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Filósofos têm visto, desde o começo da especulação losó ca, uma forte ligação entre a
natureza humana e a moralidade das nossas ações. Diziam eles que as ações realizadas
contra o conjunto, propriedades ou tendências da natureza humana, e mesmo contra a
natureza das coisas que nos cercam, são pecaminosas, enquanto as ações realizadas
conforme a natureza são moralmente boas. Como veremos, o problema não é nada
fácil, e mais recentemente foi motivo de disputas ferozes, especialmente entre teólogos
e estudantes de Direito. Além disso, a in uência notável do atual clima espiritual no
pensamento de muitos teólogos morais os afasta da doutrina tradicional. Como escreve
João Paulo II, o interesse na observação empírica, no progresso tecnológico e em certas
formas de liberalismo têm levado as pessoas a enxergar uma oposição entre a
liberdade humana e a natureza. A Liberdade é contrastada com a natureza física e
biológica do homem: ele deveria subjugá-las às suas necessidades e desejos. Nesta
visão, a natureza humana não é nada além do substrato das nossas ações, que devemos
deixar para trás, ou, pelo menos, transformar. Di cilmente temos uma natureza
definitiva: devemos continuamente criar a nós mesmos.
(1) a idéia da natureza no passado e no presente; (2) natureza e lei natural; (3) A visão de
Tomás de Aquino sobre a aplicação da lei natural e algumas visões dissidentes; (4)
argumentos contra o recurso à natureza; (5) algumas conclusões.
Na segunda metade do século V a.C, o termo também começou a ser usado para
identi car também a natureza humana. Filósofos então falavam de uma oposição entre
“natureza” e “lei”. Aqueles que viviam na Grécia nesse período de iluminação relutavam
em deixar-se limitar por regras ou costumes, e preferiam ser controlados por seus
impulsos naturais (1). Platão criticava esta linha de pensamento defendida pelos
so stas. Ele também rejeitava o determinismo. No mundo, trabalham design e arte, e
isto signi ca que a mente dirige processos. Ainda, cada uma das naturezas de diferentes
espécies de coisas é dependente de uma idéia (2).
De acordo com Aristóteles, natureza é a essência das coisas que têm em si mesmas um
princípio de movimento. Por isso, a natureza está relacionada com atividade e
movimento. Contra Platão, Aristóteles retornou à antiga tradição dos pré-socráticos no
que diz respeito ao signi cado original do termo. No entanto, ele aceitou o melhor dos
insights platônicos: physis é, em primeiro lugar, a forma, o que dá às coisas sua
inteligibilidade. Aristóteles deu à natureza os atributos que Platão havia dado à alma, a
saber, regularidade e propósito (3). Natureza deve ser distinguida de acaso e produção
arti cial. A questão do estagirita é colocada no contexto da causalidade: de onde as
coisas vêm e como algo como o desenvolvimento natural é possível. A resposta é:
“devido à sua natureza”. Natureza não é uma causa extrínseca, mas o princípio de
movimento inerente nas coisas. É a essência, ou substância, das coisas que têm a
origem da mudança em si mesmas. Entre os pré-socráticos, havia uma tendência de
reduzir a natureza à matéria, mas Aristóteles considerava ser a forma o conteúdo
principal. A natureza dos elementos é o princípio de seu movimento (4). Ele também usa
o termo physis quando trata de toda a realidade física e da ordem teleológica do
o termo physis quando trata de toda a realidade física e da ordem teleológica do
universo.
O neo-platonismo de Plotino, por outro lado, apresenta uma nova visão: a natureza é
hipostática, uma manifestação mediata do Um, derivada da Alma, isto é, uma alma de
posto mais baixo, encontrada entre a Alma do Mundo e as coisas materiais. Sua função
é dirigir o processo cósmico.
Contudo, os Padres da Era de Ouro vão muito além dessa posição, a rmando que a
santidade nos eleva para acima da natureza (14). De fato, com citações frequentes de
textos bíblicos, eles insistem ser um ótimo negócio viver de acordo com as exigências do
Evangelho. De qualquer maneira, o tema da natureza como fonte do conhecimento
moral permanece presente. No tratado Da Providência, VIII, S. João Crisóstomo escreve
que Deus, ao criar a forma do homem, incutiu nele uma lei inata, superior à razão, que
o serve como guia. Abel e Cain conheciam essa lei sem nunca tê-la estudado.
Infelizmente, a maioria das pessoas rejeita as lições que a natureza fornece. Assim, Deus
abriu outro caminho para ensinar o homem. A natureza não é alterada pela graça, mas
nossa vontade e nosso discernimento o são. Nas suas homilias contidas na Carta aos
Romanos, c. 6, hom. 5, São João Crisóstomo atenta para o conhecimento inato dado por
Deus sobre as obrigações morais do homem, mas não chega a desenvolver uma teoria
sistemática dos conteúdos da lei natural.
O valor das lições morais de Santo Ambrósio é rebaixado por alguns autores que o veem
quase como um copiador de Philon, Cícero e Plotino. A isto dizemos que, embora ele
tenha de fato usado os mesmos termos de seus predecessores não-cristãos, Ambrósio o
fez com signi cados completamente novos. Foi um processo de substituição —
conteúdo cristão substituindo idéias pagãs — não uma síntese de pensamento cristão e
pagão. Dada a sua familiaridade com Cícero, é surpreendente que ele não o tenha
aproveitado ainda mais em favor da lei natural. Para ele, uma doutrina pagã básica,
como a da vingança, tem de dar lugar ao Evangelho, que a proíbe. Encontramos
referências ocasionais da natureza como fonte de lei moral, por exemplo, quando ele
escreve que a natureza estabeleceu um direito à propriedade comum para todos (17).
Sozinho, o termo natureza aparece quase 4800 vezes na Summa theologiae, sem
acompanhar a presença persistente do adjetivo naturalis. O termo complexo natura
humana também aparece com muita frequência. O termo natura normalmente aparece
no sentido de “ser essencial” das coisas. A natureza especí ca das coisas vem de Deus,
que as criou sem intermediações; são participações contínuas nas idéias divinas. Isto
explica porque são tratadas como fontes das regras que, por vontade de Deus, regem
nosso comportamento. De fato, quando Tomás escreve que os objetos que nos atraem
são naturalmente percebidos como bons, ele vê nossa natureza como participação no
ser de Deus e como expressão do plano divino para governar a criação. Voltaremos a
este ponto na próxima sessão.
Em relação ao resto da história do termo “natureza”, mudanças importantes em seu
signi cado ocorreram na idade moderna. Cientistas começaram a considerar as coisas
físicas através de uma perspectiva matemática, e passaram a dar menos atenção à
nalidade como expressão da atividade das coisas naturais. A teoria das formas
substanciais e dos quatro elementos foi abandonada e substituída pelas propriedades
químicas e pelas forças físicas calculáveis. Para Tomás de Aquino era óbvio que a
natureza depende de Deus e é governada por Ele, mas, na era moderna, a natureza
passou a signi car, para muitos, a realidade última. No século XVIII, a natureza chegou a
ser objeto de uma quase veneração religiosa. Entre os teólogos prevaleceu o costume
de ver a ordem sobrenatural como um bônus que não altera a natureza humana, mas
permite ao homem viver em seu habitat natural sem referência à ordem da graça. A
natureza consiste em fatos observáveis e devemos segui-la, pois tudo o que a natureza
faz é bom (41).
Uma negação bastante sincera da visão tradicional sobre a natureza humana é proposta
nos trabalhos de Jean-Paul Sartre. O homem não é nada além daquilo que ele faz dele
mesmo (46). Sartre precisa deste postulado para assegurar a liberdade completa do
homem. De acordo com o lósofo existencialista francês, uma decisão verdadeiramente
livre é um projeto, isto é, um ato que nasce espontaneamente sem quaisquer in uências
livre é um projeto, isto é, um ato que nasce espontaneamente sem quaisquer in uências
ou determinações (47). Em cada escolha livre, o rompimento com o passado deve ser
total. Uma natureza humana funcionando como bússola para guiar o homem
simplesmente não existe: fosse o caso, ela nos “projetaria” para frente o tempo todo. A
teoria de Sartre exerceu in uência considerável na geração pós-guerra. Expressou o que
um bom número de pessoas em nossa sociedade ocidental pensa sobre a ação humana
(48). Também existem autores que rejeitam a natureza como fonte para o
comportamento moral, pois, para eles, imitar a natureza signi ca rebaixar-se a um
patamar animal. Não foi Ulpiano quem disse que “a lei natural é o que a natureza
ensinou a todos os animais”? (49). Mas o homem está muito acima desse patamar.
Assim como ele impõe sua vontade ao curso dos rios, clama suas terras, constrói ilhas
arti ciais e doma os animais, também pode dar à sua própria vida e à sua sexualidade a
expressão que lhe condiz.
Muitos autores a rmam que a lei natural não existe, uma vez que o fundamento sobre
o qual ela foi construída está destruído: não há determinação natural que possa nos
impor suas regras: nós decidimos livremente sobre nosso agir. Normas, eles supõem,
dependem do entorno cultural. O relativismo moral é a melhor abordagem para a vida
moral. Um antropologista pode apontar diferentes formas de comportamento em
diferentes culturas, algumas das quais podem ser abomináveis para outras. John Locke,
dizem, foi um precursor deste ponto de vista. Em seu Ensaio acerca do Entendimento
Humano, Locke observa que é muito raro encontrar um princípio moral que não tenha
sido desprezado ou condenado pela opinião dominante de alguma sociedade (50).
Legisladores e juízes notam uma discordância considerável entre os cidadãos, e,
enquanto não for prejudicial a alguém, deixam fora de suas decisões o que eles
consideram ser parte da moralidade privada. A distinção entre o errado em si mesmo e
o errado porque é proibido cou incerta. Eles propõem tolerar o máximo de liberdade
individual consistente com a integridade da sociedade.
Isso nos leva ao último e mais decisivo fator para a rejeição da natureza humana como
base para o agir moral: o aumento abrupto da consciência sobre a liberdade pessoal.
Um bom número de nossos contemporâneos conserva o desejo de tornar-se
absolutamente livre do que a natureza ensina. Ora, esta posição leva a algumas sérias
consequências:
2. Nossa vida pessoal não encontra outro objetivo além da preocupação em agir
sem inibições. A unidade da nossa vida mental e moral está perdida. As virtudes,
a lei natural, a tradição e os costumes não são mais valores positivos, uma vez
que eles impõem restrições à vontade e reduzem a liberdade.
Abandonar a natureza como critério para os nossos atos chegou ao ponto de fazer com
que, em loso a política, alguns autores usassem a expressão “democracia
procedimental” para sugerir que um governo deveria sistematicamente preferir a não-
religião à religião, a livre união ao casamento, o aborto à proteção do nascituro, etc.
Outras áreas que abandonaram as normas da natureza ou foram deixadas aos bolsos
de grupos privados são as dos pacientes terminais e embriões humanos. Cientistas,
buscando grandes conquistas nanceiras, querem dispor de total liberdade para
explorar o potencial de obter materiais para medicamentos capazes de curar certas
doenças.
As coisas da natureza são boas ou ruins conforme elas possuam ou não aquilo que
concorda com e pertence às suas naturezas. Ora, o que especi ca a natureza humana é
a razão. Portanto, Santo Tomás conclui com Dionísio que “o bem do homem é estar em
concordância com a razão; seu mal é estar em con ito com ela” (52). Nesta visão, a
qualidade moral de um ato é sua conformidade (ou falta dela) com o que a reta razão
estabelece como útil ou necessário ao homem. A relação de certas ações com nosso
estabelece como útil ou necessário ao homem. A relação de certas ações com nosso
bem é um fato objetivo. De acordo com Aquino, a razão descobre essa conformidade ao
invés de construi-la. Em última análise, essa relação foi colocada nas coisas pelas mãos
do Criador. O homem descobre o que Deus quis que nossas ações fossem e o que
signi cassem; ele toma para si o que Deus intencionou colocar nas criaturas (54). Contra
uma visão difundida em sua época, Aquino a rma que a lei natural não é inata, a não
ser que se esteja falando de seu fundamento na natureza humana. A lei natural é
natural na medida em que formula espontaneamente seus primeiros princípios com
base em nossas inclinações fundamentais. Isso abrange mais do que os preceitos
formulados sem maiores re exões pelo nosso intelecto. Sua extensão compreende
todas as obrigações morais que podemos deduzir desses primeiros princípios. Uma vez
que a lei natural está enraizada na natureza humana, ela é universal e eterna. No
entanto, as inclinações naturais não são a lei natural, mas as obrigações que decorrem
dela. Certas ações, escreve Tomás, são boas para o homem pois conformam-se com sua
natureza.
Entretanto, é errado pensar que na maioria dos casos uma simples análise de objetos
isolados nos permite estabelecer uma regra de conduta. A relação entre as coisas é
muito complexa. Santo Tomás introduz uma distinção entre a natureza particular e a
natureza universal, aplicável para a relação entre o corpo humano e suas partes. O
mesmo vale para indivíduos humanos e a sociedade de que eles participam. Pode
acontecer de alguma coisa estar conforme uma natureza particular mas ser contrária à
natureza universal. Um exemplo é a amputação de um órgão doente ou outro membro
do corpo humano para salvar uma vida. A morte das plantas e dos animais, que é
claramente contra suas próprias naturezas, podem beneficiar a natureza como um todo.
Deste modo, Tomás faz uma distinção entre preceitos fundamentais e regras de
conduta de formulação ulterior (64), por vezes chamadas preceitos primários e preceitos
secundários. Os primários são discernimentos da razão imediatamente evidentes, e
versam sobre deveres e tarefas básicas, comparando-se aos primeiros princípios da
inteligência especulativa. A partir da re exão, do raciocínio e do recurso à experiência,
derivam-se desses primeiros princípios imediatamente evidentes — de certa forma
correspondentes aos Dez Mandamentos —, outras regras de conduta (65). Abre-se com
isto um vasto campo para novos desenvolvimentos na vida em sociedade. A distinção a
que procedeu Tomás foi antecipada por alguns teólogos medievais da primeira metade
do século XIII (66).
Para ilustrar a importância que Santo Tomás dá à lei natural, pode-se citar alguns de
seus argumentos: diz-se que mentir é pecado porque o discurso é signo do
pensamento; é inatural e errado dizer em palavras o contrário do que se tem em mente
(69). — A injustiça é pecaminosa pois implica in igir dano a outrem e obter mais do que
se é devido (70); cometer suicídio é absolutamente ilícito, pois é ato contrário à
inclinação natural de amar a si mesmo e manter-se vivo; ademais, uma pessoa é parte
da sociedade, e não poderia arbitrariamente retirar-se dela (71); inebriar-se é imoral
pois voluntariamente e conscientemente priva-se do uso da razão (72); o orgulhoso
peca porque eleva-se acima da própria condição e não se satisfaz com o que é
proporcional a si mesmo (73); positivamente, rezar é exigido de nós, já que dependemos
de Deus.
Para concluir algo sobre nossos deveres, intervêm a razão e a argumentação, embora
Para concluir algo sobre nossos deveres, intervêm a razão e a argumentação, embora
alguns discernimentos não atinjam certos grupos de pessoas. Algo assim pode ser
causado por algumas situações particulares e pela in uência do homem no meio-
ambiente. Não é algo que pode sempre ser evitado pelos indivíduos. O desenvolvimento
da vida social e política traz consigo o crescimento das relações humanas e o uso cada
vez mais complexo da natureza e dos artefatos. Pode-se pensar em agricultura
industrial, grãos geneticamente modi cados etc. O princípio “nullues peccat in hoc quod
utitur aliqua re ad hoc quod est” (74) encontra aplicação no crescimento de complexidade
da vida cotidiana. O direito à propriedade privada é muitas vezes dito ser parte da lei
natural. Aquino, no entanto, pensa que, para o bem da utilidade e de uma vida
comunitária ordenada, a vida, a terra, as construções e a riqueza, que são basicamente
posse de todos, passaram à posse de indivíduos (75). Quanto mais descemos a detalhes,
mais saímos das estipulações básicas da lei natural. Em seus princípios, a lei natural é a
mesma para todos, mas os desdobramentos podem variar. Progredir no entendimento
das nossas obrigações fundamentais também é possível, como se vê no
desenvolvimento das teorias dos direitos humanos e no modo como os fortes e os
fracos são tratados (76).
Outra questão a ser colocada é se certas partes da lei natural podem mudar ou serem
anuladas. É impossível que os primeiros princípios da lei natural mudem ou sejam
anulados. Quanto aos preceitos derivados, pode acontecer que eles não sejam
aplicáveis. Algumas di culdades clássicas na teologia moral católica são as ordens de
Deus para que Abraão matasse o próprio lho; para que os judeus roubassem
embarcações de prata e ouro dos egípcios; para que o profeta Oseias tivesse relações
sexuais com uma prostituta. A solução de Tomás para o problema, como apresentada
na Summa Theologiae, é a seguinte: a lei natural consiste em preceitos formulados pela
mente humana. Deus, o Criador da natureza, pode mostrar para uma pessoa que um
certo ato não mais se aplica ao preceito formulado, e que o que permanece verdadeiro
para o homem não obriga a Deus. Aquino assinala que matar um inocente é crime.
Mesmo assim, milhares de pessoas morrem diariamente em eventos que envolvem a
causalidade divina. Para provocar a morte de alguém, Deus também pode usar uma
pessoa ao invés de causas naturais. Da mesma forma, todas as posses humanas
pertencem, em primeiro lugar, a Deus. Finalmente, Deus também pode ligar uma
mulher a um homem fora do casamento (77). À primeira vista, essa solução parece
arbitrária e insatisfatória. De um lado, Deus impôs certas regras de conduta ancoradas
na natureza humana. De outro, ele as torna nulas. A isto responde-se que, em certo
sentido, a natureza das coisas é composta pelo que Deus faz. Tomás dá o exemplo da
água, que se espalha igualmente segundo a sua natureza, mas é erguida à altura de um
maremoto sob in uência lunar, o que não contraria a natureza da água. Do mesmo
modo, uma ação causada ou desejada por Deus, de quem depende a atividade natural
das coisas, não contraria suas naturezas (78). Essa solução é interessante por mostrar
que, para Aquino, fator dominante não é a estrutura físicas ou biológica, mas o
discernimento que nos faz ver e formular os preceitos morais básicos.
discernimento que nos faz ver e formular os preceitos morais básicos.
A ética tomista está longe de querer limitar o homem por uma cega submissão aos
fatores biológicos. Ela coloca a vida humana à luz da razão e das idéias divinas, nos
convidando a viver de acordo com nosso ser verdadeiro e nossa vocação autêntica. A
pessoa humana formula sua lei natural, pois, nas circunstâncias mutáveis da nossa
existência histórica, devemos determinar o signi cado moral das nossas ações e da
forma como usamos as coisas. João Paulo II escreve: “a lei natural expressa e prescreve
as nalidades, direitos e deveres, baseada na natureza corpórea e espiritual da pessoa
humana… É pela ordem racional que o homem é chamado pelo Criador para dirigir e
ordenar sua vida e seus atos e usar e dispor de seu corpo” (79).
Um teólogo relutará em deixar de lado a teoria segundo a qual, de certo modo, normas
morais são dependentes da natureza, porque esta doutrina encontra base
extremamente sólida na tradição e parece oferecer um fundamento excelente para
normas obrigatórias, enquanto sua substituta, o critério da realização humana de
Grisez, parece ser moldável aos desejos e preocupações das pessoas. Em um país onde
muçulmanos são a maior parte da população, eles talvez considerem a imposição
forçada da shariah aos não-muçulmanos como um caminho para a realização humana,
assim como no passado outros podem ter pensado que a exterminação de certas tribos
indianas facilitaria tal realização. Parece que nós devemos procurar por uma base mais
profunda, universal e objetiva para as leis morais. É óbvio que a lei moral não pode ser
uma estrutura biológica (85), mas deve ter um caráter racional. É aqui que Santo Alberto
Magno mostrou o caminho, enfatizando o caráter racional da lei natural, que é exclusiva
ao homem. Aquino argumenta que a lei natural não é apenas inata, mas que suas
bases, ou seu ponto de partida, nasce junto com a natureza humana. Isto signi ca que
nosso intelecto formula espontaneamente os princípios básicos de ordem moral. Estes
princípios constituem o centro da lei natural e correspondem aos primeiros princípios
do ser na inteligência especulativa que, obviamente, é pressuposta e só faz sentido no
contexto de uma loso a antropológica correta. As inclinações naturais para a própria
preservação, o desenvolvimento intelectual, a comunhão com os outros etc., não são a
própria lei natural, mas as obrigações que deles uem, enquanto são formuladas pela
inteligência visando o fim da vida humana (87).
Uma objeção muitas vezes levantada contra essa posição aponta que, nesse sentido, a
lei natural é estática, imutável, incapaz de desenvolver-se e adaptar-se às mudanças de
circunstâncias. A lei natural é imutável? Alguém pode questionar-se se o homem pode
perder o conhecimento de alguns de seus preceitos. Em relação aos primeiros
princípios, Aquino nega a hipótese, embora ocorra, ele escreve, que pessoas vendadas
por certas paixões não consigam voltar-se a um princípio geral (88). Do mesmo modo,
princípios segundos podem ser apagados por opiniões erradas ou pela perversão dos
costumes dominantes na sociedade (89). Nos países do ocidente moderno existem
opiniões erradas que, em certa extensão, obscurecem o pensamento moral, como
claramente se vê nas discussões sobre a vida do nascituro, dos pacientes terminais, da
prática homossexual: pensamentos que se desviam radicalmente da moral do século
passado. No entanto, eu penso que, a respeito dessas formas de comportamento, a
maioria das pessoas está ciente de estar transgredindo a lei natural, uma vez que estes
maioria das pessoas está ciente de estar transgredindo a lei natural, uma vez que estes
atos se referem aos princípios primeiros.
Talvez seja útil pensar sobre a aplicação da doutrina da lei natural com respeito à
contracepção, um tipo de teste ácido para ver se um apelo à nossa natureza tem
qualquer valor neste campo. Quando há mais de 30 anos Paulo VI organizou uma
comissão especial para estudar a moralidade da contracepção, a maioria de seus
membros concluiu que eles não poderiam convincentemente demonstrar, com base na
lei natural, o mal moral intrínseco dessa prática. Vale a pena tratar dessa questão por
conta de seu valor exemplificativo para o entendimento da lei natural.
Uma fonte de confusão a esse respeito é a falsa visão sobre a natureza humana. Pode
parecer inacreditável, muitas pessoas acolhem uma abordagem dualista para a
antropologia. Eles distinguem duas camadas no homem: de um lado a parte biológica e
animal, e do outro a esfera da autoconsciência humana. Ao invés dos processos e
mecanismos biológicos que, dizem eles, nunca têm valor absoluto, deve-se dar total
prioridade ao homem como pessoa, aos seus desejos e aspirações (90). Na visão deles,
devemos atribuir ao homem um poder maior sobre seu próprio corpo para que ele
possa, depois, determinar o signi cado de sua vida sexual, de forma não muito
diferente daquela com que ele molda o mundo físico. De acordo com esses autores, é
menos natural submeter-se à própria estrutura biológica do que intervir com a razão
para moldar essas funções e torná-las melhor adaptáveis à busca de certos bens
específicos.
Quanto a isso, respondemos que a questão não gira em torno de uma cega submissão
às estruturas biológicas, mas à lei humana. A lei natural não é uma série de princípios
às estruturas biológicas, mas à lei humana. A lei natural não é uma série de princípios
biológicos. Ela consiste no discernimento e no comando da razão, que nos diz, em um
campo particular, se devemos agir de determinada maneira ou deixar de praticar
determinada ação. Certas ações não encontram aplicação na lei natural, como — pelo
menos ordinariamente — a escolha de um trabalho, mas a lei natural de nitivamente se
aplica ao campo dos atos sexuais, devido à sua importância essencial na vida humana,
assim como sua signi cância biológica e psicológica. Isso signi ca que as pessoas
entendem e formulam alguns de seus deveres básicos considerando o uso de suas
funções sexuais. Por exemplo, eles sabem que suas faculdades sexuais lhes foram
dadas para assegurar a existência contínua da humanidade; eles sabem que são
responsáveis pela sua prole e devem tomar conta dela. Eles também sabem que devem
formar um laço estável com um parceiro em confiança e estima mútuas.
Por sua própria natureza, a livre escolha sexual nunca é incidental ou casual, nem
puramente biológica. Em razão do que ela é, existe a tendência de engajamento de toda
a psiqué e responsabilidade moral de alguém. Precisamente porque a união do coito
não é mero instrumento ou qualquer coisa irrelevante, mas algo intrinsecamente
humano, ela tem um signi cado próprio. Quem frustra ou neutraliza uma ou outra de
suas funções essenciais, insere uma contradição no próprio agir. Se é errado dizer uma
mentira porque ela contradiz o propósito do discurso e porque a con ança mútua deve
reinar entre as pessoas, contradizer a própria estrutura da união do coito é muito pior,
porque algo muito mais importante está em jogo: atos profundamente humanos que
dizem respeito à sobrevivência da humanidade e ao indivíduo como ser racional.
Ninguém pode deixar de lado o m natural desses atos sem contradizer a si mesmo
(91).
V – Algumas conclusões
A discussão sobre a existência e o signi cado da lei natural está longe de terminar.
Nossas sociedades são confrontadas com di culdades formidáveis quando devem
decidir por rejeitar ou aceitar certas formas de comportamento como aborto, eutanásia,
homossexualidade, recusa ao serviço militar, globalização da economia,
desaparecimento de estruturas regionais e nacionais em prol de estruturas políticas
mais abrangentes, experimentos com embriões humanos, pena de morte, esterilização
e, às vezes, problemas aparentemente inofensivos como a mendicância. É verdade que
comportamentos privados, enquanto não interferirem na vida comunitária, devem ser
ignorados pelo legislador?
1) Até pouco tempo, a maioria dos julgamentos morais aceitáveis era sobrevivente da
ética cristã. Mas agora as pessoas preferem discordar em princípios básicos — pelo
menos um grupo aclamado da intelligentsia e os representantes da mídia tentam
direcionar a opinião pública para a aceitação de uma vida pública totalmente neutra,
que tolera qualquer forma de comportamento privado enquanto terceiros não
sofrerem violência. Atrás dessa atitude existe uma visão diferente da vida e da pessoa
humana, considerada totalmente livre para fazer o que bem entender enquanto não
humana, considerada totalmente livre para fazer o que bem entender enquanto não
causar danos a outrem. Ela também pode dispor livremente de seu corpo, uma vez há
certa dicotomia entre corpo e mente. Enquanto o formato externo da vida em
desenvolvimento não é reconhecível como a de um ser-humano, o embrião/feto é
considerado material com valor biológico para propósitos “nobres” como ajudar alguém.
Está muito enfraquecida a idéia de que a vida humana é dádiva de Deus a ser respeitada
e jamais utilizada à livre disposição dos outros. Mas isto também se aplica à totalidade
da natureza, que, nessa era tecnológica, parece ter perdido, aos olhos de muitos, sua
referência ao Criador. Entretanto, começam a surgir as consequências desse liberalismo
referente à vida e ao valor da pessoa humana: di culdades crescentes no campo da
educação, envelhecimento da população, desaparecimento do respeito e de certos
padrões de decência, tendências de certos grupos para denegrir a fé e a moral cristã.
Surpreendentemente, em outros campos, como o da justiça, a tendência está para o
lado da aplicação estrita de normas de honestidade pública. Exemplos impressionantes
da aplicação de éticas naturais são o reconhecimento dos direitos humanos, a proteção
às minorias e a total condenação ao genocídio.
Nesse sentido, a ética da lei natural tem a importante tarefa de esclarecer as bases
desses direitos, defini-los com cada vez mais precisão, distinguir entre direitos e pseudo-
direitos e mostrar quais são os deveres correspondentes a eles. A implementação dos
direitos humanos também depende do estado de organização e desenvolvimento da
sociedade, bem como do funcionamento dos seus órgãos. Há uns duzentos anos, não
faria muito sentido reivindicar ao Governo dos Estados Unidos o direito a um trabalho
ou a uma educação adequada. Esta espécie de direitos era geralmente provida pela
comunidade local.
Aparentemente, a questão de quem deve honrar com esses direitos não é sempre fácil
de responder. Não é, por exemplo, tão claro dizer se é o Estado, que clama para si essa
autoridade, que deve prover, entre outras muitas tarefas no campo social, educação aos
jovens. Ademais, o exercício de certos direitos, como o direito a expressar as próprias
opiniões ou realizar certos atos, sempre exige respeito aos direitos das outras pessoas e
aos requisitos do bem comum. De fato, viver em uma sociedade política requer a
adoção de uma boa parte das ideias implícitas de seus membros.
(1) São universais e aplicáveis a todos os homens. Este axioma é baseado no fato de que
todos dividimos a mesma natureza humana (96). (2) Devem ser imediatamente
evidentes, porque são derivados dos primeiros princípios da lei natural (97). (3) São
imutáveis e não podem ser totalmente eliminados da vida consciente (98).
Houve uma época em que certos direitos humanos hoje amplamente reconhecidos,
pelo menos no mundo ocidental, não tinham este reconhecimento, como os direitos dos
pelo menos no mundo ocidental, não tinham este reconhecimento, como os direitos dos
trabalhadores, das mulheres, das minorias étnicas etc. Isso levanta a questão sobre a
mutabilidade da lei natural, tratada por Aquino nos artigos 3 a 6, Ia-IIae, q. 94. Aquino
estava bastante ciente do que em geral é mutável na vida humana. Também ocorre que
as conclusões por vezes tiradas de certos direitos humanos tornam-se absurdas ou
erradas. Por exemplo, do direito à livre expressão alguns concluem que a mídia pode,
de forma desimpedida, publicar o que quiser e usar todo e qualquer meio para acessar
— visando o lucro — aquilo que repórteres e editores consideram importante.
Obviamente, isto deveria ser revisado através dos princípios da lei natural, como o
direito à honra e à privacidade, assim como o direito de não ser ofendido por razões de
crença religiosa.
4) Outro problema que precisa da assistência da ética da lei natural é a relação entre o
indivíduo e o Estado, ou a relação entre países e estruturas políticas protecionistas,
como a União Européia. A esse respeito, a ética da lei natural estabelece o seguinte
princípio: o que nações, grupos, ou indivíduos podem fazer sozinhos, não deve ser
regulado pelo Estado ou outras estruturas que o compreendam. O Estado não deveria
se apropriar das iniciativas dos cidadãos individuais, mas restringir suas intervenções a
nível subsidiário, como oferecer ajuda quando for necessário (99). A pessoa individual
deve decidir o que ela mesmo pode fazer. A dignidade da pessoa humana exige que se
conduza a própria vida e se determine o próprio lugar na sociedade. O princípio da
subsidiariedade protege o bem do indivíduo (101).
1. Cf. F. Heinimann, Nomos and Physis. Herkunft und Bedeutung einer Antithese im
griechischen Denken des 5. Jahrhunderts, Basel 1945; M. Pohlenz, “Nomos and
Physis”, in Hermes, 1953, 418-438.
9. De testimonio animæ ,V, 1-2.: “Magistra natura, anima discipula est. Quidquid aut
illa edocuit aut ista perdidicit. a Deo traditum est, magistro scilicet ipsius
magistrae… Senti illam, quae ut sentias efficit”.
10. De cuktu feminarum, I., 8, 2. Cf. M. Spanneut, Tertullien et les premiers moralistes
chrétiens, Gembloux / Paris 1969.
11. Op. cit.,, II, 5, 4: “Quod nascitur opus Dei est. Ergo quod in ngitur, diaboli
negotium est”.
12. De habitu virginum, 11.
16. Cf. G. Madec, Saint Ambroise et la philosophie, Paris 1974, p. 175: “Ambroise
semble avoir été doué d’une aptitude extra-ordinaire et déconcertante à vider
les formules de leur substance, pour se les approprier dans le sens qui lui
convenait ou qu’il estimait vrai. Or, il s’agit là d’un processus de substitution et
non pas de synthèse”.
17. De officiis ministrorum, I 28.
18. See E. Gilson, Introduction à l’étude de saint Augustin3, p. 167; cf. Contra Faustum
manich. XXII, 27.
19. Enarr. in Ps. 51, 1; Enarr. in Ps. 118, 25, 4; Enarr. in Ps. 145, 5: “Consilium sibi ex
luce Dei dat ipsa anima per rationalem mentem, unde concipit consilium xum
in æternitate auctoris sui… Legit ibi quiddam tremendum, laudandum,
amandum, desiderandum et appetendum”.
20. De libero arbitrio II, 16, 41: “… et in te ipsum redeas atque intelligas te id quod
attingis sensibus corp[oris, p[robare aut improbare non posse, nisi apud te
habeas quasdam pulchritudinis leges, ad quas referas quæque pulchra sentis
exterius”.
21. Cf. Th. Deman, Le traitement scienti que de la morale chrétienne selon saint
Augustin, Montréal 1957, p. 21.
22. De bono viduitatis, 1, 2: “Quid ego amplius te doceam quam id quod apud
Apostolum legimus? Sancta enim Scriptura nostræ doctrinæ regulam figit”.
26. Retract., I, 10, 3: “Naturam qualis sine vitio primitus condta erat, – ipsa enim ver
et proprie natura hominis dicitur”.
27. Cf. I-II 85, 1: “Primum bonum naturæ nec trollitur nec diminuitur per peccatum”.
28. De civ. Dei, XXI, 8, 2: “…cum voluntas tanti utique Conditoris conditæ rei cuiusque
natura sit”.
36. Em seu Scriptum super libros Sententiarum, Tomás atribui o dito a Aristóteles, e
em escritos posteriores aos “ lósofos”. Ver De veritate, q.5, a.2 etc. A expressão
provavelmente foi cunhada no início do século XIII.
54. No homem, diz Tomás, a lei natural não é nada além de uma participação na Lei
Eterna de Deus. Cf. I-II 91, 2: “Et talis participatio legis æternæ in rationali
creatura lex naturalis dicitur”.
55. Ver Ph. Delhaye, Permanence du droit naturel, Louvain/Lille/Montréal, 1960
(Analecta Namurensia, 10).
56. Summa contra gentiles, III, ch. 129.
57. II-II 65, 1. O princípio também se aplica à execução de um criminoso de alta
periculosidade. (II-II 64, 2).
76. I-II 94, 4. Cf. J. Maritain, On the Philosophy of History, pp. 82-83.
77. I-II 194, 5.
78. I, 105, 6 ad 1: “Cum igitur naturalis ordo sit a Deo rebus inditus, si quid præter
hunc ordinem facial, non est contra naturam. Unde Augustinus dicit, XXVI Contra
Faustum, c. 3 quod “id est cuique rei naturalis, quod ille fecerit a quo est omnis
modus, numerus et ordo naturæ”. Cf. Q.d. de potentia, q. 1, a. 3 ad 1.
79. Donum vitae. � 3.
80. Veritatis splendor, � 51.
102. Cf. A. Giddens, Konsequenzen der Moderne, Frankfurt a. Main 1995, 86.
102. Cf. A. Giddens, Konsequenzen der Moderne, Frankfurt a. Main 1995, 86.
[2]
No parágrafo anterior, o autor prometeu distinguir o direito natural da lei natural.
Aqui, ele procede à distinção explicando o uso das palavras “Right” e “Just”. É que a
língua inglesa trata diferentemente do português os termos relacionados ao Direito e à
justiça. Em português, as duas palavras signi cam “justo”. “Right”, em tradução literal,
signi ca “direito”, como em “direitos humanos”, mas o leitor da língua de Camões deve
ler “justo”: uma ação “direita” é uma ação “justa”. Também poderíamos usar os
vocábulos “ajustado” ou “reto”, como em “agir retamente”, mas preferimos esclarecer o
embaraço idiomático através desta nota ao invés de confundir os leitores de Santo
Tomás, que certamente serão ensinados pelo Doutor que a justiça visa o justo, o direito
(ius) e que entre duas pessoas existem relações justas (iustus, ou iustum). (N. T.)
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