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Educ. Pesqui., São Paulo, v. 42, n. 4, p. 921-935, out./dez. 2016. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/S1517-9702201612158353 921
Spiritual, symbolic and affective elements in the
construction of the mbyá-guarani school I*
Abstract
922 Doi: http://dx.doi.org/10.1590/S1517-9702201612158353 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 42, n. 4, p. 921-935, out./dez. 2016.
Introdução mbyá guarani, em que esses coletivos indígenas
vão se apropriando da instituição. Em algumas
Os Mbyá Guarani vivem, na atualidade, situações, a escola se torna também espaço para
um momento de reflexão sobre a educação a afirmação da tradição e identidades, com a
escolar, envolvidos no processo de construção valorização de aspectos históricos, linguísticos e
de uma escola indígena diferenciada e culturais. Porém, o que mais buscam é o acesso a
intercultural. Trata-se de um povo que possui conhecimentos e tecnologias da cultura ocidental,
um sistema educacional próprio, fundamentado com objetivos de fortalecer a autonomia, avançar
na sua cosmologia, através do qual tem mantido na conquista de direitos e construir outros tipos de
uma continuidade cultural durante milhares de relação com a sociedade nacional, especialmente
anos, apesar da pressão colonial dos últimos com o Estado. Requisitam a escola porque é
séculos, que incluiu a imposição de uma visão importante aprender o português e dominar a
educacional integracionista, a qual visava a escrita e a leitura.
assimilação dos povos ameríndios à cultura Bergamaschi (2010, p. 136), através
hegemônica nacional. de estudos etnográficos com os Guarani e os
Para fugir dessa pressão colonial, Kaingang, evidencia esta trajetória de apro-
buscaram regiões de mata, onde se mantiveram priação da instituição escolar na construção de
por um significativo período, especialmente no projetos pedagógicos diferenciados. A autora
Paraguai. Ao final do século XIX, as mudanças chama a atenção para a “mobilidade de con-
econômicas, sociais e políticas afetaram também tornos”, no que tange à presença, tanto de as-
regiões onde, prioritariamente, viviam os Mbyá pectos tradicionais como de marcas da escola-
Guarani e produziram movimentos para esse rização ocidental, implicando na ocorrência de
povo, que buscou outros territórios considerados rupturas em que a cultura indígena consegue
por eles ancestrais e toraram-se mais visíveis para quebrar padrões institucionais preestabelecidos,
as cidades. Porém, mantiveram-se em grande expressando seus modos de ser e revitalizando
parte alheios à escola, ou com adesões localizadas saberes tradicionais.
e não contínuas. Em um tempo mais recente, nas Esse processo envolve a complexidade do
últimas décadas do século XX, começam a aceitar encontro entre duas culturas, com diferenças que
e até mesmo a reivindicar escolas. incluem desde a cosmologia que as fundamentam,
No Brasil, a partir da Constituição Federal passando pelas abordagens pedagógicas, com
de 1988, que contempla encaminhamentos seus referenciais predominantes, e abrangendo a
das lutas dos povos indígenas organizados, organização curricular, em seus espaços e tempos.
produziu-se uma legislação que favorece as Acompanhando o cotidiano da escola mbyá
escolas indígenas específicas, que reconhecem guarani ficam evidentes as múltiplas dificuldades
seus processos próprios de aprendizagem, que decorrem da força homogeneizadora da escola
o uso escolar das línguas originárias, o ocidental, estabelecida dentro da visão moderna,
bilinguismo e a interculturalidade. No entanto, em que predomina o pensamento racional,
a implantação dessas escolas, apesar dos com a divisão disciplinar e a hierarquização de
avanços, ainda enfrenta dificuldades e desafios, conhecimentos. Nessa lógica, não costumam
incluindo limites no reconhecimento do caráter ser valorizados saberes fundamentados na
diferenciado dessas instituições e falta de espiritualidade, nem aspectos afetivos, emocionais
autonomia de um sistema próprio de gestão e intuitivos do ser humano.
que possa acolher mudanças que contemplem Por outro lado, pesquisadores da
modos de vida mbyá guarani. educação tradicional ameríndia têm mostrado
Contudo, observa-se, no início de século a importância da dimensão espiritual e do
XXI, um processo de ampliação de escolas sentimento na transmissão de saberes e na
924 Beatriz Osorio STUMPF; Maria Aparecida BERGAMASCHI. Elementos espirituais, simbólicos e afetivos na...
mais substantiva da investigação contou com registros com base na observação participante e
uma metodologia composta por dois momentos. na etnografia, através de observações, escutas,
O primeiro teve como base o trabalho de diálogos, vivências e ações conjuntas. Os diários
campo desenvolvido durante a participação de campo reuniram apontamentos abrangendo
no projeto Ar, água e terra: vida e cultura dizeres mbyá, observações de situações,
guarani: ações de recuperação e conservação impressões e questionamentos acerca da visão
ambiental e etnodesenvolvimento em aldeias ecológica das pessoas que compõem esses
indígenas guarani do RS, nos anos de 2011 e coletivos indígenas, no sentido proposto por
2012. Essa atuação de educação ambiental Guattari (1990), que abrange três dimensões:
está sendo implementada pelo Instituto de da subjetividade humana, das relações entre as
Estudos Culturais e Ambientais (Iecam)5, com pessoas e do meio ambiente.
o patrocínio do Programa Petrobras Ambiental, A observação participante foi
contemplando oito aldeias mbyá guarani do considerada elemento de grande importância
Rio Grande do Sul, com atividades de apoio à na construção metodológica coletiva entre
recuperação de áreas degradadas, melhoria da a equipe do Iecam e os Mbyá, abrangendo
fertilidade do solo e da produção de alimentos, a realização de reuniões de avaliação e
coleta e intercâmbio de sementes, viveirismo, planejamento, encontros, práticas ecológicas,
compostagem, destino de resíduos, etnoturismo trilhas, visitas de intercâmbio e atividades com
e reflorestamento com espécies vegetais nativas as escolas; além do convívio em atividades
escolhidas pelos indígenas. cotidianas, como refeições, conversas e partilha
As aldeias participantes do trabalho do chimarrão ao redor do fogo.
foram as seguintes: Tekoa Anhetengua, Lomba Essa observação era acompanhada
do Pinheiro, Porto Alegre; Tekoa Yriapu, Granja por um olhar etnográfico, atento à própria
Vargas, Palmares do Sul; Tekoa Nhundy, Estiva, observação participante, buscando uma
Viamão; Tekoa Pindo Miri, Itapuã, Viamão; Tekoa maior compreensão de como essas percepções
Nhuu Porã, Barra do Ouro, Maquiné, Riozinho e ambientais se revelavam no cotidiano das
Caraã; Tekoa Itapoty, Tekoa Pindoty, Riozinho e aldeias, no modo de vida dessa etnia. A escolha
Teko aKa’aguy, Caraá, todas no Rio Grande do Sul. se impôs devido à caraterística deste método,
O projeto foi elaborado e implementado a partir que envolve a abordagem dos fenômenos e
das demandas e ideias dos mbyá, de acordo com comportamentos humanos em seu contexto,
as especificidades de cada aldeia, proporcionando buscando a compreensão do ponto de vista
um processo de escuta e diálogo em que foram do grupo com o qual se está trabalhando, com
manifestadas suas percepções sobre diversos seus próprios significados, proporcionando a
temas, como ambiente, cultura, educação, saúde, identificação de relações entre determinados
alimentação, agricultura e economia. comportamentos culturais e a especificidade da
Neste período, a atuação simultânea com sua visão de mundo.
educação ambiental e pesquisa, possibilitou A pesquisa contemplou a observação
de um processo educativo prático, coletivo,
acompanhar os processos de escolarização, principalmente quando as participativo e intercultural, absorvendo as
próprias lideranças mbyá guarani sentem a necessidade de interlocução
com agentes externos para construírem suas compreensões de escola. Isso
percepções que surgiam naturalmente durante
também ocorre com outros grupos e ou organizações que, em situações a trajetória; mas também a observação da
específicas são demandados para desenvolver projetos pontuais, dentre convivência cotidiana, momentos em que
eles os que envolvem direta ou indiretamente a educação escolar.
5 - O Instituto de Estudos Culturais e Ambientais (Iecam) é uma estávamos juntos, compartilhando alimento,
organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, fundada em 1991, chimarrão, palavras e silêncios. A observação
direcionada para o estudo e o desenvolvimento de ações relacionadas
com a sustentabilidade social e ambiental, que busca principalmente a das crianças nas aldeias, na sua relação
revitalização de saberes tradicionais e da biodiversidade. entre si, com os adultos e com o ambiente,
926 Beatriz Osorio STUMPF; Maria Aparecida BERGAMASCHI. Elementos espirituais, simbólicos e afetivos na...
valores como respeito, perdão, fraternidade e conhecimento da vida” (AQUINO, 2012, p. 61).
alegria (STUMPF, 2014, p. 57). São dados que alimentam a reflexão acerca
A relevância dos elementos espirituais, dos processos educativos guarani, mostrando
emocionais e afetivos tem sido ressaltada a amplitude e complexidade de elementos
em outras pesquisas sobre os Mbyá-Guarani. presentes na formação da pessoa, incluindo a
Menezes (2006a, 2006b) aponta para o aspecto dimensão espiritual.
vivencial da aprendizagem cotidiana das Referências aos sonhos também
crianças mbyá, caracterizado pela afetividade, estiveram muito presentes durante a pesquisa,
contato corporal e movimento vital e criativo, com seu papel fundamental nas decisões,
integrando corporeidade, sentimento, afetividade nos planejamentos e na vivência cotidiana,
e espiritualidade. A educação tradicional manifestando uma profunda contribuição na
guarani, segundo Bergamaschi (2005), apresenta formação humana. Bergamaschi e Menezes
aspectos como oralidade, respeito, curiosidade, (2009) relatam que o sistema coletivo de rituais,
observação, imitação, autonomia. Trata-se de com cerimônias, nomeações, rezas, cantos e
uma educação integral que acontece em todos danças, está intensamente relacionado com a
os lugares, de modo que a aprendizagem ocorre sabedoria, a memória e a aprendizagem mbyá.
“estando no mundo e dando-se ao mundo”. Esses elementos caracterizam a religiosidade
Friedrich (2012, p. 177) observa na própria desse povo, que os identifica como uma
pedagogia desse povo a importância do comunidade unificada, fundamentando seu
aconselhamento na transmissão de valores modo de vida, o Nhande Reko. A imaginação
tradicionais, com o exemplo, a repetição, e a sensibilidade estão relacionadas com
o silêncio e a palavra vinda do coração, uma inteligência proveniente dessa conexão
expressando a verdade, com respeito e espiritual, de modo que os Mbyá agem
intensidade. A espiritualidade guarani não seguindo a intuição e a afetividade, sendo o
está separada da vida, do corpo, da mente, coração considerado o fundamento de sua ação,
do ser como um todo, da cosmologia. Essa expressão e aprendizagem. A palavra é sagrada,
espiritualidade integrada à vivência cotidiana inspirada pelo coração, a emoção é uma forma
é uma dimensão de grande força na educação de integração da sua cultura e o sonho possui
tradicional mbyá guarani, estando muito grande força espiritual como um mediador
presente e viva na sua forma de ser e nas suas entre o mundo terreno e o mundo sobrenatural.
falas, permeando todos seus espaços e tempos, A memória foi ressaltada como elemento
embora a opy (casa de reza), seja considerada o relevante na aprendizagem e na sabedoria
principal componente de sua educação. mbyá, de forma conectada com o sentimento,
Elda Vasquez Aquino, pesquisadora conforme explicou o senhor Adolfo. A memória
guarani kaiowá do Mato Grosso do Sul, ao faz parte da pessoa, não vindo através do papel
desenvolver a investigação de mestrado sobre a e da escrita, por isso a importância da oralidade,
educação das crianças em sua terra de origem, com a sinceridade e a profundidade da palavra
destaca o componente espiritual. Com inúmeros emitida com o coração. Em muitos momentos
exemplos, a autora evidencia a necessidade dos os Mbyá se referiam a ter aprendido algo com
espíritos sagrados, o espírito dos antepassados os pais, avós e antepassados em geral. Carrara
nos processos educativos das crianças kaiowá, (2002) destaca a importância na educação dos
pois são eles que impedem ou repreendem os xavante, da escuta dos mitos, histórias que
espíritos da desobediência. Segundo ela, “na são contadas às crianças pelos velhos, plenas
fala de Nhanderu fica claro que as crianças de significados e de elementos naturais, em
precisam passar por rituais para ter rumo, ambiente acolhedor, com alegria e com temas
ou seja, para que o caminho seja aberto ao que despertam a atenção e a curiosidade.
928 Beatriz Osorio STUMPF; Maria Aparecida BERGAMASCHI. Elementos espirituais, simbólicos e afetivos na...
sujeito a objeto, mas de sujeito a sujeito. O ser a reciprocidade e a complementaridade
humano, em seu anseio de sobreviver e de usufruir constituem o fundamento da existência nas
da natureza, se distanciou desse sentimento suas diversas manifestações, a partir da ligação
e, numa perspectiva antropocêntrica, se entre duas forças convergentes, a cósmica,
considerando como a espécie mais importante do proveniente do universo, do céu; e a telúrica,
planeta. No entanto, a cada dia fica mais evidente que vem da terra. A conjunção dessas duas
que somente uma relação complementária é energias se expressa em todos os processos
capaz de gerar e manter a vida. A revitalização vitais, gerando e mantendo as formas de vida,
da vida comunitária constitui um retorno à que, na visão de mundo ameríndia, incluem os
memória coletiva ancestral, e isso significa processos orgânicos e inorgânicos.
viver em harmonia e equilíbrio. A educação é A observação do modo de viver mbyá,
vista como uma forma de fortalecer essa noção junto à escuta de suas falas, evidenciou uma
de comunidade trazida pela cosmovisão dos visão de mundo, com uma ética e conduta, em
povos indígenas originários, em sua estrutura que a espiritualidade representa grande força
ancestral, possibilitando a capacidade de e profundo significado, se refletindo em todas
viver plenamente, com a consciência de cada as áreas da vida, história e tradição. Foram
momento presente, o sintipacha, que na língua frequentes os dizeres do tipo: “A força mbyá
Aymara significa tempo intenso. guarani vem de Nhanderu”, mostrando que a
A educação para o Bem viver, do paradigma espiritualidade é um impulsionador para os
indígena comunitário, está fundamentada movimentos em prol de seus direitos, com a
nessa concepção de mundo integradora e manutenção viva de suas tradições, bem como
complementária entre todos os seres, permitindo para as atividades cotidianas, integrando os
uma aprendizagem relacionada com a plenitude diversos saberes de todas as áreas necessárias
da vida. Os resultados desta pesquisa revelam a para a vida em comunidade, como saúde,
importância do diálogo no processo de construção educação, economia, política, cultura e arte.
da escola mbyá guarani com a educação A educação é um processo interligado a essas
comunitária do paradigma do Bem viver, a áreas, proporcionando o desenvolvimento
partir de elementos como a visão ecológica, o pleno de cada ser humano e da comunidade
sentimento, a coletividade, a reciprocidade, a arte como um todo, de modo que cada pessoa
e o simbolismo, que manifestaram sua relevância possa desenvolver e manifestar seus dons, de
ao longo do trabalho. forma articulada com o coletivo, alimentando
Segundo Mamani (2010), em Aymara a reciprocidade e a complementaridade, o que
a primeira palavra ensinada é jiwasa, que contribui para a saúde de cada ser e do todo,
significa nós, no sentindo de um conjunto que bem como para a economia de cada família e
abrange todos os elementos e seres da natureza. da comunidade.
Para vivenciar esse conjunto de seres é Na educação comunitária, o ensino
necessário despertar a consciência comunitária. e a aprendizagem são processos contínuos,
A vida floresce quando há complementaridade dinâmicos e coletivos, envolvendo todos os
e reciprocidade, isso significa gerar espaços integrantes da aldeia nos diversos espaços e
integradores entre diferentes capacidades. O tempos. Conforme Mamani (2010), a educação
cotidiano e as falas mbyá guarani também comunitária é permanente e dinâmica, não
refletem a essencialidade dessa manifestação tendo início e nem se concluindo nas aulas,
nas capacidades individuais e sua integração na sendo essencial projetar também para fora
coletividade, com reciprocidade e cooperação. das atividades escolares, se constituindo como
Mamani (2005) explica que, na uma educação de todos, com envolvimento dos
cosmologia dos povos indígenas andinos, diversos atores da aldeia, permitindo tomar
930 Beatriz Osorio STUMPF; Maria Aparecida BERGAMASCHI. Elementos espirituais, simbólicos e afetivos na...
autora, “a voz de Nhanderú vai aproximando a sua identidade. Alguns professores mbyá
educação tradicional guarani da escola”. expressaram ainda a grande força e relevância
A partir da presença de elementos como de momentos culturais que ocorrem nas suas
a espiritualidade, o sentimento, a vivência, formações, incluindo cerimônias com a presença
o simbolismo e a arte para os Mbyá Guarani, dos mais velhos, de modo que os espíritos fiquem
compondo integralmente seu cotidiano e, mais fortalecidos.
portanto, em relação com a aprendizagem, a Um emblemático desenho elaborado
memória e o saber, destacamos a importância pelo professor guarani Alberto Sandro Ortega,
de considerar esses aspectos na construção citado por Bergamaschi e Menezes (2009, p.
da escola diferenciada, conquanto os sabidos 175), representa a escola no limite entre dois
desafios no diálogo com o modelo de escola mundos, mostrando a ambiguidade em que vive
ocidental, o qual originalmente não prioriza esse povo, apertado entre duas culturas diferen-
essas dimensões. tes. A escola, no desenho do professor Alberto,
As diferenças entre o pensamento aparece como uma interface, uma região de
ocidental e o ameríndio estão conflitualmente fronteira, passagem ou ponte entre o mundo
presentes na escola indígena, espaço onde guarani e o mundo dos brancos. Essa metáfora
precisam dialogar em processos construtivos simboliza um espaço de encontro, de circulação
interculturais. Durante reuniões na aldeia de saberes de duas culturas, no sentido de per-
Tekoá Anhetengua, para elaboração do projeto mitir o diálogo, a troca, a complementaridade.
político pedagógico da escola, bem como Ao olhar esse desenho, fica mais evidente que
nas reuniões da Rede de saberes indígenas a ponte está sendo construída, mas precisa ser
na escola – Núcleo UFRGS, falas revelaram trabalhada com atenção para que não se trans-
a dificuldade de integrar as duas realidades. forme em ruptura, para que não seja um corpo
Ficam muito evidentes as contradições entre a estranho dentro da aldeia, o que reforçaria a
escolarização ocidental, com a predominância dicotomia entre dois mundos.
da racionalidade, objetividade, divisão de Mesmo que a escola seja a instituição
conhecimentos, rigidez de horários e prazos para veicular os conhecimentos do mundo
e a educação indígena, com forte presença de exterior, para se constituir específica do povo
elementos relacionados com a imaginação, a mbyá-Guarani, ela precisa ter, de alguma
intuição, a afetividade e a espiritualidade. forma, os aspectos que são relevantes para
Algumas falas registradas durante essa cultura, a fim de que não ocorra uma
essas atividades mostraram preocupação pelo ruptura entre as duas formas de educação. A
fato de prevalecer os ideais do Ministério e dificuldade para fazer a escola diferenciada é
das Secretarias de Estado da Educação, além uma constatação que se repete nas reflexões
de dificuldades provenientes de questões que os coletivos mbyá guarani fazem para
administrativas e de gestões incompatíveis com a pensar a escola que precisam. Contudo, apesar
proposta ameríndia. A escola com cara de branco das grandes incompreensões que perduram
foi citada como expressão desse obstáculo, nos processos de implantação de escolas nas
com propostas pedagógicas elaboradas por não aldeias, já foi constatado que é no fazer diário,
indígenas, com regras prontas e concepções nos pequenos, mas potentes atos que os sentidos
dominantes, além da falta de autonomia para da escola diferenciada vão se construindo,
criar, pensar a escola com ideias próprias, ter “ao apropriarem-se de um aparelho educativo
um calendário diferenciado, por exemplo. As que não nasceu no interior de suas antigas
manifestações mostraram a importância de que tradições, mas que, ao trazê-lo para dentro
a escola constitua um espaço de contribuição da aldeia, conferem-lhe significados próprios”
para que o povo reconheça, afirme e valorize (BERGAMASCHI, 2005, p. 227).
932 Beatriz Osorio STUMPF; Maria Aparecida BERGAMASCHI. Elementos espirituais, simbólicos e afetivos na...
pedagógica diferenciada precisa ocorrer em político, como instrumento de poder, como
conexão com a sabedoria dos mais velhos, a aspecto que não pode ser controlado por outros,
tradição dos ancestrais e a complementaridade assim como a memória e a imaginação. Porém,
entre a escola e a comunidade. essa sociedade não descarta a importância dos
O cotidiano da aldeia pode ser aproveitado registros. Em encontro realizado na aldeia de
como conexão para a aprendizagem de diversos Riozinho, mostramos o desenho do professor
temas e conteúdos escolares, e é nesse cotidiano guarani Alberto Sandro Ortega (BERGAMASCHI;
que aparecem questões de grande profundidade MENEZES, 2009, p. 175). Em seguida, um
e sabedoria, relacionadas com a cosmologia, professor da aldeia tomou a palavra e se referiu
além de permitir a observação da natureza ao fato de que o autor do desenho já havia
e a resolução de questões práticas junto aos falecido, mas que aquele desenho ainda estava
adultos. Observamos que esta aprendizagem vivo, destacando a importância do registro,
vivencial pode ser integrada ao ensino escolar, através do desenho e da escrita, para que a
através de reflexões, elaboração de registros, memória se mantenha viva.
ilustrações, cálculos, medições etc., conectada
a diversos conteúdos e áreas de conhecimento. Considerações finais
Desse modo, a escola é também vista
como espaço cultural, com uma educação A vida mbyá guarani apresenta elementos
articulada com a vida, com as questões da aldeia, vivenciais complexos, presentes em seus processos
os ciclos, o calendário próprio. As vivências e educacionais não escolares. Consolidam uma
reflexões podem originar a construção coletiva continuidade milenar, no entanto precisam
de calendários, permitindo a identificação das também se constituir como fundamento na
mudanças naturais ao longo do ano. É assim construção da escola diferenciada e específica desse
internalizada a importância do calendário lunar povo, contribuindo para uma afirmação cultural,
para os cortes, plantios e colheitas; o papel junto ao acesso a tecnologias e conhecimentos de
do caminho do sol, não só no plantio, mas outras culturas. A espiritualidade, a sensibilidade,
no local de construção da opy, por exemplo. o simbolismo, a vivência e a arte constituem
Esse calendário pode servir de base para a alguns desses elementos.
programação escolar, pois o tempo escolar A sensibilidade se mostrou como uma
ocidental é uma imposição do ritmo de uma dimensão essencial para a construção de uma
sociedade, de forma separada e desconectada escola mbyá guarani viva, em que a cultura
da natureza e das diversas tradições indígenas possa pulsar forte, com toda a sua energia e
e das especificidades de cada aldeia. Evidenciar força. O sentimento também está integrado ao
e valorizar os conhecimentos mbyá guarani simbólico, como forma de conexão espiritual,
são formas de fazer a escola intercultural e de acesso a aspectos intuitivos, como as
aprender o que vem de fora da aldeia a partir mensagens provenientes dos sonhos. A arte é
da afirmação do que lhes é próprio. expressão viva do sentimento e do simbólico,
Precisa ser ressaltado ainda o papel o elo com outras dimensões da aprendizagem.
da escola na manutenção da língua, no seu A aprendizagem vivencial, envolvendo
significado orgânico, de organismo vivo, em todos os sentidos, cuja importância se manifesta
contínua criação e transformação. Em todas as na educação mbyá não escolar, também tem sua
aldeias que desenvolvemos a investigação, o que relevância na educação escolar, inclusive como
predomina é a língua guarani, o português não forma de articulação com as outras questões
é apreendido por todos, principalmente pelas da aldeia. A escola mbyá pode ser vista como
crianças, que apenas o tem no espaço escolar. espaço contínuo de criação coletiva, de forma
Nesse sentido, a língua aparece em seu aspecto celebrativa, com uma trajetória de construção
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