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9 788538 706434
2012
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P729L
v.3
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-3335-5
CDD: 869.909
CDU: 821.134.3(81).09
O romance contemporâneo:
introspecção e contestação.................................................141
O romance: do surgimento ao Modernismo..................................................................141
O romance contemporâneo.................................................................................................143
O romance contemporâneo:
diálogos com a história.........................................................153
A tradição do romance histórico........................................................................................153
Retomada da tradição do romance histórico.................................................................154
Ficção e história na literatura brasileira contemporânea...........................................155
Gabarito......................................................................................179
Referências.................................................................................185
Concepções de literatura
e período literário na contemporaneidade
Definir a literatura contemporânea é uma tarefa um tanto difícil. Em pri-
meiro lugar, já há um problema a partir das delimitações de tempo: quan-
tos anos ou quantas décadas caberiam na concepção de contemporâneo?
Segundo o dicionário Aurélio, contemporâneo significa “que é do mesmo
tempo, que vive na mesma época (particularmente a época em que vi-
vemos)” (HOLANDA, s.d.). Nesse sentido, estamos falando de ocorrências
recentes, que dizem respeito aos nossos dias. Porém, historicamente, o
que é recente tem uma abrangência muito maior. Trata-se, pois, de um
período cujas definições não são muito claras, pois o que hoje é chamado
de contemporâneo não mais o será daqui a alguns anos.
Vejamos um exemplo prático para que essas ideias tornem-se mais concre-
tas. Na nossa realidade atual, as causas ambientais são grande foco de atenção.
De um lado, há grupos que defendem formas radicais de preservação do meio
ambiente para impedir a degradação do planeta e o seu comprometimento para
as gerações futuras; de outro, há aqueles que consideram um exagero o modo
como o problema ambiental é tratado, veiculando a ideia de que a natureza
está passando por um processo normal de adaptação. Esses grupos vivem um
embate que se concretiza pelas práticas discursivas por eles adotadas, ou seja,
por meio da linguagem eles procuram impor suas formas de pensar. A literatura,
cujas realizações são marcadas pelo contexto vigente, irá, é óbvio, trazer para
seu âmbito esses e outros problemas que afligem os indivíduos no nosso tempo.
Questões como essas e tantas outras que definem formas de pensar e comporta-
mentos na atualidade tornam-se, assim, alvo da construção artística, ganhando,
muitas vezes, contornos diferentes daqueles que estão presentes nas práticas
cotidianas, já que a literatura se permite esse tipo de liberdade.
Outro ponto relevante está ligado à periodização. Quando pensamos nos mo-
vimentos literários precedentes, como Barroco, Arcadismo, Romantismo, Realis-
mo etc., há sempre uma marca temporal precisa para seu início. Por exemplo: no
Brasil, o Barroco iniciou com a publicação de Prosopopeia, de Bento Teixeira, em
1601; o Romantismo, com Suspiros Poéticos e Saudades, de Gonçalves de Maga-
lhães, em 1836, e assim por diante. Obviamente, essas datas são meros recursos
didáticos para definir quando um movimento literário começa a vigorar. Porém,
isso não significa que as formas estéticas anteriores simplesmente desaparecem
quando uma obra com novas características literárias vem a público.
1
Segundo Jonathan Culler, o termo estruturalismo “designa um grupo de pensadores principalmente franceses que, nas décadas de [1950 e 1960],
influenciados pela teoria da linguagem de Ferdinand de Saussure, aplicaram conceitos da linguística estrutural ao estudo dos fenômenos sociais
e culturais. [...]
Nos estudos literários, o estruturalismo promove uma poética interessada nas convenções que tornam possíveis as obras literárias; busca não pro-
duzir novas interpretações das obras mas compreender como elas podem ter os sentidos e efeitos que têm” (CULLER, 1999 p. 121).
2
Para o pós-estruturalismo, “as estruturas dos sistemas de significação não existem independentemente do sujeito, como objetos do conheci-
mento, mas são estruturas para os sujeitos, que estão emaranhados nas forças que os produzem.” (CULLER, 1999, p. 122). Ou seja, os problemas do
sujeito só podem ser considerados mediante as “forças” ou formas de poder que atuam na sociedade.
Esse embate ideológico fez surgir a chamada Guerra Fria, um conflito que vi-
gorava apenas no plano das ideias, não se concretizando em confronto armado
direto entre as duas nações que lideravam os blocos. Contudo, nos países do
Terceiro Mundo, tanto nas Américas como na África e na Ásia, numerosos confli-
tos bélicos passaram a ter lugar. Se, a princípio, a motivação não era exatamente
de uma ideologia de esquerda ou direita, a divisão do mundo contribuiu para
a disseminação de lutas armadas por questões ideológicas, visto que tanto os
Estados Unidos como a União Soviética procuravam impor seu ideário político,
além de fornecerem armas aos grupos em combate. Esse foi o caso, por exemplo,
de vários territórios africanos, que já eram palco de guerras coloniais, buscan-
do independência em relação às nações que os dominavam. Ali, a polarização
ideológica serviu para que grupos internos formulassem as suas reivindicações
também no nível político de esquerda ou direita, promovendo perseguições aos
rivais e recebendo apoio bélico de norte-americanos e soviéticos – segundo o
lado ao qual aderissem.
3
A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) ou meramente União Soviética era formada pelas repúblicas que fizeram parte do antigo
Império Russo. No ano de 1991, após o processo de abertura política e econômica, a URSS foi extinta, com isso havendo a formação de várias nações
independentes na região.
No entanto, nos anos 1970, havia alas do escalão militar que se sentiam des-
contentes com o encaminhamento das práticas de repressão. Assim, em 1974,
quando a presidência da república foi assumida pelo general Ernesto Geisel
(1908-1992), esse militar das alas mais moderadas já trazia a incumbência de ini-
ciar o processo de abertura política. Entretanto, a necessidade do fim do regime
militar foi se tornando cada vez mais evidente com as denúncias públicas dos
desmandos de seu aparato opressivo, que estava matando inocentes, como o
jornalista Vladimir Herzog (1937-1975), e com o fracasso do “milagre econômico”
do início dos anos 1970, que dava ao país apenas uma aparência de progresso,
mas, na verdade, não conseguia tirar a nação do subdesenvolvimento, inclusive
aumentando as desigualdades sociais já existentes há séculos.
Em 1984, ocorreu o movimento Diretas Já, que lutava pelo voto direto para a
presidência da república, tendo sido o ponto alto das reivindicações democráti-
cas na época.
Uma dessas mudanças diz respeito ao papel social da mulher. Se sua função
principal estava associada à maternidade e aos cuidados do lar e da família, a
mulher começou a assumir obrigações que lhe deram uma nova condição na so-
ciedade. Passou a reivindicar direitos, como o de não ter sua vida restrita ao am-
biente doméstico, ter filhos ou não (algo que se tornou possível com a descoberta
da pílula anticoncepcional), escolher a atividade profissional e mesmo se casar ou
não, visto que o casamento era basicamente uma imposição social à mulher.
Vamos então conhecer alguns desses movimentos que deram novos rumos
às sociedades atuais no seu modo de agir e pensar.
A contracultura
Contracultura é o nome que se aplica a vários movimentos ocorridos a partir
do final dos anos 1950 e que se caracterizaram pela contestação dos valores bur-
gueses tradicionais. Essa vertente pode incluir desde o rock and roll, surgido na-
queles anos, até as reivindicações estudantis de maio de 1968, na França.
A contestação do racismo
Assim como a contracultura, foi também a partir dos Estados Unidos que os
movimentos antirracistas e a luta pelos direitos civis colocaram em foco as ques-
tões étnicas – principalmente as que atingiam os negros. A sociedade americana
apresentava, desde o século XIX, formas violentas de segregação racial, parti-
cularmente no Sul, onde há um grande número de negros por conta do afluxo
de escravos para essa região no passado – ali havia restrições bem maiores aos
direitos desse grupo.
King foi, acima de tudo, um pacifista que desejava que os direitos dos brancos
fossem estendidos também aos negros. Por suas lutas, que tinham por princípio
a não violência, ele teve o reconhecimento da comunidade internacional, che-
gando a receber o prêmio Nobel da Paz. Isso não impediu que, em 1968, fosse
assassinado – o que ocasionou atos de revolta dos negros por todo o país.
Esse movimento, nos Estados Unidos, marcou o início das discussões sobre
a questão racial nas sociedades contemporâneas. Assim, os negros ganharam
4
Antigo Estado nacional na região dos Bálcãs. Em 1963, passou a se chamar República Socialista Federativa da Iugoslávia e no início dos anos 1990,
começou a se desintegrar por causa das guerras étnicas na região, surgindo ali várias nações independentes.
5
Após a Segunda Guerra Mundial, a Tchecoslováquia esteve sob a influência da União Soviética, mas recuperou a autonomia política a partir da
desagregação da URSS. Em 1991, separou-se em duas nações independentes: Eslováquia e República Tcheca.
Assim, o que o maio de 1968 deixou como legado para a história foi princi-
palmente esse deslocamento das discussões sociais, que se davam no nível ca-
pitalismo versus comunismo, burguesia versus proletariado, e passaram para os
problemas ligados às ditas minorias – mulheres, negros, homossexuais, árabes,
judeus etc.
Texto complementar
A seguir, você lerá um trecho do romance Quarup, de Antônio Callado, cuja
trama se desenvolve durante a ditadura militar. No fragmento abaixo, Padre Nando,
o protagonista, resolve preparar uma celebração em homenagem ao amigo Levin-
do, morto em um confronto entre camponeses e militares. O jantar é uma espé-
cie de quarup, ritual dos índios do Xingu para homenagear seus mortos ilustres.
Nando conheceu essa celebração indígena em uma viagem feita à região.
LA LE LI LO LU
VA VE VI VO VU
VÃO VEM VIM
DA DE DI DO DU
VIVA LEVINDO
LEVE
VINDO
LELÊ
VIVI
LEVINDO
[...]
Juntou gente na porta da casa de Nando para ver a chegada dos con-
vidados. Arlete que tinha dito que só no Rio se servia pescado com classe
trouxe pronto na hora um dourado à la Conde Lage com o despropósito de
peixe deitado numa canoa de barro à sombra de uma construção em pasta
de amêndoas que representava a saudosa Pensão Imperial. Peito de Pomba,
paraense, trouxe a tartaruga. Manuel Tropeiro descarregou das bruacas do
jegue lagostas vivas e pitus de água doce e Cristiana parecia distribuir joias
quando abriu seu cesto de guaiamus azuis. Mariana trouxe licor de jenipapo.
Júlia, licor de umbu. Odília Beirão, licor de araçá. Marta Preta de groselha.
Ernestina de cacau. Vitoriana de anis. E quem senão Raimunda havia de vir lá
de Jaboatão com seu turco e trazendo uma toalha de renda de bilros que era
um nevoeiro em cima da mesa. Benedita trouxe bom-bocado. Libânio com a
Quando copos eram esvaziados mas ainda não tinha começado a come-
doria, Nando falou:
– Levindo.
Estudos literários
1. A literatura contemporânea
a) não tem nada a ver com as discussões atuais, como a do meio ambiente.
Dicas de estudo
Na internet, há vários sites que tratam do período ditatorial no Brasil e da
cultura nos anos de 1960. Em <www.revistaalambre.com/Articulos/Arti-
culoMuestra.asp?Id=9> há boas informações sobre as ocorrências políti-
cas e a cultura do período.
As transformações modernistas
As produções artísticas – incluindo a literatura – que são hoje desig-
nadas sob o rótulo de contemporâneas não podem ser compreendidas
se não tivermos em mente o processo de inovação que fez surgir a arte
moderna. De fato, novo foi um termo-chave para o Modernismo, vindo
acompanhado de outros, como crise e ruptura, que vão ditar os rumos do
movimento modernista.
Assim, concepções que, até o século XVIII, eram tomadas como certe-
zas indiscutíveis passaram a ser pontos de discussão e de controvérsias
entre os estudiosos. Veja-se, por exemplo, o que aconteceu quando Char-
les Darwin (1809-1882) propôs a sua teoria sobre a evolução humana. Até
então, tanto o homem como todos os seres da natureza eram vistos como
obra da criação divina. A tese darwiniana se chocou com tal crença ao
mostrar que todos os seres, inclusive o homem, foram o resultado de mi-
lhões de anos de evolução.
1
Anarquismo: sistema que propõe uma estrutura social que abole todos os tipos de hierarquia (governamental, econômica e social). Em uma
sociedade organizada em bases anarquistas, a prioridade seria a liberdade individual e a igualdade social. Entre os principais teóricos desse sistema
estão Pierre Joseph Proudhon (1809-1865), Mikhail A. Bakunin (1814 - 1876) e P. A. Kropoktin (1842-1921).
A literatura moderna
Como dito no item anterior, essas mudanças não se restringiram ao âmbito
das artes plásticas. A literatura também sofreu grandes alterações, e muitas delas
foram devidas aos ideais estéticos veiculados pelas vanguardas. Assim, na lite-
ratura deu-se um processo muito semelhante ao que ocorreu em outras artes.
Pelo fato de o ideal estético modernista estar intimamente vinculado ao novo,
novas tendências sucediam umas às outras, incorporando novidades àquelas já
existentes. Por isso o grande número de “ismos” que vai rotular as práticas mo-
dernistas literárias desde o fim do século XIX: Simbolismo, Parnasianismo, Deca-
dentismo, Espiritonovismo, Experimentalismo etc.
Esse é o caráter que vai dominar a literatura durante toda a primeira metade
do século XX. O Modernismo literário tem como elemento-chave a necessidade
de romper com os padrões da arte tradicional para estabelecer valores artísticos
condizentes com a realidade do mundo moderno. A poesia, por exemplo, deixa
de se regrar pela regularidade do metro, adotando o verso livre, o ritmo descon-
Por volta dos anos 1930, a literatura começou a ser atraída para uma temática
dedicada às causas sociais. Isso foi devido à crise econômica gerada pela queda
da Bolsa de Nova York, em 1929. A chamada Grande Depressão atingiu não só
os Estados Unidos, tendo repercussões em praticamente todos os países capi-
talistas, provocando desemprego em massa e miséria generalizada. Essa crise
trouxe à tona as fragilidades do capitalismo e levou alguns grupos de intelec-
tuais a considerarem o comunismo como o modelo de sociedade ideal, à prova
de qualquer crise. Diante dessa problemática, vários autores passaram a discutir
em suas obras a questão da luta de classes, enfocando os danos causados pela
exploração capitalista.
orientar a vida dos cidadãos. Assim, arte e literatura trazem para o seu âmbito a
cultura de massa, o consumismo, a luta das minorias pela observância de seus di-
reitos (movimento feminista, lutas antirracistas, movimento gay), a liberação sexual,
a contestação aos valores tradicionais da sociedade (casamento, estrutura familiar
convencional, métodos de educação etc.).
Tendo em vista, os rumos que a sociedade tomou desde os anos 1950, as pro-
postas dadaístas apareceram a muitos artistas como plenamente adequadas para
representar o contexto que se configurou. Após as duas guerras mundiais (1914-
1918 e 1939-1945) e diante dos conflitos que se estabeleceram logo após, conse-
quência principalmente da polarização ideológica que se deu com a Guerra Fria,
havia uma atmosfera de desencanto, em particular entre os jovens. Havia uma
descrença nas instituições – Estado, família, universidade –, já que elas não se mos-
travam capazes de criar situações de convívio harmônico entre as pessoas.
Essa atmosfera foi captada pelos artistas da época, cujas elaborações estéticas
tornaram-se expressão do desencanto, da impossibilidade de encontrar valores
fixos nos quais se apoiar. Surge daí uma arte marcada pelo niilismo, isto é, pela
descrença nos valores cultivados pela humanidade há séculos e, consequente-
mente, pela negação desses valores. Esses elementos já se faziam presentes no
movimento dadaísta, considerado o mais radical entre as vanguardas, pois suas
formulações iam ao ponto de negar os elementos intrínsecos à criação artística,
utilizando-se, por exemplo, da técnica do ready-made, isto é, de tomar objetos
prontos do mundo, trazendo-os para o ambiente do museu, tornando-os obras
de arte. Isso foi o que Marcel Duchamp (1887-1968) fez com a roda de bicicleta,
o mictório e outros objetos que elevou à condição de obras artísticas.
IEFF.
A arte pop
Este é um dos primeiros movimentos marcantes em se tratando de produ-
ções estéticas ditas pós-modernas. A arte pop trabalha particularmente com os
ícones da cultura de massa, como imagens de celebridades, heróis das histórias
em quadrinhos, produtos para consumo cotidiano – embalagens de alimentos,
de produtos de higiene e limpeza etc. Um dos nomes mais conhecidos desse
tipo de produção é o artista norte-americano Andy Warhol (1928-1987), aquele
que sentenciou que “No futuro, todos serão famosos por 15 minutos”. Warhol
produzia pinturas a partir de imagens de ícones pop, como Marilyn Monroe e
os Beatles, e de produtos largamente comercializados nos Estados Unidos da
época, como a Coca-Cola e as famosas sopas Campbell’s.
Andy Warhol Foundation.
Nessa mesma linha está a arte conceitual, que praticamente leva ao desapa-
recimento do produto artístico: aos seguidores dessa vertente basta a idealiza-
ção mental do objeto, podendo ser apenas um esboço ou uma frase, pois esse
mínimo já conteria toda a concepção de arte necessária à expressão do artista e
à apreciação do público.
As propostas artísticas não param por aí, pois os anos 1980 e 90 só fizeram
mostrar que essa proliferação de tendências é realmente um elemento-chave
da arte moderna, que ainda continua dando frutos no chamado Pós-moderno. A
partir de então, outros recursos do mundo atual passaram a ser incorporados às
artes, como o vídeo e a arte gráfica ligados à tecnologia dos computadores.
A literatura, por sua vez, também foi afetada por esses conceitos de desidealiza-
ção da arte, negação dos princípios artísticos, desmaterialização do objeto. Forma
e conteúdo começaram a ser amplamente questionados a partir dos anos 1960,
com sugestões radicais de fazerem desaparecer elementos tradicionalmente con-
siderados fundamentais à produção literária como enredo, personagens, espaço,
tempo, ou com a retomada irônica de gêneros tradicionais (o romance histórico)
ou de apelo popular (obras de ficção científica, romances policiais).
O que pode ser constatado é que, desde a Semana de Arte Moderna (1922), o
conjunto da produção brasileira se enriqueceu de modo significativo, não só na
literatura como também na música, na pintura e no cinema.
Ainda nos anos 1960, um outro movimento que também marcou profunda-
mente a nossa produção cultural foi o Tropicalismo. Ele surgiu na esteira de um
outro, este das artes plásticas, intitulado Tropicália, expressão criada a partir da
instalação2 intitulada Tropicália (1967, um jardim com pássaros vivos entre plan-
tas, lado a lado com poemas-objetos), desenvolvida pelo artista Hélio Oiticica. A
Tropicália trazia por fundamento conjugar as inovações artísticas vindas de fora
com a cultura nacional, assim como pregava a Antropofagia.
2
Instalação: obra de arte constituída por uma construção ou pelo empilhamento de materiais. Pode ser permanente ou temporária e o espectador
pode participar, alterando a disposição dos seus elementos. A instalação também pode ter dimensões suficientes para que o espectador circule
em seu interior.
Textos complementares
A seguir você lerá um texto extraído de O Que é Pós-Moderno, de Jair Ferreira
dos Santos, que mostra a passagem das tendências de arte modernistas para as
pós-modernistas.
O alegre desbundar
(SANTOS, 2006, p. 36-39)
Em meados dos anos 1950, a revolta modernista tinha esgotado seu im-
pulso criador. A sociedade industrial incorporara no design, na moda, nas
artes gráficas não só a estética como o culto do novo pregado pelas van-
guardas. Revistas e luminárias usavam a assimetria, desenhos abstratos de-
coravam papéis de parede. A interpretação individual, o hermetismo, os es-
cândalos soavam ocos ante a sociedade de massa.
tico, latão, areia, cinza, papelão, fluorescente, banha, mel, cães e lebres, vivos
ou mortos (desdefinição).
Isto só foi possível por duas razões. Primeiro porque o cotidiano se acha
estetizado pelo design e [...] os objetos em série são signos digitalizados e
estilizados para a escolha do consumidor. Depois, porque nosso ambiente é
todo ele constituído pelos mass media. Vivemos imersos num rio de signos
estetizados. O artista pop pode diluir a arte na vida porque a vida já está sa-
turada de signos estéticos massificados. A antiarte trabalha sobre a arte dos
ilustradores de revistas, publicitários e designers, e acaba sendo uma ponte
entre a arte culta e a arte de massa; pela singularização do banal (quando
Andy Warhol empilha caixas de sabão dentro de uma galeria e diz que é es-
cultura) ou pela banalização do singular (quando Roy Litchtenstein repinta
em amarelo e vermelho, cores de massa, a Mulher com o Chapéu Florido, de
Picasso). Elite e massa se fundem na antiarte.
Alegria, alegria
(VELOSO, 2008)
Estudos literários
1. São verdadeiras (V) ou falsas (F) as afirmações abaixo?
Dicas de estudo
ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago. Disponível em: <http://
www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf>.
Vindo a público em 1928, este manifesto contém ideias fundamentais
para a produção artístico-cultural brasileira daquela data para cá.
Conceitos de Pós-modernismo
Antes de falar sobre Pós-modernismo, é preciso fazer uma distinção
entre certos termos (pós-modernidade, pós-moderno e Pós-modernismo)
que sempre se confundem quando se trata do assunto.
Sobre o primeiro, ainda há bastante discussão entre os estudiosos, pois
muitos deles acreditam que os aspectos relativos à modernidade – capita-
lismo, industrialização, vida urbana, governos democráticos – não foram
significativamente alterados, não havendo justificativa para algo chama-
do pós-modernidade.
Já o segundo diz respeito à atmosfera cultural que surgiu por volta de
1950 (esta data não é um consenso entre todos os teóricos) e teria trazi-
do profundas mudanças ao comportamento das pessoas. Jair Ferreira dos
Santos resume os elementos dessa atmosfera que define o pós-moderno:
Para começar, [o pós-moderno] invadiu o cotidiano com a tecnologia eletrônica de
massa e individual, visando à sua saturação com informações, diversões e serviços.
Na Era da Informática, que é o tratamento computadorizado do conhecimento e da
informação, lidamos mais com signos do que com coisas. O motor a explosão deto-
nou a revolução moderna há um século; o chip, microprocessador com o tamanho
de um confete, está causando o rebu pós-moderno, com a tecnologia programando
cada vez mais o dia a dia.
Na economia, ele passeia pela ávida sociedade de consumo, agora na fase do con-
sumo personalizado, que tenta a sedução do indivíduo isolado até arrebanhá-lo
para sua moral hedonista – os valores calcados no prazer de usar bens e serviços.
A fábrica, suja, feia, foi o templo moderno; o shopping, feérico em luzes e cores, é o
altar pós-moderno.
Mas foi na arte que o fantasma pós-moderno, ainda nos anos 1950, começou a cor-
rer mundo. Da arquitetura ele pulou para a pintura e a escultura, daí para o romance
e o resto, sempre satírico, pasticheiro e sem esperança. Os modernistas (vejam Pi-
casso) complicaram a arte por levá-la demasiado a sério. Os pós-modernistas que-
rem rir levianamente de tudo.
Enfim, o Pós-modernismo ameaça encarnar hoje estilos de vida e de filosofia nos
quais viceja uma ideia tida como arquissinistra: o niilismo, o nada, o vazio, a ausên-
cia de valores e de sentido para a vida. Mortos Deus e os grandes ideais do passado,
o homem moderno valorizou a Arte, a História, o Desenvolvimento, a Consciência
Social para se salvar. Dando adeus a essas ilusões, o homem pós-moderno já sabe
que não existe Céu nem sentido para a História, e assim se entrega ao presente e ao
prazer, ao consumo e ao individualismo. (SANTOS, 2006, p. 9-11)
lece uma ligação com o Modernismo e, nesse sentido, com tudo o que ele signifi-
cou como movimento estético. Seria, então, o Pós-modernismo, uma nova etapa
do Modernismo? Seria ele um movimento de oposição às práticas modernistas e
por isso algo totalmente novo? É esta pergunta que tentaremos responder neste
capítulo, já que o termo tem tudo a ver com a literatura contemporânea.
Características do Pós-modernismo
Para entender quais são as características que percorrem as produções es-
téticas pós-modernistas, não há como não considerá-las a partir do Modernis-
mo, pois elas dão continuidade a aspectos desta tendência e, em alguns casos,
apenas radicalizam certos procedimentos adotados pelos modernistas. Toman-
do por base o esquema apresentado por Jair Ferreira dos Santos, discutiremos as
semelhanças e diferenças entre os dois movimentos.
Modernismo Pós-Modernismo
Cultura elevada Cotidiano banalizado
Arte Antiarte
Estetização Desestetização
Interpretação Apresentação
Obra/originalidade Processo/pastiche
Forma/abstração Conteúdo/figuração
Hermetismo Fácil compreensão
Conhecimento superior Jogo com a arte
Oposição ao público Participação do público
Crítica cultural Comentário cômico
Afirmação da arte Desvalorização obra/autor
Arte e antiarte
Da confusão entre arte e atividades banais decorre a ideia de arte e antiarte.
Apesar de toda a subversão realizada no Modernismo, o objeto artístico conti-
nuou sendo elaborado, pelo menos do ponto de vista material, a partir de ele-
mentos próprios a cada arte – tintas para a pintura; mármore, gesso, madeira,
bronze etc. para a escultura; imagens tomadas de certo ângulo pela câmera para
a fotografia e o cinema; sons extraídos dos instrumentos musicais para a música;
palavras para a literatura. No Pós-modernismo, há uma subversão do ponto de
vista do próprio uso dos materiais.
Vik Muniz.
Por exemplo, uma pintura pode ser feita com calda de chocolate ou cabelo
(como os quadros do artista paulistano Vik Muniz), uma escultura pode ser feita
de CDs usados, a câmera passou a ser usada das formas mais inesperadas – tanto
para a fotografia como para o cinema – e a literatura passou a usar técnicas que
misturam palavra e imagem. Alguns desses processos de subversão já eram, en-
tretanto, realizados no Modernismo, pois o Dadaísmo, com seus ready-mades,
abriu espaço para a ideia de antiarte.
Estetização e desestetização
A estetização e a desestetização se ligam à ideia de arte e antiarte, ou seja, no
Pós-modernismo não há uma busca pela valorização estética (não no sentido dos
movimentos artísticos anteriores) e o objeto criado perde o sentido estético que
guiou as artes por séculos, particularmente a sua relação com o belo e o sublime.
Outro fato do Modernismo é que o objeto criado era visto como uma forma
que interpretava o mundo (o painel Guernica, de Pablo Picasso, é uma obra que,
ao retratar os males da Guerra Civil Espanhola, torna-se uma interpretação de
todas as guerras). Já os pós-modernistas não demonstram qualquer preocupação
de interpretar a realidade que os cerca. Eles querem apenas mostrar seus objetos
e deixar que o público os aprecie como lhes aprouver, que brinque com a arte.
Afirmação da arte
e desvalorização da obra e/ou do autor
Ainda para Santos, enquanto o Modernismo afirma a arte, o Pós-modernismo
desvaloriza a obra e o autor. Isso precisa ser explicado, pois pode levar a uma
leitura errônea. Por mais que o Modernismo tenha causado uma ruptura com
O Pós-modernismo na literatura
As características mencionadas no item anterior também servem para defi-
nir os rumos que a literatura tomou a partir dos anos 1950. Contudo, há certos
elementos que dizem respeito mais diretamente à construção literária. Vamos
estudá-los.
Barulho
Todo poema é feito de ar
apenas:
a mão do poeta
não rasga a madeira
não fere
o metal
a pedra
não tinge de azul
os dedos
quando escreve manhã
ou brisa
ou blusa
de mulher.
O poema
é sem matéria palpável
tudo
o que há nele
é barulho
quando rumoreja
ao sopro da leitura.
(GULLAR, 2008)
que revê a cultura medieval a partir de fatos ocorridos no interior de uma abadia
beneditina no ano de 1327. Hoje em dia, as livrarias estão lotadas de romances
nesse estilo, pois eles caíram no gosto popular, havendo muitos deles se tornado
best-sellers.
fragmentação;
desconstrucionismo;
utilização de procedimentos metalinguísticos;
amplo uso da intertextualidade, da paródia e do pastiche;
mistura de gêneros, subgêneros e discursos;
mistura da cultura erudita com a popular e a cultura de massa;
revisão crítica da história;
privilégio para o ponto de vista das minorias.
Outro fato sobre a literatura contemporânea é que ainda não há nomes que se
destaquem, como aqueles que estamos acostumados a ouvir quando se trata de
tempos mais remotos – Gregório de Matos (1623-1696), José de Alencar (1829-
-1877), Machado de Assis (1839-1908), Álvares de Azevedo (1857-1913), Mário de
Andrade (1893-1945), Guimarães Rosa (1908-1967), entre tantos outros autores
consagrados da nossa literatura. O problema é mais uma vez a falta de distância
temporal: é preciso algum tempo para que a obra de um autor se firme como
trabalho que supera a sua época e é capaz de despertar o interesse, mesmo pas-
sados séculos de sua produção.
Texto complementar
A seguir, você lerá um trecho do conto “ Corações solitários”, de Rubem Fon-
seca, extraído do livro Feliz Ano Novo (1975). Nele, você poderá observar algumas
das características que marcam a literatura pós-moderna, como o pastiche e a
mistura de discursos, além de elementos da cultura de massa e da sociedade de
consumo.
Corações solitários
(FONSECA, 1999, p. 25-30)
Crime assim nem em Roma, Paris, Nova York, dizia o editor do jornal, es-
tamos numa fase ruim. Mas daqui a pouco isso vira. A coisa é cíclica, quando
a gente menos espera estoura um daqueles escândalos que dá matéria para
um ano. Está tudo podre, no ponto, é só esperar.
Mulher não é uma dessas publicações coloridas para burguesas que fazem
regime. É feita para a mulher da classe C, que come arroz com feijão e se ficar
gorda azar o dela. Dá uma olhada.
Você acha que poderia fazer a seção “De Mulher para Mulher”, o nosso
consultório sentimental? O cara que fazia se despediu.
“De Mulher para Mulher” era assinado por uma tal Elisa Gabriela. Querida
Elisa Gabriela, meu marido chega toda noite embriagado e...
Pensei um pouco.
Nathanael Lessa.
É isso mesmo que eu não quero. Aqui elas se sentem donas do seu nariz,
confiam na gente, como se fôssemos todas comadres. Estou há 25 anos nesse
negócio. Não me venha com teorias não comprovadas. Mulher está revolu-
cionando a imprensa brasileira, é um jornal diferente que não dá notícias
velhas da televisão de ontem.
Ele estava tão irritado que não perguntei ao que Mulher se propunha.
Cedo ou tarde ele me diria. Eu apenas queria o emprego.
Raios! Está bem, está bem, rosnou Peçanha entre dentes, você começa
hoje.
Minha mesa ficava perto da mesa de Sandra Marina, que assinava o ho-
róscopo. Sandra era também conhecida como Marlene Kátia, ao fazer entre-
vistas. Era um rapaz pálido, de longos e ralos bigodes, também conhecido
como João Albergaria Duval. Saíra há pouco tempo da escola de comunica-
ção e vivia se lamentando, por que não estudei odontologia, por quê?
Perguntei a ele se alguém trazia as cartas dos leitores na minha mesa. Ele
me disse para falar com Jacqueline, na expedição. Jacqueline era um crioulo
grande de dentes muito brancos.
Pega mal eu ser o único aqui dentro que não tem nome de mulher, vão
pensar que eu sou bicha. As cartas? Não tem carta nenhuma. Você acha que
mulher da Classe C escreve cartas? A Elisa inventava todas.
Prezado Dr. Nathanael Lessa. Eu arranjei uma bolsa de estudos para minha
filha de dez anos, numa escola grã-fina da zona sul. Todas as coleguinhas
dela vão ao cabeleireiro, pelo menos uma vez por semana. Nós não temos
dinheiro para isso, meu marido é motorista de ônibus da linha Jacaré-Caju,
mas disse que vai trabalhar extraordinário para mandar Tânia Sandra, a nossa
filhinha, ao cabeleireiro. O senhor não acha que os filhos merecem todos os
sacrifícios? Mãe Dedicada. Vila Kennedy.
assim. Eu costumava sofrer muito mas agora estou resignada. Deus está de
olho neles e no juízo final eles vão pagar. Doméstica Resignada. Penha.
Resposta: Deus não está de olho em ninguém. Quem tem que se defen-
der é você mesma. Sugiro que você grite, ponha a boca no mundo, faça es-
cândalo. Você não tem nenhum parente na polícia? Bandido também serve.
Te vira, gordinha.
Prezado Dr. Nathanael Lessa. Tenho 25 anos, sou datilógrafa e virgem. En-
contrei esse rapaz que disse que me ama muito. Ele trabalha no Ministério
dos Transportes e disse que quer casar comigo, mas que primeiro quer expe-
rimentar. O que achas? Virgem Louca, Parada de Lucas.
Resposta: Olha aqui, Virgem Louca, pergunta pro cara o que ele vai fazer
se não gostar da experiência. Se ele disser que te chuta, dá pra ele, pois é um
homem sincero. Tu não és groselha nem ensopadinho de jiló para ser provada,
mas homens sinceros existem poucos, vale a pena tentar. Fé e pé na tábua.
Fui almoçar.
O quê?, perguntei.
Ah! Meus Deus! A ideia que as pessoas fazem da classe C, exclamou Pe-
çanha, balançando a cabeça pensativamente, enquanto olhava para o teto
e fazia a boca de assobio. Quem gosta de ser tratada a palavrões e pontapés
são as mulheres da classe A. Lembre-se daquele lorde inglês que disse que o
seu sucesso com as mulheres era porque ele tratava as ladies como putas e
as putas como ladies.
Não me venha com dialéticas. Não quero que as trate como putas. Esque-
ce o lorde inglês. Ponha alegria, esperança, tranquilidade e segurança nas
cartas, é isso que eu quero.
Dr. Nathanael Lessa. Meu marido morreu e me deixou uma pensão muito
pequena, mas o que me preocupa é estar só, aos 55 anos de idade. Pobre,
feia, velha e morando longe, tenho medo do que me espera. Solitária de
Santa Cruz.
Resposta: Grave isto em seu coração, Solitária de Santa Cruz: nem di-
nheiro, nem beleza, nem mocidade, nem um bom endereço dão felicidade.
Quantos jovens ricos e belos se matam ou se perdem nos horrores do vício?
A felicidade está dentro de nós, em nossos corações. Se formos justos e bons,
encontraremos a felicidade. Seja boa, seja justa, ame o próximo como a si
mesma, sorria para o tesoureiro do INPS, quando for receber a sua pensão.
Escolhi Clarice Simone, eram outras duas homenagens, mas não disse
isso ao Peçanha.
Meu nome é Mônica Tutsi ele disse, mas pode me chamar de Agnaldo.
Estás com a papa pronta?
Papa era a novela. Expliquei para ele que acabara de receber a incumbên-
cia de Peçanha e que precisava pelo menos dois dias para escrever.
Dias? Ha, ha, gargalhou ele fazendo o som de um cachorro grande, rouco
e domesticado, latindo pro dono.
Esse fotógrafo idiota pensava de mim o quê? Só porque eu tinha sido re-
pórter de polícia isso não significava que eu era um bestalhão. Se Norma Vir-
gínia, ou lá qual fosse o nome dele, escrevia uma novela em quinze minutos,
eu também escreveria. Afinal li todos os trágicos gregos, os ibsens, os o’neals,
e beckets, os checovs, os shakepeares, as four hundred best television plays1. Era
só chupar uma ideia aqui, outra ali, e pronto.
1
As four hundred best television plays: “as quatrocentas melhores telepeças”. (N.E.)
Estudos literários
1. A paródia e o pastiche são formas de intertextualidade
a) cujo objetivo principal é mostrar que os textos a que se referem não são
obras de arte.
b) cujo objetivo principal é mostrar que outros textos não merecem credi-
bilidade.
Dicas de estudo
SANTOS, Jair Ferreira dos. O Que É Pós-moderno. São Paulo: Brasiliense,
1997.
inesperadas. A rima também passou a ser usada de modo inovador, não estando
mais submetida a esquemas regulares, como na poesia tradicional.
A poesia brasileira
a partir de João Cabral de Melo Neto
Com João Cabral, a elaboração poética revelou uma nova faceta. A poesia
lírica, que sempre esteve ligada à expressão dos sentimentos de um eu, tornou-se
construção objetiva. Os poemas do autor pernambucano são geometricamente
planejados e destituídos de todo caráter sentimental. Segundo Alfredo Bosi,
[...] o poeta recifense estreou com a preocupação de desbastar suas imagens de toda ganga
de resíduos sentimentais ou pitorescos, ficando-lhes nas mãos, apenas a nua intuição das
formas (de onde o geometrismo de alguns poemas seus) e a sensação aguda dos objetos que
delimitam o espaço do homem moderno. (BOSI, 1970, p. 522)
Para mim, a poesia é uma construção, como uma casa. Isso eu aprendi com Le Corbusier1.
A poesia é uma composição. Quando digo composição, quero dizer uma coisa construída,
planejada – de fora para dentro. Ninguém imagina que Picasso fez os quadros que fez
porque estava inspirado. O problema dele era pegar a tela, estudar os espaços, os volumes.
Eu só entendo o poético neste sentido. Vou fazer uma poesia de tal extensão, com tais e tais
elementos, coisas que eu vou colocando como se fossem tijolos. É por isso que eu posso gastar
anos fazendo um poema: porque existe planejamento. (MELO NETO, 1996, p. 21)
1
O francês de origem suíça Charles-Edouard Jeanneret-Gris, mais conhecido pelo pseudônimo de Le Corbusier (1887-1965), foi um dos mais
influentes arquitetos e urbanistas do século XX. Suas teorias se voltavam para a funcionalidade do objeto e sua obra influenciou a arquitetura de
Brasília.
Há apenas uma coisa que diferencia os dois atos: a pedra. Misturada ao feijão, ela
é algo extremamente desagradável, podendo causar acidentes indesejáveis, como
a quebra de um dente. Já na escrita, a pedra tem um significado especial: ela é de-
sejável, pois “obstrui a leitura fluviante, flutual”, a leitura monótona, sem surpresas,
levando o leitor a parar para refletir, a buscar os sentidos ocultos das palavras.
Essa preocupação com a arquitetura do poema não afastou o autor das con-
vicções ideológicas: sua poética também está voltada para os problemas sociais
que afligiam e ainda afligem o povo nordestino. No entanto, ao abordar as ques-
tões locais, seus poemas se projetam para o plano universal, tratando de temas
como vida e morte. A obra mais significativa dentro dessa temática é Morte e
Vida Severina: auto de Natal pernambucano, em que o autor retoma um gênero
medieval – o auto – para adaptá-lo às tragédias que marcam o viver no Nordeste.
No ano de 1965, ela foi encenada no Teatro da Universidade Católica (Tuca), em
São Paulo, com música de Chico Buarque, tendo se tornado um marco para a
representação teatral da época, já que, no ano seguinte, obteve o primeiro lugar
no Festival Internacional Mundial de Teatro Universitário de Nancy, na França.
Sem dúvida, João Cabral foi um dos escritores mais influentes da literatura
brasileira na segunda metade do século XX. Seu estilo foi fonte de inspiração
para muitos dos poetas que surgiram na cena literária a partir dos anos 1950.
Particularmente, sua concepção de poesia foi fundamental para um movimento
poético que, bastante expressivo no quadro nacional, foi lançado em 1956: a
poesia concreta ou concretismo.
Lição de Coisas é, portanto, um livro em que o poeta, diante dos fatos que
presencia, não vê sentido em continuar a reflexão metafísica. Ao considerar a
dispersão em que o mundo se encontra, com um ser humano que se entrega
cada vez mais aos prazeres consumistas e às imagens celebradas pela cultura
de massa, as “coisas” põem “em evidência a condição de absurdo feroz em que
mais uma vez está submergido o vasto mundo” (BOSI, 1970, p. 496). Para ilustrar,
vejamos um poema dessa obra:
Amar-amaro
porque amou por que almou
se sabia
proibido passear sentimentos
ternos ou sopаrә dsә sә p
nesse museu do pardo indiferente
me diga: mas por que
amar sofrer talvez como se morre
de varíola voluntária vágula ev
idente?
ah PORQUEAMOU
e se queimou
todo por dentro por fora nos cantos nos ecos
lúgubres de você mesm(o,a)
irm(ã,o) retrato espetáculo por que amou?
se era para
ou era por
como se entretanto todavia
toda via mas toda vida
é indignação do achado e aguda espostejação
da carne do conhecimento, ora veja
permita cavalheir(o,a)
amig(o,a) me releve
este malestar
cantarino escarninho piedoso
este querer consolar sem muita convicção
o que é inconsolável de ofício
a morte é esconsolável consolatrix consoadíssima
a vida também
tudo também
mas o amor car(o,a) colega este não consola nunca de núncaras.
Adélia Prado
Em Bagagem (1976), primeira obra desta escritora mineira, percebe-se claramen-
te a influência de Carlos Drummond, como atestam os primeiros versos do primeiro
poema desse livro “Quando nasci, um anjo esbelto,/ desses que tocam trombeta,
anunciou:/ vai carregar bandeira.”, inspirados no “Poema de sete faces” – texto de
Drummond cujos primeiro versos são “Quando nasci, um anjo torto/ desses que
vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida”. Na verdade, foi Drummond
quem sugeriu aos editores da Imago, que publicassem a obra de Adélia Prado.
A poesia de Adélia traz como principais temas a condição feminina, a família,
a vida na pequena cidade, o amor e o desejo, a vida e a morte, e, particularmen-
te, a relação Deus-ser humano/ser humano-Deus. Seus poemas partem de situ-
ações simples do cotidiano para tentar resgatar a comunhão com a divindade. É
o que se dá no poema abaixo:
Exausto
Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.
(PRADO, 2008)
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Literatura Brasileira III
Além de livros de poesia, a autora também escreve nos gêneros conto, crôni-
ca e romance.
Mario Quintana
Tendo vivido entre 1906 e 1994, este escritor sul-rio-grandense é dos mais
populares da literatura contemporânea. Sua poesia gira em torno de pequenos
fatos da vida, de onde o poeta, por meio de imagens delicadas, extrai profundas
reflexões sobre a existência.
Carlos Nejar
Poeta, ensaísta, crítico e ficcionista. Membro da Academia Brasileira de Letras,
Carlos Nejar é considerado um dos grandes nomes da criação poética contem-
porânea. Em seus poemas, ele se volta para as paisagens de sua terra natal, o Rio
Grande do Sul, fazendo, entretanto, uma poesia de cunho universal. Seu traba-
lho envereda por questões metafísicas, abordando especialmente os mistérios
que cercam a existência. Nesse percurso, o autor cria imagens complexas que
envolvem o homem, a natureza e a divindade.
Redondel
O coração se acrescenta
ao coração se acrescenta
a outro e senta sob a árvore
- tudo tão nuvem entre
um coração e outro -
redondos os sins, os vãos,
a noite na concha
do coração, o pampa
e os corações sentados
e um coração voando.
O poema lembra “Tecendo a manhã” (“Um galo sozinho não tece uma manhã:/
ele precisará sempre de outros galos”), de João Cabral de Melo Neto, pois, assim
como o texto do poeta pernambucano, procura mostrar a ligação cósmica entre
todos os seres. Ele traz a imagem do coração elaborada metaforicamente, e une-a
à natureza, no intuito de mostrar que nada é definitivo, tudo pode mudar.
Texto complementar
A seguir, você lerá um trecho de Auto do Frade, obra que aponta para uma
questão intensamente explorada na literatura contemporânea: o relativismo das
verdades. A diversificação do ponto de vista permite que a histórica morte de
Frei Caneca seja analisada de forma diferente da mostrada nos livros de história,
levando o leitor a refletir sobre o que a historiografia oficial apresenta.
OFICIAL
– Que se recomponha o cortejo
como ele vinha até então.
O MEIRINHO
– Vai ser executada a sentença de morte
natural na forca, proferida contra o réu
Joaquim do Amor Divino Rabelo, Caneca.
FREI CANECA
– Dentro desta cela móvel,
do curral de gente viva,
O MEIRINHO
– Vai ser executada a sentença de morte
natural na forca, proferida contra o réu
Joaquim do Amor Divino Rabelo, Caneca.
Estudos literários
1. Considerando as produções poéticas contemporâneas, é correto dizer que
Dica de estudo
O site Releituras (<www.releituras.com>) traz boas informações sobre
vários autores da atualidade, como biografia, poemas e trechos de ficção
representativos de suas produções.
O grande nome dessa tendência que unia poesia e pintura cubista foi
Guillaume Apollinaire (1880-1918). Uma de suas obras mais importantes,
Calligrammes (1918), é considerada precursora da poesia concreta, ideali-
zada no Brasil. A seguir, um exemplo de um dos caligramas de Apollinaire,
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Literatura Brasileira III
um poema em que o autor, por meio do desenho da torre Eiffel, procura trans-
mitir a força da França perante a Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial
(1914-1918): “Saudações mundo onde eu sou a língua eloquente que sua boca ó
Paris tira e tirará sempre aos alemães” (tradução nossa).
Guillaume Apollinaire.
Origens da poesia concreta
O movimento chamado de concretismo, ou poesia concreta, como preferem
seus idealizadores, surgiu nos anos 1950, a partir de uma série de reflexões sobre
as poesias publicadas nos jornais da época por Décio Pignatari (1927- ) e pelos
irmãos Haroldo (1929-2003) e Augusto de Campos (1931- ). Os três se uniram
em torno de um ideal comum e, no ano de 1952, lançaram a revista-livro Noi-
gandres, publicação que se tornou o veículo das ideias e das produções poéticas
do grupo, cuja meta era a construção de uma poesia mais objetiva, ou seja, uma
poesia que representasse o objeto e não algo concebido subjetivamente fora
dela. Nas palavras de Haroldo de Campos,
Dizemos que a poesia concreta visa como nenhuma outra à comunicação. Não nos referimos,
porém, à comunicação-signo, mas à comunicação de formas. A presentificação do objeto
verbal, direta, sem biombos de subjetivismos encantatórios ou de efeito cordial. Não há cartão
de visitas para o poema: há o poema. (CAMPOS, 1987, p. 56)
Na obra Teoria da Poesia Concreta (1965), publicação que reuniu uma seleção
de textos produzidos pelo grupo entre 1950 e 1960, destacam-se as seguintes
definições do movimento apresentadas por seus componentes:
uma arte geral da linguagem. propaganda, imprensa, rádio, televisão, cinema. uma arte
popular.
[...]
contra a poesia de expressão, subjetiva. por uma poesia de criação, objetiva. concreta,
substantiva. a ideia dos inventores, de ezra pound. (PIGNATARI, 1987, p. 47)
mento: cloaca1. Desse modo, ele faz uma crítica aos valores consumistas que,
veiculados pelo imperialismo norte-americano, conduzem o ser humano à de-
gradação, aproximando-o dos animais.
Como pode ser percebido, o concretismo tem uma profunda ligação com a
poesia visual, praticada por Apollinaire e por outros antes dele – e os idealiza-
dores do movimento não negam essas influências. Muito pelo contrário, eles
se consideram devedores de toda uma tradição que se empenhou em inovar
a poesia por meio de processos experimentais, como os realizados pelos movi-
mentos futurista e dadaísta, ou por uma gama de autores consagrados, como
vemos abaixo:
James Joyce (1882-1941), autor irlandês cujas obras de ficção são exem-
plos do experimentalismo linguístico na prosa.
Vê-se, pois, que a poesia concreta surgiu como resultado de todo um proces-
so de inovações poéticas que foram se configurando desde a segunda metade
do século XIX. Na verdade, o grupo Noigandres se mostra adepto da ideia de
evolução, o que não quer dizer que a poesia de um período seja melhor do que
1
Entre outras acepções semelhantes, cloaca significa “fossa, canal ou cano que recebe dejetos”, “latrina”, “tudo o que é imundo”.
a de outro: não é esse o sentido que o grupo atribui ao termo. Para esses três
poetas, novos contextos exigem forma e conteúdo que deem conta das trans-
formações que lhes são próprias. Portanto, a poesia concreta seria a elaboração
pertinente às novas diretrizes que o mundo moderno impõe às sociedades.
2
Figurativismo ou arte figurativa é a arte em que, em suas criações, o artista procura representar a realidade, construindo objetos que retratem a
realidade da forma mais próxima possível.
ção de texto que lembra a xilogravura (processo de gravação que utiliza dese-
nhos em relevo na madeira).
Continuidade e ruptura
no movimento da poesia concreta
A poesia concreta e a música popular brasileira
A poesia concreta explora o aspecto sonoro da linguagem, o que se tornou
um elemento bastante atraente para alguns compositores da música popular
brasileira. Esse uso dos esquemas sonoros desenvolvidos pelos concretistas
pode ser verificado em composições da Bossa Nova, conforme aponta Charles
Perrone no artigo “Poesia concreta e tropicalismo” (2008). Mas foi no movimento
tropicalista que as estruturas da poesia concreta tornaram-se mais evidentes,
chegando a ser completamente assimiladas em composições realizadas por Ca-
etano Veloso e Gilberto Gil.
batmacumbaiéié batmacumbaoba
batmacumbaiéié batmacumbao
batmacumbaiéié batmacumba
batmacumbaiéié batmacum
batmacumbaiéié batman
batmacumbaiéié bat
batmacumbaiéié ba
batmacumbaiéié
batmacumbaié
batmacumba
batmacum
batman
bat
ba
bat
batman
batmacum
batmacumba
batmacumbaié
batmacumbaiéié
batmacumbaiéié ba
batmacumbaiéié bat
batmacumbaiéié batman
batmacumbaiéié batmacum
batmacumbaiéié batmacumbao
batmacumbaiéié batmacumbaoba
O neoconcretismo
Se o movimento concretista encontrou continuadores na cultura popular,
também houve aqueles que começaram a considerar que os procedimentos dos
concretos são estreitos, pois levam a uma radicalização dos processos geométri-
cos e a um racionalismo exagerado. Assim, no ano de 1959, surgiu o Manifesto
Neoconcreto, assinado por representantes da literatura e das artes plásticas, como
Ferreira Gullar, Amílcar de Castro, Lygia Clark, Franz Weissmann, Lygia Pape, Rey-
naldo Jardim e Theon Spanudis. A nova proposta abrangia, entre outros pontos,
a abertura para novos tipos de experimentalismo e um abrandamento da objeti-
vidade, resgatando o expressionismo e o subjetivismo nas artes e na literatura.
Nos anos 1960, Gullar aderiu ao engajamento político, tendo sido preso, em
1968. Depois de solto, passou a viver na clandestinidade até ir para o exílio, de
1971 a 1977.
A seguir, um poema de sua fase engajada, escrito nos anos de exílio. Note-
-se que, nele, o poeta se afasta dos experimentalismos geométricos da poesia
(GULLAR, 2008)
Textos complementares
A seguir, você poderá observar outros poemas concretos: “Um movimento”
(Décio Pignatari, 1956), “Forma” (José Lino Grünewald, 1959), “Corpo a pouco”
(Ronaldo Azeredo, 1960), “Abre” (Augusto de Campos, 1960) e “Cor” (Wladimir
Dias Pino, 1962) Nesses poemas, poderão ser observadas as características apre-
sentadas: fragmentação, geometrização, quebra da linearidade do verso, justa-
posição de palavras, proximidade com as artes plásticas.
Um movimento
(PIGNATARI, 1987, p. 94)
um
movi
mento
compondo
além
da
nuvem
um
campo
de
combate
mira
gem
ira
de
um
horizonte
puro
num
mo
mento
vivo
Forma
(GRÜNEWALD, 1987, p. 129)
f o r m a
r e f o r m a
d i s f o r m a
t r a n s f o r m a
c o n f o r m a
i n f o r m a
f o r m a
Corpo a pouco
(AZEREDO, 2008)
corpo a pouco
pouco a corpo
corpo a pouco
pouco a corpo
Abre
(AUGUSTO DE CAMPOS, 2008)
Cor
(PINO, 2008)
cor
cor cor
cor cor cor
cor asa
asa
asa cor
asa cor cor
asa cor cor cor
cor asa
ave
ave ave
ave ave ave
ave voo
voo
voo ave
voo ave ave
voo ave ave ave
ave vae
vae
Estudos literários
1. O movimento artístico e literário que rompeu com o concretismo, buscando
um retorno à subjetividade e à expressividade, foi o
a) tropicalismo.
b) neoconcretismo.
c) imagismo.
d) vorticismo.
Dicas de estudo
Na internet, há bons sites que tratam da arte e poesia concretas. Dentre
eles, podemos citar
<www.poesiaconcreta.com.br>
<www.artbr.com.br/casa>
<www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_IC/index.cfm?fuse
action=termos_texto&cd_verbete=370>
O site oficial do poeta Ferreira Gullar traz boas informações sobre sua obra,
assim como vários de seus poemas, que podem ser lidos e ouvidos:
<http://portalliteral.terra.com.br/ferreira_gullar/>
O teatro no Modernismo
Assim como as artes plásticas e a literatura, a representação teatral
também passou por inovações no Modernismo. Tais inovações procura-
ram fazer com que o teatro também se tornasse expressão das novas re-
lações estabelecidas entre os seres humanos no mundo moderno. Diante
de uma realidade em que as máquinas cada vez mais predominavam e
da vida mais direcionada para o ambiente urbano, mais ágil e veloz, as
pessoas acabaram alterando suas formas de comportamento, encontran-
do maiores dificuldades para expressar seus sentimentos e comunicar-se
com o outro. Além disso, as agitações políticas do começo do século, com
a Revolução Russa (1917) e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), pro-
duziram grande efeito nos artistas da época, levando alguns deles a uma
abordagem mais ideologicamente engajada em suas produções.
Juntamente com esse teatro engajado, havia outro que se voltava para
os dramas de cunho pessoal, como as dificuldades no relacionamento fa-
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Literatura Brasileira III
A partir dos anos 1920, entretanto, Brecht se aproximou das ideias marxistas.
Juntamente com a dura experiência que vivenciou durante a Primeira Guerra
Mundial (1914-1918), quando foi estagiário no hospital de Augsburg, o marxis-
mo se tornou inspiração de suas criações, centradas nos temas da revolução e
da guerra.
Apesar do cunho didático de suas obras, Brecht pensava o teatro como forma
de diversão, não dispensando os artifícios que conduzissem ao prazer do espe-
táculo – como a música, por exemplo.
Entre suas peças mais importantes estão Aquele que Disse Sim, Aquele que
Disse Não (1929-1930), A Exceção e a Regra (1930), A Vida de Galileu (1938-39),
Mãe Coragem e Seus Filhos (1939), O Círculo de Giz Caucasiano (1945) e Pequeno
Organon (1948).
Eugene O’Neill
O dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill (1888-1953) tratou como
poucos dos dramas pessoais, principalmente os familiares, que se tornaram cons-
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O teatro brasileiro a partir dos anos 1950
Muito de sua inspiração veio da vida pessoal, pois, desde a infância, O’Neill
viveu uma relação familiar conturbada. Mas, apesar de todos os problemas que
enfrentou, tornou-se um dramaturgo reconhecido internacionalmente, tendo,
em 1936, recebido o Prêmio Nobel de Literatura.
Eugène Ionesco
A origem de Eugène Ionesco (1909-1994) é a Romênia e ele foi o criador do
teatro do absurdo, tendência que inovou a linguagem teatral ao fugir das con-
venções e da estrutura lógica do teatro tradicional, trazendo para os palcos peças
que introduziam situações inaceitáveis do ponto de vista realista. Na verdade,
essa tendência era marcada pela crítica social, já que, por meio da apresentação
de elementos ilógicos, revelava a hipocrisia das relações sociais e o irracionalis-
mo que permeava certas atitudes das pessoas em seu convívio cotidiano.
Algumas das peças mais conhecidas de Ionesco são A Cantora Careca (1950),
que deu início ao teatro do absurdo, Amedée (1954) e O Rinoceronte (1959).
Samuel Beckett
O dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906-1989) explorou o teatro do ab-
surdo em todas as suas possibilidades criativas para falar do niilismo (esvazia-
mento dos valores) que afeta o mundo moderno. E escreveu Esperando Godot
(1952), uma obra-prima da dramaturgia moderna. Como afirma a professora
Célia Berretini, essa é uma
peça de estrutura em espiral, circular, em que tudo se repete, indefinidamente, numa existência
vazia, num mundo sem sentido, absurdo. É a angústia metafísica que encontrou em Beckett
sua maior e melhor expressão” (BERRETINI, 2000, p. 6).
Desse modo se vê que, pelo menos nas décadas em que as ideias modernis-
tas se firmaram na literatura brasileira (1920 e1930), o teatro permaneceu como
forma de arte à margem das inovações. No que diz respeito à montagem das
peças, as representações no Brasil encenaram espetáculos que ou davam conti-
nuidade às fórmulas cristalizadas do teatro realista do século XIX ou eram pro-
duções estrangeiras.
Essa liberdade de criação, da qual fala Mário de Andrade, foi absorvida por
Oswald de Andrade no texto considerado como o mais criativo dessa primei-
ra geração modernista: a peça O Rei da Vela (1937). Todavia, toda peça, para al-
cançar a plenitude da criação, depende principalmente de sua montagem nos
palcos. Essa obra ficou relegada ao esquecimento até o ano de 1967, quando
pôde revelar a concepção vanguardista que a colocava muito à frente da menta-
lidade brasileira da época em que foi escrita.
A encenação foi realizada com grande sucesso pelo Grupo Oficina e dirigida
por José Celso Martinez Correia, que soube aproveitar os elementos de vanguar-
da e o conteúdo crítico que perpassa toda a peça. Assim, ele construiu uma re-
presentação ousada, guiada pelos preceitos antropofágicos de Oswald, já que
misturava elementos estéticos do teatro do absurdo com caracterizações típicas
da nossa cultura. Também colocava em foco problemas apontados pelo autor e
ainda presentes na sociedade brasileira dos anos 1960, como a dependência do
capital estrangeiro, os casamentos por interesse entre membros da velha aris-
tocracia agrária e da nova burguesia urbana, e a exploração capitalista sobre os
menos afortunados. Pelas condições da época, tudo isso acabava se transfor-
mando em uma crítica ao governo militar e suas imposições conservadoras.
Entretanto, uma tragédia na família foi marcante para os rumos que a escrita de
Nelson Rodrigues assumiu. Seu irmão Roberto foi vítima de assassinato na redação
do jornal do pai, atingido por um tiro disparado por uma mulher da alta sociedade
carioca inconformada com a notícia de seu desquite na primeira página.
Por causa dos temas polêmicos que abordou – traição conjugal, homos-
sexualismo, incesto, prostituição –, muitas de suas peças foram interditadas pela
censura. As que foram montadas entre os anos 1940 e 60 causavam reações –
ora de entusiasmo, ora de repúdio – por parte do público. Mas, como diz o crítico
Sábato Magaldi,
Ninguém, antes de Nelson, havia apreendido tão profundamente o caráter do país. E
desvendado, sem nenhum véu mistificador, a essência da própria natureza do homem. O
retrato sem retoques do indivíduo, ainda que assuste em pormenores, é o fascínio que assegura
a perenidade da dramaturgia rodrigueana. (MAGALDI, 1998, p. 23)
Tais temas, abordados pelo viés psicológico, são adaptados a uma estrutura
que retoma alguns dos elementos da tragédia clássica, como a presença do des-
tino, os prenúncios do trágico e o reconhecimento.
Dentre suas peças mais famosas, podemos citar A Mulher sem Pecado (1941),
Vestido de Noiva (1943), Álbum de Família (1946), Dorotéia (1949), A Falecida
(1953), Perdoa-me por me Traíres (1957), Os Sete Gatinhos (1958), Boca de Ouro
(1959), Beijo no Asfalto (1960), Toda Nudez será Castigada (1965).
Dias Gomes
As peças de Alfredo Dias Gomes (1922-1999) revelam um universo de de-
sigualdades no quadro social brasileiro no que diz respeito às condições eco-
nômicas, educacionais e socioculturais. Alguns de seus protagonistas, como o
Zé do Burro de O Pagador de Promessas (que é sua peça mais famosa e teve sua
primeira encenação em 1960), mostram como um ser humano inocente pode
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Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br
Literatura Brasileira III
ser levado à aniquilação por não conseguir se enquadrar no jogo malicioso das
instituições, sejam políticas ou religiosas.
Algumas outras peças de sua autoria são Zeca Diabo (1943), A Revolução dos
Beatos (1961), O Bem-amado (1962) e O Santo Inquérito (1966).
Gianfrancesco Guarnieri
Na produção teatral do autor e ator Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), so-
bressaem as questões de opressão social, particularmente os problemas enfren-
tados por aqueles que pertencem às classes mais baixas na luta pela sobrevivên-
cia. Guarnieri trouxe a público peças de cunho realista, pautadas nos princípios
da luta de classes, e nelas os menos abastados ganham voz para explicitar seus
dramas sociais.
Sua peça mais famosa é Eles Não Usam Black-tie (1958), que aborda as dificulda-
des vividas por uma família, moradora de uma favela, quando a indústria em que o
pai é operário enfrenta uma greve. A obra foi adaptada para o cinema em 1981.
Até o final dos anos 1960, o autor manteve estreita ligação com o Teatro de
Arena, para o qual produziu duas peças experimentais de cunho didático, baseadas
em técnicas brechtianas: Arena conta Zumbi (1965) e Arena conta Tiradentes (1967).
1
Realismo fantástico: tendência literária em voga principalmente a partir dos anos 1960 e que apresentava situações realistas entremeadas por
elementos de fantasia. Um dos grandes autores que cultivaram esse gênero é o colombiano Gabriel García Márquez (1927- ).
Plínio Marcos
Tendo se destacado pelos novos padrões que trouxe para o teatro brasileiro
a partir dos anos 1960, Plínio Marcos (1935-1999) escreveu obras marcadas pela
crueza da vida no submundo das cidades. Seus personagens são marginais em
todos os sentidos: ladrões, prostitutas, cafetões e cafetinas, menores abando-
nados, gente que os grupos dominantes fingem não existir, e que o autor co-
locou como figuras centrais de seus dramas. Não se trata, contudo, de redimir
esses seres ao apresentá-los como vítimas da estrutura social. Na verdade, Plínio
Marcos revela a complexidade que cerca a vida desses marginalizados, apresen-
tando a crueldade e a sordidez que dominam certas relações humanas.
No final da década de 1970, Plínio deu uma guinada nos temas abordados
por causa de contato com doutrinas esotéricas, nascendo peças menos duras,
como Madame Blavatsky (1985) e Balada de um Palhaço (1986).
Entre suas principais peças estão Dois Perdidos numa Noite Suja (1966), Nava-
lha na Carne (1967), Abajur Lilás (1975) e O Poeta da Vila e seus Amores (1977).
Ariano Suassuna
Ao recuperar, em suas peças, as raízes da cultura popular do Nordeste, Ariano
Suassuna (1927-) abriu uma nova vertente para a produção teatral brasileira – a
valorização das tradições culturais do nosso povo.
Sua peça mais famosa é Auto da Compadecida (1955), adaptada para a televi-
são (1999) e depois transformada em filme (2000).
2
Na prosa picaresca, o protagonista é o pícaro, espécie de malandro.
Textos complementares
Os fragmentos a seguir mostram um pouco do que foram as produções do
teatro brasileiro a partir dos anos de 1950.
(Nair e Glorinha na sala de Madame Luba. Em cena, Pola Negri, garção típico
de mulheres. Na sua frenética volubilidade, ele não para. Desgrenha-se, es-
preguiça-se, boceja, estira as pernas, abre os braços)
POLA NEGRI Melhorou. Assim é que é bom: 16, 15, 14... (sem transição, para
Glorinha) Nervosa?
GLORINHA (Fora de si) Mais ou menos.
NAIR Uma pilha.
POLA NEGRI (Otimista) Mas passa.
NAIR Questão de hábito.
GLORINHA (Para Pola Negri) É que estamos com pressa. Você fica? Vou-me
embora, Nair!
NAIR (Autoritária) Sossega o periquito! Primeiro fala com Madame Luba!
GLORINHA Meu tio me mata!
O Pagador de Promessas
(GOMES, 2002, p. 41-44)
PADRE (Lança-lhe um olhar enérgico) Psiu! Cale a boca! (Seu interesse por Zé
do Burro cresce) Sete léguas com essa cruz nas costas. Deixe ver seu ombro.
(Zé do Burro despe um lado do paletó, abre a camisa e mostra o ombro. Sa-
cristão espicha-se todo para ver e não esconde a sua impressão)
SACRISTÃO Está em carne viva!
PADRE (Parece satisfeito com o exame) Promessa?
ZÉ (Balança afirmativamente a cabeça) Pra Santa Bárbara. Estava esperando
abrir a igreja...
SACRISTÃO Deve ter recebido dela uma graça muito grande! (Padre faz um
gesto nervoso para que o Sacristão se cale)
ZÉ Graças a Santa Bárbara, a morte não levou o meu melhor amigo.
PADRE (Padre parece meditar profundamente sobre a questão) Mesmo
assim, não lhe parece um tanto exagerada a promessa? E um tanto preten-
siosa também?
ZÉ Nada disso, seu Padre. Promessa é promessa. É como um negócio. Se a
gente oferece um preço, recebe a mercadoria, tem que pagar. Eu sei que tem
muito caloteiro por aí. Mas comigo, não. É toma lá, dá cá. Quando Nicolau
adoeceu, o senhor não calcula como eu fiquei.
PADRE Foi por causa desse... Nicolau, que você fez a promessa?
ZÉ Foi. Nicolau foi ferido, seu Padre, por uma árvore que caiu, num dia de
tempestade.
SACRISTÃO Santa Bárbara! A árvore caiu em cima dele?!
ZÉ Só um galho, que bateu de raspão na cabeça. Ele chegou em casa, es-
correndo sangue de meter medo! Eu e minha mulher tratamos dele, mas o
sangue não havia meio de estancar.
PADRE Uma hemorragia.
ZÉ Só estancou quando eu fui no curral, peguei um bocado de bosta de vaca
e taquei em cima do ferimento.
PADRE (Enojado) Mas meu filho, isso é atraso! Uma porcaria!
ZÉ Foi o que o doutor disse quando chegou. Mandou que tirasse aquela por-
caria de cima da ferida, que senão Nicolau ia morrer.
PADRE Sem dúvida.
ZÉ Eu tirei. Ele limpou bem a ferida e o sangue voltou que parecia uma ca-
choeira. E que de que o doutor fazia o sangue parar? Ensopava algodão e
mais algodão e nada. Era uma sangueira que não acaba mais. Lá pelas tantas,
o homenzinho virou pra mim e gritou: corre, homem de Deus, vai buscar
mais bosta de vaca, senão ele morre!
PADRE E... o sangue estancou?
ZÉ Na hora. Pois é um santo remédio. Seu vigário sabia? Não sendo de vaca,
de cavalo castrado também serve. Mas há quem prefira teia de aranha.
PADRE Adiante, adiante. Não estou interessado nessa medicina.
ZÉ Bem, o sangue estancou. Mas Nicolau começou a tremer de febre e no dia
seguinte aconteceu uma coisa que nunca tinha acontecido: eu saí de casa e
Nicolau ficou. Não pôde se levantar. Foi a primeira vez que isso aconteceu,
em seis anos: eu saí, fui fazer compras na cidade, entrei no Bar do Jacob pra
tomar uma cachacinha, passei na farmácia de seu Zequinha pra saber das
novidades – tudo isso sem Nicolau. Todo mundo reparou, porque quem qui-
sesse saber onde eu estava, era só procurar Nicolau. Se eu ia na missa, ele
ficava esperando na porta da igreja...
PADRE Na porta? Por que ele não entrava? Não é católico?
ZÉ Tendo uma alma tão boa, Nicolau não pode deixar de ser católico. Mas
não é por isso que ele não entra na igreja. É porque o vigário não deixa. (Com
grande tristeza) Nicolau teve o azar de nascer burro... de quatro patas.
Estudos literários
1. A peça O Rei da Vela
a) as lutas de classes.
b) a tradição popular.
c) dramas familiares.
d) o tema da guerra.
Dicas de estudo
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2005.
O conto contemporâneo
Considerando em primeiro lugar as origens do conto, o que se pode
afirmar é que essas origens são bastante antigas. Esse gênero veio da tra-
dição oral e esteve sempre vinculado ao prazer humano de contar e ouvir
histórias. Conforme descreve Nádia B. Gotlib em Teoria do Conto,
Embora o início do contar estória seja impossível de se localizar e permaneça como
hipótese que nos leva aos tempos remotíssimos, ainda não marcados pela tradição
escrita, há fases de evolução dos modos de se contarem estórias. Para alguns, os contos
egípcios – Os contos dos mágicos – são os mais antigos: devem ter aparecido por volta
de quatro mil anos antes de Cristo. Enumerar as fases da evolução do conto seria
percorrer a nossa própria história, a história de nossa cultura, detectando os momentos
da escrita que a representam. O da estória de Caim e Abel, da Bíblia, por exemplo. Ou os
textos literários do mundo clássico greco-latino: as várias estórias que existem na Ilíada
e na Odisseia, de Homero. E chegam os contos do Oriente: a Pantchatantra (séc. VI a.C.),
em sânscrito, ganha tradução árabe (séc. VII d.C.) e inglesa (séc. XVI d.C.); e as Mil e uma
noites circulam da Pérsia (séc. X) para o Egito (séc. XII) e para toda a Europa (séc. XVIII).
(GOTLIB, 2006, p. 6)
Para o autor, o conto clássico – aquele produzido, por exemplo, pelo poeta e
contista norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849) – tem caráter duplo, pois
conta duas histórias, sendo uma visível e a outra, secreta. Na sua visão,
O conto é um relato que encerra um relato secreto. Não se trata de um sentido oculto que
depende de interpretação: o enigma não é outra coisa senão uma história contada de um
modo enigmático. A estratégia do relato é posta a serviço dessa narrativa cifrada. (PIGLIA,
2004, p. 91)
Mas o que distingue o conto clássico do conto moderno é a tensão, que não
é resolvida no moderno.
O fato é que o conto é uma forma tensa, cuja informação é concentrada, isto
é, reduzida ao realmente necessário à compreensão da história narrada. Ao final,
essa tensão pode ser resolvida, como se um ciclo se fechasse. No caso do conto
moderno, como aponta Piglia, a tensão entre história visível e história secreta
não é resolvida, o que faz dele uma forma aberta.
sozinha com a ternura da senhora. Quem sabe a que escuridão de amor pode chegar o carinho.
A senhora passou um dia perturbada, dir-se-ia tomada pela saudade. Aliás era primavera, uma
bondade perigosa estava no ar.
Em outra casa uma menina de cinco anos de idade, vendo o retrato e ouvindo os comentários,
ficou espantada. Naquela casa de adultos, essa menina fora até agora o menor dos seres
humanos. E, se isso era fonte das melhores carícias, era também fonte deste primeiro medo
do amor tirano. A existência de Pequena Flor levou a menina a sentir – com uma vaguidão que
só anos e anos depois, por motivos bem diferentes, havia de se concretizar em pensamento –
levou-a a sentir, numa primeira sabedoria, que “a desgraça não tem limites”.
Em outra casa, na sagração da primavera, a moça noiva teve um êxtase de piedade:
– Mamãe, olhe o retratinho dela, coitadinha! olhe só como ela é tristinha!
– Mas – disse a mãe, dura e derrotada e orgulhosa – mas é tristeza de bicho, não é tristeza
humana.
– Oh! mamãe – disse a moça desanimada.
Foi em outra casa que um menino esperto teve uma ideia esperta:
– Mamãe, e seu eu botasse essa mulherzinha africana na cama de Paulinho enquanto ele está
dormindo? quando ele acordasse, que susto, hein! que berro, vendo ela sentada na cama! E a
gente então brincava tanto com ela! a gente fazia ela o brinquedo da gente, hein!
[...]
Em outra casa, junto a uma parede, deram-se ao trabalho alvoroçado de calcular com fita
métrica os quarenta e cinco centímetros de Pequena Flor. E foi aí mesmo que, em delícia, se
espantaram: ela era ainda menor que o mais agudo da imaginação inventaria. No coração
de cada membro da família nasceu, nostálgico, o desejo de ter para si aquela coisa miúda e
indomável, aquela coisa salva de ser comida, aquela fonte permanente de caridade. A alma
ávida da família queria devotar-se. E, mesmo, quem já não desejou possuir um ser humano só
para si? (LISPECTOR,1998, p. 70)
A crônica
A crônica é um gênero (ou um subgênero, como acreditam alguns teóricos)
que fica entre o jornalismo e a literatura, apesar de ter sido praticado de forma
bastante criativa por grandes autores da literatura brasileira, como Machado de
Assis (1839-1908), Mário de Andrade (1893-1945) e Carlos Drummond de Andra-
de (1902-1987).
Se fosse reportagem dessas revistas que ficam por aí batalhando pela exaltação do medíocre,
ainda não levaríamos a sério. Mas trata-se de mensário norte-americano, dos mais metidos a
besta. Nele é que está a reportagem sobre os costumes da higiene entre os povos, reportagem
que chega a surpreendentes (lá para eles, americanos) conclusões. Segundo o que juntaram
as estatísticas, entre os povos ditos civilizados, apenas os sul-americanos – e assim mesmo não
é em todos os países desta América – possuem um balanço de mais de 50% da população que
se dá ao hábito do banho diário.
Vejam vocês que bonitinho: o Brasil figura na coisa. A gente, isto é, metade da gente se dá ao
luxo do banho diário, num país onde as cidade principais sofrem de permanente falta d’água.
Não é lindo?
Você aí, toma banho todo dia? Sentiu bem! A senhora lá, também se dá ao ensaboado de 24
em 24 horas? Perfeito, madame. (PONTE PRETA, 2007, p. 37)
No caso dessa crônica, o autor ainda toma um assunto dos mais cotidianos
– o banho –, dele fazendo mote para satirizar aqueles que não o praticam e,
principalmente, para ironizar o fato de os americanos dedicarem seu tempo a
pesquisas inúteis.
Minicontos e micronarrativas
Esses dois gêneros dizem respeito praticamente ao mesmo tipo de cons-
trução literária. São narrativas bastante curtas e talvez o que as diferencie seja
de fato o tamanho – o miniconto pode ser um pouco mais longo do que a
micronarrativa.
A verdade é que esses dois gêneros estão bastante afinados com o mundo
contemporâneo. Com pressões cada vez maiores para que as pessoas exerçam
um grande número de atividades conectadas à produção, fica mais difícil se de-
dicar à leitura de textos longos, cujas contínuas interrupções, muitas vezes, com-
prometem a compreensão geral da obra.
tenha alguns minutos de relaxamento e possa iniciar a tarefa seguinte com novo
ânimo. E esses textos também podem ser facilmente lidos na tela do compu-
tador, sem causar maiores incômodos por causa da extensão. Por isso, muitos
deles são publicados em sites e em blogs na internet.
Alguns dos autores que se dedicam a esse tipo de gênero são Dalton Trevi-
san, Raduan Nassar, João Gilberto Noll, Marcelino Freire e Fernando Bonassi.
A partir do que foi dito, é possível fazer uma série de inferências. O casal vive
junto há anos e a relação se transformou em um mero ato de aturar um ao outro.
Ao olhar o marido, a mulher tem a impressão de que ele está morto e decide
checar. Quando, ao ser acordado, o homem geme as palavras ofensivas bruxa
e diaba, a mulher prontamente as reconhece como de uso rotineiro na relação
que eles mantêm, além do que mostra que o homem está bem vivo e, por isso,
suspira de alívio.
Textos complementares
Você vai ler, a seguir, algumas micronarrativas, podendo então observar como
essas histórias requerem uma participação ativa do leitor, que pode, inclusive,
imaginar novos rumos para elas.
Lá no caixão
(TREVISAN, 2008)
– Lá no caixão...
– Sim, paizinho.
– ...não deixe essa aí me beijar.
Despojos de guerra
(BONASSI, 2008)
O pai de Karin foi preso bem no dia 7 de maio de 1945. Ela tinha seis
meses. Os soviéticos queriam a forra de Leningrado sem vergonha e o man-
daram pra Sos’va. Ninguém soube o que ele fez, a ponto de envergar todas
as unhas pra sempre. No dia em que ele voltou, dez anos depois, com os últi-
mos prisioneiros que Adenauer foi buscar em Moscou, a mãe de Karin tinha
ido drenar os pântanos de perto de Oth-Marschen. Quando Karin viu aquele
homem parado na porta, foi logo oferecendo um prato de comida, pois era o
certo de fazer com estranhos na época. (Hamburgo – Alemanha – 1998)
Línguas
(NOLL, 2008)
Sua voz não parece mais legível. Ontem pediu um copo d’água à filha. Ela
lhe trouxe a foto de uma mulher meio esquiva. Tirada quando ele trabalhava
de garçom na Califórnia. Vieram-lhe fiapos de mexicana. Ainda conseguia se
lembrar da noite em que, entre o inglês, o espanhol e o português, as palavras
começaram a lhe faltar. A mexicana disse que o mesmo ocorria com um irmão.
Que eram tantas as palavras, de tão diferentes fontes e sabores, que concen-
travam em si tamanha quantidade de matizes e sentidos, que alguns como
eles dois já não conseguiam guardá-las. Que estes, ao chegarem numa idade,
só sabiam apresentar um arrazoado de sons impenetráveis à volúpia comum
do entendimento. “E assim é”, ela suspirou mirando os pés descalços.
Estudos literários
1. A forma conto está ligada à tradição oral de contar história, a qual
Dicas de estudo
LISPECTOR. Clarice. Laços de Família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
PONTE PRETA, Stanislaw. Tia Zulmira e Eu. Rio de Janeiro: Agir, 2007.
Engajamento social
na literatura contemporânea
Por toda a história literária, em algumas épocas, os autores produzi-
ram obras mais voltadas para a interioridade do eu, enquanto em outras
eles se voltaram mais para os problemas sociais. Nesse segundo caso, eles
apresentaram em suas criações tanto ideias críticas com relação às ques-
tões sociopolíticas de seu tempo como também, muitas vezes, mostraram
uma posição politicamente engajada, escrevendo a partir de convicções
guiadas por uma ideologia.
A partir dos anos 1960, novas preocupações sociais surgiram, como a vio-
lência urbana; as drogas; a deficiência das instituições governamentais, incapa-
zes de prover uma vida justa e digna para todos os cidadãos; a degradação de
homens, mulheres e crianças, relegados à marginalização por motivos econômi-
cos e por pressões morais (caso este de jovens levadas à prostituição) – além da
repressão política dos anos de ditadura militar (1964-1984). Esse contexto levou
muitos autores a produzirem uma literatura que não apresentava o engajamen-
to político de outros tempos (com base na luta ideológica entre esquerda e di-
reita), mas que revelava as mazelas de uma sociedade marcada por relações de
desigualdade econômica. Assim, esse tipo de literatura trazia à tona a existência
no submundo das cidades, por onde vagam pessoas reduzidas à miséria, meno-
res abandonados, drogados, prostitutas, marginais de todos os tipos.
Essas produções são marcadas pela crítica social – que vai desde as relações
promíscuas da alta sociedade e da própria classe governante com esse submun-
do, passando pela incapacidade dos governantes para promoverem formas de in-
clusão da leva de marginalizados sociais, e chegando à repressão política e moral
que se dá no nível das relações individuais, familiares e entre grupos sociais.
Rubem Fonseca
Quando se trata da violência urbana em todas as suas facetas, em uma com-
pleta falta de limites, a obra de Rubem Fonseca (1925) é uma referência. Sua
longa lista de contos, romances e novelas fixou uma tendência literária que pode
ser rotulada de realismo feroz, título de uma resenha de Walnice Nogueira Galvão
sobre a obra do autor. Suas personagens vagam por um mundo que parece ter
perdido todo o sentido ético, onde só a violência funciona como elemento nor-
teador de tantas existências vazias. Segundo a autora,
Esse conto tem como protagonista um homem sobre o qual são dadas infor-
mações mínimas. Não se sabe seu nome, sua idade, suas características físicas.
Ele é o narrador-personagem da história e, na seca descrição dos seus atos bár-
baros, o leitor consegue compor alguns dos seus traços psicológicos, dos quais
se destaca a violência desmedida.
to de valores monetários, mas com o que ele crê ser justiça social. Todos os ricos e
poderosos seriam culpados pela situação de marginalidade em que vive. Assim,
ele comete os atos mais brutais com requintes de crueldade, sem qualquer tipo
de remorso, como se administrasse a justiça que a sociedade lhe negou.
Para ele, essas atitudes são como a recompensa devida diante das carências
que enfrenta. Há um sentimento de prazer na execução de crimes e no uso de
diferentes tipos de arma. É como se ele cumprisse um dever de honra.
Esse “cobrador” não se sente abalado por sentimentos como medo ou culpa:
ele vive entre o ódio aos poderosos e a satisfação por destruí-los. Como ele diz,
Quando satisfaço meu ódio sou possuído por uma sensação de vitória, de euforia que me dá
vontade de dançar — dou pequenos uivos, grunhidos, sons inarticulados, mais próximos da
música do que da poesia, e meus pés deslizam pelo chão, meu corpo se move num ritmo feito
de gingas e saltos, como um selvagem, ou um macaco. (FONSECA, 1997, p. 23)
cursos que o autor soube trabalhar muito bem em suas obras, abrindo, para a litera-
tura brasileira contemporânea, uma tendência inovadora: a do realismo brutal. Essa
tendência encontrou seguidores como Patrícia Melo, que escreveu, entre outros, O
Matador (1995) e Inferno (2001) e Paulo Lins com Cidade de Deus (1997).
Dalton Trevisan
O paranaense Dalton Trevisan (1925- ) é outro autor que explora imagens do
submundo em suas obras. Partindo de situações cotidianas, ele enfoca o lado
sombrio que cerca a existência humana. Assim, em alguns casos há a marca da
brutalidade quando são revelados os instintos perversos e sub-humanos que
qualquer pessoa pode guardar em seu subconsciente.
No seu oitavo ano de reclusão, ele foi obrigado a frequentar o curso de alfa-
betização que, criado no presídio, seria ministrado por Gracinda, filha do sargen-
to da guarda. Assim, a existência solitária de Trajano sofre um abalo. Ele se torna
o aluno mais aplicado da turma e Gracinda não lhe fica indiferente. Contudo, o
que a moça de fato provoca é a explosão dos desejos reprimidos de Trajano,
algo que ele registra em um desenho obsceno no caderno que ela recolhe para
a correção das lições.
Por sua vez, ela guarda o desenho, mas não consegue voltar mais às aulas
no presídio. No entanto, tenta fazer-se ver pelo presidiário, aparecendo despida
diante da janela em uma noite de lua cheia. A partir de então, Trajano se entrega
a um processo de autoaniquilação, mas sem alcançar o que parecia ser seu maior
desejo – a morte.
Certo dia, ele consegue fugir da prisão portando uma faca rústica, que tinha
produzido a partir de uma colher. Vai à morada de Gracinda, que, estando diante
da casa, não grita. Ele a fere várias vezes com a arma, atingindo em seguida o
próprio peito. Os dois morrem enrolados um no outro.
João Antônio
Outro grande representante dessa tendência realista que elabora imagens
dos antros sociais onde vagam os marginalizados é João Antônio (1937-1996).
Em suas obras, o autor privilegiou personagens como malandros, prostitutas,
menores abandonados, jogadores de sinuca, mostrando como esses seres estão
relegados à condição de marginais pelas pressões, sejam econômicas ou morais,
que a sociedade exerce sobre eles, assim como pelo desprezo que as camadas
privilegiadas demonstram com relação a esses indivíduos.
Antes de mais nada, é importante salientar que essa obra de João Antônio
tem a cidade de São Paulo como espaço privilegiado. É principalmente nos bair-
ros periféricos que as tramas se desenvolvem. O título, inclusive, faz alusão a
outro importante livro de contos, este do Modernismo, que também privilegia
bairros paulistanos: Brás, Bixiga e Barra Funda (1928), de Antônio de Alcântara
Machado.
O segundo é ainda mais marcante: certo dia, a mãe o manda comprar leite
em um bar próximo. Entretanto, ele acaba indo a um bar mais distante,
um lugar degradado, de gente mal-encarada, onde fica retido por causa
de uma forte chuva. Ali, o garoto tem seu primeiro contato com o jogo de
sinuca e com Vitorino, o melhor jogador da área. Sem amigos no bairro,
o menino fica fascinado por Vitorino, que lhe ensina a jogar. A partir daí,
ele se torna um craque da sinuca, sendo capaz de vencer os adultos mais
hábeis. É ali que ele adquire o apelido de Meninão do Caixote, pois, como
a altura da mesa não lhe permitia fazer as tacadas, alguém lhe trouxe um
caixote de leite condensado, onde ele subia para jogar.
Texto complementar
Meninão do Caixote
(ANTÔNIO, 2006, p. 39-42)
nheiro na caçapa parecia vibrar também, como o taco, como o giz, como os
homens que ali vibravam. Picardia, safadeza, marmeladas também. O jogo
enganando torcidas para coleta das apostas.
– Ô meninão!
Para mim, Vitorino abria uma dimensão nova. As mesas. O verde das
mesas, onde passeava sempre, estava em todas, a dolorosa branca, bola que
cai e castiga, pois o castigo vem a cavalo.
Porque Vitorino era um bárbaro, o maior taco da Lapa e uma das maiores
bossas de São Paulo. Quando nos topamos Vitorino era um taco. Um cobra.
E para mim, menino que jogava sem medo, porque era um menino e não
tinha medo, o que tinha era muito jeito, Vitorino ensinava tudo, não escondia
nada.
Eu era baixinho como mamãe. Por isso, para as tacadas longas era pre-
ciso um calço. Pois havia. Era um caixote de leite condensado que Vitorino
arrumou. Alcançando altura para as tacadas, eu via a mesa de outro jeito, eu
ganhava uma visão! Porque não se mostrasse, meu jogo iludia, confundia,
desnorteava... E desenvolvia um jogo que enervava um santo. Jogo atirado,
incisivo, de quem emboca, emboca, mas o jogo não aparece no começo. Vai
aparecer no fim da partida, depois da bola três, quando não há mais jeito
para o adversário. As apostas contrárias iam por água abaixo.
Estudos literários
1. Quanto à linguagem na obra de Rubem Fonseca, pode-se dizer que ela é
a) basicamente descritiva.
b) de elaboração poética.
c) rebuscada e sentimental.
Dicas de estudo
Consulta ao livro O Conto Brasileiro Contemporâneo, de Alfredo Bosi, que
traz ótimas informações sobre autores e temas que percorrem o conto na
contemporaneidade.
a confusão que se faz entre a sua visão mais sensível sobre as coisas do mundo
e a fraqueza de caráter, que lhe impediria de assumir posições de liderança no
quadro social.
Assim, forjou-se a ideia de que para as mulheres o melhor caminho era viver
sob o jugo do homem e realizar as funções que garantissem a existência e o
prazer masculinos, ou seja, a geração dos filhos e o cuidado com o lar, ou o pro-
vimento do prazer sexual (no caso das prostitutas), lembrando que casamento e
sexo eram coisas separadas. Até bem pouco tempo, o casamento tradicional era
visto como ato social e religioso para a geração de filhos e formação da família –
algo distinto do prazer sexual, que estava fora da união matrimonial.
A partir do século XX, a participação das mulheres, não só nas artes mas em
todas as esferas de atuação humana, teve um aumento significativo, apesar de
ter demorado muito para que essa participação se tornasse efetiva nas ciências
e nos cargos administrativos.
Desse modo, praticamente até o século XX não se ouve falar de autoras bra-
sileiras no âmbito das artes, já que essa atividade era vedada às mulheres por
questões morais. Uma mulher que decidisse se dedicar à arte era vista como
imoral e tratada como marginal pela sociedade, caso este da compositora e pia-
nista Chiquinha Gonzaga (1847-1935).
Contudo, a partir do século XX, cada vez mais mulheres passaram a desafiar o
patriarcalismo repleto de atitudes machistas que persistiu no Brasil ainda duran-
te longo tempo. De fato, dele ainda há resquícios.
Por isso, merece destaque o papel que as artistas plásticas Anita Malfatti
(1889-1964) e Tarsila do Amaral (1886-1973) exerceram na definição dos rumos
do Modernismo brasileiro. Em uma sociedade ainda dominada pelo patriarcalis-
mo, em que a mulher estava sujeita a várias formas de discriminação, elas rom-
peram barreiras e contribuíram para a renovação da arte brasileira. O Modernis-
mo também ampliou os espaços para uma literatura de autoria feminina, que
começou a se firmar com Cecília Meireles (1901-1964), Clarice Lispector (1920-
-1977), Rachel de Queiroz (1910-2003), Lygia Fagundes Telles (1923- ), entre outras.
A partir dos anos 1960, a questão não era mais somente a existência de mu-
lheres autoras mas também o tratamento que elas davam à figura feminina, que,
durante séculos, foi representada nas artes basicamente por homens. Estabele-
ceu-se então uma crítica feminina, isto é, um viés dos estudos literários que pro-
cura confrontar as representações da mulher feitas por homens e as representa-
ções feitas por mulheres. Dessa forma, tenta-se derrubar mitos e preconceitos que
ainda cercam a condição feminina.
Clarice Lispector
Em suas obras, ao fazer uma exploração da subjetividade, Clarice Lispector
trouxe à luz as crises existenciais que perpassam os relacionamentos entre as
pessoas. A autora não foi exatamente uma escritora feminista no sentido de usar
a literatura para fazer a defesa explícita dos direitos da mulher. No entanto, no
tratamento que deu a suas personagens femininas, abordou os principais pro-
blemas que afetam a mulher, seja na sua relação com o homem, com a família
ou com a sociedade.
Por exemplo, no romance A Hora da Estrela (1977), ela dá novo vigor à proble-
mática regionalista, em foco nos anos 1930 e 40, trabalhando a imagem de uma
nordestina submetida a todas as formas de marginalização e preconceito.
Como se vê, Macabéa é uma criatura nada atraente: não é bonita, sedutora,
articulada, independente ou empreendedora. É apenas uma jovem alagoana sem
graça que de repente se vê sozinha na cidade do Rio de Janeiro, procurando meios
de sobrevivência. Todavia, é um ser humano que tem desejos e necessidades. Ela
quer ser amada, quer receber atenção, quer encontrar seu lugar no mundo.
Na sua obra, Lygia apresenta mulheres que tentam encontrar o seu lugar na
sociedade em transformação, mulheres que não podem e não querem simples-
mente se reduzir aos esquemas convencionais a elas impostos. Porém, essa ten-
tativa de se afirmar como seres humanos, que têm vontades e desejos próprios,
implica sofrimento por causa da opressão que os mecanismos sociais conserva-
dores exercem sobre elas.
Texto complementar
A seguir você lerá um trecho de A Hora da Estrela. Nesse trecho, Macabéa en-
contra-se com Olímpico, um nordestino como ela, também submetido à margi-
nalização na cidade grande e com quem ela tenta iniciar um namoro.
Não, menti, agora vi tudo: ele não era inocente coisa alguma, apesar de
ser uma vítima geral do mundo. Tinha, descobri agora, dentro de si a dura
semente do mal, gostava de se vingar, este era o seu grande prazer e o que
lhe dava força de vida. Mais vida do que ela que não tinha anjo da guarda.
Ele: – Pois é.
Ela: – Pois é o quê?
Ele: – Eu só disse pois é!
Ela: – Mas “pois é” o quê?
Ele: – Melhor mudar de conversa porque você não me entende.
Ela: – Entender o quê?
Ele: – Santa Virgem, Macabéa, vamos mudar de assunto e já!
Ela: – Falar então de quê?
Ele: – Por exemplo, de você.
Ela: – Eu?!
Ele: – Por que esse espanto? Você não é gente? Gente fala de gente.
Ela: – Desculpe mas não acho que sou muito gente.
Ele: – Mas todo mundo é gente, meu Deus!
Ela: – É que não me habituei.
Ele: – Não se habituou com quê?
Ela: – Ah, não sei explicar.
Ele: – E então?
Ela: – Então o quê?
Ele: – Olhe, eu vou embora porque você é impossível!
Ela: – É que só sei ser impossível, não sei mais nada. Que é que eu faço
para conseguir ser possível?
Ele: – Pare de falar porque você só diz besteira! Diga o que é do teu
agrado.
Ela: – Acho que não sei dizer.
Ele: – Não sabe o quê?
Ela: – Hein?
Ele: – Olhe, até estou suspirando de agonia. Vamos não falar em nada,
está bem?
Ela: – Sim, está bem, como você quiser.
Ele: – É, você não tem solução. Quanto a mim, de tanto me chamarem, eu
virei eu. No sertão da Paraíba não há quem não saiba quem é Olímpico. E um
dia o mundo todo vai saber de mim.
– É?
– Pois se eu estou dizendo! Você não acredita?
– Acredito sim, acredito, acredito, não quero lhe ofender.
Em pequena ela vira uma casa pintada de rosa e branco com um quintal
onde havia um poço com cacimba e tudo. Era bom olhar para dentro. Então
seu ideal se transformara nisso: em vir a ter um poço só para ela. Mas não
sabia como fazer e então perguntou a Olímpico:
– Você sabe se a gente pode comprar um buraco?
– Olhe, você não reparou até agora, não desconfiou que tudo que você
pergunta não tem resposta?
Ela ficou de cabeça inclinada para o ombro assim como uma pomba fica
triste.
As Meninas (fragmento)
(TELLES, 1974, p. 51-53 )
“Padrão afro. Tem mulher hino e mulher balada”, pensou Lorena tirando
o pijama. Sentou-se na borda da banheira e percorreu com as pontas dos
dedos a superfície da água. “Eu sou uma balada medieval.” E Ana Clara? E Lia?
Que gênero de música eram elas? A única forma de ajudá-las seria oferecer-
-lhes coisas que não tinham. Apresentar-lhes coisas que não conheciam. O
espanto de Lia quando chegou de sandálias franciscanas, a sacola de juta
dependurada no ombro, só mais tarde comprou a de couro na feira. “Genial,
entende. Genial”, repetiu examinando os objetos de toalete no banheiro.
Abriu o frasco de sais. Cheirou. E em meio do enlevo, bateu no piso a cinza
do cigarro. Disfarçadamente, enquanto esticava o piso felpudo, Lorena apa-
nhou o rolinho de cinza como se apanhasse uma borboleta. “Quer tomar um
banho? Essa banheira é tão repousante”, sugeriu quando ao se inclinar viu
de mais perto seu pés nas sandálias. “Posso?” — ela perguntou atirando a
ponta de cigarro no trono. Apertei a descarga e preparei-lhe um banho ca-
prichadíssimo. Ofereci-lhe água-de-colônia para uma frição no corpo, calça-
va sandálias mas fazia frio. O talco. O pente limpíssimo. Chá com biscoitos.
Como apoteose, poesia, leio bem poesia. Quando levantei a cabeça, ela co-
chilava na poltrona. Mais tarde descobri que não gosta nem de poesia nem
1
Oriehnid: forma como as meninas usam a palavra dinheiro, de trás para frente, que é para dar sorte.
todos sem importância. Lembro que certo dia chegou ao Pensionato Nossa
Senhora de Fátima uma vaga estudante e vago modelo cheia de malas e
dívidas mas não era Vossa Alteza, é lógico. Tinha a cuca tão embrulhada que
fiquei em pânico, se entra na minha intimidade vai criar problemas. Forçou
a entrada. Deus sabe que evitei mas agora é tarde no planeta. “Tarde no pla-
neta!” — dizia o paizinho trancando a porta que dava para a varanda. Abre
meus armários, empresta minhas coisas, usa minha esponja da zona norte
na zona sul e só não leva meus livros porque na realidade gosta mesmo de
romances supersonho. E das histórias da Luluzinha. Nega, imagine, sempre
que pode passeia com um Herman Hesse ou um Kafka debaixo do braço,
ambos da minha estante, diga-se de passagem. Mas só para constar. De
resto, instalou-se no meu banheiro e em mim. Obriguei-me a verdadeiras
práticas de caridade cristã para aceitá-la mas agora sinto falta dela quando
some. Ana, a Deprimente. Deprimida e deprimente.
Estudos literários
1. Que artistas tiveram papel de destaque no movimento modernista brasileiro?
2. Nas obras de Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles são exploradas ques-
tões femininas como
Dicas de estudo
Assistir ao filme A Hora da Estrela, de Suzana Amaral.
O romance contemporâneo
A partir dos anos 1950, alguns autores levaram o romance a um processo de
renovação que passou principalmente pelas concepções de arte pós-modernis-
tas e pelas ideias veiculadas pelo movimento de contracultura (quebra com os
valores estabelecidos pela tradição). Conforme aponta Jair Ferreira dos Santos,
Enquanto o Modernismo lutava pelo máximo de forma e originalidade, os pós-modernistas
querem a destruição da forma romance, como no nouveau roman [novo romance] francês,
ou então querem o pastiche, a paródia, o uso de formas gastas (romance histórico) e de
massa (romance policial, ficção científica), como na metaficção americana. Num e noutro caso,
entretanto, está fora de cogitação a representação realista da realidade, o ilusionismo. Na
literatura pós-moderna não é para se acreditar no que está sendo dito, não é um retrato da
realidade, mas um jogo com a própria literatura, suas formas a serem destruídas, sua história a
ser retomada de maneira irônica e alegre.
Há portanto uma desdefinição do romance. Existem meios para isso. O nouveau roman, que
começa nos anos 1950, destrói a forma romance banindo o enredo, o assunto e o personagem.
Nathalie Sarraute escreve romances sobre nada – apenas um buraco na porta, por exemplo.
Certo conto de Nove Novena, do brasileiro Osman Lins, reduz os personagens a sinais gráficos.
A fragmentação da narrativa é total, podendo-se misturar os narradores: em geral não sabemos
quem está falando. Raramente o personagem tem psicologia ou posição social. Pode mudar
de nome, cor ou idade, sem razões aparentes para isso. Os finais costumam ser múltiplos
(John Fowles, em A mulher do tenente Francês, propõe dois finais diferentes). E são comuns as
construções em abismo: uma história dentro de outra que está dentro de outra... sem fim.
Por sua vez, a metaficção americana, que produz ficção a partir de ficção, entrega-se a paródias
e a pastiches (imitações irônicas) de formas antigas [...]. Surgem ainda gêneros indefinidos que
misturam reportagem e ficção, com a atuação de pessoas reais [...]. (SANTOS, 2006, p. 39-40)
Por outro lado, uma tendência que começava a se tornar marcante era a do
romance intimista, ou seja, aquele que faz uma sondagem da interioridade do eu.
A partir dos anos 1950, a presença de certos elementos (influência cada vez
maior da cultura de massa e da sociedade de consumo, contato com os valores
da cultura norte-americana e da contracultura, repressão ditatorial após 1964) vai
levar o romance brasileiro a se encaminhar para uma série de novas tendências.
Ambas são obras que unem a prática jornalística de seus autores à construção
ficcional. Nesse sentido, tanto Callado como Gabeira retomam, em suas criações
literárias, os métodos tradicionais de narrativa, fugindo aos experimentalismos
formais aos quais outros autores aderiram.
Quarup cobre um período de dez anos da recente história brasileira, desde as
ocorrências que levaram ao fim do governo de Getúlio Vargas e a seu suicídio até
a implantação do regime ditatorial em 1964. Realizando uma narrativa distancia-
da, com um narrador em terceira pessoa, Callado desvenda os meandros de al-
gumas das práticas políticas da época, particularmente o jogo de interesses por
trás do Serviço de Proteção ao Índio (que mais tarde se transformou na Funda-
ção Nacional do Índio – Funai), por meio das experiências de padre Nando, pro-
tagonista do romance. Desse modo, os fatos históricos que marcaram o período
se confundem com a trajetória de vida de Nando, o que permite avaliar de uma
forma diferente daquela dos livros de história ou do simples relato jornalístico.
E em O Que É Isso Companheiro? novamente vem à pauta a história recente
do Brasil, mas em um relato de caráter memorialístico. Em um discurso marcado
pela subjetividade, o autor revê, a partir do exílio, sua participação ativa na guer-
rilha urbana contra a ditadura, particularmente o seu envolvimento no sequestro
do embaixador norte-americano Charles Elbrick (1908-1983), em 4 de setembro
de 1969. A estrutura do livro foge aos experimentalismos formais, adotando os
recursos típicos da narrativa tradicional. Entretanto, é uma obra de difícil clas-
sificação pela mistura de gêneros que ali se configura, ficando entre a autobio-
grafia, pois há acontecimentos da vida real do autor; o romance memorialista, já
que são recuperadas situações que permaneceram na memória do narrador; e o
relato jornalístico, pelo estilo de narração que é adotado, lembrando, em alguns
momentos, uma reportagem.
Os autores e obras aqui mencionados confirmam as múltiplas tendências em
que se dispersou o romance brasileiro contemporâneo. Vale lembrar, contudo,
que estamos falando de um período que ainda está em configuração. Por isso,
ainda é difícil definir as linhas de construção literária que serão realmente defini-
doras desta fase da literatura brasileira.
Texto complementar
A seguir você lerá um trecho do romance O Que É Isso Companheiro?, de Fer-
nando Gabeira. A narrativa é feita em flashback a partir do exílio no Chile, onde o
narrador rememora os fatos de sua militância política que o levaram ao seques-
tro do embaixador Charles Elbrick, em 1969.
Para assistir as videoaulas deste livro, assine o site www.planoeducacao.com.br 147
Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br
Literatura Brasileira III
Estudos literários
1. A técnica do fluxo de consciência
Dicas de estudo
Desta vez, dois filmes.
fragmentação;
desconstrucionismo;
uso da metalinguagem;
intertextualidade (procedimentos de paródia e pastiche);
mistura de gêneros, subgêneros e discursos;
formas que mesclam a cultura erudita com a popular e a de massa;
revisão crítica da história;
privilégio dado ao ponto de vista das minorias.
Ficção e história
na literatura brasileira contemporânea
Para que se possa compreender como se deu essa mistura entre história e
ficção na literatura brasileira contemporânea, apresentamos, a seguir, algumas
obras representativas dessa tendência.
O grito do Acre
Geopolítica
ra. Porém, ao contrário de Márcio Souza, que basicamente se atém a uma figura
central (o espanhol Luiz Galvez) e aos acontecimentos que culminaram na Revo-
lução Acreana, João Ubaldo realiza uma trajetória bem mais extensa.
Como o próprio título indica, o foco da construção literária de Viva o Povo Bra-
sileiro é a formação da nossa identidade nacional, ou seja, nossa caracterização
como povo. A partir de um conjunto de personagens, o autor faz um percurso
que vai desde o século XVII (mais precisamente, o ano de 1647) até o século XX
(1977). Contudo, a narrativa não segue uma trajetória linear, assim evitando que
a história seja vista como uma sequência de causas e efeitos.
A narrativa em terceira pessoa, com amplo uso do discurso indireto livre, pe-
netra os pensamentos das personagens, desvendando os bons sentimentos, mas
também o egoísmo, a cobiça, a insensatez e a crueldade que marcaram vários
dos episódios da nossa história e, consequentemente, a construção do nosso
caráter nacional.
Sim, não passou o Imperador aqui mais que um par de horas e a Prince-
sa Imperatriz no capitânea da flotilha estava, no capitânea ficou, mas este
domingo cujo sol festeja em todas as casas, plantas e águas, esta manhã em
que o ar respirado quase faz as pessoas flutuar, as cores da Rua da Matriz e da
Praça da Vila, os vestidos e guarda-sóis de todos os matizes, os sinos dobran-
O fragmento se refere à visita que o imperador Dom Pedro I faz ao local de-
nominado Cachoeira. Há um ar de festa; tudo está muito bem arranjado, dando
a impressão de ordem e alegria. Há uma ênfase na luminosidade do dia, que
parece irradiar do próprio imperador, “alto e belo como um deus”. Na verdade,
toda essa cena está repleta de ironia. A bela atmosfera criada serve de contra-
ponto à miséria do povo, ao sofrimento dos escravos, às falcatruas perpetradas
por Perilo Ambrósio, o barão de Pirapuama, que consegue ascender socialmen-
te, obtendo o título de nobreza, por meio de suas crueldades e mentiras.
Boca do Inferno
O romance Boca do Inferno (1989), da escritora cearense Ana Miranda, en-
vereda pelos caminhos da história política e literária do Brasil no século XVII. O
protagonista é o poeta barroco Gregório de Matos (1636-1696), porém, a obra
não se constitui em uma biografia romanceada do poeta baiano. Na verdade,
trata-se de um momento da vida de Gregório, mais precisamente o ano de 1683,
quando houve um assassinato na chamada cidade da Bahia, hoje Salvador. O
alcaide (prefeito) Francisco Teles de Menezes foi morto em uma armadilha reali-
zada por seus desafetos. Nesse assassinato, aparecem envolvidos tanto Gregório
de Matos como a família do padre Antônio Vieira, os Vieira Ravasco.
No trecho citado, por meio do discurso indireto livre, são apresentados os pen-
samentos de Gregório de Matos. Ele se vê como um homem dividido: gostaria de
ser um grande poeta, como o espanhol Gongora y Argote. Porém, no contexto
em que vive, “no lado escuro do mundo, comendo a parte podre do banquete”,
não se sente capaz de produzir obras de importância. Ao longo do romance, são
enfatizados os conflitos interiores da personagem, que se debate entre tomar os
votos religiosos ou gozar a sensualidade das mulheres, entre a poesia elevada e
os poemas satíricos e profanos.
Texto complementar
A seguir você lerá mais um trecho do romance Boca do Inferno, de Ana Miran-
da. Nele é possível perceber o cuidado com a reconstrução histórica, graças aos
detalhes da geografia da cidade e dos costumes da época.
Ainda se viam resquícios dos danos causados pelas guerras contra os ho-
landeses, desde quase 60 anos antes. Ruínas de casas incendiadas, roqueiras
abandonadas, o esqueleto de uma nau na praia. Em lugares mais ermos po-
diam-se encontrar, cobertos pelo mato, estrepes de ferro de quatro pontas.
Perto da porta do Carmo, havia, ainda, covas profundas e altos baluartes que
tinham servido de trincheira.
Numa suave região cortada por rios límpidos, de céu sempre azul, terras fér-
teis, florestas de árvores frondosas, a cidade parecia ser a imagem do Paraíso.
Era, no entanto, onde os demônios aliciavam almas para povoarem o Inferno.
[...]
1
“Desbravar aquela paisagem de modo a não colocar os bons homens de bem [os fidalgos] em perigo”. – tradução nossa.
Estudos literários
1. Entre os títulos abaixo, um deles é uma obra da literatura brasileira contem-
porânea e apresenta, de maneira crítica, uma mistura de ficção e história.
Que obra é essa?
b) A Hora da Estrela.
c) O Risco do Bordado.
d) Boca do Inferno.
Dicas de estudo
SOUZA, Márcio. Galvez, Imperador do Acre. Rio de Janeiro: Record,
2001.
MIRANDA, Ana. Boca do Inferno. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Globalização e multiculturalismo
A partir dos anos 1980, uma palavra que passou a frequentar as discus-
sões a princípio econômicas, mas logo também políticas, sociais e culturais,
foi globalização. No início, o termo esteve ligado às novas necessidades da
economia mundial após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), como a
interdependência econômica que se estabeleceu entre as diversas nações.
Entre os anos 1950 e 80, com o mundo dividido em dois blocos – o ca-
pitalista e o comunista –, as inter-relações comerciais se davam dentro de
cada bloco separadamente. Porém, com a decadência do comunismo nos
países do Leste Europeu, essas relações se tornaram mais abrangentes, fa-
zendo surgir uma rede mundial de negócios.
Entretanto, essa aldeia global, que seria a imagem da união dos povos con-
cretizada pelo aperfeiçoamento das comunicações, não se constituiu no paraíso
que alguns ingenuamente haviam imaginado. No início, um excessivo otimismo
cercava essa ideia de um mundo interligado que parecia corresponder a uma
superação das divergências e uma total harmonia entre todos os indivíduos.
Porém, alguns grupos sociais logo perceberam que a globalização era uma
forma de imposição imperialista dos países de Primeiro Mundo sobre os do Ter-
ceiro Mundo. Particularmente os Estados Unidos – que, desde a desestruturação
do bloco comunista, tornaram-se a nação mais poderosa do mundo – levavam
outras nações a consumirem não só os seus bens industriais mas também os
seus esquemas culturais.
Nesse sentido, surgiu, dentro dos próprios Estados Unidos, uma crítica ao sis-
tema de globalização, conforme se configurou a partir da segunda metade do
século XX. Essa crítica tinha, basicamente, o objetivo de apontar a ameaça que
as imposições culturais representam para a identidade nacional dos diversos
povos do mundo. Além disso, ela ainda procurava enfatizar a importância dos
elementos culturais que identificam cada povo, no intuito de que eles fossem
valorizados e não apagados por grupos de maior poder.
Essas questões ligadas às diferenças dos diversos grupos que formam o tecido
social são o foco do multiculturalismo, uma tendência das artes, da literatura e da
cultura que busca a diversidade na igualdade, ou seja, procura enfatizar as dife-
renças em um mundo que, nos seus esquemas globalizantes, deseja uniformizar
os comportamentos.
Tomemos como exemplo o caso do Brasil. Nosso país tem uma grande diversi-
dade cultural por conta das suas origens, marcadas pela miscigenação de índios,
negros e brancos. Na formação de nossa identidade, tivemos a contribuição da
cultura dos povos indígenas, dos africanos que para cá vieram como escravos,
dos europeus (primeiro os colonizadores portugueses, depois os imigrantes,
que começaram a chegar a partir do século XIX – italianos, alemães, espanhóis),
Aspectos da globalização
na literatura brasileira contemporânea
As obras literárias contemporâneas trazem cada vez mais imagens do ser
humano que tenta se adaptar a um mundo que parece ter perdido os limites
precisos. Mesmo localizado em um espaço determinado, que pode ser até uma
casa ou um apartamento, o homem contemporâneo é bombardeado por ima-
gens que, vindas de diversos pontos do planeta, afetam a sua existência. Desse
modo, na atualidade, a relação do homem com o espaço é de uma natureza
diferente daquela que ele mantinha no passado: ele não pertence mais simples-
mente a uma cidade ou a um país, pois é um cidadão do mundo no sentido de
que é levado a se envolver com as ocorrências de outras partes do globo. Por
exemplo, um conflito nos países árabes afeta a economia em todo o planeta;
uma nova moda lançada na Europa logo passa a ser adotada em outros grandes
centros mundiais, alterando comportamentos.
Assim, Costa começa a se envolver com a cultura húngara, na qual irá encon-
trar uma outra identidade. Por meio de Kriska, sua professora e posteriormente
sua amante, ele vai incorporando a nova linguagem, mas também uma vida di-
ferente. Seu conhecimento atinge tal perfeição que ele acaba por se tornar um
ghost writer no novo idioma.
A obra é marcada pelo jogo entre verdadeiro e falso a partir da própria pro-
fissão do protagonista. Ele precisa manter uma condição de anônimo, deixando
que falsos escritores adquiram fama com seu trabalho, podendo gozar apenas a
distância os elogios dados a outrem. Como marido e pai, Costa não passa de um
fracassado. Sua mulher não consegue reconhecer a sua linguagem na autobio-
grafia de um alemão, que se torna um best seller. Costa também nunca consegue
ser um pai de fato, a ponto de não mostrar qualquer ressentimento por abando-
nar o filho. Anos depois, em um encontro acidental, o filho não o reconhecerá.
Desse modo, não encontrando no Brasil uma identidade verdadeira, ele larga
tudo e vai para Budapeste, movido pelo fascínio que a língua húngara lhe des-
pertou. É a partir dela que ele tenta reconstruir a sua existência e dar um sentido
à sua vida. No entanto, ao longo do romance, o jogo entre o real e o imaginado
apenas se acentua, o que destrói toda a ilusão de realidade, tornando a vida de
Costa apenas o assunto para a criação ficcional de um outro ghost writer.
E apesar de seu enfoque ser sobre uma família libanesa, o romance mostra
como a variedade étnica marcou a constituição dos povos amazônicos. No
trecho citado, por exemplo, Emilie recebe os convidados para a festa de Natal.
Entre eles, há portugueses e até judeus. É curiosa a presença dos judeus, já que
estes, além de não celebrarem o nascimento de Cristo, não mantêm uma boa
relação com os árabes em sua terra natal. Nesse sentido, a imagem construí-
da do Brasil é a de uma democracia racial em que povos de diferentes origens
conseguem ter um bom convívio. No trecho, há ainda a referência a Dorner, um
alemão que se estabeleceu em Manaus, ampliando a diversidade cultural.
Tendências homoeróticas
na literatura brasileira contemporânea
A vertente multicultural deu margem para que grupos amplamente margi-
nalizados por questões morais pudessem mostrar as suas ideias, a fim de levar à
superação de preconceitos. Nesse sentido, houve uma ampliação das discussões
sobre o homoerotismo, uma tendência presente na literatura há muito tempo,
mas que só no século XX passou a ser abertamente discutida. Com isso, a expres-
são artística homoerótica tem sido não só um meio de enfatizar a importância
da diversidade no mundo contemporâneo mas também uma forma de afirma-
ção e aceitação dos homossexuais nas sociedades.
Por exemplo, no romance Onde Andará Dulce Veiga? (1990), Abreu constrói
uma trama com elementos detetivescos, repleta de referências que evocam a
diversidade cultural mas também os preconceitos que cercam o mundo con-
temporâneo, como no trecho a seguir:
O motorista japonês tentou puxar conversa, mas respondi com um grunhido, ele desistiu
depois de comentar que ia cair a maior água. Afastei o banco para trás, estendi as pernas, abri
mais o vidro. Ele ligou o rádio, rezei para que não sintonizasse num daqueles programas com
descrições hiper-realistas de velhinhas estupradas, vermes dentro de sanduíches, chacinas
em orfanatos. De repente a voz rouca de Cazuza começou a cantar. Vai trocar de estação, tive
certeza, mas ele não trocou. Isso me fez gostar um pouco dele, tão oriental, talvez budista, e
pedi que aumentasse por favor o volume, deitei a cabeça no encosto de plástico pegajoso e
por quase um segundo, muito rapidamente, enquanto o carro rastejava pelo trânsito difícil,
sobre o asfalto em brasa, a camisa molhada, a pilha de laudas virando pasta entre meus dedos,
fechei os olhos, o vento soprava na minha cara, secando o suor, e por quase um segundo, outra
vez, como quem de repente suspira ou pisca e segue em frente, veloz feito uma mariposa que
cruza subitamente o ar nas noites de verão, à procura de luz acesa para girar em torno, como
quem apaga ou acende uma dessas luzes para perceber no quarto vazio apenas a vibração do
bater de asas que restou no ar, não o inseto que já foi embora, no fundo turvo do pensamento,
eu queria ver no escuro do mundo, sem querer nem provocar ou conduzir, por quase um
segundo, finalmente, dentro do táxi que descia em direção ao Ibirapuera, lembrei então de
Pedro. (ABREU, 2007, p. 27)
Assim, Caio Fernando Abreu configura, em sua obra, os elementos que geram
os preconceitos que as pessoas constroem em relação ao outro, por incorpora-
rem imagens estereotipadas, fruto de convenções morais arcaicas enraizadas na
trama social.
Texto complementar
A seguir você lerá um trecho do romance Budapeste, de Chico Buarque, que
mostra a aventura do protagonista em uma terra de língua estranha.
Budapeste (fragmento)
(BUARQUE, 2003, p. 5-9)
Já passava de uma quando fui para a cama nu, religuei a tevê, e a mesma
mulher da meia-noite, uma loura com maquilagem pesada, apresentava
uma reprise do jornal anterior. Percebi que era uma reprise porque já tinha
reparado na camponesa de rosto largo que encarava a câmara com os olhos
saltados, empunhando um repolho do tamanho da sua cabeça. Balançava ao
mesmo tempo a cabeça e o repolho para cima e para baixo, e falava sem dar
trégua ao repórter. E espetava os dedos no repolho, e chorava, e esganiçava
a voz, e tinha o rosto cada vez mais vermelho e inflado, e enterrava os dez
dedos no repolho, e agora meus ombros se retesavam não pelo que eu via,
mas no afã de captar ao menos uma palavra. Palavra? Sem a mínima noção
do aspecto, da estrutura, do corpo mesmo das palavras, eu não tinha como
saber onde cada palavra começava ou até onde ia. Era impossível destacar
uma palavra da outra, seria como pretender cortar um rio a faca. Aos meus
ouvidos o húngaro poderia ser mesmo uma língua sem emendas, não cons-
tituída de palavras, mas que se desse a conhecer só por inteiro. E o avião
Estudos literários
1. Qual dos autores abaixo trata dos conflitos vividos por famílias libanesas nas
terras amazônicas?
a) Chico Buarque.
b) Milton Hatoum.
c) Rubem Fonseca.
Dicas de estudo
BUARQUE, Chico. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
BUARQUE, Chico. Budapeste. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
BUARQUE, Chico. Benjamin. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
HATOUM, Miltom. Dois Irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
HATOUM, Miltom. Relato de um Certo Oriente. São Paulo: Companhia
das Letras, 2008.
Assistir ao filme Babel, de Alejandro González Iñárritu, que trata de ques-
tões relacionadas à globalização e ao multiculturalismo.
Assistir ao filme Onde Andará Dulce Veiga?, de Guilherme de Almeida
Prado, baseado na obra homônima de Caio Fernando Abreu.
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Literatura Brasileira III
2. B
2. C
O Pós-modernismo
e a literatura brasileira
1. D
2. B
Rumos da poesia
brasileira contemporânea
1. D
2. C
2. F, V, V
3.
Produção de uma poesia objetiva, cuja forma presentifica o conteúdo;
polissemia;
uso de neologismos.
O teatro brasileiro
a partir dos anos 1950
1. A
2. C
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Gabarito
2. F, V, F, V
2. B
Vozes femininas
na literatura brasileira contemporânea
1. B
2. A
O romance contemporâneo:
introspecção e contestação
1. D
2. C
O romance contemporâneo:
diálogos com a história
1. D
2. C
Outras tendências
do romance contemporâneo
1. B
2. F, V, V, F
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Gabarito
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