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ARTÍCULOS

Delação premiada
Adriano Squilacce e Nair Maurício Cordas
Advogados*

Delação premiada Whistleblowing


No contexto da projecção do recurso à delação premiada no Brasil, In the context of the projection that the recourse to plea bargaining
surgiram, entre nós, várias vozes de apoio à consagração de um agreements had in Brazil, several voices emerged in support of the
mecanismo de delação premiada na lei portuguesa. Além de uma establishment of a plea bargaining mechanism under Portuguese law.
visão crítica do instituto de delação premiada, não só à luz da lei In addition to a critical view of the plea bargaining system, both in
vigente, mas também de iure condendo (i.e., do direito a ser constituí- light of the law in force and de iure condendo (i.e., of the law to be
do no futuro), este artigo pretende reavaliar determinadas opções established in the future), this article intends to reassess certain prac-
práticas na condução das investigações que poderão consubstanciar tices which may be under covered plea bargaining mechanisms that
verdadeiros mecanismos premiais encapotados que são vedados quer are prohibited by the Criminal Procedure Code and Constitution of
pelo actual Código de Processo Penal, quer à luz da Constituição da the Portuguese Republic.
República Portuguesa.

Palavras-chave Key words


Delação Premiada, Suspensão Provisória Do Processo, Proces- Plea Bargaining, Whistleblowing, Temporary Stay Of Criminal
so Penal. Proceedings, Criminal Procedure.

Fecha de recepción: 30-7-2017 Fecha de aceptación: 15-9-2017

Introdução É natural que a ideia da delação premiada seduza


os investigadores (que são, humana e compreensi-
No contexto da projecção (inclusivamente interna- velmente, influenciados pelo contexto que os
cional) que o recurso à delação premiada teve no rodeia, nomeadamente em casos com maior projec-
Brasil, houve quem, em Portugal, tenha incentiva- ção mediática) para a sensação de uma aparente
do, sem reservas e hesitações, a consagração legal vitória, por estarem convencidos que, no momento
do instituto da delação premiada no nosso ordena- da acusação, a delação premiada terá permitido
mento jurídico. reunir indícios suficientes que permitam sustentar
Quando confrontados com a mais do que evidente que a condenação em julgamento é mais provável
incompatibilidade do modelo brasileiro da delação do que a absolvição.
premiada com a Constituição da República Portu- Esta sedução ou sensação de vitória que a delação
guesa (CRP), alguns defensores deste instituto vie- premiada provoca será tanto maior quando os
ram esclarecer que, afinal, não pretenderiam Magistrados do Ministério Público que investigam
importar o modelo brasileiro de delação premiada e acusam não são aqueles que participarão no jul-
para Portugal, mas sim consagrar um modelo de gamento, porque o trabalho (individual) daqueles
delação premiada com contornos próprios, ainda que investigam culmina com a dedução da acusa-
que não os especifiquem. ção.
O problema é que as grandes delações que criam a
ilusão de uma grande condenação são as mesmas
*  Del Área de Derecho Público, Procesal y Arbitraje de Uría delações que podem dar lugar a grandes absolvi-
Menéndez Proença de Carvalho (Lisboa). ções, quer por assentarem em verdadeiros negócios

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com delatores que praticaram crimes e cuja credi- De resto, mesmo nas jurisdições que consagram o
bilidade está necessariamente abalada, quer por instituto da delação premiada, já se assistiu a uma
força de invalidades na forma como a prova foi especialização de um determinado sector da advo-
obtida. cacia na representação de suspeitos da prática de
ilícitos que exerceram o papel de delatores e de
Sem prejuízo disto, a discussão sobre a delação
whistleblowers.
­premiada não se deve restringir à perspectiva de
iure condendo (i.e., do direito a ser constituído no Portanto, a ideia de que a discussão sobre a delação
futuro). Esta é uma excelente oportunidade para premiada é uma controvérsia entre o Ministério
reavaliar, de forma sincera e crítica, certas opções Público e advogados, na qual estes se orientariam
práticas na condução das investigações que con- contra a delação premiada em função do interesse
substanciam verdadeiros mecanismos premiais egoístico de proteger os arguidos, é um raciocínio
encapotados que são vedados quer pelo Código de incorrecto e que está viciado à partida.
Processo Penal (CPP), quer pela CRP. Aliás, no É que os advogados que actuam como defensores
actual estado de coisas, a discussão do problema hoje são os mesmos que, amanhã, actuarão como
nesta segunda perspectiva é muito mais importante assistentes e vice-versa.
do que a primeira, porque se trata de enfrentar,
com transparência, questões com que os diversos Feita esta desmistificação, importa passar ao fundo
intervenientes no processo são confrontados, sobre- da questão.
tudo na fase de inquérito ou investigação do pro-
cesso.
O estado actual

O erro de reconduzir a discussão a uma Na sequência da obra publicada em 2011 por


divergência entre duas facções Figueiredo Dias, intitulada «Acordos sobre a senten-
ça em processo penal – O Fim do Estado de Direito
Antes de entrar no fundo deste problema, importa ou um Novo Princípio», inspirada na alteração
desmistificar uma confusão ou um pré-conceito introduzida em 2009 à lei que rege o processo
errado que, aparentemente, tem estado subjacente penal alemão (a StPO), assistimos, entre nós, a um
a esta discussão. Alguns apresentam esta discussão movimento com vista à implementação e aceitação
como uma divergência entre duas «facções», cujas dos chamados acordos sobre sentença em Portugal,
posições seriam orientadas pelos seus interesses: em nome da defesa do Estado de Direito.
por um lado, os investigadores que apoiariam a A via negocial rapidamente começou a ganhar ade-
delação premiada e, por outro lado, os Advogados são dentro do Ministério Público, primeiro, na
que se oporiam a este instituto. Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, que emitiu
No entanto, esta divisão assenta num erro elemen- uma orientação na qual incentivava a criação de
tar e de base: o erro de que os advogados apenas procedimentos para a implementação dos acordos
interviriam como defensores de arguidos. Como é sobre sentença (cfr. Orientação n.º 1/2012, da Pro-
evidente, não é assim. Até porque a lei assim o curadoria Geral Distrital de Lisboa, de 13 de Janei-
obriga, os assistentes são sempre representados por ro de 2012 – disponível em www.pgdlisboa.pt), a
advogados (artigo 70.º, n.º 1, do CPP). Portanto, os que então se associou o Procurador-Geral Distrital
advogados, quando actuam enquanto representan- de Coimbra (cfr. memorando de 19 de Janeiro de
tes dos assistentes, têm a posição de colaboradores 2012, disponível em www.oa.pt).
do Ministério Público, a cuja actividade subordi- Foi neste contexto que se seguiram duas decisões
nam a sua intervenção, ressalvadas algumas excep- jurisprudenciais de tribunais de 1.ª instância que
ções previstas na lei (artigo 69.º, n.º 1, do CPP). aplicaram acordos sobre sentença em processo
Esta dimensão ganha ainda uma maior importância penal, às quais se seguiu o acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça, de 10 de Abril de 2013, no
nos casos em que a legitimidade para a constituição
qual a validade da negociação de penas foi expres-
de assistente pertence a qualquer pessoa, como
samente rejeitada.
sucede, a título de mero exemplo, nos crimes de
tráfico de influência, corrupção, peculato, partici- O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10
pação económica em negócio ou desvio de subsídio de Abril de 2013, foi muito claro, tendo aí sido
ou subvenção (artigo 68.º, n.º 1 - al. e), do CPP). entendido o seguinte:

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«I - O direito processual penal português não admi- estar em causa a ofensa da integridade moral das
te os acordos negociados de sentença. II - Constitui pessoas (o que resulta claro da expressão «mesmo
uma prova proibida a obtenção da confissão do com que com o consentimento» que consta desta
arguido mediante a promessa de um acordo nego- norma).
ciado de sentença entre o Ministério Publico e o
Por referência à proibição de «promessa de vantagem
mesmo arguido no qual se fixam os limites máxi-
legalmente inadmissível», Inês Ferreira Leite salienta
m o s d a p e n a a a p l i c a r » ( p ro c e s s o n . º
224/06.7GAVZL.C1.S1, disponível em www. o seguinte: «no sistema português, o recurso a meios
dgsi.pt). mais “expeditos” de obtenção de confissões – tais como,
a promessa de isenção ou atenuação da responsabilida-
Por sua vez, e na sequência da publicação deste de criminal, a promessa de privilégios injustificados no
Acórdão, foi emitida a Directiva n.º 2/2014 pela cumprimento da pena (…) – é proibido e importa a
Procuradora-Geral da República, na qual se proibiu nulidade absoluta das provas assim obtidas (…). (…)
o incentivo e a celebração de acordos sobre senten- na obtenção de declarações do arguido que possam
ça em processo penal, atendendo à necessidade de constituir um meio de prova, as autoridades judiciárias
aprofundamento da reflexão sobre o instituto (cfr. podem fazer referências aos benefícios substantivos e
Directiva n.º 2/2014, da Procuradoria Geral da processuais decorrentes de uma “colaboração proces-
República, de 21 de Fevereiro de 2014 – disponível sual” útil por parte do arguido ou de um “arrependi-
em www.pgr.pt). mento sincero”, mas nunca sob a forma de promessas
Embora o aludido Acórdão do Supremo Tribunal concretas no que respeita aos precisos contornos da res-
de Justiça, de 10 de Abril de 2013, não se reporte ponsabilidade penal do mesmo ou da pena ou medida a
especificamente a uma situação de delação premia- aplicar, a final (ou, inversamente, sob qualquer forma
da, à luz da legislação vigente, é hoje claro que o de ameaças)» («Arrependido»: A Colaboração Pro-
recurso ao instituto da delação premiada, na ver- cessual do Co-arguido na Investigação Criminal, in
tente contratual ou negocial, não é permitida. Aliás, 2.º Congresso de Investigação Criminal, Almedina,
é precisamente por esta circunstância que os simpa- 2010, páginas 393 e 394).
tizantes desta modalidade de delação premiada Como vimos, o aludido Acórdão do Supremo Tri-
reclamam a alteração do CPP. bunal de Justiça, de 10 de Abril de 2013, não se
Toda a negociação que chega a bom porto envolveu reporta especificamente a uma situação de delação
uma determinada promessa, enquanto contraparti- premiada. No entanto, ao proibir a negociação de
da de um determinado acto ou prestação. Com o penas tout court, então por maioria de razão resulta
sucesso da negociação, a promessa transforma-se daqui que a delação premiada é vedada no nosso
num compromisso. sistema jurídico. Aquele Acórdão do Supremo Tri-
bunal de Justiça aponta alguns elementos essenciais
No caso da delação premiada, pressupõe-se a exis- no sentido de que o instituto da delação premiada
tência de um prémio que é definido antecipadamen- bate de frente, não só contra a lei hoje vigente, mas
te (por ex., a dispensa da pena pré-determinada, também e sobretudo contra princípios fundamen-
antes de qualquer julgamento) e constitui a contra- tais consagrados na CRP, conforme veremos adiante
partida, concreta e segura, de uma delação feita por a propósito do caminho que a lei deve seguir no
um arguido, após uma negociação bem sucedida futuro.
com as Autoridades Judiciárias.
No entanto, o CPP determina que a promessa de
vantagem legalmente inadmissível é ofensiva da inte- Suspensão provisória como prémio da
gridade moral das pessoas e, nesta medida, constitui delação?
um método de prova proibido (artigo 126.º, n.os 1
e 2 - al. e), do CPP), o que proíbe a delação premia- Ainda no contexto da delação premiada, poder-se-
da, na medida em que não é possível prometer, -ia questionar se, enquanto manifestação tímida
antecipadamente e de forma pré-determinada, a deste instituto, seria possível determinar a suspen-
um arguido a atribuição de uma vantagem específi- são provisória do processo quanto a um dos argui-
ca, como contrapartida da sua colaboração. O n.º 2 dos – ao abrigo do regime geral previsto nos artigos
do artigo 126.º do CPP determina a proibição abso- 281.º e 282.º do CPP –, sujeito à condição deste
luta deste método de obtenção de prova, mesmo prestar declarações incriminatórias de outro argui-
em caso de haver consentimento do arguido, por do, na fase de julgamento.

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Além do regime geral do CPP, a suspensão provisó- -arguido na fase de julgamento. Uma tal injunção não
ria também está prevista em regime especiais como tem cabimento na alínea m) do n.º 2 do artigo 281.º,
no artigo 9.º da Lei sobre as Medidas de Combate à (…), pois sempre será contrária ao princípio da digni-
Corrupção e Criminalidade Económico e Financei- dade da pessoa humana que a suspensão (merecida) do
ra (aprovada pela Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro, processo venha a ficar sujeita a prestação de declara-
e subsequentemente alterada), a propósito do crime ções num sentido ou noutro, em julgamento contra oura
de corrupção activa, cujos pressupostos assentam pessoa (co-arguido ou não)» («A Colaboração do Co-
no seguinte: -arguido na Fase de Investigação», in Direito da
Investigação Criminal e da Prova, Almedina, 2014,
(a) concordância do arguido;
página 231).
(b) ter o arguido denunciado o crime ou contri-
Assim, não podemos aderir à solução final acolhida
buído decisivamente para a descoberta da ver-
no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15
dade; e
de Abril de 2010, no qual estava em causa uma
(c) ser de prever que o cumprimento das suspensão provisória do processo de um arguido
injunções e regras de conduta responda sufi- que ficou, antecipadamente, sujeito a uma regra de
cientemente às exigências de prevenção que no conduta: manter a colaboração com as autoridades
caso se façam sentir. judiciárias ou policiais, durante a pendência do
processo, com vista à descoberta da verdade mate-
Os dois últimos pressupostos deste regime especial
rial (processo n.º 154/01.9JACBR.C1.S1, disponível
assumem maior relevância, no contexto do tema
em www.dgsi.pt).
em análise.
Neste Acórdão, foi reconhecido o seguinte quanto
A resposta à questão de saber se a suspensão provi-
à condição a que ficou sujeita a suspensão provisó-
sória pode ser sujeita à condição de o arguido incri-
ria do processo: «Não se pode dizer que seja uma
minar um co-arguido só pode ser negativa, uma vez
regra de conduta muito escorreita, do ponto de vista dos
que a suspensão provisória não pode fixar regras de
direitos fundamentais». Não obstante isto, esta
conduta que ofendam a dignidade do arguido, mes-
decisão entendeu não invalidar as declarações do
mo que seja obtido o seu consentimento para o
arguido a quem foi concedida a suspensão provisó-
efeito (artigo 281.º, n.º 4, do CPP, também aplicá-
ria, com fundamento de que este teria prestado
vel à suspensão provisória prevista para a corrup-
declarações nesta mesma qualidade – arguido –, e
ção activa prevista no artigo 9.º da Lei n.º 36/94). A
foi advertido que poderia recusar responder e, ain-
rejeição desta hipótese é consentânea com a razão
da assim, decidiu prestar declarações livremente.
de ser do citado artigo 126.º, n.os 1 e 2, do CPP.
Ora, o facto de se reconhecer que a assunção de um
De facto, a suspensão provisória do processo sujeita
compromisso formal do arguido no sentido de
à condição de o arguido incriminar outro arguido
«colaborar» (ou, diremos nós, delatar) não é «muito
faria com que as declarações do arguido premiado
escorreita do ponto de vista dos direitos fundamentais»
não fossem verdadeiramente livres e muito menos
é incompatível com a afirmação de que as declara-
voluntárias, o que ofenderia o princípio da dignida-
ções do delator no âmbito desta colaboração são
de da pessoa humana (artigo 1.º da CRP) e con-
livres e válidas. Esta conclusão está em frontal con-
substanciaria um método proibido de prova (cfr.
tradição com aquela premissa, o que determina a
artigo 126.º, n.os 1 e 2, do CPP e artigo 32.º, n.º 8,
incongruência do raciocínio em causa.
da CRP).
A questão em causa não pode ser solucionada atra-
A este respeito, Inês Ferreira Leite refere o seguinte:
vés do cumprimento de uma mera formalidade (a
«Igualmente vedada, está a realização de “acordos”
advertência formal de que o arguido não está obri-
entre o arguido e o MP, no sentido de ao mesmo ser
gado a prestar declarações), ignorando-se o fundo
aplicada uma medida de diversão processual “em tro-
do problema.
ca” de um depoimento contra co-arguidos na fase de
julgamento, sempre que a medida em questão esteja Existem, pelo menos, três aspectos que impõem a
condicionada à efectiva prestação do depoimento. (…) inadmissibilidade de a suspensão provisória do
a aplicação do arguido da suspensão provisória do pro- processo ficar sujeita à conduta de um arguido
cesso, prevista no art. 281.º do CPP, não pode ficar incriminar outro co-arguido, na medida em que
sujeita à condição - sob a forma de injunção - de que o viola a dignidade da pessoa humana e, em rigor,
mesmo venha a prestar depoimento contra um co- não promove a prestação de declarações livres na

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sua essência ou, pelo menos, suscita sérias dúvidas ou em geral, ofensa da integridade física ou moral das
a este respeito. pessoas».
Em primeiro lugar, se prestadas neste específico Portanto, quando se fala em proibir a utilização de
contexto, importa questionar até que ponto as coacção não se trata apenas de coacção física, mas
declarações do arguido contra outro co-arguido também – e obviamente – de coacção moral ou psi-
serão livres de uma perspectiva substancial. cológica. Está em causa não só uma proibição legal,
mas sobretudo constitucional (artigo 32.º, n.º 8, da
De um ponto de vista formalista, dir-se-ia que o
CRP), por ofender a dignidade da pessoa humana e,
arguido que beneficia da suspensão provisória assi-
por conseguinte, o princípio do Estado de Direito.
nou o respectivo termo de suspensão e, portanto,
prestou o seu acordo à condição de prestar decla- No específico contexto da suspensão provisória em
rações incriminatórias contra outro co-arguido. causa, a coacção moral consiste na condição ou
Nesta medida, as declarações que viessem a ser regra de conduta que foi dada a «escolher» ao
prestadas seriam voluntárias. Caso não se pretenda arguido de incriminar um ou mais co-arguidos, de
questionar o fundo do problema, dir-se-ia que forma a poder ver o seu processo arquivado (artigo
seria assim. 282.º, n.º 3, do CPP). Se o arguido não aceitar esta
condição, fica sujeito à «ameaça» de o processo
No entanto, a liberdade e a voluntariedade na pres-
prosseguir também quanto a ele.
tação de declarações do arguido a que a lei se
reporta não são apenas formais. Trata-se antes de Note-se que o tipo objectivo do crime de coacção
uma liberdade substancial ou material. contempla precisamente a acção de alguém cons-
tranger uma pessoa a um determinado comporta-
Quando se concede a alguém a possibilidade de
mento, por meio de uma «ameaça com mal impor-
«escolher» entre incriminar outrem e se livrar de
tante», não tendo que existir, necessariamente,
um «problema próprio» ou rejeitar fazê-lo, mas
violência (artigo 154.º, n.º 1, do Código Penal).
continuar com este «problema próprio» (que impli-
cará custos com a defesa, sujeição à pressão de Um dos critérios orientadores da definição concreta
enfrentar um processo criminal e até poder ser con- de coacção é o da «adequação da ameaça a constran-
denado a uma pena de prisão), será que está em ger o ameaçado a comportar-se de acordo com a exi-
causa uma escolha verdadeiramente livre ou, ao gência do ameaçante. Isto é, deverá considerar-se mal
invés, uma «escolha» condicionada? importante aquele mal que é capaz de fazer “dobrar” a
vontade do ameaçado. Há, portanto, que relacionar a
Esta questão pode ser colocada de um modo ainda
importância ou a gravidade do mal ameaçado com a
mais pertinente: será que quando os arguidos forem
exigência típica da adequação (imputação objectiva)
confrontados com esta «escolha», todos eles decidi-
deste a constranger o ameaçado» (Figueiredo Dias, in
rão de forma efectivamente livre ou, ao invés, esta-
Comentário Conimbricense do Código Penal - parte
rão condicionados?
especial, Tomo 1, Coimbra, 1999, página 358, e
Ainda que se admita que o voluntarismo de alguns Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7
arguidos pudesse ser livre e verdadeiro (o que se de Março de 2012, processo n.º 110/09.9TATCS.
afigura, no mínimo, duvidoso), será que todos os C1, disponível em www.dgsi.pt).
arguidos reagirão a esta «escolha» com um volun-
Assim, o fundo da questão consiste em saber se o
tarismo livre e esclarecido?
facto de um arguido se ver confrontado com a
Naturalmente que não, sobretudo nos casos em que «ameaça» de o processo prosseguir contra ele é
os arguidos estejam submetidos a uma maior pres- capaz de o fazer «dobrar», levando-o a incriminar
são e «tenham mais a perder» (independentemente outro co-arguido. Naturalmente, recorremos a este
das razões subjacentes a estas condicionantes parti- raciocínio de forma meramente analógica (e não
culares, sejam estas de natureza profissional, eco- por estar em causa o tipo legal de crime de coac-
nómica, mediática, reputacional, familiar ou qual- ção), na estrita medida em que o arguido premiado
quer outra). tem a possibilidade de evitar o que, para ele, seria a
concretização de um «mal importante»; ou seja, a
Em segundo lugar, conforme já referido, as provas,
continuação do processo-crime e a dedução de uma
directa ou indirectamente, obtidas mediante coac-
acusação.
ção são nulas, por força do artigo 126.º, n.º 1, do
CPP. Esta norma tem a particularidade de referir Em terceiro lugar, a liberdade e o voluntarismo do
que são nulas as provas obtidas mediante «coacção, arguido, neste específico contexto, não podem ser

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avaliados apenas no momento em que este presta o Com efeito, como ensina Germano Marques da Sil-
seu assentimento à suspensão provisória do processo, va ,«as injunções e regras de conduta oponíveis ao
mas devem-no ser também em todos os momentos arguido na suspensão provisória do processo são, de
em que as declarações sejam prestadas, independen- certo modo, medidas alternativas da pena e visam rea-
temente das fases processuais em que tenham lugar. lizar os mesmos fins, embora por outros meios menos
gravosos para o arguido. Não é isso, porém, que sucede
Isto porque, caso o arguido não cumpra as regras
nos casos em que a suspensão é, antes de tudo, um pré-
de conduta a que a suspensão provisória ficou
mio pela delação» («Bufos, infiltrados, provocadores
sujeita, o processo-crime prosseguirá contra aquele
e arrependidos», in Direito e Justiça, Revista da
(artigo 282.º, n.º 4 – al. a) do CPP).
Faculdade de Direito da Universidade Católica Por-
Assim, caso o arguido premiado com a suspensão tuguesa, Volume VII, Tomo 2, 1994, página 33).
não mantivesse o seu propósito de incriminar outro
Como é lógico, uma regra de conduta que vise que
arguido (mesmo que essa incriminação possa não
um arguido preste declarações incriminatórias con-
corresponder à verdade), aquele perderia o benefí-
tra um co-arguido não cumpre as exigências de
cio certo com que já teria sido premiado. É que, no
prevenção geral e especial sujeitas às finalidades
momento da efectiva prestação de declarações, a
das penas.
suspensão provisória já não é uma mera proposta
do Ministério Público ou um incentivo de desfecho Por tudo isto, afigura-se inadmissível que a sus-
incerto, mas sim uma salvação garantida, que o pensão provisória do processo fique sujeita à con-
arguido premiado sabe de antemão que apenas dição de o arguido prestar declarações incriminató-
depende da sua «mera» conduta em incriminar um rias contra outro co-arguido (seja directamente, seja
co-arguido. indirectamente, através da indicação de supostos
meios probatórios), porque, na sua essência, essas
Neste contexto, tem toda a pertinência questionar,
declarações não serão totalmente livres. Ou, pelo
novamente, o seguinte: no momento em que lhe
menos, sempre se suscitarão muitas dúvidas que
cabe incriminar o co-arguido e tendo já por certa a
assim seja.
sua «salvação», será que o arguido premiado não se
sentirá minimamente condicionado a incriminar o
co‑arguido?
Os mecanismos de delação premiada
Do ponto de vista formal e desligado do mais puro encapotada
instinto de «sobrevivência» egoístico, dir-se-á que
não, porque o arguido beneficiado sempre seria livre Conforme já referido, o mecanismo da delação pre-
para incumprir a regra de conduta e voltar atrás. miada é, indiscutivelmente, inadmissível à luz da
lei portuguesa. De outro modo, não se entenderia
No entanto, a natureza humana e a motivação sub-
que os adeptos deste mecanismo em Portugal recla-
jectiva de cada um (compreensível do ponto de vis-
mem uma alteração legislativa (isto sem prejuízo
ta emocional e psicológica) mostram o contrário:
de, mais adiante, importar apreciar a desconformi-
inexistentes ou muito raros seriam os casos em que
dade destes mecanismos face à CRP).
um arguido que teria como certo a sua «salvação»,
voltaria atrás no seu «compromisso» de incriminar Contudo, evidencia-se que certos mecanismos pro-
um co-arguido, ainda que o pudesse fazer formal- cessuais previstos na lei podem, por vezes, ser uti-
mente. lizados como verdadeiros instrumentos premiais
encobertos.
Portanto, a inadmissibilidade desta condição não
equivale a passar qualquer atestado de capacidade Embora contra a sua natureza e finalidade, na prá-
diminuída ao arguido premiado. Trata-se antes de tica, certos mecanismos previstos no CPP podem
analisar as verdadeiras circunstâncias ou condicio- ser aplicados para conceder um prémio ou, pelo
nantes que levam o arguido premiado a prestar menos, um tratamento privilegiado a arguidos ou
declarações (ou melhor, que o fazem «dobrar»), outras pessoas que deveriam ser arguidas (mas não
ainda que com o seu assentimento formal. são), como contrapartida da sua aparente colabora-
ção no processo (já se explicará mais adiante a
Por último, saliente-se também que a suspensão
razão da expressão «aparente colaboração»).
provisória sujeita à conduta de o arguido incrimi-
nar um co-arguido viola as finalidades subjacentes Esta circunstância torna-se ainda mais evidente
às penas, pelo que sempre seria inadmissível. quando, na fase de inquérito, a aplicação prática de

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certos mecanismos legais supõe um tratamento prática de crime» por parte de quem será ouvido, a
desigual face a outros arguidos «menos colaboran- constituição como arguido não pode ser omitida
tes» que contrariam a visão em construção da para abrir caminho a uma suposta colaboração.
investigação ou que, simplesmente, decidem exer- Um dos indícios da possível utilização premial des-
cer o direito ao silêncio consagrado no artigo 61.º, te mecanismo revela-se quando, no início do
n.º 1 - d), do CPP e que decorre do princípio da inquérito, uma pessoa é ouvida na qualidade de
presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2, da CRP). testemunha e não incrimina qualquer arguido, mas
Não se pretende aqui discutir se esta aplicação quando entretanto são carreados mais elementos
enviesada de certos mecanismos processuais se para o processo que podem implicar fundadas sus-
reflecte num número expressivo de casos. Aliás, peitas contra essa testemunha, esta volta a ser ouvi-
acredita-se que nem sequer é assim. No entanto, o da nesta qualidade e, desta vez, incrimina um ou
simples facto de se propiciarem situações em que, mais arguidos. Esta mudança súbita para um ímpe-
pelo menos, se suscitam sérias dúvidas a este res- to colaborador não pode ser ignorada na hora de
peito é, por si só, motivo de reflexão. avaliar a (i)legalidade da prova trazida para o pro-
cesso.
Avancemos, então, com alguns exemplos.
A omissão da constituição de uma pessoa como
Em primeiro lugar, atente-se no seguinte exemplo: arguido que o devesse ser é cominada com a impos-
apesar de os indícios já recolhidos poderem justifi- sibilidade de utilização da prova que daí resulte,
car que se interrogue uma certa pessoa como argui- quer se trate de prova obtida directamente (artigo
da, a sua audição como mera testemunha pode 58.º, n.º 5, do CPP), quer indirectamente (isto é,
constituir um caminho mais fácil para que esta pes- carreada na sequência e por força de elementos
soa «se sinta livre» e motivada para incriminar obtidos na inquirição da testemunha que deveria
outrem, como contrapartida de ela própria – a «tes- ser arguida), no quadro da tese dos frutos da árvore
temunha» – não enfrentar os inconvenientes de ser envenenada.
investigada (ou, em rigor, mais investigada) e acu-
sada. De resto, esta circunstância consubstancia um
método proibido de prova, por derivar de uma pro-
No entanto, a constituição de alguém como arguido messa – ou efectiva atribuição – de vantagem legal-
é um acto vinculado e obrigatório nas situações mente inadmissível (artigo 126.º, n.º 2 - al. e), do
previstas na lei (artigo 58.º, n.º 1, do CPP). CPP), o que é de conhecimento oficioso.
Desde logo, é obrigatória a constituição como Por conseguinte, qualquer arguido (sobretudo os
arguido quando corre inquérito contra «pessoa arguidos directamente afectados) tem legitimidade
determinada em relação à qual haja suspeita fundada para suscitar esta invalidade, não estando apenas
da prática de crime» e esta preste declarações no em causa aspectos jurídicos restritos à esfera da
processo (artigo 58.º, n.º 1 - al. a), do CPP). Este «testemunha» premiada, que, na maioria dos casos,
pressuposto foi introduzido pela Lei n.º 48/2007, não terá qualquer incentivo prático para requerer a
de 29 de Agosto, alterando o quadro legal anterior sua própria constituição como arguido. Antes pelo
em que a constituição como arguido se bastava com contrário.
a existência de um inquérito contra pessoa determi-
nada e esta prestasse declarações perante qualquer Não se pretende com isto dizer que aquele que, na
autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal. qualidade de testemunha, incrimina outrem, nunca
o fará se for investido na qualidade de arguido. No
Naturalmente, pode suceder que a avaliação da entanto, nestes casos, as declarações incriminató-
existência, ou não, de «suspeita fundada da prática rias de um arguido relativamente a um co-arguido
de crime» pela pessoa que se pretende ouvir não serão valoradas de outra forma, desde logo, no que
seja um juízo isento de dúvida ou controvérsia. No diz respeito à menor credibilidade de quem as pro-
entanto, estas dúvidas não podem ser resolvidas em feriu (artigo 127.º, do CPP).
função do teor das declarações que a pessoa ouvida
É que, como foi salientado no Acórdão do Tribunal
esteja disposta a prestar, nomeadamente se estas
da Relação do Porto, de 5 de Fevereiro de 2014:
declarações forem convenientes à incriminação de
«Aquilo que pode minar a força probatória das decla-
certos e determinados arguidos.
rações do co-arguido é uma suspeição, baseada no inte-
Por maioria de razão, quando não haja qualquer resse pessoal que o declarante pode ter no resultado da
dúvida quanto à existência de «suspeita fundada da sua própria declaração: o arguido incrimina o outro

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para se defender (“não fui eu, foi ele”) ou para dividir diversas circunstâncias (raciocínio que, aliás, é fre-
a sua responsabilidade (“não fui apenas eu, fomos os quentemente utilizado para efeitos muito mais gra-
dois”)» (processo n.º 1/07.8GASTS.P1, disponível vosos). Por exemplo, não pode ser totalmente igno-
em www.dgsi.pt). rada a circunstância de um arguido, que antes se
recusou a prestar declarações e foi sujeito a uma
É, precisamente, por este motivo que a utilização
medida privativa da liberdade, subitamente se pre-
enviesada destes mecanismos processuais leva a uma
dispor a incriminar outrem num curto espaço de
«aparente colaboração», já que o interesse egoístico e
tempo e, neste contexto, o seu estatuto coactivo for
a reduzida credibilidade de quem depõe dificilmente
favoravelmente alterado.
conduzirão à descoberta da verdade dos factos.
Naturalmente, esta circunstância pode não signifi-
Em segundo lugar, outro exemplo sensível que
car, por si só, que a alteração do comportamento
pode levar ao encobrimento da utilização de um
do arguido foi fruto de uma contrapartida premial.
verdadeiro instrumento premial ainda no decurso
do inquérito tem a ver com o estatuto coactivo dos No entanto, tal mudança de comportamento –
arguidos, oscilando-se entre um tratamento mais acompanhada da alteração das medidas de coacção
favorável na aplicação de medidas de coacção ou – deve ser enquadrada em diversos factores que
medidas mais gravosas, consoante os arguidos este- têm de ser ponderados de forma conjugada para
jam, ou não, dispostos a «colaborar» na incrimina- avaliar se estamos perante um «prémio», como, por
ção de outros co-arguidos. exemplo: a «magnitude» da alteração do comporta-
mento do arguido, eventuais incoerências de dife-
A prova obtida através da utilização premial das
rentes declarações para o arguido se ajustar ao fito
medidas de coacção, enquanto contrapartida práti-
acusatório, eventual interesse do arguido premiado
ca de uma aparente colaboração, determina a sua
na incriminação de um co-arguido, período de
invalidade e é de conhecimento oficioso, porque
tempo entre as diferentes declarações do arguido
configura um método proibido de prova (artigo
premiado (ou entre o exercício do direito ao silên-
126.º, n.os 1 e 2, do CPP).
cio e a prestação de declarações) e, ainda, a oportu-
Desde logo, o facto de um arguido poder ser con- nidade da alteração das medidas de coacção, etc.
frontado, ainda que implicitamente, com uma
De um ponto de vista realista, jamais se encontrará
medida de coacção mais gravosa se não colaborar
num processo o reconhecimento explícito de que as
configura uma manifesta situação de coacção ou
medidas de coacção foram aplicadas de modo a pre-
ameaça com medida legalmente inadmissível (arti-
miar a colaboração do arguido, o que não significa
go 126.º, n.º 2 - als. a) e d), do CPP).
que, em certos casos, estes mecanismos não sejam
De outra perspectiva, a promessa de uma medida susceptíveis de ser utilizados com esta natureza.
de coacção mais leve ou mera sujeição a termo de
A verdade é que não é necessário que exista um
identidade e residência, em contrapartida de uma
reconhecimento expresso para se chegar a esta con-
colaboração que contribua para a incriminação de
clusão, até porque os factos – ainda que relativos a
um co-arguido, também constitui um método proi-
aspectos processuais – não podem ser apreciados
bido de prova, porquanto configura a promessa de
de uma perspectiva formalista. Caso contrário,
uma vantagem legalmente inadmissível (artigo
fechar-se-ia a porta, mas deixar-se-ia a janela aberta
126.º, n.º 2 - al. e), do CPP).
para utilizar métodos de prova proibidos.
Sucede que a demonstração da utilização das medi-
Em síntese, é verdade que, na prática, a identifica-
das de coacção como um inadmissível instrumento
ção da utilização de certos mecanismos processuais
premial se depara com sérias dificuldades de prova.
como verdadeiros instrumentos premiais envolve
E, desde logo, não se espere que exista uma prova
muitas dificuldades. No entanto, esta circunstância
directa, porque naturalmente não constará do pro-
não pode levar a que este problema seja ignorado.
cesso o reconhecimento expresso de que determina-
do arguido apenas ficou sujeito a termo de identida-
de e residência ou a uma outra medida de coacção
A rejeição da delação premiada para o
menos gravosa, como contrapartida da colaboração
futuro
prestada na incriminação de um co-arguido.
A aferição desta utilização inadmissível das medi- Do lado da investigação criminal, têm aparecido
das de coacção terá de resultar da conjugação de vozes de apoio à consagração de um mecanismo de

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ARTÍCULOS 23

delação premiada na lei portuguesa, pese embora colaboração, é substancialmente diferente da dela-
não definam os contornos específicos do modelo ção premiada.
vago e abstracto que defendem (alguns destes
A título de exemplo, nos casos dos crimes de rece-
apoiantes apenas ressalvam que não pretendem a
bimento indevido de vantagem e corrupção passiva
importação da delação premiada prevista no siste-
ou activa (artigos 372.º a 374.º do CP), o agente
ma brasileiro).
que praticou o crime «pode ser» dispensado da
Contra as críticas que, geralmente, são apontadas pena sempre que tiver denunciado o crime em 30
aos mecanismos de delação premiada, os apoiantes dias após a prática do acto relevante e sempre antes
deste instituto apontam os seguintes aspectos: da instauração do inquérito-crime, desde que
voluntariamente restitua a vantagem ou, tratando-
(a) a delação premiada não se afiguraria incons-
-se de coisa fungível, o seu valor (artigo 374.º-B,
titucional, desde logo, porque a lei portuguesa
n.º 1 - al. a), do CP).
já prevê certos mecanismos que beneficiam o
arguido pela sua colaboração no processo; Esta situação pressupõe que o agente actue com um
arrependimento sincero e não guiado, em primeira
(b) não se pretenderá consagrar a delação pre-
linha, por um qualquer interesse egoístico no sen-
miada, enquanto mero meio de prova (isto é, as
tido de atirar de responsabilidade para outros agen-
próprias declarações do arguido), mas também
tes, porque a colaboração apenas valerá para a dis-
enquanto um método de obter outras provas,
pensa da pena se for feita, numa altura em que o
que poderão ser trazidas para o processo por
risco de o arguido ser descoberto é, em regra, dimi-
indicação do arguido;
nuto, já que decorreu pouco tempo desde o crime
(c) sem a delação premiada, a investigação não e nem sequer há processo.
terá meios suficientes e adequados para desco-
Portanto, em princípio, o arguido não se sentirá
brir a verdade dos factos, nomeadamente nos
compelido ou pressionado a colaborar para se sal-
casos complexos de criminalidade económico-
var, a todo o custo. Por outras palavras, se o argui-
financeira.
do colaborar, em princípio, fá‑lo-á livremente e
No entanto, estas razões invocadas pelos apoiantes porque tem um arrependimento sincero, o que
da delação premiada assentam em pressupostos inclusivamente lhe confere maior credibilidade. Até
errados e, além disso, batem de frente com princí- porque, quando o arguido denuncia o crime, em
pios fundamentais previstos na CRP. princípio, nem sequer saberá se existe, ou não, um
inquérito-crime relativo aos factos que denunciará.
Aliás, tudo o que acima já foi dito quanto à inad-
Assim, em rigor, quando se faz a denúncia, o argui-
missibilidade, do ponto de vista dos princípios fun-
do não terá a certeza que beneficiará da dispensa de
damentais, de sujeitar a suspensão provisória do
pena.
processo à condição de o arguido «premiado»
incriminar outro co-arguido determina, igualmen- De facto, como salienta Germano Marques da Silva,
te, a inadmissibilidade da delação premiada face à «Aquele que erra e se arrepende merece ter um trata-
CRP. mento penal mais favorável, enquanto o arrependimen-
to deva ser considerado como um primeiro passo passa
Nesta perspectiva, grande parte da essência do pro-
a sua conformação aos valores que as leis consagram e
blema já foi analisada acima. Assim, será interes-
tutelam, enquanto o arrependimento representa para a
sante avaliar a questão de outro ponto de vista, em
sociedade a esperança de que aquele seu membro não
particular por referência aos três argumentos acima
mais a afrontará pela via do crime, ou constitui, pelo
referidos que, frequentemente, são invocados pelos
menos, um voto de confiança na pessoa e no arrependi-
apoiantes da delação premiada.
mento como meio de recuperação: está desde então
Em primeiro lugar, é verdade que a lei penal (quer atingida uma das finalidades da pena criminal. Não
o Código Penal, quer a legislação especial) prevê assim quanto o “arrependimento” nada representa de
certos mecanismos que poderão levar – sublinhe-se vontade de conformação com a lei, mas traduz tão-só a
o «poderão» – à atenuação ou mesmo à dispensa de exteriorização de pusilanimidade e de traição» (ob. cit.,
pena, caso o arguido tenha colaborado na desco- página 32).
berta da verdade.
Contrariamente, na maioria das delações premia-
No entanto, a essência dos casos previstos na lei, das, o agente vê-se confrontado pelas autoridades
em que o arguido pode ser beneficiado pela sua com indícios contra ele ou antevê essa possibilida-

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de como muito próxima ou provável e, portanto, pressupostos, no caso do terrorismo, a pena tam-
sente-se compelido a colaborar em troca de uma bém pode ser especialmente atenuada ou a punição
salvação certa de antemão ou uma atenuação da pode nem sequer ter lugar (artigo 2.º, n.º 5, da Lei
pena determinada quando se firma o acordo de de Combate ao Terrorismo, aprovada pela Lei n.º
delação, que lhe confere um «direito contratual- 52/2003, de 22 de Agosto).
mente vinculado» e certo.
No entanto, em todos estes casos, quando o agente
O carácter certo (a que subjaz um conhecimento decide colaborar, fá-lo-á de forma livre e tudo
antecipado) ou incerto do benefício da colaboração aponta para um arrependimento sincero, porque
pode, de facto, marcar a diferença entre uma cola- não tem garantia certa e antecipada que, no final do
boração livre ou não. Saliente-se que o facto de julgamento, o Tribunal considerará que a sua cola-
haver consentimento formal do arguido na delação boração preencheu os conceitos gerais e abertos
não a torna, necessariamente, livre, porque ao previstos na lei quanto à prestação de um auxílio
assentimento aparente pode não corresponder uma «na recolha da provas decisivas» para a identificação
escolha inteiramente voluntária na sua essência. ou captura de outros responsáveis. Com efeito, o
Como já salientado, a prestação de declarações do Tribunal pode vir a entender que as provas cuja
arguido que não seja livre ofende o princípio da recolha o arguido auxiliou não levou à identificação
dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP) e ou captura de outros responsáveis ou que, apesar
consubstancia uma ofensa à integridade moral da da sua identificação ou captura, as provas recolhi-
pessoa e, como tal, é a própria CRP que determina das em função do auxílio do agente do crime não
a nulidade da prova assim obtida (artigo 32.º, n.º 8, foram «decisivas».
da CRP). Ou seja, ainda que o auxílio do agente colaborador
Deste modo, a delação premiada não é vedada ape- seja apreciado de acordo com um juízo de progno-
nas por uma mera barreira legal, mas também e se póstuma (colocando-se o juiz à data e no contex-
sobretudo por se afigurar inconstitucional. Este é, to em que o auxílio foi prestado e, desta perspecti-
de facto, o ponto nevrálgico da questão. va, avaliar se este seria adequado a ser decisivo e
levar à identificação ou captura de outros responsá-
Neste sentido, no Acórdão do Supremo Tribunal de veis), tal não assegura ao arguido colaborador um
Justiça, de 12 de Março de 2009, foi referido o prémio certo e antecipado antes do julgamento e,
seguinte: «Assumindo uma configuração de verdadeiras nesta medida, a colaboração será, em princípio,
“garantias de processo criminal” as denominadas “proi- livre na sua essência.
bições de prova” constituem concretizações processuais
de direitos fundamentais (…). Em última instância, está Por tudo isto, o argumento de que a lei já prevê
em causa a tutela de direitos pessoais que se reconduzem mecanismos que beneficiam o arguido colaborador
à dignidade da pessoa humana - princípio transversal da não colhe para defender a consagração da delação
ordem jurídica com raiz na consciência colectiva» (pro- premiada, na lei portuguesa.
cesso n.º 09P0395, disponível em www.dgsi.pt). Em segundo lugar, em consequência do que se aca-
Por outro lado, ainda nos casos de corrupção no ba de dizer, a credibilidade das declarações do
sector público, a lei prevê que a pena é especial- arguido, ao abrigo de um mecanismo de delação
mente atenuada se o agente, até ao final do julga- premiada, estará irremediavelmente afectada, para
mento em 1.ª Instância, auxiliar concretamente na não dizer que é inexistente.
obtenção ou produção das provas decisivas para a Aliás, se já é assim quando estão em causa declara-
identificação ou a captura de outros responsáveis ções de co-arguido em geral (sem qualquer contra-
(artigo 374.º-B, n.º 2 - al. a), do CP). partida garantida) e no caso dos aludidos mecanis-
De resto, também para o crime de branqueamento mos de dispensa ou atenuação de pena hoje
e certos crimes previstos na Lei de Combate à Cor- previstos na lei, então imagine-se nos casos de dela-
rupção e Criminalidade Económico-Financeira, se ção premiada, em que o arguido colaborador se
prevê que a pena pode ser especialmente atenuada sentirá compelido, a troco da salvação certa ou de
se o agente do crime «auxiliar concretamente na um generoso benefício assegurado de antemão, a
recolha das provas decisivas para a identificação ou a incriminar os co-arguidos quer pelos eventuais cri-
captura de outros responsáveis» (artigo 368.º-A, n.º mes que estes terão cometido, quer pelos crimes
9, do CP e artigo 8.º da Lei n.º 36/94, de 29 de que estes não terão cometido. É que quanto maior
Setembro). Mediante a verificação dos mesmos for a delação, maior será o prémio.

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ARTÍCULOS 25

A este propósito, mesmo quanto aos mecanismos Por outro lado, o direito ao silêncio do arguido
de dispensa ou atenuação de pena em vigor actual- impossibilita a certeza de que o arguido premiado
mente, recorde-se que o já citado Acórdão do Tri- se submeterá ao contraditório da defesa. Aliás,
bunal da Relação do Porto, de 5 de Fevereiro de actualmente, não podem valer como meio de prova
2014, sublinhou o seguinte: «Aquilo que pode minar as declarações de um arguido em prejuízo de outro
a força probatória das declarações do coarguido é uma quando o declarante se recuse a responder a per-
suspeição, baseada no interesse pessoal que o declaran- guntas formuladas pela defesa do arguido prejudi-
te pode ter no resultado da sua própria declaração cado (artigo 345.º, n.º 4, do CPP).
(…). Pode ainda ter um interesse geral de pseudocon-
Estas circunstâncias levam I nês F erreira L eite a
tribuição para a descoberta da verdade, com eventual
pugnar pelo diminuto valor probatório das declara-
peso atenuativo na escolha e medida da sua pena»
ções do co-arguido, nos seguintes termos: «tratan-
(processo n.º 1/07.8GASTS.P1, disponível em
do-se de declarações não ajuramentadas, prestadas
www.dgsi.pt).
com limitação do contraditório e por pessoa com inte-
Nesta sede, note-se que a (des)credibilidade das resse pessoal na causa e especialmente vulnerável a
declarações do co-arguido premiado não pode ser situações de intimidação, estas nunca poderão funda-
analisada de forma desligada da questão relaciona- mentar, de modo exclusivo, uma decisão condenatória
da com o valor probatório das declarações do co- para os restantes arguidos», (in «Arrependido»: A
-arguido em geral (não premiado). Colaboração Processual do Co-arguido…, ob. cit.,
página 406).
A este respeito, Teresa Pizarro Beleza defende o
seguinte: «É meu entendimento, como disse, que não Neste contexto, Teresa Pizarro Beleza vai mais lon-
obstante a regra geral da livre apreciação dos meios de ge, defendendo a ilegalidade e inconstitucionalida-
prova, se pode retirar da regulamentação da lei portu- de da valoração do depoimento de um arguido
guesa uma ideia de diminuída credibilidade do depoi- contra co-arguidos, com base no seguinte: «O
mento do co-arguido, o que em alguma medida “afecta” depoimento de co-arguido, não sendo, em abstracto,
aquela liberdade de convicção (…). Ainda que não se uma prova proibida em Direito português, é no entanto
trate, claramente, de um meio de prova em abstracto um meio de prova particularmente frágil, que não deve
proibido (…) trata-se, em meu parecer, de uma prova ser considerado suficiente para basear uma pronúncia;
que merece reservas e cuidados muitos especiais na sua muito menos para sustentar uma condenação. Não ten-
admissão e valor, dada a sua fragilidade» («“Tão ami- do esse depoimento sido controlado pela defesa do co-
gos que nós éramos”: o valor probatório do depoi- -arguido nem corroborado por outras palavras, a sua
mento de co-arguido no Processo Penal Portu- credibilidade é nula. Na medida em que esteja total-
guês», in Revista do Ministério Público, Lisboa, 19, mente subtraído ao contraditório, o depoimento de co-
n.º 74, 1998, páginas 48 e 49; no mesmo sentido, -arguido não deve constituir prova atendível contra o(s)
Inês Ferreira Leite, «Arrependido»: A Colaboração co-arguido(s) por ele afectado(s)» (ob. cit. página 57).
Processual do Co-arguido…, ob. cit., página 406).
Como é evidente, as fragilidades associadas à valo-
As reservas associadas ao valor probatório das ração do depoimento de co-arguidos são potenciadas
declarações do co-arguido derivam, desde logo, do no caso em que as declarações de um dos co-argui-
facto de, por força do princípio da não auto-incri- dos são prestadas ao abrigo de um acordo de delação
minação, os arguidos nunca prestarem juramento premiada.
aquando da prestação de declarações (artigo 140.º,
É neste contexto que se adverte que grandes dela-
n.º 3, do CPP). Assim, as declarações daqueles
ções podem conduzir a grandes absolvições. De
revelam uma menor garantia de veracidade face às
facto, as acusações construídas sobre delações pre-
declarações de uma testemunha (esta sim, sujeita a
miais deparar-se-ão com um problema de falta de
juramento e à cominação prevista na lei para a fal-
credibilidade na hora da decisão final, dando lugar
sidade de declarações).
à absolvição dos arguidos, desde logo, porque não
Acresce que, em caso de declarações de co-arguido, será lograda prova para além da dúvida razoável.
o direito ao contraditório é notoriamente limitado. Afinal, uma delação premial não deixa, na sua ver-
Por um lado, os defensores dos demais co-arguidos são mais elementar, de ser um acordo com um cri-
não podem formular directamente perguntas ao minoso que, na prática, reconhece que cometeu um
arguido declarante, tendo de solicitar que as mes- crime. Portanto, a opção pela delação premiada
mas sejam formuladas pelo Juiz (que decide, ou leva o Estado a assumir que está disposto a «assinar
não, formulá-las; cfr. artigo 342.º, n.º 2, do CPP). contratos» com o agente que praticou um crime e,

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por isso, reconhecidamente actuou contra a lei pendente e terceiro relativamente às partes. Ora, é
penal. precisamente o papel central do juiz que a justiça nego-
ciada põe em crise, relegando-o para mero “homologa-
Quanto a este aspecto, Anabela Rodrigues refere o
dor” do acordo já estabelecido entre o Ministério Públi-
seguinte: «a opção do processo penal português por
co e o arguido, ou, talvez pior ainda, convertendo-o
ideias como o consenso não foi fruto ocasional ou de
num “promotor” de um acordo ainda não alcançado.
uma intenção desesperada de atacar estrategicamente Em qualquer dos casos, o seu papel de decisor impar-
problemas característicos do nosso tempo, como a len- cial, supra-partes, é completamente desvirtuado. Os
tidão da justiça ou a massificação de determinadas for- seus poderes transferem-se, em grande medida, para o
mas de delinquência. (…) O que não significa que o Ministério Público, assim se administrativizando o pro-
processo penal fique inteiramente nas mãos das partes. cesso» («Justiça Negociada: Do Logro da Eficiência
Nem o processo penal se estrutura em termos de con- à Degradação do Processo Equitativo», in Julgar,
sensualidade absoluta, nem isso seria tão-pouco desejá- N.º 19, Coimbra editora, 2013, p. 94).
vel» («Celeridade e eficácia: uma opção político-
-criminal» in Estudos em Homenagem ao Professor Assim, as declarações do arguido a coberto do ins-
Doutor Jorge Ribeiro de Faria, Coimbra, 2003, pági- tituto de delação premiada acarretam problemas
nas 42 e 43). sérios não só quanto à falta de credibilidade que
contamina a investigação, mas também em sede de
Este ponto suscita, ainda, uma questão de (in)cons- inconstitucionalidade.
titucionalidade, à luz do n.º 5 do artigo 32.º CRP,
que consagra que «o processo tem estrutura acusató- Deste modo, o argumento dos apoiantes da delação
ria». premiada no sentido de que a delação premiada
não teria como propósito único a obtenção de
A este respeito, Mafalda Santos adverte para «o fac- declarações incriminatórias do arguido premiado
to de o instituto da delação premiada e os seus mecanis- contra outro co-arguido, mas também que aquele
mos colaboracionistas poderem trazer riscos a um indicasse outro tipo de provas ou forma de as obter
modelo de matriz acusatória mista, uma vez que intro- cai por terra. A prova que pudesse ser obtida na
duzem momentos tipicamente inquisitórios, nomeada- sequência e por força da delação premiada também
mente a celebração de um acordo entre o Ministério seria inválida à luz da teoria dos frutos da árvore
Público e o arguido que não é conhecido, valorado ou envenenada, uma vez que seriam obtidas à custa da
sujeito ao contraditório» (in O Direito Premial no ofensa da integridade moral, que o mecanismo da
Combate ao Crime de Corrupção, Universidade Cató- delação premiada supõe (neste sentido, Inês Ferrei-
lica, 2013, página 13; cfr., ainda, F rederico de ra Leite, «Arrependido»: A Colaboração Processual
Lacerda Costa Pinto, in Direito Processual Penal - do Co-arguido…, ob. cit., páginas 394 e 395).
Curso Semestral, Associação Académica da Faculda-
de de Direito, 1998, páginas 216 a 219). Acresce que, em diversos casos, a prova obtida com
a colaboração do arguido a coberto da delação pre-
De resto, os mecanismos de delação premiada miada seria contaminada pela falta de credibilidade
podem provocar alterações à verdade processual do arguido. A título de exemplo, no caso de prova
que, num sistema que se rege pelo princípio do documental, os documentos entregues pelo próprio
acusatório, implica que a verdade seja obtida arguido colaborante sempre suscitariam, muito
mediante uma interacção justa entre a acusação e a provavelmente, sérias dúvidas quanto à sua auten-
defesa, com a intervenção do tribunal, em confor- ticidade, para além de que a sua contextualização
midade pelo princípio de due process. Ora, confor- ficaria dependente das declarações do próprio
me refere Mafalda Santos, «a introdução de mecanis- arguido colaborante.
mos colaboracionistas típicos do direito premial
permitirá a criação de acordos entre o Ministério Públi- Ainda a este respeito, a abertura da porta à delação
co e o arguido que fugiram ao controlo do tribunal, premiada levaria, certamente, a potenciar evidentes
hipotecando a dialéctica acusação-juiz-defesa» (ob. cit., abusos quanto à conjugação das declarações incri-
minatórias do arguido premiado com o recurso às
página 13).
famigeradas regras da «experiência comum» ou
Precisamente por este motivo, o Juiz Conselheiro «máximas da experiência» (e mesmo às máximas
Eduardo Maia Costa, alerta para o perigo de os da «experiência especializada»), com o propósito
acordos de sentença infligirem ao processo equita- de corroborar as declarações do arguido premiado
tivo «lesões tão profundas que o atingiriam no seu cer- ou melhor colmatar a sua falta de credibilidade. No
ne, de que faz parte, como figura central, o juiz inde- entanto, a «experiência comum» não constitui um

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ARTÍCULOS 27

meio de prova em si, mas um mero método de ava- mento de Capitais, aprovada pela Lei n.º 83/2017,
liação da prova. Assim, as regras da «experiência de 18 de Agosto).
comum» nunca poderiam ser mobilizadas para col-
Por fim, a delação premiada suscita reacções nega-
matar os buracos das declarações incriminatórias
tivas no sentido de este mecanismo poder gerar
do arguido premiado da restante prova contamina-
desigualdades entre arguidos, na negociação dos
da que poderia advir daí.
próprios instrumentos de delação premiada.
Em terceiro lugar, não tem acolhimento o argumen-
to dos apoiantes da delação premiada no sentido de A este respeito, Renata Rodrigues Abreu Ferreira
que, sem este mecanismo, a investigação não teria sublinha o seguinte: «Ainda que se alegasse que a
meios suficientes para descobrir a verdade dos fac- solicitação da iniciativa do entendimento pudesse partir
tos, nomeadamente nos casos complexos de crimi- de qualquer das entidades que do acordo devam obriga-
nalidade económico-financeira. toriamente participar – incluindo-se, aqui, o arguido -,
isso não supriria a possibilidade deste ser negado por
Isto não corresponde à verdade, até porque a práti- qualquer das outras partes, especialmente em se consi-
ca tem demonstrado que a criminalidade económi- derando o vácuo legislativo, fazendo com que os acor-
co-financeira é das áreas mais férteis na produção dos fossem praticados em alguns tribunais e noutros
de elementos documentais e informáticos, os quais não» («Acordos sobre a sentença em processo
podem ser obtidos através de buscas e apreensões e penal. Uma análise sob a perspectiva jurídico-cons-
sindicados até ao ínfimo detalhe, nomeadamente titucional e processual penal», in Revista Portuguesa
através de perícias no que diz respeito a ficheiros e de Ciência Criminal, Ano 26, N.os 1 a 4, IDPEE – Ins-
trocas de e-mails, que deixam um histórico, que a tituto de Direito Penal e Económico e Europeu, Jan-Dez
evolução informática tem permitido reconstruir. 2016, página 427).
Por outro lado, a evolução positiva assinalável dos Como explica esta Autora, a questão da (des)igual-
mecanismos de cooperação internacional permite, dade pode ainda ser perspectivada do ponto de vis-
na grande maioria dos casos, coligir elementos pro- ta do tratamento processual oferecido ao arguido
batórios com grande eficácia e rapidez. Além das que confessa, no contexto de um acordo, em con-
tradicionais cartas rogatórias, a criação de equipas traposição ao tratamento oferecido ao arguido que
de investigação conjuntas entre autoridades de o faz sem qualquer acordo subjacente (R enata
diferentes jurisdições permite a comunicação de Rodrigues Abreu Ferreira, ob. cit., páginas 429 e
elementos de prova quase em simultâneo – ou mes- 430).
mo em simultâneo – com a sua obtenção (cfr. artigo
13.º, n.º 1 - alíneas a) e b), da Convenção relativa Nesta sede, Anabela Rodrigues alerta ainda para o
ao auxílio judiciário mútuo em matéria penal entre seguinte: «a liberdade para negociar é mais ilusória do
os Estados-Membros da União Europeia, de 29 de que real. Longe de contribuírem para a igualdade das
Maio de 2000, ratificada pelo Decreto do Presiden- partes, estes processos negociados reforçam a desigual-
te da República nº 53/2001, de 16 de Outubro, e dade, já que “o contrato é também o instrumento privi-
na Decisão-Quadro 2002/465/JAI, de 13 de Junho legiado de domínio do forte sobre o fraco”. Um proble-
de 2002, e artigos 145.º, 145.º-A e 145.º-B, da Lei ma crucial em todos os sistemas que conhecem este tipo
de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria de justiça negociada é o da qualidade da defesa e das
Penal, aprovada pela Lei n.º 144/99, de 31 de Agos- possibilidades que o arguido tem de beneficiar de um
to). De resto, a constituição destas equipas no advogado de qualidade. (…) o “prémio” que se oferece
âmbito da União Europeia beneficia da experiência ao arguido para o incentivar a que renuncie ao proces-
e coordenação da Eurojust. so comum não tem correspondência, nem com a gravi-
dade do crime (…), nem tão pouco com exigências de
Por fim, os mecanismos de prevenção de branquea- prevenção especial, porque a renúncia do arguido ao
mento de capital e financiamento ao terrorismo processo comum não reflecte qualquer adaptação social,
hoje implementados a nível internacional consti- mas apenas um desejo geral de rapidamente “ajustar as
tuem meios muito eficazes no combate à criminali- suas contas” com a justiça» (in Estudos em Homena-
dade económico-financeira, contando, desde logo,
gem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria, «Cele-
com o facto de as instituições financeiras cumpri-
ridade e eficácia: uma opção político-criminal»,
rem procedimentos de Know Your Costumer e Know
Coimbra, 2003, página 51).
Your Transactions, bem como os deveres de comuni-
cação e abstenção de realizar operações suspeitas Todos estes factores contribuem para uma clara
(entre nós, previstos na Lei de Combate ao Branquea- rejeição da delação premiada, quer do ponto de vis-

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28 Actualidad Jurídica Uría Menéndez / ISSN: 2174-0828 / 46-2017 / 15-28

ta constitucional, quer do ponto de vista da desco- À luz do direito constituído, não restam dúvidas de
berta da verdade e credibilidade da Justiça. que as provas obtidas mediante um acordo de dela-
ção premiada – quer as declarações propriamente
ditas, como as obtidas na sequência da delação –
Conclusão serão nulas, por força do artigo 126.º, n.os 1 e 2, do
CPP, mesmo quando esta delação premiada é levada
À luz da legislação vigente, o recurso ao instituto da a cabo, de forma encoberta, pela utilização ilegal de
delação premiada, na vertente contratual ou nego- mecanismos previstos no CPP.
cial, não é permitida. E, salvo melhor opinião, a Por fim, e sendo natural que a ideia da delação pre-
delação premiada deve, mesmo de iure condendo, miada seduza os investigadores, a reduzida credibi-
ser rejeitada, por violação dos princípios funda- lidade das declarações do arguido premiado condu-
mentais consagrados na CRP, desde logo, dos prin- ziria, na maior parte das vezes, à absolvição dos
cípios da dignidade da pessoa humana e do Estado demais co-arguidos, desde logo, por não ser logra-
de Direito. da prova para além da dúvida razoável.

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