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A dança do Santo e o veneno dos fundamentalistas

No último domingo, a Escola de samba Gaviões da Fiel reditou o enredo “A


saliva do santo e o veneno da serpente” (1994) que, por má compreensão, causou grande
polêmica nas redes sociais, trazendo à tona a intolerância e ignorância que ainda guia o
senso estético de muitos religiosos brasileiros.

Ao iniciar a história do Tabaco, objetivo central do desfile, o carnavalesco


recorre à lenda árabe da origem da planta que teria surgido do cuspe de Santo Antão
após receber a mordida de uma serpente. Este santo católico que viveu no século III,
teria lutado fisicamente com o demônio durante embates místicos no deserto. Antão,
buscando viver radicalmente como Jesus Cristo, é violentado pelo diabo
constantemente, tendo vencido a força maligna.

Nesta compreensão de que a luta entre bem e mal, a comissão de frente encenou
a luta entre os anjos da luz e os das trevas, disputa antiga e contínua, mas com vitória
garantida ao Bem pela morte e ressurreição de Jesus, como apresenta a cosmologia
cristã. Durante a performance artística, o ator que encena o Cristo, salta da escultura de
Antão e é flagelado,violentado pelo diabo e cai ao chão na posição de crucificado em
sua aparente derrota. Contudo, a coreografia não para aí, mas segue com o Salvador
ressuscitando e abençoando a todos na Marques da Sapucaí, em alusão à Páscoa Cristã:
paixão, morte e ressurreição. Então o espetáculo se reinicia!

Este é o roteiro original, cujas repetições causaram confusão nas mentes


destituídas de senso estético ou mesmo, de boa vontade. Muitos teólogos místicos
compreendiam que a luta entre bem e mal continuava constantemente travada na Igreja
e no corpo do cristão durante sua vida terrena: “Completo na minha vida o que falta a
paixão de Cristo” (Col 1, 24). Santos como Teresa D´Ávila, São João Maria Vianney,
Santa Gema Galgani e Pe Pio de Pietrelcina teriam sofrido os mesmos tormentos com
Satanás.

Alguns sujeitos religiosos, cheios de “zelo” pela sua religião, fizeram um corte
tendencioso, reduzindo toda a apresentação à suposta vitória do anjo vermelho, o diabo,
negando o restante da encenação. É como se, ao assistir o filme “A Paixão de Cristo”
(2004), eles fizessem uma edição em que o filme termina com a flagelação de Jesus.
Curiosamente, Mel Gibson, nesta película, lança mão de uma personagem que
simboliza o diabo, que durante as cenas de sofrimento, parece estar induzindo os
guardas e gozando de um suposto controle sobre o Messias ensanguentado. Mas
ninguém se indignou.

Aparentemente, a maior indignação se deu por introduzirem no espaço profano


uma figura tão sacra no imaginário brasileiro, apesar de o carnavalesco ter sido sensível
em apartar qualquer traço de sexualidade da comissão de frente. Não é o primeiro
desfile de uma escola de samba a receber críticas por recorrer a símbolos cristãos
durante seus desfiles. Mas este, dada à ascensão do fundamentalismo cristão na
sociedade brasileira, cada vez mais intolerante e intransigente, gerou comentários
agressivos e apaixonados nas redes sociais.

O teólogo e educador Rubem Alves nos deixou pistas sobre o perfil das pessoas
que, apressadamente, lançaram “pedras digitais” sobre a belíssimo espetáculo da
Gaviões da Fiel: “Fundamentalismo é uma atitude que atribui um caráter último às
suas próprias crenças. O mais importante não é o que o fundamentalista diz mas como
ele diz. É a atitude dogmática e autoritária com respeito ao sistema de pensamento, e
inversamente a atitude de intolerância e inquisitorial ante qualquer tipo de ‘herege’ ou
‘revisionista’ que o caracteriza”.(“O enigma da religião”, 1993)

A luta de Santo Antão continua a ser travada nos corpos e nos perfis virtuais:
nossas tendências malignas em constante combate com nossa bondade. Todavia, o mal
venceu uma batalha no coração daqueles que, tendo fixado seu olhar na suposta derrota
de Cristo, ofenderam o carnavalesco e membros da Gaviões da Fiel, pois, como afirma
Jesus, “a boca fala do que está cheio o coração” (Mt 12, 34).

Penso que a única falha da Escola foi um Jesus branco de olhos claros, como se
o Messias cristão tivesse nascido na Europa. Mas um Jesus moreno seria mais um
escândalo para os fariseus do internet.

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