Documentos de Académico
Documentos de Profesional
Documentos de Cultura
(PLATÃO. O Sofista. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: UFPA, 1980, p. 92)
Ao longo da história das idéias, muitas noções foram substituídas sem serem antes
superadas de fato. O que signi ca que muitas coisas se perderam ao longo do tempo,
pois foram descartadas pela mera eliminação física, a despeito da contribuição que
poderiam oferecer. Dessa forma, se uma noção é esquecida, não precisa ser mais
considerada relevante, o que leva à consagração de visões e valores outros apenas por
sua atualidade e presença massiva e dominante nos meios de divulgação e formação.
Eis aí o processo pelo qual surgem os modismos, pela lógica econômica, e o controle da
cultura, pela imposição política.
Segundo Jacques Barzun, em “Culture High and Dry”, capítulo primoroso que abre The
Culture We Deserve, a cultura deixou de ser o conceito que abrangia o que de maior
havia nas realizações intelectuais e espirituais de todas as épocas para tornar-se o
conceito dos hábitos e comportamentos.
Uma dialética viciosa em que, quanto menos o indivíduo sabe, mais incapaz se torna de
Uma dialética viciosa em que, quanto menos o indivíduo sabe, mais incapaz se torna de
perceber que sabe menos. E assim o passado, a antiga cultura, se torna cada vez mais
etéreo, inconcebível e desprezado como mera curiosidade histórica sem valor
intrínseco, mas ultrapassado e dado por superado pelo progresso do conhecimento.
Dentre outros exemplos, a prova contou com cerca de dez perguntas de caráter
explicitamente feminista; poetas brasileiros desconhecidos, porém ideologicamente
engajados, nas questões de Literatura; e uma questão problematizando,
coincidentemente, o sociólogo Gilberto Freyre. Com direito ainda à Carta Capital como
texto-base; “Dicionário Aurélia” da “língua Pajubá” para comunicação de travestis;
Eduardo Galeano e As veias abertas da América Latina; incesto intergeracional entre “avó”
e “tia”; comparação viciada e despropositada entre “Estado liberal burguês”
(supostamente, o Brasil) e “tribos” (sem mencionar qual, como se fossem todas iguais) e
toda sorte de questões ideologicamente enviesadas sem qualquer disfarce.
Mais do que denúncias indignadas e uma revolta pouco articulada contra a “doutrinação
ideológica”, o con ito em torno das questões do ENEM suscita novamente um antigo
debate: o de é qual é o papel da Educação e quais são os limites de ação do Estado na
formação de indivíduos.
Com a limitação do ensino à formação técnica das ciências ditas naturais e à aculturação
formal pelo conteúdo programático de humanidades, um movimento de contestação
cada vez mais consistente foi ganhando musculatura nos corredores de departamentos
e de órgãos de Educação: o de interferência na formação “crítica” e “humana” cada vez
mais acentuada.
Assim, os grandes temas, acessíveis e universalmente válidos para todos, foram pouco a
pouco sendo deixados de lado e substituídos por questões cada vez mais individuais e
identitárias, fragmentadas e acessíveis por experiência direta somente a umas quantas
minorias selecionadas — às quais todos os outros deveriam se submeter
minorias selecionadas — às quais todos os outros deveriam se submeter
obedientemente. O processo de ensino e instrução conquista agora novamente a
autoridade de “formação humana”, cujos parâmetros são bem outros e já vem pré-
estabelecidos e impostos desde antes pelo Estado, independentemente do professor
responsável.
Ora, se todas as universidades aceitam a mesma prova como critério de seleção, todas
as escolas buscam treinar seus alunos para um único teste. Ao passo que todas as
universidades passam a quali car seus professores para lecionar segundo esse mesmo
teste. Quando o ciclo se completa, gerações inteiras estão formadas de ponta a ponta
dentro de um esquema ideológico e de uma lógica institucional bem ao gosto dos
engenheiros sociais.
São vários os pensadores cujas idéias ensejaram esse estado de coisas. Cada um, à sua
maneira, contribuiu para o terremoto que viria a pôr abaixo os pilares da educação
“tradicional”. Sobre as ruínas e resquícios de um mundo antigo que deveria ser
continuamente dilapidado e superado, as publicações de autores como Antonio
Gramsci, Michel Foucault e Pierre Bourdieu multiplicaram- se ao sabor do vento e
polinizaram corações e mentes na primavera das cátedras.
Não importa quão dramática ou atraente uma visão particular pareça, o fato é
que todos nós somos obrigados, fundamentalmente, a viver no mundo da
realidade. Quando a realidade é manipulada para se encaixar numa visão
particular, essa informação manipulada se torna um instrumento inapropriado
para tomar decisões numa realidade que não perdoa nossas fantasias; por isso,
devemos todos nos ajustar à realidade, pois ela não se ajustará a nós (Thomas
Sowell. Os Intelectuais e a Sociedade. São Paulo: É Realizações, 2011, p.246)
Para o lósofo, o discurso é a mola mestra das forças que determinam o que pode ser
“conhecido” ou não, já que em diferentes períodos e lugares, diferentes organizações
institucionais controlaram o poder por meio do discurso. Dessa forma, o conhecimento
para ele era tido como um resultado do poder, e não o contrário, pois “em qualquer
cultura, em qualquer período, há sempre uma única ‘episteme’ que de ne as condições
de possibilidades de todo conhecimento, seja ele expresso como teoria ou
silenciosamente aplicado na prática” (The Order of Things: An Archaeology of the Human
Sciences, Londres/Nova York: Routledge, 2011, p.183).
A disputa então não é pela verdade, para que esta oriente a sociedade; mas pelo
controle em si, para que este estabeleça o discurso válido, a narrativa oficial.
Assim, diante de qualquer discurso, ou ação, não interessa saber sua veracidade ou
validade, suas consequências e intenções reais, e sim que lado das relações de poder ele
favorece: o dos “opressores” ou “oprimidos”. Você pode ser bilionário, mas, se for
adepto do discurso (não precisa nem praticar) que favoreça o lado mais fraco da
disputa, tudo bem – se for você mesmo um membro da minoria em questão, tanto
melhor.
Fantasma que vaga silencioso aos olhos do grande público não especializado, Michel
Foucault é a força vital que dá o tom e a forma de certa elite pensante e falante
brasileira. Se suas idéias já não se apresentam explicitamente na boca de seus porta-
vozes, é porque o rompimento com o passado é a dedução lógica incontornável do
ânimo que sua loso a instilou profundamente na mentalidade predominante nos
órgãos e instituições e de educação por todo o país: a práxis revolucionária embalada
pela teoria das micro-opressões que transforma a tudo e todos em parte de um jogo de
poder incessante. Nesse sentido, é perfeitamente possível encontrar professores,
pedagogos e jornalistas rigorosamente foucaultianos, embora dele não conheçam mais
do que o nome, mas re itam seu pensamento seja em análises de discurso de padrões
de beleza em propaganda de maquiagem, seja na fila do pão.
Pierre Bourdieu (A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007) a rma
que parte desse processo de imposição de discursos ocorre dentro de “estruturas de
legitimação”, onde se realizam a “produção, reprodução e difusão de bens simbólicos”.
Para o sociólogo, há níveis de diferenciação nas instâncias que interagem dentro das
estruturas. Dessa forma, a produção erudita tem diferentes objetivos e processo de
legitimação em relação à indústria cultural de bens simbólicos.
Esta inclui (1) “relações objetivas entre os produtores de bens simbólicos”; (2) “relações
objetivas entre os produtores e as diferentes instâncias de legitimação”, as academias,
os museus, os círculos eruditos e o sistema de ensino, por exemplo; (3) “a cooptação por
instâncias mais ou menos institucionalizadas”, como os círculos de críticos, salões,
grupos mais ou menos reconhecidos, organizados em uma editora, uma revista, um
grupos mais ou menos reconhecidos, organizados em uma editora, uma revista, um
jornal, um think tank; e (4) “relações objetivas entre estas diferentes instâncias de
legitimação, de nidas tanto em seu funcionamento como em sua função”, que
dependerão do caráter “conservador”(p.118) ou contestador, tradicional ou
contracultural, de massa ou erudito, de suas relações de poder em relação aos meios
(quando já não são elas próprias os meios), público consumidor, capital, etc. Ou seja,
dependerão de seu ethos e sua rede de influências.
Sendo assim, em O Poder Simbólico (Lisboa: DIFEL, 1989), o sociólogo divide esse grande
sistema em (1) “estruturas estruturantes”, os instrumentos de conhecimento e de
construção do mundo objetivo, que tem na “objetividade” o recurso de concordância
(consenso) dos indivíduos;
(2) “estruturas estruturadas”, meios de comunicação, língua, cultura, discurso, que têm
que na pretensa “objetividade da interação” a condição básica da comunicação; e (3)
“instrumentos de dominação” – poder, divisão de classes, dominação, divisão social e
ideológica do trabalho (manual e intelectual), reforçadas pelas instituições em
concorrência pelo monopólio da produção cultural legítima” (p.16).
Em A reprodução: Elementos para uma Teoria do Sistema de Ensino (3.ed. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1992), a grande dinâmica das estruturas de legitimação e construção
simbólica é analisada ad hoc no sistema de ensino francês. Segundo ele, na educação as
estruturas são então utilizadas para dominação mediante uma sutil interação
denominada “violência simbólica”.
O conceito visa descrever a “violência que extorque submissão não percebida como tal,
baseada em ‘expectativas coletivas’ ou crenças socialmente inculcadas”. Neste sentido, a
escola é o prolongamento dos instrumentos de dominação, determinante das
desigualdades sociais, e máquina de reprodução em série do status quo. Um conjunto de
concepções inoculado diariamente por meio da violência simbólica nas mentes de
alunos cativos, de tal modo que essas concepções e a relação de poder que as favorece,
permaneçam invisíveis, tanto mais efetivas quanto menos identi cáveis. Note-se que a
teoria de Bourdieu gira em torno da inconsciência coletiva das relações de poder, que
visam a “reprodução” da ordem permanente, da qual só ele próprio, obviamente, se deu
visam a “reprodução” da ordem permanente, da qual só ele próprio, obviamente, se deu
conta. O trecho a seguir, resume bem a questão:
não é inútil lembrar que (…) é necessário saber descobri-lo [o poder] onde ele se
deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto,
reconhecido [aceito]: o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual
só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que
lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem (O Poder Simbólico. Lisboa: DIFEL,
1989, p.8-9).
Sob essa visão, Gramsci parece se antecipar a Bourdieu. De modo que, ocupando as
instâncias – as quais ele reconhecia como pontes de transmissão de bens simbólicos –
por parte de membros do Estado, bem como submetendo-as à administração o cial,
garantiria a formação de gerações de indivíduos sob a égide da cultura nacional, de
dado território, seja qual ele for, e identidade coletiva, denominada por ele de
“hegemonia”:
“hegemonia”:
além da escola, nos vários níveis, que outros serviços não podem ser deixados à
iniciativa privada, mas — numa sociedade moderna — devem ser assegurados
pelo Estado e pelas entidades locais (…)? O teatro, as bibliotecas, os museus de
vários tipos, as pinacotecas, os jardins zoológicos, os hortos orestais etc. É
preciso fazer uma lista de instituições que devem ser consideradas de utilidade
para a instrução e a cultura públicas e que são consideradas como tais numa
série de Estados, instituições que não poderiam ser acessíveis ao grande público
(…) sem uma intervenção estatal (p.152).
Como peixinhos no aquário, essas gerações têm então a impressão de que a totalidade
do universo se resume ao seu cubículo cultural e que outro mundo jamais existiu ou
existirá.
Como as escolas públicas são frequentadas mormente por classes mais baixas, a
pobreza acaba por se perpetuar, já que a grande maioria não se forma nem se instrui
apropriadamente e perpetua a sua pobreza. Ao passo que as escolas privadas,
frequentadas por classes mais abastadas e menos suscetíveis aos arroubos ideológicos
– devido à administração empresarial que as nancia e à necessidade de algum sucesso
que garanta as matrículas no ano seguinte – seguem progredindo, o que acentua a
desigualdade.
Que os idealizadores do projeto e seus seguidores sejam uns dos autores mais citados
pela inteligência e pela bibliogra a nacional, e que seus signatários achem que o
simples apontamento objetivo das fontes primárias disso tudo seja o absurdo dos
absurdos, é nada menos que motivo de riso e sinal de um dos maiores casos de
amnésia e inconsciência coletiva da história humana.
(Bruno Tolentino. “O Mago da Caverna”. In: O Mundo Como Idéia. Rio de Janeiro:
Globo, 2001, p.125)
No entanto, não era necessário que tanto tempo se passasse para que os primeiros
sinais de incômodo surgissem. Em 1995, um diagnóstico do mesmíssimo fenômeno, que
se desenvolvia no Estados Unidos, desembarcava no Brasil. Em A Rebelião das Elites e a
Traição da Democracia (Rio de Janeiro: Ediouro), Christopher Lasch identi cou e
descreveu aquele que viria a ser, talvez, o traço distintivo das elites falantes e atuantes
das últimas décadas: seu descolamento da realidade e seu afastamento cada vez maior
dos anseios das massas.
No livro, o autor argumenta que a democracia estava ameaçada pelas elites, que
engendravam ações com perspectivas cada vez mais globais, recusando-se a aceitar
limites ou vínculos com nações ou lugares.
Cada vez mais isoladas em redes de interproteção auto-su cientes, elas foram
abandonando pouco a pouco a classe média, dividindo a população sob novas
categorias socialmente arti ciais e consequentemente colocando em xeque a existência
de uma democracia plena na América. Um dos pilares dessa longa marcha pelas
instituições foi a substituição gradual do ideal da “meritocracia” pelo ideal “democrático”.
O que para os americanos signi cou o abandono e a transformação da velha cultura
pragmática, calcada na razão prática, para um raciocínio cada vez mais plebiscitário,
politizado e paralisante.
O argumento de Lasch era o de que todos estes hábitos mentais eram os que melhor
caracterizavam as camadas mais altas da sociedade, pois “qualquer idéia de que as
massas possam estar na crista da onda da história há muito já se desfez”. Todos os
movimentos radicais que haviam desa ado o establishment falharam, e não havia
“sucessores surgindo no horizonte” (p.39).
Qualquer semelhança entre o fenômeno descrito por Lasch e o caso brasileiro não é
mera coincidência. Instrumentalizar ideologicamente a educação nacional, impondo de
cima para baixo um projeto sob a justi cativa de desconstruir um sistema de formação
pro ssionalizante e reprodução de preconceitos, economicista e conservador, foi
apenas mais um capítulo na sucessão de fracassos que é a história das idéias brasileira.
Uma educação que se quer crítica deve, no mínimo, aceitar objeções e contestações de
seus alunos e fornecer-lhes uma variedade de correntes de pensamento ampla o
su ciente para que desenvolvam, aí sim, um pensamento crítico baseado no confronto
de hipóteses. Caso contrário, a autoproclamada consciência crítica é apenas um verniz
retórico para quem, por baixo da propaganda de liberdade de consciência e combate à
alienação e à opressão, deseja simplesmente destilar na inteligência de jovens ingênuos
um projeto político.
Para um país cuja intelectualidade fala dia-e-noite em “dialética”, e tem em alta conta
pensadores eminentes como Karl Marx, é espantoso, para não dizer constrangedor, que
nenhum de seus representantes consiga compreender a situação atual. Pessoas que
vivem de estudar e ensinar, mas não aprenderam uma lição básica de Hegel: toda idéia
que entra na ordem da realidade se transforma no seu contrário.
Após décadas subjugando as massas a seus caprichos pessoais, era óbvio que em
algum momento os ideais de uma elite encastelada na sala de comando administrativo
e cátedras de ensino se tornariam a ordem do dia, deixando de ser a grande tábua de
salvação dos oprimidos e se tornando o instrumento mesmo de opressão. Nesse
sentido, o projeto Escola Sem Partido é o grito de desespero derradeiro de famílias e
alunos que passaram anos silenciados sem meios de ação.
Compartilhe isso:
2K+
Relacionado
Ótimo artigo, muito completo, e muito feliz na explanação sobre a tríade que
deu base à degeneração atual. Parabéns ao autor e à CoA por disponibilizar
um material tão rico!
Excelente!!!
Mephistópheles diz:
12 de março de 2019 às 14:26
Do caralho!
COMENTÁRIO
NOME *
E-MAIL *
SITE
PUBLICAR COMENTÁRIO
This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.
Stay Connected
Categorias
Ensaios
Filosofia
Resenhas
Vídeos
Recent Posts
Digite seu endereço de e-mail para assinar este blog e receber notificações de novas publicações por
e-mail.
Endereço de e-mail
ASSINAR
Calendar Archive
abril 2019
D S T Q Q S S
1 2 3 4 5 6
7 8 9 10 11 12 13
14 15 16 17 18 19 20
21 22 23 24 25 26 27
28 29 30
« MAR
Filosofia da Religião
Filosofia Geral
Filosofia Política
História da Filosofia
Lógica
Metafísica
Espiritualidade
Siga-nos
Administradores
Ricardo Roveran
Lazaro Macedo
Vitor Matias
Parceiros