-se «pictorialista».
Em terceiro lugar, Aurélia fez o que muitos artistas contem-
porâneos estavam a fazer: recorreu à fotografia no próprio pro-
cesso da pintura. Desde a descoberta da tecnologia fotográfica
«Merveilleuse au Parc Royal»,
assinado por H. Manuel, Paris, postal — entre Paris (Daguerre, Niépce) e Londres (Talbot) — que as
fotográfico anterior a 1904, col. F.L.V. opiniões se dividiram. Para uns era uma técnica, para outros
uma arte. Flaubert ironizou definindo a fotografia como aquilo
«Scene from ‘The Duffer’», postal fotográfico da série «Dainty
novels», humorístico, edição de «Dover street studios», s.d., col. F.L.V.
que «vinha substituir a pintura». Não veio substituir, mas veio A fotografia surgiu como mais uma nova área de trabalho e
perturbá-la. Não só a pintura, mas todos os paradigmas de repre- criatividade para as mulheres mas, tal como sucedia em todas
sentação da realidade, verdade e observação. Foram muitos os as outras esferas, o seu género afetava aquilo que podiam fazer.
pintores que, tal como Aurélia, se interessaram pela fotografia e No começo da fotografia, a maior parte das mulheres fotogra-
que a usaram como instrumento para chegar à obra final. fava «em casa», tendo por tema o seu próprio ambiente familiar.
A amizade e vizinhança com o grande fotógrafo portuense Por vezes, eram filhas ou mulheres de homens que também foto-
Aurélio da Paz dos Reis — que Maria do Carmo Serén explora grafavam, como aconteceu com a portuguesa Margarida Relvas,
na sua contribuição para este catálogo, «Encontros e desencon- filha de Carlos Relvas.
tros sem importância: Aurélia de Sousa e Aurélio da Paz dos Contemporâneas de Aurélia, no entanto, foram muitas as
Reis» — podem ajudar a compreender melhor o interesse de mulheres que praticaram todas as formas de fotografia. A fa-
Aurélia de Sousa por fotografia. Aurélio foi o autor da fotografia mosa retratista Zaida Ben-Yusuf abriu o seu estúdio na Quinta
escolhida para imagem da exposição, e para a capa deste catá- Avenida, em Nova Iorque, no ano de 18974. Gertrude Käsebier
20 21
logo, uma fotografia que contém muitos dos fios condutores da (1852-1934) e Minna Keene (1861-1943), ambas com carreiras
nossa abordagem. Propositadamente, escolhemos a reprodução profissionais, também exploraram as possibilidades da fotogra-
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de uma fotografia e não a reprodução de uma pintura de Aurélia fia pictorialista, tal como Aurélia5.
para representar a exposição. Não uma fotografia realizada por
ela, mas uma fotografia onde está representada, ao lado de um
dos seus autorretratos. Lado a lado, fotografada, por Aurélio, e EDUCAÇÃO ARTÍSTICA
pintada, por ela própria. ENTRE O PORTO E PARIS
O espólio fotográfico de Aurélia de Sousa, em coleções pri-
vadas do Porto e no CMMOS, assim como o conjunto de máqui- Como tantas outras raparigas portuguesas com possibilidades
nas fotográficas que lhe pertenceram e que aqui reproduzimos, económicas, Aurélia de Sousa teve lições particulares de dese-
revelam como, além de pintora, Aurélia foi também fotógrafa. nho e pintura até que, segundo consta na família, o seu profes-
sor, Caetano Moreira da Costa Lima, anunciou nada mais ter
para lhe ensinar. A mãe teria resistido. Uma coisa era aprender
MULHERES FOTÓGRAFAS CONTEMPORÂNEAS os rudimentos das artes visuais para ocupar os tempos livres;
outra, muito distinta, seria estudar na Academia, ao lado de uma
Desde os seus começos que as mulheres também praticaram maioria de alunos masculinos, e com o grau de exigência que
a fotografia. Como têm vindo a demonstrar várias exposições antecipava uma profissionalização artística. O texto de Susana
recentes, elas são em número muito maior do que se julgava3. Moncóvio, «Mulheres artistas antes de Aurélia de Sousa: a lenta
3. Qui a peur des femmes photographes? Algumas, como Julia Margaret Cameron (1815-1879), foram reco- metamorfose de uma condição no espaço da Academia Por-
1839 à 1919, Musée d’Orsay, Paris, nhecidas em vida. Hoje considerada uma das melhores e mais tuense de Belas-Artes», irá explorar as transformações do lugar
14 de outubro de 2015 a 25 de janeiro de 4. Frank Goodyear, Zaida Ben-Yusuf: New
2016; Tirée par… a Rainha D. Amélia e a prolíficas fotógrafas do século XIX, a britânica combinou pin- das mulheres na Academia Portuense, desde o período histórico York Portrait Photographer (Nova Iorque:
Fotografia, Palácio Nacional da Ajuda, Merrel, 2008). Catálogo de Exposição
Lisboa, 30 de setembro de 2015 a 20 de
tura e fotografia em retratos encenados e desfocados. em que podiam participar nas exposições, mas não serem alunas [Washington D.C., The National Portrait
janeiro de 2016; Lee Miller: A woman’s A Royal Photographic Society of Great Britain foi inaugurada, de pleno direito, até ao momento, em 1881, em que a instituição Gallery of the Smithsonian Institution,
war, Imperial War Museum, Londres, 15 de 11 de abril a 1 de setembro de 2008].
outubro de 2015 a 24 de abril de 2016; Julia
em 1853, com um encontro aberto «a senhoras e cavalheiros de ensino artístico se abriu a «indivíduos de ambos os sexos».
Margaret Cameron, Victoria and Albert interessados em fotografia». Ao contrário de muitas institui- 5. Stephen Petersen e Janis A. Tomlinson,
Museum, Londres, 28 de novembro de 2015 Gertrude Käsebier. The Complexity
a 21 de fevereiro de 2016; Julia Margaret ções britânicas de prestígio, como a Royal Academy of Arts ou A Academia Portuense de Belas-Artes of Light and Shade. Photographs and
Cameron: Influence and Intimacy, Science a Royal Geographical Society, adotou desde o início a regra de Com 27 anos, uma idade já tardia, Aurélia inscreveu-se na prin- papers of Gertrude Käsebier in the
Museum, Londres, de 24 de setembro de University of Delaware Collection
2015 a 28 de março de 2016. que as «senhoras» podiam ser membros. cipal instituição de ensino artístico da cidade. Em 1893, entrou (Delaware: University of Delaware, 2013).
diretamente para o 3.º curso de Desenho Histórico, pois o ensino -artes de Paris passara a aceitar estudantes
privado já lhe permitia dominar as aprendizagens iniciais. Bem femininas6.
classificada e premiada, passou, então, para aquele que era con- Desde a década de 1870, no entanto, que
siderado o domínio mais exigente e por isso mais prestigiado, o algumas escolas privadas parisienses detinham
da pintura histórica. ateliês femininos. Afinal, havia uma enorme
Aurélia não chegou a concluir o curso no Porto, pois decidiu quantidade de mulheres provenientes de vários
prosseguir os seus estudos em Paris, «a capital do século XIX», países europeus e dos EUA interessadas em
segundo Walter Benjamim. Com este gesto revelou uma ambição prosseguir uma carreira artística. E as suas pro-
que se esperava das elites masculinas. pinas eram muito mais elevadas do que as dos
Este era o Porto onde vivia a escritora e académica alemã homens. A Academia Julian era a mais conhe-
Carolina Michaëlis (1851-1925) — «de Vasconcelos», porque cida e foi lá que as duas irmãs Sousa se inscre-
casada com Joaquim de Vasconcelos, portuense, também ele veram em 1899 7. Marie Bashkirtseff, No estúdio (ateliê feminino na Academia
22 Julian), 1881, Museu do Estado de Dnipropetrovsk, Ucrânia. 23
notável académico e o primeiro historiador de arte português. A escola tornara-se muito conhecida quan-
No entanto, este era também o Porto onde, tal como no resto do, em 1887, Marie Bashkirtseff, uma das suas
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de Portugal, os constrangimentos aos percursos educativos, alunas, publicou um diário8. Nele, descreveu o que era ser uma
criativos e intelectuais das mulheres eram maiores do que em mulher aspirante a pintora, em Paris. A jovem aristocrata ucra-
Londres, Paris ou Nova Iorque, cidades onde muitas décadas niana reconheceu como Rudolphe Julian, diretor da escola, con-
de ativismo pelos direitos das mulheres já tinham tido os seus siderava «as suas alunas tão boas como os alunos». O problema
efeitos. O artigo de Manuel de Sampayo Pimentel Azevedo era o resto. Para se ser artista era preciso também ser flâneur;
Graça centra-se no «Porto. Entre dois séculos», dando ênfase ou flâneuse. Passear livremente pelas ruas de Paris, frequentar
às transformações urbanas, à consolidação da burguesia e a os museus e jardins da cidade, deambular, ver, observar. E uma
algumas figuras femininas que se destacaram durante este tal liberdade — segundo ela, indissociável da criação artística
6. Tamar Garb, Sisters of the Brush.
período, enquanto Bruno Monteiro explora o estatuto, os — distinguia os homens das mulheres. Eles tinham-na. Elas não. Women’s artistic culture in late
discursos e as práticas de «outras» mulheres que habitavam Não sabemos se Aurélia escreveu um diário da sua expe- nineteenth-century Paris (New Haven e
Londres: Yale University Press, 1994).
a cidade, aquelas que não tinham nome nem riência de ser mulher e artista em Paris (tal como Maria João
voz — «Outras entre as mulheres. Represen- Ortigão explora, de forma ficcionada, no seu «Aurélia de Sousa 7. Overcoming All Obstacles. The women of
the Académie Julian (Nova Iorque: Dahesh
tações e realidades das operárias, criadas e (fragmento)» para este livro). No entanto, sabemos que viajou Museum, 2000). Catálogo de Exposição
prostitutas do Porto (1880-1910)». pela Europa com a irmã, que passou férias a pintar no Norte de [Nova Iorque, Dahesh Museum, 18 de
janeiro a 13 de maio de 2000]; Germaine
França juntamente com outras estudantes que terá conhecido Greer, «‘À tout prix devenir quelqu’un’:
A Academia Julian, Paris, circa 1900 na academia, e que tinha consciência de como as diferenças de the women of the Académie Julian», in
Peter Collier e Robert Lethbridge (eds.),
A cidade de Paris, à qual Aurélia chegou em género também afetavam o percurso artístico, mesmo na Acade- Artistic Relations, Literature and the Visual
Arts in Nineteenth Century France (New
1899, era o destino eleito por jovens artistas mia Julian. Numa carta à sua irmã Luísa, anunciou que ia entrar Haven e Londres: Yale University Press,
provenientes de muitos lugares. O estudo do num concurso da escola, mas que «não me dá palpite, entram 1994); Catherine Fehrer, «Women at the
Académie Julian in Paris», The Burlington
modelo nu tinha sido a principal razão invo- muitos homens e onde eles entram as mulheres ficam logo para Magazine, novembro 1994, pp. 752-757.
cada para excluir as mulheres da École des o lado»9.
8. The Journal of Marie Bashkirtseff,
Beaux-Arts parisiense ou da londrina Royal A transição do século XIX para o século XX pode ser assim tradução de Mathilde Blind, Introdução
Academy of Arts. Só em 1897, momento em identificada como uma fronteira: caem muitas das barreiras de Rozsika Parker e Griselda Pollock
(Londres: Virago Press, 1985).
que o seu prestígio já tinha sido posto em visíveis e institucionais que afastavam as mulheres dos espa-
Estudantes femininas numa aula de desenho com causa pelos muitos «ismos» transgressores ços de aprendizagem artística mais prestigiados. Porém, fazem- 9. Oliveira, Aurélia de Sousa em Contexto.
modelo ao vivo. Fotografia, c. de 1900, Herkomer Art A cultura artística no fim de século, p. 361
School, Bushey, Hertfordshire, Reino Unido. de finais do século, é que a escola de belas- -no precisamente no momento em que esses lugares também (Carta a Luísa de 6 de fevereiro de 1900).
perdem prestígio e os seus métodos e técnicas de ensino se
tornam menos determinantes para os caminhos estéticos que
se começam a experimentar. O século XX caracteriza-se por
uma fragmentação dos espaços de arte e também pela reifi-
cação de outro tipo de barreiras ao reconhecimento da cria-
tividade feminina, menos institucionais, menos visíveis, mas
igualmente dissuasoras.

PINTORAS CONTEMPORÂNEAS
DE AURÉLIA DE SOUSA
24 25
Em 1976, teve lugar em Los Angeles uma grande exposição inti-
tulada Women Artists: 1550-1950. Desde então, têm sido muitos
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os livros e exposições organizados em diversos países a mos-
trar o trabalho de mulheres artistas sobre as quais pouco ou
Gwen John, Auto-retrato, Cecilia Beaux, Auto-retrato, 1894, National
nada se sabia10. c. 1900, Tate Britain, Londres. Academy of Design, Nova Iorque.
Toda a segunda metade do século XIX foi um período espe-
cialmente rico para se estudar a profissionalização gradual das
mulheres artistas11. Pela primeira vez, em países distintos, surgi-
ram grupos organizados de mulheres a empreender um ativismo
no mundo das artes — por meios legais (escrevendo petições
10. Explorei este assunto no meu livro
públicas ou artigos de jornal) ou subversivos (concorrendo a
A Arte sem História. Mulheres instituições masculinas com nomes falsos, masculinos).
e cultura artística (Séculos
XVI-XX) (Lisboa: Babel, 2012). Uma das estratégias destes grupos de mulheres artistas do
século XIX foi a de alterar as regras das instituições de ensino
11. Garb, Sisters of the Brush; Deborah
Cherry, Painting Women. Victorian e de exposição, pressionando-as para que também aceitassem
women artists (Londres e Nova Iorque: mulheres. Outra das estratégias, muito visível em Londres e
Routledge, 1995); Charlotte Yeldham,
Women Artists in Nineteenth-Century Paris, foi a de criar espaços alternativos de exposição só para
France and England: Their art education, mulheres, algo que não agradava a todas, pois eram sempre
exhibition opportunities and membership
of exhibiting societies and academies, considerados secundários face aos lugares onde apenas expu-
with an assessment of the subject matter
of their work and summary biographies,
nham homens artistas.
2 vols. (Nova Iorque: Routledge, 1995); Independentemente dos diferentes percursos e opções das
Susan P. Casteras e Linda H. Peterson,
A Struggle for Fame. Victorian women mulheres que se dedicaram à pintura de modo profissional, a Marie Bashkirtseff, Auto-retrato com paleta, Paula Modersohn-Becker, Auto-retrato, 1906,
Paula Modersohn-Becker Museum, Bremen.
artists and authors (New Haven: Yale sua afirmação, tal como as muitas resistências a essa afirmação, 1884, Musée des Beaux-Arts, Nice.
Center for British Art, 1994). Catálogo
de Exposição [Yale Center for British é fundamental para se compreender a arte e a produção artísti-
Art, New Haven, 1 de março a 8 de maio cas deste período.
de 1994]; Ellen Clayton, English Female
Artists, 2 vols. (Londres: Tinsley Bros., Apesar de a história da arte recente procurar uma maior plu-
1876); Estrella de Diego, La mujer y la ralidade de contextos artísticos, Paris continua a ser estudado
pintura del XIX español. Cuatrocientas
olvidadas y algunas más (Cátedra, 2009). como o centro do século XIX por lá se encontrar uma grande
concentração de escolas, exposições, associações, crítica de de obras vividas e fortes de algum inconfundível e extraordiná-
arte e comunidades informais de artistas. Antes, durante e rio pintor», «com o cunho vigoroso e individual dos mestres»16.
depois de Aurélia de Sousa, foram muitas as mulheres pinto- Nada na sua pintura remetia, segundo ele, para a «fragili-
ras que lá viveram ou que por lá passaram. Berthe Morisot, dade feminina» feita de «graça e suavidade» que caracterizaria
Eva Gonzalès e Mary Cassatt, mas também a britânica Gwen as obras de mulheres pintoras17. Porém, para que os leitores
John, as francesas Suzanne Valadon, Marie Laurencin, Sonia não pudessem depreender destas suas palavras uma «masculi-
Delaunay e Rosa Bonheur 12, as alemãs Käthe Kollwitz, Paula nização» da pintora — e não somente da sua obra —, Brandão
Modersohn-Becker, Gabriele Münter e Hannah Höch, as norte- insiste em acrescentar um esclarecimento: «Não quer isto dizer
-americanas Cecilia Beaux, Romaine Brooks e Georgia O’Keeffe13, que a artista fosse alguma figura hirta e seca, do tipo de certas
ou a brasileira Tarsila do Amaral são apenas alguns dos muitos velhas sufragistas inglesas, que os caricaturistas tomaram à sua
nomes de mulheres que, tal como Aurélia, viveram a passagem conta.»
do século XIX para o XX. Todas elas já foram objeto de múltiplas A arte praticada por mulheres podia e devia ser «masculina».
26 Tarsila do Amaral, Auto-retrato 27
ou Manteau Rouge. publicações ou exposições. Era isso que distinguia as «melhores» da vasta maioria de mulhe-
Paris, 1923.
Nesta exploração e afirmação da sua própria identidade, res artistas. Contudo, as mulheres que praticavam a arte deviam
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Museu Nacional de Belas
Artes do Rio de Janeiro. foram muitas as mulheres artistas contemporâneas de Aurélia manter intacta a sua feminilidade. Aí, longe de ser um elogio, a
que também fizeram de si próprias objeto de exploração artís- masculinização era negativa e perniciosa, aquela que as «sufra-
tica, sob a forma de autorretrato pictórico 14. gistas inglesas» — na sua reivindicação do acesso a percursos,
valores e direitos tidos como masculinos — simbolizavam de
modo mais veemente. Em Brandão ou em tantos outros autores,
CONSTRUÇÃO HISTÓRICA portugueses ou estrangeiros, nas «velhas» sufragistas inglesas
DE AURÉLIA DE SOUSA: confluíam todas as perturbações antifeministas.
EXPOSIÇÕES, CATÁLOGOS, CRÍTICA Assim, Aurélia de Sousa sabia pintar como um homem «vigo-
roso» e «individual» mas era, ela própria, «delicada e débil» e de
As exposições e a palavra escrita, da crítica e da história da uma «grande ternura pelas flores». Nesta ambivalência entre o
arte, modelaram a identidade histórica de «Aurélia de Sousa», feminino e o masculino, o autor parece querer diferenciar aquilo
12. Rosa Bonheur et sa famille. Trois antes e depois da sua morte, em 1922. Em vida, a pintora expôs que deveria permanecer feminino — a identidade da pintora — e
générations d’artistes, exposição no
Musée National de Port-Royal des inúmeras vezes, no Porto sobretudo, mas também em Lisboa. aquilo que podia apropriar-se dos valores masculinos da distin-
Champs, Port-Royal des Champs, 7 Um estilo de vida recolhido e familiar, algo que era esperado ção e originalidade artísticas — a identidade da obra pictórica.
de abril a 25 de julho de 2016).
do género feminino, conjugou-se com frequentes viagens pela As críticas de arte ao trabalho de mulheres artistas desta época 16. Júlio Brandão, «Introdução»,
13. Georgia O’Keefe, exposição Europa e participações em exposições públicas. No entanto, estão repletas desta dualidade hesitante, entre a arte feminina, Exposição de Homenagem Póstuma à
na Tate Modern, Londres, 6 de Grande Pintora D. Aurélia de Souza.
julho a 30 de outubro de 2016. nunca obteve o reconhecimento e prestígio de muitos dos seus que era considerada menor, amadora, não-original, e a arte das Salão de Belas-Artes do Palácio de
Cristal Portuense. 15 de junho de 1936.
14. Liz Rideal et al., Mirror, Mirror. Self-
contemporâneos. — raras — mulheres que, ultrapassando os limites do seu sexo,
-portraits by women artists (Londres: eram capazes de masculinizar a sua obra. O difícil, como a crí- 17. Este parágrafo sobre as categorias
National Portrait Gallery, 2001). Catálogo de feminino/masculino, tão comuns na
de Exposição [Londres, National Portrait Crítica de arte: o «talento varonil» de Aurélia tica também reforçava, era pintar como um homem sem deixar crítica de arte dos séculos XIX e XX
Gallery, 24 de outubro de 2001 a 24 de Ao escrever sobre a obra de Aurélia de Sousa exposta na Acade- de ser uma mulher. e que avaliam mulheres artistas, já foi
fevereiro de 2002]; Liana De Girolami publicado no artigo: Ana Vicente e Filipa
Cheney, Alicia Craig Faxon e Kathleen mia Portuense de Belas-Artes, em 1909, Joaquim Costa admirou Também Marie Bashkirtseff (1858-1884) contou como, num Lowndes Vicente, «Fora dos cânones:
Lucey Russo, Self-Portraits by Women o «talento varonil» de uma pintora que se encontrava na «plena concurso interno na Academia Julian, o seu trabalho foi consi- mulheres artistas e escritoras no Portugal
Painters (Londres: Ashgate, 2009). de princípios do século XX», Faces de
posse das suas faculdades»15. Em 1936, Júlio Brandão afirmou derado equivalente ao de um «homem jovem» e «poderoso»18. Eva: Estudos sobre a mulher, 33, pp. 37-51.
15. Joaquim Costa, «Exposição que, se alguém visse a obra de Aurélia de Sousa não sabendo se De igual modo, quando Ramalho Ortigão quis enaltecer as capa-
d’arte», Arte, n.º 53, 5.º Anno, 18. The Journal of Marie
Porto, maio de 1909, p. 38. era uma mulher ou um homem, «julgaria encontrar-se em frente cidades pictóricas da sua filha Berta Ortigão, considerou que Bashkirtseff, p. 350.
«o que nela é especial é que das pintoras que eu conheço de Cristal, inaugurado em 1865, um ano antes de a pintora nascer,
nenhuma é tão homem como ela na maneira de ver o modelo e com a primeira grande Exposição Internacional organizada em
de pôr a tinta na tela» 19. Portugal. Um ano depois da exposição, Joaquim Costa publicou
Ao construir uma carreira artística pública, as mulheres artis- no Porto a primeira monografia sobre a artista21.
tas contemporâneas de Aurélia de Sousa confrontavam-se com A segunda exposição, em 1973, foi organizada no Museu
estas tensões: entre o reconhecimento do seu «talento varonil», Nacional de Soares dos Reis, por iniciativa da sua diretora,
o serem exceções a uma norma que associava mulheres-artistas Maria Emília Amaral Teixeira. Na exposição de 1936 estiveram
a artistas-amadoras, e o evitarem a ridicularização que muitas expostas 260 obras. Em 1973, foram 161. Em comum, as duas
vezes recaía sobre as mulheres com ambições intelectuais ou exposições tinham o facto de a maior parte das obras ser pro-
artísticas ou sobre aquelas, como as sufragistas, com uma cons- veniente de casas particulares, sobretudo do Porto, sendo raros
ciência politizada. os quadros oriundos de coleções públicas ou museus.
Aurélia de Sousa, No Atelier. Isto exemplifica uma característica das obras de mulheres
28 Assinado. c. 1916, óleo sobre 29
tela, 55 × 48 cm. Exposições no século XX: Porto, Paris, Londres artistas, até muito recentemente: foram menos colecionadas e
Auto-retrato, óleo sobre tela,
Museu Nacional de Arte
Em vida, Aurélia de Sousa expôs muito, como Adelaide Duarte, compradas (e, quando compradas, por valores mais baixos do 45 × 36 cm. Inv. 878 Pin MNSR.
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Contemporânea do Chiado, Inv. 279.
autora de uma monografia sobre a artista publicada em 2010, que os seus contemporâneos masculinos), menos estudadas e
analisará na sua contribuição para este catálogo, «Aurélia de reconhecidas enquanto nomes relevantes de movimentos artís-
Sousa exposta: a construção de uma carreira de artista». Expôs ticos. E, por isso, quer as obras, quer os arquivos pessoais de
sobretudo no Porto. Em 1916, expôs pela primeira vez na expo- mulheres artistas tendem a permanecer em espaços privados,
sição anual da Sociedade Nacional de Belas-Artes, em Lisboa, tornando mais difícil o acesso a investigadores. Num círculo
iniciativa que começara no princípio do século. Em 71 artistas, vicioso de invisibilidade, o passado acaba por marcar o conhe-
17 eram mulheres 20. Quase todas tinham formação em ateliês cimento que se pode construir no presente.
privados, como vinha indicado no catálogo. Apenas duas exce- Em 1987, pela primeira vez, as obras de Aurélia de Sousa
ções, vindas do Porto, ambas com formação na Academia Por- estiveram expostas fora de Portugal, precisamente na cidade de
tuense de Belas-Artes e na Academia Julian de Paris: Aurélia de Paris, onde vivera e estudara. O autorretrato de casaco verme-
Sousa e Sofia de Sousa. A única escultora exposta também tivera lho — que se pode ver no Museu Nacional de Soares dos Reis
formação em Paris — Maria da Gloria Ribeiro da Cruz. — esteve presente na exposição Soleil et Ombres. L’art portugais
21. Joaquim Costa, Aurélia de Sousa.
Columbano Bordalo Pinheiro, então diretor do Museu de du XIXème siècle22. A sua vida e a sua obra (Porto: Imprensa
Arte Contemporânea, vê o quadro No atelier, gosta e compra-o No ano 2000, o mesmo autorretrato voltou a sair de Portugal Portuguesa, 1937); outros textos sobre
ela foram sendo publicados ao longo
para o museu. Passa a ser a única obra de Aurélia de Sousa no para integrar uma reflexão sobre a arte na transição do século. do século XX, como, por exemplo:
atual Museu do Chiado. Cena de interior ou autorretrato? Como 1900: Art at the crossroads levou-a a Londres e a Nova Iorque, A Aurélia de Sousa, Texto de Maria
Luísa de Jesus e Ilustrações de Maria
classificar esta obra, enigmática, de Aurélia segundo as tipo- onde esteve exposta ao lado do autorretrato da britânica Gwen Cândida Gonçalves (Porto: publicação
da Escola Aurélia de Sousa, s.d.).
logias temáticas da pintura? Uma representação de si própria John (ver p. 25) 23.
enquanto artista introspetiva, de costas para nós, no seu espaço 22. Soleil et Ombres. L’art portugais
19. Beatriz Berrini, Cartas a Emília du XIXème siècle (Paris: Paris Musées,
(Lisboa: Biblioteca Nacional, 1993), de trabalho? Representação abstrata dos desafios da criativi- Escrita e história da arte 1987). Catálogo de Exposição, pp. 267-
p. 104: citado por Oliveira, Aurélia de dade? Na penumbra apenas se ilumina a pintura no cavalete. Em 1936, 14 anos depois da sua morte, Júlio Brandão afirmou -269. A exposição foi depois para
Sousa em Contexto. A cultura artística Lisboa, sob o título Arte Portuguesa no
no fim de século, pp. 217 e 218. A pintura dentro da pintura. que a «eminente pintora» «estava quase esquecida». O esqueci- Século XIX, Palácio da Ajuda, Lisboa.
Duas grandes exposições individuais tiveram lugar no Porto mento surge muitas vezes invocado em relação a mulheres artis-
20. Filipa Lowndes Vicente, «Mulheres 23. Robert Rosenblum e MaryAnne
artistas: As possibilidades de criação no século XX, após a sua morte. A primeira, Exposição de Home- tas, mesmo mais recentes, como se se tratasse de um acaso. Ora, Stevens (eds.), 1900: Art at the crossroads
feminina em 1915», Steffen Dix (org.), nagem Póstuma à Grande Pintora Aurélia de Sousa, deu-se em muitos homens artistas também foram esquecidos, mas não (Londres; Nova Iorque: Royal Academy of
1915 — O ano do Orpheu (Lisboa: Arts; Solomon R. Guggenheim Museum,
Tinta-da-china, 2015), pp. 121-136. 1936, graças ao empenho de Joaquim Lopes. Ocorreu no Palácio por serem «homens». Em contextos de desigualdade no acesso 2000). Catálogo de Exposição.
de homens e mulheres à educação, criação e espaço público, a Abordagens feministas à história da arte
construção histórica da memória também depende da identidade Para se fazer «a história» são necessários documentos e mate-
sexual do artista. riais, obra, traços visuais ou escritos, mas são sobretudo neces-
Foi só a investigação recente levada a cabo por historiadoras sárias abordagens e perspetivas que olhem para as mesmas
de arte (mulheres, note-se) que veio afirmar o lugar de Aurélia coisas de formas diferentes. Foi isso que aconteceu a partir das
de Sousa na história da arte nacional. Em 1983, Lúcia Almeida- décadas de 1970 e 1980, sobretudo nos Estados Unidos e no
-Matos realizou uma tese de mestrado sobre Aurélia de Sousa Reino Unido — novos olhares sobre o que já existia.
numa universidade norte-americana e publicou um artigo sobre As transformações políticas e sociais ocorridas nos direitos das
a artista no Woman’s Art Journal, revista académica que pro- mulheres também influenciaram as ciências sociais e humanas. A
move o estudo das relações das mulheres com as artes visuais, história, a história da arte e os estudos literários começaram à pro-
desde 1980 até hoje. cura das mulheres que não estavam nos livros ou nas paredes dos
Em 1992, Raquel Henriques da Silva publicou uma monografia museus. A «escavação arqueológica» deu os seus frutos. Apesar
30 31
sobre a artista onde deu a conhecer a um público mais vasto a de enterradas mais fundo, estavam lá muitos vestígios e vozes de
diversidade da sua obra, enquanto Adelaide Duarte fez o mesmo mulheres que tinham escrito, pensado, pintado, agido.
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em 2010. Ambos os livros estavam integrados em coleções de Porém, descobrir as excluídas, esquecidas e marginaliza-
«pintores portugueses». Em 2006, o livro de Maria João Lello Orti- das, para as integrar nos cânones de quem fica para a história,
gão de Oliveira, Aurélia de Sousa em Contexto. A cultura artística não era suficiente. Por um lado, nunca seria possível integrar
no fim de século, fruto de uma tese de doutoramento, aprofundou completamente o feminino nas narrativas milenares e consolida-
as múltiplas faces da artista — pintora e fotógrafa — e explorou das do masculino. Muitos dos documentos históricos da autoria
os modos como a sua identidade enquanto mulher se cruzou com de mulheres ou sobre mulheres já tinham sido eliminados pela
a sua identidade de artista. Neste catálogo, Maria João Ortigão própria história. Por outro lado, criar cânones de «mulheres»
regressa à «Aurélia», o objeto de reflexão e análise ao qual tanto equivalentes àqueles que já existiam no masculino, sem estudar
se dedicou, mas fá-lo com a liberdade de uma escrita que cruza o as razões dessa eliminação, era reproduzir aquilo que se criti-
saber histórico e biográfico com as possibilidades do ensaio e da cava. Ou seja, não chegava acrescentar nomes de heroínas aos
ficção — ver «Aurélia de Sousa (fragmento)». nomes dos heróis.
As obras pertencentes à Câmara Municipal do Porto e à Assim, a principal contribuição das abordagens feministas
Câmara Municipal de Matosinhos determinaram a escolha dos à história da arte não foi apenas a de descobrir centenas de
núcleos temáticos desta exposição. A figura humana, sob várias mulheres artistas desde o século XVI até ao XX, mas sim a de
formas, na Casa Museu Marta Ortigão Sampaio. E a paisagem questionar os próprios pressupostos da «história da arte» que
e a natureza-morta, no Museu Quinta de Santiago, em Leça da tinham excluído as mulheres.
Palmeira. No entanto, é necessário ter em conta que Aurélia de A ideia de «qualidade» — central à história da arte — foi cri-
Sousa explorou outros temas e tipologias — como cenas bíbli- ticada como um conceito subjetivo, dependente do contexto
cas ou temas religiosos e espirituais —, que a aproximam tanto histórico, do tempo e lugar de quem o enunciava. O facto de,
do simbolismo como de um feminismo experimental, como durante séculos, a ideia de «qualidade» ser sinónimo de mas-
argumenta Raquel Henriques da Silva no seu artigo «Aproxi- culino — tão natural que nem precisava de ser dito — fez com
mação à pintura de temática religiosa de Aurélia de Sousa: que a maior parte da obra produzida por mulheres não fosse
o feminismo em ação». Trata-se também de uma nova reflexão considerada «de qualidade»; ou, quando «de qualidade», fosse per-
por parte da historiadora de arte que em 1992 publicou a mono- cebida como uma exceção.
grafia da artista que, pela primeira vez, a colocou no cânone Uma história da arte mais atenta à identidade de género e às
artístico nacional. contextualizações histórico-culturais descobriu muitas mulheres
artistas de grande «qualidade», «originalidade» e «inovação» que
se desconheciam ou se conheciam mal. Como afirmou a histo-
riadora de arte Linda Nochlin, em 1971, o que é surpreendente é
que, apesar de tudo, haja tantas. Aurélia de Sousa foi uma delas.

32
1. BIOGRAFIA
AU RÉLIA DE SOUSA , M ULHER A RTI STA

RETRATOS DE
UMA ARTISTA

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