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Pec ee
Lélia Gonzalez em primeira pessoa
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Nanny'’®
A experiéncia comum dos descendentes de africanos na
América pode ser apreendida e unificada pela amefricani-
dade, uma categoria que, no longo processo de resisténcia,
remete a construcao de toda uma identidade étnica.
Nanny, guerreira e “mae” de seu povo na Jamaica, consti
tui-se, como Zumbi entre nds, num dos pilares da ame:
canidade.
Brasil — por razdes de ordem geografica, histérico-cul-
tural e sobretudo da ordem do inconsciente — 6 uma
América Africana cuja latinidade, por inexistente, te-
ve trocado o t pelo d para, ai sim, nomear o nosso).
pais com todas as letras: Améfrica Ladina (cuja neurose cultural ‘7 ><
tem no racismo o seu sintoma por exceléncia). Nesse contexto,
todos os brasileiros (e nado apenas os “pretos” e “pardos” do IB-
GE) séo ladinoamefricanos. Para entendermos as artimanhas do
tacismo acima caracterizado, temos que nos reportar A categoria
freudiana de denegacdo (Verneinung): € 0 “processo pelo qual 0
individuo, embora formulando um de seus desejos, pensamentos
ou sentimento, até af recalcado, continua a defender-se dele, ne-
gando que Ihe pertenga” (Laplanche e Pontalis, 1970). Enquanto
denegacao dessa ladinoamefricanidade, 0 racismo se volta justa-
es
BS. Nanny. In: Humanidades, v. 17, ano IV. Brasilia: Universidade de
rasilia-UNB, Pag. 23-25.s rosas negras
ntra aqueles que, do ponto ot vi Etnico, so os teste.
mente contra da mesma, tentando tird-los de cena, apaga-los q,
munhos vivordo para os especialistas as andlises lacanianas as
mapa. Dea constitui um meio de grande potencial heuristi,
ladinidade aha se volta para a categoria de amefricanidade
co), nosso oO! orque ela nos permite ultrapassar limitacées de ca.
Exatamente pa ‘linguistico e ideoldgico, abrindo novas perspec.
rater cerTelhor entendimento dessa parte do mundo onde sk
yee Een ‘a América como um todo (austral, central, insular e
se sf
setentrional). u cardter geografico, ela designa todo um
Para além de se’ a gaa isté
sso histérico de intensa dindmica cultural (resisténcia, aco-
de novas formas) referenciada
proce: ut \ dir
modacio, reinterpretagao, criagao de n Y
em modelos africanos e que remete a construcdo de toda uma
identidade étnica. Desnecessdrio dizer que esta categoria esta
intimamente relacionada aquelas de pan-africanismo, negritude,
blackness, afrocentricidade, etc. Seu fator metodoldgico, a nosso.
' ver, estd no fato de resguardar uma unidade especifica, historica.
mente forjada no interior de diferentes sociedades que se forma-
ram numa determinada parte do mundo. Em consequéncia, o ter-
mo amefricanas/amefricanos nomeia a descendéncia nao s6 dos
africanos “gentilmente” trazidos pelo trafico negreiro, como da-
queles chegados 4 América antes de seu “descobrimento” por
Cristévaéo Colombo (Ivan Sertima, 1976). a presenca amefricana
constitui marca indelével na elaboracao do perfil chamado Novo
Mundo, apesar da denegacdo racista que habilmente se desloca,
manifestando-se em diferentes niveis (pol{tico-ideolégico, so-
cioeconémico e psicocultural).
_£ €na chamada América Latina (muito mais amerindio-
amefricana do que outra coisa) que essa denegacdo se torna am-
plamente verificavel. Como sistema de dominagao muito bem es-
tera iliteg na regido demonstra sua eficacia ao veietar
gem” ete. Em out integragdo”, “democracia racial”, mss ea :
cessidade de um mi egies pees eee paistorica
dos paises eto a de reflexdo sobre a formacao Tent
sobre esse modo de peer dares chegar a algum enters
A formacio hi a agdo das desigualdades aCe node
correr de uma luts a Orica de Espanha e Portugal se ce ea
Plurissecular (a Reconquista) contra a Pre
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a —_al» inv .
af que professavam, afinal, as tropas que
sla
as! 41 nao s6 eram majoritariamente negras (6700 mouros
e grabes), como foram comandadas pelo negro Gabel ae
300 parik-bin-Ziad (a corruptela de Gabel Tarik resultou ee
praltar, termo que passou a nomear o estreito até entaio conn
‘do como Colunas de Hércules). Por outro lado, sabemos
jo 80 0S soldados como 0 ouro do reino negro de Ghama tAftica
ocidental) tiveram muito a ver com a conquista moura na Espa-
nha (ou Al-Andalus). Vale notar que as duas tltimas dinastias
que governaram. Al-Andalus eram precedentes da Africa Ociden-
tal, a dos Almordavidas e a dos Amoéhadas. Foi sob o reinado des-
tes tiltimos que nasceu, em Cordoba (1126), o mais eminente fi-
jgsofo do mundo islamico, o aristotélico Averrées (Chandler,
1987). desnecessario dizer que, tanto do ponto de vista racial
quando civilizacional, a presenga moura deixou profundas mar-
cas nas sociedades ibérias (como, de resto, na Franga, Italia,
tec.). Por af, entende-se porque o racismo como denegacao tem,
na América Latina, um lugar privilegiado de expressao.
Vale notar que as sociedades ibéricas se estruturaram a
partir de um modelo fortemente hierarquico, onde tudo e todos
tinham seu lugar determinado (atente-se para fato de que até o
tipo de tratamento nominal obedecia As regras impostas pela
hierarquia). Importante ressaltar que mouros e judeus, enquanto
grupo étnicos diferentes, eram sujeitos a violento controle social
€ politico. As sociedades que se constitufram na chamada Améri-
ca Latina foram as herdeiras histdricas das ideologias de classifi-
cacdo social (racial e sexual) e das técnicas juridicas e adminis-
tativas das metrépoles ibéricas. Racialmente estratificadas, dis-
Pensaram formas abertas de segregacio (e isso é valido, também,
Para aquelas de colonizac&o francesa), uma vez que as Mera
quias garantem a superioridade dos brancos enquanto ee 05
minante (Da Matta, 1984). A expressdo do humorista Mill6r Fer-
nandes, ao afirmar que “no Brasil nao existe racism Poel ehed
negro reconhece o seu lugar”, sintetiza 0 que acabamos de expor.
mente pela religiao
invadiram a Ibéria
. rmaram
E foi no interior das novas sociedades que = ie que
no Novo Mundo (sejam de segregacdo aberta ou dis ey eater S
4 amefricanidade floresceu e se estruturou. Ja na €P
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