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Carol Vance, em texto hoje clássico (1995) chama atenção para o lugar de
desbravadores do sexo (dos outros) que a Antropologia conferiu a si mesma.
Reivindicando por meio desta ousadia investigativa certo pioneirismo em
desenssencializar a sexualidade humana, imprimindo-lhe seu caráter marcadamente
cultural, aproximando-se, desta forma, e antecipando em alguma medida, a proposta
construcionista dos feminismos de segunda onda em relação à sexualidade humana, bem
como aos comportamentos esperados de homens e mulheres.
Mas é a própria Vance que aponta para a timidez da área em tratar do tema e
denuncia os constrangimentos acadêmicos que a discussão sobre sexualidade provocava
em seu metié. Gênero e sexualidade tornaram-se, no entanto, tema de grande interesse
para as ciências sociais brasileiras já a algumas décadas, com especial ênfase a partir do
início deste milênio. Antes de chegar ao cenário contemporâneo nacional e sem pretender
fazer um apanhado histórico amplo, inicio de maneira previsível, mas, espero, clássica,
esse breve ensaio.
A diferença sexual e seus significados sociais ocuparam o interesse da
Antropologia desde sua fundação enquanto disciplina. O “desejo colonial” (Young, xxxx)
sustentou e alimentou as discussões evolucionistas, as preocupações com o hibridismo
racial, na mesma medida em que silenciou sobre a sexualidade dos próprios
investigadores. Nas primeiras décadas do século XX, os espartilhos da moral vitoriana
começaram a ser timidamente forçados, de maneira que falar do sexo dos “selvagens”
pareceu não só relevante como algo deveras sério.
É lugar comum elencar os estudos de Bradislaw Malinowski e George Bateson,
Margareth Mead como pioneiros quando se trata de etnografar relações de gênero e
sexualidade. Sexo e gênero (conceito que não estava em voga à época dessas produções)
deixam, naqueles trabalhos, de serem termos secundários que permitiriam análises sobre
estruturas de parentescos e organizações sociais, para alcançar centralidade das análises
nas produções citadas.
Antes da tríade referenciada acima, Johann Jakob Bachofen e Lewis Morgan são
frequentemente lembrado como autores que inspiram, provocam e oferecem elementos
(mais teóricos que empíricos) para se pensar na centralidade do sexo biológico e da
reprodução como elementos naturais que pautam a ordem social e política. No
evolucionismo político que orienta as proposições daqueles pioneiros, a própria ideia de
civilização associa-se a assunção dos homens ao poder. Civilização é ordem, e o reino
feminino não soube/pode estabelecê-la. A discussão dos citados autores é mais sofisticada
do que a apresentada de forma tão apressada neste parágrafo, pois me interessa, de fato,
mais que considerar essas contribuições em si, dialogar com seus desdobramentos.
Tanto Bachhofen como Morgan inspiram a imaginação de Friedrich Engels, que
cita ambos em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, obra na qual
relaciona sexo, sexualidade, parentesco e dominação masculina com a economia política.
De certa forma a relação entre o privado e o político, o corpo e o poder, estavam ali
escondidas sob as camadas de materialismo histórico.
A tese central de Engels é que, na passagem da selvageria para a barbárie, ao final
do “comunismo primitivo”, nascem conjuntamente a opressão de classe, com o
surgimento da propriedade privada, inclusive de outros homens na forma de escravos, e
a opressão feminina com a subordinação da mulher ao direito paterno para garantir a
transmissão de sua linhagem e propriedade. Nesse sentido, ele afirma de forma lapidar,
que “a derrota histórica do gênero feminino” ocorreu com o advento da propriedade
privada.
Para Lévi-Strauss a regra funda a cultura e a primeira delas, numa hipótese lógica
e não histórica, é o tabu do incesto que, ao negar/proibir o sexo e o casamento
endogâmico, isto é, dentro do mesmo grupo “natural”, obriga que se case com o de fora,
estabelecendo-se nessa troca o parentesco, desbiologizando a família e, mais, criando
linguagem, da qual as mulheres são um dos termos de comunicação. De maneira que,
como mostra Rubin, neste esquema a cultura, a lei e a regra conferem o poder da
organização social aos homens, emudece as mulheres, objetificadas como elementos de
troca. Mais que isso, a cultura se estabelece como heterossexual, de maneira que o tabu
do incesto implicaria também no tabu da homossexualidade.
“É interessante levar mais adiante esse trabalho de dedução de Lévi-Strauss, e
explicar a estrutura lógica subjacente a toda a sua análise do parentesco. Num nível mais
geral, a organização social do sexo baseia-se no gênero, na obrigatoriedade do
heterossexualismo e na repressão da sexualidade da mulher”. (Rubin, 2003, p. 27). Estava
dada aqui uma chave importante: sexo e gênero são termos relacionados, mas não são a
mesma coisa. Mais que isso, formam um sistema e têm a ver com relações de poder. Sexo
é, assim, tão social quanto gênero. Ainda que muitas críticas dirigidas posteriormente ao
conceito “sistema sexo/gênero” insistam que Rubin manteve o sexo como dado da
natureza, vejo que em sua vinculação do sexo com a “economia política” dos corpos, ele
(o sexo) já estava sendo tratado fora dos marcos biologizantes.
Se a opressão das mulheres estava relacionada à organização social fosse pela
divisão sexual do trabalho ou pelas alianças de parentesco, então a subordinação não era
natural, mas fruto dessa ordem que, para muitas antropólogas feministas, pareceu
universal. Como enfrentar esta aporia que coloca, por um lado, as relações de gênero no
campo da cultura, mas ancora universalismos numa natureza percebida como universal?
Em busca de resposta sobre a opressão feminina, antropólogas da geração de
Rubin saíram pelo mundo a etnografar e não voltaram com boas notícias. Em toda parte,
as diferenças de gênero tornam-se desigualdades e consequentemente subordinação
feminina. Um dos problemas dessas pesquisas, sobre as quais não me deterei aqui, foi a
de considerar a categoria sociológica de mulher como inequívoca.
Ou seja, suspeita-se que havia nessas análises e propostas teóricas um olhar se não
etnocêntrico, pelo menos enviesado, altamente plasmado e orientado por categorias
ocidentais de ordenação dos gêneros como no caso dos estudos de Michele Rosaldo e sua
reiterada proposta explicativa que dicotomizava o público e o privado. Sendo esta última
território feminino, alijado da política como prática masculina e de ordenação do público.
Ao fim, a biologia e a fisiologia das mulheres justificava essa ordenação. Ordem esta que,
mais tarde, será colocada em xeque não só pela sua ancoragem na fisiologia feminina
como elemento que justificaria a ordem social e política, mas por tomar o Outro a partir
dos referentes de quem pesquisa, como manifesta Myreia Suárez, na citação apresentada
mais acima.
Porém,
a acumulação de informação sobre a diversidade de experiências femininas e a
sofisticação crescente das perspectivas acadêmicas orientadas pelo feminismo
conduziram, também, ao caminho oposto, isto é, à contestação de vários dos
conceitos e categorias com os quais o pensamento feminista estava operando. E
um dos primeiros alvos desses questionamentos foi a utilização do patriarcado
como categoria de análise. (Piscitelli, 2002, p. 16).
Referências Bibliográficas