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EDITORIAL

S
eguimos nosso trabalho,nossas vidas. Mas há momentos em que
somos afetados de forma particular e intensa, é importante referi-los.
Mesmo que o que se possa dizer sobre eles não tenha como dar
conta do acontecido. Não podemos simplesmente seguir sem registrar o
abalo, acusar o golpe. O acidente de avião ocorrido recentemente (vôo Porto
Alegre – São Paulo), com todas as suas mortes, nos afeta hoje profunda-
mente. Encontro com algo do horror que saiu do muito familiar, vôo de nossa
cidade, praticamente de nossas casas, todos temos laços que hoje encon-
tram um luto.
Temos falado recentemente também, no duro lugar que é aquele do
testemunho. Somos neste momento, testemunhas.
Testemunhar frente ao horror faz lembrar Primo Levi e seu sonho. Ele
escreve “É isto um homem?”, relato de anos vividos no campo de Auschwitz,
onde sonha: neste sonho ele estava reunido com a família, narrando o coti-
diano do campo de concentração. Do horror. E o que ocorria na medida em
que ele falava, no sonho, era que um a um de seus parentes ia deixando de
prestar atenção, se ocupando com outras coisas, até, por fim, ir embora por
último, até mesmo sua irmã. Resulta uma dor desolada. Ainda no campo de
prisioneiros, ele comenta, com um amigo, desse sonho. O amigo responde
que talvez mais de um sonhasse assim, e que esse poderia ser mesmo o
sonho, o temor de todos ali. A insuportabilidade do lado do ouvinte, de quem
se constituía em testemunha.
Testemunhar implica, no sentido forte, isso que não é nada simples e
que Gagnebin formulou de forma tão direta em seu “Lembrar escrever esque-
cer” : suportar não ir embora. Responsabilizar-se, implicar-se. O que Paul
Celan registrou, com outras palavras – testemunhar como “agüentar a soli-
dão de uma responsabilidade, e a responsabilidade desta solidão”. Um a um
e no laço social.
As tricoteiras, mulheres aposentadas que estavam neste avião, levavam
uma trama inusitada: um cachecol de 200 metros, representando sua insistên-
cia em ocupar um lugar de cidadania. Suas colegas vão substituir o cachecol
perdido por uma faixa de luto e seguir sua reivindicação por justiça. Suportar
não ir embora e ocupar seu lugar de responsabilidade concerne a todos nós.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 1


NOTÍCIAS

JORNADA: A ANGÚSTIA NA CLÍNICA PSICANALÍTICA

A psicanálise produziu um estatuto singular para a angústia, ao situá-


la no centro da condução dos tratamentos, fazendo do seu manejo e dos
seus desdobramentos um dos eixos principais do trabalho psicanalítico.
Discutir “o único afeto que não engana” é cada vez mais importante e
atual, pois interroga tanto as neuroses de angústia clássicas (fobias, obses-
sões), quanto as psicoses, e mesmo as chamadas “síndromes” e “déficits”
dos mais variados matizes.
Este afeto, fundamental e constitutivo, é tema primordial do nosso
cotidiano, pois, como falantes, somos todos afetados pela linguagem.

Inscrições:

Categorias Antecipadas até 08/10/2007 Após ou no local


Associados R$90,00 R$120,00
Estudantes R$100,00 R$130,00
Profissional R$120,00 R$150,00

Datas: 20 e 21 outubro 2007


Início: 9h30min.
Local: Centro de Eventos Plaza São Rafael
Endereço: Av. Alberto Bins, 514 - Porto Alegre/RS
Inscrições abertas na Secretaria da APPOA

2 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.


NOTÍCIAS

SEMINÁRIO “LÓGICA PARA COLORIR”


SEMINÁRIOS COM LIGIA VÍCTORA

Três Seminários sobre a lógica básica de Jacques Lacan, para princi-


piantes.
– Em tudo há uma lógica... O sistema a b g d ;
– Cuidado com o fantasma! A lógica da fantasia;
– Você usa a lógica quântica todos os dias e não sabe! A lógica, de
Aristóteles a Lacan.

Datas: sextas-feiras 10, 17 e 24 de agosto


Horário: das 18h15min às 20h15min
Inscrições abertas na Secretaria

PRINCIPAIS EVENTOS EM 2008

JORNADA DE ABERTURA
Data: 29 de março.
Horário: 10h.
Local: Centro de Eventos da AMRIGS - Porto Alegre, RS.

RELENDO FREUD
Datas: 30 e 31 de maio e 01 de junho.
Local: Hotel Laje de Pedra - Canela, RS.

Encontro do CONGRESSO DA CONVERGÊNCIA LACANIANA


Datas: 15,16 e 17 de agosto.
Local: Sede da APPOA e Santander Cultural - Porto Alegre, RS.

CONGRESSO da APPOA
21, 22 e 23 de novembro.
Local: Centro de Eventos da AMRIGS - Porto Alegre, RS.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 3


SEÇÃO TEMÁTICA

A
topologia, que surgiu no final do século XIX, buscava o rigor da “estru-
tura”, sem levar em conta a forma, o tamanho, as cores ou outras
características superficiais dos objetos. Ela influenciou não somente
as matemáticas do século XX, como também as ciências humanas – a filo-
sofia, com o estruturalismo; a lógica moderna e a ciência da computação; a
lingüística e as teorias da comunicação; a psicologia (desde Freud e seu
“Projeto para uma psicologia científica”) e não poderia deixar de influenciar
sua contemporânea – a psicanálise.
Assim, a classificação freudiana das doenças mentais conforme es-
truturas – neuroses, psicoses e perversões – nos leva a trabalhar continua-
mente. Seriam as estruturas estáveis? Haveria passagem possível entre elas?
Será que podemos pensar uma “lógica” das estruturas? Ou, mais ainda,
haveria uma “topológica” para cada uma delas? Movido por estas dúvidas,
este ano o Seminário de Topologia da APPOA está discutindo textos funda-
dores e casos clínicos sobre o tema.
Quando observamos a passagem que Lacan fez pelos diferentes
referenciais teóricos (geometria plana, grafos, geometria projetiva, topologia
das superfícies, teoria dos nós), vemos que, mais que uma questão topológica,
há uma lógica em desenvolvimento, que corresponde à dialética das estrutu-
ras clínicas.
Agradecemos a todos os que participam deste número do Correio –
discutindo, no Seminário de Topologia, escrevendo, traduzindo os artigos de
nossos colegas estrangeiros, ou, como você, lendo nossos trabalhos.

Ligia Gomes Víctora

4 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.


VÍCTORA, L. G. Apresentação.

Garrafa de Klein

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 5


SEÇÃO TEMÁTICA

EPISTEMOLOGIA E TOPOLOGIA LACANIANA:


TEMPO DE COMPREENDER

Almerindo A. Boff1

E
m artigo anterior (Boff, 2006), indaguei a respeito das possíveis rela-
ções entre a topologia lacaniana, a epistemologia e a clínica psica-
nalítica contemporânea. Retomo esta discussão agora. Apresento,
inicialmente, os pontos principais levantados naquele momento. A seguir,
teço considerações a respeito de alguns problemas presentes na clínica
atual, bem como de questões epistemológicas que se apresentam para a
psicanálise como ciência do século XXI. Finalmente, apresento algumas re-
flexões a respeito do papel da topologia na teoria e na prática da psicanálise.

A CLÍNICA DO SÉCULO XXI: UMA CLÍNICA PÓS-MODERNA?


No artigo acima referido, acompanhamos o percurso inicial de Lacan
pelo estruturalismo de Saussure e Lévi-Strauss, levando-o à proposição do
inconsciente estruturado como uma linguagem. Apontamos nesse movimento
o ato em que Lacan filia a psicanálise aos fundamentos epistemológicos
propostos por Lévi-Strauss para a antropologia, rompendo assim com a fun-
damentação epistemológica positivista das ciências naturais do século XIX,
sobre a qual Freud fundara a psicanálise. À medida que o movimento estru-
turalista entra em crise na Paris dos anos 60, Lacan se desloca cada vez
mais para os modelos topológicos em seu ensino, o que o leva ao fascínio
pelos nós borromeanos como via de progresso para sua teorização da psica-
nálise. Nesse movimento, podemos ver um deslocamento da fundamenta-
ção epistemológica da psicanálise, tomando, progressivamente, a matemá-
tica, o lugar inicialmente ocupado pelo estruturalismo de Saussure e Lévi-

1
Psiquiatra e Psicanalista. Mestre em Psicologia (UFRGS). Membro Pleno e Presidente do
Núcleo de Estudos Sigmund Freud.

6 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.


BOFF, A. A. Epsitemologia e topologia...

Strauss. Ao mesmo tempo, a força do que viremos a chamar filosofia pós-


moderna ataca, em Paris, todas as antigas verdades, principalmente a pre-
tensão da formulação de qualquer enunciado de validade universal, o que por
sua vez ataca, ao mesmo tempo, todas sustentações epistemológicas da
psicanálise apresentadas até então.
A partir deste percurso, concluímos aquele escrito (Idem: 22-3) com
uma formulação pretensamente provocativa: “Ainda podemos tomar inspira-
ção no sincretismo religioso do brasileiro, no seu cotidiano recurso simultâ-
neo a crenças religiosas racionalmente incompatíveis entre si, ou na tendên-
cia estética pós-moderna na arquitetura e nas artes plásticas, onde diferen-
tes estilos e padrões estéticos convivem na mesma obra, para imaginar uma
‘clínica pós-moderna’ na qual não há contradição a priori entre o emprego
simultâneo, por alguém em busca de alívio do seu mal-estar, de medicação
de acordo com os preceitos da psiquiatria baseada em evidências, de uma
terapia familiar de orientação sistêmica, de uma terapia cognitivo-
comportamental individual e de uma psicanálise lacaniana. Para sustentar
indignação racional perante esta proposta deveríamos poder articular uma
resposta consistente, a partir da filosofia pós-moderna, à antiga indagação
ingênua: – ‘E por que não?”
No presente trabalho, retomo a discussão nesse ponto. Como psica-
nalista, não me habilito a responder àquela indagação “a partir da filosofia
pós-moderna”. Ao mesmo tempo, como psicanalista, todos os dias, na clíni-
ca, sou obrigado, como todos, a me posicionar perante esta questão. Propo-
nho, a seguir, uma forma de pensá-la.
Apesar da filosofia pós-moderna não homologar qualquer pretensão
de hierarquização entre os saberes contemporâneos, a escuta psicanalítica
identifica o viés do nosso ponto de observação. É apenas através dele que
nos constituímos como psicanalistas. Daí que a escuta da transferência
assume a centralidade que lhe é atribuída no método. Podemos considerar,
portanto, esta escuta da transferência como a única bússola disponível para
a tentativa de verificar o lugar que ocupamos na cena transferencial vivida por
aquele a quem escutamos.

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SEÇÃO TEMÁTICA

Ao mesmo tempo, sabemos que o que permite a alguém telefonar


para marcar uma consulta é a transferência que fez sobre nós antes dessa
decisão crucial. Portanto, essa decisão se fez a partir do bombardeio de
propostas terapêuticas a que estamos assujeitados. Obviamente, se fomos
eleitos, num primeiro momento, no endereçamento do pedido de ajuda, é
necessário que possamos sustentar este lugar privilegiado e, ao mesmo
tempo, constantemente ameaçado.
Serão as decepções e frustações ao longo do percurso que trarão à
cena a figura dos terapeutas rivais, investidos, simbólica ou imaginariamen-
te, de maiores poderes curativos. É neste cenário que se dá a prática psica-
nalítica contemporânea, exigindo, ao mesmo tempo, conhecimentos técni-
cos e habilidades de escuta e intervenção suficientes para levar adiante o
processo analítico em meio às novas formas resistenciais oportunizadas na
sociedade atual.
Neste contexto, torna-se pertinente indagar a respeito do estatuto
epistemológico da psicanálise: trata-se de uma disciplina que ocupa um
território delimitado entre os demais campos da investigação científica? Tra-
ta-se de um saber de outra ordem, cuja abrangência coincide apenas parci-
almente com o campo da investigação científica?
Os psicanalistas se dividem ao tomar posição em relação a esta ques-
tão. Alguns preferem mesmo não discuti-la. Para o presente artigo, interes-
sa avaliar as possíveis fundamentações epistemológicas da pretensão de
defesa da psicanálise como uma disciplina pertencente ao campo da ciên-
cia. A razão disto, no contexto da discussão proposta, é que se posicionar
teoricamente de outra maneira implica sustentar que a prática da psicanáli-
se não tem o amparo de uma investigação conduzida dentro do campo da
ciência. O que implica abandonar o campo da discussão epistemológica e o
escopo do presente trabalho.

POR QUE A PSICANÁLISE É UMA CIÊNCIA?


Quando se trata de responder à questão da cientificidade da psicaná-
lise, a forma como se sustenta a resposta é mais importante do que a pró-

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BOFF, A. A. Epsitemologia e topologia...

pria resposta. Ao longo desta apresentação, a sustentação da resposta


positiva à indagação foi dada por Freud a partir dos achados empíricos
de sua investigação e por Lacan a partir da possibilidade de representa-
ção matemática da lógica da operação do inconsciente. Este movimento
está presente desde os momentos inaugurais da reflexão epistemológica.
Dyson lembra que, no começo do século XVII, Francis Bacon, na Ingla-
terra, e René Descartes, na França, proclamaram o nascimento da ciên-
cia moderna. Apesar da contemporaneidade, no entanto, suas visões a
respeito do que esta seria eram muito distintas. Para Bacon, esta se
realizaria observando-se atentamente “os fatos da natureza”: a partir do
acúmulo destas observações, os cientistas induziriam as Leis que a Natureza
obedece. Para Descartes, partindo do seu cogito, as Leis da Natureza
poderiam ser deduzidas corretamente segundo as regras da lógica. Nos
quatro séculos seguintes, os cientistas ingleses tenderam a ser baconianos
e os cientistas franceses tenderam a ser cartesianos. (Odifreddi, 2000: xi-
xii)
Na primeira metade do século XX, vemos a cientificidade da psicaná-
lise ser questionada a partir do verificacionismo defendido pelo neopositivismo
do Círculo de Viena, que considerava seus enunciados teóricos como im-
possíveis de ser empiricamente comprovados ou refutados. Esta crítica le-
vou diversos grupos de psicanalistas à tentativa de refutá-la através do refi-
namento dos procedimentos de pesquisa empírica baseada na teoria psica-
nalítica, empreendimento que está em andamento no momento. (Person,
2005) Enquanto este grupo de psicanalistas alinhou seu trabalho à tradição
científica inglesa, o desenvolvimento teórico de Lacan apostou nos progres-
sos da lógica como o caminho mais promissor, o que resultou na valoriza-
ção crescente da topologia nas suas teorizações.
A partir destas observações, percebe-se que a pesquisa psicana-
lítica atual é concebida de acordo com a fundamentação oferecida à defesa
da cientificidade da psicanálise, em consonância com as diferentes tradi-
ções da pesquisa científica impulsionadas a partir do pensamento da
modernidade.

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SEÇÃO TEMÁTICA

PESQUISA PSICANALÍTICA NO SÉCULO XXI:


MOMENTO DE CONFLUIR?
O alvorecer de um novo século é momento tentador para previsões
especulativas. Especulações sobre os rumos da pesquisa psicanalítica no
século XXI podem ser feitas a partir da indagação a respeito da possibilidade
de uma futura confluência entre estas duas tradições. Esta confluência entre
a utilização conjunta de modelos matemáticos e de observações empíricas
levou, no século que se encerrou, a progressos notáveis do conhecimento,
como, por exemplo, no campo da física de partículas, da cosmologia, ou
mesmo da meteorologia a partir dos modelos matemáticos da teoria do caos.
O desenvolvimento de modelos matemáticos de fenômenos humanos com-
plexos, como o desenvolvimento emocional (Lewis & Granick, 2000), fenô-
menos sociais (Miller & Page, 2007) ou mesmo a consciência humana
(Tuszynski, 2006), tornam o encontro fecundo entre estes dois mundos ou-
trora distantes, como o mundo da pura lógica e o mundo dos fenômenos
sensíveis, uma possibilidade de probabilidade crescente também no campo
da investigação da subjetividade.
Talvez o século XXI venha a se mostrar um produtivo momento do
confluir destas duas tradições da investigação, vindo a superar-se a histórica
barreira de separação entre o formal e o empírico na condução da pesquisa
científica no campo da psicanálise.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOFF, AA. Epistemologia e topologia lacaniana. In Correio da APPOA, Porto Ale-
gre, n 149, agosto 2006. pp 17-24.
LEWIS, MD & GRANIC, I. Emotion, development and self-organization: dynamic
systems approaches to emotional development. Cambridge: Cambridge
University Press; 2000.
MILLER, JH & PAGE, SE Complex adaptive systems : an introduction to
computational models of social life. Princeton and Oxford: Princeton University
Press; 2007.
ODIFREDDI, P. (2000) The mathematical century. Princeton and Oxford: Princeton
University Press; 2004.

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BOFF, A. A. Epsitemologia e topologia...

PERSON, ES; COOPER, AM; GABBARD, GO. (2005) Compêndio de psicanálise.


Porto Alegre: Artmed; 2007.
TUSZYNSKI, JA. (Ed) The emerging physics of consciousness. Berlin / Heidelberg:
Springer-Verlag; 2006.

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SEÇÃO TEMÁTICA

A TOPOLOGIA DAS ESTRUTURAS CLINICAS

Ligia Gomes Victora

D
iálogo da secretária “gatona” com seu chefe:
Ela, com voz melosa – “Chefinho, será que eu posso te pedir uma
coisa?”
Ele, imediatamente: – “Quanto mais difícil melhor!”
Este fragmento foi me relatado por um paciente, intrigado com por que
teria respondido desta forma impulsiva e curiosa. Associou que nunca con-
seguira nada fácil em sua vida, que nada dera certo da primeira vez, “nem
comprar um fogão”.
O que o fragmento de conversa deixa transparecer é uma sutil diferen-
ça entre os modos de organização, por um lado, de uma possível histeria, e
por outro, de uma neurose obsessiva, diferença esta manifesta na maneira
de dispor os significantes em forma de fala. Revela também o que estaria por
trás, impulsionando a fala – a relação com o Outro no que tange ao Seu
desejo na histeria (“será que o Outro me deseja tanto que posso lhe pedir
qualquer coisa?”) ou à Sua demanda, na neurose obsessiva (“o que o Outro
ordenar eu cumpro!”).
No diálogo epigrafado, se ele fosse também um histérico, provavel-
mente responderia assim: – “Bah, gata! Nem sabe. Ia mesmo te pedir um
favor. Adivinha o que me aconteceu?...”.
Falar em topologia das estruturas clínicas pode parecer redundância,
pois a topologia pressupõe a existência de uma estrutura. Sabemos que os
significantes se organizam em forma de rede. Mas, se os radiografarmos um
a um veremos que eles têm estrutura mœbiana. Como na cinta de Mœbius,
localmente, pode-se destacar direito do avesso, mas, no conjunto, é só um
e mesmo tecido. Consciente e inconsciente deslizando sobre os dois apa-
rentes lados de uma só face. Finalmente, podemos encontrar a estrutura
que Lacan, e, antes dele, Frege, De Saussure e Freud buscavam para sen-
tido e significação (sinn e bedeutung) de cada palavra.

12 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.


VÍCTORA, L. G. A topologia das estruturas...

EXISTEM TOPOLOGIAS DIFERENTES


PARA NEUROSE E PSICOSE?
Lacan fez, ao longo de seus seminários, algumas observações sobre
diferenças topológicas entre a neurose obsessiva e a histeria, ambas dentro
do mesmo quadro composto por “falasseres” que tiveram acesso à castra-
ção simbólica.
Quanto às diferenças entre neurose e psicose, seriam ainda mais
radicais. Podemos acompanhar este raciocínio em inúmeros textos de Freud
e Lacan. A neurose se organiza a partir da lógica da alienação, forjada (no
‘bom’ sentido) por Lacan em sua releitura de Freud (Wo es war soll Ich
werden) e de Descartes (Cogito ergo sum), entre outros. Para o neurótico, a
construção do Outro seria primordial, e viria a partir do recalque original,
quando a pulsão incestuosa e o Significante ligado a ela ficariam recalcados,
e, a partir desta falta, todos os outros significantes se organizariam em ca-
deia. O Significante Mestre (S1) na base, mesmo recalcado, ou justamente
por isso, permitiria o acesso a níveis mais complexos de simbolização, e
daria suporte à castração simbólica.
Porém, na gênese das psicoses, considera-se que haja um “defeito”
nesta construção: falta esse recalque inicial, e o S1 fica foracluído para
sempre. Sem o corte da privação original, os outros significantes não se
organizam em séries ordenadas. Por isso, quando procuramos uma topologia
para a psicose, vamos buscá-la em estruturas fechadas, biláteras, que man-
tenham separados consciente e inconsciente, na maior parte do tempo.
No seminário “A identificação”1, Lacan apresentou o toro como estru-
tura do sujeito pré-castração simbólica. O toro tem o formato de uma bóia,
furada no meio e no interior. Pode-se pensar nele como uma superfície de
revolução, formada por uma bobina infinita de demandas girando em torno de
uma linha imaginária de desejo. O desejo, inconsciente, ficaria escondido no
centro, enquanto que as demandas formariam o tecido da bóia. Esta estrutu-

1
Lacan, J. Seminário A identificação, lição de 07/03/1962.

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SEÇÃO TEMÁTICA

ra é útil para compreender a psicose: não ocorrendo o corte, operado pelo


Outro, o toro continua fechado.
Já na neurose, os significantes do Outro vão operar cortes nesta bóia,
que, assim, se transformará, de bilátera (dois lados, um interno, outro exter-
no) em unilátera (um só lado). Lembrando que são sempre os cortes que
engendram as superfícies, o corte capaz de produzir esta transformação
radical não é simples, e também não é operado de uma vez só. Ele tem a
forma de um oito-interior. Primeiro ele abre a superfície do toro em uma cinta
retorcida. Depois as bordas desta devem ser coladas, formando então uma
cinta de Mœbius. Este corte em dupla volta representa a castração simbóli-
ca. Ele assegura a estrutura mœbiana do eu (consciente e inconsciente,
agora juntos) e a possibilidade da construção do fantasma ($<>a), a relação
imaginária do sujeito com seu desejo inconsciente.
Então, para uma topologia da neurose vamos sempre necessitar de
uma estrutura unilátera, mœbiana.
Considera-se a neurose como uma defesa contra a castração simbó-
lica. Pode-se pensar que a psicose seja uma defesa contra a privação real
do corpo da mãe? Privado da privação, o psicótico ficaria “completo”, inca-
paz de desejar, pois foi-lhe negado sentir falta...

EXISTE UMA TOPOLOGIA PRÓPRIA A CADA NEUROSE?


No mesmo seminário de 1961/622, tratando das relações do neurótico
com o Outro, Lacan apontou diferenças quanto à precocidade da separação
da mãe, o que resultaria na encruzilhada da definição das neuroses, diga-
mos assim. Também chamou a atenção para a ênfase que o sujeito daria ora
à demanda, ora ao desejo, em sua interpelação ao Outro. À demanda do
Outro, tomada como objeto do seu desejo, na neurose obsessiva. Ao dese-
jo, na histeria, tomado como suporte de suas demandas. Sabemos o papel
que o desejo tem para a histeria, desde Freud – que já demonstrara como
ele só se mantém por ser insatisfeito.

2
Idem, lição de 30/05/1962.

14 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.


VÍCTORA, L. G. A topologia das estruturas...

Freud também apontara algumas nuanças diferentes não só na forma-


ção sintomática como na gênese das duas neuroses. Uma intimidade dema-
siada com o corpo da mãe na neurose obsessiva levaria a ter prazer demais,
e futuramente gozo de menos, enquanto que na histeria uma frustração pre-
coce faria com que tivesse prazer de menos, e, futuramente, gozo demais
(nem que fosse com o sofrimento...).
Ainda na mesma lição citada acima3, Lacan sublinhava as diferenças
entre a Histeria e a Neurose obsessiva no que tange à angústia, que Freud –
em “Análise finita e infinita” – definira como angústia de castração no ho-
mem, e penisneid na mulher.
Lacan, assim como Freud, se referia nesta época a “o obsessivo” no
masculino, e “à histérica”, no feminino4. Ele disse mesmo que “a histérica”
não teria necessidade de assistir ao seu seminário para saber que o desejo
do homem é o desejo do Outro, e que ela, histérica, poderia perfeitamente
supri-lo! Faço estas observações sobre o sexo das neuroses porque sabe-
mos como anos depois, no seminário “Mais ainda”5, Lacan vai desvincular o
gênero, da escolha da neurose, separando, então, os sujeitos neuróticos
conforme a ‘sexuação’, independentemente de serem histéricos ou obsessi-
vos, o que lhe permitiria articular a suposição de um gozo próprio a cada
sexo.
A relação sexual pode não existir, mas a diferença sexual... continua
a mesma!

UMA TOPOLOGIA PARA A HISTERIA


A garrafa de Klein foi proposta por Lacan inicialmente para representar
a estrutura da fala e do significante6. Partindo da virada que fez Descartes no
seu raciocínio cogito ergo sum, Lacan a compara com um ponto de capiton,

3
Ibidem.
4
Mesmo que l’hystérique, pode se referir ao masculino ou ao feminino, na seqüência ele
costumava dizer l’hystérique, elle: “a histérica, ela”.
5
Lacan, J. Seminário Ainda, lição de 13/03/1973.
6
Idem, Seminário Problemas cruciais..., lição de 16/12/1964 e seg.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 15


SEÇÃO TEMÁTICA

uma sutura entre duas dimensões, que pressupõe um corte. Abre um bura-
co, ao mesmo tempo que o preenche.
Descrita pela primeira vez em 1882, na Alemanha, pelo matemático
Felix Klein (1849-1925), a chamada “garrafa de Klein” é uma superfície unilátera
fechada, não-orientável. Com característica de Euler = zero, ela não separa
interior e exterior. (Fig.1)
Ela aparentemente possui uma boca, mas esta boca não é como as
outras, porque não perfaz uma borda, ela é “fofa”. Então não é uma garrafa
normal, porque não tem dentro e fora.
Seu esquema topológico seria assim (Fig.2), como uma cinta de
Mœbius que tivesse sua borda única costurada, de forma que virasse um
cilindro autotrespassado.
A garrafa de Klein não pode ser construída no espaço Euclideano,
pois não é possível fazer esta operação de autoatravessamento em superfíci-
es tridimensionais sem descontinuidade. Porém, pode-se tentar construí-la
em um espaço não-Euclideano, esticando o pescoço de uma garrafa e o
introduzindo através do corpo da garrafa. Se fizermos uma tomografia longi-
tudinal dela, veremos que a garrafa de Klein é a união de duas cintas de
Mœbius, uma destra e outra esquerda, postas em continuidade, isto é, cola-
das sem emendas. (Fig 3)
No seminário “Um discurso que não seria semblante”7, Lacan propôs
a garrafa de Klein como estrutura própria da histeria, formalizando, assim, a
histeria, a partir somente de termos da estrutura disposta pela linguagem.
Um ano antes, no seminário “O avesso da Psicanálise” – também
conhecido como o seminário dos quatro discursos – Lacan apresentara uma
nova dimensão da linguagem. Distinguindo “fala” de “discurso”, ele abordou a
histeria como forma discursiva, não só como estrutura neurótica ou conjunto
de sintomas.
Esta lógica dos discursos tem uma estrutura de grupo, que põe em
jogo quatro termos e quatro lugares, para formar quatro discursos: o do Mes-

7
Idem, Seminário Um discurso..., lição de 09/06/1971.

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VÍCTORA, L. G. A topologia das estruturas...

tre, o Histérico, o Universitário e o Analítico. Os quatro termos são: 1) o


sujeito barrado ($); 2) a causa do desejo (a); 3) o significante mestre (S1) –
representando o Phallus; e 4) o saber (S2) – como meio de alcançar o gozo
(o S2 pode ser lido também como corpo, no sentido de que é a “in-corpo-
ração” da cadeia de significantes que faz – daquilo que era somente um
organismo – um corpo)8. E os quatro lugares são: 1) do agente; 2) do outro;
3) da verdade; e 4) da produção. A cada um quarto de volta, as relações entre
esses termos e lugares vão se alternando, o que nos permite observar como
os mesmos elementos estão em jogo, tanto na constituição do sujeito, como
nos laços sociais.
O discurso histérico seria como uma reação ao discurso do Mestre.
“S1”, que neste último era o agente, não está mais em posição de comando,
mas no lugar do Outro. Então pode ser interpelado, provocado, para provar
seu saber (o professor ou o psicanalista, por exemplo, serão questionados).
O sujeito/barrado é quem está agora no lugar do agente. Ele se manifesta
com queixas de sofrimento corporal, insatisfação, objeções, e questiona,
sempre em posição transferencial em relação ao Pai. “S2”, no discurso his-
térico, pode ser lido como o corpo, já que é a in/corporação da cadeia dos
significantes. Sob a barra, “S2” (o corpo) escapa da autoridade de “S1” (leia-
se: o Significante Phallus).9
Qual a relação entre a garrafa de Klein, a histeria e o discurso dito
histérico? Neste momento, em que está organizando os quatro discursos,
Lacan falava da significação do falo (die Bedeutung des Phallus) para “a
histérica”: ela conjugaria a verdade de seu gozo ao saber implacável que ela
tem, de que o Outro próprio para causar desejo é o falo, ou ao menos, um
substituto do falo.10

8
Vemos na clínica sempre exemplos de pacientes que, repentinamente, parecem “adquirir”
corpo, às vezes penosamente, pegando todo tipo de doenças às quais antes passavam
imunes.
9
Cf. Melman 2007, notas de curso.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 17


SEÇÃO TEMÁTICA

O que impressionava Lacan foi o que ele chamou de “ponto de


reviramento” (point de rebroussement), da garrafa de Klein. Este conceito de
rebroussement em matemática é usado no estudo das curvas, e corresponde
ao ponto em que a curva faz a volta, para mudar sua trajetória. Mas parece
que Lacan não se referia à curva em si, mas ao momento em que o pescoço
da garrafa atravessa seu corpo em direção a seu interior, ou seja, à introdu-
ção do gargalo na garrafa, o que seria um momento de reflexão, em todos os
sentidos. Uma amarração que faz buraco, ele disse então. É o mesmo que
se pode pensar da função do discurso histérico.
Conforme Charles Melman11, o que Freud chamava de “complacência
somática”, é a recusa de seguir ao significante mestre – à norma fálica. O
sintoma seria como um outro Phallus, feminino, do qual o corpo seria a
sede. Buscar um mestre que possa dominar o saber é o intuito da histérica
que, por sua vez, recalca a falta e provoca a fala no corpo. Contudo, o efeito
deste discurso é provocar, pois ele desafia a autoridade, propondo insisten-
temente a dúvida sobre o saber do Outro.
Abordando a histeria como um discurso em que o sujeito/barrado era
o agente, Lacan compreendeu que toda cura passava por esta estrutura. Ou
seja: todo analisante fala, durante sua análise, através do discurso histérico.
O discurso histérico conjuga desejo e verdade, produzindo um saber. Então,
para que se produza “S2” (um saber inconsciente sobre o corpo) é preciso
falar histericamente! Como se pode acompanhar na seguinte passagem: –
“Quem não compreenderia a decepção de Freud ao entender que o “sem-
cura” 12 ao qual ele chegou com a histérica não tinha nada demais, a não ser
para lhe fazer reclamar o dito semblante, frequentemente vindo de vertentes
reais, por ter reunido neste ponto de reviramento, que, para ser encontrado

10
Lacan, J. Seminário Um discurso..., lição de 09/06/1971.
11
Melman, Novos estudos...
12
No original: pas-de-guérison – que em espanhol foi traduzido como “passo de cura”.

18 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.


VÍCTORA, L. G. A topologia das estruturas...

sobre o corpo (ou, por não ser não-encontrável) – é evidente, é uma figuração
topologicamente totalmente incorreta do gozo em uma mulher.”13
Freud já dissera que o funcionamento do corpo da histérica era pertur-
bado por significantes (ou representantes de representações, como ele di-
zia) recalcados, que o tornavam como que um “corpo estranho”. Qual era o
sentido dos seus sintomas? Qual seu significado? Como curá-los? Como
curar Dora de seu sintoma – “ser mulher”? Esse corpo “sem-cura” da histeria
me fez pensar na dor crônica de que muitas pacientes (só vi isso em mulhe-
res) se queixam. Algumas chegam ao consultório dando o próprio diagnósti-
co, como uma senhora de sessenta anos: – “Descobri que eu tenho
fibromialgia”. Pergunto: – “Onde te dói?” – “Tudo. Não tem um ponto. Se
tocas aqui, dói. Aqui, dói. Aqui, dói...” (vai mostrando no corpo). Parece
mesmo a imagem do corpo revirado, os nervos à flor da pele: tudo dói. “O
mais profundo é a pele”, disse certa vez o poeta Paul Valéry.
Esta topologia de uso familiar, como Lacan se referia à garrafa de
Klein, foi-lhe útil para falar das representações recalcadas, que emergem no
corpo, pois ela é literalmente revirada do avesso.
Haveria um erro na inscrição dos significantes – um que falta, um
desencontro, um escorregão, um encontrão entre eles... E eles pulam para
fora, revestem a pele, inconciliáveis e irreconciliáveis com os ideais do eu. O
que foi mal dito torna-se literalmente maldito.
Assim como trabalhei uma vez a adição ao jogo como uma operação
matemática (de “adição”), pode-se pensar aqui na operação de “subtração”
de significantes. O significante que falta, em um lugar esburacado no Outro
“S (A)” cria um campo de diferença com seus vizinhos. A subtração de
significantes (ao -1) faz a “diferença”, embora permita uma unidade imaginá-
ria ao corpo histérico, porém com aquele “reviramento” que os torna traumá-
ticos, ou melhor, “traumatemáticos”.

13
Lacan, J. Seminário Um discurso..., lição de 09/06/1971. Tradução da autora.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 19


SEÇÃO TEMÁTICA

Lacan 14 vai insistir neste ponto de reviramento, como sendo um ponto


que, mesmo não sendo impossível de ser encontrado no corpo, tem, contu-
do uma figuração “topologicamente incorreta”. Embora ele exista, “ao menos
um”. E ele brinca com esta palavra: homenosum (hommoinsun), objeto a –
união de – menos um (aUmenosum), entre outros trocadilhos. Mas, tam-
bém: “não mais que um” é necessário!
Talvez o encontro marcado com a histérica seja, por isso, sempre um
encontro faltado. Como na garrafa de Klein, pode-se até colocar água dentro,
mas, como tirá-la de lá?

BIBLIOGRAFIA:
FREUD, S. Sobre los tipos de contracción de neurosis (1912). Ed. Em CD Rom
das Obras completas de Sigmund Freud. Vol.12.
LACAN, J.-M. Seminário 1969-70. L’envers de la Psychanalyse. Ed. Association
Freudienne Internationale.
_____. Seminário 1970-71. D’un discours qui ne serait pas du semblant. Idem.
_____. Seminário 1972-73. Encore. Idem.
MELMAN, C. Novos estudos sobre a histeria. Ed. Artes Médicas. Porto Alegre,
1985.
_____. Como alguém se torna paranóico? Notas sobre seminário – São
Leopoldo, maio 2007.
VÍCTORA, Ligia G. O gozo do jogo. In: Revista da APPOA, Tóxicos e manias, no 26.
Porto Alegre: APPOA, 2004.

14
Ibidem.

20 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.


VÍCTORA, L. G. A topologia das estruturas...

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 21


SEÇÃO TEMÁTICA

ENSAIO SOBRE A TOPOLOGIA


DA NEUROSE OBSESSIVA1

Bernard Vandermersch2
Tradução: Denise Gick 3

I. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
SOBRE A UTILIZAÇÃO DA TOPOLOGIA NA CLÍNICA:
1 - A constatação de que nossas operações mentais, no esforço de
teorização ou mesmo na nossa prática, recobrem uma topologia implícita,
sem dúvida não nos leva muito longe. Contudo, notemos que, já em Freud,
existe uma freqüente inadequação entre uma prática ingênua da língua, que
em decorrência disso é guiada pela topologia desconhecida que esconde
uma teorização do aparelho psíquico, que se desdobra sem sabê-lo, num
espaço modelado sobre o espaço sensível: plano da folha de papel onde se
projeta uma cartografia de limites, de inclusão e de exclusão, volume do
corpo imaginário engendrando as categorias sensíveis de profundidade, pe-
netração, incorporação, etc... Essas representações parecem operar com
eficácia até o ponto para além do qual os paradoxos da clínica se embaralham
mais do que são explicados. É então seguidamente o fator quantitativo, qual-
quer que seja a forma empregada, que é solicitado a mascarar de alguma
maneira as falhas persistentes.
2 - Mas, qual topologia? O mais pertinente na utilização da topologia
na psicanálise subsume-se sob duas rubricas:
a) explicar os elementos de topologia matemática utilizados por Lacan,
mostrar as linhas mestras, as correspondências, etc...
b) utilizar os objetos topológicos escolhidos por Lacan e continuar a

1
Texto publicado originalmente em Le Trimestre Psychanalytique 2/1992, La topologie en
clinique. Publication de l’Association Freudienne.
2
Psicanalista; Membro da Association Lacanienne Internationale.
3
Psicanalista, fonoaudióloga, participante do Seminário de Topologia da APPOA.

22 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.


VANDERMERSCH, B. Ensaio sobre a topologia...

fazê-los funcionar na nossa clínica. É a disciplina à qual alguns estimam ter


que se aplicar, particularmente, à Associação Freudiana, com o motivo de-
clarado de um ganho heurístico.
3 - Mas trabalhar essa topologia nos preocupa, uma vez que não rece-
bemos de Lacan outro modo de empregá-la, além daquele de “usá-la boba-
mente”. Essa ”bobagem”, própria do significante, seria um remédio contra a
“debilidade” do mental, dada a incapacidade de nosso imaginário em esca-
par aos engodos do campo escópico, mas também contra a nossa esperan-
ça de uma utilidade lógico-matemática, “sábia”, purificada de subjetividade.
4 - Ressaltemos:
– que a escolha de Lacan recai quase sempre, sobre os mais simples
objetos topológicos.
– que seu avanço nunca ocorre pelos desenvolvimentos sucessivos
de um postulado, nem pela exploração sistemática de um achado, mas,
sobretudo expondo o mesmo conceito em objetos topológicos diferentes ou
trabalhando um mesmo objeto com conceitos diferentes, interditando assim,
toda a constituição de um sistema com pretensão não contraditória.
Esses objetos, já bem desgastados, constituem para nós os “prêts-à-
porter” (conforme a fórmula do objeto a) na espera do caso, do fenômeno, do
sintoma, do momento clínico em que poderá ser elucidado. Poderíamos com-
parar o objeto topológico ao ovo de madeira que escorrega para dentro da
meia, permitindo ao discurso mostrar sua estrutura em toda a sua extensão,
ficando assim mais visível o destino do objeto que está na seqüência, sendo,
momentaneamente ou definitivamente, descartado.
5 - Ora, esses objetos parecem muito mais induzir ao fascinado res-
peito, à prudente evitação, verdadeira irritação reprimida e mais seguidamen-
te, coisa estranha para os intelectuais, à declaração sem complexo de uma
incapacidade de compreender o que quer que seja.
De fato, são objetos e são convocados em um lugar muito particular:
lá onde não é mais possível dizer, já que seria um dizer sobre o dizer, mais
precisamente, sobre a causa da enunciação ela mesma, ou seja, para um
neurótico, da castração.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 23


SEÇÃO TEMÁTICA

Uma inquietação, apontada por P. Ségaud, a de ser “tomado por bobo”,


que assim encontraria sua causa: na inevitável ruptura da articulação lógica
do pensamento e em toda a exposição teórica que seria mascarada pela
“Topologia”. Aí, onde a cadeia significante deixa perfurar a falha, ele – o
topólogo – vislumbra o objeto: operação fetichista. Entretanto, esse esforço
de mostração não é forçosamente um escamoteio maior do que o discurso
analítico, de colocar o objeto a na posição de agente, contudo sem se con-
fundir com a perversão. Mas, ao forçar-se esse ponto, esse dizer impossível,
nesse momento é que surge o acting-out: o que não pode fazer-se ouvir
mostra-se, daí o efeito de obscenidade aos quais alguns podem ser sensí-
veis. Em todo caso, esse efeito jamais aparece no trabalho de Lacan, por-
que, sem dúvida, cada um de seus achados abre todo um “campo de possi-
bilidades” até então nunca supostas. Em suma, sua pretensão é, ao mesmo
tempo, enorme e bem modesta. Enorme: seu nó borromeano, que pretende
apresentar o real e não somente dar um modelo. Bem modesta, visto que
desse real, somente, pequenos fragmentos levantam questões.
Nesse modo de abordagem do real, não nos encorajamos na via das
grandes sínteses, mas muito mais nas elucidações sempre parciais.
6 - Qualquer que seja o impacto de uma mostração, nossa topologia
não pode prescindir de definições e convenções. O objeto escolhido para o
nosso ensaio sobre a neurose obsessiva é uma superfície: o cross-cap, de-
finido aqui conforme a utilização lacaniana, uma das imersões, a mais sim-
ples, do plano projetivo no espaço em três dimensões (R³).
Ainda que Lacan tenha empregado muito tempo para apresentar esse
objeto, não é de todo inútil relembrar algumas de suas propriedades.
Algumas são intrínsecas, próprias dessa superfície:
– ela não possui borda, i. é, fechada.
– ela é não orientável, i. é, por exemplo: o desenho de uma mão
esquerda pode se transformar no desenho de uma mão direita sem “forçar”
nada (o que é impossível sobre um plano ou uma esfera).
Outras propriedades são secundárias à imersão dessa superfície num
espaço. No espaço em três dimensões:

24 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.


VANDERMERSCH, B. Ensaio sobre a topologia...

– embora fechada, ela não divide esse espaço em um dentro e um


fora.
– ela só tem uma face.
– ela só pode ser apresentada de maneira imperfeita. Não se pode
evitar que ela se recorte a si mesma (cross-cap) em uma linha de intersecção,
ao qual cada ponto corresponde desse modo a dois pontos diferentes e não
vizinhos.
– essa linha de auto-intersecção pode ser reduzida no máximo a “um”
ponto umbilical4 singular parecendo concentrar sobre esta apresentação im-
perfeita, mas não intrinsecamente, a propriedade mœbiana.
É essa apresentação “boba” que é utilizada por Lacan. Conforme o
caso ele considera que, respectivamente, consciente e inconsciente; simbó-
lico e imaginário; desejo e realidade se designam como o avesso e o direito
em um ponto dado da superfície, apesar de sua continuidade real. O ponto
singular, irredutível, dito ponto phi, representa o phallus simbólico.
Sobretudo essa superfície permite inscrever um corte cujo traçado em
“oito interior” descreve uma dupla volta em torno desse ponto phi, antes de
se enlaçar. De fato, é por esse corte que Lacan define “o ato fundador do
sujeito”: “O um contável [...] não pode ser o um que, ao se repetir ao menos
uma vez e, se fechando sobre si mesmo instaurar na origem a falta da qual
ele se trata [...] de instituir o sujeito”. (Lacan, “A lógica do fantasma”, lição de
16.11.1966).
Na realidade, esse corte produz uma perda, um disco centrado sobre
o ponto phi, representando o objeto a, e introduz uma borda sobre a parte
restante que se torna uma banda de Mœbius.
Notemos que Lacan não teme em dar suporte às propriedades de
especularidade do eu (moi) pelas “imperfeições” desta representação.

4
N.T. Ponto umbilical – cf. Dicionário Aurélio, Geom. Dif. Numa superfície, ponto em que a
curvatura normal é a mesma em qualquer direção.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 25


SEÇÃO TEMÁTICA

Retenhamos aqui o essencial: a aptidão dessa superfície para inscre-


ver a repetição, a segunda volta necessária para instaurar a falta fundadora
do sujeito, ou seja, a castração. De fato é de uma singularidade, de uma
“malformação” deste corte fundador que podemos fazer derivar os efeitos
próprios da neurose obsessiva.

II. TOPOLOGIA DA NEUROSE OBSESSIVA


1 - Charles Melman propôs (lição de 13 de outubro de 1988) que esse
corte teria sido mais conveniente inscrito sobre o cross-cap, mas pela se-
qüência da recusa pelo obsessivo da primazia da ordem genital, de seu
apetite em desqualificar o pênis ao estatuto do objeto parcial, a propriedade
mœbiana do cross-cap era defeituosa.
De qualquer maneira, de um modo figurado, o objeto anal que o ob-
sessivo se recusa a ceder viria enlaçar o ponto phi que parece concentrar
toda a propriedade mœbiana. Desse fato o corte não recorta mais um “cha-
péu de bispo cruzado”, mas uma simples “touca de dormir”, tendo como
conseqüência que os pensamentos inconscientes virão, a partir daí, ao su-
jeito sob a forma de imperativos vindos diretamente do Outro, enunciados na
segunda pessoa: “tu deves reembolsar...” etc...
A elegância desta solução amparada pela clínica e, teoricamente
motivada, não me pareceu, então, dever reduzir totalmente sua característi-
ca um pouco “forçada” (topologicamente falando). De fato, uma propriedade
estrutural, real, poderia então encontrar-se anulada por um artifício “aposto”:
o objeto a; cuja função de tapa-buraco é, forçosamente, inadequada e imper-
feita, mesmo que esse objeto fosse o objeto anal. O fato é que pensei numa
solução que me parecia mais homogênea à topologia, que tentava deduzir
de um corte específico os traços paradoxais desta clínica à qual a castração
parecia a cada vez inscrita e, entretanto, ineficaz tanto para fundar a origem,
como para se concluir em ato.
Essa solução apresentada no seminário de Charles Melman, no dia
20 de outubro de 1988, estabeleceu-se em vários tempos. Trabalhando o
seminário sobre a identificação e a utilização que Lacan fazia do cross-cap

26 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.


VANDERMERSCH, B. Ensaio sobre a topologia...

para inscrever o corte subjetivo, me pareceu que se era possível inscrever um


corte com uma volta e outro diferente, com duas voltas, não era possível
inscrever cortes com três voltas ou mais. Eles não conseguindo mais se
fechar tornam-se infinitos. Na ocasião de um trabalho sobre a neurose ob-
sessiva e o homem dos lobos, foi que me veio à idéia de associar este corte
ao “infinito”.
2 - Para ilustrar que esta topologia deve dar conta, apresentarei breve-
mente um caso de neurose obsessiva, cujo interesse me pareceu residir na
coexistência das manifestações sintomáticas de natureza e idades diferen-
tes.
De um lado, as manifestações apresentadas desde a infância,
comunicadas no período das entrevistas preliminares, com orgulho, pelo
sentimento de satisfação que davam a esse sujeito ter se tornado um ho-
mem adulto e casado. Trata-se de processos de pensamento ritualizados
que podem ser considerados como vestígios piedosamente mantidos no estado
de uma neurose infantil. Eles testemunham uma preocupação em controlar
a causalidade fundando-a sobre a coerência lógica dos processos do pensa-
mento e não sobre o objeto causa do desejo. Entre outros, um rito para
conjurar o acaso, de que nada aconteça de penoso a si próprio ou a seus
próximos: a partir do dito “jamais dois sem três” ele convirá fazer pela ma-
nhã, três sinais da cruz. Mas para evitar, em caso de esquecimento ou de
dúvida se os três sinais da cruz foram efetuados e, a fim de evitar que “o
número dois não apareça numa soma cujo outro termo seria três ou múltiplo
de três”, ele elaborou um sistema que lhe permitiria evitar esses números
nefastos.
Outro exemplo: para controlar a preocupação com o futuro e se uma
situação ou uma questão possui somente duas respostas, sim ou não, en-
tão uma regra de probabilidade de 50% deve ser aplicada (com a exclusão
de toda a preferência subjetiva).
Outros ritos conjuratórios parecem ter uma implicação do olhar com
fins de neutralização: virar a cabeça para trás ao sair, colocar o nariz num
plano elevado (nariz empinado), etc...

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 27


SEÇÃO TEMÁTICA

Outras manifestações apareceram recentemente. Trata-se de


nosofobias que vão se suceder durante o tratamento. Elas parecem teste-
munhar o fato que, quando o paciente se engaja na via de seu dever fálico o
objeto trai sua presença obediente no corpo, como se o apelo para se susten-
tar de um corte efetivo, longe de separar o objeto, o mantém no lugar. A primei-
ra, no início das consultas, é o terror de ter um câncer no testículo esquerdo.
Essa idéia obcecada verifica, na análise, a identificação do lado masculino.
De fato, aparece no dia do aniversário da morte de seu pai, ela retoma um
“traço” comum de um antigo e estimado patrão e do irmão de sua mulher, os
dois portadores de um câncer no testículo, operados e curados, esse sinto-
ma desaparecerá com a análise de uma recordação da infância.
A trégua é de pouca duração e o temor de uma esclerose em placas,
com dificuldades na marcha, aparece quando sua mulher lhe dá sua “aquies-
cência” para ter um bebê.
Entretanto a posição do sujeito aparece ambígua em relação à identi-
ficação sexuada e como dizia C. Melman “há aí uma tendência no obsessivo
em procurar uma identificação, que não o impeça de renunciar ao outro sexo.
Mas com a diferença da histeria masculina, esta identificação tentaria se
constituir do lado masculino (S1) muito mais que do Outro, mas reprimindo o
lado imperativo, tirânico. Ele se esforçaria assim para introduzir no lugar do
mestre uma nova moral, os atributos femininos, o objeto a que ele repugna
retirar para servir o gozo do Outro” (notas do curso).
Essa figura ambígua do controle encontra-se explicitamente em um
sonho: ”Fui recebido no Barclay Bank onde aceitam somente clientes que
possuem certo nível de remuneração. Uma brochura (dentro do banco) fala
do prêmio dado a certa Shirley MacKeen por ter sabido recusar os clientes
indesejáveis com a maior elegância e segurança... isso me faz pensar em
Karen Queensland, essa jovem mulher mantida por tanto tempo numa
sobrevida artificial”. Vemos aí a aliança do S1 (a segurança) e o objeto a (a
elegância), o “mac queen”, verdadeiramente, um corpo suspenso, com a
ameaça do desligamento. Em um outro sonho se vê esse objeto ineliminável:
“Cacos de vidro: jamais chegava ao final dos pedaços de vidro, embora sem-

28 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.


VANDERMERSCH, B. Ensaio sobre a topologia...

pre o procurasse; no espremedor de frutas que quebraria o sistema”. Aqui o


objeto a aparece particularmente “substancial”.
Outro sonho mostra a castração negada por uma operação de presti-
digitação assim como a desqualificação do phallus em relação ao objeto
anal. “Um pequeno camundongo ‘muito limpo’, com uma bela pelagem, como
um gato. Minha prima estava fixada no animalzinho. Eu pensei que fosse um
rato. Ele tinha uma cauda horrível, sem pêlos, escondida sob a pelagem...
muito mais curta (!). Eu toquei na cauda, ela caiu. Minha prima: – não tem
problema, é só colocá-la de volta. Eu a recoloquei pela fenda, ela ficou. Era
um camundongo totalmente imóvel, morto”.
Esse sonho foi produzido durante uma sessão solicitada pelo pacien-
te com urgência, pelo terror incontrolável de estar acometido pela esclerose
em placas, justamente quando sua mulher estava grávida.
A propósito dos pensamentos sacrílegos do homem dos ratos (au-
sentes neste paciente), C. Melman assinalava que eles foram proferidos a
partir do objeto que deveria ser abandonado ao Outro e, que o obsessivo
retinha para seu gozo: “seguramente o objeto seria cortado e mantido no
lugar, de maneira que abre uma interrogação sobre a pertinência do corte, já
que ele, finalmente, não seria renunciado... [...] de onde o convite ao último
ato (cortar-se a garganta) [...]: tudo se passa como se, à falta de um ato que
seria fundador, o certo, alguma coisa vinha sem cessar de se apresentar ao
espírito do obsessivo, a recordação de uma dívida no que concerne ao ato
camuflado, encoberto... aparência de ato”. (notas do curso)
Em outros momentos, o paciente apresentava outras manifestações
orgânicas no âmbito do olho: miopia severa com risco de descolamento da
retina e eczema nos supercílios que foram tratados durante o tratamento, de
maneira totalmente independente,
Em resumo, o corte singular do sujeito na neurose obsessiva:
– identifica o sujeito do lado masculino, apóia-se, portanto sobre a
metáfora paterna, mas elude a castração,
– substitui uma causalidade objetal por uma causalidade fundada na
sucessão lógica do pensamento,

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 29


SEÇÃO TEMÁTICA

– instaura um sistema de querelas, de isolamento contra a contami-


nação pelo objeto não cedido,
– deixa o sentimento de uma falta do ato original,
– no total, divide sem cortar.
Se o sujeito se origina de um ato fundador representado no cross-cap
pela laçada dupla, é de uma falha desse enlaçamento, ao seu insucesso,
que deve se referir a neurose obsessiva.
Após uma primeira volta operada em torno do phallus que imprime
efetivamente sua gravitação, o corte não se enlaça num segundo tempo.
Este aqui faltante, o corte perseguirá seu trajeto em espiral, indefinidamente,
sem poder se encontrar.
Não existe uma 3ª ou 4ª volta que possa se fechar no cross-cap.
Fig. 1. Trajeto do corte obsessivo (infinito).
Fig. 2 Trajeto do corte fundador do sujeito (laçada dupla).
Para uma melhor visualização podemos cortar o cross-cap e o esten-
der sobre o plano da folha, indicando a correspondência dos bordos a serem
suturados para reconstruí-lo (respeitando o sentido das flechas).
Fig. 3 Esquema da laçada dupla.
Fig. 4 Esquema do corte obsessivo.
Fig. 5 O limite centrípeto.
Fig. 6 O limite centrífugo.
Partindo do ponto a, o corte faz uma primeira travessia até a sutura do
ponto b. Partindo daí, em vez de unir o ponto a e se enlaçar num segundo
tempo, ele o deixa e vem no ponto c, onde ele segue seu curso até o ponto
d, etc... sem nunca poder encontrar o ponto a (a não ser que de se recortar
a si mesmo) (Fig 4).
A outra extremidade pode correr no sentido inverso, para x depois
para y etc., encerrando o ponto phi, cada vez mais próximo, mas sem o
alcançar (Fig.5). Assim, o corte avança em espiral pelas suas duas extremi-
dades, explorando todo o campo da realidade psíquica. Se considerarmos
que o objeto é a parte do campo centrado pelo phallus vê-se que ele toma a
forma dessa lâmina caminhante nos intervalos do corte. Ele jamais cedeu,

30 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.


VANDERMERSCH, B. Ensaio sobre a topologia...

mas encontra-se, ao contrário, tão distante para que seja cortado e, guiado
por ele, faz um caminho na parte mœbiana, que é aquela do sujeito.
Reencontramos aqui uma representação que evoca a proposição for-
mulada por Charles Melman, segundo a qual o real na neurose obsessiva
não seria suportado no nó borromeano, em um círculo distinto, e se encon-
traria em referência às extremidades do simbólico apresentado sob a forma
de uma reta infinita.
Do mesmo modo esse tipo de corte explica o funcionamento mental
do obsessivo que parece estruturado pelos números reais e não pelos núme-
ros naturais. Estes últimos, engendrados em um ato fundador pelo qual o 0
(zero), o não idêntico a si, simbolizado pela laçada dupla, sendo contado
como um, a partir disso o dois, o três etc., são possíveis como sucessores.
Da mesma forma que há na observação do homem dos ratos uma incidência
marcante do um e meio, há no nosso paciente um evitamento do dois, que
compreendemos como o eco da recusa desse ato fundador.
Entretanto, por ser infinito, esse corte se inscreve entre dois limites.
– O ponto phi de um lado, indefinidamente aproximado, no sentido da
“gravitação fálica”.
– O outro, no sentido centrífugo, constituiu com uma linha m – m’ que
corta o cross-cap como uma laçada simples, com uma volta (Fig.6). Nas
jornadas de psicossomáticas (“O trimestre psicanalítico”, Nº5), propus que a
laçada simples presentifica o corte na obra da patologia psicossomática,
sempre ameaçando o paciente. Resta-nos salientar que a ameaça ocular
jamais serviu de suporte para sua angústia.
Se for pertinente, isso nos levará a considerar a patologia psicossomá-
tica como podendo, nessa estrutura, resultar de uma tentativa de fechamen-
to que recusaria, entretanto, a castração, o forçamento de um ato sem o
consentimento à perda do objeto.
Enfim, a dissimetria aparente dos dois infinitos desse corte, não o é
sem relembrar a “diplopia” própria no desejo feminino tensionado de um lado
para o phallus e de outra para S ( A )4. Existem alguns paradoxos que espe-
5
Significante do Outro barrado, ou de uma falta no campo do Outro.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 31


SEÇÃO TEMÁTICA

cificam a neurose “masculina” por excelência de um corte topológico aparen-


temente feminilizante. Talvez haja aqui uma pista a explorar?
No total, os resultados heurísticos de nosso caminho parecerão redu-
zidos. Vemos com que finura o real da topologia se separa da analogia ima-
ginária (que se impõe mais, é verdade, com as superfícies do que com os
nós). Com a topologia, há um retorno do recurso ao imaginário, só que um
imaginário mais cru, menos preso ao sentido. Do mesmo modo, ele arrisca
aparecer mais achatado e somente colocado à prova se verificará a pertinência
e principalmente pela crítica que o leitor poderá fazer.

Figuras:

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SCIARA, L. A questão da transferência...

A QUESTÃO DA TRANSFERÊNCIA NAS PARANÓIAS1

Louis Sciara2
Tradução: Patrícia Ramos e Ana Maria Gageiro

H
á muitos anos atrás, analista ainda principiante, recebo no consultó-
rio uma mulher – com sintomas de aparência neurótica – que me
formula um pedido de análise. Após algumas entrevistas prelimina-
res, aceito analisá-la, julgando estarem reunidas as condições de sua de-
manda. Ao final de algumas sessões, desencadeia-se um delírio de vertente
dupla erotomaníaca e persecutória no momento em que alude a uma opera-
ção de apendicite na adolescência.
A ablação, isto é, a subtração do apêndice é evocada como uma
manipulação sexual e uma privação real por parte do cirurgião. O tratamento
no divã, nas mãos do psicanalista, à sua mercê, revela, em sua subjetivação,
uma nova manipulação e uma embromação sexual sobre o corpo real, já
que, desvelando-se pela palavra, ela se desnuda em uma nova operação...
agora analítica.
Em outras palavras, essa paciente não resistiu à transferência: a
mesma constelação significante (estar nas mãos de um operador em uma
situação “terapêutica”) desperta o que foi percebido pela paciente como uma
privação real do falo (apêndice) e desencadeia no plano imaginário uma ativi-
dade delirante, exatamente onde, na simbólica, o referente (falo simbólico)
não pode operar como falta na cadeia significante, não havendo castração.
Essa vinheta clínica introduz meu propósito: o clínico nunca sabe de
início com quem está lidando, ao que está aceitando dar ouvidos, o que pode
desencadear. O porquê da importância das entrevistas preliminares e da
necessidade de ser “conhecedor” daquilo que nos reúne hoje, a clínica das
paranóias e, de modo mais amplo, a das psicoses.

1
Título original: La question du transfert dans les paranoïas.
2
Psicanalista, Psiquiatra, membro da Association Lacanienne Internationale.

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SEÇÃO TEMÁTICA

O clínico aprende muito com as surpresas e com os fracassos, inclu-


sive com estes últimos, quando não comete nenhum erro técnico. Sempre é
a estrutura do paciente que guia.
Portanto, o psicanalista lida com o Real em seu ato.
Cabe a ele determinar suas manifestações (sintomas diversos da an-
gústia, fenômenos psicossomáticos, acting out e/ou atuações e, especifica-
mente nos casos de psicoses, fenômenos elementares), fazer delas uma
leitura, o mais clara possível, no seio do dispositivo transferencial no qual ele
está envolvido e interessado. Convém lembrar que a clínica psicanalítica é
uma clínica da transferência, da relação com o Outro.
Na proposta de 09/10/1967 endereçada aos psicanalistas de sua es-
cola, J. Lacan estabelece como exigência ética que ao psicanalista não
basta se autorizar a saber que não sabe nada, “pois, escreve ele, trata-se do
que ele deve saber”. E acrescento, saber o particular das diferenças estrutu-
rais, e caso por caso, o que poderia singularizar o falasser que se dirige a ele.
Trabalhando há algum tempo sobre a “transferência psicótica”, Jean-
Luc Ferretto e eu fizemos questão de intervir em dupla, apoiando-nos nos
revezes e, ao mesmo tempo, também no que, por vezes, é “praticável” com
falasseres psicóticos.
À luz de nossas experiências clínicas, como restituir o trabalho clínico
com eles? O que pode ser específico a essa transferência, cujas coordena-
das são radicalmente distintas daquelas da transferência com neuróticos?
Pode o termo transferência ser questionado?
Vamos dar algumas opiniões sobre essas questões a partir de nossa
práxis com “sujeitos” no campo da paranóia, que nos reúne hoje.
Aproveito para relembrar alguns dados essenciais:
A exemplo de Freud que, para estabelecer uma clínica analítica das
psicoses, se baseara no caso Schreber e nos trabalhos de psiquiatras com
os quais discutia, Lacan contribuiu para aperfeiçoar a clínica da paranóia
durante toda sua elaboração, fazendo dela, fiel a Freud, a pedra angular da
clínica psicanalítica das psicoses. Ao longo de sua trajetória (desde sua
tese, o estádio do espelho, “as estruturas freudianas das psicoses” e “a

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SCIARA, L. A questão da transferência...

questão preliminar”, até os seminários “Os não tolos erram”, “RSI” e o “O


sinthoma”), ele buscou suporte nos trabalhos de psiquiatras clássicos, tais
como Kraepelin, Séglas, De Clérambault, Cotard, etc. Lembrem-se de que,
no seminário sobre as psicoses, ele se apóia e, num mesmo movimento,
desmonta a definição princeps de Kraepelin: aquela de um paranóico coe-
rente, implacável, lógico, espírito frio e esclarecido, maléfico em resposta
ao que outros o fariam passar. Lacan dele desvela, antes, os efeitos de uma
estrutura que tem, é verdade, uma certa coesão, mas que não deve nos
enganar: é a própria estrutura de uma automaticidade de linguagem infernal
que mais submete o paranóico do que ele dispõe dela, como se supusera
até então.
Acerca de Schreber, Freud escrevia que lhe parecia “mais essencial
conservar a paranóia como entidade clínica independente, apesar do fato de
que seu quadro clínico se complica tão freqüentemente com traços
esquizofrênicos”.
Na mesma perspectiva, Lacan propunha, na Lição 1 das “Estruturas
freudianas das psicoses”, atribuir “a maior extensão, a maior flexibilidade ao
termo paranóia”..., reconhecer “o caráter exemplar e significativo deste cam-
po particular das psicoses” e “refazer a classificação da paranóia a partir de
bases totalmente novas”.
Assim, o campo analítico e mais particularmente lacaniano da para-
nóia, sem se diluir numa extensão infinita, repousa sobre uma acepção mui-
to mais ampla do que, por exemplo, aquela mais clássica dos psiquiatras
franceses do final do século XIX e do início do XX. Lacan enfatiza a estrutura,
a co-variância dos fenômenos, a pluralidade das paranóias dentro de um
mesmo campo. Ele não se limita ao mecanismo descritivo e que seria espe-
cífico do tipo de psicose crônica (aqui, falo sobretudo da interpretação deli-
rante), nem à sua temática.
Há algo maior em jogo em tudo isso: a paranóia sempre permitiu uma
elaboração analítica das psicoses; além disso, não se deve esquecer que,
na evolução contemporânea da psiquiatria, privilegia-se a esquizofrenia, re-
duzindo a paranóia a casos de delírio, para os quais somente importa o uso

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 35


SEÇÃO TEMÁTICA

de psicotrópicos e a vigilância contra o risco de atuação. O rótulo “paranói-


co”, sem ser ingênuo sobre sua periculosidade potencial, é freqüentemente
sinônimo de pacientes irrecuperáveis, dos quais é desaconselhado se apro-
ximar demais, ao passo que Freud e Lacan não falaram de trabalho analítico
“possível” senão com paranóicos (Schreber, parafrênico ou paranóico?).
Lembremos simplesmente que poderíamos englobar no campo da
paranóia todo falasser psicótico que desenvolva uma atividade delirante. O
fato de se tornar sistematizada, de produzir “cristalização”, como escrevia
Séglas, pode assegurar assim uma subjetivação que dá alguma estabilidade
no plano clínico, que se acompanha na maioria das vezes de outros fenôme-
nos elementares (alucinações, distúrbios lingüísticos no mínimo...). No me-
lhor dos casos, a constituição de uma metáfora delirante é provavelmente o
indício mais concludente do que é “trabalhável” com um paranóico. Conforme
o tipo de paranóias, há uma grande disparidade apesar de tudo. O postulado
fundamental do psicótico passional permanece imutável, não oferecendo
nenhuma possibilidade dialética, ao passo que a sensitividade de Kretschmer
se presta a um certo dialetizável nos momentos desencadeadores de de-
pressão.
De um ponto de vista analítico, há outros elementos mais importantes
que incluem falasseres no campo das paranóias:
O primeiro deles concerne à questão do eu, a da imagem especular.
Em seu seminário II (“O eu na teoria de Freud...”), Lacan esclarecia que,
diferentemente da esquizofrenia, a paranóia está sempre em relação com a
alienação imaginária do eu. As paranóias são psicoses egóicas.
Desde sua tese (“Da psicose paranóica em suas relações com a per-
sonalidade”, 1932) até o seminário “Sinthoma” (1975), Lacan evidenciou a
personalidade do paranóico, isto é, sua base egóica, afirmando afinal que a
personalidade e a paranóia são uma única e mesma coisa. Assim, o campo
paranóico é aquele de uma certa consistência da personalidade.
Houve um impacto inegável do estádio do espelho, que não se encon-
tra no campo das psicoses não-egóicas (as esquizofrenias, os delírios de
imaginação e, mais amplamente, as parafrenias).

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SCIARA, L. A questão da transferência...

O fato de a constituição de um sujeito passar pela instauração da


imagem especular permite compreender que o que Lacan chamava de eixo
imaginário – eixo a-a’, isto é, a maneira como um sujeito pode se representar
por seu eu apoiando-se na imagem do outro, se instaura nas paranóias. O
fracasso da dimensão simbólica que aí se articula, aquela do Outro, da
Alteridade, via malogro da castração na linguagem, na cadeia significante,
não permite, no entanto, fazer dos paranóicos, neuróticos.
Charles Melman contribuiu muito para a reflexão sobre a proximidade
da paranóia psicótica com a paranóia comum própria aos neuróticos, visto
que o eu do neurótico tem sempre uma dimensão paranóica. O estádio do
espelho constitutivo do sujeito repousa, via outro, no ciúme, na rivalidade, no
amor, na agressividade. Melman afirma, por exemplo, que a questão do ciú-
me ordinário permite compreender melhor o que se passa nos delírios de
ciúme. Remeto a seu seminário sobre “as paranóias”. Lembremos que a
imagem especular é globalmente estabelecida mesmo que o estatuto da
imagem não seja realmente do mesmo registro que para o neurótico. Reme-
to aos trabalhos de Stéphane Thibierge sobre a síndrome de Frégoli ou a
ilusão dos sósias (disjunção da imagem e do objeto em i(a), que é a escrita
da imagem especular do neurótico), que também tangem às paranóias. É
preciso ter em mente, sobretudo que a relação com o Outro não foi correta-
mente simbolizada, o que tem repercussão sobre a imagem especular, pois,
ao contrário do neurótico, não há falta (não o buraco do objeto a) nesta
imagem estrutural própria à paranóia, o que lhe confere um estatuto diferen-
ciado de imagem ou de representação em relação àquele do falasser neuró-
tico. Fundamentalmente, se há prevalência do eixo imaginário, e como o
paranóico tem um bom uso da língua, isso indica que há, sim, um lugar do
Outro, mas, como todo psicótico, o paranóico se encontra em um dispositivo
estrutural que exclui esse lugar do Outro.
O registro simbólico, o do significante, foi primeiramente prevalente
em Lacan, que distinguiu uma base comum a toda psicose a partir de uma
releitura de Schreber e de um retorno a Freud no seminário consagrado às
psicoses (1955-56). Esse mecanismo é o da forclusão do Nome-do-Pai. Lacan

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SEÇÃO TEMÁTICA

nunca o contradisse, mesmo tendo atenuado sua localização e, sobretudo


sua leitura em seus seminários dos anos 70 sobre a topologia dos nós.
Dando menos substância a esse significante do Nome-do-Pai, o da função
paterna, ele valorizou os nomes do Pai, ou seja, sua pluralidade, laicizando
de fato essa função mítica do Pai, e privilegiando-a no sentido do Pai como
nome, como nomeante, atribuindo a essa função de nomeação o estatuto de
um quarto círculo que enlaça borromeanamente os três círculos do real, do
simbólico e do imaginário.
Em “RSI”, Lacan designa esse quarto círculo como o do Édipo, mas
sobretudo do sintoma, isto é, o que é a marca individual do sujeito neurótico.
Nas psicoses, não há nem sintoma no sentido freudiano, nem essa
nomeação do Pai como NOMEANTE, o que não enlaça os três registros.
Assim, a forclusão do pai como nomeante caracteriza a estruturação psicótica.
Mas, se nas psicoses não-egóicas é sobretudo um desenlaçamento (às
vezes, é uma separação total dos registros como nas esquizofrenias), Lacan
esclarece que, na paranóia, trata-se de um nó de trevo: real, simbólico e
imaginário estão em continuidade e têm uma mesma consistência. A esse
respeito, Melman reconhece nesse nó de trevo uma paranóia “curada”, afir-
mando que “a organização paranóica pode constituir o modo de cura de uma
psicose”. Essa paranóia “bem-sucedida” seria aquela em que o paranóico
consegue constituir um sujeito Uno, aquela que seria intolerável para os
outros no laço social, já que ele os trataria como verdadeiros objetos a, isto
é, como dejetos.
Lacan introduzirá então o “sinthoma” enquanto suplência como moda-
lidade “de desdobramento do simbólico” em ação em muitas psicoses, es-
pécie de quarto círculo que evita o desenlaçamento dos três registros e que
presentificaria uma forma de estrutura paranóica que fica.
Assim, com essa ampliação de sua concepção da forclusão do Nome-
do-Pai, Lacan nos deixa entrever a grande variedade fenomenológica das
psicoses, que obedecem a modalidades transferenciais diversas. Quando
Lacan evocava a extensão dos efeitos da forclusão do Nome-do-Pai, tratava-
se não de uma parcialização desse mecanismo (que obedece, antes, ao

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SCIARA, L. A questão da transferência...

tudo ou ao nada), mas mais especificamente de uma maneira de dar conta


de formas não borromeanas do enlaçamento dos registros, com ou sem
sinthoma. Que importância atribuir então à existência de uma metáfora deli-
rante (isto, é, de uma atividade no registro imaginário)? Como considerá-la?
Como uma modalidade do imaginário, onde o círculo do imaginário se enlaça
não borromeanamente com os outros dois registros do simbólico e do real?
Ou como uma suplência, que vem duplicar o círculo do imaginário?
No seminário “As Paranóias” (1999-2001), Melman levanta outro
questionamento e faz outra leitura do conceito de forclusão do Nome-do-Pai
como específico a todas as psicoses. Ele propõe separar bem dois tipos de
psicoses (última lição, p. 371): de um lado, a paranóia, em que “a instância
fálica aparece um pouco demais no real” (essa instância normalmente
operante, mas indeterminável e faltante no real); do outro, aquelas em que “a
significação fálica se encontra evacuada”, expondo o infeliz sujeito “ao
nonsense do Outro”, salvo que “esse lugar do Outro permanece habitado por
toda uma série de fórmulas, de frases... de injunções... e que não deixam de
circular” (alusão manifesta aos fenômenos elementares). Nestas últimas,
seria o objeto a do real que estaria diretamente no comando (abundância dos
objetos – voz e olhar – tão tirânicos clinicamente); na paranóia, seria
prioritariamente o falo. A paranóia seria uma psicose de mais-de-gozar do
falo (em sua prevalência imaginária), e não do objeto a.
Compartilho esses elementos com vocês para enriquecer o debate
que, à leitura do seminário de Melman, se tornou bem mais complexo para
mim.
O ponto que permanece mais vivo e mais pertinente clinicamente é
quando Melman lembra o quanto o paranóico vem encarnar a instância fálica
na realidade, visto que é objeto, como ele exprime, por meio de suas inter-
pretações delirantes ou de suas alucinações vozeadas, de todas as aten-
ções e malversações. O paranóico se coloca no lugar mesmo da instância
fálica (B. Vandermersch diz que ele ocupa, antes, o lugar do significante na
falta de falo simbólico), forcluído de toda Alteridade, ou vindo encarnar essa
Alteridade, enquanto Todo fálico. Ao menos um sobre o qual conflui o conjun-

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SEÇÃO TEMÁTICA

to das significações (esta famosa “significação pessoal” dos fenômenos ele-


mentares). Por exemplo, um paciente observava para mim que, desde pe-
queno, estava convicto de que os meios de comunicação falavam dele, de
que o mundo fora criado em sua intenção, para ele. Podemos reconhecer
nesse nível a interpretação delirante de Sérieux e Capgras e o passional de
exceção do ciumento delirante ou do reivindicador. Ao passo que o erotômano
vem se apoiar em seu dito-objeto de amor que não é senão um igual para
fazer Um com o Outro, Um total, completo e Real. No sensitivo, o aspecto
fálico em questão está presente, mas ao mesmo tempo muito mais nuançado.
Após esse reconhecimento estrutural preliminar, vou abordar sob a
forma de precisões, observações e questões, o que concerne à transferência
nas psicoses. Por que a paranóia, mais exatamente o campo das paranóias,
seria mais acessível à transferência que as outras psicoses (parto de um
enquadramento amplo e, portanto, esquemático)? Por diversas razões:
A consistência egóica está instalada e permite sustentar “uma perso-
nalidade”, uma “subjetivação” com elaborações, mais ou menos tênues em
função das capacidades de criação próprias ao “sujeito” (não é Schreber
quem quer), o conjunto sustentado por um amparo simbólico na linguagem
estruturado com um uso possível do significante, mesmo que a psicose não
permita reconhecer a falha no significante (de S1 a S2 não há interstício,
buraco, devido à defecção da queda do objeto a). Não impede que uma apti-
dão à verbalização seja muito mais clara do que nas psicoses não-egóicas.
O tecido delirante é uma base imaginária que pode tamponar, enlaçar,
até mesmo ligar Simbólico e Real (ao passo que, nas esquizofrenias, “todo o
simbólico se torna Real”, dizia Lacan), em particular quando uma “cristaliza-
ção” vem fixar e apaziguar o paranóico.
Os fenômenos elementares como manifestações do Real do objeto a
e que se impõem ao paranóico se articulam e fazem corpo com o delírio,
vindo alimentá-lo, ou se imiscuindo como preliminar a esse delírio. O campo
da paranóia não se restringe apenas às interpretações delirantes.
Além disso, Lacan e outros psicanalistas receberam, nos últimos cin-
qüenta anos, psicóticos paranóicos em seus divãs, transmitindo-nos, atra-

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SCIARA, L. A questão da transferência...

vés de sua experiência, elaborações sobre a transferência psicótica (cito os


trabalhos de Perrier, Maleval, Melman, Czermak, Landman, Pommier, Izcovich
recentemente, etc.). O amódio 3 de Schreber pelo professor Flechsig nos
ensinou muito sobre o caráter delicado do “manejo” da transferência, sobre
seu caráter irresistível (“os psicóticos não resistem à transferência”, M.
Czermak).
M. Czermak evoca a “decomposição espectral” da transferência
psicótica para salientar que, com um falasser psicótico, o que faz laço ho-
mogêneo para o neurótico entre ideal do eu, eu, falo, objeto, Outro, outro,
revela-se em toda sua crueza e sua fragmentação nas diversas manifesta-
ções clínicas e, portanto, transferenciais. Não se deve nunca subestimar o
impacto da automaticidade da linguagem em todos os casos.
Entretanto, se a transferência psicótica pede, portanto, a prudência, é
verdade que os paranóicos em tratamento, no divã, permanecem raros. É
melhor pensar duas vezes antes de deitá-los no divã e aceitar a demanda. O
momento em que sobrevém a demanda é evidentemente capital, isso exclui,
é claro, qualquer veleidade analítica numa fase aguda da patologia. As sur-
presas mais comuns são as do desencadeamento de uma paranóia, na situ-
ação em que se previa, supunha a análise de um neurótico, como no caso
que relatei no início. Acrescento que um duplo acompanhamento analítico e
psiquiátrico é relativamente freqüente em minha experiência; não se deve
esquecer a sedação de gozo que o uso de psicotrópicos bem ajustado pode
trazer. Por outro lado, não é impossível que certos falasseres paranóicos
consigam, pelo trabalho de um tratamento, uma estabilização de seu delírio.
Para Freud, em “Introdução à psicanálise”, era explícito: “os pacien-
tes que sofrem de neurose narcísica não têm a faculdade da transferência...
eles permanecem o que são... não podemos mudar nada disso”. Quanto a
Lacan, as referências à transferência psicótica não se encontram nem no
seminário “A transferência”, nem em “O ato psicanalítico”. Sua “questão pre-

3
Em francês, hainamoration. Lê-se “enamoracion” = ódio (haine) + “enamoração”.

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SEÇÃO TEMÁTICA

liminar” dos “Escritos” (1957-8) constituiu uma abertura inegável para a trans-
ferência psicótica, mas ele não propôs uma escrita dela, como a da transfe-
rência neurótica na “Proposição de 1967”. Em um artigo da revista La
célibataire (no 4), Claude Landman retoma este matema, que deve ser com-
preendido como uma determinação de Lacan quando ele trabalha a lógica.
Ele escrevia então:

Onde s é o lugar do sujeito que se põe a enunciar os significantes de


seu saber inconsciente (S1, S2, Sn). É também o lugar do analista. A barra
é a do recalcamento. Desse saber, há algo que se diz independentemente
do sujeito que fala; s é representado por S, o significante da transferência de
um sujeito, “nomeável por um nome próprio, para um Sq, um significante
qualquer”.
A seta indica a dinâmica do tratamento, onde se mobilizam e se pro-
duzem os significantes primordiais do sujeito, em uma certa ordem. O fim do
tratamento se traduz pela redução do nome próprio a um significante qual-
quer, o que dá conta da precariedade de um sujeito dividido, que não é senão
levado por um significante para um outro significante. À medida que a psica-
nálise avança, o sujeito suposto saber de que o analista era o suporte é
destituído. O fim da partida ilustra o que o discurso analítico instala, ou seja,
o analista vem ocupar este lugar de objeto a, de semblante, e de agente no
desenrolar do tratamento.
Na transferência psicótica, essa escrita não é possível. O que resulta
disso?
Não há sujeito suposto saber, “o pivô de onde se articula tudo o que
tange à transferência” (inscrito como SsS e já evocado em “A transferência”
no artigo “O engano do sujeito suposto saber”, em Scilicet).
Isso quer dizer que o próprio conceito de transferência é inadaptado
ou obsoleto nas psicoses? Acredito que se deve manter o termo porque ele

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SCIARA, L. A questão da transferência...

é ditado pelo real da clínica das psicoses e porque não se trata de fossilizá-
la enquanto conceito universitário aplicado e determinado por uma leitura
somente neurótica da clínica. O importante é conhecer justamente suas
coordenadas, diferentes daquelas da transferência neurótica quanto aos es-
tatutos do sujeito, do objeto, da relação com o Outro e do pequeno outro.
O psicótico lida não com uma suposição do que o psicanalista sabe-
ria, poderia saber, mas com uma certeza de que ele sabe que o Outro sabe.
O outro seria detentor de um saber absoluto que lhe possibilitaria tomar as
rédeas, até mesmo manipulá-lo, obrigá-lo a produzir com toda transparência
um saber a serviço de seu gozo. E eis nosso psicótico às voltas com um
Outro onisciente que o psicanalista poderia vir encarnar.
Não há recalcamento – barra – portanto, não há saber inconsciente,
isto é, saber vazado. O saber do falasser psicótico é automático, sem bura-
co, constituído de uma disposição de puros significantes que não têm valor
de significantes, já que não remetem a outros significantes, mas se reduzem
a signos que se entrelaçam em um tecido imaginário, que poderia se focali-
zar em torno de uma metáfora delirante.
Tanto nas paranóias quanto em toda psicose, e mesmo que o falo se
erija como componente egóico ostensivo, sob a forma de uma megalomania,
é também uma transferência sob comando direto do objeto a, real. Direto
porque sem a mediação de uma fantasia ($¸a) como na neurose, o que faz
com que o psicótico tenha uma relação de contigüidade mais clara com o
objeto, que permanece sempre velado na neurose.
Enfim, o sujeito paranóico se toma por seu eu, o que é diferente do
sujeito dividido, sempre evanescente. Ele é falado, ainda que clinicamente
haja nuanças, sem equívoco significante, sem jogo entre significante e signi-
ficado (os quais são disjuntos ou colabados em uma concreção significante
(neologismo, holófrase).
Em suma, desde o início, quando um paranóico se dirige a um analis-
ta ou a um clínico em geral, não há endereçamento a um sujeito suposto
saber, mas uma demanda tomada em uma Automaticidade do Outro, isto é,
de um Outro real constituído de puros significantes que desfilam. Mas, como

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SEÇÃO TEMÁTICA

o que caracteriza o campo da paranóia é a existência de um tecido significante


delirante, o analista vai se encontrar ao mesmo tempo como o detentor de
um Saber Todo, mas também como aquele que poderia contribuir para uma
pacificação desse delírio, nele introduzindo algo de um saber dizer, que po-
deria fazer buraco na certeza. Seria assim o “praticável” da transferência
psicótica: abrandar a convicção paranóica.
Mas, então, como o paranóico poderia ficar sem o analista a longo
prazo, o qual serviria de sinthoma nesta figuração?
Em todos os casos, o ponto de fixação delirante será mantido, mas
uma parte de dialética será inserida. Com o tempo, os remanejos são sem-
pre possíveis, e o analista sempre terá surpresas.
M. Czermak insiste, sobretudo na injunção imperativa do objeto a
como verdadeira dificuldade na transferência psicótica, pois o objeto é
intratável; toma principalmente o exemplo da psicose maníaco-depressiva,
em que o objeto está em primeiro plano. Talvez haja um tratamento possível
mais amplo com o campo das paranóias se for menos a Automaticidade do
objeto do que a irrupção do falo real que se salienta e prevalece, como
indica Melman.
Nas paranóias, não é a disparidade (em face de um sujeito suposto
saber, é verdade, em todas as psicoses), mas a paridade que está em pri-
meiro plano, já que o eixo imaginário se impõe. Seria necessário identificar
melhor o estatuto da imagem, isto é, a relação com o outro, com a aparência
(ou semblante), com a marionete, ou com a “imagem fascinante, aspirante e
persecutória” (C. Landman – “Lacan et le traitement psychanalytique de la
psychose”, La célibataire, nº 4). Em suma, de que alter ego se trataria? Em
todo caso, essa disposição imaginária do paranóico provavelmente facilita a
relação transferencial, se o psicanalista souber de que se trata e puder se
prestar a isso.
Resta que, se o falo emerge do Real na realidade e vem se encarnar
pelo falasser mesmo, este não somente se torna o ponto de convergência de
tudo o que pode cercá-lo, mas ocupa um estatuto de exceção, de Ao-me-
nos-um, o que não torna muito fácil o manejo da transferência.

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SCIARA, L. A questão da transferência...

O problema é flagrante com as psicoses passionais em que a forclusão


do lugar do Outro faz com que o “sujeito” paranóico venha ocupar um lugar
de Outro Real, representando por si só uma alteridade real: o ao-menos-um
que seria o justo dos justos no reivindicador, o ao-menos- um que faria Um
com o outro reduzido a seu objeto real mesmo para o erotômano, o ao-
menos-um ciumento, paradigma daquele que seria expulso da confraria dos
gozos. São quase nulas as possibilidades de tratamento para passionais
em que o trabalho de remanejo do delírio é praticamente impossível e em
que o postulado fundamental se instalou de início.
Quanto às paranóias sensitivas, elas ocupam um lugar à parte no
campo das paranóias, já que se desenvolvem quase sistematicamente a
partir de conflitos éticos (sexuais ou profissionais), exatamente onde a ques-
tão do falo é sempre maior. Elas são, de certo modo, uma referência para as
paranóias, tal como Melman as evoca, ou seja, nesta “emergência do falo no
real”. Devido à sua fineza de elaboração e a uma capacidade dialética incon-
testável, os sensitivos manifestam muito particularmente uma interrogação
de um estatuto do eu questionador. Provavelmente, o manejo da transferên-
cia é mais simples do que em outras paranóias, na medida em que o analis-
ta se encontra mais facilmente como alter ego, o que poderia permitir traba-
lhar “melhor” com o paciente seu material significante, esperando negociar
melhor com ele, o que gira em torno do prejuízo sofrido. A humilhação
freqüentemente evidenciada poderia ser assim atenuada.
Terminarei minha comunicação por minha experiência com interpre-
tativos típicos Sérieux e Capgras, que apresentam particularidades transfe-
renciais.
O delírio de interpretação se desenvolve em rede, e se há uma certa
estabilização dos puros significantes desse delírio, provavelmente se possa,
se o interpretativo consentir nisso, se afastar da certeza que está ligada a
isso, mesmo que o núcleo significante da metáfora delirante permaneça
intacto.
De uma inércia dialética, é possível que um deslocamento possa se
operar para uma menor convicção. Por isso, fiquei surpreso ao constatar que

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 45


SEÇÃO TEMÁTICA

“o amor ao conhecimento” e à verdade, tão cara aos paranóicos, com esse


esforço (mesmo na automaticidade) de lógica e de coerência que os carac-
teriza, pode ser um excelente suporte. Em particular, com o formalismo de
um saber ‘autenticado psicanálise’ que uma distância possa se criar à força
de ‘injeção’, pelo próprio paciente, de significantes psicanalíticos, pode con-
tribuir a acrescentar imaginário, mesmo normativar4, entre simbólico e real,
separando-os. Um saber de conhecimento, seja qual for, que alimente esse
amor à verdade pode contribuir para isso.
Os paranóicos podem, assim, tornar-se analisantes “normatizados”
(M. Czermak emprega a expressão psicose normatizada5) em que o gozo
atinente a seu delírio pode dar lugar, em parte, a uma nova forma de gozo
apoiada em um saber que se constrói no tratamento (assim como a ficção
edipiana, enquanto teoria psicanalítica, é freqüentemente objeto de raciona-
lizações, o que atenua o buraco de significação ligado aos fracassos da
metáfora paterna), e que não será nunca, no entanto, um saber vazado como
o do neurótico.
Essa conjuntura de neoalienação (neoortopedia egóica?) levanta, ain-
da assim, o delicado problema de um tratamento sem fim, a necessidade de
uma presença real do psicanalista correndo o risco de se eternizar. Ele faz
sinthoma, prótese significante que se articula à elaboração significante do
paranóico, participando de seu remanejo? Como o analista poderia então se
libertar dele, e o paranóico acabar por se virar sozinho?
O tratamento de analisantes paranóicos (interpretativos e provavel-
mente mais ainda sensitivos) obedece em todos os casos a uma dupla exi-
gência que pode torná-lo praticável:
De um lado, se o analista encarna o Outro real que goza, ele se torna
perseguidor, ou aquele com o qual o paranóico goza, e é a erotomania
mortificante com o amódio radical que a subentende. Essa ocorrência não

4
No original em francês normativer (que constitui uma norma).
5
Em francês, analysants “normés” e “psychose normée”, isto é, dentro da norma.

46 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.


SCIARA, L. A questão da transferência...

dá mais então lugar, espaço ao “sujeito paranóico” integrado no espaço do


Outro real e que poderia vir se equivaler ao objeto até se cotardizar em uma
morte de sujeito reiterada. Poderíamos dizer que o “fenômeno da parede
divisória” (C. Melman) permite ao paranóico ficar na sua posição, proteger
seu espaço de sujeito e não afundar se encontrando sem lugar, atribuindo ao
Outro, reduzido a um pequeno outro ameaçador, o maléfico, do outro lado da
parede, mas estando em contrapartida seguro de se posicionar em um espa-
ço que o protege, e o faz existir como “sujeito”, a exemplo dos fenômenos
vozeados. Trata-se, pois, de evitar esse lugar Outro, mas isso é tão simples
na automaticidade da transferência? A posição do analista em relação ao
saber desempenha certamente um papel importante (seu estilo, seu savoir-
faire e saber-dizer), mesmo que isso não baste. B. Vandermersch expressa
isso muito bem (in: “As Paranóias”, C. Melman, p. 214): “por que não elabo-
rar com ele, se ele estiver aberto a isso, o que poderia esclarecê-lo sobre
sua posição especial, apoiando-nos no que sabemos de seu lugar na estru-
tura?”. E acrescenta: “não podendo duvidar, pelo menos o paranóico pode
apreciar que se saiba não saber demais”. Introdução de uma dimensão de
sujeito suposto saber onde ela não existia, onde o analista estava em lugar
Outro de um Todo saber?
Por outro lado, a única posição sustentável para o analista é tentar se
situar em posição de pequeno outro. Por exemplo, em uma espécie de
compartilhamento do questionamento do paciente, não somente sobre seu
caso, mas em nome de um conhecimento, inclusive psicanalítico.
Resta em suspenso uma última pergunta que não é somente minha,
ou seja: o que se dá com o desejo do psicanalista na transferência com
paranóicos?

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 47


SEÇÃO TEMÁTICA

DOM QUIXOTE (O AVESSO DO


AVESSO DA LOUCURA II)

Sueli Souza dos Santos1

N
o Correio sobre “O ato psicanalítico”, de agosto de 2006, busquei
trabalhar algumas questões concernentes aos paradoxos no sujeito
entre a fala e a linguagem na psicose, tendo como suporte literário,
D.Quixote, criado por Cervantes em 1604, quando publica o que seria sua
obra universal, “O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha”. Cavaleiro
andante, perdido em um mundo particular, seu mundo, cria personagens que
vão se movimentar entre o sonho e a realidade onde se confunde delírio com
verdade.
O herói, também conhecido por Cavaleiro da Triste Figura, em seus
delírios lutava por um mundo mais justo, defendendo os fracos. Buscava
sempre conquistar alguém para sua causa. Assim, se dirige a Dom Lorenzo:
“Sabe Deus quanto quisera levar comigo o senhor Dom Lorenzo, para
ensinar-lhe como se deve perdoar os humilhados e oprimir e rebaixar os
soberbos, virtudes inerentes à profissão que exerço ...” (1991, v.2, p.135)
Tomava a cavalaria como uma “ciência” que acreditava encerrar em si
todas ou quase todas as ciências do mundo, pois um cavaleiro deveria ser
um jurisperito, um teólogo, um médico, um herbolário, um astrólogo enfim,
ser preparado para enfrentar toda e qualquer adversidade para proteger e
defender os desventurados. Havia um sentido no sem-sentido de sua lógica.
Havia uma razão na desrazão. Quem sabe essa é a lógica do avesso do
avesso da loucura? Onde tudo que pode ser, pode não ser. Não por um
sentido antitético, mas por ausência de enlace, tecido num plano fluído.

1
Sueli Souza dos Santos é Psicanalista; Membro do Centro de Estudos Psicanalíticos de
Porto Alegre (CEP de PA); Mestre em Psicologia Social UFRGS; Doutoranda em Educação
UFRGS.

48 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.


SANTOS, S. DOS S. Dom Quixote...

Pensando na topologia da psicose, posto que o avesso do avesso


rompe qualquer possibilidade de borda, me parece que o toro virado do aves-
so, conforme Lacan trabalhou no seminário “Momento de concluir”, lições de
14 e 21 de março de 1978, seria uma boa estrutura. Este toro revirado terá
como “alma” o antigo eixo, ou seja, o que antes ficava aprisionado no seu
interior agora estará em contato com o exterior, e poderá então ameaçá-lo
com seus demônios mais escondidos. Nele, no toro, encontra-se a mesma
ausência de uma borda onde possa construir um laço, uma amarração, um
ponto. Seria a psicose a paixão pelo abismo onde o eu (moi) se precipita?
A alienação na psicose, se pensarmos em nosso herói, dá seu teste-
munho de que algo lhe fala, fala nele e por ele, desde o inconsciente. Há
ambigüidade na própria significação do delírio – essa é mais uma marca da
psicose – mas não só. Pensar e falar uma mesma linguagem, com persona-
gens ou qualquer um com que lidamos, não garante que nos comunique-
mos. Há um muro da linguagem que imaginariamente atravessa qualquer
possibilidade de comunicação linear. O limite da linguagem se encontra no
ponto em que ela é sempre isso e outra coisa. O sistema da linguagem não
se reduz a um ponto direto da realidade, pois toda a realidade é que está
abrangida pelo conjunto da rede significante da linguagem.
Tomemos aqui o Esquema I, onde Lacan (1998; p.578) trabalha o
caso Schreber, como auxilio para pensar as distorções no “juízo” de nosso
herói:

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 49


SEÇÃO TEMÁTICA

Há distorções em relação ao esquema inicial (R) que aqui se mos-


tram simplificadas entre as funções de identificação, evidenciando o desliza-
mento de duas curvas em hipérboles relativas a uma das retas diretrizes de
sua assíntota, o que cria condições para que o “eu” delirante, em D.Quixote
se revele em convergência com o ideal do herói das histórias de cavalaria.
Lacan vai dizer que: “Toda a espessura da criatura real, ao contrário, inter-
põe-se para o sujeito entre o gozo narcísico de sua imagem e a alienação da
fala em que o Ideal do eu assumiu o lugar do Outro”.
Um recorte discursivo de D.Quixote nos amplia o entendimento desta
afirmação. Ele diz: “Aqueles que ali vês, com grandes braços – respondeu-
lhe o amo – alguns há que os têm de quase duas léguas. – Saiba vossa
Mercê – observou Sancho – que aqueles que assim se parecem não são
gigantes, mas moinhos de vento; e o que neles parecem braços são as asas
que, impelidas pelo vento, fazem girar a pedra do moinho. Bem se percebe –
respondeu Dom Quixote – que não és versado nesse assunto de aventuras;
aqueles ali são gigantes; se tens medo, afasta-te e põe-te a orar, enquanto me
defronto com eles em fera e desigual batalha.” (Cervantes: 1991/1605; v.1, p.72)
A batalha a ser travada abriga uma rivalidade com os gigantes
fantasmáticos, mas ainda com Sancho que, enquanto interlocutor, insiste
em apontar a alteridade, contradizendo a percepção de seu amo, o que sem-
pre lhe coloca em apuros tendo que cuidar das feridas do mesmo e por
vezes, ao defendê-lo, enfrentar-se também com as conseqüências do delírio
compartilhado.
Existe um pacto pela palavra. Embora seja apontada ou detectada a
dificuldade do cavaleiro com relação a sua percepção da realidade, há um
entendimento entre os dois, evidenciando as marcas do jogo da concorrên-
cia primitiva entre os dois personagens, no eterno retorno constitutivo do
discurso entre o pequeno outro, o Outro e o objeto. O delírio se faz presente
no interjogo entre o Outro que é desconhecido e o outro enquanto eu (a
minúsculo).
De qualquer sorte, a dialética dual está para além de um personagem
com o outro; a dialética dual é que, tanto Dom Quixote quanto Sancho Pan-

50 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.


SANTOS, S. DOS S. Dom Quixote...

ça, falam cada um com o Outro de alguma coisa que lhes falou desde outra
cena, outro lugar, tomando forma de palavra falada, com todas as ambigüida-
des das palavras, posto que nenhum dos dois desiste das aventuras.
O delírio mostra essa marca discordante com a linguagem comum,
apresentando-se em forma de neologismo ou como no caso de nosso perso-
nagem Dom Quixote, em que as forças anímicas das coisas ou elementos
passam a contracenar com o herói. Há sempre uma repetição na forma de
significação, em uma insistência estereotipada, o que, por outro lado, reme-
te a um vazio de significação.
Lacan (1985; p.44) diz: “Essas duas formas, a mais plena e a mais
vazia, param a significação, é uma espécie de chumbo na malha, na rede do
discurso do sujeito. Característica estrutural a que, já na abordagem clínica,
reconhecemos a assinatura do delírio”.
A palavra no delírio revela a imersão do sujeito em sua própria constru-
ção, ali o sujeito é falado, onde a significação não remete mais a nada,
repetindo de forma insistente num ir e vir, sem deslizamento. Frente a esse
tipo de linguagem, quer nos analisantes, ou nos personagens que nos inspi-
ram nesse trabalho, podemos pensar que falam a mesma língua que nós, ou
pelo menos, não são de todo estranhos a nós, por isso podemos escutá-los.
Mas é através das relações do sentido com a significação, onde não há
espaço para deslizamento de sentidos que podemos perceber a diferença na
economia do discurso, o que remete ao delírio.
Importante ressaltar que a fala não é a linguagem. A fala está dirigida
a um Outro. Falamos para outros, de onde recebemos uma mensagem sob
a forma invertida; ou seja, o que o sujeito me diz está fundamentado desde
outro lugar, tentando me convencer de suas razões. Isso supõe dirigir-se a
um Outro, na tentativa de até mesmo dizer a verdade, o que remete a uma
fala verdadeira e, ao mesmo tempo, que pretende que se creia ao contrário,
uma fala enganadora enquanto tal. Talvez fique mais claro pensar sobre isso
se recordarmos Freud (1905) quando conta a história dos dois amigos em
que um diz: “Eu vou a Cracóvia”. Ao que o outro responde: “Você me diz isso
para me fazer crer que você vai alhures”.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 51


SEÇÃO TEMÁTICA

A ambigüidade é constitutiva de nossa condição neurótica porque


desejamos, ou seja, o objeto de interesse do humano é o desejo do outro.
Em princípio, o sujeito está fundido no outro enquanto objeto a, numa
multiplicidade de desejos; aliena-se no outro que lhe oferece a ilusão de uma
unidade. A fala evidencia que é na alteridade que se pode descobrir um eu e
um não eu; ao mesmo tempo é fonte de inclusão no objeto e rivalidade com
o objeto. Falar então é falar com quem? Quando se fala, de que será que se
fala?
No jogo de espelhos que se estabelece entre Dom Quixote e Sancho
Pança, cria-se a anamorfose em que os dois personagens se envolvem, há
uma cumplicidade. Por vezes o limite entre o funcionamento de um e outro é
muito tênue, mas ambos devem ser pensados como referenciados à função
paterna. No entanto, o saber psicótico é outro do que o saber neurótico.
Como seria na psicose? Se na neurose o sujeito recebe sua mensa-
gem do Outro, de forma invertida [Ele me deseja <=> eu O desejo], no
psicótico, em vez disso, esta mensagem viria de forma direta, mortal, amea-
çadora [eu O quero <=> Ele me devora]. A função paterna falta. Como foi
foracluída, força o sujeito psicótico a se referir ao que ele não dispõe. Pode-
mos pensar que por essa razão, o delírio apresenta um furo na medida em
que tenta organizar um saber aos moldes de um saber neurótico, entorno de
um pólo ou idéia central que se mantém no real, não simbolizado. Quem
sabe por isso, para Dom Quixote, os moinhos são gigantes, há sempre uma
injustiça a reparar, uma donzela a libertar?
No entanto, o personagem criado pelo nobre, nomeando-se a si mes-
mo Dom Quixote, está construindo sua história, onde encontramos os
significantes de sua história edípica. Isso porque o que é foracluído não é o
significante relativo ao pai. O que devemos entender é que, na psicose, o que
esta foracluído é a função organizadora do nome do pai. O psicótico pode
falar de seu pai, de sua família, mas o que lhe falta é uma amarragem, como
no neurótico, o ponto de capiton.
Tomando o ponto de vista da neurose, em Sancho, seu saber consti-
tuído a partir da função paterna que é reprimida, podemos pensar que há em

52 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.


SANTOS, S. DOS S. Dom Quixote...

seu saber alguma coisa simbolizada como um buraco, uma ausência, mas
não está foracluída a função paterna. Sancho não abandona seu senhor,
mas percebe suas fraquezas, confusões e tenta com seus argumentos
recolocar os limites que a realidade impõe. Tenta oferecer-se como agente
do princípio de realidade, embora não tenha muito êxito. Mas está sempre
presente, tentando junto ao fidalgo refazer ligações entre os efeitos do real
sobre a realidade.
Como parece faltar ao fidalgo essa amarragem central da função pa-
terna, o sujeito interroga seu saber, pois nada pode responder essa interro-
gação, tendo como única possibilidade que alguma coisa vai falar no real.
Como falar no real? Produzindo significantes paternos que se apre-
sentam sob forma de alucinação auditiva, como função paterna. Nas produ-
ções delirantes, Dom Quixote ouve todo tipo de falas, impropérios, acusa-
ções e ameaças que vem de seus inimigos potenciais, superegóicos. Para
Calligaris (1989; p. 44): “O que não é simbolizado é a função central desses
significantes. É porque esta função central vai ser imposta pela injunção,
que esses significantes vão voltar para o sujeito no Real. É muito importante
pensar que o que está voltando no Real é alguma coisa da história, do saber
do sujeito”.
Quem sabe se possa dizer que as construções de Dom Quixote, por
sua cultura e criatividade, lhe dão uma possibilidade de saída do sofrimento
psíquico, através de seu jeito diferente buscando essa volta no real do pai.
Dizendo de outra forma, na psicose o que volta no real é a função, em sua
forma de lidar com os significantes que estão em seu saber particular, singu-
lar.
Como um jogo entre o real e o imaginário, denegando ou foracluindo a
realidade, o fidalgo de Cervantes, prisioneiro no mundo das novelas de cava-
laria, mas não só, busca um reencontro com o real do pai que pode estar
referindo antigos valores que não têm mais eco num mundo em transforma-
ção.
Pela escuta de Sancho Pança, aos poucos vai se abrindo uma possi-
bilidade de articulação entre o mundo do delírio e a realidade dos dois perso-

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 53


SEÇÃO TEMÁTICA

nagens. Essa escuta oportuniza pensar que os delírios de Dom Quixote se


constituem na tentativa de integrar o que vem no real e que representa algo
dele mesmo, algo que não pôde simbolizar, e ao poder participar seus
delírios aponta que no interior de seu mundo, nem toda comunicação foi
rompida, por isso fala. Isso fala.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CERVANTES, M. O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha. Belo Horizon-
te. Villa Rica Editoras Reunidas Limitada, 1991.
CALLIGARIS, C. Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1989.
FREUD, S. (1905) Os Chistes e sua relação com o inconsciente. In. Obras psico-
lógicas completas. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In.
Escritos. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed., 1998.
_____ . O seminário 3 - As Psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

54 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.


PINTO, M. R. P. Don Juan...

DON JUAN: UM SONHO FEMININO

Maria Rosane Pereira Pinto1

“Não há nada que possa parar a impetuosidade de meus desejos.


Sinto em mim um coração que pode amar a terra inteira.
E como Alexandre, eu gostaria que outros mundos existissem
para poder neles estender minhas conquistas amorosas”.
(Molière, Don Juan, ato I, cena 2)2

A
figura do sedutor é constitutiva da “urzene”, da cena originária da
qual nasceu a psicanálise. Escutando suas pacientes histéricas, Freud
construiu sua ”neurotica”’ (teoria das neuroses) sobre os pilares da
cena traumática de sedução, cujo protagonista era o pai perverso. Durante
algum tempo, as narrativas de sedução foram tomadas por Freud como uma
realidade que dava conta da etiologia sexual das neuroses. E do mesmo
modo como na trama de Don Juan a estátua do Comendador vem, ao final do
percurso, punir o sedutor por seus pecaminosos abusos eróticos e suas
transgressões, conduzindo-o aos abismos do inferno3, Freud tratava de libe-
rar suas pacientes, através da interpretação, de suas fixações traumáticas
ao pai sedutor, neutralizando então, supostamente, os efeitos nefastos do
trauma. Assim, o pai sedutor era, de certo modo, punido, jogado no poço
dos infernos. Seu posto de sedutor “imobilizador”, engendrador de culpa da
histérica, era reduzido ao lugar do vilão culpado, uma vez que todo seduzido
traz consigo a presumida inocência. Mas não tardou muito para que Freud

1
Psicanalista, membro da Association Psychanalyse et Médecine-Paris, da Association
Lacanienne Internationale-Paris e da equipe do Instituto Jean Bergès-Clínica e Centro de
Estudos em Psicanálise e Medicina-Porto Alegre-RS.
2
Molière, Don Juan, GF Flammarion, Paris, 1998, p.66.
3
Conforme as versões de Tirso de Molina(1630), Molière (1665) e Mozart (1787). Trabalha-
remos aqui com os elementos de dramaturgia das versões da peça teatral de Molière e da
ópera de Mozart Don Giovanni.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 55


SEÇÃO TEMÁTICA

se colocasse a questão quanto a realidade da cena. Em sua carta a Fliess


de 21.09.1897, depois de perder várias pacientes, ele explica de que modo
ele deu-se conta de que essas narrativas eram de caráter duvidoso, e mes-
mo fictício, e desvelavam, sim, uma construção fantasmática. Freud consta-
ta, ainda, que no inconsciente não existe nenhum “índice de realidade”, de
sorte que, diz ele:
“é impossível distinguir uma da outra, a realidade e a ficção investida
de afeto. (É por isso que uma solução resta possível, ela é fornecida pelo
fato do fantasma sexual sempre se constituir em torno do tema dos pais)”.4
Deixar de acreditar em sua neurótica, este grande segredo que lenta-
mente foi se revelando a Freud naquele verão e provavelmente graças a sua
auto-análise, o colocou na posição dramática da vítima da sedução. Essa
decepção com sua primeira teoria das neuroses, que o coloca a um passo
da descoberta do complexo de Édipo, faz com que ele evoque, ao final da
carta a Fliess, com uma ponta de amargura, uma citação que ele extrai de
sua antologia de histórias judias, ‘’Rébecca, tira teu vestido, tu não és mais
uma noiva virgem”. É justamente essa perda da inocência que vai colocar
Freud em um ‘’afundamento geral”, graças ao qual se produz nele um inte-
resse cada vez maior pelos sonhos e também um entusiasmo cada vez
maior pelo início de sua incursão na metapsicologia.
Vale notar que de modo algum Freud retira a importância da cena
originária. Sua decepção lhe permite elucidar o alcance fantasmático des-
sas cenas, independentemente de sua veracidade, levando mesmo em con-
ta a possibilidade de uma eventual realidade material ali estar sendo desve-
lada. O importante é que a figura do sedutor, concretizada na figura paterna,
sai de cena para dar lugar a uma entidade onírica, fantasmática. A partir de
então, não se trata mais de “acusar o pai de perversão”. As formulações de
Freud, a partir do Complexo de Édipo, vão ser resultantes dessa outra versão
do pai ter se desvendado em sua clínica. Entretempos, é a mãe, ou aquela

4
Masson J.M., “A Correspondência completa de Sigmund Freud para Willhelm Fliess”, Carta
de 21.09.1897, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1985, p. 265/267.

56 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.


PINTO, M. R. P. Don Juan...

que prodiga cuidados à criança, que vai aparecer como a sedutora e, assim,
como a “geradora” de neurose, mas também como decisiva para a estrutura-
ção do psiquismo. Nessa estruturação, a urzene passa a ser a tessitura
fantasmática do sujeito, tanto no que concerne à sedução quanto no que diz
respeito ao coito parental, ao fantasma das origens. E uma vez formado o
triangulo edípico, a castração também vai concorrer como mola mestra do
fantasma.
Uma possível articulação das aventuras de D. Juan com a pré-história
da psicanálise se dá pela lógica que preside o próprio tema. Pois afinal, era
de sedução, de feminilidade e de desejo, que se tratava no discurso das
histéricas de Freud, do mesmo modo como era disso que se tratava na saga
desse fascinante personagem.
Para refletirmos sobre esta articulação, consideremos alguns aspec-
tos da figura mítica de D. Juan. Trata-se de um jovem nobre que investe toda
sua vitalidade na conquista das mulheres. Em várias versões desta obra
literária, a fantasia, o disfarce, é nele uma segunda natureza. Para se intro-
duzir no quarto de suas belas, na calada da noite, ele se faz passar por um
outro, geralmente pelo noivo ou pretendente. Pego em flagrante pelo
Comendador, pai de Dona Ana, que ele acabara de violar, o mata em duelo.
Pouco antes, não havia hesitado em fazer com que Elvira, uma religiosa que
seduziu, deixasse o convento para casar-se com ele, abandonando-a, logo
em seguida, movido por outra paixão. Com os irmãos de Elvira em seu encal-
ço para lavar a honra da família, sua fuga é uma constante tentativa de sedu-
ções e seqüestros de belas mulheres. Buscando onde se esconder de seus
perseguidores, D. Juan acaba entrando no mausoléu onde está a estátua
fúnebre do Comendador. Cinicamente, ele convida a estátua para jantar. Seu
criado vê a estátua assentir com a cabeça e se aterroriza. D. Juan, cético,
ironiza a crendice nas coisas do além e segue seu caminho. Especialista da
sedução e estrategista do discurso, Don Juan é também, conseqüentemen-
te, um especialista em esquivar-se do constrangimento da palavra dada ao
outro, do reencontro com este outro. Sua última jornada de vida é uma su-
cessão de reencontros com furiosos e furiosas que ele faz de tudo para evitar

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 57


SEÇÃO TEMÁTICA

e dos quais ele participa apenas com seu silêncio, em completa ausência,
fiel apenas a sua própria insolência. Interrogado por seu criado, D. Juan lhe
explica que a fidelidade não somente lhe parece ridícula, mas também equi-
vale, para ele, a uma morte, morte da qual ele foge em direção à liberdade,
voando de mulher em mulher. Uma vez conquistada, toda a beleza do encon-
tro desaparece e sua sede de mudança exige que ele abandone sua bela por
uma outra a ser conquistada, e para tanto, nenhum escrúpulo pode deter sua
empreitada. Assim, a mulher e a morte, para D. Juan, estão quase em equi-
valência. Além de sedutor, D. Juan é também um descrente e um transgressor,
que desafia as leis do Céu e da terra. Não bastasse isso, ele é também um
mau filho, que ultraja e ridiculariza a autoridade paterna com sua conduta
depravada e suas transgressões aos códigos morais da nobreza. Seu pai lhe
assinala que ele não é digno de sua descendência. E, coisa curiosa, a figura
materna não aparece em nenhuma das versões, senão em uma breve alu-
são, sem jamais constituir um personagem da trama. Acrescentemos a isso
o fato que D. Juan parece ter um gosto não somente por abandonar cada
uma de suas mulheres conquistadas, mas também por invalidar, depois do
abandono, a palavra dessa mulher. Não raramente ele as designa para seu
interlocutor, quando se introduzem na cena e o interpelam em suas furiosas
reivindicações, como “loucas”. Entretanto, Don Juan, este ser de fuga e de
inconstância que jamais suporta permanecer com nenhuma dessas mulhe-
res e que se sustenta em uma incansável evasão do desejo, pervertendo a
linguagem com seus artifícios sedutores, surpreende. Ele, que jamais foi fiel
à palavra dada, vai cumpri-la comparecendo ao “reencontro” marcado justa-
mente com a estátua do Comendador, este pai morto que, com um aperto de
mão, o conduz aos infernos.
Analisando o processo da sedução em Don Juan, Monique Schneider5
propõe um recorte particularmente interessante no que diz respeito à relação

5
Schneider, Monique, Don Juan entre le père et la femme in : Don Juan et le procès de la
séduction, Ed. Aubier, Paris, 1994, p. 215-265.

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PINTO, M. R. P. Don Juan...

do sedutor com o pai e com a mulher. Estes sucessivos abandonos da mu-


lher e esta invalidação da palavra feminina participariam, segundo esta auto-
ra, de uma lógica do “matar ou ser morto”. Assim, cada abandono e cada
invalidação da palavra feminina estariam inscritos em uma espécie de
matricídio velado. Cada mulher estaria no lugar de uma mãe a ser morta e,
assim, reafirmando também a completa impossibilidade de descendência
para D. Juan. Com efeito, o pai de D. Juan fala, em seu discurso de reprova-
ções e advertências, do ardente desejo com o qual ele pedira ao Céu para
dar-lhe um filho, sem jamais se referir nem à existência nem ao desejo da
mãe, uma espécie de procriação humano-celestial. A isso, Monique Schneider
se refere como sendo um fantasma de partenogênese masculina. Na verda-
de, este mesmo pai aparece como demasiadamente humano para este ser
de exceção que Don Juan encarna, de onde seu desprezo de filho. Para um
ser de exceção, um pai absoluto. Este pai absoluto que, ultrapassando a
própria morte, retorna para levar consigo em sua eternidade infernal, o filho
que, infiel às mulheres e às leis dos homens, não lhe faltou com a palavra.
De sorte que podemos interpretar, de certo modo este encontro de D. Juan
com a estátua do Comendador, no final de sua trajetória, tragado pelo buraco
infernal aberto para ele por este pai, como uma espécie de feminização ab-
soluta, de penetração pelo pai neste enlace fatal. Os gritos de D. Juan, na
cena final de sua danação, efetivamente evocam o desejo carnal. Ele diz:
“Um fogo invisível me queima, não agüento mais, meu corpo inteiro transfor-
ma-se em um braseiro ardente, ha!!!!”6. Provavelmente, o mesmo fogo que
animava suas conquistas eróticas.
Foi pelo viés do desejo, do gozo e da angústia, que Lacan se interes-
sou pelo mito de Don Juan7. Pouco antes de afirmar que “Don Juan é um
sonho feminino”, ele trata da questão da necessária presença, no reino mas-
culino, de alguma impostura. Diferente da mascarada feminina, que deixa ver

6
Ibid. Ato V, cena VI.
7
Lacan, Jacques, Séminaire ´´l´ Angoisse´´ , Lições XV e XVI, publicação interna da
Association Lacanienne Internationale.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 59


SEÇÃO TEMÁTICA

o que há por detrás dela, por pouco que seja, a impostura masculina estaria
preocupada em jamais deixar ver o que não há. Por isso, deixar ver seu
desejo, pela mulher, resultaria angustiante para o homem. Isso nos faz pen-
sar na constante evasão do desejo, acima evocada, no personagem de D.
Juan. Enquanto “sonho feminino”, D. Juan apareceria, segundo Lacan, como
um homem perfeitamente igual a ele mesmo, um homem ao qual não faltaria
nada. Lacan assinala ainda a relação de D. Juan com esta imagem do pai
absoluto, não castrado, uma pura imagem, uma imagem feminina. A com-
plexidade da relação do homem a seu objeto, nos diz Lacan, resta apagada
em D.Juan, mas para isso é necessária uma aceitação de sua “impostura
radical”, da qual depende todo o seu prestígio. Colocando-se sempre no
lugar de um outro, D. Juan aparece como o objeto absoluto, que está sempre
ali. Em lugar da dimensão do desejo, estaria, em D. Juan, alguma coisa que
faz função, já que o desejo mesmo pouco contaria em seu jogo. Esta alguma
coisa seria o odor di femina, que tem justamente a propriedade de ser volátil,
desaparecendo na própria aventura.
Enquanto para a mulher o desejo teria como ponto de partida, para
constituir seu objeto, aquilo que ela não tem, para o homem, as coisas
começariam por aquilo que ele não é.
É nessa ofuscante problemática do ser e do ter, que Lacan situa o
fantasma de Don Juan como um fantasma feminino. Melhor dizendo, trata-se
dessa busca feminina de uma imagem que teria uma função fantasmática.
Antes de mais nada, a imagem de um homem que “tem”, que sempre o “terá”
e que jamais vai “perdê-lo”. E Lacan acrescenta ainda que justamente é essa
a posição de D. Juan no fantasma, a de que nenhuma mulher vai “tomá-lo”
dele. Nesse sentido é que o fantasma de D. Juan seria um fantasma femini-
no, é isso o que ele teria em comum com a mulher, já que ninguém poderia
tomar dela o que ela não tem. Seguindo este raciocínio, Lacan afirma que “o
que a mulher tem em vista, na homenagem do desejo masculino, é que este
objeto (...) torne-se propriedade sua”.8 Uma vez que ele lhe pertença, não se

8
Op. Cit. P. 220.

60 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.


PINTO, M. R. P. Don Juan...

perde mais, como havia já avançado Lacan. Enfim, Lacan nos diz com isso
muita coisa da relação de D. Juan com a mulher. Quanto à relação de D.
Juan com o pai, podemos nos permitir aqui uma ousadia de leitura. Em seus
comentários finais sobre D. Juan, Lacan diz que “(...) uma mulher pensa
sempre que o homem se perde com outra mulher. Don Juan a deixa segura
de que há um homem que não se perde em hipótese alguma”9. Nossa ousa-
dia seria a de acrescentar: a não ser com o pai.
Essa incerteza do ser, esse gosto por se fazer passar por outro, esse
apego ao parecer ter, essa busca do pai não castrado, essa curiosa evasão
do desejo, características essenciais de D. Juan, são elementos constitutivos
do sonho feminino que escutamos todos os dias em nossa clínica, desde
Freud. A familiaridade de D. Juan com a constituição fantasmática como tal,
desde os primórdios da psicanálise até nossa atualidade é bastante signifi-
cativa e continua nos servindo de paradigma para nossa necessária perda da
inocência, sem a qual as coisas jamais avançariam.
Nascido da tradição oral medieval, esse mito chegou a 1630 com
mais de trezentas versões e, desde então, já inspirou mais de 400 obras
escritas. Se Don Juan faz falar tanto, é porque, sem sombra de dúvidas, a
literatura imita a vida, e não o contrário.

9
Op. Cit. P. 221.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 61


SEÇÃO DEBATES

SOBRE O “MAIS” FEMININO

Francisco Settineri

E
m uma de minhas traduções, caiu-me nas mãos um autor que é
sempre impressionante, capaz de despertar transferências, pela sua
capacidade teórica.
Todavia, uma de suas intervenções, nesse livro, deixou-me impressio-
nado, até pelo menos, certa vez, comentá-la com a Ana Maria da Costa, o
que me fez pensar por anos, até que um dia... Ana me disse: “Não é bem
assim!” E nada mais disse...
Aconteceu em uma comunidade do Orkut, em que se citavam frases
da correspondência amorosa entre Heidegger e Hannah Arendt. Acendeu-se
a centelha, e comecei a pensar um pouco mais, sobre o “mais” feminino.
Nesse trecho, Harari afirmava que o grito de “mais”, durante o orgas-
mo feminino, era característico da histérica. Ela, segundo o erudito argenti-
no, demandaria mais – pênis-, justo na hora em que o homem não podia dar
mais o que ela, supostamente, lhe pediria. Desse modo, o humilharia.
Tenho dois motivos, lingüísticos e psicanalíticos, para me permitir dis-
cordar do renomado psicanalista e escritor, do qual traduzi, com todo esme-
ro que pude, dois livros. E sobre os quais ele próprio comentou, com um
analisante seu, que estavam muito bons, porque tinham sido traduzidos com
transferência.
O primeiro é de ordem lingüística. Um significante nunca é repetido
com o mesmo valor semântico, mesmo na mesma frase. Isso está no Curso
de Lingüística Geral, do Mestre genebrino, e Lacan o cita, nem sempre refe-
rindo a fonte.
Aliás, quem é que nos garante que, para cada mulher, em cada orgas-
mo, ao dirigir-se ao parceiro para pedir mais, está enunciando o mesmo
significante, com seus mesmíssimos efeitos de significado?
Formulando essa interpretação completamente fechada, Harari sim-
plesmente, além de ser injusto com as mulheres, provocando inibições se-

62 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.


SETTINERI, S. Sobre o “mais” feminino.

xuais em suas discípulas fiéis, e privando seus homens deste maravilhoso


prazer (menos os obsessivos...), transforma esse belíssimo significante
amoroso em uma reles holófrase. Uma holófrase perigosa, difícil de desfazer.
Como diria Quintana, “que poder de síntese”!
Um pedido de mais pode ser para que lhe recitem Vinicius, ao ouvido,
depois do coito. Pode ser para ganhar um beijo na testa. E pode ser para
depois dormir de conchinha, e ser “atacada” de madrugada... Pode ser qual-
quer coisa, o que importa é que, fiel ao ensino de Lacan, sei que o significa-
do desliza constantemente, sob o significante. Isso é Lacan, e pode também
ser encontrado na teoria do valor, de Saussure. E, como sabemos, um
significante, em si, não significa nada... É tudo aquilo que os outros não são,
sem termos positivos.
Certa vez, Alfredo relatou que Lacan perguntava aos que assistiam a
seus seminários, de onde eles eram. De que cidade, de que país, era sua
intenção. E um argentino respondeu:
– Eu venho da Filosofia!
Quanto a mim, eu venho da poesia. E deixo o meu recado, em forma
de soneto.
Perguntas rodrigueanas na noite cavernosa
O que quer uma mulher?
O que, realmente, quer uma mulher,
Quando, em pleno embate amoroso,
Grita MAIS! Mais, mais, e mais...
Aos ouvidos de seu doce esposo?
Não seria apenas um outro afago,
Mais um beijo carinhoso, ou mesmo
Um verso sussurrado ao ouvido?
Poderia, enfim, ser uma outra coisa?
Ela poderia ter mais, mas mais do que?
Ou então quer ser simplesmente mulher,
Cheia de vida, cheia de alma, pleno sentido,
Uma mulher, apenas, com toda calma...?
Envolta em brumas, acalantos, gritos e ais...

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 63


RESENHA

DIÁRIO DE UM SEDUTOR
KIERKEGAARD, Soren. Diário de um sedutor. Os Pensa-
dores, Abril Cultural, 1979, 52p.

E
scrita em 1843, “Diário de um sedutor” é
uma obra do filósofo dinamarquês Soren
Kierkegaard, num período em que procu-
rava demonstrar a necessidade de escolha entre
o modo de vida ético e estético. Kierkegaard,
cristão luterano atormentado, na juventude ex-
perimentou a vida boêmia após a morte do pai.
Passados os primeiros momentos de crise, re-
toma seus estudos univesitários e torna-se en-
tão pastor. Logo, rompe o noivado com uma jovem de 17 anos para viver uma
vida solitária em busca de sua vocação filosófica religiosa.
O autor narra a fictícia descoberta de um diário pertencente a alguém
que ele conheceu – Johannes – cujo conteúdo fala das suas relações com
uma jovem, também sua conhecida, de nome Cordélia. Acompanha o diário,
um conjunto de cartas do sedutor à jovem que as doa ao narrador, que, por
sua vez, as intercala no desenrolar do diário. O conteúdo do diário: a paixão
de Joahnnes por Cordélia, melhor dizendo, por sua imagem e sua paciente
estratégia em seduzi-la, deflorá-la e abandoná-la.
Jean Baudrillard (“Da Sedução”, 1992) bem comenta o clima da obra:
“O Diário de um sedutor é o cenário de um crime perfeito. Nada no cálculo do
sedutor, nenhuma de suas manobras fracassa. Tudo se desenrola com uma
infalibilidade que poderia ser não real ou psicológica mas mítica. Essa perfei-
ção do artifício, essa espécie de predestinação que orienta os gestos do
sedutor só faz refletir, como num espelho, a perfeição da graça infundida na
jovem e a inelutável necessidade de seu sacrifício. O sexo seria assim ape-
nas o soldo ou o desconto de um processo mais fundamental, um resíduo
econômico do processo sacrificial da sedução. Os deuses levam sua parte,
os humanos dividem os restos.”

64 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.


RESENHA

O leitor vai acompanhando sua campanha, sua obra, sua “operação”,


modo como ele se refere à conquista da jovem. Conquista esta sempre oblí-
qua. Mas há uma intenção clara do sedutor nos seus atos; despojá-la de seu
poder. A teoria do sedutor é: “A mulher é, pois, aparência. Aliás, partilham
este destino com toda a natureza e, em resumo, com tudo que é feminino.”
“Enquanto aparência, a mulher é marcada pela virgindade pura.”
A narrativa dos passos da conquista vai sendo envolvida nas reflexões
do sedutor sobre a natureza feminina e sobre a própria natureza da sedução
e da estética. O sedutor não é um homem vulgar, sua visada é o espírito da
jovem.
Ficam noivos após endereçar a Cordélia uma série de cartas. Destas,
ele diz: “Minhas cartas acertam o alvo. Desenvolvem sua alma, senão mes-
mo seu erotismo. Para tal, aliás, as cartas não servem, mas sim os bilhetes.
Quanto maior é o caminho percorrido pelo erotismo, tanto mais curtas as
cartas se tornam; mas vão tocar com maior certeza no ponto erótico. A fim
de não tornar sentimental ou indolente, a ironia irá, por seu lado, retesar os
sentimentos, ao mesmo tempo em que a torna ávida do alimento que prefe-
re. Os bilhetes fazem, de longe e vagamente, adivinhar o supremo bem. As
nossas relações quebrar-se-ão no instante em que esse pressentimento
começar a despontar na sua alma.”
No momento do noivado tem-se a impressão de atingir um ponto mor-
to, o sedutor leva o ardil do desencanto e a dissuasão a um grau quase
perverso de mortificação: “Não sou erótico, que faria apenas despertá-la; sou
dócil, maleável, impessoal, não sou mais que um estado d’alma...” Desen-
cantar, esfriar, decepcionar, guardar distância, até que ela mesma tome a
iniciativa da ruptura do compromisso, rematando assim o trabalho da sedu-
ção e criando a situação ideal para seu total abandono.
Escreve ele: “O rompimento é um fato consumado; forte ousada, divi-
na, ela eleva-se nos ares como um pássaro a quem só hoje foi permitido
mostrar a envergadura da suas asas.” Ao acabar o noivado, a tia permite–lhe
passar algum tempo no campo. O sedutor volta às cartas com intenção de
torná-la forte e incliná-la para o lado de um desprezo periférico pelas pesso-

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 65


RESENHA

as e pela moral. Escreve-lhe: “... chamo-te minha porque nenhum sinal exte-
rior recorda a minha posse. Em breve ao chamar-te assim será pura verdade.
E, apertada nos meus braços, quando me enlaçares nos teus, não precisa-
remos de nenhum anel para nos recordar que somos um do outro; pois não
será esse abraço uma aliança mais real que um simples símbolo?”
Depois do último ato, Joanhnnes lamenta por um instante a brevidade
da noite em que possuiu Cordélia, para logo concluir que está tudo acabado,
que uma jovem é fraca quando deu tudo, pois tudo perdeu: “... no homem a
inocência era um elemento negativo, mas na mulher, a essência da sua
natureza.”
Então, formula um desejo a respeito de Cordélia e sua repulsa por
lágrimas e súplicas femininas: “Ameia-a, mas já não posso interessar-me.
Se eu fosse um deus faria aquilo que Netuno fez por uma ninfa, transformá-
la-ia em homem.”
Quanto a Cordélia, sua voz está nas três cartas desesperadas que
abrem o relato da trama. Para Baudrillard, mesmo este desespero é estra-
nho: “Nem exatamente enganada, nem exatamente despojada de seu dese-
jo, mas espiritualmente desviada por um jogo cuja regra não conhecia. En-
volvida como por um sortilégio – a impressão de ter sido sem o saber o
objeto de uma maquinação, mais que aniquiladora, de um rapto espiritual –
é, com efeito, sua própria sedução que lhe foi roubada e voltada contra si
própria. Destino inominável, do qual resulta um estupor bem diferente do
desespero.” Diz o narrador a este respeito: “Estas vítimas eram pois de um
tipo muito especial (...) sua vida era semelhante à que se vê todos os dias, e,
entretanto, haviam se modificado sem que os outros pudessem notar. Sua
vida não se quebrara nem rompera como outras, antes se curvara dentro
delas próprias; perdidas para os outros, em vão procuravam reencontrar-se.”

Silvana Lunardi

66 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.


AGENDA

AGOSTO – 2007

Dia Hora Local Atividade


02, 09, 16, 19h30min Sede da APPOA Reunião da Comissão de Eventos
23 e 30
09 21h Sede da APPOA Reunião da Mesa Diretiva
06 e 20 20h30min Sede da APPOA Reunião da Comissão do Correio
03 e 17 15h30min Sede da APPOA Reunião da Comissão da Revista
03 e 17 8h30min Sede da APPOA Reunião da Comissão de Aperiódicos
23 21h Sede da APPOA Reunião da Mesa Diretiva Aberta aos
Membros da APPOA

PRÓXIMO NÚMERO

PERCURSO DE ESCOLA

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. 67


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in the last decade. London, Hogarth, 1992.)
Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

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1a Vice-Presidência: Lúcia Alves Mees
2a Vice-Presidência: Nilson Sibemberg
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2a Secretária: Maria Elisabeth Tubino
1a Tesoureira: Ester Trevisan
2a Tesoureira: Maria Beatriz de Alencastro Kallfelz
MESA DIRETIVA
Alfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Maria Medeiros da Costa
Ângela Lângaro Becker, Beatriz Kauri dos Reis, Carmen Backes,
Emília Estivalet Broide, Fernanda Breda, Ieda Prates da Silva, Maria Ângela Bulões,
Maria Ângela Cardaci Brasil, Maria Cristina Poli, Otávio Augusto Winck Nunes,
Robson de Freitas Pereira, Siloé Rey e Simone Kasper

EXPEDIENTE
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Comissão do Correio
Coordenação: Gerson Smiech Pinho e Marcia Helena de Menezes Ribeiro
Integrantes: Ana Laura Giongo, Ana Paula Stahlschmidt,
Fernanda Breda, Marcia Zechin, Maria Cristina Poli,
Marta Pedó, Norton Cezar Dal Follo da Rosa Júnior
e Robson de Freitas Pereira.
S U M Á R I O
EDITORIAL 1
NOTÍCIAS 2
SEÇÃO TEMÁTICA 4
EPISTEMOLOGIA E TOPOLOGIA
LACANIANA: TEMPO DE COMPREENDER
Almerindo A. Boff 6
SOBRE A TOPOLOGIA
DAS ESTRUTURAS CLÍNICAS
Ligia Gomes Víctora 12
ENSAIO SOBRE A TOPOLOGIA
DA NEUROSE OBSESSIVA
Bernard Vandermersch 22
A QUESTÃO DA TRANSFERÊNCIA
NAS PARANÓIAS
Louis Sciara 33
DOM QUIXOTE (O AVESSO
DO AVESSO DA LOUCURA II)
Sueli Souza dos Santos 48
DOM JUAN: UM SONHO FEMININO
Maria Rosane Pereira Pinto 55

SEÇÃO DEBATES 62
SOBRE O “MAIS” FEMININO
Francisco Settineri 62

RESENHA 64
O DIÁRIO DE UM SEDUTOR 64

AGENDA 67
N° 160 – ANO XIV AGOSTO – 2007

A TOPOLOGIA DAS
ESTRUTURAS CLÍNICAS

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