Está en la página 1de 22

Amnésia e Inconsciência – A Rebelião das


Elites e a Traição da Educação Brasileira

Por Laio Brandão

Estrangeiro — O mais radical processo para acabar com qualquer espécie de


discurso é isolar cada coisa do seu conjunto, pois o discurso só nos surge pronto
pelo entrelaçamento recíproco das partes.

Teeteto — É a pura verdade.

(PLATÃO. O Sofista. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: UFPA, 1980, p. 92)

Um dos traços marcantes de sociedades cultural e intelectualmente saudáveis, o senso


das proporções na distinção entre o popular e o erudito, entre o modesto e o elevado, é
o que permite que os indivíduos con ram sentido e função às diferentes formas de
expressão que apreciam e “consomem”. Consciente da régua de julgamento que se
estende desde o mais abundante ao mais raro, em termos quantitativos, e do mais
trivial ao mais virtuoso, em qualitativos, o aprendiz ou, em termo moderno, consumidor,
pode distinguir criticamente o valor de seu objeto de apreciação ou aprendizagem
conforme o seu interesse subjetivo e o valor mais ou menos objetivo do conteúdo. Isso
conforme o seu interesse subjetivo e o valor mais ou menos objetivo do conteúdo. Isso
evita que o espectador confunda suas predileções puramente individuais com obras e
produtos que possuem luz própria, independentemente do gosto do observador.

Ao longo da história das idéias, muitas noções foram substituídas sem serem antes
superadas de fato. O que signi ca que muitas coisas se perderam ao longo do tempo,
pois foram descartadas pela mera eliminação física, a despeito da contribuição que
poderiam oferecer. Dessa forma, se uma noção é esquecida, não precisa ser mais
considerada relevante, o que leva à consagração de visões e valores outros apenas por
sua atualidade e presença massiva e dominante nos meios de divulgação e formação.
Eis aí o processo pelo qual surgem os modismos, pela lógica econômica, e o controle da
cultura, pela imposição política.

Segundo Jacques Barzun, em “Culture High and Dry”, capítulo primoroso que abre The
Culture We Deserve, a cultura deixou de ser o conceito que abrangia o que de maior
havia nas realizações intelectuais e espirituais de todas as épocas para tornar-se o
conceito dos hábitos e comportamentos.

A educação básica e superior consistia justamente na transmissão desse legado de


realizações. O estudante era convidado a mergulhar nesse universo, experimentá-lo,
discuti-lo, compreendê-lo. Os aprendizes passavam por um processo de aculturação e
recebiam e absorviam o que melhor a humanidade podia lhe disponibilizar.

A “sociologização” da cultura atomizou em mil partes o antigo conceito de cultura,


tornando-o qualquer coisa que fosse da preferência de qualquer pessoa. Um
testemunho de um determinado grupo. A educação moderna, junto à nova noção
sociológica de cultura, reduziu essa experimentação ao currículo obrigatório, em que o
indivíduo consulta um material e faz testes para comprovar que entendeu o que
consultou.

A impessoalidade anulou toda potencialidade do conteúdo das disciplinas,


transformando-as em compêndios e coleções de fontes críticas com informações
técnicas (muitas vezes impostas por um método arbitrário), que ou não exaltam o que
de melhor a disciplina poderia dar aos alunos, ou não lhes fazem desenvolver um
interesse profundo pelo assunto como objetivo em si mesmo, digno de interesse puro
para seu próprio aperfeiçoamento. Digno de cultivo.

O que levou à esterilização e à morte parcial do tecido que integra o passado ao


presente e ao estreitamento do horizonte de consciência por boa parte não só do
grande público, mas também das elites e autoridades. Nesse contexto, a continuação
consciente de uma tradição possível se torna um desa o, pois a perda das capacidades
de compreensão do passado leva também à incapacidade de se conscientizar dessa
perda.

Uma dialética viciosa em que, quanto menos o indivíduo sabe, mais incapaz se torna de
Uma dialética viciosa em que, quanto menos o indivíduo sabe, mais incapaz se torna de
perceber que sabe menos. E assim o passado, a antiga cultura, se torna cada vez mais
etéreo, inconcebível e desprezado como mera curiosidade histórica sem valor
intrínseco, mas ultrapassado e dado por superado pelo progresso do conhecimento.

O escândalo do público quanto ao conteúdo da primeira prova do ENEM, no dia


04/11/18, demonstra, entretanto, que nada na história é irreversível e que, por mais que
a sucessão meteórica de idéias e valores sufoquem o passado, tradicional ou não, algo
se conserva na memória das gentes.

Dentre outros exemplos, a prova contou com cerca de dez perguntas de caráter
explicitamente feminista; poetas brasileiros desconhecidos, porém ideologicamente
engajados, nas questões de Literatura; e uma questão problematizando,
coincidentemente, o sociólogo Gilberto Freyre. Com direito ainda à Carta Capital como
texto-base; “Dicionário Aurélia” da “língua Pajubá” para comunicação de travestis;
Eduardo Galeano e As veias abertas da América Latina; incesto intergeracional entre “avó”
e “tia”; comparação viciada e despropositada entre “Estado liberal burguês”
(supostamente, o Brasil) e “tribos” (sem mencionar qual, como se fossem todas iguais) e
toda sorte de questões ideologicamente enviesadas sem qualquer disfarce.

Mais do que denúncias indignadas e uma revolta pouco articulada contra a “doutrinação
ideológica”, o con ito em torno das questões do ENEM suscita novamente um antigo
debate: o de é qual é o papel da Educação e quais são os limites de ação do Estado na
formação de indivíduos.

Com a limitação do ensino à formação técnica das ciências ditas naturais e à aculturação
formal pelo conteúdo programático de humanidades, um movimento de contestação
cada vez mais consistente foi ganhando musculatura nos corredores de departamentos
e de órgãos de Educação: o de interferência na formação “crítica” e “humana” cada vez
mais acentuada.

Com a contínua transferência de responsabilidades para o Estado, que avançava tanto


mais as reivindicações e idéias ganhavam espaço, a capacidade de manipulação e
submissão ideológica das instituições de ensino aumentaram formidavelmente. O
constante esvaziamento da autoridade familiar e a transferência de atribuições ao
governo fortaleceram cada vez mais a interferência estatal em assuntos considerados
ora secundários, ora subjetivos; determinando não só a obrigatoriedade da abordagem
desses assuntos, mas também o modo como deveriam ser abordados e a conclusão
obrigatória decorrente dessa abordagem. O que na prática resulta sempre na
estimulação fratricida do conflito de classes, sexos e etnias.

Assim, os grandes temas, acessíveis e universalmente válidos para todos, foram pouco a
pouco sendo deixados de lado e substituídos por questões cada vez mais individuais e
identitárias, fragmentadas e acessíveis por experiência direta somente a umas quantas
minorias selecionadas — às quais todos os outros deveriam se submeter
minorias selecionadas — às quais todos os outros deveriam se submeter
obedientemente. O processo de ensino e instrução conquista agora novamente a
autoridade de “formação humana”, cujos parâmetros são bem outros e já vem pré-
estabelecidos e impostos desde antes pelo Estado, independentemente do professor
responsável.

O leitor deve se perguntar: o que é o poder de controlar o que milhões de pessoas


podem aprender, pensar e escrever? Pois é exatamente o que o governo faz por meio
do MEC. E o ENEM é o exemplo explícito dessa centralização cultural. Só em 2018, foram
5,5 milhões de inscritos. A cereja do bolo de um longo processo de concentração das
bases curriculares de ensino.

Ora, se todas as universidades aceitam a mesma prova como critério de seleção, todas
as escolas buscam treinar seus alunos para um único teste. Ao passo que todas as
universidades passam a quali car seus professores para lecionar segundo esse mesmo
teste. Quando o ciclo se completa, gerações inteiras estão formadas de ponta a ponta
dentro de um esquema ideológico e de uma lógica institucional bem ao gosto dos
engenheiros sociais.

A grandeza do problema é o que faz dele inverossímil e incrível. Quanto maior a


dimensão do projeto, menor será a capacidade de alguém para analisá-lo, e maior será
a incredulidade das massas. A educação hoje não é resultado de uma conspiração, mas
de um plano a serviço de uma ideologia, que possui método, objetivos e manual de
instruções para sua realização.

São vários os pensadores cujas idéias ensejaram esse estado de coisas. Cada um, à sua
maneira, contribuiu para o terremoto que viria a pôr abaixo os pilares da educação
“tradicional”. Sobre as ruínas e resquícios de um mundo antigo que deveria ser
continuamente dilapidado e superado, as publicações de autores como Antonio
Gramsci, Michel Foucault e Pierre Bourdieu multiplicaram- se ao sabor do vento e
polinizaram corações e mentes na primavera das cátedras.

ALGUMAS REFERÊNCIAS DO PROJETO QUE GANHARIA VIDA PRÓPRIA

Não importa quão dramática ou atraente uma visão particular pareça, o fato é
que todos nós somos obrigados, fundamentalmente, a viver no mundo da
realidade. Quando a realidade é manipulada para se encaixar numa visão
particular, essa informação manipulada se torna um instrumento inapropriado
para tomar decisões numa realidade que não perdoa nossas fantasias; por isso,
devemos todos nos ajustar à realidade, pois ela não se ajustará a nós (Thomas
Sowell. Os Intelectuais e a Sociedade. São Paulo: É Realizações, 2011, p.246)

De viés fortemente relativista, a obra de Michel Foucault se concentrou sobretudo na


linguagem, embora tenha dado também, é verdade, atenção considerável à História, à
linguagem, embora tenha dado também, é verdade, atenção considerável à História, à
Política e à Cultura.

A seu método, ele chamou “arqueologia”, devido à natureza de seu empreendimento


para o qual ele viu a si mesmo como um “descobridor” de novas categorias da história
cultural – uma eloquente gura de linguagem para a análise do discurso de documentos
históricos como objetos auto- explicativos, cuja letra morta do texto sem contexto era
mais do que o su ciente. Discursos esses que, segundo o pensador francês, promovem
ora essa ora aquela visão específica sobre determinado assunto.

Para o lósofo, o discurso é a mola mestra das forças que determinam o que pode ser
“conhecido” ou não, já que em diferentes períodos e lugares, diferentes organizações
institucionais controlaram o poder por meio do discurso. Dessa forma, o conhecimento
para ele era tido como um resultado do poder, e não o contrário, pois “em qualquer
cultura, em qualquer período, há sempre uma única ‘episteme’ que de ne as condições
de possibilidades de todo conhecimento, seja ele expresso como teoria ou
silenciosamente aplicado na prática” (The Order of Things: An Archaeology of the Human
Sciences, Londres/Nova York: Routledge, 2011, p.183).

A disputa então não é pela verdade, para que esta oriente a sociedade; mas pelo
controle em si, para que este estabeleça o discurso válido, a narrativa oficial.

Segundo Foucault, a compreensão marxista da sociedade como conjunto de classes


numa estrutura econômica era excessivamente rígida e simplista. O que interessava de
fato era identi car de que lado das relações de poder entre “opressores” e “oprimidos”
estavam as classes, as instituições e também os indivíduos que as compunham. Uma
evolução neurótica da luta marxista entre “burgueses” e “proletários” que se estendeu
para todas as categorias da existência humana sob o conceito de “microfísica do poder”.
Um esquema de interpretação cuja aplicação é aceita tanto na análise das relações de
poder nos rabiscos e pichações de porta de banheiro público quanto na relação de
autoridade entre pai e filho em âmbito doméstico.

Se a teoria marxista da ideologia como corpo de idéias correspondentes aos interesses


obrigatórios das classes era insu ciente, sua adaptação foucaultiana abrandou seu
determinismo originário e ampliou suas categorias de análise.

Seus estudos dedicados ao sistema penitenciário, às escolas, aos hospícios e à história


da sexualidade são um tour de force para provar com fatos e análise discursiva de
documentos a correspondência entre e grupos de interesse e idéias dominantes. Dentre
outras coisas, ele apresenta o feudalismo medieval e a democracia liberal, a ciência e a
religião, o homem heterossexual e a monogamia como categorias igualmente
opressivas, partes integrantes do mesmo ethos, e defende a crítica e o ataque constante
às instituições para desmascarar a “política de violência que sempre foi obscuramente
exercida por meio delas”.
Foucault não caracterizava a burguesia como categoria estanque e determinante, mas
uma espécie de maré cambiante e um dos tantos grupos em disputa – com divisões
internas entre seus membros. Ora ela se deixa levar pelo curso dos fatos e da luta
revolucionária, apropriando-se gradualmente de seus espólios e “rei cando” (tornando-
os produtos consumíveis) suas “pautas”, ora determinando ela própria o curso das
agendas políticas, encarnando ela mesma o instrumento de controle que nancia o
“controle” da ideologia dominante, como pode-se ver no trecho a seguir de Microfísica
do Poder (São Paulo: Graal, 2008):

Creio que é possível deduzir qualquer coisa do fenômeno geral da dominação da


classe burguesa. O que faço é o inverso: examinar historicamente, partindo de
baixo, a maneira como os mecanismos de controle puderam funcionar; por
exemplo, quanto à exclusão da loucura ou à repressão e proibição da
sexualidade, ver como, ao nível efetivo da família, da vizinhança, das células ou
níveis mais elementares da sociedade, esses fenômenos de repressão ou
exclusão se dotaram de instrumentos próprios, de uma lógica própria,
responderam a determinadas necessidades; mostrar quais foram seus agentes,
sem procurá-los na burguesia em geral e sim nos agentes reais (que podem ser a
família, a vizinhança, os pais, os médicos, etc.) e como estes mecanismos de
poder, em dado momento, em uma conjuntura precisa e por meio de um
determinado número de transformações começaram a se tornar
economicamente vantajosos e politicamente úteis. Desse modo, creio ser possível
demonstrar facilmente que, no fundo, a burguesia não precisou da exclusão dos
loucos ou da vigilância e proibição da masturbação infantil, e nem foi por isto que
o sistema demonstrou interesse (o sistema burguês pode perfeitamente suportar
o contrário) mas pela técnica e pelo próprio procedimento de exclusão. São os
mecanismos de exclusão, os aparelhos de vigilância, a medicalização da
sexualidade, da loucura, da delinqüência, é toda esta micro-mecânica do poder
que representou um interesse para a burguesia a partir de determinado
momento. Melhor ainda: na medida em que esta noção de burguesia e de
interesse da burguesia não tem aparentemente conteúdo real, ao menos para os
problemas que ora nos colocamos, poderíamos dizer que não foi a burguesia que
achou que a loucura devia ser excluída ou a sexualidade infantil reprimida.
Ocorreu que os mecanismos de exclusão da. loucura e de vigilância da
sexualidade infantil evidenciaram, a partir de determinado momento e por
motivos que é preciso estudar um lucro econômico e uma utilidade política,
tornando- se, de repente, naturalmente colonizados e sustentados por
mecanismos globais do sistema do Estado. E focalizando estas técnicas de poder
e mostrando os lucros econômicos ou as utilidades políticas que delas derivam,
num determinado contexto e por determinadas razões, que se pode
compreender como estes mecanismos acabam efetivamente fazendo parte do
conjunto (p.185-186).
É, portanto, daí proveniente aquela postura bastante típica dos tempos atuais do jovem
burguês de classe média alta com carro próprio, universidade particular e férias na
Europa que se vê como minoria discriminada ou subjugada porque é mulher ou
homossexual. O drama da existência não é se você passa fome ou vive em zona de risco
num país de 70 mil homicídios por ano, mas se você tem um tio machista – que
simboliza tudo de pior que existe na história humana. Não há hierarquia de prioridades,
toda relação social de poder tem o mesmo valor.

Assim, diante de qualquer discurso, ou ação, não interessa saber sua veracidade ou
validade, suas consequências e intenções reais, e sim que lado das relações de poder ele
favorece: o dos “opressores” ou “oprimidos”. Você pode ser bilionário, mas, se for
adepto do discurso (não precisa nem praticar) que favoreça o lado mais fraco da
disputa, tudo bem – se for você mesmo um membro da minoria em questão, tanto
melhor.

Sob essa perspectiva, a sexualidade recebeu especial atenção do autor, “o indivíduo,


com sua identidade e suas características próprias, é o produto de uma relação de
poder exercida sobre os corpos, as multiplicidades, os desejos, as forças”. Segundo José
Guilherme Merquior (Foucault e o Niilismo de Cátedra, Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1985), para Foucault o controle “da sexualidade na cultura burguesa era menos uma
arma contra as classes inferiores do que uma auto- idealização” (p.188) de si mesma.

Do começo ao m de A vontade de saber (v.1 da História da Sexualidade), o sexo é


considerado antes social que natural à “propensão a colocar o sexo do lado da
realidade, e a sexualidade do lado das idéias como ilusões” (MERQUIOR, 1985, p.189). O
sexo como assunto não seria então algo “natural”, mas um produto secundário da
imaginação mediada pelo discurso. Roupas, moral, monogamia, m do incesto,
autoridade foram instrumentos que ao longo do tempo obscureceram cada vez mais
algo que era antes prática inconsciente para se tornar o objeto de desejo consciente, que
quanto mais reprimido mais despertava a curiosidade dos incautos, ou como diria o
autor: “existe uma sexualidade depois do século XVIII, um sexo depois do século XIX.
Antes, sem dúvida existia a carne” (FOUCAULT, 2008). Conhecendo esse aspecto de sua
sociologia do discurso, o tema da sexualização da sociedade, especialmente das
crianças, que se reflete no ENEM, ganham contornos bastante peculiares:

Um exemplo de que tratarei em próximo volume: no começo do século XVIII, de repente


se dá uma importância enorme à masturbação infantil; perseguida por toda parte como
uma epidemia repentina, terrível, capaz de comprometer toda a espécie humana. Será
necessário admitir que a masturbação das crianças de repente se tornou inaceitável
para uma sociedade capitalista em vias de desenvolvimento? Esta hipótese de alguns
“reichianos” recentes não me parece satisfatória. Ao contrário, na época o importante
era a reorganização das relações entre crianças e adultos, pais, educadores, era a
intensi cação das relações intrafamiliares, era a criança transformada em problema
intensi cação das relações intrafamiliares, era a criança transformada em problema
comum para os pais, as instituições educativas, as instâncias de higiene pública, era a
criança como semente das populações futuras. Na encruzilhada do corpo e da alma, da
saúde e da moral, da educação e do adestramento, o sexo das crianças tornou-se ao
mesmo tempo um alvo e um instrumento de poder. Foi constituída uma “sexualidade
das crianças” especí ca, precária, perigosa, a ser constantemente vigiada. Daí uma
miséria sexual da infância e da adolescência de que nossas gerações ainda não se
livraram; mas o objetivo procurado não era esta miséria, não era proibir. O m era
constituir, através da sexualidade infantil, tornada subitamente importante e misteriosa,
uma rede de poder sobre a infância. (2008, p.232).

Foucault é apenas um dos “pais fundadores” do pós-modernismo, mas suas idéias


compartilham diversos temas em comum com outros pensadores e foram também
utilizadas por pós-modernos posteriores que as têm aplicado a uma quantidade cada
vez maior de disciplinas das humanidades e das ciências sociais, especificamente.

Fantasma que vaga silencioso aos olhos do grande público não especializado, Michel
Foucault é a força vital que dá o tom e a forma de certa elite pensante e falante
brasileira. Se suas idéias já não se apresentam explicitamente na boca de seus porta-
vozes, é porque o rompimento com o passado é a dedução lógica incontornável do
ânimo que sua loso a instilou profundamente na mentalidade predominante nos
órgãos e instituições e de educação por todo o país: a práxis revolucionária embalada
pela teoria das micro-opressões que transforma a tudo e todos em parte de um jogo de
poder incessante. Nesse sentido, é perfeitamente possível encontrar professores,
pedagogos e jornalistas rigorosamente foucaultianos, embora dele não conheçam mais
do que o nome, mas re itam seu pensamento seja em análises de discurso de padrões
de beleza em propaganda de maquiagem, seja na fila do pão.

Pierre Bourdieu (A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007) a rma
que parte desse processo de imposição de discursos ocorre dentro de “estruturas de
legitimação”, onde se realizam a “produção, reprodução e difusão de bens simbólicos”.
Para o sociólogo, há níveis de diferenciação nas instâncias que interagem dentro das
estruturas. Dessa forma, a produção erudita tem diferentes objetivos e processo de
legitimação em relação à indústria cultural de bens simbólicos.

A relação entre os agentes – artistas, editores, divulgadores, empresários, críticos – é


mediada por instituições que possuem “relações de força simbólica”, que por sua vez
conferem ao agente parte de sua autoridade e por ele são, também, valorizadas –
porém, dentro de uma hierarquia de influência.

Esta inclui (1) “relações objetivas entre os produtores de bens simbólicos”; (2) “relações
objetivas entre os produtores e as diferentes instâncias de legitimação”, as academias,
os museus, os círculos eruditos e o sistema de ensino, por exemplo; (3) “a cooptação por
instâncias mais ou menos institucionalizadas”, como os círculos de críticos, salões,
grupos mais ou menos reconhecidos, organizados em uma editora, uma revista, um
grupos mais ou menos reconhecidos, organizados em uma editora, uma revista, um
jornal, um think tank; e (4) “relações objetivas entre estas diferentes instâncias de
legitimação, de nidas tanto em seu funcionamento como em sua função”, que
dependerão do caráter “conservador”(p.118) ou contestador, tradicional ou
contracultural, de massa ou erudito, de suas relações de poder em relação aos meios
(quando já não são elas próprias os meios), público consumidor, capital, etc. Ou seja,
dependerão de seu ethos e sua rede de influências.

Ao aplicar-se essa lógica à estrutura professor-escola-aluno, tem-se a descrição da


in uência do professor conforme o meio de que dispõe para exercer sua atividade.
Levando em conta apenas a abrangência do meio e a atividade do professor
individualmente, suas possibilidades de se consolidar como “consagrador de bens
simbólicos” “dependem diretamente da medida em que sua autoridade é reconhecida e
capaz de impor-se de maneira duradoura” (p.121), pois há também a concorrência entre
os pares, e uma necessidade destes de acesso aos meios, “as instâncias de
consagração”, que são nitas. Ou seja, eles in uenciam os alunos, mas competem entre
si pelos cargos disponíveis.

Sendo assim, em O Poder Simbólico (Lisboa: DIFEL, 1989), o sociólogo divide esse grande
sistema em (1) “estruturas estruturantes”, os instrumentos de conhecimento e de
construção do mundo objetivo, que tem na “objetividade” o recurso de concordância
(consenso) dos indivíduos;

(2) “estruturas estruturadas”, meios de comunicação, língua, cultura, discurso, que têm
que na pretensa “objetividade da interação” a condição básica da comunicação; e (3)
“instrumentos de dominação” – poder, divisão de classes, dominação, divisão social e
ideológica do trabalho (manual e intelectual), reforçadas pelas instituições em
concorrência pelo monopólio da produção cultural legítima” (p.16).

Em A reprodução: Elementos para uma Teoria do Sistema de Ensino (3.ed. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1992), a grande dinâmica das estruturas de legitimação e construção
simbólica é analisada ad hoc no sistema de ensino francês. Segundo ele, na educação as
estruturas são então utilizadas para dominação mediante uma sutil interação
denominada “violência simbólica”.

O conceito visa descrever a “violência que extorque submissão não percebida como tal,
baseada em ‘expectativas coletivas’ ou crenças socialmente inculcadas”. Neste sentido, a
escola é o prolongamento dos instrumentos de dominação, determinante das
desigualdades sociais, e máquina de reprodução em série do status quo. Um conjunto de
concepções inoculado diariamente por meio da violência simbólica nas mentes de
alunos cativos, de tal modo que essas concepções e a relação de poder que as favorece,
permaneçam invisíveis, tanto mais efetivas quanto menos identi cáveis. Note-se que a
teoria de Bourdieu gira em torno da inconsciência coletiva das relações de poder, que
visam a “reprodução” da ordem permanente, da qual só ele próprio, obviamente, se deu
visam a “reprodução” da ordem permanente, da qual só ele próprio, obviamente, se deu
conta. O trecho a seguir, resume bem a questão:

não é inútil lembrar que (…) é necessário saber descobri-lo [o poder] onde ele se
deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto,
reconhecido [aceito]: o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual
só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que
lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem (O Poder Simbólico. Lisboa: DIFEL,
1989, p.8-9).

Portanto, a ação pedagógica é compreendida como um exercício de violência simbólica


de inculcação de arbítrios culturais, cujas relações de poder têm de ocultar-se sob a
forma de relações simbólicas. O diagnóstico tem propósito explícito e notório:
desmisti car as supostas ideologias que nanciam e são reforçadas por essa indústria
de reprodução em série: o “economicismo” – ligação estreita entre a escola e o sistema
produtivo – e a “neutralidade” – so sma que reveste de objetividade a comunicação
pedagógica.

As relações de poder encontram-se sempre dissimuladas sob a forma de relações


simbólicas. E assim propaga-se a ideologia da escola como instrumento de ascensão
social, cujo corolário é a “meritocracia”, que para Bourdieu é como a kryptonita. Deste
modo, todo o sistema escolar é necessariamente homogêneo e padronizado e o sucesso
de sua manutenção é a violência simbólica implícita e não escrita das relações em sala
de aula, e a inconsciência das massas que entregam à “reprodução” os corações e
mentes de suas crianças. Portanto, “todo poder de violência simbólica, isto é, todo
poder que chega a impor signi cações e a impô-las como legítimas, dissimulando as
relações de força que estão na base de sua força, acrescenta sua própria força, isto é,
propriamente simbólica, a essas relações de força (sic)” (A reprodução: Elementos para
uma Teoria do Sistema de Ensino. 3.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992, p.19).

Para Antonio Gramsci, a capacidade de in uência dessas estruturas no quadro social e


de formação cultural era tamanha, embora não determinante, que o lósofo comunista
considerou o jornalismo a “escola dos adultos” (Os intelectuais e a Organização da Cultura.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982). Ao traçar seu plano de instrumentação e
engajamento das instâncias de cultura para a formação e constituição de uma
mentalidade nacional, o lósofo italiano considerou os meios de comunicação um dos
principais fatores, tendo somente como párea à altura as instituições de formação
intelectual formalizadas, como escolas e universidades. E a Igreja.

Sob essa visão, Gramsci parece se antecipar a Bourdieu. De modo que, ocupando as
instâncias – as quais ele reconhecia como pontes de transmissão de bens simbólicos –
por parte de membros do Estado, bem como submetendo-as à administração o cial,
garantiria a formação de gerações de indivíduos sob a égide da cultura nacional, de
dado território, seja qual ele for, e identidade coletiva, denominada por ele de
“hegemonia”:
“hegemonia”:

Os intelectuais são os “comissários” do grupo dominante para o exercício das


funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do
consenso “espontâneo” dado pelas grandes massas da população à orientação
impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social, consenso que nasce
“historicamente” do prestígio (e, portanto, da con ança) que o grupo dominante
obtém, por causa de sua posição e de sua função no mundo da produção; 2) do
aparato de coerção estatal que assegura “legalmente” a disciplina dos grupos que
não “consentem”, nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda
a sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos
quais fracassa o consenso espontâneo (p.10-11).

A emissão contínua e uniformizada de discurso faria com que surgissem “intelectuais


orgânicos”, que mesmo sem educação e graduação formal se tornariam agentes de
discurso contribuintes para formação da hegemonia cultural. Segundo o lósofo, a
condição da intelectualidade orgânica era consequência inescapável das classes, pois
“várias categorias destas camadas determinam, ou dão forma, à produção dos diversos
ramos de especialização intelectual” (p.10), sejam elas a burguesia – rural e industrial –,
a igreja ou o operariado, e ainda, last but no least, o funcionalismo público, sendo sua
proposta unificar todas elas. Dessa forma,

além da escola, nos vários níveis, que outros serviços não podem ser deixados à
iniciativa privada, mas — numa sociedade moderna — devem ser assegurados
pelo Estado e pelas entidades locais (…)? O teatro, as bibliotecas, os museus de
vários tipos, as pinacotecas, os jardins zoológicos, os hortos orestais etc. É
preciso fazer uma lista de instituições que devem ser consideradas de utilidade
para a instrução e a cultura públicas e que são consideradas como tais numa
série de Estados, instituições que não poderiam ser acessíveis ao grande público
(…) sem uma intervenção estatal (p.152).

O projeto do italiano, notoriamente político, se encaixa perfeitamente na estrutura


descrita por Bourdieu, mas isola do campo da disputa as instâncias não autorizadas e
em desacordo com sua visão sobre a dinâmica histórico-social da constituição da
cultura, da qual a educação é elemento fundamental – senão o principal.

Se na loso a de Foucault há uma pretensa teoria do poder em escala in nitesimal, cuja


aceitação conduz as pessoas a um estado absolutamente sufocante de relações sociais,
em Bourdieu há uma notável descrição sociológica da dinâmica das instituições culturais
na legitimação dos “bens simbólicos”, bem como a análise, com ares de denúncia
conspiratória, de um sistema educacional inteiro projetado para um único propósito. Já
em Gramsci, anterior a ambos, pode-se encontrar o caminho das pedras para a tomada
do poder; o manual revolucionário de subversão e aparelhamento daquelas mesmas
instituições para formação de uma hegemonia ideológica — que na loso a de Foucault
instituições para formação de uma hegemonia ideológica — que na loso a de Foucault
encontrou influência bastante peculiar e intensa.

Somados, descrição, interpretação e plano de ação formaram o grande mosaico da


intelligentsia nacional; o vitral com seus tons particulares através do qual ela enxergaria
a realidade brasileira. A junção de forma e substância que viria a caracterizar o grande
fenômeno chamado revolução cultural.

Se tudo isso não é a extinção institucionalizada da pluralidade de idéias e correntes de


pensamento, então o mundo tem muito a aprender com uma das piores educações do
mundo.

É a partir daí que a diferenciação entre militante e estudante começa a se dissolver de


uma vez para sempre, caso nada lhe seja dito nem perguntado. Iniciada a instituição da
“hegemonia” pelo controle e ocupação das “instâncias de legitimação” em nome dos
“oprimidos” e “subalternos”, as práticas seguintes vão surgindo já sem o estímulo
originário proposital. Elas seguem de forma autônoma e descentralizada, já que as
premissas explícitas nos livros que as inspiraram inicialmente se tornam ocultas – a
politização da educação e da inteligência – e se enraízam no imaginário cotidiano.

O que se segue é já o re exo mesmo da alteração de um estado de consciência, de


julgamento. A adesão formal de militantes é menor do que a propagação massiva de
um novo senso comum que se explicita em diversas expressões aparentemente
desconexas. Daí a capacidade absolutamente notável do projeto para en leirar
colaboradores inconscientes que juram nada terem a ver com o assunto. É a formação
de uma nova mentalidade, que, como uma estrela pulsante, irradia nos mais diversos
sentidos desde o mesmo centro.

Como peixinhos no aquário, essas gerações têm então a impressão de que a totalidade
do universo se resume ao seu cubículo cultural e que outro mundo jamais existiu ou
existirá.

A vastidão de indícios não deixa dúvidas do sucesso do empreendimento; monogra as,


dissertações, teses, periódicos, eventos, editoras, show business, movimentos sociais
aparelhados, ONGs, greves sucessivas, leis e diretrizes do Ministério da Educação.

A velha oposição se tornou situação, os observadores e analistas se tornaram os objetos


mesmos de análise. O pensamento crítico se tornou dogmático.

Com a instituição e ampliação da educação e dos colégios públicos, o ensino


popularizou-se e se tornou mais acessível. No entanto, as teorias críticas subverteram o
propósito da educação “tradicional” e da instrução formal, com a alegação de que a
perspectiva adotada pelo ensino estatal era um instrumento de doutrinação burguesa.
Com isso, as escolas públicas, outrora motivo de orgulho, passaram a sofrer com a
precarização e rebaixaram-se, perderam qualidade e proletarizaram tanto a massa
precarização e rebaixaram-se, perderam qualidade e proletarizaram tanto a massa
aprendiz quanto seus educadores, agora perfeitamente alinhados ao processo de
formação de massas incapacitadas a nível básico e superior.

Como as escolas públicas são frequentadas mormente por classes mais baixas, a
pobreza acaba por se perpetuar, já que a grande maioria não se forma nem se instrui
apropriadamente e perpetua a sua pobreza. Ao passo que as escolas privadas,
frequentadas por classes mais abastadas e menos suscetíveis aos arroubos ideológicos
– devido à administração empresarial que as nancia e à necessidade de algum sucesso
que garanta as matrículas no ano seguinte – seguem progredindo, o que acentua a
desigualdade.

Se a coisa toda parece exagerada quando considerada no contexto de um país


continental como o Brasil, ela torna-se mais crível quanto se observa que todos os
autores e idéias que inspiraram e compuseram o grande edifício do “pensamento
crítico” zeram também a cabeça de intelectuais, professores, jornalistas e educadores
por todo o mundo, levando às mesmas consequências em outros países, como relata a
professora sueca Inger Enkvist, em seu Repensar a Educação (São Paulo: Bunker Editorial,
2014):

Outra característica da escola pública no passado é que foi ao mesmo tempo a


escola do Estado e do povo, por contraposição à privada que costumava ser a
escola da Igreja e das elites. No entanto, há algumas décadas, a escola pública é
atacada por ser supostamente um instrumento de doutrinamento “burguês” dos
lhos da classe operária. De nitivamente, está ocorrendo um ataque às regras de
comportamento, às exigências, aos conteúdos e à formação de professores. O
resultado começa a se tornar visível e é bem conhecido por todos os que
trabalham dentro do campo da educação: uma proletarização dos colégios
públicos e uma revalorização e prestígio dos centros não públicos. Agora
começam a existir colégios públicos nos quais os alunos não aprendem quase
nada e colégios privados com bons professores, boas instalações, mas,
sobretudo, com alunos que estudam e avançam. A Espanha se aproxima de um
sistema no qual os lhos dos já educados estudam nos colégios privados e os
lhos dos operários passam a ter uma educação vazia de conteúdos. Cria-se,
assim, uma classe baixa, inculta, uma situação que constitui uma verdadeira
ameaça para uma democracia avançada (p.36).

Que os idealizadores do projeto e seus seguidores sejam uns dos autores mais citados
pela inteligência e pela bibliogra a nacional, e que seus signatários achem que o
simples apontamento objetivo das fontes primárias disso tudo seja o absurdo dos
absurdos, é nada menos que motivo de riso e sinal de um dos maiores casos de
amnésia e inconsciência coletiva da história humana.

TRANSFORMA-SE O CRÍTICO NA COISA CRITICADA, E A PEDRA, EM VIDRAÇA


TRANSFORMA-SE O CRÍTICO NA COISA CRITICADA, E A PEDRA, EM VIDRAÇA

Por mais que tenha a chave de inferno ou paraíso,


não existe grandeza
no gesto que interponha
uma só pincelada,
ou o verso mais perfeito,
entre o instante mortal
e as lendas do conceito:
a vaidade e a beleza,
o verdadeiro e o vão,
quando partilham um leito
engendram uma traição.

(Bruno Tolentino. “O Mago da Caverna”. In: O Mundo Como Idéia. Rio de Janeiro:
Globo, 2001, p.125)

Somadas à conjuntura política, as críticas à educação “tradicional” promovidas pelo pós-


modernos relativistas, socialistas e multiculturalistas possibilitariam o surgimento de
instituições e esquemas muito mais estrati cados e alienantes do que aqueles
provenientes da desigualdade natural e orgânica – ou do suposto sistema de
“reprodução”. Era impossível que tudo ocorresse de outra maneira.

No entanto, não era necessário que tanto tempo se passasse para que os primeiros
sinais de incômodo surgissem. Em 1995, um diagnóstico do mesmíssimo fenômeno, que
se desenvolvia no Estados Unidos, desembarcava no Brasil. Em A Rebelião das Elites e a
Traição da Democracia (Rio de Janeiro: Ediouro), Christopher Lasch identi cou e
descreveu aquele que viria a ser, talvez, o traço distintivo das elites falantes e atuantes
das últimas décadas: seu descolamento da realidade e seu afastamento cada vez maior
dos anseios das massas.

No livro, o autor argumenta que a democracia estava ameaçada pelas elites, que
engendravam ações com perspectivas cada vez mais globais, recusando-se a aceitar
limites ou vínculos com nações ou lugares.

Cada vez mais isoladas em redes de interproteção auto-su cientes, elas foram
abandonando pouco a pouco a classe média, dividindo a população sob novas
categorias socialmente arti ciais e consequentemente colocando em xeque a existência
de uma democracia plena na América. Um dos pilares dessa longa marcha pelas
instituições foi a substituição gradual do ideal da “meritocracia” pelo ideal “democrático”.
O que para os americanos signi cou o abandono e a transformação da velha cultura
pragmática, calcada na razão prática, para um raciocínio cada vez mais plebiscitário,
politizado e paralisante.

A democracia passou a ser compreendida não o como respeito conquistado pela


A democracia passou a ser compreendida não o como respeito conquistado pela
liberdade de ação e expressão, mas como tolerância forçada construída pelo “consenso
democrático” que oprime a todos pelo excesso de obrigações com a nalidade de incluir
socialmente minorias desamparadas. As elites, tendo se descartado das normas morais
e éticas que a religião lhes proporcionava, agarraram-se à crença de que através da
política e da ciência seria possível instaurar o paraíso na terra. E na busca desta ilusão,
caram fascinadas pela economia, religião e cultura globais, fatalmente reduzindo a
segundo plano cada vez mais tudo o que havia de mais caro à sociedade americana.

Vinte e um anos depois, a população aceitou o custo de eleger o presidente mais


inesperado da América para ver-se livre, ou ao menos aliviada, desse estado de coisas
angustiante.

Desde que o movimento revolucionário transferiu o agente de transformação do


proletariado para os diversos lugares de fala identitários, elegendo subclasses por sexo e
etnia em lugar do trabalhador, tudo o que a intelligentsia progressista mundial,
entrincheirada em cátedras acadêmicas e redações de jornais, teria feito teria sido
inverter e aviltar a classe em nome da qual a rmava atuar. Daí o conceito de “rebelião
das elites”; a recusa destas em perceber os con itos que se acentuavam cada vez mais
entre os que estavam nas tribunas e salas de aula e os subalternos que os ouviam sem
nada poder dizer.

O argumento de Lasch era o de que todos estes hábitos mentais eram os que melhor
caracterizavam as camadas mais altas da sociedade, pois “qualquer idéia de que as
massas possam estar na crista da onda da história há muito já se desfez”. Todos os
movimentos radicais que haviam desa ado o establishment falharam, e não havia
“sucessores surgindo no horizonte” (p.39).

A esperança de que “novos movimentos sociais” substituiriam a classe trabalhadora na


luta contra o capitalismo fracassou fragorosamente. Mas não sem antes deixar seu
rastro de caos e destruição pelo caminho, levando à mutação da política identitária da
diversidade em uma forma de radicalismo segregacionista.:

“Diversidade” – slogan atraente à primeira vista – acabou signi cando o oposto do


que parece. Na prática, diversidade resulta na legitimação de um novo
dogmatismo, em que as minorias rivais se entrincheiram por trás de um conjunto
de crenças impermeáveis à discussão racional. A segregação física da população
em enclaves, fechados em si mesmos, radicalmente homogêneos, sem a sua
contraparte na divisão de opiniões. Tornamo-nos uma nação de minorias; só falta
o seu reconhecimento como tal para completar o processo. Esta paródia de
“comunidade” – termo muito apreciado, mas ainda não tão bem compreendido –
subentende a hipótese traiçoeira de que é possível esperar que todos os
membros de um determinado grupo pensem da mesma forma. A opinião,
portanto, se torna uma função de identidade racial ou étnica, de preferência
sexual ou de gênero. A minoria auto-selecionada de “porta-vozes” reforça esta
conformidade, colocando em ostracismo os que se afastam da linha partidária –
negros, por exemplo, que “pensam como brancos” (p.27-28).

Qualquer semelhança entre o fenômeno descrito por Lasch e o caso brasileiro não é
mera coincidência. Instrumentalizar ideologicamente a educação nacional, impondo de
cima para baixo um projeto sob a justi cativa de desconstruir um sistema de formação
pro ssionalizante e reprodução de preconceitos, economicista e conservador, foi
apenas mais um capítulo na sucessão de fracassos que é a história das idéias brasileira.

Num país onde a maioria da população era completamente analfabeta e o acesso


mesmo às escolas básicas era limitado, importar diagnósticos sociológicos europeus
que professavam a educação como um sistema de reprodução ideológica e de
manutenção de desigualdades era conferir ao ensino uma força extraordinária muito
além de suas reais capacidades. Quatro décadas depois, a alfabetização não melhorou
muito, e a mentalidade antimercado ainda persevera com força notável no país com a
153ª economia mais livre do mundo, atrás de Kuwait, Uganda e Zâmbia, segundo a
Heritage Foundation.

Sem um sistema universalmente acessível, rigoroso e pro ssional e economicamente


comprometido, a implementação de correntes de “pensamento crítico” no ensino foi
apenas a solução para um problema inexistente. Um ataque poderoso a um boneco de
palha; um so sma que, se não venceu o adversário invisível, serviu-se dele muito bem
para dominar o debate. Ou, como diria Lasch:

Estamos tão ocupados defendendo nossos direitos (direitos conferidos, na maior


parte, por decreto judicial) que não nos preocupamos muito com nossas
responsabilidades. Raramente dizemos o que pensamos, com medo de ofender.
Estamos determinados a respeitar todos, mas nos esquecemos que este respeito
tem que ser merecido. Respeito não é sinônimo de tolerância nem é a valorização
de “estilos de vida e comunidades alternativas”. Esta é uma forma turística de se
abordar questões éticas. Respeito é o que experimentamos diante de realizações
admiráveis, caráteres admiravelmente formados, talentos naturais bem
aproveitados. E está necessariamente vinculado ao exercício do julgamento
discriminador, não à aceitação indiscriminada (p.107).

Uma educação que se quer crítica deve, no mínimo, aceitar objeções e contestações de
seus alunos e fornecer-lhes uma variedade de correntes de pensamento ampla o
su ciente para que desenvolvam, aí sim, um pensamento crítico baseado no confronto
de hipóteses. Caso contrário, a autoproclamada consciência crítica é apenas um verniz
retórico para quem, por baixo da propaganda de liberdade de consciência e combate à
alienação e à opressão, deseja simplesmente destilar na inteligência de jovens ingênuos
um projeto político.
Para um país cuja intelectualidade fala dia-e-noite em “dialética”, e tem em alta conta
pensadores eminentes como Karl Marx, é espantoso, para não dizer constrangedor, que
nenhum de seus representantes consiga compreender a situação atual. Pessoas que
vivem de estudar e ensinar, mas não aprenderam uma lição básica de Hegel: toda idéia
que entra na ordem da realidade se transforma no seu contrário.

Após décadas subjugando as massas a seus caprichos pessoais, era óbvio que em
algum momento os ideais de uma elite encastelada na sala de comando administrativo
e cátedras de ensino se tornariam a ordem do dia, deixando de ser a grande tábua de
salvação dos oprimidos e se tornando o instrumento mesmo de opressão. Nesse
sentido, o projeto Escola Sem Partido é o grito de desespero derradeiro de famílias e
alunos que passaram anos silenciados sem meios de ação.

Que os participantes do grande projeto nacional confundam a revolta geral popular de


quem nunca participou da festa – senão pagando impostos e aceitando de mãos atadas
o cortejo da desconstrução – com um fato novo e assustador, é porque já não conhecem
seu próprio povo e confundem a cultura do país com a de seus próprios currículos. Após
décadas de isolamento, as elites responsáveis pela administração da educação pública
deixaram-se levar pela auto-a rmação grupal, o sucesso da implementação de sua
agenda e o prazer no exercício do poder. Sua visão de mundo, porém, engoliu a
realidade, ultrapassando os limites do razoável e transformando seu projeto no alvo
mesmo das críticas.

Correntes de pensamento como o pós-estruturalismo, pós-modernismo e o


multiculturalismo vieram para fazer as vezes de um marxismo repaginado, oxigenando
novamente a chama do igualitarismo a todo custo. O que não poderia levar a outro
resultado: a concentração do poder por uma classe superior, eleita e autoproclamada
como responsável por dirimir e superar todas as diferenças entre os homens na terra e
libertá-los de todas as “micro-agressões” cotidianas.

Nesse sentido, o “pensamento crítico” tornou-se a pele de cordeiro do lobo da


manipulação ideológica; o conto do vigário da educação que a todos ensina a tudo
contestar, exceto a si mesma.

Compartilhe isso:

 
2K+

Relacionado

O Valor-ético material de Max Scheler: A base de Heidegger e Ortega y Gasset - As bases do


Dasein.
Resenha: Filosofia e Cosmovisão

Relativismo: gênese e implicações

PUBLICADO EM Filosofia Filosofia Política

6 comentários em “Amnésia e Inconsciência – A


Rebelião das Elites e a Traição da Educação
Brasileira”

Luís Felipe Nunes diz:


8 de dezembro de 2018 às 15:07

Ótimo artigo, muito completo, e muito feliz na explanação sobre a tríade que
deu base à degeneração atual. Parabéns ao autor e à CoA por disponibilizar
um material tão rico!

CARLA CARDOSO SADDI diz:


27 de fevereiro de 2019 às 22:44

sensacional, otimo artigo , claro e didátco

Rogério de Camargo diz:


4 de março de 2019 às 15:18

Sensacional! Ótimo texto e ótimas informações no seu teor. Parabéns!


Fernando Cavalcanti Campos diz:
4 de março de 2019 às 16:50

Excelente! Quem é o autor?

CELIA DITTMAR diz:


5 de março de 2019 às 15:52

Excelente!!!

Mephistópheles diz:
12 de março de 2019 às 14:26

Do caralho!

Deixe uma resposta

COMENTÁRIO

NOME *
E-MAIL *

SITE

PUBLICAR COMENTÁRIO

NOTIFIQUE-ME SOBRE NOVOS COMENTÁRIOS POR E-MAIL.

NOTIFIQUE-ME SOBRE NOVAS PUBLICAÇÕES POR E-MAIL.

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.

Stay Connected

   

Categorias

 Ensaios

 Filosofia

 Resenhas

 Vídeos

Recent Posts

Lista de leitura Ordenada: Michel


Foucault
1 de abril de 2019

A Resistência da Igreja Católica na Lituânia Contra a Perseguição


Religiosa
27 de março de 2019

A Natureza como base das ações


morais
20 de março de 2019
20 de março de 2019

Lista de Literatura – Parte 1: Grécia


Antiga
14 de março de 2019

Assinar blog por e-mail

Digite seu endereço de e-mail para assinar este blog e receber notificações de novas publicações por
e-mail.

Junte-se a 401 outros assinantes

Endereço de e-mail

ASSINAR

Calendar Archive

abril 2019

D S T Q Q S S

1 2 3 4 5 6

7 8 9 10 11 12 13

14 15 16 17 18 19 20

21 22 23 24 25 26 27

28 29 30

« MAR

O Contra os Acadêmicos surgiu com o objetivo de melhorar o acesso aos estudos de


Filosofia para todos aqueles que desejam aprofundar-se na busca pelo conhecimento e,
principalmente, pela verdade.

Sobre nós | Faça Parte | Apoie


Contato: contraosacademicos@gmail.com
Epistemologia
Estética
Ética
Filosofia da Ciência
Filosofia da Linguagem
Filosofia da Mente
Psicologia

Filosofia da Religião
Filosofia Geral
Filosofia Política
História da Filosofia
Lógica
Metafísica
Espiritualidade

Siga-nos

Administradores

Ricardo Roveran

Lazaro Macedo

Vitor Matias

Parceiros

Copyright © 2019 Contra os Acadêmicos – Tema Glob por FameThemes

También podría gustarte