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- É possível, pela mediação daquilo que hoje tem o nome rebarbativo de problemática.
Como sabe, pertenço à tradição das Annales, cujos fundadores, Lucien Febvre e Marc Bloch,
definiram um tipo específico de história, a história-problema. Isso é fundamental para nós.
Julgamos que o historiador tem o dever de colocar questões como eixo do seu trabalho. Em
seguida, ele vê corno respondê-las, apoiando-se naquilo que, é claro, continua sendo o seu
material específico, que são os documentos.
Logo, o próprio fato de partir de uma questão problemática já introduz alguma
racionalidade. Depois, se o historiador pretende realizar uma obra científica - ainda que a
história seja uma ciência muito peculiar, acredito que seja uma ciência - também deve levarem
conta o movimento da história, a sua diversidade, sua irracionalidade, sua flexibilidade.
Pessoalmente, tenho grande interesse na história do imaginário e, no imaginário, há muita
irracionalidade. Portanto, introduzira racionalidade na história não significa excluir o
irracional, o impreciso, o flutuante, muito pelo contrário. Significa que a gente tenta explicar
as mudanças históricas a partir da resposta a uma questão que, por sua vez, é racional.
- Não acha que a história, como as demais ciências sociais, tem como um dos seus
problemas fundamentais o fato de sempre propor interpretações ex. post facto?
- De pleno acordo, isso é para mim essencial, eu diria até que é uma das bases
científicas das ciências sociais e, particularmente, da história. Penso - e olhe que eu não estou
.
Nota: Esta entrevista foi transcrita, traduzida e editada por Monique Augras.
sozinho nisso - que o historiador se sente pouco à vontade quando a gente chega ao
imediatamente contemporâneo. Um dos motivos pelos quais é muito difícil estudar a história
contemporânea é que não sabemos o que vai acontecer mais tarde. É preciso dizer isso
claramente. Muitas vezes, os historiadores não querem assumir isso, colocam-se como se
fossem os descobridores da evolução histórica. Nada disso! Eles devem partir daquilo que
aconteceu para tentar compreender como e por que aconteceu.
Para mim, o fato de partir do ponto de chegada é o que garante a seriedade do trabalho
do historiador. Além disso, há outras condições, outras qualidades, é claro, mas partir do
ponto de chegada me parece essencial. É por isso que concordo com Marc Bloch, que
denunciava “a idolatria das origens”. Muitas vezes, os historiadores das origens fazem o
caminho inverso. Partem daquilo que começou, e descem o rio. Ora, penso que se a gente se
satisfazem descer o rio, duas coisas podem acontecer: em vez de entender por que o rio corre,
a gente acaba sendo levada por ele; ou então, corre o risco de perder o contato com o rio e ir
para longe dele. O método, o trabalho do historiador, a meu ver, consistem necessariamente
em uma constante ida-e-volta entre passado e presente. Sendo que o presente é obviamente o
futuro. O futuro do passado.
Vou citar uma frase conhecida, que foi repetida por vários cientistas e,
particularmente, pelo filósofo italiano Benedetto Croce: “Toda história é contemporânea.” O
passado continua sendo interpretado, sempre é urna leitura contemporânea que se faz e, na
compreensão do passado, temos de integrar essa leitura renovada, sempre recomeçada.
- A “nova história” parece ter obtido grande sucesso junto ao público culto. Mas,
entre os historiadores, será que não está ocorrendo uma reação contrária?
como a história do político, do poder, que por exemplo atribui importância, a meu ver
justificada, à dimensão simbólica do poder etc.
Há portanto um retomo, que de fato é uma renovação, que poderíamos até chamar de
renascimento. Mas há também uma história política verdadeiramente reacionária, que volta
para os velhos tipos, que se interessa essencialmente pelos acontecimentos, pelas instituições,
e pelos grandes homens. Continua grassando. Veja por exemplo a biografia. Hoje em dia, há
uma biografia renovada que se processa, que está conseguindo superar a oposição entre
grandes homens e sociedade. Mas há também biografias que são pura e simplesmente
reacionárias, anedóticas, narrativas, de um psicologismo que não leva a nada! Na França, está
ocorrendo um fenômeno bem significativo. Há uma editora, à qual estou ligado - faço questão
de dizer, é a Fayard que publica grande número de biografias. Pois bem, publica tanto
biografias renovadas, ao novo estilo, como biografias ultra-tradicionais.
- Sou bretão por parte de pai e provençal por parte de mãe. Nasci em Toulon e passei
toda a infância e a adolescência na Provença, em Toulon e depois Marseille. Depois da guerra
fui para Paris de onde não mais saí, a não ser para passar um ano em Oxford, para trabalhar
em um college, e outro ano na Escola Francesa de Roma, da qual fui membro. Meu pai era
professor de inglês no liceu e minha mãe, professora de piano.
- Minha mãe era católica muito praticante, meu pai era anticlerical muito feroz, e o
casamento deles foi excelente, daí tive de refletir sobre isso, o que me levou à história...
- Como assim?
- Tive de refletir sobre o fato de que não se pode fazer história a priori, porque se
alguém tivesse colocado essa questão sem verificação, teria concluído ser impossível existir
um casamento bem ajustado entre esses dois tipos de pessoas, e no entanto, esse casamento
deu muito certo. Vi que o mundo da sensibilidade, das mentalidades, dos comportamentos, era
um mundo muito peculiar. Se o problema fosse colocado do ponto de vista das idéias apenas,
a resposta teria sido: casamento impossível. Mas homens e mulheres são minimamente
dirigidos por idéias. Eles são conduzidos por sensibilidades, por mentalidades, e é por isso
que acho excelente ter inventado uma “história das mentalidades”, que nos permite
compreender melhor o que acontece, e o que aconteceu nas sociedades.
- Sabe que não sei ao certo? Só sei que, muito cedo, eu devia ter uns 10 anos, já queria
estudar história. Lembro que logo foi a Idade Média que me interessou mais. Vejo duas
influências muito importantes. A primeira foi de um professor do 3° ano ginasial, eu estava
com 13 anos, e ele me levou a gostar ainda mais da história. Naquele tempo, no 3° ginasial, a
gente estudava a Idade Média. A outra influência foi o fascínio pelos romances de Walter
Scott. Neles, não encontrava apenas o exotismo que obviamente seduzia o adolescente, mas
também devo dizer que já percebia em Walter Scott uma verdadeira atitude de ,historiador.
Via-o como historiador, porque ele procurava dar uma explicação do funcionamento das
sociedades das quais falava.
Por exemplo, o mais célebre, entre nós, dos romances de Walter Scott, Ivanhoé, dá
uma explicação da história que se situa na perspectiva da oposição entre normandos e anglo-
saxões. Há no romance uma problemática da história. Há um certo número de outros fatos que
recebem tratamento literário, é claro, mas com uma carpintaria que é digna de um historiador.
Por exemplo, o papel dos judeus, a importância e a significação dos torneios etc. etc. Essa
obra não só me levou a amar a Idade Média do ponto de vista da “cor local”, mas me reforçou
na opinião que há um certo número de fenômenos essenciais que em grande parte explicam
como viveram os homens, como funcionaram as sociedades.
- O senhor costuma afirmar que a Idade Média começa no século II e acaba no século
XIX. Por que o século XIX ?
pessoas. Depois do século XIX, haverá quem ainda acredite em milagres. Haverá até mesmo
certo renascimento dessa crença por meio dos milagres da Virgem, já que o grande
movimento mariano do século XIX se acompanha de milagres: Lourdes, Loreto etc. Mas o
conjunto da população não acredita mais em milagres. Veja a última sagração de tipo
medieval: é a do rei Carlos X em 1825, na França. Os outros países nem mais faziam
sagrações naquela época. Até mesmo a Inglaterra anglicana, ainda próxima do catolicismo, já
não tinha mais esse tipo de ritual no início do século XIX.
Não nego que tenha havido, entre o século RI e o século XIX, mudanças importantes o
bastante para que se considerem subperíodos. Há a Antiguidade tardia, depois, a Idade Média
propriamente dita, Renascimento, Tempos Modernos, que na verdade é um período com
características novas. Mas creio que, fundamentalmente, as estruturas profundas permanecem
até o início do século XIX.
- Não é verdade! Digo isso sem falsa modéstia, a antropologia histórica propriamente
dita apareceu primeiro num grupo francês, mas era um grupo de helenistas.
- Vernant?
- Devo dizer que conheço pouco a obra dele. Eu o conheci pessoalmente, ele foi o
mestre de Jean-Pierre Vernant, viveu muitos anos e, quase até o fim de sua vida, ministrou seu
seminário. Vernant sempre me falava dele. Mas vou confessar algo que deve ser um
preconceito meu: dispenso os filósofos! Vou explicar a minha posição. Creio sinceramente
que a filosofia é uma manifestação do espírito humano, é uma disciplina que deve ter um
lugar importante na formação dos jovens, na universidade, mas enquanto a história me parece
ser um dos objetos sobre os quais é não só legítimo mas ainda necessário que os filósofos
reflitam, penso que o historiador não tem que se entregar à filosofia da história.
Recuso toda filosofia da história. Veja bem: não quero fazer pesquisa sem saber o que
estou fazendo. Não ter consciência dos pressupostos implícitos nos métodos que utilizamos
seria perigoso demais. Por isso considero que a metodologia e a epistemologia são
importantíssimas. Mas a filosofia, não.
Uma das poucas exceções que eu faria, seria em relação a Michel Foucault. Eu o
freqüentei bastante, conversamos muitas vezes, mas acredito que ele foi um caso raro: tornou-
se historiador, permanecendo filósofo! Creio que se Michel Foucault pôde ser tão importante
para um historiador como eu - e não estou sozinho nisso é porque ele se tinha tornado um
historiador.
Em compensação, não sou chegado aos filósofos. Não nego que haja nisso uma grande
parte de preconceito. Acabo agora de descobrir - aliás, estou me perguntando se já o tinha lido
antes, e registrado inconscientemente - pois bem, eu que tenho tanto interesse pelo imaginário,
- É isso mesmo. É essa a linha das Annales, com a noção de história total ou história
global.
- Ainda estou trabalhando com a RATP. Fui solicitado, de modo surpreendente, pelo
diretor geral adjunto, que sabia mais ou menos o que eu estava fazendo. Eu tinha acabado de
publicar um volume sobre a história da cidade medieval, e parece que foi isso que o incitou a
me procurar. A RATP estava iniciando uma semana de reflexão sobre a cidade. Eles estavam
interessados nos usuários dos transportes parisienses, e achavam que para entender Paris, a
perspectiva histórica era muito importante. O que acho notável é que não foram convidar
apenas historiadores contemporâneos, nem, o que seria evidente, sociólogos ou psicólogos,
mas chamaram um historiador do passado. Julgaram que, em Paris, a presença do passado era
tamanha, que devia ser levada em conta para esclarecer a relação do fenômeno urbano com a
pessoa do citadino. Realizamos três colóquios, e durante quatro anos participamos de
seminários mensais compostos metade de técnicos dos transportes e metade de pesquisadores,
historiadores, geógrafos etc. Era apaixonante. Deu para entender que a história, pela sua
própria reflexão e seu papel na cidade, só pode enriquecer-se ao trabalhar junto com o mundo
das empresas.
- E a Europa?
conseguinte estamos nos desiludindo. O capitalismo tampouco nos traz satisfações. Para a
maioria das pessoas, é mais fácil viverem regime capitalista do que comunista, mas vemos,
com todo esse desemprego, que não é o regime ideal.
Além da crise das ideologias, há também ameaças concretas. Falando como cidadão e
não apenas como historiador, em meio a todas as injustiças, todas as desgraças que há no
mundo, da fome à tortura, há, na própria Europa, duas fontes de grande preocupação. A
primeira, que é nova, embora o historiador já pudesse prevê-la, é o despertar das
nacionalidades sob forma de um nacionalismo exacerbado. Acredito na legitimidade das
nações e de certos nacionalismos. Para certo número de povos, a independência que não
tiveram no século XIX nem no século XX é obviamente um progresso. Mas que isso se faça -
não podemos deixar de pensar na Iugoslávia na violência e no ódio, é terrível, arrasador. A
segunda preocupação, ainda que eu permaneça otimista, é a efervescência racista, e aqui na
França, particularmente. Para mim, é um retrocesso no movimento da história, é o contrário
daquilo que permite que os franceses se sintam relativamente satisfeitos com eles próprios,
apesar dos episódios negativos que têm em sua história, como todos os povos. É uma grande
tristeza, tanto para o historiador como para o cidadão, ver que coisas insatisfatórias de nossa
história são recuperadas, proclamadas, reivindicadas. Aquela gente, para mim, é a anti-França.
Estou muito preocupado com a junção de tantos movimentos turvos do passado em um
só. Aqui, estamos confrontados comum problema gravíssimo, que diz respeito às relações
entre democracia e ditadura. Receio, num futuro próximo, as ameaças dos totalitarismos e dos
racismos. Ainda que o estudo do movimento da história possa me confortar, me tranqüilizar
quanto à sua evolução.
Lista bibliográfica
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LE GOFF, Jacques. 1980. Para um novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura
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__________. 1984. A civilização no Ocidente Medieval. Lisboa, Estampa.