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CARLA G UANAES-LORENZI
“... não apenas o que fazemos, mas também o que podemos fazer é restringido
pelos direitos, deveres e obrigações, que adquirimos, assumimos ou que nos são
impostos nos contextos sociais concretos da vida cotidiana” (HARRÉ & VAN
LANGENHOVE, 1999a, p.04).
1
Segundo estes autores, episódios são definidos como seqüências de comportamentos, pensamentos,
intenções, planos, etc, nos quais as pessoas se engajam, sendo caracterizados por ter algum princípio de
unidade.
2
Entende-se, aqui, a influência de “experiências biográficas” anteriores não em uma perspectiva linear ou
causal, onde experiências passadas determinam ações presentes, mas como uma descrição / interpretação
No campo das ciências sociais, muitos estudos foram realizados visando uma maior
compreensão dos episódios sociais. Contudo, estes privilegiaram uma compreensão dos
mesmos em relação ao contexto social, visando apreender a relação existente entre papéis e
regras sociais gerais (como por exemplo, os trabalhos de Harold Garfinkel e Erving
Goffman). Diferentemente, a análise proposta pela Teoria do Posicionamento pretende
avançar na compreensão dos episódios sociais atentando para os seguintes aspectos: 1) as
posições morais dos interlocutores e seus direitos de falar determinadas coisas; 2) a história
conversacional e a seqüência de coisas que já foram ditas; e 3) o poder presente em
determinadas falas, na estruturação de certos aspectos do mundo real. Tais aspectos dos
episódios são considerados fundamentais no entendimento de como fenômenos sociais e
psicológicos são construídos nas práticas discursivas (HARRÉ & VAN LANGENHOVE,
1999a).
Considerando estes aspectos, buscaremos uma maior compreensão da Teoria do
Posicionamento a partir destas três dimensões fundamentais, definida pela tríade posição /
força social da ação3 / linha de história, que sustenta a dinâmica dos jogos de
posicionamento envolvidos na produção discursiva de selves. Em seguida, apresentamos
uma tipologia dos posicionamentos, conforme sugerida por VAN LANGENHOVE &
HARRÉ (1999a), que favorece uma análise minuciosa das práticas discursivas.
presente (atual) sobre histórias passadas. Voltaremos nesse ponto adiante, ao abordarmos mais
profundamente a questão da produção de significado e da produção discursiva de selves.
3
O termo força social da ação tem sido também referido por estes autores como „ato-ação‟, que caracteriza o
ato de posicionar alguém em uma conversa. Como este conceito remete às implicações deste “ato de
posicionar”, referentes à força social dos enunciados, optamos por utilizar o termo „força social da ação‟,
também utilizado por estes autores em outras partes do texto.
2
pessoas assumem para si mesmas e atribuem aos outros determinadas posições, de acordo
com as ordens morais que definem diferentes lugares sociais e possibilidades de interação.
No contexto das ciências sociais, as noções de posição e posicionamento foram
inicialmente introduzidas por Hollway (1984, apud VAN LANGENHOVE & HARRÉ,
1999a), em seu estudo dos processos de construção de subjetividade nas relações
heterossexuais. Segundo esta autora, determinados discursos tornavam possíveis
determinadas posições aos falantes e aos ouvintes, servindo a determinadas funções
sociais. Desde então, este conceito tem se desenvolvido particularmente direcionado ao
entendimento do modo como as pessoas constroem suas identidades discursivamente, na
relação com os outros, e às funções sociais de assumir para si mesmo ou atribuir a outros
determinadas posições.
A especificidade do conceito de posicionamento reside em seu caráter constitutivo:
o self é construído nas práticas discursivas, através das posições que as pessoas assumem e
negociam ativamente, em seus relacionamentos. Segundo VAN LANGENHOVE & HARRÉ
(1999a),
O conceito de posição
De acordo com HARRÉ & VAN LANGENHOVE (1999a), entende-se por posição,
Segundo estes autores, a palavra posição tem sido muito usada nos escritos sociais
e psicológicos, mas ultimamente tem assumido um sentido mais específico, ao ser aplicada
em estudos que buscam uma análise minuciosa das interações interpessoais mediadas
simbolicamente. A posição refere-se aos lugares sociais assumidos e negociados pelas
pessoas em suas conversações, definidos por um conjunto de atributos pessoais genéricos,
negociados pelos falantes em suas interações.
Estes atributos podem remeter tanto a posições morais e sociais amplamente
reconhecidas – tais como mãe, filho, enfermeira, médico, paciente, professor, aluno, etc – ,
como a infinitas variações destas posições, referidas a um universo mais pessoal e singular
– filho atencioso, mãe autoritária, aluno irritante, aluno estudioso, professora brava, criança
barulhenta, etc.
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Assim, o conceito de posição tem se firmado, no contexto das produções sócio-
construcionistas, como uma alternativa dinâmica ao conceito mais estático de “papel”,
usualmente referido a funções sociais mais amplas. O conceito de posição busca
contemplar o dinamismo implicado nos processos de construção de identidade, entendendo
que uma posição não carrega em si mesma um significado, mas tem seu sentido construído
na interação, no relacionamento com os outros. Ainda que remetida a papéis sociais mais
amplos, o sentido de uma posição depende de outros fatores, tais como o próprio contexto
discursivo e as particularidades do relacionamento onde as posições são negociadas.
Além disso, entende-se que as pessoas estão sempre engajadas em atividades
discursivas onde posicionam a si mesmas e aos outros, mas as formas que estes
posicionamentos assumem vão diferir de acordo com as situações específicas em que eles
ocorrem. Segundo VAN LANGENHOVE & HARRÉ (1999a), os posicionamentos podem
variar em função de três aspectos principais:
1) Quanto ao domínio das técnicas de fala (como por exemplo, diferenças de
habilidade e domínio conversacional, carisma, capacidade de criação narrativa etc);
2) Quanto ao seu desejo ou intenção de se posicionarem ou serem posicionadas; e
3) Quanto ao seu poder de realizar atos de posicionamento.
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O conceito de posicionamento favorece que nossa atenção seja focalizada nos
aspectos dinâmicos dos encontros, sobretudo por partir da noção de linguagem em uso. Por
esta noção entende-se que as regras sociais são descrições derivadas das produções
discursivas entre as pessoas, desenvolvidas em contextos definidos e servindo, portanto, a
determinados propósitos sociais. Do mesmo modo, uma conversa é vista como uma forma
de interação social, uma forma de ação conjunta entre os participantes, onde um conjunto
estruturado de atos de fala se desenvolve, marcados por uma determinada força social (ou
força ilocucionária). Nesta perspectiva, a linguagem é considerada, em si mesma, uma
prática social. Ao falar, as pessoas realizam ações de posicionamento, onde posições são
negociadas de acordo com determinados propósitos sociais, levando a conseqüências
relativas às posições e significados produzidos nessa interação (HARRÉ & GILLET, 1994;
DAVIES & HARRÉ, 1999).
Um mesmo enunciado pode ser utilizado para realizar diferentes atos de fala,
servindo, portanto, a diferentes propósitos sociais em uma conversação em curso,
dependendo dos interesses particulares dos falantes e das condições definidas nas linhas de
história em que estão inseridos.
Segundo DAVIES & HARRÉ (1999), quando alguém posiciona a si mesmo e aos
outros em uma conversação, as seguintes dimensões devem ser consideradas:
1) As palavras escolhidas pelos falantes para serem usadas nos diálogos contêm
imagens e metáforas que se relacionam aos seus modos de ser e aos dos outros;
2) Os participantes não necessariamente estarão conscientes das concepções ou dos
poderes das imagens e metáforas que utilizam, podendo entendê-las apenas como
um “modo de falar” em uma situação específica. Contudo, é a particularidade desse
contexto interativo que define o tipo de relacionamento entre os interlocutores e os
modos possíveis de fala.
3) A percepção sobre a situação discursiva varia de uma pessoa para outra. Assim, o
modo como um falante será ouvido pode variar, entre outras coisas, com
compromissos morais e políticos; com o tipo de pessoa que se julga que o outro
seja; com as atitudes de um falante em relação a outro; com a disponibilidade de
discursos alternativos ao apresentado pelo falante inicial, etc;
7
4) As posições criadas para si mesmo e para os outros não são parte de uma
autobiografia linear e não contraditória, mas constituem fragmentos acumulados de
uma história vivida; e
5) As posições podem ser vistas pelos interlocutores em termos de papéis conhecidos
(reais ou metafóricos), ou de personagens conhecidos em linhas de história
compartilhadas, ou podem, ainda, ser vistas como muito mais efêmeras, retratando
mudanças de poder, ou possibilidades de acesso a certas características pessoais
desejadas, e assim por diante.
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atribuindo funções e papéis de acordo com as posições negociadas através de tais práticas
discursivas.
Frente a tais considerações, DAVIES & HARRÉ (1999) afirmam que a maior
contribuição do conceito de posicionamento no contexto da psicologia social é que este
direciona nossa atenção para “... os processos pelos quais certas tramas de conseqüências,
intencionais ou não, são postas em movimento” (p. 40). Isto significa que uma maior
compreensão sobre a força social dos enunciados e posições negociadas em um discurso
pode ser alcançada utilizando-se a teoria do posicionamento como recurso.
Por exemplo, para dizer que uma pessoa foi posicionada como “sem poder ou
autoridade”, faz-se necessária uma descrição de como essa posição foi assumida por esta
pessoa, isto é, quais os sentidos que esta pessoa associa em sua compreensão sobre a “falta
de poder”. Para tanto, deve-ser recorrer à investigação da linha de história em que tais
significados são produzidos. Isto pode envolver tanto uma extensão por classificação
(indexical extension) – referente a alguns significados gerais associados a experiências
pessoais5 anteriores (por exemplo, o que se sentiu em situações passadas quando foi
considerada como sem poder), como também uma extensão por tipificação (typification
extension) – relativa à compreensão deste significado como associado a conjuntos de
atributos culturalmente estabelecidos ou articulados a papéis sociais mais amplos (DAVIES
& HARRÉ, 1999).
Assim, a compreensão da linha de história em que a pessoa está envolvida é
elemento central no processo de estabelecimento de significado e de posições de self.
Segundo DAVIES & HARRÉ (1999) para identificar os atos de fala que ocorrem em uma
determinada prática discursiva, é fundamental identificar as linhas de história associadas
aos enunciados de cada um dos falantes em momentos específicos.
Além disso, o significado social de uma conversa envolve tanto um aspecto
constitutivo quanto um aspecto dinâmico – o que pode ser melhor compreendido através
dos conceitos de discurso e de prática discursiva.
5
Ver nota de rodapé 2 (página 19).
9
O conceito de discurso, segundo estes autores, refere-se ao “uso institucionalizado
da linguagem e dos sistemas e sinais de linguagem”, o que inclui aqueles conjuntos de
sentidos e representações relativamente estáveis. Por sua vez, o conceito de prática
discursiva remete às “... maneiras pelas quais as pessoas ativamente produzem realidades
psicológicas e sociais” (DAVIES & HARRÉ, 1999, p.34), assim marcando o dinamismo
dos processos de produção de si mesmo e do mundo.
A partir destes conceitos centrais, a Teoria do Posicionamento permite pensar tanto
o caráter contínuo e relativamente estável dos discursos, como o caráter dinâmico e fluído
das práticas discursivas. Esse dinamismo reside, sobretudo, na possibilidade de assumir ou
atribuir múltiplas posições-sujeito6 ao longo de uma conversação, ou seja, reside na
natureza múltipla do processo de construção de identidade a partir das trocas dialógicas.
Ao assumir uma posição como sua, a pessoa vê o mundo e a si mesma a partir
daquela posição assumida, baseada em imagens, metáforas, linhas de história e conceitos
particulares que estão envolvidos na construção dessa posição. Mas, além dessa dimensão
constitutiva presente no “assumir uma posição discursiva” (e assim, no definir-se como
sendo de determinada forma e pertencendo a determinadas categorias sociais), este
processo comporta também o dinamismo e a diversidade, inerentes às próprias práticas
discursivas.
Ainda que recorrendo a discursos sociais mais amplos, é no momento presente de
uma interação que as diversas posições de self adquirem significado, através da
participação ativa da pessoa na escolha e negociação destas posições. Isto implica em
conceber a pessoa como tendo uma participação ativa no processo de dar sentido ao mundo
e a si mesma, sendo, assim, responsável por sua própria autoria a partir dos processos de
produção de sentidos.
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O termo posição-sujeito (subject-position) torna explícita a associação da noção de posição e de identidade,
entendida como a produção discursiva de selves na conversação. Entendemos que, ao falar de „posição‟
estamos sempre nos referindo à „posição-sujeito‟. Contudo, para efeitos de redação, e para manter a mesma
nomeação utilizada correntemente pelos teóricos do posicionamento em que nos baseamos, nos referiremos
ao longo desse texto apenas à „posição‟, sem outros qualificativos.
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2. A DINÂMICA DO POSICIONAMENTO E A PRODUÇÃO DISCURSIVA DE SELVES
“... o indivíduo emerge através dos processos de interação social não como um
produto final fixo, mas como sendo constituído e reconstituído através das várias
práticas discursivas de que participa. Assim, a questão da identidade (do quem
sou eu?) é sempre uma questão aberta, cujas respostas dependem das posições
assumidas por um ou por outro nestas práticas discursivas, e das histórias
através das quais damos sentidos a nossas vidas e a dos outros” (p.35).
Ao falar ou agir a partir de uma determinada posição, uma pessoa traz para a
situação presente sua história particular, que é a história de alguém envolvido em múltiplos
posicionamentos e engajado em diferentes formas de discurso. Assim, o posicionamento
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refere-se a um “... processo discursivo a partir do qual selves são situados em uma
conversação” (idem, p.39).
O posicionamento envolve tanto uma dimensão relacional como uma dimensão
reflexiva. Relacional porque diz respeito a um processo discursivo interativo, onde as
posições de self são construídas e negociadas na relação conjunta, e reflexiva porque, ao
agir ou falar, as pessoas estão invariavelmente se posicionando ou sendo posicionadas no
diálogo, tácita ou intencionalmente.
Se a Teoria do Posicionamento assume a noção de que podemos ter múltiplas
formas de descrição de self, a partir das posições negociadas nos processos interativos,
como ela explica nossa aquisição de um senso de si mesmo?
Também nessa perspectiva, o senso de identidade e unicidade pessoal é fruto de um
processo de construção social. Segundo DAVIES & HARRÉ (1999), a aquisição ou
desenvolvimento de um senso de si mesmo e de formas de interpretar o mundo de acordo
com determinados pontos de vista, envolve os seguintes processos:
1) Aprendizagem de algumas categorias gerais que incluem algumas pessoas e
excluem outras, assim dividindo-as em subgrupos distintos, tais como homem/
mulher; pai/ filho; jogador / árbitro / expectador;
2) Participação em práticas discursivas através das quais os sentidos são referidos a
estas categorias, incluindo as histórias de vida em que estas diferentes posições são
elaboradas;
3) Posicionamento das pessoas como fazendo parte de determinadas categorias, e não
de outras;
4) Reconhecimento de si mesmo como uma pessoa com características que o
permitem se perceber como parte de categorias distintas e também ser percebido
pelos outros como parte destes diferentes subgrupos. Isto envolve o
desenvolvimento de um senso de si mesmo como pertencendo ao mundo de alguns
modos e se percebendo a partir de determinados posicionamentos.
12
historicamente contínuas (DAVIES & HARRÉ, 1999). Nós aprendemos a nos descrever a
partir destas categorias, fazendo referência ao que somos e ao que não somos, ao que
sentimos, ao que gostamos, etc, com referência a atributos e características pessoais
valorizadas nas práticas sociais de que participamos.
Assim, um modo de identificar os posicionamentos pessoais que ocorrem nas
práticas discursivas é através da análise dos aspectos autobiográficos presentes no diálogo,
ou seja, da verificação de como cada interlocutor conceitua a si mesmo e aos outros
participantes; das posições que lhe são atribuídas; ou dos lugares que ocupa em
determinadas linhas de história7.
Conforme aponta HARRÉ & GILLET (1994),
7
Este constitui um importante aspecto a ser considerado por aqueles interessados no estudo dos processos de
descrição de self e de produção de sentido, e também justifica nosso interesse em estudar estes processos, no
contexto específico de um grupo ambulatorial para pacientes psiquiátricos, tomando a Teoria do
Posicionamento como recurso teórico-metodológico.
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Traduzimos o termo selfhood por pessoalidade, e persoonhood por personalidade. Ambos os termos são
usados indistintamente pelos autores, embora não apresentem uma definição exata de cada um destes. Assim,
usaremos um ou outro termo respeitando o uso feito por seus autores o texto original.
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em situações sociais definidas, ou seja, às personas ou conjunto coerente de traços que as
pessoas adotam de acordo com contextos interativos específicos9.
A partir desta distinção, HARRÉ & VAN LANGENHOVE (1999a) propõem que as
personas são manifestadas no discurso de acordo com os tipos de pessoa que são
usualmente reconhecidos e aceitáveis socialmente – dado que a sociedade valoriza mais
alguns tipos de identidade comparativamente a outros. Por sua vez, o senso de si mesmo,
expresso através de um self 1, surge a partir da tentativa de organização destas personas
em um todo coerente, o que dá ao indivíduo o senso de singularidade e identidade pessoal.
Esta tentativa de expressão de identidade pessoal se concretiza no discurso através do uso
de pronomes de primeira pessoa, que marcam a singularidade e a ação pessoal. Partindo
disto, estes autores concluem que:
9
Este tipo de manifestação de identidade tem sido descrito por outros teóricos da psicologia social, entre
eles, por GOFFMAN (1995), em seu estudo sobre A representação do eu na vida cotidiana.
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Este aspecto é claramente demonstrado por SABAT & HARRÉ (1999), em um
estudo realizado com doentes de Alzheimer. Com o objetivo de investigar como se dá a
manifestação da identidade nestes pacientes e em que aspecto tem sido considerado que
ocorrem perdas em seu senso de identidade pessoal, em função de prejuízos derivados da
evolução da doença, estes autores chegaram a interessantes conclusões. Segundo eles
existe um senso de self ou de singularidade que permanece intacto, a despeito dos efeitos
debilitantes da doença, o que pode ser percebido a partir da análise das práticas discursivas.
Nestas, estes pacientes continuam a fazer uso dos pronomes pessoais de primeira pessoa,
com referência a ações pessoais e responsabilidade por determinados comportamentos ou
intenções. Contudo, perdas significativas são evidenciadas quanto aos selves que são social
e publicamente manifestados, ou seja, as personas. Isto porque, nas trocas dialógicas das
quais participam, suas personas não são sustentadas pelos outros com quem interagem, não
encontrando reforço social. Este prejuízo advém, assim, do modo como as pessoas tratam
estes doentes e de como constroem versões de self que limitam o modo como estes
pacientes podem participar nas práticas sociais em que estão envolvidos.
Portanto, é na interação entre as pessoas que uma persona é construída, ou seja, “...
é no constante interjogo de reconhecimento mútuo da própria posição e da posição do
outro que uma versão de self público, apropriado à ocasião é construído” (HARRÉ &
VAN LANGENHOVE, 1999a).
Considerando estas questões, estes autores defendem a idéia de que o senso de
identidade individual ou pessoalidade é manifestado nas práticas discursivas nos modos
pelos quais as pessoas contam ou descrevem suas vidas. A partir dos dois tipos de
manifestação de identidade apresentados anteriormente (self 1 e personas), um senso de
self é socialmente construído.
O desenvolvimento de um senso de identidade pessoal encontra-se também
relacionado à noção de ciclo de vida que, na cultura ocidental, remete às dimensões de
espaço e tempo e a idéia de desenvolvimento (COUPLAND et al., 1993). A identidade
pessoal tem sido considerada como relativamente estável, ainda que as identidades sociais
mudem ao longo da vida e a pessoa exerça diferentes papéis e funções de acordo com seu
desenvolvimento e relações sociais. Contudo, essa idéia de continuidade e de singularidade
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individual é construída socialmente, sendo um produto das práticas discursivas (HARRÉ &
VAN LANGENHOVE, 1999b).
A partir do conceito de posicionamento, estes autores demonstram a
descontinuidade do self, desconstruindo a idéia de uma personalidade ou pessoalidade
única e estável. Uma pessoa posiciona-se a si mesma e a outros de diferentes modos,
através de descrições discursivas biográficas. De acordo com HARRÉ & VAN
LANGENHOVE (1999a; 1999b). existem três modos pelos quais uma pessoa pode
expressar intencionalmente sua identidade pessoal, a partir das práticas discursivas: 1) ao
expressar sua autoria ou responsabilidade pessoal por alguma ação; 2) ao classificar
determinadas declarações como manifestações de seu ponto de vista pessoal; e 3) ao
avaliar uma descrição como sendo parte constitutiva de sua biografia. Como referimos
anteriormente, um dos modos de se investigar tais manifestações de identidade pessoal, é
através da análise da gramática pronominal utilizada pelas pessoas em suas descrições.
Assumir que a noção de que o senso de continuidade pessoal é uma construção
social e que o self é ativamente construído a partir das trocas dialógicas entre as pessoas,
rompe com qualquer noção essencialista, que pressupõem um self localizado interiormente
ou que se revela parcialmente através de “verdadeiras” histórias autobiográficas, contadas
por um historiador com uma memória seletiva de experiências vividas. Não existe uma
única biografia real, construída sobre experiências vividas, pois isto pressupõe um self
essencial, único, que é contado em histórias construídas com base em seleções, recortes e
memórias parciais de experiências anteriores.
Como descreve HARRÉ & GILLET (1994),
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no discurso e modelam uma vida psicológica organizando estes comportamentos
à luz destes significados e integrando-os ao longo do tempo. O resultado deste
projeto integrativo é uma personalidade ou caráter que é, na extensão permitida
pelas habilidades discursivas do sujeito / agente, coerente e criativa...” (p.17).
Segundo HARRÉ & VAN LANGENHOVE (1999b), muitas vezes a proposta de self
narrativo, ou seja, de um self construído discursivamente, é confundida com a idéia de que
as pessoas contam histórias sobre si mesmas, de um modo que persiste afirmando o caráter
essencialista de alguém que pode ser descrito em histórias autobiográficas verdadeiras.
Como bem apontam estes autores:
“... é certamente verdade que as pessoas podem e vão contar histórias sobre si
mesmas (...), mas o self não pode ser igualado com uma história tendo um enredo.
(...) O self não tem um enredo, apenas as pessoas (isto é, os selves como
expressos na vida social) podem ter enredos” (p.70).
17
Nestas situações em que se fala a si mesmo sobre si mesmo, jogos de
posicionamento também estão ocorrendo, em que as pessoas posicionam-se a si mesmas e
aos outros envolvidos em suas narrativas de modos específicos. Assim, as posições
discursivas estão em constante fluxo, mudando segundo as linhas de história
desenvolvidas, o que possibilita que os sentidos de self associados a tais posições possam
mudar de acordo com a evolução destas narrativas e com as transformações nas posições
discursivas de self. Nas palavras de MOGHADDAM (1999):
Segundo este autor, uma característica imanente do self é sua reflexividade – que
define sua capacidade de posicionar-se e ser posicionado ao mesmo tempo. Este caráter
reflexivo do self articula-se à noção de self dialógico, que propõe que o self pode assumir
uma série de posições de eu, caracterizadas não apenas por diferentes pontos de vista, mas
pelas „vozes‟que emanam destas diferentes posições. A noção de vozes, originalmente
proposta por BAKHTIN (1997), remete à idéia de que, invariavelmente, a produção de
sentido ocorre no contexto discursivo e interativo, ou seja, envolve diálogo com outros,
sejam estes presentes ou imaginários.
Assim, a narrativa privada de uma pessoa inclui uma „polifonia de vozes‟, derivada
dos diálogos internos estabelecidos com os demais interlocutores presentificados no
desenvolvimento de um enunciado. Conforme MOGHADDAM (1999) “... cada voz „fala‟
de uma posição diferente, a partir da qual cada uma pode concordar ou opor-se à outra,
em uma relação dialógica para mutuamente negociarem uma linha de história (p.49)”.
Este autor oferece um exemplo que facilita o entendimento desse processo: quando
uma pessoa é promovida a um cargo desejável ela pode entreouvir um conjunto de vozes,
antecipando o modo como gostaria de contar a novidade para seus colegas, imaginando
como seriam suas respostas, relembrando o que um tio dizia quando depreciava suas
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realizações, refletindo sobre a conversa em que foi escolhida para o novo emprego, etc. Em
cada situação imaginada, a pessoa assume posições, atribui posições a outros e constrói
versões de self pautadas em cada uma destas linhas de história desenvolvidas.
A noção de self dialógico também é adotada por HERMANS et al. (1992), que
argumentam, também pautados em Bakhtin, que “a noção de diálogo não apenas
representa um gênero literário e uma possível conceitualização da personalidade, mas
também a essência mesma da personalidade” (p.28).
Para este autor, o conceito de dialogismo permite entender o self enquanto
dinamismo e diversidade de posições. Admite-se, assim, que o self tem a possibilidade de
assumir uma diversidade de posições, movendo-se de uma posição a outra, de acordo com
mudanças de situação e de tempo. Estas posições podem ser diferentes e mesmo opostas.
Além disso, o self tem a capacidade de imaginariamente dotar cada posição com uma voz,
de modo que relações dialógicas entre as posições podem ser estabelecidas. Estas vozes
funcionam como personagens interagindo em uma história, onde cada voz tem uma
história para contar, baseada em suas diferentes experiências, derivadas de contextos
diversos. Neste processo dinâmico, o self dialógico emerge como um self complexo e
narrativamente estruturado.
Ainda segundo HERMANS et al. (1992), o self dialógico é ao mesmo tempo
corpóreo (em oposição a um self racionalista), isto é, constituído a partir das posições que
assume, em espaço e tempo definidos; e social, no sentido de que muitas outras pessoas ou
vozes ocupam posições neste mesmo self multi-vocal. Assim, “o self dialógico tem o
caráter de uma narrativa descentralizada, polifônica, com uma multiplicidade de posições
de eu” (p.30).
Segundo Caughey (1984, apud MOGHADDAM, 1999), um aspecto fundamental do
desenvolvimento do senso de si mesmo dá-se a partir do envolvimento das pessoas em
relacionamentos imaginários com seres também imaginários. Segundo este autor, pode-se
identificar três classes destes „seres‟ imaginários com os quais as pessoas interagem: 1) as
figuras criadas pela mídia (estrelas de cinema, líderes carismáticos, etc); 2) figuras
produzidas pela própria imaginação da pessoa (fantasmas, figuras de sonho, anjos
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guardiões, etc); e 3) réplicas imaginárias de pessoas com que interagimos ou já interagimos
em nossas vidas diárias (amigos, familiares, mentores, etc).
Conforme Watkins (1986, apud MOGHADDAM, 1999) estes outros imaginários
influenciam os encontros presentes com outros reais, do mesmo modo como estes
influenciam os encontros com estes seres imaginários. Assim, tais encontros imaginários
assumem um papel central nas interações das pessoas no cotidiano, notavelmente nas
culturas ocidentais.
MOGHADDAM (1999) refere ainda que, do mesmo modo como os posicionamentos
interpessoais, o posicionamento reflexivo não pode ser considerado isolado do contexto
cultural e de suas regras morais específicas. Segundo sugere, fatores culturais podem afetar
e afetam as práticas de posicionamento, com relação:
a) Aos ideais particulares que as pessoas desejam defender através dos posicionamentos –
o posicionamento reflexivo está intimamente associado com o sistema normativo onde
ideais culturais orientam as ações pessoais em contextos determinados, influenciando,
assim, o modo com estas se posicionam.
b) Às dimensões particulares que as pessoas acham relevantes para posicionarem a si
mesmas e aos outros nos discursos – ainda que se considere que os atributos pessoais e
morais de uma pessoa são as dimensões mais salientes nos jogos de posicionamento,
não se pode esquecer que tais dimensões também variam amplamente com a cultura e
com os ideais culturais, uma vez que são socialmente construídas. Ao posicionar-se, a
pessoa tem como base atributos pessoais e posições que são mais ou menos valorizados
pela cultura em que ela está inserida. Por exemplo, em uma cultura individualista,
visões de self associadas à independência individual são valorizadas, contrariamente ao
que ocorre em culturas baseadas em princípios mais coletivistas.
c) Às formas preferidas de dizer autobiográfico, que pode influenciar os tipos de história
que as pessoas contam de si mesmas e para si mesmas no processo de posicionamento –
o que se considera como uma forma coerente de uma narrativa autobiográfica e os eixos
a partir dos quais tais narrativas se estruturam, também variam em função dos ideais
culturais.
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Assim, a análise dos jogos de posicionamento deve considerar “... os diferentes
eixos que as pessoas devem estar usando para localizar a si mesmas e aos outros na grade
de posicionamentos” (MOGHADDAM, 1999, p.85), considerando os níveis de interação
interpessoal, institucional e cultural que organizam as trocas dialógicas entre as pessoas.
Como bem aponta CARBAUGH (1999), discutir personalidade envolve a idéia de que:
Esta proposta é coerente com a noção defendida por HARRÉ & VAN
LANGENHOVE (1999a), de que a Teoria do Posicionamento funciona como um importante
ponto de partida na reflexão sobre vários aspectos da vida social. Mais especificamente, ela
contribui substancialmente com as propostas sócio-construcionistas, que se sustentam
sobre a concepção de que as pessoas se constroem discursivamente, na interação umas com
as outras. Isto porque ela possibilita, através do conceito de posicionamento e da tríade
posição/ linha de história/ ato-ação, uma maior compreensão do modo como se dá o
processo dinâmico de construção de identidade nas trocas dialógicas entre os
interlocutores.
Tendo considerado algumas dimensões relevantes para o entendimento da Teoria
do Posicionamento, passaremos agora a apresentação da tipologia de posicionamentos
proposta por VAN LANGENHOVE & HARRÉ (1999a), que julgamos instrumental para
análises das práticas discursivas.
21
4. UMA TIPOLOGIA DOS POSICIONAMENTOS: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS
22
Por sua vez, o posicionamento de segunda ordem ocorre quando o posicionamento
de primeira ordem é questionado, ou seja, quando a pessoa que é inicialmente posicionada
de algum modo rejeita ou questiona a posição que lhe foi atribuída. Isto também ocorre de
acordo com uma determinada linha de história. No exemplo acima, se Maria fosse a esposa
de João, ela poderia recusar tal posicionamento alegando não ser esta sua função como
esposa, baseando-se para isso, em uma linha de história pautada, por exemplo, em um
discurso feminista. Ao responder a este posicionamento, um novo posicionamento de
primeira ordem está ocorrendo, onde Maria posiciona a si mesma e também a João. A
resposta seguinte, por sua vez, pode tanto engendrar um posicionamento de primeira ordem
como de segunda, dependendo das linhas de história nos jogos de posicionamento
desencadeados, a partir da ação suplementar na qual seu significado é construído no
contexto discursivo.
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c) Posicionamento moral e pessoal (Moral and personal positioning)
O posicionamento moral refere-se à atribuição de posições relativas a determinados
papéis morais, geralmente relacionados a aspectos institucionais da vida social. Estes são
facilmente compreendidos quando pensamos em algumas categorias ou funções sociais
amplas, tais como paciente / médico, aluno / professor, etc, onde determinadas ações,
funções ou papéis são socialmente tidos como próprios destes grupos. Ao contrário, o
posicionamento pessoal refere-se a atributos e particularidades individuais, incluindo uma
dimensão para além das funções sociais definidas por estas referências mais amplas a
papéis gerais. Na situação anterior, um posicionamento moral seria, por exemplo, o de
Maria enquanto empregada de João. Um posicionamento pessoal poderia ocorrer quando,
ao tentar justificar o fato de não ter passado a camisa de João, Maria afirmasse algo como:
“Perdão, mas eu estava muito cansada hoje, porque meu filho pequeno chorou a noite toda
e não consegui dormir”.
Duas considerações são fundamentais. A primeira é que sempre que um
posicionamento ocorrer, haverá tanto um posicionamento moral como um pessoal. A
segunda é que quanto mais uma ação pessoal precisar ser justificada para tornar-se
inteligível para o outro, mais se recorrerá a posicionamentos pessoais, comparativamente a
posicionamentos morais.
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ou atribuindo aos outros – como é o caso da maioria dos posicionamentos de primeira
ordem. Ao contrário, o posicionamento intencional ocorre quando a pessoa tem a intenção
de posicionar a si mesma ou a outros de determinados modos. Posicionamentos de segunda
e terceira ordem são sempre intencionais, uma vez que implicam em um questionamento
de uma posição anteriormente atribuída.
VAN LANGENHOVE & HARRÉ (1999a) distinguem, ainda, entre quatro situações
particulares em que posicionamentos intencionais podem ocorrer. Segundo eles, estas
situações diferem porque:
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posicionamento deliberado, geralmente a pessoa visa alcançar algum objetivo com seu
ato de posicionamento.
Auto-posicionamento forçado (Forced self positioning). Neste caso, o posicionamento
de si mesmo ocorre não por uma iniciativa da própria pessoa, mas por uma demanda
seja de outra pessoa, seja de uma instituição. Nestes casos, a pessoa pode ser convidada
a participar de uma conversa, com uma pergunta do tipo „tudo bem com você?‟, ou
pode ser solicitada a explicar seu comportamento, colocando-se como agente e
assumindo uma posição moral ou pessoal.
Posicionamento deliberado de outros (Deliberate positioning of others). Isto ocorre
quando alguém deliberadamente atribui uma posição a alguém, presente ou não na
conversação. Nota-se que, também aqui, ao posicionar o outro a pessoa também se
posiciona de alguma forma, intencionalmente ou não.
Posicionamento forçado de outros (Forced positioning of others). Este tipo de
posicionamento ocorre quando alguém é solicitado a posicionar outras pessoas,
presentes ou não na conversa em curso – como por exemplo, quando alguém pede a
opinião de alguém sobre seu comportamento ou de outros em determinadas situações.
Também esta situação ocorre em um nível institucional, sendo um exemplo clássico as
situações de julgamento, em que uma pessoa é ativamente posicionada como vítima ou
culpada, sendo seu comportamento avaliado por um júri de direito.
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