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Integralidade da saúde: significado e situação atual Health Integrality: current


status and significance

Article  in  Revista Ciências em Saúde · January 2009

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Katia Batista
University of Brasília
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Artigo Original

Integralidade da saúde: significado e situação atual


Health Integrality: current status and significance

RESUMO 
Kátia Tôrres Batista1 Introdução: O direito à saúde é assegurado na Constituição Brasileira
Karin Richter Caldas1 e tem seu papel primordial para a qualidade de vida dos indivíduos,
Jorge Alberto Cordon Portillo1
promoção de igualdade de oportunidades e desenvolvimento das ca-
pacidades. O modelo de assistência em saúde tem como princípio a
integralidade, e procura enfatizar as medidas preventivas e educativas,
ampliando a consciência da comunidade quanto aos cuidados com a
própria saúde e aos direitos igualitários.

Objetivo: Os autores propõem uma reflexão da situação da integralida-


de no sistema de saúde brasileiro, no seu significado e na situação atual,
baseada na bioética de intervenção.

Métodos: Estudo descritivo com análise documental e enfoque bioético.

Resultados e conclusão: Concluem que transformações são necessárias


e que passam por mudanças iniciadas pelo ensino da área da saúde, para
que haja uma perspectiva de melhora nas práticas profissionais, e por
mudanças no Estado brasileiro, para manter a universalização do aten-
dimento e a saúde como um princípio ético e social a ser preservado.
Programa de pós-graduação em Bioética
1

da Universidade de Brasília/
Brasília-DF, Brasil Palavras-chave: Saúde; Integralidade; Bioética de intervenção.

ABSTRACT
Correspondência Introduction: The right to health is assured in the Brazilian Constitu-
SQN 115, bloco I, apartamento 205, Asa tion and has an important primordial place in the individual’s quality
Norte, Brasília-DF. 70772-090, Brasil.
katiatb@terra.com.br of life, equality promotion and capacity development. The model of
assistance in health has as integrality principle. This model seeks to give
emphasis on the preventative and educative methods of extending of
the consciousness of the community as to caring for one’s own health
Recebido em 18/novembro/2008
Aprovado em 17/fevereiro/2009 and to the equal rights of others.

Com. Ciências Saúde. 2009;20(1):9-16 9


Batista KT et al.

Objective: The authors propose a reflection of the situation of the com-


pleteness in the health Brazilian system, its meaning and the current
situation, based in the bioethics of intervention.

Methods: A descriptive study to document analysis and bioethical ap-


proach.

Results and conclusion They conclude that transformations are neces-


sary, and begin with health education, so that one has a perspective of
improvement in professional practice and changes in the Brazilian so-
ciety to keep the universal attendance and ethical and social principles
of health to be preserved.

Key words: Health; Integrality; Intervention bioethics. 

INTRODUÇÃO

O movimento da reforma sanitária brasileira dedi- organização das ações, os modelos de gestão dos
cou-se desde 1990 à criação e estruturação do Sis- serviços e a formação dos profissionais que aten-
tema Único de Saúde (SUS)1. Apesar das dificul- dem no sistema. “O indivíduo deve ser entendido
dades e dilemas enfrentados pelo SUS, evidências como um ser humano inserido no seu contexto
demonstram a sua importância e o grande passo físico, social e histórico”5.
para inclusão de pessoas antes excluídas do siste-
ma de atendimento1,2,3. É evidente a dificuldade O propósito do artigo é refletir, por meio da análi-
do Estado brasileiro em manter a universalização se documental, o significado e a situação da inte-
do atendimento, somada à iniquidade e à frag- gralidade na saúde brasileira sob a perspectiva da
mentação. Propõe-se uma discussão a partir do bioética de intervenção6.
princípio da integralidade1.

Entende-se por integralidade o cuidado de pes- MÉTODO


soas, grupos e coletividade promovido por uma
equipe multidisciplinar, considerando a pessoa Numa primeira etapa, foram buscadas fontes so-
como um todo4. Para a sua aplicação, pressupõe- bre o Sistema Único de Saúde e, nelas, os docu-
se a integração entre as práticas dos profissionais, mentos necessários para a pesquisa a respeito da
dos serviços de saúde e das políticas públicas que Integralidade e bioética de intervenção. Trata-se
possam repercutir na saúde e na qualidade de de um trabalho descritivo com análise do material
vida dos indivíduos4. O princípio da integrali- pesquisado no enfoque da discussão bioética.  O
dade, constante na Lei Orgânica de Saúde (Leis contexto histórico e sociocultural foi o modelo
8.080 e 8.142/90), é descrito como um “con- de assistência vigente, o Sistema Único de Saú-
junto articulado e contínuo de ações e serviços de7,8, e o princípio da integralidade. A discussão
preventivos e curativos, individuais e coletivos, fundamentou-se nos conceitos da Bioética de
exigidos para cada caso, em todos os níveis de intervenção proposta por Garrafa9,10. Na base de
complexidade do sistema”5,6. “A dimensão de dados, foram encontrados 381 artigos com pala-
cuidado do homem não se limitaria à assistên- vras-chave bioética, saúde e integralidade. Foram
cia médica, expandindo-se ao ambiente em que pesquisados sites do Sistema Único de Saúde (Por-
ele vive”1,4. Requer a integração de ações para a tal da saúde7 e Datasus11), do Conselho Nacional
promoção da saúde, prevenção de doenças, tra- de Saúde12 e da CONASS13 (Conselho Nacional de
tamento e reabilitação. Inclui ainda a eficácia, a Secretários de Saúde).

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A integralidade da saúde

SIGNIFICADO DA INTEGRALIDADE alcançar a integralidade. O primeiro refere-se à


mudança do modelo de formação do profissional
de saúde. O segundo, à educação, principalmente
Filosófico e conceitual em saúde, fornecendo subsídios para a emancipa-
A reflexão sobre a importância da integralida- ção e empoderamento. E, por último, ao conjunto
de vem desde os tempos de Platão (apud Gada- de ações, em todos os níveis de complexidade, do
mer14), quando se refere à arte de curar como sistema de saúde, para buscar e manter a integra-
o conhecimento da natureza do espírito e do lidade da saúde1,2,4,5,6.
corpo. Sócrates (apud Gadamer14) questiona o
entendimento da natureza da alma sem o enten- Amartya Sen16, ao abordar equidade e integralida-
dimento da natureza do todo, pois ele não admi- de, define justiça como a necessidade de prover
tia qualquer observação isolada dos sintomas, e, meios para a ampliação de liberdades efetivas, que
para Gadamer14, a doença é a perda do equilíbrio, possibilitem ao indivíduo satisfazer suas necessi-
não apenas um fato médico-biológico, mas parte dades e, ainda, optar por buscar, ou não, outros
de um processo histórico da vida. Enfim, a do- bens também considerados importantes para ex-
ença, como perda da saúde, implica a perda da pressar suas melhores “capacidades”. Um exemplo
“liberdade” e exclusão da vida14. da tentativa da aplicação do princípio da integrali-
dade pode ser visto nos Centros de Saúde, quando
Ocorreram mudanças no aprendizado e exercício se realizam palestras, nas associações e grupos de
da medicina ao longo da história da humanidade. doenças, nas atividades de acompanhamento pré-
Hoje o “doente” não é visto mais como era no pas- natal e do crescimento e desenvolvimento infantis,
sado, na sua casa, com a sua história de vida. O entre outras.
atendimento médico atual é fragmentado nas dife-
rentes especializações médicas, e o paciente é visto
distante da sua situação de vida. Para Garrafa8, é A integralidade como princípio do Sistema de Saúde
importante visualizar a doença numa esfera social-
mente construída. O médico, como profissional Breve histórico do surgimento do sistema de
de saúde, entra na situação da vida do indivíduo, saúde vigente no Brasil
no momento em que existe uma necessidade de
conhecer a doença e o seu processo. Assim, ele Historicamente, as ações em saúde foram centra-
procura ajudar a recuperar o equilíbrio. Isso não das na doença. No início, com dois focos prin-
significa apenas eliminar os defeitos somáticos, cipais para ações: o tratamento e a cura. Atual-
mas buscar o equilíbrio integral àquela situação mente, o delineamento dos indicadores de saúde
de vida que se tornou descontrolada14. das populações, monitorados, dentre outros dis-
positivos, através das estratégias de vigilância em
O que seria a saúde integral? Segundo Suzana Vi- saúde, tem orientado ações que apontam para a
dal15, a saúde integral é: importância das intervenções preventivas a partir
de um conceito de saúde3.
definida como um direito humano que resguarda
o pleno exercício dos outros direitos humanos. É O modelo de saúde vigente no Brasil, do sécu-
entendida como um desenvolvimento das capaci- lo XIX até a década de 1920, era o sanitarista
dades humanas essenciais: ter uma vida longa e campanhista de inspiração militar, sob a respon-
saudável, ter conhecimentos e desfrutar de um ní- sabilidade do Ministério da Justiça, e tinha por
vel decente de vida (o que requer ter acesso à água finalidade o combate às epidemias. Na década de
potável, alimentação, medicamentos e a serviços 1930, a partir do governo de Getúlio Vargas, a
de saúde). saúde passou a ser vinculada ao trabalhador, fi-
nanciada por uma fonte tripartite composta pelo
Traduzindo para a realidade brasileira, o Sistema estado, empresas e trabalhadores. Em 1953 foi
Único de Saúde tem um papel de assistência à criado o Ministério da Saúde e houve um au-
saúde e de inserção social, à medida que procura mento das ações de Saúde Pública. Na década de
atender o indivíduo como um ser humano integral 1960, criou-se o Instituto Nacional de Previdên-
submetido às mais diferentes situações de vida e cia Social, seguido da Lei orgânica da previdên-
trabalho. Dentro desse contexto, o atendimento cia. O modelo de saúde era médico-assistencial
deve ser feito para a saúde e não somente visan- privatista, composto pelo Estado, setor privado
do às doenças. Vale ressaltar os três eixos para nacional e setor privado internacional3,5.

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Batista KT et al.

Nesse sistema ocorreu a extensão da cobertura Lei Orgânica da Saúde7,19. Essa Lei dispõe sobre
previdenciária para a população urbana e rural, a organização, o funcionamento e a regulamen-
privilegiando a prática médico-curativa individual tação dos serviços para a promoção, proteção e
e assistencialista, em detrimento da saúde públi- recuperação da saúde. Foram criadas também as
ca, a criação de um complexo médico-industrial, Constituições Estaduais e as Leis Orgânicas dos
a organização do sistema de saúde orientado pela Municípios, adaptando-se a legislação no âmbito
lucratividade, e privilégios para o produtor priva- estadual e municipal. Vale ressaltar a importância
do de serviços de saúde. As fraudes dos setores do envolvimento da sociedade e do pacto entre as
públicos e privado e a improbidade administrati- diferentes forças políticas observados na Assem-
va, dentre outros aspectos, motivaram grave crise bleia Nacional Constituinte7.
financeira. Em 1978, com a Conferência de Alma-
Ata, ressurgiu uma nova apresentação da atuação Os princípios norteadores do SUS são: a univer-
dos determinantes de saúde. Esses fatos, aliados às salidade, que define o atendimento a todos, sem
dificuldades no controle da morbimortalidade na- distinções ou restrições, oferecendo toda a atenção
cional, fizeram com que, na década de 1980, vies- necessária, sem qualquer custo financeiro ao indi-
se à tona um declínio ideológico, político-institu- víduo; a integralidade para a atenção que abrange
cional e financeiro da previdência, culminando, as ações de promoção, prevenção, tratamento e
em 1986, na VIII Conferência Nacional de Saúde17 reabilitação, garantindo o acesso a todos os níveis
e na criação do Sistema Único de Saúde11,18,19. de complexidade e a equidade, pela igualdade da
atenção sem privilégios ou preconceitos; assim
Nas décadas de 1980 e 1990, o conceito de as- como a disponibilidade de recursos e serviços de
sistência à saúde como direito foi enfraquecido forma justa, de acordo com as necessidades e con-
pelas políticas econômicas neoliberais das priva- dições sociais e sanitárias das pessoas5,7.
tizações, da redução da ação do Estado e do livre
mercado, sobretudo pelo sistema produtivo capi- A integralidade, como princípio articulador no
talista. Procurou-se melhorar as condições de vida SUS, visa à promoção de saúde e à capacitação
e de injustiça com um sistema de saúde igualitário. da comunidade para melhorar suas condições de
Entretanto, as desigualdades sociais, as tensões e vida e saúde. Desse modo, é definida como es-
pressões do sistema do “valor do mercado” têm tratégias formuladas pelo Estado, comunidade,
dificultado cada vez mais a noção do indivíduo na família e indivíduo, que incorporam valores de
sua totalidade5. solidariedade, democracia, equidade, cidadania,
participação, parceria e desenvolvimento1,4.
O Sistema Único de Saúde: criação, política e
orçamento O Sistema Único de Saúde19 tem um sistema des-
centralizado de política administrativa, com a res-
O Conceito de saúde como um direito à cidadania ponsabilidade de gestão para os municípios, aten-
foi expresso na Constituição Brasileira de 198818, dendo às determinações constitucionais e legais
seção II, nos artigos 196, 197, 198 e 199. Estes que definem atribuições comuns e competências
abordaram o conceito de saúde na perspectiva específicas à União, Estados, Distrito Federal e
política, econômica e social. Ampliou-se o direito Municípios. De acordo com o artigo Art. 198:
do cidadão à saúde do direito previdenciário, e
foi dada relevância pública aos serviços de saúde As ações e serviços públicos de saúde integram
como descrito no artigo 196: uma rede regionalizada e hierarquizada consti-
tuem um sistema único, organizado de acordo com
A saúde é um direito de todos e dever do Estado, as seguintes diretrizes: Descentralização e hierar-
garantido mediante medidas políticas, sociais e quização com direção única; Atendimento integral
econômicas que visem à redução do risco de doença e Participação da comunidade.4
e de outros agravos e ao acesso universal e igua-
litário às ações e serviços para a sua promoção, O orçamento do Sistema Único de Saúde é pro-
proteção e recuperação. vido por três esferas governamentais: o plano
plurianual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a
O Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado sob Lei Orçamentária Anual, através de transferências
o princípio de universalização, com o propósito pelo Fundo Nacional e Estadual de Saúde e por
de “saúde para todos”, conforme previsto na Lei voluntários19. Para o delineamento da alocação
8.080 de 19/09/1990 e 8.142 de 28/12/1990, e distribuição dos recursos destinados à saúde,

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A integralidade da saúde

o gestor público utiliza dados epidemiológicos. ção18, em que a assistência à saúde é livre à inicia-
A União, os Estados e os Municípios devem res- tiva privada. No SUS, à medida que foram criadas
ponsabilizar-se pela aplicação de um percentual condições para a inclusão das camadas populares,
mínimo de variação do valor nominal do Produto antes excluídas do sistema previdenciário, expulsa-
Interno Bruto (PIB) à Saúde. Todos estes recursos ram-se os trabalhadores melhor remunerados, que
públicos devem ser fiscalizados e acompanhados foram obrigados a comprar os serviços do setor pri-
pelos respectivos Conselhos de Saúde, tanto da vado, incrementando, assim, a mercantilização da
União quanto dos estados, Distrito Federal e mu- saúde5. O modelo neoliberal, ou a “universalização
nicípios19,20. do privado”, firmou-se baseado na atenção hospita-
lar e na ausência do Estado. Ocorreu a terceirização
da assistência, dentro da política de complemen-
SITUAÇÃO ATUAL DA INTEGRALIDADE tação ao setor público, mas, no fundo, mantendo-
se a velha política do extinto Instituto Nacional de
Assistência Médica e Previdência Social5. Em alguns
Problemas sociais e crise social aspectos o governo procurou fortalecer o projeto da
O Brasil, como acontece com outros países, en- saúde pública e, em outros, do privado, mas, em
frenta problemas persistentes como pobreza, de- linhas gerais, prevaleceu a manutenção da disputa
sigualdade social, discriminação, violências e ou- entre ambos18,20.
tros. Existem pessoas que vivem na pobreza ou
muito abaixo da linha de pobreza. A extrema po- O SUS tenta promover a educação para a saúde
breza impede não apenas o cumprimento do di- entre os usuários do sistema e determinar áreas
reito social e histórico à assistência a saúde, mas, de risco da população aos agravos à saúde, mui-
principalmente, o direito à vida8. to embora a realidade brasileira seja a de um país
com dimensões geográficas e características regio-
Nesse cenário, inúmeras situações são vivenciadas nais variadas, dificultando a comunicação, infor-
pela crise social. Por um lado, o aprofundamento mação e a universalização. Os indicadores socio-
da desigualdade social, o agravamento das situa- econômicos e de saúde são distintos, a exemplo
ções de pobreza e a exclusão social, o aumento sig- do que se observa na distribuição da população
nificativo de violência e, ainda, a falta de expansão assistida no país. Segundo dados do Ministério da
de políticas fundamentais à saúde da população, à Saúde/Agência Nacional de Saúde – Sistema de
moradia, ao saneamento básico, ao abastecimento Informações de Beneficiários e IBGE11, quanto às
de água e esgoto. Por outro, os dilemas do sistema diferentes abrangências da assistência, conforme
de saúde, a sua mercantilização, os avanços tecno- os estados brasileiros no ano de 2006 em relação
lógicos, os modelos de gestão e organização, a de- aos Indicadores Demográficos Brasileiros, obser-
sumanização2,3,4,9,16. Além do mais, mantiveram-se vou-se que a porcentagem da população assistida
modelos de formação profissional, de atendimen- nos estados de Roraima era de 2,13%, Tocantins,
to e de gestão a partir de políticas focais, em detri- 3,57% e Maranhão, 3,78%. Em outro extremo,
mento da lógica do direito e da seguridade social encontra-se São Paulo, com assistência de 38% e
universal. Somando-se a esses problemas, as ações Rio de Janeiro, de 30%. Contudo, essas desigual-
de saúde sofreram influências do meio em que se dades, juntamente com a pobreza, representam
vive e foram modificadas pelo novo paradigma da mais do que a insuficiência de renda, mas também
saúde, mecanicista e fragmentado. a dimensão estrutural e conjuntural que têm fortes
influências sobre a saúde da população.
Dilemas e problemas da integralidade no SUS
Propostas para reforma sanitária no enfoque da
Com a criação do SUS, redefiniram-se as políticas integralidade
públicas na tentativa de desmercantilização da saú-
de. Contudo, tais políticas foram fonte de enormes Apesar de toda a campanha negativa ao SUS e a fa-
tensões e conflitos, ao se confrontarem com fatores vor da privatização vista na mídia, e do descrédito
do mercado e com a realidade do acelerado pro- da população, discussões e inovações vêm sendo
cesso mundial da busca de lucro pelo comércio do promovidas. Estas visam alcançar maior eficiência
acesso à saúde. Entretanto, o crescimento rápido e qualidade do SUS, tendo por meta a ampliação
do sistema privado de saúde5,6 firmou-se como fon- da atenção básica. Em 2002, na 11ª Conferência
te para acumulação de capital e foi amparado por Nacional de Saúde, foi feito um pacto entre as três
uma brecha constante no artigo 199 da Constitui- esferas de gestão (União, Estados e Municípios)

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Batista KT et al.

com o objetivo de alcançar maior eficiência e qua- cute-se muito sobre a escassez dos recursos para a
lidade do atendimento do SUS. Outras estratégias saúde, mas esquece-se de outros recursos também
são: a Política Nacional de Atenção Básica (Porta- necessários, por exemplo, os recursos humanos,
ria n.º 648, de 28 de março de 2006); a Política ambientais, de informação e de instrução23,24,25.
Nacional de Promoção da Saúde (Portaria n.º 687,
de 30 de março de 2006) e o Pacto pela Saúde Inicialmente, são necessárias mudanças na forma-
(Portaria n.º 399, de 22 de fevereiro de 2006) 7,11. ção profissional, saindo do modelo flexneriano,
baseado na fragmentação do corpo, para uma for-
Com as reformas, busca-se a equidade social, mação que integre as necessidades do indivíduo
priorizando-se a redução da mortalidade infantil como um todo. Esse novo modelo já é adotado por
e materna, o controle das doenças emergentes e algumas escolas médicas21,22. É importante que o
endemias (como dengue e hanseníase), a redução entendimento e o enfoque integral façam parte da
da mortalidade por câncer de colo de útero e da atuação dos profissionais de saúde e “da comu-
mama, entre outras. A transferência dos recursos nidade, para que, partindo de um contexto com-
federais para os Estados e Municípios também plexo e com o qual estão em constante interação,
foi modificada pelo Pacto pela Saúde, passando possibilitem ações transformadoras integralizadas
a ser integrada em cinco grandes blocos de finan- e mútuas”15. Os Ministérios da Saúde e da Educa-
ciamento (Atenção Básica, Média e Alta, Comple- ção instituíram um programa de incentivo às mu-
xidade da Assistência, Vigilância na Saúde, As- danças curriculares nos cursos de Medicina21, cuja
sistência Farmacêutica e Gestão do SUS), sendo proposta é de intervenção “no processo formativo
importante à medida que traz a comunidade para para que os programas de graduação possam des-
dentro do serviço de saúde, agregando o cidadão locar o eixo da formação médica, sintonizada com
ao sistema vigente. Outra estratégia utilizada foi o o SUS, procurando incorporar a noção integraliza-
“Programa de Saúde da Família” (PSF), que tem dora do processo saúde/doença e da promoção da
como objetivo o cuidado às famílias no meio onde saúde, com ênfase na atenção básica”.
vivem.12 Dentre as suas ações destacam-se, prin-
cipalmente, as educativas para o autocuidado e Na formação dos profissionais, a percepção e o
abordagens para priorizar a atenção básica, pre- reconhecimento do outro na visão integral são
servando a autonomia do usuário, do profissional imprescindíveis. São várias as situações que de-
e do serviço de saúde7,11.  mandam a tomada de decisões com embasamento
científico, mas que necessitam de uma avaliação
moral. Desenvolver a competência moral dos es-
REFLEXÕES BASEADAS NA BIOÉTICA DE tudantes no processo da formação profissional
INTERVENÇÃO implica a discussão sistemática de conteúdos e
métodos da bioética.
A criação do SUS significou um marco para a saúde
brasileira, mesmo com todos os dilemas e proble- Fazendo uma análise crítica à luz da bioética de
mas enfrentados. Nos seus 20 anos de existência, intervenção9, cujo fundamento busca priorizar o
reformas e mudanças são necessárias. O resultado coletivo e a equidade, percebe-se a necessidade de
do esforço do SUS seria seguramente bem melhor transformações concretas e permanentes. Procura-
se a política referente a outros setores sociais esti- se definir as responsabilidades sanitárias, a forma-
vesse sob a lógica dos direitos de cidadania como ção e adequação do pessoal para o modelo de saúde
a do SUS21,22. É um tema complexo, que necessita atual, aumentar a relação entre o Estado e os ci-
de discussão com fundamentos bioéticos basea- dadãos para promover financiamento, conforme as
dos em uma orientação normativa para aplicação necessidades das populações, e informar e instruir
na sociedade, pois, conhecer o que é moralmen- a sociedade civil para a consolidação da cidadania.
te bom, justo, pode conduzir a fazer o que deve
ser feito. Isso significa transformar a realidade no O princípio da integralidade tem valores julgados
plano das ideias e buscar estratégias para o cum- desejáveis no sistema de saúde como, por exemplo,
primento de metas. A linguagem dos deveres deve de atenção básica e de promoção de saúde à comu-
ser mais rigorosa do que a dos direitos, utilizando nidade. É inútil falar do interesse da comunidade,
critérios de razoabilidade, racionalidade, plausibi- se não se compreender o indivíduo na totalidade.
lidade, prudência e coerência10. Atualmente, falar Ademais, busca-se construir argumentos que per-
em saúde significa falar de assistência à doença, mitam mudanças e transformações na perspectiva
medidas de prevenção, diagnóstico precoce. Dis- da bioética de intervenção, que tem como princípio

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A integralidade da saúde

o utilitarismo, ou seja, uma ação deve ser benéfica de novos paradigmas éticos, na educação e na saú-
para um maior número de pessoas. de, tanto para os que procuram assistência quanto
para os profissionais que os atendem.
A Bioética de Intervenção8,9 é uma ferramenta em
construção, que busca a politização social e em- Não é possível mudar a assistência à saúde sem
poderamento dos indivíduos e participantes dos mudar as bases econômicas da sociedade, a infra-
conselhos de saúde. Considera-se que uma ação é estrutura social. A promoção da saúde não é res-
ética quando maximiza o prazer, o bem, a vanta- ponsabilidade restrita do setor da saúde, mas, so-
gem ou a felicidade dos indivíduos. Pode-se afir- bretudo, da integração de várias ações do governo
mar que uma medida do governo está de acordo que culminem na melhoria das condições de vida
com esse princípio quando tem maior tendência da população e da oferta de serviços essenciais
de aumentar a felicidade da comunidade do que aos seres humanos, para tentar, assim, reduzir a
de diminuí-la. Enfim, melhorar as condições de forte exclusão social e suas consequências. Não é
vida na perspectiva da integralidade inclui mu- possível, no contexto brasileiro, a aceitação de um
danças ambientais e, principalmente, na educa- Estado mínimo. É conduta ética que este mante-
ção, já que a saúde perpassa por outros setores da nha a priorização e alocação de recursos, a aces-
existência humana8,9. sibilidade aos serviços de saúde, os direitos dos
pacientes e da população e, principalmente, em
consonância com a boa norma geral de proteger e
CONSIDERAÇÕES FINAIS  produzir saúde.

A existência do SUS gerou, ao longo da sua his-


tória, debates e construções normativas e opera- REFERÊNCIAS
cionais de gestão e, ainda, sobre a prestação de
serviços, do trabalho na saúde, do financiamento e 1. Santos NR. Desenvolvimento do SUS, rumos estra-
da participação social, sempre tentando construir tégicos e estratégias para visualização dos rumos.
e consolidar o pacto da saúde democrática. Os Ciênc. saúde coletiva, mar./abr. 2007, vol.12, no.2,
princípios do SUS obedecem aos valores éticos e p.429-435.
morais de uma sociedade, discutidos e aplicados à
luz da Bioética. Muito embora o sistema de saúde 2. Atenção á saúde  acessado no site  http://portal.sau-
brasileiro não seja único, existe uma competição de.gov.br/portal/saude/ em 01/08/2008.
entre o sistema público e o privado, ambos marca-
dos por falhas e problemas em vários níveis, inclu- 3. Campos CEA. As origens da rede de serviços de aten-
sive de gestão. No sistema privado, o profissional ção básica no Brasil: o Sistema Distrital de Adminis-
médico, assim como o gestor, considerado “profis- tração Sanitária. História, Ciências, Saúde – Mangui-
sional liberal”, teria por ideologia ser o seu dono, nhos, Rio de Janeiro, v.14, n.3, p.877-906, jul.-set.
determinar ou selecionar os seus pacientes, e o pa- 2007.
ciente teria liberdade para escolher o profissional,
com direito de determinar os seus custos honorá- 4. Mattos RAA integralidade na prática (ou sobre a prá-
rios e ter a liberdade terapêutica. O paciente e o tica da integralidade). Cad. Saúde Pública, Sept./Oct.
profissional perderam a autonomia, e as reformas 2004, vol.20, no.5, p.1411-1416.
são necessárias e urgentes para a manutenção do
processo de construção do estado brasileiro, base- 5. Chioro A, Scaff A. Saúde e Cidadania: a implanta-
ado na saúde como um direito. ção do sistema único de saúde 1999. Disponível em
URL: <www.consaude.
O SUS atende 60 milhões de brasileiros, principal-
mente em procedimentos de alta complexidade. 6. Garrafa V. Da bioética de princípios a uma bioética
Muitos poderiam ser evitados ou amenizados, se interventiva - Bioetica, 2005 .
houvesse medidas preventivas, incentivos e inves-
timentos em todos os níveis, principalmente na 7. Brasil, O Sistema Único de Saúde acessado no site 
atenção básica. Muitas das transformações deve- www.saude.gov.br/ em 02/11/2008.
riam abranger os interesses da comunidade, à luz
da bioética de intervenção. Na sua ótica utilitaris- 8. Cunha JPP, Cunha RE. Sistema Único de Saúde –
ta, defende os deveres assumidos, ou seja, as leis, e SUS: Princípios. In: Campos FE., Tonon LM, Junior
procura refletir frente aos dilemas para construção MO. (Organizadores). Caderno de Textos de Plane-

Com. Ciências Saúde. 2009;20(1):9-16 15


Batista KT et al.

jamento e Gestão em Saúde. Belo Horizonte. Editora toração e Publicações – Subsecretaria de Edições
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