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LINHA DE PESQUISA: HISTÓRIA E CULTURAS POLÍTICAS

Insurgências do Tempo: tensões entre lembrar e esquecer.


Lima Barreto, o Mnemonista frente à Sonhadora República

LÊDA MAIRA BATISTA

BELO HORIZONTE
Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
2018

1
Resumo: A proposta desta pesquisa é relacionar Literatura e História, analisando os textos de
Lima Barreto intitulados Diário Íntimo e Cemitério dos Vivos (ed. Planeta, 2009), escritos por
ele quando se encontrava internado no Hospício Nacional de Alienados entre 1919 e 1920, no
contexto da cidade do Rio de Janeiro e tendo como marcador a primeira República. As noções
a serem problematizadas serão tempo/espaço articuladas com a categoria de culturas políticas.
Procura-se compreender a relação entre memória/imaginário (um corpo biológico como
espaço praticado) e uma cidade como espaço social, mediada pela escrita em forma de
literatura e expectativas estruturadas em eventos e experiências do tempo métrico
categorizado como tempo/espaço históricos. A condição dos ideais republicanos –
comportando incoerências e provocando tensões políticas e sociais – desempenhou um mal-
estar com o passado, impossibilitando horizontes de futuro, acarretando em um vazio de
perspectivas bem desenhadas, e com isso, afligindo as culturas políticas. O lócus de minha
análise – a questão histórica a ser tratada – é compreender se houve um compartilhamento de
aflições existenciais e temporais entre os escritos de Lima Barreto e a Primeira República, ou
seja, se houve conjunções na forma de articular o passado e futuro, a partir de uma crise no
presente.

Palavras-chave: república, intelectualidade, literatura, experiência e memória.

2
Objetivo principal

O objetivo da pesquisa, em termos abstratos, é explorar a tensão entre a experiência


pessoal do tempo em contraposição ao tempo do imaginário político (para o qual a projeção
do futuro é favorecida). Em termos mais pontuais – o que define os objetos do projeto –, será
explorado o entrecruzamento de duas noções de temporalidade contrárias: de um lado, a
noção encontrada no testemunho pessoal de Lima Barreto organizado na obra Cemitério dos
Vivos1, na qual a presença da tradição faz pesar o passado; do outro lado, o imaginário político
da República, para a qual o comprometimento com a modernidade favorece a expectativa do
futuro.
Referente ao primeiro objeto da pesquisa, a fonte a ser analisada será a obra Cemitério
dos Vivos, escrita por Lima Barreto entre 1919 e 1920 2, enquanto o autor se encontrava
internado no Hospício Nacional de Alienados, no Rio de Janeiro, dois anos antes de sua
morte3. Neste momento, a pesquisa tem como escopo rastrear e organizar as evidências de
rememoração, de tensões e as perspectivas de futuro situadas no diário pessoal de Lima.
Referente ao segundo objeto geral da pesquisa, buscar-se-á articular o conjunto de
experiências pessoais com a historiografia que aborda os ideais e o projeto político da
incipiente República4. O referente central, ou seja, o espaço e tempo onde se situa tal conjunto
de experiências, é o contexto cultural e intelectual do Rio de Janeiro no início do século XX –
o laboratório das ideias modernas.
Após esta mínima compreensão da fonte e das noções que balizam o projeto, serão
explorados os pressupostos sobre a construção das temporalidades na narrativa de Lima, a fim
de compreender os modos de subjetivação dos tempos realizados pelo autor. Os modos de ver
e sentir o passado e as perspectivas de futuro ali descritas geram a tensão que este trabalho

1 Nome do livro editado que reúne dois tipos de narrativas: o Diário Íntimo e Cemitério dos Vivos (romance).
Ambos os textos foram escritos por Lima Barreto no contexto de seu internamento. Portanto, tenho a intenção de
analisar o livro como um todo e problematizar o processo de editoração por qual passou o diário pessoal
(transformado em livro editado).
2 Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), nasceu no Rio de Janeiro no contexto de transição e conflito
Império-República, nesse cambiar de imaginários políticos. Foi um escritor voltado às incoerências políticas de
sua época, transeunte entre centro e subúrbios. Sua obra mais conhecida é Triste Fim de Policarpo Quaresma,
publicado no Jornal do Commercio em 1911. A primeira edição em livro é de 1915.
3 Primeiramente nomeado como Hospício Pedro II, inaugurado no Rio de Janeiro em 1852, o Hospício Nacional
de Alienados (rebatizado com a Proclamação da República) foi o primeiro hospital psiquiátrico do Brasil e o
segundo da América Latina.
4 Articulação histórica do passado no sentido benjaminiano, negando uma postura que se empenha na descrição
exata daquilo que um dia foi, como crítica ao historicismo, que se empenha em esgotar questões e
acontecimentos da história.
3
visa tratar. Por fim, um aprofundamento crítico será feito ao problematizar a ideia de tempo
elaborada pela República.
Deste modo, o objetivo principal do projeto é proporcionar um melhor entendimento
das relações entre subjetivação do tempo e imaginário republicano, estabelecendo um diálogo
entre o diário de Lima Barreto5 e o contexto da Primeira República, o que poderá ser
pertinente e ampliador para o campo das culturas políticas.

Objetivos secundários

Supõe-se que ao longo do desenvolvimento da pesquisa e das problemáticas que


surgirão, é possível que outras obras de Lima Barreto possam vir a integrar o projeto de
dissertação, devido a sua riqueza em evidências literárias endereçadas à República, como é o
caso de Numa e a Ninfa6 e Os Bruzundangas7. Contudo, o testemunho lócus da pesquisa
permanecerá sendo o diário íntimo de Lima, levando em consideração a relevância que
possuem as categorias memória e experiência na pesquisa.
Avalia-se, além disso, que o resultado e as considerações referentes ao processo e
dinâmica da pesquisa sejam de valor para a comunidade acadêmica, e portanto, estabelece-se
o arranjo e a produção de artigos como objetivo secundário do respectivo trabalho, embora
em caráter proveniente do mesmo. Nomear-se-á o conjunto de artigos como ‘campo dos
possíveis’, são eles: 1) Eu não quero morrer; quero outra vida: tensões entre o lembrar e o
esquecer; 2) Reclusão e suicídio: um intelectual melancólico; 3) A República matou o tempo:
uma nação fundada no esquecimento; 4) Escrita ordinária, Estratos do tempo: memória e
experiência.

Justificativa

Como problema maior, em seus jogos de tensão, a relação entre tradição e


modernidade; e como fonte de pesquisa, a escrita ordinária em forma de diário íntimo como
recurso na reconsideração da compreensão de tempo, das exigências republicanas visando o
novo, o progresso, a aceleração do tempo, a modernidade; enquanto Lima Barreto, em sua

5 Ao longo de todo o projeto, fez-se a escolha de usar os codinomes Lima Barreto ou Lima, ao invés de referir-se
à Afonso Henriques, compreendendo que há uma identidade de autor e intelectual no nome Lima Barreto –
sendo coerente com a sua condição de escritor.
6 Endereçado por Lima como o seu “romance da vida contemporânea” (SCHWARCZ, 2017).
7 Obra publicada postumamente, em 1922. Tendo como tema a forte sátira do cotidiano político e cultural
exercido ao longo da Primeira República no Brasil.
4
sensível intelectualidade, direciona o seu olhar para o passado como que em um movimento
de desaceleração do tempo histórico, se detendo nostalgicamente sobre a tradição.

A partir do diário pessoal de Lima Barreto, parece ser possível vislumbrar chaves de
compreensão da mentalidade do autor que não estão presentes em sua obra publicada em vida.
A escolha da literatura privada de Lima Barreto busca testemunho de uma percepção mais
honesta e menos afetada pelo imaginário corrente no âmbito público. Desta forma, abre-se um
campo onde o pensamento e a imaginação literária do autor podem ser aprofundados em
estudos referentes aos constructos mentais da República. A complexidade das confissões que
o diário pessoal comporta, as referências literárias de Lima, as rememorações e tensões, como
também a sua nostalgia melancólica em sentir desprezo pela condição na qual se encontrava –
estar entre loucos, entre aqueles que deliram e se encerram no silêncio – animam esta
pesquisa em direção a uma problemática relacionando a Primeira República, o diário de Lima
Barreto e as tensões do tempo: o esquecer, o lembrar e o projetar-se para o futuro. Como pano
de fundo, ou como corpos invisíveis, à primeira vista sem materialidade, estão o tempo e a
experiência – corpos que edificam a modernidade ocidental.
Integrando a vertente historiográfica que retoma a Primeira República como um
período rico e estratégico para a história política e cultural do Brasil, segundo a historiadora
Ângela de Castro e Gomes, a análise das tensões entre percepção temporal e imaginário
político daquele contexto pode lançar luz sobre o hoje 8. A pesquisa busca se envolver, deste
modo, com questões de extrema relevância no que tange a história política contemporânea, ao
admitir em seu escopo as tensões existentes por trás do otimismo dos ideais republicanos num
geral, que permanecem exercendo influência no Brasil atual. Julga-se a literatura de Lima
Barreto como antagônica a este otimismo e desiludida com as representações românticas
acerca do Brasil. Nos diários do literato não havia deslumbramento para com o imaginário
republicano – antes, uma grave melancolia e tristeza diante daquilo que poderia ter sido e não
foi.
No entanto, o que tem a ver este sentimento de otimismo com culturas políticas? A
República estava em disputa por três correntes ideológicas – o positivismo, o liberalismo à
americana e o jacobinismo à francesa – que supunham modelos organizativos da sociedade
republicana, todos eles permeados de utopia e uma boa dose de otimismo. Todavia, o
positivismo se destaca em termos de utopia; a república era aí vista dentro de uma
perspectiva mais ampla que postulava uma futura idade de ouro em que os seres humanos se

8 Rebeldes literários: intelectuais e nacionalismo na Primeira República (GOMES, 2007).

5
realizariam plenamente no seio de uma humanidade mitificada (CARVALHO, 1990). Tais
visões de república foram cristalizadas em símbolos e mitos, carregando consigo visões de
mundo, projeções de interesses, modelando condutas, atingindo o imaginário social de toda
uma época; até que ponto, isto atingiu a mentalidade de Lima Barreto? O que fez com que a
passagem dele pelo positivismo fosse breve e ligeira? A descrença, a falta de otimismo de
Lima Barreto se entrevê na seguinte passagem: nunca pude acreditar que aquele conjunto de
doutrinas, capazes de falar e seduzir inteligências, fosse capaz de arrebatar corações com o
ardor e o fogo de uma fé religiosa 9. Qual é a valoração dada por Lima ao futuro republicano?
Há uma leitura comum do passado? Para ele o regime republicano encantou apenas os olhos,
ou também o coração do imaginário coletivo? De que forma estabelecia um diálogo com os
símbolos e rituais da Primeira República, ao expressar suas emoções ao longo do diário?
Como se deu a elaboração das chaves de leitura do imaginário em sua literatura?
É imprescindível levar em consideração a renovação da história política e, em
consequência, a categoria de culturas políticas10 como ampla, todavia, repleta de diferentes
contornos e linhas de influência no âmbito acadêmico. As pesquisas não devem se deter
apenas sobre a macropolítica e dispensar todas as subjetividades envolvidas na história; o
quantum da modernidade não é suficiente para responder às problemáticas do presente. Deve
assim, enquanto análise histórica, ressaltar a experiência ordinária dos sujeitos, a fim de
contribuir e alargar os horizontes de pesquisa das culturas políticas. Portanto, é o campo dos
possíveis e não do esgotamento, parafraseando a historiadora Eliana Regina de Freitas
Dutra11.
A noção de experiência torna-se, assim, qualificadora das relações entre a cultura e a
política. Considera-se válido à pesquisa o conceito de experiência desenvolvido por Walter
Benjamin, Erfahrung (1933)12, e por consequência, a relação que estabelece com o
conhecimento, uma vez que na perspectiva benjaminiana toda manifestação da experiência é
linguagem e esta, como aponta Jeanne-Marie Gagnebin13, se situa na dimensão simbólica14.
Dessa forma, não há uma separação em termos de valoração entre imaginário e pensamento; e
o conhecimento não é fixo e sim fragmentário, como a própria memória, que se forma

9 Pp. 129 -130.


10 Só recentemente o campo das culturas políticas foi reconhecido pelos historiadores, seu maior
desenvolvimento teórico-metodológico sucedeu-se nas Ciências Políticas e na Antropologia (DUTRA, 2002).
11 História e Culturas Políticas: definições, usos, genealogias (DUTRA, 2002).
12 Em Experiência e Pobreza (BENJAMIN, 1933).
13 Jeanne-Marie Gagnebin de Bons (Lausanne, 1949) é uma professora, filósofa e escritora suíça, residente no
Brasil desde 1978.
14 Lembrar, Escrever, Esquecer (GAGNEBIN, 2006).

6
rizomaticamente e não linearmente15. A memória é, portanto, o campo das tensões, que
manifesta os silêncios tão sagrados à narrativa oficial das culturas políticas. É, ainda, lugar
privilegiado onde são elaboradas as experiências históricas. Como cita Heloísa M. Starling:

Hoje eu diria que a literatura ajuda a revelar algumas coisas da tradição esquecida – no
sentido conferido pela Hannah Arendt – da República no Brasil. No momento em que se
reconhece que a ficção é capaz de dar algo que os historiadores não atingem sozinhos, a
nossa relação com ela se torna mais respeitosa, e entendemos como a literatura opera com
ferramentas próprias. Isso é rico16.

Desse modo, a imaginação tem papel central no processo de reconstituição histórica.


Neste contexto, a presente pesquisa tem a intenção de compreender como a linguagem
literária de Lima Barreto revela dimensões de tempo e de pensamento [primordiais] para a
história política da República. Situada numa fronteira onde história política e história cultural
se cruzam, a relevância desta pesquisa manifesta-se ao analisar a linguagem política e o seu
vocabulário simbólico – visão de mundo compartilhada – com base em uma fonte
confessional própria de um cenário de mudanças, no qual as culturas políticas formavam-se
em meio as rupturas e a um conjunto influente de discursos, o que exige maior cuidado e
ressalva ao interpelar os silêncios e as ausências da narrativa.
Como última nota, antecipa-se que não se pretende trabalhar com a história da loucura,
da psiquiatria no Brasil, ou mesmo priorizar um estudo acerca das práticas eugenistas que
preencheram os projetos políticos do Estado, no final do século XIX e início do século XX,

mesmo reconhecendo que a fonte é sugestiva em evidências para isto17.

Breve desenvolvimento e Metodologia

Alvorecer do século XX, Rio de Janeiro, onde a República ensaiava os seus primeiros
passos e continha mais incoerências que certezas. No laboratório do moderno no Brasil –
laboratório intelectual e político – formou-se o imaginário 18 de Lima Barreto, afinal este
homem não estava desgrudado da história, tem ele o seu contexto, faz-se e se refaz nesse
tempo/espaço onde as noções da belle époque adentravam o espaço público e também o

15 Ao invés de pensar a história, a memória e o conhecimento como tendo uma raiz fixa, situada num único
ponto, Deleuze e Guattari desenvolveram o conceito de rizoma, pensando o conhecimento como ramificações,
com direções voláteis. No campo literário, esta perspectiva pode ser vislumbrada em Guimarães Rosa
(BARROS, 2007).
16 STARLING, 2017.
17 Já há trabalhos com essa preocupação, como é o caso do texto Para mim, Paraty – alcoolismo e loucura em
Lima Barreto, de Marco Antônio Arantes.
18 “O imaginário – comportando aqui não apenas as imagens visuais, mas também as imagens mentais e
oníricas, o universo simbólico e os modos de representação.” (BARROS, 2007)
7
privado. É este um período de profunda transformação, como menciona Moacir Scliar na
seguinte passagem, em que:

[...] a realeza brasileira chegará ao fim e será proclamada a República. Um novo ciclo
econômico inicia-se, o do café, e terá início a industrialização. Chega ao país a onda de
otimismo europeu, gerada pela modernização e pelo progresso que acompanharam a
segunda Revolução Industrial. As ferrovias se expandem, surgem o automóvel, o motor a
diesel e o avião; o telégrafo e o telefone; o cinema e a psicanálise; a teoria quântica e a
revolução pasteuriana. Novas correntes de pensamento, novas formas de expressão artística
e cultural emergiam então19.

Em meio ao clima de diversão e otimismo, no qual a classe média, em sua euforia pelo
novo, contrastava com a crescente miséria urbana, o ideal republicano ia formando a pátria e
projetando esperanças no futuro. Em paralelo, a República rompia com a história, negava
passados e antepassados, narrava vitórias imaginadas, dava por encerrado assuntos não
resolvidos. Refere-se, em especial, ao silenciamento do passado colonial, à construção do
esquecimento como mecanismo político do Estado.

Nesse leque, não havia espaço para a tristeza. Desse modo, a República pode ser
tomada como maníaca ao se apresentar hiperativa, com uma energia aparentemente
inesgotável, com projetos grandiosos e pouco realistas 20, mas, ao mesmo tempo, irritável e
não raro agressiva21. Toma-se como exemplo maior do que se afirma o arrojado
empreendimento da capital moderna de Minas Gerais que, diferenciando-se da maioria das
cidades, foi erguida pela intervenção estatal que lhe atribui um traçado de experiências
próprio das cidades planejadas. Deste modo, Belo Horizonte preconiza um projeto de
modernização nacional porquanto atende ao ideário político de uma elite local.

Referindo-se a literatura de Euclides da Cunha e Lima Barreto, o historiador Nicolau


Sevcenko, em Literatura como Missão, tensões sociais e criação cultural na Primeira
República, afirma que

[...] o que os chocava era justamente a brusquidão dessa ruptura entre o passado e o futuro,
que desfez todos os elos éticos capazes de conter nos indivíduos os instintos mais egoísticos
e antissociais, instilando- lhes aspirações elevadas como modelos de conduta. Ruptura com
o tempo que era também ruptura com os homens, com a terra e com o dever: uma espécie
de declaração de guerra de cada um contra tudo e contra todos. Sua missão era, pois
restaurar a solidariedade essencial ao nível da sociedade e das relações dessa com a
natureza22.

19 SCLIAR, 2003, p. 172.


20 Os sanitaristas como um bom exemplo disto, em especial Oswaldo Gonçalves Cruz.
21 Pereira Passos pode ser tomado como evidência de tal conduta.
22 SEVCENKO, 1999, p. 241.

8
Para além de concordar ou discordar da forma como o historiador vê tal literatura,
cabe entender a relação que a respectiva literatura articula com uma das características
cruciais da modernidade: a destruição do passado no presente para a construção do futuro. A
crença de que a vida moderna implica um todo coerente está ausente em Lima Barreto. Cabe
tomar a imagem típica da imaginação modernista, Tudo que é sólido desmancha no ar, a fim
de evocar as tensões temporais e os traumas históricos que constituem a modernidade, no
sentido de expor as contradições internas desta23. Há um lado escuro da luz moderna,
suprimida por muitos de seus ideólogos, e não se trata da falta de empatia burguesa ao
explorar pessoas, mas sim de que tudo o que a sociedade burguesa constrói é construído para
ser posto abaixo24. A brusquidão dessa ruptura é o próprio capitalismo. As cidades, as nações
e as corporações são feitas para serem desfeitas amanhã. É a destruição que produz o lucro. O
tempo pode ser tomado como um monumento burguês, que é constantemente pulverizado ou
dissolvido, a fim de que possa ser substituído por um outro, mais lucrativo. A tradição é
destruída com celebridade25.

No caso de Lima Barreto, o lado escuro da luz moderna pode ser evidenciado ao
analisarmos a expressividade de seu desânimo, o qual via em sua loucura a degradação
humana. O suicídio é uma constante no diário; a única manifestação de futuro, ou melhor, de
rompimento com o futuro. Desistência da própria existência, é a única forma de não mais
lembrar e por fim, esquecer de tudo. Num delírio contundente, Lima diz: Suicidou-se no
pavilhão um doente. O dia está lindo. Se voltar a terceira vez aqui, farei o mesmo. Queira
Deus que seja um dia bonito como o de hoje. Já em outro momento, contradizendo a si, na
conta de suas ambiguidades e sem ter padrões estáveis em sua narrativa, diz ele:

[...] sinto que a vida não tem mais sabor para mim. Não quero, entretanto, morrer; queria
outra vida, queria esquecer a que vivi, mesmo talvez com perda de certas boas qualidades
que tenho, mas queria que ela fosse plácida, serena, medíocre e pacífica, como a de todos26.

Aqui cabe referenciar o pensamento de Friedrich Nietzsche, em sua consideração


intempestiva na qual compreende que a formação histórica pode ser prejudicial à vida 27. Ao
caracterizar a humanidade como histórica, declara que todos os homens e mulheres
encontram-se presos ao lembrar, à impossibilidade de não esquecer, e com isso estão

23 Frase derivada de Karl Marx, mas diretamente do Manifesto Comunista (BERMAN, 2007)
24 Cf. BERMAN, 2007, p. 90.
25 Não à toa, as crenças e costumes populares foram severamente criminalizados pela Primeira República.
26 BARRETO, 2004, p. 60.
27 Segunda Consideração Intempestiva, da utilidade e desvantagem da história para a vida (NIETZSCHE,
2003).

9
subordinados à corrente do instante, daquilo que passou embora sempre regresse. Entretanto,
se incessantemente uma folha se destaca da roldana do tempo, cai e é carregada pelo vento –
e, de repente, é trazida de volta para o colo do homem 28, o peso da memória pende no corpo
deste homem de forma opressora, o aflige como um fardo invisível porém onipresente,
remetendo-lhe a um “paraíso perdido”, permeado por aborrecimentos, como bem mostra este
trecho do diário de Lima: “[...] Sonhei Spinoza, mas não tive força para realizar a vida dele;
sonhei Dostoievski, mas me faltou a sua névoa”29. O peso do histórico vai então evidenciando
fracassos, e tanto o álcool quanto a loucura são descritos por ele como lugares de fuga, fugas
de si e do tempo – de não ter sido um outro, num outro tempo30. Nesta perspectiva, tempo e
espaço são redimensionados. Todavia, a memória ganha proeminência através da literatura.

É possível não falar do passado. Uma família, um Estado, um governo podem sustentar a
proibição; mas só de modo aproximativo ou figurativo ele é eliminado, a não ser que se
eliminem todos os sujeitos que o carregam (seria esse o final enlouquecido que nem sequer
a matança nazista dos judeus conseguiu ter). Em condições subjetivas e políticas ‘normais’,
o passado sempre chega ao presente31.

No entanto, a pesquisa debruça-se entre as problemáticas do caráter a-histórico que


tem como desejo esquecer o passado e se voltar para o futuro, e a história monumentalista dos
antiquários, que cumpre com a auto-arqueologização do passado ocidental 32. Divergente do
passado institucional (de uma grande família política), o passado em uma dimensão individual
continua ali, longe e perto, espreitando o presente, sem necessitar da inteligência ou do poder
de decisão da consciência – ele emerge e nem sempre é um momento libertador da
lembrança, mas um advento, uma captura do presente 33. Lima assumiu com franqueza que,
mesmo vivendo cem anos, “nunca poderão apagar-me da minha memória essas humilhações
que sofri”34. Vê-se tomado pela incompreensão de sua posição sofredora, pois entendia que a
sua condição de intelectual e literato – um homem honesto, instruído e educado – só devia lhe
encaminhar a uma vida pura e bem sucedida.

Como tratamento metodológico, elegeu-se um recorte privilegiado que opera como


lugar de projeção de um imaginário (o diário de Lima Barreto); no entanto, pretende-se

28 NIETZSCHE, 2003, p. 20.


29 Cemitério dos Vivos, 2004, p. 120.
30 A fuga do Eu é evidente em toda a narrativa íntima de seu diário, numa constante desaprovação de si mesmo.
Se em relação à política e ao funcionalismo público da República ele soube mostrar escárnio, quando se trata de
sua própria vida, ele apresenta medos, aborrecimentos, ódio e incompreensão.
31 SARLO, 2007, p. 10.
32 Neo-historicismo tão criticado por Friedrich Nietzsche e analisado por Walter Benjamin.
33 SARLO, 2007, p. 9.
34 Cemitério dos Vivos, 2004, p. 70.

10
proceder numa dinâmica intertextual – o diálogo que o livro de Lima estabelece
implicitamente com outros textos e discursos – ao aprimorar em uma revisão bibliográfica e
hemerográfica35 sobre a história das emoções, transfiguradas como afetos (CORBIN, 2017).
Ao trabalhar com elementos extradiscursivos, cabe analisar materiais iconográficos que
refletem as ambiguidades e fraturas da República brasileira, bem como expor leituras axiais
relacionando literatura e história, memória e história, tensões de temporalidades. Trilhando
percalços semelhantes ao de Carlo Ginzburg, historiador que tem visibilidade pela
interconexão que executa entre uma história cultural (dimensão) e uma microistória
(abordagem)36.

Explorando metodologicamente as tensões entre as temporalidades (presente, passado,


futuro) e as distintas compreensões de tempo numa mesma época, utiliza-se a noção de
estratos do tempo de Reinhart Koselleck, ponto do qual retoma-se a discussão acerca de
memória e experiência no espaço/tempo, a fim de ampliar as problemáticas do campo
historiográfico, ao entender que:

O proveito de uma teoria dos estudos do tempo consiste em sua capacidade de medir diferentes
velocidades, acelerações ou atrasos, tornando visíveis os diferentes modos de mudança, que
exibem grande complexidade temporal37.

Comportando vestígios da experiência, o diário pessoal pode ser lido como um local
no qual tempos e fatos se entrecruzam, e se constitui em uma fonte material que chega ao
presente como um conjunto de evidências de práticas culturais do sensível.

Os diários pessoais entram em cena como fonte histórica por conterem registros de práticas
sociais que partilham da constituição de um regime de historicidade, ou seja, expõem as formas
de como indivíduos em sociedade tratavam seu dia a dia, naquele presente da escrita. Escritos à
mão, materializados em pape e tinta, os diários eternizam, em folhas amarelecidas pela
passagem do tempo, ideias, saberes, valores, acontecimentos e dizeres, além de fantasias,
medos e experiências – tudo isso são representações de um outro tempo que dão sentido ao
mundo social, criando outras realidades38.

35 Fontes hemerográficas são aquelas cujo suporte material se constitui de textos impressos, ou publicados por
outros meios (como os virtuais), em forma de periódicos (jornais, revistas, outros) e que são utilizadas como
fonte na pesquisa histórica (SAMPAIO, 2014).
36 “A microistória corresponde a uma modalidade da História que procura empregar uma nova escala de
observação no exame das sociedades históricas. Elegendo como campo de observação um determinado lócus
bem circunscrito – uma vida anônima, uma prática social localizada, uma comunidade – a microistória almeja
conhecer através da gota-d’água algo do oceano inteiro. Para utilizar uma metáfora comum entre os
microistoriadores, abandona-se aqui o ‘telescópio’ em favor do ‘microscópio’, o olhar panorâmico e distanciado
em favor do olhar detalhista e aproximador.” (BARROS, 2007).
37 KOSELLECK, 2014, p. 22.
38 CUNHA, 2009, p. 253.

11
Por fim, além do desenvolvimento acerca da categoria de análise tempo, há uma outra
questão relevante: o suporte material do diário pessoal – fonte histórica reconhecida como
escritas ordinárias – e nesse caso, a transformação do diário de hospício de Lima Barreto em
livro editado39. Cabe discutir que ao se alterar o suporte – de diário para livro –, modifica-se a
concepção de análise histórica, uma vez que ocorre uma edição das subjetividades contidas no
relato confessional realizada no tempo presente (temporalidade do editor). Deste modo, uma
reordenação do texto, das palavras, repercute em uma alteração de significados e
representações. Apesar da fonte primeira ser o livro editado, que reúne o Diário Íntimo e o
romance Cemitério dos Vivos, pretende-se ter contato e analisar o diário original, como
também investigar o processo de editoração do diário. A problematização disto caberá como
fomentadora da pesquisa.

39 A maior parte de seus escritos, entre eles o seu diário íntimo, foram publicados postumamente entre as
décadas de 1940 e 1950, a partir de pesquisas de Francisco de Assis Barbosa, o seu principal biógrafo.
12
REFERÊNCIAS

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