Está en la página 1de 16

221

Uma Cozinha Portuguesa, com certeza: A ‘Culinária Portuguesa’ de António Maria


de Oliveira Bello1
GUERREIRO, Fábio José Banza2

RESUMO: Em Portugal, a partir do século XIX, começou a emergir uma cozinha nacional,
pela valorização dos produtos do país. No entanto, as obras de culinária continuaram a
ter uma grande influência estrangeira, especialmente francesa. A cozinha regional
emerge na centúria seguinte potenciada pela melhoria das condições de vida, pelo
desenvolvimento dos meios de comunicação e locomoção (com o aparecimento dos
comboios, dos barcos a vapor e dos carros), pelo progresso das práticas de lazer e
turismo. Paralelamente, dá-se a emergência de um novo regime político, que valorizou as
especificidades locais e regionais. É neste contexto que, em 1936, nasceu a Culinária
Portuguesa, de António Maria de Oliveira Belo – o primeiro livro que tenta abarcar toda a
cozinha portuguesa, com distinções entre pratos nacionais e regionais.

Palavras-chave: Gastronomia Regional; Gastronomia Nacional; Culinária Portuguesa.

A Portuguese kitchen, for sure: ‘Culinária Portuguesa’3 by António Maria de


Oliveira Bello
ABSTRACT: In Portugal, from the 19th century, a national cuisine starts to emerge due
to national products appreciation. Nonetheless, the culinary works continue to have a
big foreign influence, particularly from France. In the next century, a regional cuisine
starts to rise and was enhanced due to an improvement of the living standards, like the
development of mass media and transportation (the rise of the trains, steamboats and
cars), development of the practices of leisure and tourism. Besides that, a rise of a new
political system promoted the local and regional characteristics. It is in this context that,
in 1936, „Culinária Portuguesa‟ was born, by António Maria de Oliveira Bello - The first
book that tries to cover all the Portuguese cuisine, separating the national dishes from
the regional ones.

Keywords: Regional Gastronomy; National Gastronomy; Portuguese Cuisine.

BREVE INTRODUÇÃO: DA DIETÉTICA À GASTRONOMIA REGIONAL


Na Europa, até ao séc. XVI, a culinária tinha, essencialmente, uma
preocupação dietética, tendo em conta as conceções médicas em vigor desde a
Antiguidade, o objetivo era tornar os alimentos digestivos. Por isso, a preocupação
dietética tinha uma razão de ser ligada à robustez, em que o desejável era comer
1
À Professora Doutora Isabel Drumond Braga, com a maior amizade e admiração.
2
Investigador do Centro de História da Universidade de Lisboa (CH-ULisboa); Mestrando de História
Medieval (2016 – 2018), na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
E-mails: fabioguerreiro@campus.pt; fabiobanzaguerreiro@gmail.com
3
In English: „Portuguese Cuisine‟.

Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.8, nº15, jul-dez, 2018. p. 221-236 ISSN:2238-1651
222
alimentos que fizessem bem à saúde. No entanto, a partir da centúria de seiscentos,
este entendimento começou lentamente a alterar-se, com a valorização do gosto –
compreenda-se, do ótimo sabor –em detrimento das razões de saúde. Nascia, assim, a
gastronomia (FLANDRIN, 2001, p. 261-278) – “a pseudociência do bem comer que
visava cuidar dos homens com a melhor, leia-se a mais saborosa, alimentação
possível.” (BRAGA, 2014, p. 132). No entanto, importa referir que a designação de
gastronomia só se irá implementar no século XIX, com um significado mais amplo,
tendo em conta o gosto e a apresentação dos pratos, num claro apelo a todos os
sentidos gustativos. (DROUARD, 2007, p. 264).

O NASCIMENTO DAS COZINHAS NACIONAIS


Sabemos que os primeiros livros de cozinha portugueses (RÊGO,1988) – assim
como os europeus –, não privilegiavam um receituário de matriz nacional e regional,
pelo que a identidade culinária (SCHOLLIERS, 2001, p. 3-22) só ao longo dos séculos
se foi tornando algo concreto e visível nos livros de cozinha. Até então, especialmente
até ao século XVI, era comum, por toda a Europa, a existência de receituários com
procedências espaciais diversas, que continham as mesmas designações e conteúdos
similares (BRAGA, 2004a, p.133). Pelo que o objetivo não se centrava na valorização
da gastronomia de um espaço ou região, mas sim na sua universalização, pela procura
e implementação de experiências culinárias internacionais (BRAGA, 2014, p.133). Por
isso, os livros de cozinha portugueses denotam uma clara influência estrangeira
(BRAGA, 2004a, p.105).
Porém, alguns produtos alimentares, pela sua ótima qualidade, começaram a
aparecer com indicativos de localidade (FERRO, 1996, p.45). Em Portugal, na segunda
metade do século XVII, Domingo Rodrigues, na sua „Arte de Cozinha‟ (RODRIGUES,
1987), indicou o açúcar da Madeira, os mexilhões de Aveiro, o queijo e a farinha do
Alentejo, como sendo especialmente bons (BRAGA, 2014, p.133). Por sua vez,
Francisco Borges Henriques, autor de um receituário manuscrito da primeira metade do
século XVIII (Receita de milhores doces..., 1715; BRAGA, 2004b, p. 61-99) apresentou
as ameixas de Guadalupe, o café do Levante, o cacau das Índias de Castela, de
Curaçau, de Martinica e do Maranhão, assim como as passas de Corinto e as peras de

Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.8, nº15, jul-dez, 2018. p. 221-236 ISSN:2238-1651
223
Rio Frio. Já na segunda metade do século XVIII, Lucas Rigaud, no seu „Cozinheiro
moderno ou nova arte de cozinha‟ (RIGAUD, 1999), apontou como especialmente bons
os presuntos de Lamego e de Melgaço, e os bois da Beira. (BRAGA, 2014, p. 133-134).
Ao mesmo tempo que começaram a aparecer estes indicativos de localidade
associados à ótima qualidade dos produtos alimentares, começaram a surguir também
pratos com designações ao nível da nacionalidade – à portuguesa, à francesa, à
inglesa, et cetera – ou também, de quem inventou o prato ou o comeu – como é o caso,
dos pratos à Condé, ou à Colbert. (BRAGA, 2004a, p.104). E note-se que podem existir
pratos “à moda de”, que apenas combinam ingredientes e modos de preparação típicos
de um determinado local, sem que nesse mesmo local se faça aquele prato, como
também importa referir a existência de pratos “à moda de”, que são completamente
genuínos de um determinado espaço. De salientar que, a partir da segunda metade do
século XIX, as obras de culinária, começaram a apresentar em número crescente
pratos com designações especificas do país, numa manifestação identitária de
afirmação de uma cozinha nacional (BRAGA, 2014, p. 135-136). No entanto, as obras
culinárias ainda continham uma grande influência estrangeira, principalmente da
cozinha francesa4 (SOBRAL, 2014, p. 34).

O NASCIMENTO DAS COZINHAS REGIONAIS


Progressivamente, no final do século XIX e, especialmente, a partir do início do
século XX, desenvolveram-se as cozinhas regionais. Com a melhoria dos meios de
comunicação e locomoção, possibilitada pelo aparecimento dos comboios, dos barcos a
vapor e dos carros, como também de uma melhoria das condições de vida, o lazer e o
turismo ganharam novos horizontes. A Inglaterra foi a pioneira desta nova forma de
estar, que depressa se difundiu um pouco por toda a Europa. Em França, a partir da
década de 1920, aparecem os guias de viagem, que deram a conhecer itinerários e
regiões, com as suas especificidades autóctones, onde a culinária regional não foi
descurada. Mais tarde, apareceram os guias gastronómicos, com indicações sobre as
regiões e os produtos alimentares (BRAGA, 2014, p.136).

4
Exemplo disso será o livro „Culinária‟ (OLLEBOMA, 1928).

Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.8, nº15, jul-dez, 2018. p. 221-236 ISSN:2238-1651
224
Em Portugal, desde a segunda metade do século XIX, começaram a aparecer
manifestações de práticas turísticas que, crescentemente, foram potenciadas pelo
aparecimento de publicações como os guias de turismo. No entanto, estes continham
muito poucas referências à gastronomia regional. Já no que se refere aos livros de
cozinha, apesar de privilegiarem uma cozinha nacional, com referencias a pratos à
portuguesa, começaram timidamente a aparecer alguns pratos marcadamente
regionais.
A cozinha regional desenvolveu-se de forma progressiva no século XX e, em
especial, a partir da década de 1930. Devido ao golpe de 28 de Maio de 1926, que
permitiu a instauração da ditadura, a década de 1930 da sociedade portuguesa foi
profundamente marcada por grandes mudanças políticas e culturais. Assistiu-se a uma
metamorfose a nível do poder do Estado, mas também a uma metamorfose social e
cultural. Com um programa nacionalista como base, o novo regime procurou – e em
certa medida conseguiu – nesta década, implementar um novo modo de pensar e de
agir, com o objetivo de criar outro modo de vida, dentro da ordem estabelecida. Nesta
medida, a ideologia do Estado Novo5 não deixou de se preocupar com a gastronomia,
recriando formas que se integravam e se completavam no modo de estar na sociedade,
defendendo os ideais nacionalistas e os princípios do corporativismo, de forma a
praticar uma cultura popular. (CONSIGLIERI, 2000, p.7) Por outro lado, a I Guerra
Mundial gerou, para além da instabilidade económica e social, correntes ideológicas
que favoreceram as posições individualistas e os tradicionalismos (CONSIGLIERI,
2000, p.8).
Com o Estado Novo, “a matriz tradicionalista foi arvorada em política cultural”
(CONSIGLIERI, 2000, p.9) e a nação foi encarada como um todo, em que o Estado
tinha direito e legitimidade de intervir em todos os aspetos, dos destinos do país e das
pessoas. A família seria o centro desta metamorfose ideológica, com uma adoção mais
tradicionalista e religiosa, que definiu “o casamento, o comportamento moral e cívico, o
conceito de mãe, a economia doméstica, os lavores e os trabalhos manuais”
(CONSIGLIERI, 2000, p.9), onde a gastronomia foi entendida como uma arte feminina e
de economia doméstica. Foi também sujeita a recriações e invenções, explorando-se os

5
Designação do período ditatorial português, entre 1926 e 1974.

Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.8, nº15, jul-dez, 2018. p. 221-236 ISSN:2238-1651
225
regionalismos, para justificar a nova divisão administrativa do país. O próprio SNI –
Secretariado Nacional de Informação (que antes de 1944 designava-se por SPN –
Secretariado da Propaganda Nacional), tinha a competência específica, como refere a
legislação, “a orientação, o estimulo e a coordenação de todas as atividades que se
destinem a elevar o nível moral e intelectual do povo português e a exaltar e valorizar a
sua individualidade nacionalista” (MELO, 2001, p.57). Desta forma, em relação à
alimentação, apostou em “concursos gastronómicos regionais e nacionais e das
ementas das Pousadas de Portugal” (CONSIGLIERI, 2000, p.9). A par disto, fomentou-
se a divulgação de receitas dedicadas à família, de forma que muitas publicações
possuíam seções de culinária e receitas, pois era desejável “instruir” a mulher para o
“seu mundo” doméstico, de cuidado da casa e do marido (CONSIGLIERI, 2000, p.10). A
gastronomia tornava-se, assim, um fator de mudança em que as pousadas, como as
adegas e os restaurantes, serviram de modelo com o seu mobiliário, a sua loiça de tipo
regional, à beirã, à ribatejana etc., e os produtos portugueses eram enaltecidos, pela
sua abrangência e qualidade (CONSIGLIERI, 2000, p.9; RAMOS DO Ó, 1992, p. 392-
454).

A ‘CULINÁRIA PORTUGUESA’ DE ANTÓNIO MARIA DE OLIVEIRA BELLO


É no contexto anterior referido, de pleno incentivo nacionalista que, em 1936,
surgiu a „Culinária Portuguesa‟ de António Maria de Oliveira Bello (BELLO, 1936a)6, o
conhecido Olleboma7. Tratou-se de uma edição póstuma – já que o autor falecera a 25
de outubro de 1935 (BELLO, 1936b, p.1) –, com um prólogo de Albino Forjaz de
Sampaio, intitulado „Do Autor, da Cozinha portuguesa e da Sociedade dos
Gastrónomos‟ (SAMPAIO, [1936]), e um natural prefácio de Olleboma que constituiria a
base da comunicação, que o seu filho primogénito, havia de proferir em sua
substituição no „I Congresso Nacional de Turismo‟ (BELLO, 1936b).
Anteriormente, em 1928, havia publicado o livro „Culinária‟ (OLLEBOMA, 1928),
sendo este considerado, “um completíssimo tratado de cozinha, do melhor que até hoje

6
O livro foi reeditado, por editoras diferentes, em 1994 e 2012 (BELLO, 1994; BELLO, 2012).
7
Olleboma é o pseudónimo de António Maria de Oliveira Bello (1872-1935), resultando das iniciais de
seu nome lidas ao contrário: OLLEB de „Bello‟, O de „Oliveira‟, M de „Maria‟ e A de „António‟. Foi um
industrial, mineralogista e gastrónomo, responsável pela fundação da Sociedade Portuguesa de
Gastronomia, em 1933.

Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.8, nº15, jul-dez, 2018. p. 221-236 ISSN:2238-1651
226
se fez entre nós” (QUITÉRIO, 2015, p.352), com uma enorme influência francesa, como
o autor escreveu no prefácio: “seguindo os ensinamentos da cozinha francesa, que é a
mais perfeita, a mais artística e higiénica” (OLLEBOMA, 1928, p. I). Pelo contrário, a
„Culinária Portuguesa‟ é uma obra inovadora, já que se demarca pela apresentação de
receituário português – de matriz nacional e regional – (QUITÉRIO, 2015, p.351) e
porque foi o primeiro livro de receitas português, que fez a distinção entre pratos
nacionais e regionais (FERRO, 1996, p.65). O que não terá acontecido por mero acaso,
já que a „Culinária Portuguesa‟ estava totalmente enquadrada no espírito do Estado
nacionalista, de valorização da diversidade regional e de desenvolvimento do turismo
(FERRO, 1996, p.66). Como o próprio autor referiu, o objetivo da „Culinária Portuguesa‟,
para além de evitar que excelentes preparações caíssem no esquecimento, também
pretendia “chamar a atenção dos hoteleiros e proprietários dos restaurantes,
especialmente das regiões turísticas e de passagem mais ou menos forçada do
automobilismo, para as receitas culinárias nacionais, lembrando a conveniência para
eles, que executem com cuidado, empregando só produtos das melhores qualidades,
escolhidos de preferência entre os produzidos ou transformados na própria região”
(BELLO, [1936], p. XIII). Apesar de Olleboma não ser concretamente um homem do
regime (QUITÉRIO, 2015, p.350), terá sido – com certeza – influenciado pela sua
política. Por isso, como sugere Albino Forjaz de Sampaio, o autor “não deixou de
enobrecer a sua pátria pela compreensão que tem do patriotismo” (SAMPAIO, [1936],
p. II).

TIPOLOGIA DAS RECEITAS


A „Culinária Portuguesa‟ contem um total de 592 receitas, em que 206 –
correspondentes a 34,8% do total das mesmas – são receitas de doces e as restantes
386 – que correspondem a 65,2% do total – devem-se aos pratos de peixe e de carne –
que assumem uma significativa e natural percentagem, já que a base alimentar da
época estava nestes alimentos (MARQUES, 1991, p.617) – mas também, de vegetais,
de sopas, de ovos, de crustáceos e de moluscos, como se pode ver no gráfico 1, que
se segue.

Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.8, nº15, jul-dez, 2018. p. 221-236 ISSN:2238-1651
227

Tendo em conta as receitas de doces, que têm um significativo peso percentual


– de 35% do total – vislumbramos uma preeminência de receitas de bolos (78, que
equivalem a 38% do total de receitas de doces), e de receitas de doces de ovos (52
receitas, que perfazem 25% do total de receitas de doces), o que parece absolutamente
normal, já que os dados da época revelam que “a alimentação urbana da aristocracia e
burguesia incluía grande abundância de doces” (MARQUES, 1991, p.618), e um grande
consumo de ovos8, patente na própria „Culinária Portuguesa‟, onde podemos apontar 16
receitas de ovos (3% do total de receitas). Veja o gráfico 2.

Quanto ao outro grupo de receitas, que o autor designou de „carnes, peixes,


crustáceos, hortaliças e legumes‟ – correspondentes a 65% do total – encontramos com
maior percentagem as receitas de carnes – que equivalem a 19% do total. Nestas,
podemos ver uma preponderância de carnes de açougue (71% do total de carnes),

8
Veja também o gráfico 1.

Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.8, nº15, jul-dez, 2018. p. 221-236 ISSN:2238-1651
228
destacando-se as de porco (25%) e de vaca (23%). Depois, nas receitas de carnes de
aves e caça (6% do total de receitas, como se pode ver no anterior gráfico 1), há um
predomínio das receitas de aves domésticas (20% do total de receitas de carne), onde
se destacam as receitas de frango (8%) e galinha (6%). Já nas de caça (10% do total
de carnes), destacam-se as de coelho (4%), seguidas das de lebre (2%) e de perdiz
(2%). Este destaque das carnes de açougue vai em conformidade com as preferências
registadas no século XX, assim como a menor percentagem relativa às aves
domésticas, e às carnes de caça, que eram mais raras (MARQUES, 1991, p.617).

Em terceiro lugar, as receitas de peixe – com 17,4% do total – o que poderá ser
explicável “devido à profusão de dias de abstinência” (BRAGA, 2000, p.494), como
acontecia no século XIX e antes, ou talvez por apresentarem um preço acessível, o que
nos parece mais credível, já que encontramos uma preponderância de receitas de
bacalhau – 49 receitas, que equivalem a 47% dos preparados de peixe – o que difere
dos livros de receitas do século XIX (BRAGA, 2000, p. 494), possivelmente, porque o
livro em questão, sendo uma recolha de receituário português, terá aberto o leque de
receitas às práticas alimentares da população em geral, o que não acontecia
anteriormente, já que este tipo de livros destinava-se, maioritariamente, aos grupos
privilegiados que, naturalmente, não eram analfabetos. No entanto, sabemos que o
bacalhau no século XIX, era “de consumo corrente para os menos abastados” (BRAGA,
2000, p. 494), e pelos dados que dispomos, é visível o crescente consumo do mesmo.

Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.8, nº15, jul-dez, 2018. p. 221-236 ISSN:2238-1651
229

Depois, podemos ver no gráfico 4, um conjunto de receitas de vários peixes,


que se optou por agrupar conjuntamente – 29% do total de receitas de peixe – visto que
muitas são receitas com vários peixes, como a „Caldeirada à Fragateira‟, mas também
pelo insignificante valor percentual, já que por exemplo só há uma única receita de
atum – „Atum em Bifes à Algarvia‟. Por isso, as receitas de vários peixes apresentadas
no gráfico 4, apesar da significativa percentagem, não têm expressividade numérica.

Tendo em conta as receitas que optamos por designar „de base vegetal‟ (13%
do total), reunindo o conjunto de pratos à base de verduras, legumes, leguminosas e
cereais, é visível um predomínio de pratos de arroz (33%), que se foi divulgando cada
vez mais desde o século XIX (BRAGA, 2000, p.507), assim como de feijão (11%) e de
açordas (9%). Depois, há uma série de receitas „de base vegetal‟ que, pela sua
unicidade no conjunto de receitas, optou-se por agrupar (perfazendo um total de 28%

Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.8, nº15, jul-dez, 2018. p. 221-236 ISSN:2238-1651
230
das receitas), mas, no entanto, não apresentam um valor significativo na tipologia de
receitas „de base vegetal‟, a não ser pelo demonstrado peso que estes pratos assumem
na culinária portuguesa.
Relativamente aos crustáceos e moluscos, que perfazem 5% da totalidade de
receitas, há uma preponderância de receitas de camarão (10, que equivalem a um total
de 32% das receitas de moluscos e crustáceos), seguindo-se as de lulas (13%), e de
polvo (13%), como se pode ver no gráfico 6, que se segue.

Por fim, quanto às receitas de sopas e canjas – 45 receitas, que perfazem 8%


do total, como se pode ver no gráfico 1 – há que referir, que para o autor assumem um
importante significado, já que segundo o próprio: “Para os Portugueses, a refeição sem
um caldo ou sopa para começar, não está completa.” (BELLO, [1936], p. XIV).

IDENTIFICAÇÃO DAS RECEITAS

Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.8, nº15, jul-dez, 2018. p. 221-236 ISSN:2238-1651
231

Tendo em conta a identificação das receitas, podemos vislumbrar e apontar,


como José Manuel Sobral referiu (SOBRAL, 2007, p. 39), três identificações distintas:
regional, colonial ou nacional, conforme aparecem designadas. No que se refere a esta
questão (como se pode ser pelo gráfico 7), sem contabilizamos os doces 9, ao nível
regional foi auferido um total de 144 receitas (que equivale a 37% das 386 receitas
totais). Estas receitas têm a sua identificação de proveniência na designação, ou então
no texto, como por exemplo: „Sopa de Lagosta à Moda de Peniche‟; „Bacalhau no Forno
com Batatas (Porto)‟. Ao nível colonial, foram auferidas 28 receitas (como por exemplo,
o „Sóou de S. Tomé‟), que equivalem a 7% de 386 receitas (que o autor agrupou com a
designação de „Sopas, ovos, peixes, crustáceos, moluscos, carnes e vegetais‟). Depois,
ao nível nacional, foram identificadas 87 receitas, que constituem 23% do total. Sendo
que este tipo de receitas, aparecem descritas como Prato Nacional, ou na sua
designação de “à Portuguesa”, como por exemplo, o „Arroz com Grelos à Portuguesa‟.
As restantes 127 receitas (33%) não apresentavam qualquer identificação.

No que toca à identificação dos doces, é mais difícil assinalar a sua


identificação, já que quer nas designações dos mesmos quer nos conteúdos não há
quase nenhumas referências de proveniência. No entanto, conseguimos identificar 31
de origem regional (15% das 206 receitas de doces), 6 de origem colonial (3%). As

9
Optei, para um melhor entendimento e para não deturpar os dados, apresentar a identificação das
receitas sem a doçaria, visto que esta não tem uma clara identificação.

Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.8, nº15, jul-dez, 2018. p. 221-236 ISSN:2238-1651
232
restantes 169, que perfazem 82% do total de receitas de doces, não tem qualquer
identificação, portanto, não é de duvidar que as receitas sejam mesmo portuguesas,
como refere José Manuel Sobral (SOBRAL, 2007, p. 30-40).
Somando o total de receitas, com uma identificação regional, encontramos um
total de 173, que equivalem a 29% do total. Nestas podemos vislumbrar – como indica
o gráfico 9, que segue abaixo –, um predomínio de receitas da Estremadura, em
concreto da região do Ribatejo e do Oeste – 76 receitas, que equivalem a 44%, do total
de receitas com identificação regional. Sendo compreensível este valor, já que muitas
receitas foram fornecidas por senhoras de Lisboa, como o próprio autor refere: “Muitas
das receitas que publicamos foram-nos fornecidas muito amavelmente por senhoras de
Lisboa e das províncias” (BELLO, [1936], p. XIII).

A PUBLICIDADE
A publicidade começou a aparecer em Portugal no século XVIII e desenvolveu-
se bastante entre os séculos XIX e XX, tendo uma vertente económica e outra de
comunicação, pretendia chamar a atenção, despertando interesse e criando a vontade
de adquirir determinado bem ou serviço (BRAGA, 2007, p. 222). Tendo ficado plasmada
em cartazes, postais, azulejos, periódicos entre outros, não era comum aparecer em
livros de cozinha, no entanto, as últimas páginas da „Culinária Portuguesa‟ contêm
publicidade a vinhos do Porto – como se pode ver na fig. 1 –, talvez por este ser o
produto português mais conhecido internacionalmente, como o próprio autor refere:

Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.8, nº15, jul-dez, 2018. p. 221-236 ISSN:2238-1651
233
“Porém os grandes vinhos Portugueses são o do Pôrto e o da Madeira, que espalharam
e mantêm pelo mundo o nome glorioso de Portugal” (BELLO, [1936], p. XVII).

Fig.1 - Publicidade aos vinhos do Porto, nas últimas páginas da “Culinária Portuguesa”

Sendo a „Culinária Portuguesa‟ um livro de cozinha que, “põe em evidencia os


enormes recursos naturais de Portugal” (BELLO, 1936b), ao mesmo tempo que chama
a atenção dos estabelecimentos turísticos, era desejável que o vinho tivesse mais
projeção dentro e fora do país, como aliás fica expresso no „I Congresso Nacional de
Turismo‟: “O vinho do Porto, por si e pela região do douro, onde é produzido, está
destinado a desempenhar papel de primordial importância na industria do turismo em
Portugal. Para a consecução de tal objectivo indispensável se forma: a) – Promover a
construção de hotéis no Douro; b) Fixar um padrão mínimo de qualidade para o vinho
do Porto; c) Intensificar o reclame no estrangeiro de vinho do Porto e da região do
Douro, associando-os, na medida do possível, à propaganda turística de Portugal”
(PERFEITO, 1936, p.21).

EM CONCLUSÃO
A „Culinária Portuguesa‟ nasceu em 1936, num contexto preciso de
desenvolvimento do turismo, e de incentivo nacionalista e regional, o que lhe influenciou

Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.8, nº15, jul-dez, 2018. p. 221-236 ISSN:2238-1651
234
a matriz identitária e tipológica. Tendo em conta a tipologia das receitas, destacam-se
as de doces (206; 35%), as de carnes (113; 19%), e as de peixes (103; 17%). Quanto à
identificação das receitas, cerca de 70% do total apresenta uma referência concreta,
tendo em conta a regionalidade ou a nacionalidade portuguesa. Porém, cremos que as
restantes receitas, não tendo uma identificação específica de proveniência, sejam
também de origem nacional.
Os estudiosos que se têm debruçado sobre o período alimentar em que a
„Culinária Portuguesa‟ nasceu têm-se limitado a fazer-lhe meras referências, no que
toca ao objetivo da mesma, sem demostrarem ao nível numérico e percentual a
relevância da obra. O afã do presente artigo – não havendo trabalhos específicos sobre
o livro em questão – foi, exatamente, demonstrar por contagem de receitas, as suas
diferentes tipologias e as suas identificações de proveniência. Esta tarefa, que à
primeira vista parecia-nos fácil, foi, no entanto, mais complexa, já que os índices das
várias edições, por vezes, não se referem a receitas, mas sim, a informações sobre
produtos. De referir, também, que muitas identificações estão indicadas no corpo
textual da receita.

REFERÊNCIAS

BIBLIOGRAFIA

BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. “A Mesa”. In: SERRÃO, Joel, MARQUES, A. H


de Oliveira (Dir.): Nova História de Portugal, Vol. IX, Portugal e a Instauração do
Liberalismo, (coord. A. H. de Oliveira Marques). Lisboa: Presença, 2000, p. 493-500.
Disponível em: https://www.academia.edu/7314135/. Acesso em: 27/01/18.

_______. “Influências estrangeiras nos livros de cozinha portugueses (séculos XVI –


XIX). Alguns problemas de Análise”. In: BRAGA, Isabel M. R. M. D. Do Primeiro Almoço
à Ceia. Estudos de História da Alimentação. Sintra: Colares Editora, 2004a, p. 101 –
118. Disponível em: https://www.academia.edu/6679906/. Acesso em: 27/01/18.

_________. “O Livro de Cozinha de Francisco Borges Henriques”. In: BRAGA, I. M. R.


M. Do Primeiro Almoço à Ceia. Estudos de História da Alimentação. Sintra: Colares
Editora, 2004b, p. 61 – 99.

_______. “Alimentação e publicidade alimentar na revista ABC (1920-1926)”. In: SILVA,


Carlos Guardado da (Coord.). História da Alimentação, Turres Veteras IX. Lisboa:

Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.8, nº15, jul-dez, 2018. p. 221-236 ISSN:2238-1651
235
Edições Colibri, C.M. Torres Vedras, Inst. Alexandre Herculano, 2007, p. 215-225.
Disponível em: https://www.academia.edu/6581142/. Acesso em: 27/01/18.

_______. “Da Dietética à Gastronomia Regional Portuguesa. Um Estudo de Caso”. In:


ArtCultura. Revista de História, Cultura e Arte. vol. 16, n.º 28, Uberlândia, 2014, p. 129-
142. Disponível em: https://www.academia.edu/13749726/. Acesso em: 27/01/18.

CONSIGLIERI, Carlos. “Prefácio”. In: MONTEIRO, Sónia (Org.). Gastronomia


Portuguesa dosa nos 30. Guia completo de culinária Portuguesa. Lisboa: Ulmeiro,
2000, p. 6–10.

DROUARD, Alain. “Chefs, Gourmets and gourmands. French cuisine in the 19 th and 20th
centuries”. In: FREEDMAN, Paul (Dir.). Food. The history of taste. Londres: Thomas &
Hudson, 2007.

FERRO, João Pedro. Arqueologia dos Hábitos Alimentares. Lisboa: Dom Quixote, 1996.

FLANDRIN, Jean-Louis. “Da dietética à gastronomia, ou a libertação da gula”. In:


FLANDRIN, Jean-Louis, MONTANARI, Massimo (Dir.). História da Alimentação. Vol. 2,
Lisboa: Terramar, 2001, p. 261-278 [1.ª edição Francesa de 1996].

MARQUES, A. H de Oliveira. “A Alimentação”. In: SERRÃO, Joel, MARQUES, A. H de


Oliveira (Dir.). Nova História de Portugal, Vol. XI, Portugal da Monarquia para a
República. (Coord. A. H. de Oliveira Marques). Lisboa: Presença, 1991, p.617–627.

MELO, Daniel. Salazarismo e Cultura Popular (1933 – 1958). Lisboa: Imprensa de


Ciências Sociais, 2001.

RAMOS DO Ó, Jorge. “Salazarismo e Cultura”. In: SERRÃO, Joel, MARQUES, A. H de


Oliveira (Dir.). Nova História de Portugal, Vol. XII, Portugal e o Estado Novo, (Coord.
Fernando Rosas). Lisboa: Presença, 1992, p. 391 – 454.

QUITÉRIO, José. “Homenagear Olleboma”. In: SERRÃO, Joel, MARQUES, A. H de


Oliveira (Dir.). Bem Comer & Curiosidades. Lisboa: Documenta, 2015, p. 350 – 353.

RÊGO, Manuela (Org.). Livros Portugueses de Cozinha. Lisboa: Biblioteca Nacional,


1988.

SOBRAL, José Manuel. “Nacionalismo, Culinária e Classe”. In: RURIS – Revista do


Centro de Estudos Rurais (CERES). Campinas, vol.1, nº 2, p. 13–52, 2007.

SCHOLLIERS, Peter. “Meals, food narratives, and sentiments of belonging in past and
presente”. In: SCHOLLIERS, Peter (Dir.). Food, drink and identity: cook, eating and
drinking in Europe since the midle ages. Oxford, Nerk: Berg, 2001, p. 3 – 22.

FONTE

Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.8, nº15, jul-dez, 2018. p. 221-236 ISSN:2238-1651
236
BELLO, António Maria de Oliveira [Olleboma]. Culinária Portuguesa. Lisboa: Edição de
Autor, s.d [1936a].

_________. Culinária Portuguesa. Lisboa: Assírio e Alvim, 1994 [1936].

_________. Culinária Portuguesa. Lisboa: Marcador, 2012 [1936].

_________. A Culinária Portuguesa e o Turismo. Lisboa: Separata do I Congresso


Nacional de Turismo, V Secção, 1936b.

OLLEBOMA. Culinária. Lisboa: Tipografia da Empresa Diário de Noticias, 1928.

PERFEITO, João do Carmo Valente. “O vinho do Porto. Cartaz de Portugal”. In:


Separata do I Congresso Nacional de Turismo, V Secção. Lisboa: 1936.
Receitas de milhores doces e de alguns guizados particullares e remedios de conhecida
experiencia que fes Francisco Borges Henriques para uso de sua casa. No anno de
1715. Tem seu alfabeto no fim. 1715 – 1729 (Lisboa, Biblioteca Nacional, Cód. 7376)

RIGAUD, Lucas, Cozinheiro moderno ou nova arte de cozinha. Sintra: Colares Editora,
1999 [1ª edição de 1780].

RODRIGUES, Domingos, Arte de Cozinha. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda,


1987 [1ª edição de 1680].

SAMPAIO, Albino Forjaz de, “Do Autor, da Cozinha portuguesa e da Sociedade dos
Gastrónomos”. In: BELLO, António Maria de Oliveira (Olleboma), Culinária Portuguesa.
Lisboa: Edição de autor, s.d [1936], p. I – XII.

Recebido em: 19/02/2018


Aprovado em: 15/04/2018

Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.8, nº15, jul-dez, 2018. p. 221-236 ISSN:2238-1651

También podría gustarte