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DOIS JOGOS

DE PALAVRAS
Dotsjogos de PalafJTas - - - - - - - - - - - - - - -

GUARDIÃO - São três, e tem um desnível no piso. (Exa-


mina o caderntnho.) Essa história de soltar os animais
vai custar caro a algué"m.

MÃE (Ao Pai, assustada .) - Ouviste? Vamos embora.

PAI - Ora , ele d iz sempre a mesma coisa, e depois


esquece. Em todo caso, é melhor a gente ir. II
MÃE - Boa-noite , senhor.
A TEMPORADA DAS PIPAS
GUARDIÃO - Boa-noite. PEÇA EM UM ATO

PAI - Passe bem.

GUARDIÃO - Igualmente. (Anota algo em seu caderni-


nho, enquanlo os Pais saem pela esquerda ) - Um
busto de gesso! ... (Pausa . O Guardião olha para a
fonte e, com um gesto de desencanto, lança seu cader-
ninho na água.) Tudo isso para quê? A gente se quei-
xa da superioridade, mas amanhã ã noite vai aconte-
cer exatamente o mesmo. (Pausa .) Aliás, o busto era
mesmo de terracota.

Pano
Bllenos Aires, 1948

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CENAI
Sala de uma fazenda tipicamente argentina
para senhores criados na Europa
Letícia e Davi

personagens

Sr. Roblcdo, fazendeiro buenairense LETfCIA (Enquanto costura.) - Então ela veio, e me agar-
lsolina , sUCljilha rando pelo pescoço disse: «Se não me devolveres a
Aníbal , seu filho carta, cu te corto a cabeça." (Desenha no ar as letras
Letida , hóspede SIC.)
Davi, hóspede
DAVI - É bom tcr amigas tão cultas. Meus amigos sào
O Rapaz do Lado, o rapaz do lado
todos umas bestas. Não sabem contar mais do que os
O Cavaleiro , bera/do e amigo dedos das mãos.
do Sr. Rob/edo, das serpentes e dos girassóis
Música de fundo no estilo de LETfCIA - Então eu respondi: UPára d e macaquices, garo-
Pavana para uma infanta defunta, de Ravel tinha , e vai (Omar um banho frio. E o incrível é que
Q

ela fo i, daí a pouco cu estava ouvindo o ruído do


chuveiro.

DAVI - Vai ver, você a encanto u com os seus poderes.


Eu gostaria de tê-los. Às vezes ...

LETfCIA - Às vezes Isolina.

DAVI - Às vezes lsolina, e às vezes (apontando para si


próprio) Davi. Mas eu juro que prime iro usaria tais
poderes contra mim mesmo, para obrigar-me a revelar
Dof.sJogos de Palavras - - - - - - - - - - - - - - - - Adeus, Rob/tlSon / JuNo Cortdzar

os meus próprios jogos e me situar, afina l, em terreno horrível. Cairei dando voltas, com duas sirenes uivan-
claro. Há dias em que sou muito autodepreciativo. do nos meus ouvidos, e verei distanciar-se o peque-
nino círculo azul onde começava a casa, e depois
LE11CIA - Pois eu acho que você está muito bem. Seu virá o silêncio, a menos que eu consiga ouvir os lati-
único problema é não se adaptar a esta casa. Nunca se dos do Toby. A minha única certeza é a de que cairei
entende com Aníbal. Você sabe que Isolina morre de no poço. Toby terá muito tempo para latir.
amores pelo Rapaz do Lado, mas ao mesmo tempo
você se esforça desesperadamente para conquistá-Ia. (O Cavaleiro entra e desenrola um pergaminho)

CAVALEIRO - O Senhor ordena: "A partir de amanhã os


DAVI - Meu jogo é mais sutil. Tão mais sutil, que em
girassóis deverão ser azuis. Todo girassol amarelo
certas ocasiões nem eu mesmo o percebo. será decapitado." Até logo. (Sai.)

LEl1CIA - Ah, bem! DAVI - Duas ameaças de decapitação em apenas alguns


minutos.
DAVI - Mas lembre-se de que nem sempre é necessário
ver uma coisa para que a gente possa ter dela uma LEnCIA - Esta tarde o Cavaieiro se superou. Foi o
consciência obscuramente clara. Meus passos me melhor edito que já ouvi de sua boca. Como leitura,
levam a um lugar que ignoro; mas eu sou os meus quero dizer.
passos.
DAVI - E agora, quem está vindo?
LElÍCIA - Era uma vez um homem que brincava com as
palavras, e elas causaram-lhe a morte. (Entra o Rapaz do Lado.)

DAVI - De alguma causa sempre se morre. Posso ir an- RAPAZ DO LADO - Boa-tarde, senhora. Boa-tarde, senhor.
dando distraído e ser picado por uma cobra, ou rece- Estào passando bem?
ber na cabeça uma tartaruga que cai do céu, ou ser
DAVI - Que chato! Quanta cerimônia! Estamos passando
atacado por um micróbio que me invade pela saliva.
bem, na medida do possível.
LE'I1CIA - Por que você fica nesta casa?
Ll:.T1CtA - Como vai você, Rapaz do Lado?

I\V I - Po rque deveria ir embora. Porque sim. Porque RAPAZ DO LADO - Muito bem, senhora Letícia. Vim aqui
rtmo lsolina, porque o mundo é Isolina, e se eu sair apenas para lhe fazer uma pergunta: onde se cultiva
dn lul, flssirn que cruzar a porta cairei num buraco mandioca neste nosso vasto país?

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Dots]ogos de Palavras - - - - - - - - - - - - - - - Adeus, Robinson I ju:to Cortdzar

l.ETfCIA - Mandioca! O que é isso? de quem construiu esta casa, comecei a trabalhar...
(Perde-se em um estado defantasia.)
DAVI- Uma raiz, uma espécie de mandrágora das Amé-
ricas; uma grande porcaria, da qual sa i essa coisa l.ETfClA - Um pouco parecido com o meu caso. Vim a
gosmenta e meio transparente que nossas màes cha- fim de trazer uma notícia para o senhor Robledo. En-
mam de tapioca. tão me convidaram para o jantar. Ficou tarde. Passei
a noite. Seria uma tolice ir na manhã segu inte, pois
lE11ClA - E eu nào sabia! , no almoço haveria peru recheado com trufas. Resul-
lado, estou aqui há dez anos.
DAVI (Para o Rapaz do Lado ) - Cultiva-se mandioca
nas províncias do Chaco e das Missões. E basta! (O DAVI - E sua família?
Rapaz do Lado agradece com uma vênia e sai.)
LETfCIA - Sentiu-se felicíssima . Eu era a ovelha negra. As
l.ETfCIA - Você é duro, você é cortante. únicas exigências que me fizeram foram estas: man-
dar um cartào-postal de vez em quando e terminar
DAVI - Sim. Mas disse a ele onde cresce a mandioca. meu curso de corte e costura. Com o passar do tem-
Aliás, para que estará querendo esta informaçào?
po, até isso deixaram de coórar.
RApAZ DO LAoo (Reaparecendo e mostrando, cortesmen-
DAVI - Somos uma dupla de parasitas; ou então nesta
te, apenas a cabeça.) - Para a minha irmãzinha da
casa tem alguma coisa que ...
quinta série, Mais uma vez obrigado. (Desaparece)

DAVI - Nesle lugar as paredes têm ouvidos. Cada um lE11clA - A casa é muito acolhedora , mas, ao mesmo
sabe do que os outros estão falando. Deve ser por is- tempo, povoada de coisas que ameaçam. Como cer-
so que Aníbal me odeia: porque nào me calo nunca . tos tipos de serpentes. Aqui está o último bosque da
Mas, acredite, às vezes me canso deste papel que te- Província onde ainda vivem as serpentes. E também
nho de fazer aqui em casa, desta censura coostame. os jogos. Já jogou em algum outro lugar tanto quanto
Afinal, antes de tudo, eu sou um arquiteto. aqui? Esse xadrez de peças de cristal que à noite se
tornam fosforescentes...
LI::'11c1A - ~ bom lembrar que, de fato, você nào tem
l1!lda para fazer aqui. Se você fica, é porque quer DAVI - O bilhar do Aníbal, a quadra de tênis onde
Oe:lr, por causa da Isolina. Isolina voa com um látego, as preciosas adivinhas do
senhor Robledo, os torneios de invencionices e novi-
I AVI - Sei 1:1 por que fico. Vim a fim de corrigir os erros dades, os editas ...
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DotsJogos de Palavras - - - - - - - - - - - - - -

l.ET1ClA - Eu sei por que fiqu ei. Estava apaixonada por


CENA"
lsolina.
Um caminho no bosque
DAVI - Você também?
Letícia e Davi
LE1fClA - Sim. Mas já passou. Aconteceu certo dia quan-
do estávamos indo para o moinho. Havia um to rdo
na cancela. lsolina atirou nele, e o tordo veio voan-
do, ferido, até cair junto aos seus pés. Ela o levamou
por uma asa e se pôs a estra ngu lar a ave. Os o lhos
de la se encontravam com os do tordo , e os meus se
aterrorizavam com os dela.

DAVt - Você devia ter ido embora. ANíBAL - Havia um tango que dizia mais ou menos o
seguinte:
LEl1clA - Eu não podia. Aquilo era apenas uma troca de ~ fácil dizer: Mata -a . ~
sinal. O medo depois do amor. Às vezes é por causa É fácil dizer: Deixa-a.
do medo que a gente fica. Mas é preciso sabe r~, etcetera.
Bom, é isto exatamente o que eu sinto.
DAVI- Você não devia dizer isso de lsolina.
ISQUNA - Tango nào é um exemplo dos melhores.
LmclA - Estou dizendo a você, o que é muito diferente.

ij
~

ANfBAl É por isso que eu o canto para você. Com


DAVI- Aquilo que se diz cria asas, e então... exemp os não se prova nada , ou se prova tamo, e
tão bem, que a coisa acaba r perder a gr'J.ça e de-
LE11cIA - Nào tenha medo. lsolina estará sempre de sabar sob o seu próprio peso. e lembrei do tango,
espingarda na mão à espreita desse vôo. Ela também Isolina, porque não basta dizer: "Amanhã ire i à far-
sabe caçar palavras e estrangular poemas. Bem, vou mácia~, ou "Qu inta-feira jantaremos no EI Cieroo.~
indo, não fique aborrecido. (Sal.)
lSOUNA - O imprevisto, é claro; o azar...
(Davi dirige-se à janela e olha para fora. Leva as
mãos à cabeça, lentamente, mas aquilo que começa AMBAl - Ou uma ratazana, o u a tua mão direita. Mas
como um gesto de desespero termina como um pen- tam,?tm não é isso. Está mais embaixo, aí no meio
Icar de cabelos com os dedos.) desferos ilustrad. 5
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DoUjogos de Palavras _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __
Adeus, Rob/nso'l / Ju lIO Cortdzar

lSOUNA (Interessada.) - Com gravuras? ANÍBAL - Seria melhor se fosse m as... E claro, além
delas, as margaridas. Vê se lembra da surpresa que
ANIBAL - Com estampas em cores, globos, càes e gnomos, era abrir os livros depois de muito, muito tempo, di-
estátuas que fazem perguntas, igre jas enfei!içadas, o
Pequeno Polegar. No meio de tudo isso está a coisa,
gamos, quinze dias.
--
parecendo uma folhinha seca entre duas páginas. ISOUNA - E lá dentro e ncontrar nada menos do que
margaridas.
IsaLlNA - Margaridas. Eu punha margaridas entre as
páginas. ANÍBAL - Às vezes entre dois pedacinhos de papel mata-
borrão, que serviam para absorver a umidade delas.
ANluAL - O que e ra uma tolice. A margarida tem um
lSOUNA - Ou e ntão um trevo de quatro fo lhas, ou um
centro duro e áspero, um pequeno sol amarelo que
feto de folha serrilhada.
vai secando bem devaga r, e que s6 se apaga depois
de ter estragado mu itas páginas e o melhor de algu-
ANÍBAL (Para si mesmo.) - Ou um trevo de apenas três
ma estampa.
folhas, mas muiro bonito.

I.soUNA ( Ressentida.) - Você sabe ludo melho r do q ue ISOLlNA - Ou às vezes um pensamento rindo-se de nós,
eu, é claro. como se fosse um macaqu inho cinzento e celestial.

ANIUAL - Saber. Já ouvi essa palavra. Você já me atirou ANÍBAL (Suspirando) - Sim, tudo isso. Além daquilo,
na cara essa aranha podre, esse excremento. aquilo que eu dizia a você.

ISOUNA - O chacal ladra, mas a caravana passa , como ISOLlNA - Mas você nào me disse nada .
se dizia nos Três lanceiros de Bengala.
ANÍBAL - Sim, ia dizer, mas nào disse porque nos puse-
mos a discutir sobre a margarida.
ANIBAL - Ficar aborrecido é um dos meus erros. Com
você , ou é a carícia ou a distância. Eu sou um revól-
ISQUNA - E você se aborreceu. (Dando uma volta.) Que
ver de sonho, um sapato que fica grudado na lama; e
é isso?
você corre para longe, na d ireçào de uma tormenta
que se aproxima, você, gaivota de papel.
ANIBAL - Nada, uma sombra , algo que anda solto.

IsaUNA - Eu botava margaridas para secar. IsaUNA - Nào gosto deste caminho. Não sei se andamos
por ele o u se é ele que anda por nós.

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Adeus, RotJ(IISQ" / j ufto Conazar
Dotsjogos de Palavras - - - - - - - -_ _ _ _ _ __
É a isso que chamo a coisa. A isso, lsolina , exclusiva-
ANIBAL - Como ensina a filosofia , um caminho necessita mente a isso.
do viajante para reconhecer a si próprio.
' l SOUNA(Com uma reverência.) - Queira explicar-se.
lSOUNA - O defeito dos livros de filosofia é não le r ilus- mo nsenhor.
trações.
ANiBAl - Bom, pelo menos direi o que quero dizer, e
A NI BAl -Ora, em um de les há umas coisas que se pare- espero que você não ouça nada diferenle .
cem com sombras chinesas, coisas que dançam den-
Iro de uma caverna. Você é muito preconceiluosa. I saUNA - Tomara.
Como Iodas as mulheres.
(Sentam-se em um tronco.)
Iso UNA - Bom. Afinal de contas já é alguma coisa.
ANISAi - Nào tome isso como exemplo. Mas, você se
ANfBAL (Levando um dedo à boca) - Acho bom você lembra do tempo em que soltávamos pipas?
saber: isso que acabou de passar era uma serpente.
lsaUNA - Sim. Aquele céu enonne. E nós enviando para
ISOLINA (Empalidecendo.) - me fa-
Você diz isso só para ele o nosso navio, o nosso grande pelxe verue c rosa.
zer medo; e porque não é verdade; e porque tem mais
medo do que eu; e lambém porque não gostou da A NiBAL - Veja se ainda se lembra: depois de recolher as
história da margarida. pipas a gente se punha a brincar com as rodas, a cor-
rer pelas ruas impelindo rodas.
A NI BAL(Como se procurasse acalmá-Ia ) - Claro, por
tudo isso. Mas não fa lemos mais deste assunto . Ainda ISQUNA (Com surpresa.) - Ah , isso rião! Não sei de o nde
nos resta Davi.
você rirou essa lembrança!
ISOUNA (Que de vez em quando olha para os lados) -
ANIBAL (Sorrindo.) - Por quê?
Você me trouxe aqui para fa lar disso. Então fez uma
espécie de prefácio em duas partes. Na primeira me
ISQUNA - Ora! Como pode ter esquecido?
provou a conveniência de introduzir algum veneno
na boca de Davi. Na segunda ...
ANfsAL - Esquecido de quê?
ANIBAL - cantei para você um tango que traz em si
...
moral bem profunda. É fá cil decidir uma coisa; e às ISQLINA - De que nào podíamos. Na lemporada das
vezes lambém pode ser fácil fazê-la. Mas entre deci- pipas nào brincávamos com rodas. Estava ... bem, não
dir e fa zer existe um tiguinho, um pozinho de talvez.
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Dotsjogos de Palallras - - - - - - - - - - - - - - - - Adeus, Robinson I julto Cortdzar

era proibido, claro, mas... não se brincava com.. ANíBAL - Era. Um dia começava.
Nenhum menino brincaria com aquilo.
(SOUNA - Começava, c... (Com surpresa.) É verdade:
ANíBAL - E na temporada das rodas ... quando começava?

!saLINA - ... nâo soltávamos pipas. Havia um tempo pa- ANÍBAL - E quando terminava?
ra cada coisa, lembra?
ISOLINA - Não sei. Me lembro de céus cheios de pipas e
ANiBAl - Claro que lembro! Meu Deus, você aí pergun- de céus sem pipa nenhuma, de praças cheias de
tando se eu me lembro, e é disso que estou tentando rodas e praças vazias de rodas, de Lecreios com brin-
falar há meia hora. cadeiras e recreios sem brincadeiras.

ISOLINA (Rememorando.) - Havia uma ordem severa. E ANíBAL (Satisfeito, como se tivesse chegado ao final da
isso era uma coisa estranha. Quem teria nos castiga- demonstração de um teorema.) - Você acredita,
do se saíssemos com ~IS rodas na época de brincar então, que se por acaso tivesse tido vontade de sair
com as pipas?
com a roda na temporada das pipas ...
ANÍBAL - Ninguém. Para aquilo não havia castigo. Pen-
ISOLINA (Escandalizada.)- Claro, não teria sido possível.
so, aliás, que nâo havia castigo simplesmente porque
ninguém brincava com o que nào era para brinca r.
ANíBAL (Marcando as palavras) - Ora, sua maldita bru-
xa, isso é exatamente o que acontece agora. Liquidar
ISOLINA - Sim, mas aí é que vem o estranho. Quando se
Davi é um desejo, ou, se prefere, uma decisão. Mas
sabe que haverá castigo, quase sempre as coisas dei-
estamos fora da temporada.
xam de ser feitas.
!saLINA (Levantando-se bruscamente.) - Nào estamos na
ANíBAL - Nào acredita, então, que houvesse um castigo?
, temporada?
ISOLlNA - Na época nunca pensei nisso. Acho que nunca
ANíBAL (Como se falasse para si mesmo.) - Não, mas a
pensei. A gente sabia apenas que aquela era a tempo-
temporada chegará um dia desses, numa determina-
rada das rodas, e que um belo dia começaria a tem-
da hora. Chegará com certeza. É como se esse dia e
porada das pipas ... (Perde-se em suas recordações.)
essa hora fossem um grande anel de sal. Então nós
entraremos no anel, e, como se fosse um tigre, Davi
ANíBAL - E quando começava a temporada?
se aproximará a fim de lamber o sal, e no sal nós ire-
ISOUNA- Num dia qualquer. mos botando este pozinho, que não é nada, que não

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DotsJosos de Palavras - - - - - - - - - - - - - - - Adeus, Robinson / Ju/to Cortdzar

faz gritar nem levanta fumaça, essa bobagem onde a ANíBAL - Pois fique tranqüila. Depois de ter farejado o
morte vive, sei lá por que, porque é uma idiota , uma tronco e o lhado com melancolia para nós dois, a ser-
velha claudicante, uma coisa úmida e desprezível. pente voltou para a mata . Pode abrir os olhos e fazer
parte outra vez do espelãculo.
Iso UNA - E por que não hoje, ou amanhà? Como você
sabe que agora nào se pode? .. ISOUNA (Agarrada a e/e.)- Davi está morto aqui dentro.

ANiBAL - E como era que você sabia? ANfB~L - Mas ainda não começou a temporada.

IsaUNA - Acho ... acho que e u obselVava o céu. lSOUNA - Está mort.o aqui (toca na .fronte). Flutuando e m
sua mOrte como se fosse um globo branco. E rindo.
AN1BAL - Bom método ... só que agora nào nos serve
mais. O céu era uma folha de papel, uma estampa na ANÍBAL - É o que se poderia chamar de riso do envene~
qual haviam pintado uma porção de pipas. nado. Não ligue para isso. Por enquanto ele está vi~
vo, e joga sua vida contra n6s, como se ela fosse um
IsaUNA - Ou nenhuma pipa. novelo de lã. Vamos. Vamos embora . Estou com frio.

ANIBAi - Quem sabe? Quando era assim, a gente o lhava ,. . . . ISOUNA - Eu disse para você trazer um pulôver.
e via o céu daríssimo como e m qualquer o utra estam~
pa. Sabíamos de tudo, lsolina, e sabíamos muito bem. ANÍBAL - Meus pulôveres nào estào me caindo muito
bem, descem até os joelhos.
ISOLlNA - É. Sabíamos, porque os livros tinham estam~
pas. ISOLlNA - É verdade, ficam horrorosos em você. É
assombroso, inexplicável. (Separam~se, ambos agin-
ANfBAL - Agora sào caixas úmidas, cheias de serpentes, do de modo a mostrar como caem malas pulôveres de
como essa que está andando aí por perto do teu sa ~ Aníbal.)
patd.
(Isolina recua e reJu8ia ~se nos braços de Aníbal, que
ri e cobre OS olhos de/a com a mão.)

AN1BAL - O que está vendo?

ISOLlNA - Nada ... Bom, uns pontos brilhantes, uns rjs~


cos ... o rosto de Davi.

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Adeus, Robinson / julto Cortdzar

SR. ROBLEDO - Nem penses. Brincar com as palavras é


CENA III perigoso e teatra l, d uas coisas a evitar quando os as-
suntos são sérios. Comecemos: onde estão meus
Sala de trabalho. Mobflla severa, filhos?
estilo magnata
Sr. Robledo e o Cavaleiro CAVALEIRO - O menino Aníbal estava cortando as unhas
lá na sala de estar, e a menina Isolina estava lendo e
anotando uma nova edição de De Rerum Natura.

SR. ROBLEDO - Tudo bem por esse lado. E os outros?

CAVALEIRO - O Sr. Davi passeia pelo bosque.

SR. ROBLEDO - Levou com ele a vara de sândalo?


SR. ROBl.EDO - É tarde, Cavaleiro.
CAVALEIRO - Sim, levou o sândalo e um sanduíche de
CAVALEIRO - Se nhor, é tarde . queijo. A menina Letícia está agora alimentando os
pássaros do viveiro maior. Fina lmente, a senhora sua
SR. ROBLEDO - Três vezes um, três. esposa canta canções das Hébridas no sa lão cereja.

CAVALEIRO - A coisa está esquentando. (Calam-se, satis- SR. ROBLEDO - Perre ito, que cante. Leste o meu edito?
jeitos.)
CAVALEIRO - Em cada casa, em cada local de trabalho,
SR. Ro m.EDO - Já notaste que esta pequena desinfecção
em cada alojamento de empregados. Foi recebido
poética, antes das nossas consultas diárias, nos diver-
com o silêncio com que habitualme nte sào recebidas
te e nos ativa intelectualmente?
as grandes decisões.
CAVALEIRO - O senhor tcm razão. Uma razão louca.
SR. ROBLEDO - Mesmo assim não estou satisreito. O edi-
to não é perre ito. Um girassol azul será uma coisa b0-
SR. ROBLEDO - Que é de todas a melho r, pois é de todas
nita de ver, mas ... achas que os girassóis obedecerão?
a ma is livre. Mas vamos, parar de floreios, Cavaleiro.
Ao trabalho, e rápido.
CAVALEIRO - O senhor verá que depois de algumas exe-
cuções a razão acabará por se impor.
CAVALEIRO - Rápido? Eu pensava ...
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DotsJogos de PalavrQS - - - - - - - - - - - - - - - Adeus, Rof!fnsenl / JuNo Cortdzar

SR. ROBLEDO - Outra vez a razão. Quando uma pessoa SR. ROBLEDO - É dos meus filhos que estou falando, dos
quer divagar, fala da razão . (Aos gn'tos) Vou te ditar desconhecidos. Tenho medo de que apareça outra lei
um novo edito, copia imediatamente! (O Cava/eira tentando anular a minha lei. Tenho medo por causa
corre para a mesa) "Por o rdem do senhor: Faz-se de Davi.
saber aos inreressados que a troca de cor dos giras-
sóis poderá ser eferuada até o mês de maio do próxi- CAVALEIRO - Davi? O~ , não, senhor! Davi está mu ito
mo ano, data a partir da qual se procederá confonne bem.
o que determina o nosso edito anterior. ~
.' SR. ROBLEDO - Eu o quero assim. Por isso me beneficio
CAVALEIRO - Sábia medida , senho r. com a sua presença e a sua ajuda. No e ntanto, se o
ódio for mais forte do que a minha lei...
SR. ROBLEDO - Fico apavorado só de pensar e m uma
desobed iência, em pensar que amanhã , ali onde ago-- CAVALEIRO - O ódio externo, essa lagarta de fogo.
ra vejo uma janela fechada , possa haver um prado
coberto de gi rassóis amarelos, e e u aqui mordendo
SR. ROBLEDO - Tenho medo. Meus filhos velam. E nào é
de raiva o metacarpo.
com ara me farpado que se detém o vento. Minha
casa é diurna, eu a que ro diurna , deve ser diurna. O
CAVALEIRO - Se fosse do seu gosto, poderíamos ting ir os
que vem a ser esSa caixa azul?
girassóis mais próximos de casa.

SR. ROBLEDO - Tingi-los! Estás querendo que eu te CAVALEIRO - Não vejo nenhuma caixa azul.
arranque a cabeça? Estás propondo que eu engane a )
mim mesmo, como um freira? SR. ROBLEDO - Senta-te e escreve!

CAVALEIRO - Desculpe, senhor. Mudemos de assunto. CAVALEIRO - Senhor, lembre-se de que nosso Regula-
mento proíbe o lançamento de mais de dois editos
SR. ROBLEDO - Não é fácil. Achas que se pode fazer uma em um mesmo dia . Salvo se forem estritamente con-
guitarra com dois preguinhos e um punhado de areia? comitantes.
, -
As coisas andam muito confusas nesta casa. Aqui es-
tão crescendo muitas flores com plumas e muitos ani- SR. ROBLEDO - Amanhã baixaremos um novo edito aca-
mais com folhas, minha mulher mistura as Hébridas lYJ.ndo com o Regulamento. Agora escreva: ~ O se-
com a Província de Buenos Aires, e meus filhos ... nhor o rdena: Dentro dos prÓximos três dias o ho-
mem que atende pelo nome de Davi..." (É Interrom-
CAVALEIRO (Sentencioso) - A no rmalidade é uma coisa pido por um grande a/a rido e por uma palmada em
muito sobrenatural. seu ombro esquerdo.) Quem bateu no meu ombro?
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DOOJOfIO'""paravms - - - - - - - - - - - - -

CAVALEIRO (Com as palmas das màos golpeia o ar ao CENA IV


redor do Sr. Robledo.) - Fora! Fora! Fora! Suma da-
qui, desgraçado! Uma clareira no bosque
Davi e Isolina
SR. ROBLEDO (Arquejante, porém severo) - Cuidado com
o modo como falas. Mesmo neste caso não admito
que uses uma linguagem vulgar. Aqui, ainda se fala
espanhol. (Suspira, aliviado,) Pensei que ... O vento,
ou uma rajada de ar... Mas voltemos ao nosso assun-
to: eu dizia ...

CAVALEIRO - "Dentro dos próximos três dias o ho mem


que atende pelo nome de Davi. .. "
DAVI - Este amor que do nada se alimenta,
SR. ROBl.EDO - ..... devem deixar esta casa com armas e
esta asa sem ave, esta incerta
bagagens." Isso basta.
vaidade de seguir, como um triste
terno de verão ...
CAVAlEIRO - Não lerei esse edito. Vai provocar uma (Entra Isolina.J
confusão dos diabos!
Iso UNA - O primeiro verso é de Cortãzar. Os o utros,
SR. ROBLEDO - Pós-escrito: "Ninguém acompanhará o ( não sei de quem são. No segu ndo hã um infeliz meio
acima referido â estação ferroviá ria de Las Tacuaras, plágio de ApoUinaire. O phi, a letra grega que s6 te m
porém ser-Ihe-á emprestado o tílburi da casa." lerás uma asa e necessita voar em dupla ...
o edito amanhã, no final do desjejum, depois que a
senhorita Letícia houver servido os biscoitos. DAVI - Como eu.

CAVALEIRO - O senhor será obedecido. ISO UNA- f:, mas essa história de sair pelo bosque decla-
mando aos gritos tem qualquer coisa de resta de con-
SR. ROBlEDO - Achas mesmo? servató rio, de colação de grau.
(Entra Aníbal.)

ANíBAL - Desculpem, eu ia passando, e então ... Acho


que esta é a frase habitual. De fato, estou vindo mes-
mo é de casa, e em linha reta.

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Do1sJogos de Palavras - - - - - - - - -_ _ _ __ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Adeus, Robinson / Jutto Cortazar

DAVI - Fique <l vontade. Aqui estamos nos sentindo da imagem seria tão importante quanto o resto da vi-
bem. da. Até mais, porque essa imagem deve ser um resu-
moda vida.
ANfBAL - Sim, e você bem prevenido. Estou vendo uma
vara de sândalo em sua mão. ~ bom andar com uma _ Sim.
AN18Al- mas o que a maioria leva como imagem ê
quando anoitece. uma cara lavada de lágrimas, coisa não muito recon-
fo rtante; ou os faróis de um autom6vel, o u um rev61-
lSOUNA - Davi sabe se cuidar mais do que nós. ver, ou• uma enfermeira diplomada.

DAVI - Talvez eu nem tenha mO[ivo para isso. As vidas IS04 N? - Isso para não mencionar o senhor Vigário.
menos valiosas são as mais mimadas. Mas, afinal, trata-
se de um hábito. Quando saio do meu quarto, tenho DAVI - Eu tenho minha imagem p referida. O pro blema
logo o cuidado de pegar esta vareta. Oaro, é inútil. é saber se na hora ela estará lã .
Até hoje não vi uma única dessas estranhas serpentes.
ANISAi (Olhando para IsoUna.) - Por que não haverá
lSOUNA - Sejamos lógicos. Você nunca viu uma porque de estar? Se for alguma coisa muito entranhada , mui-
ao sair do quarto tem o cuidado de se munir da vara to ligada i1 tua vida , é provável que esteja Já .
de sândalo.
, DAVI (Olhando para IsoUna.)- Neste momen(Q a minha
DAVI- É possível. Um dia virei sem ela . imagem p referida deve estar dançando em o utro
Osolina e Davi se entreolham.) lugar. Digamos, na casa ao lado .

ANIBAi - Seria um erro. Eu me sinto um idiota andando • (SOUNA (Com um falso estremecimento.) - Que coisa
desprotegido. lúgubre! E também fo ra de propósito. Essa história de
associar, com objetivos lacrimogéneos, um moribun-
DAVI (Tristemente obstinado.) - Gostaria de ver esse do a um baile nas vizinhanças e ra boa no tempo de
bicho de que tanto fa lam. Pushkin.

lSOUNA - Poderá ser a última coisa a ser vista por você. DAVI - O tempo de Pushkin é simplesmente o tempo,
minha querida e clássica lsalina.
)
DAVI (Olbando-a.)-Seria uma lástima. Gostaria de levar
outra imagem comigo. Você acha que nos deixarão AN18AL - Eu também tenho a minha imagem favorita ,
levar nossa última imagem, para não nos sentinnos mas não vou falar dela a ninguém; seria como prepa-
tão sozinhos embaixo da terra? Nesse caso, a escolha rar as condições para a sua não realização. Oe qual-

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DoIsjogos de Palavras _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __
Adeus, Robinson I JulIO Cortthar
quer modo, por que estamos tão tristes? Neste bosque
absurdo que vivemos nos cais dos portos e nas plata-
é assim mesmo, a atmosfera é sempre deprimente.
formas das estaçôcs.
ISOLINA - Segundo o Cavaleiro, isso é devido ã presença
ISOUNA - Parece que você está fatando em ir embora.
secreta das tais serpentes.

DAVI - Há pouco, o Cavaleiro me olhou de um modo DAVI- Sim, parece. Mas não quero ir.
estranho. Eu ia por ali, e ele passou por mim com
um ar seríssimo. ANÍBAL (Olhando para [salina.) - Seu trabalho aqui não
terminou?
ANÍBAL - Tinha saído para ler o edito dos girassóis.
DAVI - Sim e não. Seu pai gosta de prolongar o prazer
lSOUNA - Coisa idiota, esse edito. Nào acha, Aníbal, que de ir fazendo novamente, de encontrar uma nova
papai nos humilha enquanto se diverte ao seu jeito? forma ... Várias vezes achei que havia terminado meu
trabalho aqui , mas nessas ocasiôcs .e le aparece, e de
ANíBAL - Acho, sim. Aliás, no que a mim toca, não me um modo ou de outro quer que a obra continue. É
divirto desde ... (Olha para Davi.) como construir um caracol, uma espiral.

DAVI (Retribuindo o olhar; longa pausa.) - Tenho pra- ISOUNA - Cuidado para não ficar preso, meu caracolzinho.
zer de acusar O recebimento.
DAVI- Acho que já fiquei.
ANÍBAL - Desculpe, 'mas não se trata de você.
I
ANÍUAL - É provável. Mas você nào tem porque se sub-
DAVI - Trata-se da minha presença aqui, entre vocês. meter assim aos caprichos de meu pai. Acho que
Ou do rasgão no pano do bilhar. É a mesma coisa. você fica porque lhe dá vontade de ficar.

ISOLINA - Por favor, nào comecem. No geral estávamos DAVI - Resulta no mesmo. Não sou eu quem decide,
indo tào bem. quem decide é isso que você chama de vontade. A
vontade me dá; está vendo? O que quero dizer é que
DAVI - Não. É melhor que sejamos francos de uma vez nào se trata de mim.
por todas. Eu também ... Nào é cansaço, não é sequer
o leve aborrecimento que nos vem com o bem-estar, ISOLINA - Pronto! Agora vocês ficarão aí brincando com
a calma, o trabalho... Mas há dias estou inquieto as palavras até O anoitecer.
como quem espera um trem expresso, esse intervalo

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DOOJOSos de Palavras - - - - - - - - - - - - - -

DAVI - Não, para mim já basta. Já me basta O falo de CENAV


você não gosta r.
Uma sala verde
ISOUNA - Não faça de mim motivo de sua conduta. É Letícia e Davi
horrível a gente se sentir responsável por procuração.

DAVI - Pois seja como você quiser.

ISOUNA - Isso também não.

DAVI (RebeJando-se.J - Se bem e ntendo , você não aceita


o menor, o ma is pequenino gr'JU de dependência
entre nós dois? É possível, lsolina?

ISOUNA- Mais do que possível. É rigorosamente exato. lE11clA - Nas praias onde habita a espuma, onde os ser-
ralheiros sangram os joelhos diante da alegre liberda-
ANfHAL (Irónfco.) - Não a leve de masiadame me a sério, de do mar...
rapaz. Mas, aquilo que você dizia da estação de trem ,
aquela imagem tão bonita ... DAVI (Entrando.) - Não há liberdade alegre. Só os cár-
ceres podem ser alegres. Basta que tenham aparência
DAVI- Está bem. Irei embora. de casas, ou de vidas, ou de mulheres.

(Isolina e Aníbal trocam um olbar de triunfo. Davi lETfClA ~ La Rochefoucauld .


faz um movimento com. a vareta de sândalo; afasta-
se, mas logo volta e :hposita a vareta aos pés de DAVI - Não, eu mesmo. Letícia, pode pedir à mucama
Isolina. Sai.) que leve as maletas para o meu quarto? Esta noite
arrumarei "minha bagagem. Economize suas palavras,
minha Ix>a amiga. Vou embora; pura e simplesmente.

LE1ÍCIA - Não pode ser'

DAVI - Claro que pode. No trem das oito e meia.

lE11clA - Não pode ser'

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Adeus, Rubtns(m Iju/to C0rt4zar
DofSJCJBOS de Palavras ---------------

DAVI- Claro que pode. No trem das oito e meia. CAVALEIRO (!endo.) - ~ O senhor ordena: Dentro dos pró-
ximos três dias o homem chamado Davi deverá aban-
lET1CIA - Então vai me deixar aqui. donar esta casa com todas as suas annas e bagagens.
Pós-escrito: Ninguém acompanhará o acima mencio-
DAVI - Nào antes que chegue o trem das oito e meia. nado ã estação ferroviária de Las Tacuaras, porém ser-
lhe-á emprestado o tílburi da casa." (Pausa.) As or-
LETiCIA - Davi! dens que eu havia dado eram para que este edito fos-
se lido na hora do café da manhã, quando a senhorita
DAVI -Eu. Letícia servisse os biscoitinhos ingleses. Por minha
culpa, e lambém porque hoje ninguém tomou o café
LETlclA - Davi, você está me deixando sozinha, me dei- da manhã, li o edito exatamente às 10 horas e 40...
xando sem minha sombra, sem respiração no meu (Sai.)
gesto. Eu lambém não sei por que vivo aqui; mas
com você ao lado era tão cômodo! LETfClA - Então, era você quem havia decidido ... (Ri.)

DAVI - É bom ficar s6. Aos poucos a gente começa a DAVI (Vai falar, explfcar-se. t
Visfuel a sua"surpresa. Mas
pensar. Não é fácil, porque a máquina costuma estar de repente ele se mostra sereno.) - Vou ficar.
enferrujada. Mas aos poucos, primeiro uma idéia,
depois outra, depois outra, depois uma ponte unindo
as duas, a terceira passando por cima ...

LETfCIA - Nào quero que você vá embora, Davi.

DAVI - Não é por mim que você não quer, mas por
você mesma.

LETlCIA - E você não vai porque realmente esteja que- J


rendo ir, mas porque enfim alguém o empurra para
fora desta casa.

DAVI - Pode ser. Mas a decisã~ minha.

lETfCIA - E eu digo que ...


(Entra o Cavaleiro.)
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Adeus, Robinson I JulIO COTtazUT

CENA VI ANlBAL - É magnífica a sua decisão de expulsá-lo. Mas a


mediCla, em si, nos causa um medo atroz. É... ilógica.
o mesmo escritório da Cena III ISOUNA - Aníbal! Essa palavra!
Aníbal, Isolina e o Sr. Robledo
ANIBAl (Confuso.) - Desculpe. Você tem toda razão.

ISOUNA - Pai... a mim o senhor dirá porque o está


expulsando?

SR. ROBLEDO - Não. Aliás, não me parece que estejas


demasiado triste.

ISOUNA - Claro que não. Na minha opinião o senhor


está agindo muito bem. Acontece apenas que não
ANloAL - Você me deixou sem fala com O fato simple::;·
entendo.
mente incrível de ter tido a coragem de mandá-lo
embora.
ANIBAL (Para o Sr. Robledo.) - O senhor era unha e car-
ne com Davi.
l SOUNA - Pois nem parece, Sua oratória já dura dez
minutos, e papai eslá fano, vê-se nos olhos dele.
SR. ROBLEDO - A cada segundo a unha se separa da car-
SR. ROBLEDO - E o que mais, senhor meu filho? ne, provando desse modo a profunda idiotice da me-
láfora.
ANIOAl- Tudo. Milhares de coisas. Aliás, nada!
ISOUNA - Nós dois ... (Aníbal gesticula, mandando-a ca-
SR. ROBLEDO - Muito bem. Pois agora me ouça; e você Iar-se. O Cavaleiro entra e sussurra algo no ouvido do
-, também, lsolina. Davi vai embora porque eu quero e Sr. Robledo.)
porque é necessário que vá. Na,da me afastará desta
decisão. Davi vai embora. Digo-Ihes, porém, que a SR. ROBLEDO - Está bem, que espere. (Voltando-se rápido
partida dele não é um fato isolado, mas o começo de pam os filhos) Já podem jogar fora essa caixinha azul.
aplicação de uma política. Com o tenJ>o isso irá se
tomando claro. AN1BAL - Essa caixinha ... azul?

ISOUNA - Davi prejudica a sua política, pai? ISOUNA (Apavo.-ada) - Cale a boca!

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Dotsjogos de Palavras _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __
Adeus, Robinson / julto Cortdzar

SR. ROBLEDO - Essa caixinha azul. Saiam. (Os dois saem, não me importa ficar, e que o céu me desabe na
e cruzam com Davi, que entra resoluto.) cabeça se eu estiver mentindo. Nada de belas frases,
Davi... Vou ficar, e você não deve afligir-se por isso.
DAVI- Boa-noite. Volte para o seu escritório, para o cálculo daquela
distância estelar que tanto o interessa. Irei lá algumas
SR. ROBLEDO-Adeus, senhor arquiteto. noites a fim de ajudá-lo.

DAVI -Não, isto não é um adeus. (Mostra papéis.) Ante- SR. ROBLEDO - Está errado, muito errado. Seja como for,
ontem concordamos em ampliar essa parte das estre- baixarei outros editos a fim de deixá-lo um pouco
barias. Levarei dois meses para terminar o trabalho. protegido.
Vou ficar.
DAVI - Protegido por você?
SR. ROBLEDO - Mas eu baixei um edito.
SR. ROBLEDO - Sim. (Pausa.) Eu queria ficar s6 com eles.
DAVI - É só baixar um segundo anulando o primeiro.
Você sabe muito bem como agir. Vou fi car, e dane-se. DAVl - Contra eles.
Mas gostaria muito de estar bem longe daqui, do
lado de lá d os bosques.
SR. ROBLEDO - Dá no mesmo.
SR. ROBLEDO (Com brandura.) - O edito o ajudará.
DAVI - E pensar que eu poderia tê-lo ajudado. E que
em vez ... (Ouve-se a voz de Aníbal chamando "/soli-
DAVI - Não. Tudo ia bem até o edito. Não gosto de ser
na!'') Exatamente isso. Bom, até logo. (Sai.)
expulso. Mas o pior é que você também não deseja
me expulsar. (Entra o Rapaz do Lado.)

SR. ROBLEDO (Como um papagaio.) - O pior é que eu RAPAZ DO LADO - Senhor RobJedo, estou aqui para lhe
também não desejo expulsá-lo. dizer que seu último edito me causou uma grande
satisfação interior, e que me sinto honrado por poder
DAVI - Por que , então? (Olbando-o.) Para me ajudar, expressá-la neste momento. (Sorri.)
não é verdade? Sim, meu velho amigo, para me aju-
dar a sair daqui sem pôr a boca no mundo. SR. ~O BLEDO - Vai pra a puta que pariu. E me desculpa
pelo ma u uso do espanhol. (O Rapaz do Lado sal
SR. ROBLEDO - Em momento nenhum ... tropeçando.) Ah, Davi, Davi, meu garoto! Aquela dis-
tância estelar! (Pa usa.) Será que você vai me ajudar a
DAVI - Ora, basta. O que eu quero dizer é o seguinte: medi-la?
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Adeus, Robtnson /julio Cortdzar

CENA VII exames no próximo turno. A garota lsolina deverá


deixá-lo livre durante o dia. Aos dois serão concedi-
Uma clareira no bosque das uma conversa e um passeio após as refeições."
Adeus. (Sai, e Letícia o segue correndo.)
o Cavaleiro e Letícia
ANIBAL - É isso que o velho chama de política.

bOLINA - Amor meu, pior foi o que ele fez ao Rapaz do


Lado. Há pouco encontrei-o muitíssimo aflito; dizia
que papai havia lhe afetado os centros nervosos com
um insulto daqueles bem pesados.

ANIBAL - E a culpa, como sempre


CAVALEIRO - E se casaram e foram felizes e comeram
inúmeras perdizes.
ISOLlNA - Claro.

LElÍCIA - Lindo final. (Enx uga uma lágrima.) Onde


ANlBAL - Em resumo, teremos de obedecer, não é? Por
e~lào üs meninos? (Bate em um tronco com sua vare-
exemplo, você tirou a caixinha de lá?
ta de sândalo e algo f oge por entre as árooresJ Acabo
de salvar tua vida, Cavaleiro.
ISOLlNA - Claro! A obediência acima de tudo. A obe-
CAVALEIRO - Obrigado. diência total. Não havia nada dentro.
(Entram Aníbal e /solina J
ANíBAL (Olhando-afixamente.)- jogou-a fora?
IsaUNA - Já sabiam? Ele vai ficar.
bOLINA - Sim, rasgada em cinco mil pedacinhos azuis.
LElÍClA - Sim. Nós dois sempre ficamos. Para que serve uma caixa vazia?

ISQLINA - Mas, e o edito, o edito .. ANlBAL - De fato. Seria como uma pipa sem fio.

ANíBAL (Mostra -lhe um girassol que traz na mão) - ISOLlNA - Ou uma roda sem o arame de empurrá-la.
Olha aqui o teu edito. (Entreolham -se.)
\ (Entra o Rapaz do lado.)
CAVALEIRO - propósito . (Desenrola um pergaminho e
A
lê.) "O senhor ordena: O menino Aníbal fará seus RAPAZ DO LADo - Estou profundamente deprimido.

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DQlsJogos de palavrllS - - - - - - - - - - - - - -

ISOUNA - Venha cá meu lindinho, meu bonequinho. CENA VIII

(Mímose1a-o. Aníbal, que parece muito inquieto, olha A mesma clareira


de repente para a matagal da esquerda. Enquanto Isolina, Isolina e Davi
[salina e o Rapaz do Lado se acariciam, apanha com
cuidado a vareta de sdndalo abandonada por Lelícia
,~~

e sai levando-a consigo. [salina e o Rapaz do Lado se


beijam. Enquanto o pano sejecho lentamente, ouve-
se um mído seco, como o de garras no chào. O pano
baixa até um ponto que s6 permite ouvir as vozes e
ver as pernas dos atares.) •

Voz DE ISOUNA (Apavorada.) - Aníbal, An ...


o pano levanta-se um instante depois de se ter fechado.
Voz DE RAPAZ 00 LADO - Aaaai! (Vêem-se suas pernas No chão, o corpo de [saUna . No alto de uma ároore, Iso-
jugindo. Os pés de lso/ina giram como se ela dançasse; Una com O rosto muito pálido . Davi entra cambaleante.
um deles se ergue, e em seguida o pano desce com~ta­
mente, ouvindo-se ao mesmo tempo o som surdo de um DAVI - Isolina! (Ajoelha-se j unto ao corpo. Entra o
corpo que cai.) Rapaz do Lado, com o medo estampado no rosto.)

RAPAZ DO LADO - Ela estava comigo. Foi picada pela


maldita serpente. (Ao perceber que Davi nào o olha,
vai se ajastando passo a passo. Da ároore onde está,
Isolina lhe dá língua, p orém ele não a vê, embora
esteja o/bando na direção dela. Sai.)

DAVI - lsolina, minha coisinha querida, minha coitadi-


nha ... (Soluça cOllvulsivamente.) Como em Romeu e
Julieta ... Sim, este sorvete de creme ... Que confeiteira
hábi l era você, minha máqu ina de gelo! (Leva as
mãos ao estômago.) Eu queria ficar para ... Completa-
mente inútil... Bom, vá indo na frente, você tem cin-
co minutos de vantagem ... Alcançarei você logo, lo-
go ... alcançarei! (Morre)

92
Dolsjogos de Palavras - - -_ _ _ _ _ _ _ _ __

ISOLlNA (Erguendo-se em sua ároore, com uma ooz terrí-


vel.) - Nunca!

Pano

MS. ANNA C, abril de 1950

NADA PARA PEHUAJO


PECA EM UM ATO

,f

94

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