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Afrânio Mendes Catani


Maria Alice Nogueira
. Ana Paula Hey e
Cristina Carta Cardoso de Medeiros
(Orgs.)

Vocabulário

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B R IE
......................................
.,.............................................................................................

autêntica
Copyright© 2017 Os Organizadores
Copyright© 2017 Autêntica Editora

Todosos direitos reservadospela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida,seja por
meios mecânicos,eletrônicos,seja via cópia xerográfica,sem a autorizaçãoprévia da Editora. SUMÁRIO
Todosos esforçosforam feitos no sentido de encontrar os detentoresdos direitos autorais das obras que constam deste
livro. Pedimosdesculpaspor eventuaisomissõesinvoluntáriase nos comprometemosa inseriros devidoscréditose corrigir
possíveisfalhas em ediçõessubsequentes.

EDITORA
RESPONSÁVEL DIAGRAMAÇÃO
RejaneDias LarissaCarvalhoMazzoni
EDITORA
ASSISTENTE WaldêniaAlvarenga
CecíliaMartins CONFECÇÃODOSINDICES
REVISÃO Os organizadores
LúciaAssumpção CarlaNeves
RenataSilveira
CAPA
Alberto Bittencourt
(sobreimagem de fotógrafo desconhecido)

Verbetes 7
A~t~~~~····························································
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro) Ab.~Í~d·;·~··~·~·i~~·ct·~··t~~~~~·~~t~·~···········
··························································································· ····························
VocabulárioBourdieu/ Afrânio MendesCatani... [et ai.]. (Orgs.).-- 1. ed. --
BeloHorizonte: AutênticaEditora,2017. Glossário deobrase textosde PierreBourd.i.~~
. ........................................................................... . ............................... }.~
Outros organizadores:Maria Alice Nogueira,Ana Paula Hey, Cristina
Carta Cardosode Medeiros. VocabulárioBourdieu 23
·······················································································································
ISBN978-85-513-0229-3
Índiceonomástico 370
1. Bourdieu, Pierre, 1930-2002 - Glossários, vocabulários, etc. ·························································································· ·····························
2. Bourdieu,Pierre,1930-2002- Linguagem3. Sociologia1.Catani,Afrânio índiceremissivo 376
Mendes.li. Nogueira,Maria Alice. Ili. Hey,Ana Paula.IV. Medeiros,Cristina
Carta Cardosode.
ó'b~~i·ci~·ri~·~~~·á;~~di~~·
··························································································
17-05006 CDD-301 ObrasdePierreBourdieupublicadas
noBrasil .................... }~9.
··························································································
Índice para catálogo sistemático:
1. Vocabuláriode Bourdieu : Sociologia301 Outrasreferências
de PierreBourdieuutilizadas ·····························392
··························································································
Cronologiade PierreBourdieu }~?.
..................................

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GRUPO AUTÊNTICA
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~~: :?.~~:~~li~~:?.~i~:::
Tradutores
:::
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., 398
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Belo Horizonte Rio de Janeiro São Paulo
RuaCarlosTurner,420 RuaDebret, 23, sala401 Av. Paulista,2.073,
Silveira. 31140-520 Centro . 20030-080 Conjunto Nacional,Horsa1
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São Paulo. SP
Tel.: (55 11) 3034 4468
www.grupoautentica.com.br
VERBETES
··································································································································

A Campo intelectual 83
Campo jurídico 86
Ação 23
Actes de la Rechercheen SciencesSociales Campo literário 88
25
Campo político 90
Agente 26
Campo religioso 93
Algérie 60: structures économiqueset
Campo universitário 95
structures temporelles 28
Canguilhem, Georges 98
Amorfati 28
Capital 101
Amor pela arte (O): os museus de arte na
Capital cultural 103
Europa e seu público (Làmour de làrt: les
Capital econômico 107
musées d'art européenset leur public) 28
Capital simbólico 109
Análise de correspondências múltiplas 31
Capital social 113
Antropologia reflexiva 33
Categorias de pensamento 117
Arbitrário cultural 36
Causalidade do provável 118
Argélia 38
Ciência 118
Art moyen (Un): essaisur les usages
Classe social 118
sociaux de la photographie 42
Classificação (lutas de) 123
Ascetismo 42
Coisas ditas (Chosesdites) 123
Ativismo 42
College de France 124
Autonomia e homologia dos campos 45
Conatus 125
Condição de classe 126
B Conhecimento praxiológico 126
Bachelard, Gaston 49 Construtivismo 128
Bal des célibataires(Le):crise de la société Contrafogos: táticàs para enfrentar a invasão
paysanne en Béarn 51 neoliberal (Contre-feux:propospour servir à
Béarn 52 la résistancecontrel'invasionnéo-libérale) 130
Bens simbólicos (economia dos) 55 Contrafogos 2: por um movimento
Boa vontade cultural 58 social europeu (Contre-feux 2: pour un
Bourdieu editor 61 mouvement social européen) 131
Burguesia 63 Corpo 132
Crença 134
e Cultura 135
137
Cultura popular
Cabília 64 .,
Campo 64
Campo artístico 66 D
Campo científico 68 Denegação 140
Campo cultural 71 Déracinement (Le): la crise de làgriculture
Campo da alta costura 73 traditionnelleen Algérie 141
Campo do poder 75 Desencantamento do mundo (O): estruturas
Campo econ_ômico 77 econômicas e estruturas temporais 141
Campo esportivo 79 Destino 142
Campo filosófico 81 Determinismo 143

1.
.:, ..
,..,:•-"
.
t-

Diploma 145 H Miséria do mundo (A) (La miseredu monde) 271 Reprodução (A): elementos para
Disposição 146 Mobilidade social 271 . uma teoria do sistema de ensino (La
Habitus 213
Distinção 146 Mundialização/Internacionalização 272 reproduction:élémentspour une théorie du
Heidegger, Martin 217
Distinção (A): crítica social do julgamento Mundo social 274 systeme d'enseignement) 316
Herança cultural 217
(La distinction:critiquesocialedu jugement) 148 Rito (de instituição) 318
Herdeiros (Os): os estudantes e a cultura N
Dom (ideologia do) 151
(Leshéritiers:les étudiants et la culture) 219
Dominação
Dominação masculina (A) (La domination
151
Hexis corporal 222 Neoliberalismo
Noblessed'État (La): GrandesÉcoleset
275 s
História 222 Sartre, Jean-Paul 321
masculine) 155 esprit de corps 277
Homo academicus 225 Sciencede la scienceet réflexivité.Cours du
Doxa 157 Nobreza 281
Honra (Sentido da) 228 Collegede France(2000-2001) 323
Durkheim, Émile 159 Nomos 281
Hysteresis 228 Senso prático (O) (Le senspratique) 324
E I
o Sistema de ensino 327
Sobre a televisão (Surla télévision,suivi de
École Normale Supérieure 162 Ontologia política de Martin Heidegger (A)
Ideologia 230 L'emprisedujournalisme) 329
Economia das trocas linguísticas (A): o (L'Ontologiepolitique de Martin Heidegger) 282
Illusio 231 Sobre o Estado. Cursos no College de France
que falar quer dizer (Ce que parler veut Opinião pública/sondagem 283
Ilusão biográfica 233 (SurEÉtat.Coursau Collegede France) 330
dire:l'êconomiedes échangeslinguistiques) 162 Sociedade 332
Inconsciente 233 p
Economia das trocas simbólicas (A) 164 332
Incorporação 234 Socioanálise
Educação 165 Passeron, Jean-Claude 286
Inculcação 234 Sociodiceia 335
Elias, Norbert 165 Patronato 288
Indivíduo - sociedade 234 Sociologia 335
Elites 167 Pedagogia racional 288
Intelectuais 236 Sociologia da sociologia 341
Emprego 169 288
Interesse 239 Pensamento relacional Sociologia e reflexividade 342
Epistemologia 169
Interventions, 1961-2001:sciencessociales Pequena burguesia 290 Sociologiede rAlgérie 345
Esboço de auto-análise (Esquissepour une Sociologieest un sport de combat (La) 345
et actionpolitique 239 PicturingAlgeria 290
auto-analyse) 173 Structuressocialesde l'êconomie(Les) 346
Investimento 240 Pierre Bourdieu. Sociologia 292
Escola 176 348
Poder simbólico 292 Sujeito
Escritos de Educação 176
Espaço social
J Poder simbólico (O) 295
177
Esprit de corps Jogo (Sentido do) 241 Política 296 T
179
Jornalismo 243 Posição de classe 296 Taxionomia 349
Esquissed'une théoriede lapratique,précédé
Juventude 243 Prática (Teoria da) 296 Televisão 349
de Traisétudesd'ethnologiekabyle 181
Profissão de sociólogo (A): preliminares Tempo 350
Esquissesalgériennes 184
Estado 184 L epistemológicas (Le métier de sociologue: Teoria 352
Estilo de escrita de Bourdieu Legitimidade/legitimação 245 préalablesépistémologiques) 298 Trabalho 352
186
Estilos de vida 187 Lévi-Strauss, Claude 246 Projeto 301 Trajetória 354
Estratégia/Estratégias de reprodução 189 Lições da aula (Leçonsur la leçon) 249 Propossur le champpolitique 301 Trocas simbólicas 356
Estrutura (social e mental) 191 Linguagem 250
Q
Estruturalismo 192 Linguístico (Capital; Mercado) 250
Questões de sociologia (Questions de
u
Ethos 194 Livre-troca: diálogos entre ciência e arte Usos sociais da ciência: por uma sociologia
(Libre-échange) sociologie) 302
255 clínica do campo científico (Os) (Les
F R usagessociaux de la science:pour une
Familia 195 M sociologiecliniquedu champ scientifique) 357
Razões práticas: sobre a teoria da ação
Fenomenologia 197 Manet. Une révolutionsymbolique 257 (Raisonspratiques:sur la théoriede l'action) 303 .,
Filosofia 199 Marx, Karl 259 Reconversão de capitais 304 V
Fotografia 201 Mauss, Marcel 262 Veredicto escolar 359
Reflexividade 305
Foucault, Michel 201 Meditações pascalianas (Méditations Violência simbólica 359
Regra 308
pascaliennes) 265 Regras da Arte (As): gênese e estrutura do Visão e divisão, Princípios de 361
G Mercado linguístico 267 campo literário (Les reglesde lart: geneseet
Goffrnan, Erving 205 Mercado simbólico 267 structure du champ littéraire) 309 w
Gosto 208 Merleau-Ponty, Maurice 267 Réponses:pour une anthropologie 365
Weber,Max
GrandesÉcoles 210 Metodologia 268 réjlexive 311 367
Wittgenstein, Ludwig
Grupos dominantes 212 Mídia 268 Reprodução 313

8 9
i

AUTORES

Afrânio Mendes Catani


UNIVERSIDADE
DESÃOPAULO- BRASIL
Ana Maria de OliveiraGalvão
UNIVERSIDADE
FEDERALDEMINASGERAIS- BRASIL
Ana Maria Fonsecade Almeida
UNIVERSIDADE
ESTADUALDE CAMPINAS- BRASIL
Ana Paula Hey -
UNIVERSIDADE
DESÃOPAULO- BRASIL
Ana Paula Simioni
UNIVERSIDADE
DE SÃOPAULO- BRASIL
Ana TeresaMartínez
UNIVERSIDADNACIONALDE SANTIAGODELESTERO- ARGENTINA
Andréa Aguiar
UNIVERSIDADE
FEDERALDEMINASGERAIS- BRASIL
AngelaXavierde Brito
UNIVERSITÊRENÊDESCARTES
- PARISV - FRANÇA
Anne-Catherine Wagner
UNIVERSITÊPARIS1 - PANTHÊON- SORBONNE- FRANÇA
Antônio Augusto GomesBatista
CENTRODEESTUDOSE PESQUISA
EMEDUCAÇÃO,
CULTURAE AÇÃOCOMUNITÁRIA-BRASIL
Bernard Lahire
ÊCOLENORMALESUPÊRIEUREDELYON- FRANÇA
BrasilioSallum Junior
UNIVERSIDADE
DESÃOPAULO- BRASIL
Carlos BeneditoMartins
UNIVERSIDADE
DE BRASÍLIA- BRASIL

11
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(

Christophe Chade José Carlos GarciaDurand


UNIVERSITÊPARIS1 - PANTHÊON- SORBONNE- FRANÇA UNIVERSIDADEDE SÃOPAULO- BRASIL
ClariceEhlers Peixoto JoséLuís Moreno Pestana
UNIVERSIDADEDOESTADODO RIODE JANEIRO- BRASIL UNIVERSIDADDE CÁDIZ-:-ESPANHA
CláudioMarques Martins Nogueira JoséSérgioLeiteLopes
UNIVERSIDADEFEDERALDEMINASGERAIS- BRASIL UNIVERSIDADEFEDERALDO RIODEJANEIRO- BRASIL
Cristina Carta Cardosode Medeiros Julien Duval
UNIVERSIDADEFEDERALDO PARANÁ- BRASIL ÊCOLEDESHAUTESÊTUDESEN SCIENCESSOCIALES- FRANÇA
Denis Baranger Juliana Ferreira de Melo
UNIVERSIDADNACIONALDE MISIONES- ARGENTINA UNIVERSIDADEFEDERALDE MINASGERAIS- BRASIL
Edison Ricardo Bertoncelo Kátia Maria Penido Bueno
UNIVERSIDADE
DE SÃOPAULO- BRASIL UNIVERSIDADEFEDERALDE MINASGERAIS- BRASIL
Elisa Klüger LetíciaBicalhoCanêdo
UNIVERSIDADEDE SÃOPAULO- BRASIL UNIVERSIDADEESTADUALDE CAMPINAS- BRASIL
Enio Passiani Loi'cWacquant
UNIVERSIDADEFEDERALDO RIO GRANDEDO SUL- BRASIL UNIVERSITYOF CALIFORNIA-:-
ESTADOSUNIDOS
Enrique Martín Criado Louis Pinto
UNIVERSIDADPABLODE OLAVIDE- ESPANHA ÊCOLEDESHAUTES-ÊTUDES
EN SCIENCESSOCIALES- FRANÇA
Ernesto Seidl Magda BeckerSoares
UNIVERSIDADEFEDERALDE SANTACATARINA- BRASIL UNIVERSIDADEFEDERALDE MINASGERAIS- BRASIL
Fernando Antonio Pinheiro Filho Marcos César Alvarez
UNIVERSIDADEDE SÃOPAULO- BRASIL UNIVERSIDADEDE SÃOPAULO- BRASIL
François de Singly Maria AliceNogueira
UNIVERSITÊRENÊDESCARTES- PARISV - FRANÇA UNIVERSIDADEFEDERALDE MINASGERAIS- BRASIL
FrançoisDenord Maria Amália de Almeida Cunha
ÊCOLEDESHAUTESÊTUDESEN SCIENCESSOCIALES- FRANÇA UNIVERSIDADEFEDERALDE MINASGERAIS- BRASIL
FrédéricLebaron Maria Andréa Loyola
ÊCOLENORMALESUPÊRIEUREPARIS- SACLAY- FRANÇA UNIVERSIDADEDOESTADODORIODE JANEIRO- BRASIL
GeraldoRomanelli Maria Arminda do NascimentoArruda
UNIVERSIDADEDE SÃOPAULO- BRASIL UNIVERSIDADEDE SÃOPAULO- BRASIL
Gérard Mauger Maria da GraçaJacintho Setton
ÊCOLEDESHAUTESÊTUDESEN SCIENCESSOCIALES- FRANÇA UNIVERSIDADEDE SÃOPAULO- BRASIL
GilsonRicardo de MedeirosPereira Maria José BragaViana
UNIVERSIDADEDOESTADODO RIOGRANDEDO NORTE- BRASIL UNIVERSIDADEFEDERALDE MINASGERAIS- BRASIL
GiseleSapiro Marília Pontes Sposito
ÊCOLEDESHAUTESÊTUDESEN SCIENCESSOCIALES- FRANÇA UNIVERSIDADEDE SÃOPAULO- BRASIL
Igor Gastai Grill MichelDaccache
UNIVERSIDADEFEDERALDO MARANHÃO- BRASIL ÊCOLEDESHAUTESÊTUDESEN SCIENCESSOCIALES- FRANÇA

12 13
Monique de Saint Martin ABRINDO
A CAIXADEFERRAMENTAS
ÉCOLEDESHAUTESÉTUDESEN SCIENCESSOCIALES- FRANÇA
Pascal Ragouet
UNIVERSITÉDEBORDEAUX
- FRANÇA
Pascale Casanova
DUKEUNIVERSITY- ESTADOSUNIDOS
Patrick Champagne
INSTITUTNATIONALDELARECHERCHEAGRONOMIQUE
- FRANÇA
Paula Montero
UNIVERSIDADE
DESÃOPAULO- BRASIL
RemiLenoir
ÉCOLEDESHAUTESÉTUDESEN SCIENCESSOCIALES- FRANÇA
A elaboração de um vocabulário dedicado a Pierre Bourdieu (1930-2002)não é tarefa das
Roberto Grün mais fáceis,sobretudoquando consideramoso quanto antibourdieusianoé apresentarnoções,
UNIVERSIDADE
FEDERALDE SÃOCARLOS- BRASIL constructos, definiçõesdescoladosdaquilo que caracteriza de modo preciso e original seu tra-
SergioMiceli balho científico,qual seja,fornecerinstrumentos de construção da análise sociológicaque não
UNIVERSIDADE
DESÃOPAULO- BRASIL se constituam em meros conceitosdescritivos,mas que envolvamuma epistemologiaprática.
SylviaGemignani Garcia Bourdieu foi um dos grandes pensadores de nosso tempo, tendo dado, já em fins dos anos
UNIVERSIDADE
DESÃOPAULO- BRASIL
1950,uma contribuiçãoessencialpara afirmar a sociologiacomo disciplinacientíficana Euro-
pa. Dotado de rigorosa acuidade intelectual,provenienteda formação filosóficadesenvolvida
Tânia de Freitas Resende nos setores mais consagrados da academia francesa, propiciou uma visão analítica refinada
UNIVERSIDADE
FEDERALDEMINASGERAIS- BRASIL
de objetos complexos e diversos que compõem o mundo social em que vivemos. Alçado à
Vincent Bontems posição de cientista imprescindível a quem se envolvecom a ciência social contemporânea,
LABORATOIRE
DESRECHERCHES
SURLESSCIENCESDELAMATIÊRE- FRANÇA tornou-se autor de uso frequente em campos disciplinaresos mais variados, como sociologia,
WanderleyMarchi Júnior antropologia, educação, história, economia e psicologia.Sua obra abrangeu desde sensível
UNIVERSIDADE
FEDERALDO PARANÁ- BRASIL etnologia do mundo tradicional dos cabilas, na Argélia, envolveua crise da reprodução das
sociedades tradicionais francesas, desvendouas funções sociais do sistem~de ensino de seu
YvesWinkin
país, descreveu práticas culturais distintivas alinhadas à constituição e classificação das
CONSERVATOIRE
NATIONALDESARTSET MÉTIERS- FRANÇA
classes sociais, explorou as peculiaridades de seu próprio universo intelectual, desvelou os
Zaia Brandão confrontos no interior de distintos campos de produção simbólica, expôs formas dissimu-
PONTIFÍCIAUNIVERSIDADE
CATÓLICADO RIO DEJANEIRO- BRASIL ladas de dominação e de exercícioconsentido do poder, além de refletir e polemizar sobre
problemas sociais emergentes com seu enérgico ativismo político. A construção de todo um
aparato conceitua! estabelecidoao longo e a partir de incursões em terrenos empíricos bas-
tante diversificadosresultou na elaboração de potentes noções operacionais que permitem,
por sua vez, perscrutar os mais variados domínios do mundo social.
Nesse sentido, apresentamosao leitor a possibilidadede interagir com a grande multiplici-
dade de elementosconstitutivosda teoria de Bourdieu,exibidosde modo singular pelosautores
dos diferentesverbetes,mas que, em seu conjunto, ensejam uma visão global da contribuição
de suas análises sociológicas.Com isso afirmamos que nossa motivação foi a de apresentar
uma sistematização, dotada de valor pedagógico, daquilo que constitui o pensamento e a
prática científica de sua sociologia,centrada no tripé teoria-história-empiria, como auxílio
à leitura e compreensão de seus textos e direcionado a um público amplo.

15
14

1.
A seleçãodos verbetesque integram este Vocabulário Bourdieu refleteum esforçopara Expressamosdesdejá nosso agradecimentoaos 65 colaboradores,provenientesde várias
se aproximardos aspectosnodais de seu pensamentoe da contribuiçãoao campo das ciências instituições brasileiras e de diferentes países como França, Espanha, Argentina e Estados
humanas e sociais.Tal escolhadesconsiderouas modulaçõespresentesem sua obra, ou seja, Unidos,muitosdelesparceirosde trajetóriaou ex-alunosdo próprioBourdieue representantes
os verbetes tanto podem refletir conceitosmaduros de sua escrita analítica como conviver de distintos campos disciplinares.Elesforam responsáveispela elaboraçãodos 164verbetes,
com noçõesapenas esboçadas;podem se referir ao âmbitonacional ou a uma pequena região distribuídos em três categorias:os relativosàs noções centrais e correlatas,os dedicadosaos
geográfica;permitir generalizaçõeso'use cingir ao contextode uma investigaçãoespecífica. livrospublicadospelopensadorfrancêse os que se referema um seletogrupo de interlocutores
Aquelesque manusearem este Vocabulário serão, portanto, convidadosa interagir com um com os quais ele dialogouao longo do processo de constituiçãode seu pensamento.
corpus teórico concebidono processomesmo de construção dos problemas científicos,com Os verbetes foram editados com a finalidade de uniformizar as referênciasfeitas pelos
condicionantesligadosàs disposiçõespara fazer ciência,às instituições que lhe dão sustenta- autores aos escritos de Bourdieu, indicando-os a partir de siglas compostaspelas primeiras
ção, ao habitus de cada disciplina e ao sistema de posiçõese tomadas de posiçãono interior letras dos títulos dos livros, grafadas em maiúsculas. Acrescentou-seuma letra minúscula,
do campo científico,nacional e internacional. "p",para versões da obra em português, ou "i", para traduções em língua inglesa.
A importânciade sepublicaruma obra dessanaturezano Brasilprende-seao fatode que os Alistagemcompletada bibliografiado autorencontra-seno índicede seuslivrospublicados
trabalhos de Bourdieususcitam,desdeos anos 1960e de modo contínuo,grande interesseno na França e no Brasil.O Vocabulário conta ainda com uma "Cronologiade Pierre Bourdieu",
meioacadêmicolocal.Commomentosmarcadospor uma apropriaçãomais intensado autornos que detalha sua biobibliografia.
domíniosespecíficosda sociologiae da antropologia,expandindo-sepor polêmicasno campo Gostaríamos,por fim, de agradecerduplamente à AutênticaEditora: pela oportunidade
educacional,até ser tomadocomoreferênciade base em áreasmais amplas,o número constante aberta a obras desta natureza, que permitem expor em amplitude e com total liberdade o
de pesquisasinspiradasnas ferramentasepistêmicase empíricasqueeledesenvolveuevidenciam conjunto dos trabalhos de Bourdieu e, também, por respeitar o tempo demandado à finali-
sua apropriaçãovastae amalgamadaao nossoespaçocientífico.Nessadireçãodeve-seressaltar, zação deste empreendimentocoletivo.
ainda, o conviteà releiturado conjuntoda obra que produziu,impulsionadopela organização
de livrosinéditospublicadosapós seu desaparecimento,à proliferaçãode pesquisasrealizadas Afrânio Mendes Catani
aqui e em váriospaíses,deslocandoempiricamentea abordagemcientíficaque concebeu. Maria Alice Nogueira
Por todas essas razões, decidimos oferecer ao leitor a oportunidade de acessar teorica- Ana Paula Hey
mente um universoconceitua!e metodológicoconsideradodenso em complexidadee em suas Cristina Carta Cardosode Medeiros
formas de expressão.O próprio Bourdieuempreendeualgumas inciativas nessa direção, ao
organizar antologiascom artigos de cunho teórico, além de fartas transcrições de palestras, SãoPaulo,BeloHorizonte,Curitiba,maio de 2017.
entrevistas, conferênciase seminários, tais como Questions de sociologie (1980),Choses
dites (1987),Réponses: pour une anthropologie réfléxive (1992),Raisons pratiques - sur
la théorie de l'action (1994).
Poderíamossintetizarnossoobjetivocoma organizaçãodeste Vocabulário comas próprias
palavras de Bourdieu em uma passagemdo prefácioà ediçãobrasileira de Razões práticas,
datada de outubro de 1995:"sepossofazer um voto,é o de que meus leitores,especialmenteos
mais jovens,que começama se envolverem pesquisas,não leiam este livro como um simples
instrumento de reflexão,um simplessuporte de especulaçãoteórica e da discussão abstrata,
mas como uma espécie de manual de ginástica intelectual, um guia prático que é preciso
aplicar a uma prática, isto é, a uma pesquisa prazenteira, liberta de proibiçõese de divisões
e desejosade trazer a todos esta compreensãorigorosa do mundo que, estou convencido,é
um dos instrumentos de liberaçãomais poderosos com que contamos".
Os desafios que enfrentamos em trabalho de tal envergadura foram diversos, desde a
seleçãodos verbetese a extensãoadequadaa ser conferidaa cada um deles,até a identificação
dos especialistasencarregadosde redigi-los.Quanto a este ponto, o Vocabulário congrega
autoressitua~os em distintas posiçõesnos espaçosda reflexãoacadêmica,mas que possuem
em comum uma agendaintelectual convergenteem termos de pressupostosteóricos,proce-
dimentos analíticos,metodologiasde pesquisa.
17
16
SIGLA GLOSSÁRIO DE OBRAS E TEXTOS DE PIERRE BOURDIEU

ARSS Actesde la Rechercheen SciencesSociales


A60 Algérie60:structureséconomiqueset structurestemporelles
AAp Amorpela arte (O):os museusde arte na Europae seupúblico
AA Amour de l'art (L'):lesmuséesd'art européenset leurpublic
AM Art moyen (Un):essaisur les usagessociauxde laphotographie
BC Bal descélibataires(Le):crisede la sociétépaysanneen Béarn
BCi Ball of Bachelors(The)
CE Campoeconômico(O):a dimensãosimbólicada dominação
PVD Cequeparlerveut dire:l'économiedeséchangeslinguistiques
CD Chosesdites
CDp Coisasditas
CFlp Contrafogos:táticaspara enfrentara invasãoneoliberal
CFl Contrejeux:propospour servirà la résistancecontrel'invasionneo-libérale
CF2p Contrafogos2:por um movimentosocialeuropeu
CF2 Contrejezix2:pour un mouvementsocialeuropéan
Rp Conviteà sociologiareflexiva(Um)
DR Déracinement(Le):la crisede l'agriculturetraditionelleen Algérie
DMEE Desencantamentodo mundo (O):estruturaseconômicase estruturastemporais
LDp Distinção(A):críticasocialdojulgamento
LD Distinction(La):critiquesocialedujugement
LDi Distinction:a SocialCritiqueof theJudgmentof Taste
DMp Dominaçãomasculina(A)
DM Dominationmasculine(La)
PVDp Economiadas trocaslinguísticas(A):o quefalar querdizer
ETS Economiadas trocassimbólicas(A)
EAAp Esboçode auto-análise
ETPp Esboçode uma teoriadaprática,precedidode trêsestudosde etnologiaCabila
EE Escritosde Educação .,
ETP Esquissed'une théoriede lapratique,précédéde Traisétudesd'ethnologiekabyle
EAA Esquissepour une auto-analyse
EA Esquissesalgériennes
LEE Étudiantset leursétudes(Les)
LHp Herdeiros(Os):os estudantese a cultura
LH Héritiers:les étudiantset la culture(Les)

L 19
r·- ;

HA Homoacademicus LRp Reprodução(A):elementospara uma teoriado sistemade ensino


HAp Homoacademicus LR Reproduction(La):élémentspour une théoriedu systemed'enseignement
IA Imagesde l'Algérie:une affinitéélective SSR Sciencede la scienceet réflexivité
INT Interventions,1961-2001:sciencessocialeset actionpolitique SP Senspratique(Le)
Ri Invitationto RejlexiveSociology(An) SPp Sensoprático(O)
LPS Langageetpouvoirsymbolique SMS Si le mondesocialm'estsupportable,c'estparcequeje peux m'indigner
LL Leçonsur la leçon STp Sobrea televisão
LI Liber1 SEp Sobreo Estado.Cursosno Collegede France(1989-92)
LE Libre-échange SSEi SocialStructuresof theEconomy(The)
LLp Liçõesda aula SA Sociologiede l'Algérie
LEp Livre-troca:diálogosentreciênciae arte SSE Structuressoeialesde l'économie(Les)
SPi Logicof Practice(The) ST Sur la télévision,suivi de L'emprisedujournalisme
SM Manet. Unerévolutionsymbolique SE Sur L'État.Coursau Collegede France(1989-1992)
MPp Meditaçõespascalianas TTA Travailet travailleursen Algérie
MP Méditationspascaliennes uss Usages sociauxdelascience(Les):pour unesociologie
cliniquedu champscientifique
MS Métierde sociologue(Le):préalablesépistémologiques USSp Usossociaisda ciência(Os):por uma sociologiaclínicado campocientífico
MM Miséredu monde (La)
MMp Misériado mundo (A)
NE Noblessed'État (La):GrandesÉcoleset espritde corps
OPp Ontologiapolíticade Martin Heidegger(A)
OP Ontologiepolitiquede MartinHeidegger(L')
MPi Pascalianmeditations
IAi PicturingAlgeria
PBS PierreBourdieu.Sociologia
OPS Podersimbólico(O)
PC Produçãoda crença(A):contribuiçãopara uma economiados benssimbólicos
PID Productionde l'idéologiedominante(La)
MSp Profissãode sociólogo(A):preliminaresepistemológicas
PCP Propossur le champpolitique
QS Questionsde sociologie
QSp Questõesde sociologia
RP Raisonspratiques:sur la théoriede l'action
RPp Razõespráticas:sobrea teoriada ação
RA Réglesde l'art (Les):geneseet structuredu champlittéraire
RAp Regrasda arte (As):gênesee estruturado campoliterário
R Réponses:pour une anthropologieréjlexive

20 21
. :1
!

1.AÇÃO
CláudioMarquesMartins Nogueira

Omodo comoBourdieuconcebea açãosocialdos agentesestárelacionadoaosseusposicio-


namentosteóricose epistemológicos maisamplos(SPp;RPp;CDp;PBS).O autorbuscaseafastar,
por um lado,das perspectivasfenomenológica, individualistaou, maisamplamente,subjetivista,
quetenderiama conceberas açõesa partir dopontodevistaindividualou subjetivo,ou seja,como
resultadosdos projetos,preferências,escolhas,intençõese, em algumasàbordagens,do cálculo
racionalconscientedos custos e benefíciosenvolvidos.Bourdieuconsideraessasperspectivas
não apenas limitadas, no sentido de que não investigariamas condiçõessociaisobjetivasque
estariam na base da experiênciasubjetiva,mas também ilusórias,no sentidoque confeririam
aos sujeitosuma autonomiae uma consciênciana conduçãode suas açõese interaçõesque não
corresponderiaaos fatos.Por outro lado, o autor busca também se afastar das abordagensde
inspiração estruturalista, rotuladas por ele de objetivistas.Essas abordagens,na perspectiva
de Bourdieu,reduziriam a ação a uma simplesexecuçãode regras sociais,sem explicarade-
quadamente como e por que os atoresparticipam do processode produção e reproduçãodas
regularidadespresentesno seu contextosocial.Ele insiste que o fato de um indivíduoagir de
acordocom o que é mais previsívelpara alguémde sua posiçãosocialem dada situaçãonão é
suficientepara que se concluaque esseindivíduoseguiuregras explícitasde comportamentoe
nemmesmoquetenhaplenaconsciênciadosmodosregularesde açãoidentificadospelosociólogo.
Para superar as limitações e os equívocos das concepçõessubjetivista e objetivista da
ação,Bourdieu (PBS,60) afirma então que serra "necessárioe suficienteir do opus operatum
ao modus operandi, da regularidade estatística ou da estrutura algébrica ao princípio de
produção dessa ordem observada".A esse princípio de produção, incorporado nos próprios
indivíduos, o autor denomina "habitus", entendido como sistema de disposiçõesduráveis,
estruturadas de acordocom o meiosocialdos agentese que seriam "predispostasa funcionar
como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e
das representações"(PBS,61).O conceitode habitus faria, assim, a ponte, a mediação entre
as dimensões objetivae subjetivado mundo social, ou, simplesmente,entre a estrutura e a

AÇÃO 23
ação prática. O argumento de Bourdieu é que a estruturação das práticas sociais não é um suas ações cotidianas, sem que tenham plena consciênciadisso - sem necessitar sustentar
processoque se façamecanicamente,de forapara dentro, de acordocom as condiçõesobjetivas a existência de qualquer teleologismoou finalismo consciente de natureza individual ou
presentesnum determinadoespaçoou situaçãosocial.Nãoseria, por outro lado, um processo coletiva.A convicçãode Bourdieu é a de que as ações dos sujeitos têm um sentido objetivo
conduzidode forma autônoma,conscientee deliberadapelossujeitosindividuais.As práticas que lhes escapa. Eles agem como membros de uma classe, mesmo quando não possuem
sociais seriam estruturadas, isto é, apresentariam propriedades típicas da posição.social consciênciaclara disso;exertem o poder e a dominaçãoeconômica(e,sobretudo,simbólica)
de quem as produz, porque a própria subjetividadedos indivíduos, sua forma de perceber frequentemente,de modo não intencional.As marcas de sua posição social,os símbolosque
e apreciar o mundo, suas preferências,seus gostos, suas aspirações estariam previamente a distinguem e que a situam na hierarquia das posiçõessociais, as estratégias de ação e de
estruturados em relação ao momento da ação. reprodução que lhe são típicas, as crenças,os gostos,as preferênciasque a caracterizam, em
SegundoBourdieu,cada indivíduo,em funçãode sua posiçãono espaçosocial,vivenciaria resumo, as propriedades correspondentesa uma posiçãosocial específica,são incorporadas
uma série característicade experiênciasque estruturariam internamente sua subjetividade, pelos sujeitos,tornando-se parte da sua própria natureza. A ação de cada sujeito tenderia,
constituindo uma espéciede "matriz de percepçõese apreciações"que orientaria, estrutu- assim, a refletir e a atualizar as marcas de sua posiçãosociale as distinções estruturais que a
raria suas ações em todas as situações subsequentes. Essa matriz, ou seja, o habitus, não definem,não, em primeirolugar,por uma estratégiadeliberadade distinçãoe/oude dominação,
corresponderia,no entanto, a um conjunto inflexívelde regras de comportamento a serem mas,principalmente,porque essasmarcasse tornaram parte constitutivade sua corporeidade
indefinidamenteseguidaspelosujeito,mas, diferentementedisso,constituiria um "princípio e de sua subjetividade.Os sujeitosnão precisariam ter uma visão de conjunto da estrutura
gerador duravelmentearmado de improvisaçõesregradas" (PBS,65). sociale um conhecimentopleno das consequênciasobjetivasde suas ações,particularmente,
Bourdieu realça essa dimensão flexíveldo habitus, o que ele chama de relação dialética no sentido da perpetuação das relaçõesde dominação,para deliberadamentedecidirem ou
ou não mecânica do habitus com a situação,antes de mais nada, como forma de evitar uma não a agir de acordo com sua posiçãosocial.Elessimplesmenteagiriam de acordocom o que
recaída no objetivismo.O autor insiste que o habitus seria fruto da incorporação da estru- aprenderam ao longo de sua socializaçãono interior de uma posiçãosocialespecíficae, dessa
tura e da posiçãosocial de origemno interior do próprio sujeito.Essa estrutura incorporada forma,nos termos de Bourdieu,confeririamàs suas açõesum sentido objetivoque ultrapassa
seria colocadaem ação, no entanto, ou seja, passaria a estruturar as ações e representações o sentido subjetivodiretamente percebidoe intencionado.
dos sujeitos,em situaçõesque diferem,em alguma medida, daquelasnas quais o habitus foi
formado.O agentesocial,para usar o termo preferidopor Bourdieu,precisaria,então,ajustar
suas disposiçõesduráveispara a ação, seu habitus, formado numa estrutura social anterior, 2. ACTESDELARECHERCHE
EN SCJENCES
SOCJALES
à conjuntura concreta na qual ele age. O grau de ajustamento necessáriovariaria conforme Afrânio Mendes Catani
a maior ou menor similaridade entre as condiçõesobjetivasdentro das quais o habitus foi
forjado e as característicasobjetivasdo contexto de ação. Nos casos de maior similaridade, Actes de la Rechercheen SciencesSociales(ARSS)foilançadaem 1975e dirigidapor Pierre
predominantes segundo o autor, os agentesestariam, por assim dizer, pré-adaptadosao seu Bourdieuaté2001,coordenandouma equipedetrabalhobem consolidada.Operiódico,de natu-
contexto de ação.Eles teriam o conhecimentoprático sobre as regras ou o "sentido do jogo" rezainterdisciplinar,esforçou-separa" desnacionalizara ciênciasocial",inovarna representação
e saberiam, assim, reconhecer como evidentes os cursos de ação mais viáveis e adequados gráficae nos resultadosda pesquisa.Miceli(2002)escreveuque a revistaprocurou dar conta
para indivíduos com sua origem social. de um tríplice desafio:"afirmarum rosto teóricooriginalpara o ofíciode sociólogo,lançar as
É importante,então,observarqueo conceitode habitus desempenha,na obra de Bourdieu, bases de aliançascom cientistassociaisestrangeirosconsideradospares [...] e testar os grausde
o papel de elo articulador entre três dimensões fundamentais de análise: a estrutura das universalizaçãodos achadose dos conceitosderivadosdos seus experimentosde investigação".
posiçõesobjetivas,a subjetividadedos indivíduose as situaçõesconcretasde ação.A posição A publicação,hojetrimestral,divulgou,alémdas temáticasqueperpassavamo tecidosocial,
de cada sujeitona estrutura das relaçõesobjetivas,ou seja, no espaçosocial,propiciaria um artigos dedicados à economia dos bens culturais (pintura, livros, literatura, moda, música,
conjuntode vivênciastípicasque tenderiam a consolidar-sena forma de um habitus ajustado museus, academia,mito, ciênciae as respectivasinterrelações),à lógicada classificaçãosocial
à sua posição social. Esse habitus, por sua vez, faria com que esse sujeito agisse nas mais e à fabricaçãode coletivossociais;textosreferentesà etnicidade,à região,à nação,à vida social
diversassituaçõessociais,não comoum indivíduoqualquer,mas comoum membrotípicode - envolvendoa família,a empresa,o partido, o Estado(WACQUANT, 2002,p. 106).A esteinven-
um grupo ou classesocial que ocupa uma posição determinada na estrutura social.Ao agir tário temáticopodem-seacrescentarestudosdas estratégiassociaisde dominação,distinçãoe
dessaforma,finalmente,o sujeitocolaboraria,sem sabê-lo,para reproduziras propriedadesdo reprodução,bem comoàs práticas e aospoderesintelectuais.Mencionem-senúmerossobreas
seu grupo social de origeme a própria estrutura das posiçõessociaisna qual elefoi formado. novasformas de desigualdadesociale marginalidadeoriginadasnos anos 1990(WACQUANT,
Ass~, o conceitode habitus permite a Bourdieusustentar a existênciade uma estrutura 2002,p. 105-6).AtravésdaARSSBourdieumanteveprofícuodiálogocomintelectuaisestrangei-
social objetiva,baseada em múltiplas relações de luta e dominação entre grupos e classes ros de primeira linha - HowardBecker,Aaron Cicourel,RobertDarnton,NorbertElias,Erving
sociais -e das quais os sujeitosparticipam e para cuja perpetuação colaboram por meio de Goffman,Eric Hobsbawm,CarloGinzburg,GershomScholem,Joan Scott,CarlSchorske,Paul

24 AÇÃO
ACTES DE LA RECHERCHE EN SCIENCES SOC/ALES 25
Willis,WilliamLabov,RaymondWilliams,etc.Grandequantidadede colaboradoresfranceses experiênciaseria entendidacomoestruturadapor relaçõesobjetivasque ultrapassamo plano da
também frequentaram as páginas da revista: Robert Castel,Luc Boltanski,ClaudeGrignon, consciênciae intencionalidadeindividuais.Segundoessasabordagens,serianecessárioinvestigar
Patrick Champagne,AbdelmalekSayad,Jean-ClaudeChamboredon,YvetteDelsaut,Monique as estruturassociaisqueorganizam,queestruturama experiênciasubjetiva;inclusiveparaescapar
de Saint Martin, YvesDezalay,Remi Lenoir, Louis Pinto, Mihai Gheorghiu, GiseleSapiro, à concepçãode queosindivíduossãoseresautônomose plenamenteconscientesdo sentidode suas
Jean-PierreFaguer,GabrielleBalazs,MichaelPollack,Loi:cWacquant,FrancineMuel-Dreyfus, ações.Aomesmotempoem que consideranecessáriaessaruptura coma dimensãosubjetivaque
RogerChartier,YvesWinkin,NathalieHeinich,ChristopheChade,AlainAccardo,JeanBollack, o objetivismopromove,Bourdieumostra-sepreocupadocoma dificuldadedessaperspectivade
LouisMarin, MauriceAgulhou,JacquesBouveresse,Robert Linhart, Bruno Latour. construiruma teoria da prática,ou seja,de explicarcomose dá a articulaçãoentre os planosda
Comolembra Wacquant (2002,p. 106),o êxito de ARSS foi total, com um públicoleitor estrutura e da ação.O objetivismotenderiaa concebera práticaapenascomoexecuçãode regras
regular próximo a dez mil. A revista se estendeu,portanto, para além da academia,uma vez estruturaisdadas,seminvestigaro processoefetivopor meiodo qualas regularidadessociaissão
que na França há apenas cerca de mil sociólogos. produzidase reproduzidaspelosagentespor meiode suas açõespráticas.
O conhecimentopraxiológicoe a noçãode agentea eleassociadaé apresentadoe defendido,
Referências
então,pelo autor comouma alternativacapazde solucionaros problemasdecorrentesdas pers-
MICELI,S. Uma revoluçãosimbólica.Tendênciase Debates,Folha de S.Paulo, 27,p. 3-A,jan. 2002. pectivassubjetivistae objetivista.O conhecimentopraxiológiconão se restringiriaa identificar
WACQUANT, L. O legadosociológicode Pierre Bourdieu;duas dimensões e uma nota pessoal.Revista estruturasobjetivasexternasaosindivíduos,tal comoo fazo objetivismo,masbuscariainvestigar
de Sociologia e Política, Curitiba: UFPR,n. 19,p. 95-110,novembro 2002. comoessasestruturasseencontraminteriorizadasnos agentes,constituindoum conjuntoestável
de disposiçõesestruturadas,um habitus, que,por sua vez,estrutura as práticase as representa-
3.AGENTE çõesdas práticas.Essaformade conhecimentoapreenderia,então,a própriaarticulaçãoentreos
········································································•·'••··········································· planosda açãoou das práticassubjetivase o planodas estruturas,ou, comorepetidamentediz o
Cláudio Marques Martins Nogueira autor,captariao processode "interiorizaçãoda exterioridadee de exteriorizaçãoda interioridade".
. O uso recorrentedo termo "agente"por Bourdieunão se justifica,portanto, por uma sim-
A adoção do termo "agente"por Bourdieuestá relacionadaao seu esforçode construção plespreferênciapessoaldo autor. O termo marca, por um lado, a distância que Bourdieuquer
de uma teoria da açãoprática, ou seja,de um conhecimentosobre o modo como agentescon- estabelecerem relaçãoàs concepçõessubjetivistaou individualista,que tendem a se limitar à
cretos,inseridos em uma posiçãodeterminada do espaçosocial e portadores de um conjunto experiênciaimediata dos sujeitos.Bourdieuinsiste que as ciênciassociaispodem ir além da
específicode disposiçõesincorporadas, agem nas situações sociais. simplesdescriçãofenomenológica do universosubjetivoembuscade suascondiçõesobjetiv~sde
É preciso considerar que Bourdieu constrói toda sua obra em contraposição, por um possibilidade.Na perspectivadele,seriapossívele necessárioinvestigaras relaçõesentreo plano
lado, ao que ele chama de forma subjetivista ou fenomenológicade conhecimento e, por subjetivoe objetivo,entre as escolhas,as percepções,as apreciaçõese a localizaçãosincrônicae
outro, às abordagensde natureza estruturalista, rotuladas por ele de objetivistas. Bourdieu diacrônicados indivíduosno espaçosocial.Essaafirmaçãodo caráter socialmentesituado das
(SPp;PBS)argumenta que o conhecimentofenomenológico,representado na sociologiapor subjetividadesimplicaainda uma rejeiçãofrontalde qualquerconcepçãouniversalistasobreos
correntescomo a Etnometodologiae o Interacionismo,restringir-se-ia a captar a experiência indivíduose suaspropriedades,comoas que estãosubtendidasna hipótesede um ator racional,
e a percepçãoimediata do mundo social,tal comovivida cotidianamentepelos membros da orientado por preferênciasuniversalmentedadas. Por outro lado, o termo "agente"também
sociedade.Essa forma de conhecimento,segundo o autor, excluiriado seu campo de investi- permite um distanciamento em relação às concepçõesestruturalistas ou objetivistas, que
gaçãoa questãodas condiçõesde possibilidadedessaexperiênciasubjetiva.Descrever-se-iam reduziriamos atoresa simplesexecutoresde regras estruturais estabelecidasa partir do ponto
as ações e interações sociais,mas não se questionaria a respeito das condiçõesobjetivasque de vista do observador.O termo põe em relevoa dimensãoconcretada ação, ou seja, o modo
poderiam explicaro curso dessasinterações.Bourdieuestendeessasobservaçõescríticasa um comoos indivíduosefetivamenteagemem situaçõesefetivas,modo esseque,na perspectivade
conjuntode teorias que vão além das correntesestritamente fenomenológicas incluindo-se, Bourdieu(CDp),seria muito diferenteda obediênciaestrita de um conjuntode regras.
muito especialmente,a abordagem de Sartre e as teorias da escolha racional, estas últimas Valeaindaressaltarqueas noçõesde agentee de habitus permitema Bourdieucompreendero
inspiradas no pensamento econômico. O problema de todas essas abordagens, rotuladas funcionamentomacroestruturalda sociedade,particularmenteosprocessosde dominaçãosocial,
por ele de subjetivistas,não seria apenas seu escopolimitado, o fato de elas não atingirem as sem precisarsupor que essessão intencionalmenteconstituídos,sejapelosindivíduosisolados,
bases sociais que supostamentecondicionariamas experiênciaspráticas, mas, sobretudo, o sejapelosgrupos.O raciocíniode Bourdieucompõe-se,na verdade,de duas partes.Em primeiro
fato de contribuírem para uma concepçãoilusória do mundo social,que confereaos sujeitos lugar,afirmaque os agentesagemde acordocomo habitus herdadodo seugruposocial.Osindi-
excessiva~utonomiae consciênciana conduçãode suas ações e interações. víduospercebemos elementosenvolvidosnas situações,estabelecemseusobjetivosprioritáriose
Em contraposiçãoao subjetivismo,o conhecimentoobjetivista,associadoao estruturalismo, selecionamas estratégiasa seremutilizadasem cada ação,semprede acordocomseu sistemade
caracterizar-se-iapela ruptura que promoveem relaçãoà experiênciasubjetivaimediata.Essa disposições socialmenteestruturado.Emoutrostermos,issosignificaqueosagentesnãoescolheriam

26 AGENTE
AGENTE 27
?: . 1
i

seus cursos de açãode uma formaconscientementecalculada,considerandoracionalmenteos frutode pesquisadirigidapor Bourdieu(colaboraçãode DominiqueSchnapper),enquantoAlain


custose benefíciosde cada possibilidadealternativade ação,mas que,inversamente,tenderiam Darbelconstruiuo plano de sondageme elaborouo modelomatemáticodestinadoà análiseda
a seguir os modos de comportamentocaracterísticosdo seu grupo de origem.No entanto, e aí frequênciadasvisitasa museus(AAp,13).Otrabalho,envolvendograndeequipedepesquisadores
se chegaà segundaparte do raciocínio,apesar de não terem sido conscientee estrategicamente e auxiliares,recebeuo financiamentoparcialdo Serviçode Estudose Pesquisasdo Ministériodas
selecionados,mas sim socialmenteconfigurados,os cursos de ação adotados pelos agentes QuestõesCulturaisda França,·eresultouda aplicaçãode questionáriosem amostrasselecionadas
seriam, objetivamente,os mais adequados.As ações apresentariam um sentido estratégico, de museusna França,Espanha,Grécia,Itália,Holandae Polônia,em 1964e 1965.
uma adequaçãoem relaçãoàs condiçõesobjetivas,que ultrapassaria imensamenteo sentido O amor pela arte organiza-sea partir de um curto preâmbulo,breveintrodução,capítulo
conscientementeatribuído pelos sujeitosàs suas próprias ações.Primeiro, os agentestende- dedicado aos procedimentos da pesquisa, conclusão, cronologia das pesquisas efetuadas,
riam a selecionarobjetivosconsideradosrazoáveis,adequadosàs possibilidadesobjetivasde detalhados apêndices,breve bibliografiae em três grandes partes, a saber: "Condiçõesso-
realização;segundo,tenderiam a manipular os meios disponíveispara a ação,recursosmate- ciais da prática cultural", "Obras culturais e disposiçãoculta" e "Leis da difusão cultural".
riais e simbólicos,da forma estrategicamentemais pertinente para sujeitoslocalizadosna sua Bourdieu,quando o livro foi editado, era um intelectual em ascensão,com 36 anos, diretor
posiçãosocial;terceiro,agiriamda forma que mais contribuipara a manutençãoe legitimação de estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales, diretor do Centre de
da estrutura de dominaçãosocial,basicamente,reeditando e reforçandoconstantementeos Sociologiede l'Éducation et de la Culture, além dejá ter publicadosetelivros- quasetodos
processosde distinção e hierarquizaçãosocial. comcolaboradores(A.Darbel,J. P.Rivet,C. Seibel,A. Sayad,J. C. Passeron,L. Boltanski,J. C.
Essa aparentementeparadoxalracionalidadenão conscienteou intencionalda ação indi- Chamboredon,M. de Saint Martin): Sociologiede l'Algérie(1958);Travai!et travailleursen
vidual seria explicadapor Bourdieupelo fato de o habitus de cada grupo social ser fruto de Algérie (1963);Le déracinement, la crisede l'agriculturetraditionnelleen Algérie (1964);
um processohistóricode adequaçãodo grupo às possibilidadese necessidadespróprias à sua Les étudiants et leursétudes (1964);Les héritiers.Les étudiants et la culture(1964);Un art
condiçãoobjetivade existência.A ideia é que, pelo acúmulohistóricode experiênciasde êxito moyen, essaisur les usagessociaux de la photographie(1965)e Rapport pédagogiqueet
e de fracasso,os grupos sociaisiriam constituindoum conhecimentoprático relativoao que communication (1965)-, além de alguns capítulosde livros e mais de uma dúzia de artigos
é possívelou não de ser alcançadopelos seus membrosdentro da realidadesocialconcretana em conceituados periódicos acadêmicos (Études Rurales, Sociologiedu Travai!,Revue
qual eles agem e sobre as formas mais adequadasde fazê-lo.Na perspectivade Bourdieu,ao Françaisede Sociologie,Les TempsModernes).
longo do tempo, as melhores estratégiasacabariam por ser adotadas pelos grupos e seriam, Nas orelhas da ediçãobrasileira,JoséCarlosG.Durand escreveque a partir das pesquisas
então,incorporadaspelos agentescomoparte do seu habitus. realizadas através de questionárioscom milhares de visitantes de museus em seis países da
Europa,o livro"revelaque o modocomoas pessoasdescrevemejustificamseushábitosculturais
jamais pode ser aceitopelo seu valor nominal. Tomar por realidade as crençase os discursos
4. ALGÉR/E 60:STRUCTURES ÉCONOMIQUES ETSTRUCTURES TEMPORELLES das pessoas (mesmo as ricas e cultivadas),a respeito de arte e cultura, significaconverter
.......................................................................................................................
em princípio de explicaçãoo que está pedindo para ser explicado.E aí entra a sociologia".
Ver:Desencantamento do mundo (O) Bourdieuentendeque os museusabrigamtesourosartísticosque se encontram,ao mesmo
tempo - e paradoxalmente -, abertos a todos e interditados à maioria das pessoas.Aqueles
s.AMORFATI pertencentesa qualquerclassesociale com distintos graus de escolarizaçãopodem frequentar
museus,não é verdade?Sim e não;ou melhor,em termos:para se poder vivera plenitudedesse
Ver: Conatus amor, sem condicionamentosou limitações,é precisoque os amantes possuam determinadas
disposiçõesque foram sendo adquiridaslentamente,envolvendodedicação,perseverançae o
cumprimentode uma gamade obrigações.Nãoexistenem pecadonem perdão,tal amorsurgede
6. AMORPELA
ARTE{O):OSMUSEUS
DEARTENA EUROPA
E SEUPÚBLICO
maneira"natural",apósa assimilaçãodo princípiodo prazerculto,produtoartificialda arte e do
(L'amour de /'art: !es musées d'art européens et /eur pub!ic) artifício,quevem a ser "a verdadeocultado gostooculto".Os autoresse perguntam se a prática
obrigatóriapode conduzirao verdadeirodeleiteou se o prazer cultivadoé irremediavelmente
Afrânio Mendes Catani
marcadopelaimpurezade suas origens.Aolongode O amorpela arte mostra-secomoo cora-
ção obedeceà razão,pois são desvendadasas condiçõessociaisde acessoàs práticascultivadas,
BOURDIEU,P.;DARBEL,A. O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. Cola-
fazendover que a cultura não é um privilégionatural, mas bastaria que todos possuíssemos
boração de DorniniqueSchnapper.São Paulo:EDUSP;Zouk, 2003.
meiospara que pudessemdela tomar possepara que pertencessea todos.
Publicadooriginalmenteem 1966,revistoe ampliado,com nova ediçãoem 1969- que é a A frequênciados museusem todosos paísespesquisadosaumentade maneira considerável
base da traduçãobrasileira-, O amorpela arte:os museus de arte na Europae seupúblicoé à medida que se elevao nível de instrução, correspondendoquase que exclusivamentea um

AMORPELAARTE(O):OSMUSEUS DEARTENA EUROPA E SEUPÚBLl~O 29


28 ALGÉR/E
60:STRUCTURES
ÉCONOMIQUES
ETSTRUCTURES
TEMPORELJ.ES
(L'amour de /'art: Jes musées d'art européens et Ieur pub/1c)
f.

! modo de ser das classes cultas (AAp, 37). A "necessidade cultural" é produto da educação, das obras de arte - ou, para falar como Max Weber, gozam "do monopólio da manipulação
da ação da escola. Acho que talvez não seja por outra razão que a epígrafe da parte 3 do dos bens de cultura e dos signos institucionais da salvação cultural" (AAp, 169). Ou, em
livro, "Leis da difusão cultural", foi extraída do filósofo e matemático alemão Leibniz: palavras mais claras, o cronista Rubem Braga, visitando Jean Cocteau em Paris em 1950,
"a educação consegue tudo: faz dançar os ursos". A ação escolar, bastante desigual - em escreveu que o escritor em determinado dia estava com Picasso, e o pintor perguntou a um
razão de atuar sobre indivíduos previamente dotados, pela ação familiar, com distintos rapaz, restaurador de quadros, o que achava de certa pintura. "O rapaz confessou que não
níveis de competência artística-, envolve jovens já "iniciados" nesse domínio cultural. podia dizer nada porque não compreendia aquele quadro. E o espanhol: Você compreende
A escola, ao inculcar disposições duradouras à prática culta, auxiliando decisivamente chinês? O rapaz disse que não. Pois chinês se aprende; isso também" (BRAGA,2013, p. 38-39)
na transmissão do código das obras de cultura erudita, transforma as desigualdades
diante da cultura em desigualdades de sucesso. Fecha-se o círculo que faz com que Referências
capital cultural leve ao capital cultural (AAp, lll). Os indivíduos assimilam parte das BRAGA,R. Visita a Jean Cocteau.ln:___ . Retratos parisienses. Seleçãoe apresentaçãoAugusto
disposições cultas, produto de uma educação distribuída de forma desigual, tratando Massi. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.p. 37-40 (Escrito originalmente para o jornal Correio
"as aptidões herdadas como se fossem virtudes próprias da pessoa ['dons'], ao mesmo da Manhã, 19 mar. 1950).
tempo naturais e meritórias" (AAp, 169). CATANI,A. M. A cultura não é um privilégio natural. Apresentação.BOURDIEU,P.; DARBEL,A.
Os questionários aplicados correlacionam, com detalhe, uma série de variáveis, tais como O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. Colaboraçãode D. Schnapper.São
categoria socioprofissional, nível de escolaridade, profissão, renda, sexo, local de residência, Paulo:EDUSP;Zouk, 2003.p. 7-11.
faixa etária, museu visitado, dia e horário em que ocorreu a visita, tempo médio da visita,
correlação entre visita(s) a museu(s), cinemas e teatros, influência familiar e de amigos para
a(s) visita(s) segundo o nível cultural, juízos sobre os museus e as exposições, tipo de arte 1. ANÁLISEDE CORRESPONDÊNCIAS
MÚLTIPLAS
preferido, motivo(s) declarado(s) da visita, nome(s) de pintor(es) e de escola(s), etc. Denis Baranger
A pesquisa em tela possui caráter pioneiro, procurando evidenciar a dimensão eminente-
mente social dos meios de apropriação dos bens culturais existentes em museus - dimensão Ao falar de análise fatorial, Bourdieu refere-se, em geral, à Análise de Correspon-
essa que se constitui em privilégio apenas daqueles dotados da faculdade de se apropriarem dências Múltiplas (ACM), um método especialmente adaptado ao processamento de
das obras. O texto dos pesquisadores franceses foi concluído há cerca de quarenta e cinco dados extraídos de pesquisa por meio de questionário, concebido no âmbito da Análise
anos e, de lá para cá, o quadro sofreu alterações significativas. O turismo cultural e a visita a dos Dados (ADD). Para a Escola Francesa de Estatística, fundada por J.-P. Benzécri, seu
museus, por exemplo, experimentaram transformações de monta, não mais se beneficiando princípio fundamental é o seguinte: "O modelo deve seguir os dados, não o inverso [...]
apenas das categorias socioprofissionais munidas de diplomas, isto é, o público já tradicio- temos necessidade de um método rigoroso que seja capaz de extrair estruturas a partir dos
nal que os frequentava. Pode-se dizer o mesmo do estágio relativamente amador em que se dados" (BENZÉCRIet al., 1973, p. 6).
encontrava a "museologia" - hoje consideravelmente alterada -, ou ainda quando fala dos Ao contrário da análise fatorial psicométrica clássica, que lida com variáveis quantitati-
conservadores de museus, pertencentes aos·extratos superiores pouco afeitos a questões que vas, a ACM opera com modalidades de variáveis qualitativas e produz planos fatoriais que
envolviam gama relativamente ampla de papéis (homem de ciência, comerciante, diretor oferecem uma representação visual das relações que ligam um conjunto de propriedades
administrativo, educador): hoje equipes com quadros diversificados participam desse circuito, (fala-se, também, de Geometric Data Analysis).
encarregando-se de projetos referentes a ações educativas, à busca de patrocínios, à utilização Ao servir-se de um quadro disjuntivo completo (ou de um quadro de Burt), a ACM
de leis de incentivos fiscais, à edição de catálogos, à maior divulgação em geral. permite estabelecer correspondências entre o espaço multidimensional das propriedades
Em 1969, cético com relação aos limites que a ação do conservador impunha-se a qual- (das modalidades das variáveis) e o espaço dos indivíduos (os entrevistados). Foi no artigo
quer tipo de incitação direta à prática cultural, Bourdieu escrevia: "quem acredita na eficácia "L'Anatomie du gout" (1976, com M. de Saint Martin) que Bourdieu recorreu, pela primeira
milagrosa de uma política de incitação para visitar museus e, em particular, de uma ação vez, a uma análise fatorial concebida no âmbito da ADD; mas foi o sucesso de La distinction
publicitária pela imprensa, rádio ou televisão - sem se dar conta de que ela limitar-se-ia a (1979) - obra na qual esse longo artigo foi retomado integralmente - que garantiu destaque
acrescentar, de forma redundante, informações já fornecidas em abundância pelos guias, ao método dentro da sociologia.
postos de turismo ou cartazes afixados à entrada das cidades turísticas - assemelha-se às Em La distinction, trata-se de estabelecer uma correspondência, uma relação de homolo-
pessoas que imaginam que, para serem mais bem compreendidas por um estrangeiro, basta gia, entre a estrutura das práticas desvendadas pela ACMe a estrutura das classes e das frações
gritar mais alto" (AAp, 149). sociais, definidas pelas categorias socioprofissionais (CSP).Além das variáveis ativas (aquelas
Em suma, pela leitura de vários textos de Bourdieu é possível compreender os mecanis- cujas modalidades são levadas em conta pela geração do espaço multidimensional), e das ilus-
mos pelos quais àpenas parte dos indivíduos consegue obter as chaves para a plena fruição trativas (projetadas no plano), Bourdieu atribuiu um papel diferente à CSP,cuja intervenção se

3O AMORPELAARTE(O):OSMUSEUS DEARTENAEUROPA E SEUPÚBLICO ANÁLISE DE CORRESPOND~NCIAS MÚLTIPLAS 31


(L'amour de /'art: les musées d'art et leur public)
·1
!

fezpor intermédiodos indivíduos,projetandosucessivamenteos indivíduosde cada CSPpara um procedimento análogo, quando os professoresuniversitários eram lançados no espaço
verificarem qual regiãodo plano fatorialelesviriam a se posicionar(LD,296 e 392). das faculdades de letras, estruturado com base em indicadores de posição. Ao observar
A ACMpermite visualizar a determinação de uma estrutura (o espaço das práticas) por essesindivíduos, escreviaBourdieu,"saltará aos olhos de todos os observadoreshabituados
outra estrutura (o espaçodas posições),além de substituir a análise positivista das variáveis, ao detalhe dos acontecimentosuniversitários de 1968"que a estrutura das posiçõesestá em
centrada na influênciade certas variáveisartificialmenteisoladas a partir de outras. Em La correspondênciacom a distribüição das tomadas de posição.O que se vê bem nesse exemplo
distinction, a "verificaçãoempírica"de Bourdieuprocededos efeitos(a estrutura das práticas é que a variável - a modalidade correspondentea uma propriedade denotada por um nome
produzida a partir de uma ACMrealizada em um conjunto de propriedades, referentesaos comum é substituída pelo nome próprio.
gostose práticas culturais, em matéria de pintura, música, cinema, etc.)para remontar a seu Trata-se,como sempre, de mostrar a relaçãode homologiasegundo a qual as tomadas de
princípio (a estrutura das posiçõesidentificadaspelas CSP).Desse modo, a ACMpermitiu posição dependem das posições ocupadas pelos agentes na estrutura do campo. Mas, após
a Bourdieu transformar suas intuições relativas ao espaço social em uma representação La distinction, os dados da ACMreferem-sea um só dos termos dessa relação,enquanto as
geometricamenteconstruída. tomadas de posição aparecem apenas no comentário de Bourdieubaseado em outras fontes
Posteriormente,a ACMfuncionarácomoa ferramentaprivilegiadagraças à qual Bourdieu que não intervêm na ACM,nem são processadas quantitativamente. No próprio cerne do.
poderá mostrar a estrutura dos diversos campos que compõem o principal espaço social. esquema explicativode Bourdieu.encontra-sea intervençãoinsubstituíveldo qualitativo.
A ACMparece ser realmente a técnica perfeita para sua teoria: "Trata-se de uma técnica Posteriormente à La distinction, todas as ACMde Bourdieu mostram essa mesma es-
relacionalde análise dos dados, cuja filosofiacorresponde exatamente ao que é, a meu ver, trutura explicativa.A ACMé engendrada a partir de variáveis de base (processadascomo
a realidade do mundo social. É uma técnica que 'pensa' em termos de relações,como tenho modalidades ativas), o que permite tornar visível a estrutura do campo e as posições dos
tentado fazê-lo justamente com a noção de campo" (R, 72). Após "L'Anatomiedu goftt", indivíduos.Depois o plano fatorial é o elementofundamental para a interpretação de outros
Bourdieuvoltará a utilizá-Ia em "Le patronat" (1978)e, em seguida, continuará a aplicá-Ia materiais que poderão ser de natureza quantitativa ou qualitativa. Assim, a ACMterá sido
em numerosos campos:as Faculdadesde Letras (HA),as Grandes Écoles (NE),as editoras para Bourdieu tanto uma ajuda para pensar quanto um meio de exposiçãodos resultados
(1999),os construtores de moradias individuais (SSE). de suas análises.
Em seu livro Les structures sociales de l'économie Bourdieu reafirma as virtudes da
ACMnestestermos:"Pode-seesperarda análise de correspondências- a qual, utilizada deste Referências
modo, nada tem do método puramente descritivo que pretende ver nela aqueles que a J.-P.et al.I. L'Analysedes données;II. L'Analysedes correspondances.Paris:Dunod, 1973.
BENZÉCRI,
opõem à análise de regressão - que seja capaz de desvendar a estrutura das posiçõesou, o BOURDIEUP. Une révolution conservatrice dans l' édition. ARSS, v. 126-127,p. 3-28, 1999.
que vem dar no mesmo,a estrutura da distribuição dos poderes e dos interessesespecíficos BOURDIEUP.;SAINTMARTIN,M. I:Anatomiedu gout. ARSS, v. 2, n. 5, p. 1-81,1976.
que determina e explica as estratégias dos agentes" (SSE,128-129).À "simples descrição", BOURDIEUP.;SAINTMARTIN,M. Le patronat. ARSS, v. 20-21,p. 3-82, 1978.
Bourdieuopõeo "verdadeiromodeloexplicativo",superandoa oposiçãoentreaprofundamento
e confirmação:"Aanálise de correspondências- mediante a distribuição segundo os dois
primeiros fatores - manifesta a distribuição das forças em confronto e, através do vínculo a.ANTROPOLOGIA
REFLEXIVA
de implicaçãosociológica(e não lógica)que une as tomadas de posição às posições,revelao
Paula Montero
princípio das estratégiasde luta que visam conservá-Iaou transformá-la" (SSE,140).
É na evocaçãodesse "vínculode implicaçãosociológica"que se baseia a explicação:à se- Se há uma palavra-chave que resume perfeitamente a trajetória intelectual de Pierre
melhança do que ocorre em La distinction, trata-se ainda de mostrar a homologiaentre dois Bourdieu, esta é, certamente, a reflexividade. Embora não constituísse ainda um conceito
espaços,o das posiçõese o das tomadas de posição.Mas, após a utilização do procedimento, em seus estudos sobre a Argélia da década de 1960,já estava certamente presente em seu
é o inverso:todas as modalidades ativas selecionadaspara a-geração da ACMe dos planos modo de observação etnográfica. Em Esboço de auto-análise (2005), Bourdieu volta
fatoriais correspondem a indicadores do capital econômico, cultural e social, da filiação sobre si mesmo o esforço da reflexão sociológiêa e explicita o impacto de suas origens no
institucional, etc., isto é, a indicadores das posições. As tomadas de posição, por sua vez, mundo rural francês, de sua experiência opressiva como aluno interno no liceu e, poste-
deixam de ser visíveiscomotais no diagrama; ou, mais exatamente,é necessáriodeduzir que riormente, de combatente na guerra contra a libertação da Argélia, na conformação de
elas se manifestam nos indivíduos identificadoscada qual por seu nome próprio. seu estilo rebelde e insubmisso de observar o mundo e de conceber o trabalho intelectual
Nada de equivalenteao papel desempenhadopela CSPem La distinction que permitia de uma forma geral.
fixar soli~amente o que significavamos indivíduos segundo essa variável. Daí em diante, Em um sentido mais amplo pode-se dizer que a reflexividadeconsiste em uma atitude
tudo o que podemos saber sobre as tomadas de posição é o que Bourdieu nos elucida em intelectual ou cognitivaautorreferidana qual o observadore suas ações se tornam parte do
seus comentáriosacercado plano fatorial. Já em Homo academicus (1984),era possívelver modo de conhecero mundo. Na Antropologiaessanoção ganhou duas significaçõesclistintas.

32 ANALISE DE CORRESPOND~NCIAS MÚLTIPLAS


ANTROPOLOGIA REFLEXIVA 33
1
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Uma diz respeitoà consciênciado pesquisador de que sua formação,seus modos de pensar e a partir dos quais o mundo social é visto e construído. No caso da sociologia,a reflexivi-
agir, sua inserção social e suas relaçõesafetam a situação que está sendo observada.A outra dade diz respeito à necessidade de uma crítica epistemológicaao pensamento realista. A
se refere à percepçãode que toda prática cultural envolve,por parte do agente, consciência maior parte dos pesquisadores em ciências sociais toma por objeto problemas relativos a
e comentário sobre ela mesma. Pierre Bourdieutransformou essas duas dimensões em pro- populações delimitadas de maneira mais ou menos arbitrária: velhos, jovens, imigran-
blemas teórico-metodológicoscentrais da sua reflexão sobre as condições de objetividade tes, etc. Para romper com es·sailusão realista é preciso objetivar o trabalho histórico de
nas ciênciashumanas. construção dessas unidades sociais relativamente homogêneas que sé tornam de maneira
Esquissed'une théorie de la pratique, publicadoem 1972,e o compêndiode ensino em impensada objetos pré-construídos da ciência. Por meio da reflexibilidade o sociólogo
pesquisa,Ofíciodo sociólogo(1973),podemser consideradasas obrasmais importantespara o pode evitar que o mundo social opere através do pesquisador oferecendo-lhe, como se já
entendimentode sua críticaepistemológicaàs teorias e práticascientíficascorrentesno campo estivessemprontos, os problemas científicosque cabe a ele construir. Com efeito,as ciências
das ciênciassociais.No trabalho de 1972o autor constróisua teoria das práticassociaisem um sociais estão permanentemente expostas a acolher os problemas do mundo social como se
diálogocrítico com os limites heurísticosdo estruturalismo e da hermenêutica.No primeiro fossem objetos de ciência. Muitos dos objetos reconhecidos pelas disciplinas acadêmicas
caso, observaque o modo de conhecimentoobjetivistaimplícitono estruturalismo apreende nada mais são, na verdade, do que problemas sociais contrabandeados para a sociologia
as práticas de forma externalistasem perguntar-se sobre os princípiosque a geram. Ao fazer (pobreza, delinquência, juventude, educação, lazer, esportes, etc.). Bourdieu nos lembra,
uma transposição do modelo linguístico desacompanhada de uma reflexãoepistemológica reiteradamente, que o mundo social constrói sua representação de si servindo-se também
das condiçõese dos limites dessatransposição,a antropologiaestrutural identificoucultura e da sociologia e dos sociólogos.Pode-se dizer o mesmo do mundo cultural e dos antropó-
língua e, ao fazê-lo,privilegioua estrutura dos signosem detrimento das funçõespolíticas,de logos. A objetivação de sua posição e do seu próprio pensamento permite ao sociólogo/
comunicaçãoe de conhecimentopresentesem todaprática. Jáo modo de conhecimentointera- antropólogo romper com essa persuasão clandestina da linguagem corrente do Estado, da
cionistapecaria,no seu entendimento,pela reduçãodas estruturas objetivasque determinam burocracia, dos meios de comunicação,do nativo, etc. Somentea partir da disposiçãopara
toda interaçãosocialà subjetividadedas relaçõesde um indivíduocom o outro. a reflexibilidadeé possível evitar que o pesquisador se torne instrumento daquilo mesmo
Em Ofíciodo sociólogo,Bourdieuafirma a necessidadede submetertoda práticacientífica que ele pretende pensar. A socioanálise proposta por Bourdieu exigeum retorno reflexivo
à crítica da razão epistemológica.Isto significaromper, por um lado, com o empirismo que no qual a desconstrução crítica do objeto se aplica também ao pesquisador.Foi esse esforço
faz do ato de conhecimentocientíficouma simples constatação do mundo real e, por outro, de objetivaçãoque o autor empreendeu ao examinar o mundo acadêmicofrancês no Homo
com o convencionalismode uma sociologiaespontânea que apenas sistematiza as opiniões academicus. Em contraponto ao campo intelectual francês, o que mais falta na tradição
correntesno universosocialem uma metalinguagem.Eleformulaentão os doisposicionamen- sociológica norte-americana é, no entender de Bourdieu, uma análise verdadeiramente
tos básicosque definemas condiçõesde possibilidadede todo discurso científiconas ciências crítica de suas próprias instituições universitárias.
sociais: contra o empirismo é preciso considerar que todo fato científicoé construído pela No caso da antropologia, a reflexibilidade diz respeito à necessidade do pesquisador
crítica incessantedas evidências;contra a filosofiahumanista da ação é preciso ter em conta de, ao mesmo tempo em que observa o mundo social, refletir sobre sua própria posição de
que a vida socialnão deveser explicadapela concepçãoque dela têm os sujeitos.Aopromover observador erudito. É claro que, para falarmos do mundo, somos de certo modo obrigados
as relaçõesestabelecidasem campo como meioprivilegiadode conhecimento,a "observação a abstrair o fato de quetambém estamos nele. No entanto, essa posição cognitiva, quando
participante" corre o risco de deixar-se seduzir pelas demandas do objeto. não objetiva_da,cria um viés intelectualista, próprio à abordagem estruturalista. Com
Os fundamentos da vigilânciaepistemológicae suas relaçõescom a críticateóricae meto- efeito, observa Bourdieu, "o conhecimento teórico deve inúmeras de suas propriedades
dológicana produçãodo conhecimentocientíficoforam bem delineadosnessas duas obras do mais essenciais ao fato de que as condições de sua produção não são as da prática" (R, 50).
início dos anos 1970.No entanto, foi o seu trabalho em colaboraçãocom Lok J. D. Wacquant No entanto, a reflexibilidade exige objetivar a pretensão heurística dessa posição de um
publicado em 1992- Réponses - que tornou mais explícitoo que seria para Bourdieuuma observador imparcial e externo, onipresente e ausente, quase divino para não transformar
ciênciasocialreflexiva.Editadona forma de um diálogocom o autor,o livroreúne os principais a antropologia num simples instrumento de luta política ao invés de poderoso instrumento
posicionamentosde Pierre Bourdieucom relaçãoao debateda ciênciasocialanglo-americana de conhecimento dessas lutas. Para evitar o int'electualismoé preciso objetivar os esquemas
da década de 1980.Os temas e conceitosmais importantes foram agrupados por Wacquant de percepção e cogniçãodo próprio observador.Isto não significaum retorno complacente
sob duas grandes rubricas: "as finalidades da sociologiareflexiva",que reúne as questões de e intimista à pessoa do pesquisador, essa espécie de observaçãodo observador inaugurada
seus alunos em seminário de pesquisana Universidadede Chicagoem 1986-1987,e "a prática pela pós-modernidade antropológicaque fala mais do autor do que de seu objeto de estudo.
da antropologiareflexiva",que faz o mesmo a partir de um seminário na École des Hautes Objetivar os esquemas do senso prático não tem por objetivo demonstrar que as ciências
Étude:s en Sciences Sociales, Paris, no mesmo ano. sociais constituem apenas mais um ponto de vista sobre o mundo, nem mais nem menos
Percorrendo em perspectiva esse conjunto de textos, pode-se perceber que a reflexivi- científicodo que qualquer outro. A reflexividadesignificapara Bourdieu a condiçãomesma
dade é tomada como uma forma de auto-objetivação e de objetivaçãodos pontos de vista de uma prática científica rigorosa.

ANTROPOLOGIA REFLEXIVA 35
34 ANTROPOLOGIA REFLEXIVA
9. ARBITRÁRIO CULTURAL de mistificação de um arbitrário cultural como cultura universal que o autor dá o nome de
·······················································································································
Maria Alice Nogueira "violênciasimbólica".
Para Bourdieu, o mesmo fenômeno ocorreria no caso da instituição escolar.Os saberes e
"Arbitrário cultural" é o termo utilizado por Bourdieu para designar o fenômeno social todos os conteúdos curriculares transmitidos e veiculadospelos sistemas de ensino, e consi-
que consiste em erigir a cultura particular de uma determinada classe social (a "classe do- derados como a cultura legítima, não constituiriam senão o arbitrário cultural dominante,
minante") em cultura universal. A arbitrariedade do processo residiria, segundo o sociólogo isto é, a cultura e os saberes das classes dominantes, sem nenhuma relação de superioridade
francês, na ocultação da origem de classe dessa variante cultural, isto é, no apagamento do intrínseca com as outras variantes culturais. Observa,no entanto, que a autoridade pedagó-
fato de que ela não possui, em si mesma, nenhum valor intrínseco, retirando toda a sua su- gica, ou seja, a legitimidade da instituição escolar e da ação pedagógica que nela se exercesó
perioridade do fato de estar em posição dominante nas relações de forças entre os diferentes pode ser garantida na medida em que o caráter arbitrário e socialmente imposto da cultura
grupos sociais. Já em 1970,em La reproduction, obra escrita com Jean-ClaudePasseron e escolar é ocultado.
uma das mais importantes da primeira etapa de sua trajetória intelectual, Bourdieu escrevia: Portanto, apesar de arbitrária e socialmentevinculada a uma dada classe,a cultura escolar
"A seleção de significados que define objetivamente a cultura de um grupo ou de uma precisaria, para ser legitimada, se apresentar como uma cultura neutra. A autoridade alcan-
classe como sistema simbólico é arbitrária, na medida em que a estrutura e as funções çada por uma ação pedagógica,ou seja, a legitimidade conferida a essa ação e aos conteúdos
dessa cultura não podem ser deduzidas de nenhum princípio universal, físico, bioló- que ela distribui seriam proporcionais à sua capacidade de se fazer ver como não arbitrária
gico ou espiritual, não estando unidas - por nenhuma espécie de relação interna - à e não vinculada a nenhuma classe social. Assim, na medida em que impõe e inculca em seu
natureza das coisas ou à natureza humana" (LR,22). público, de modo dissimulado, um arbitrário cultural como cultura universal, a instituição
Portanto,desdeo iníciode sua carreira,Bourdieuformulavaa tesede queum poderosotraba- escolar pratica - à sua maneira e sobre aqueles desprovidos,pelo nascimento, de "herança
lho social- que se dá em escalasocietária- de "legitimação"da cultura das classesdominantes cultural" - um ato de "violênciasimbólica".
resultouna produçãode uma cultura "legítima"- posto que legitimadapelos agentessociais-, Segundo Bourdieu, no que concerne aos grupos sociais dominados, o maior efeito dessa
cuja origem ficou esquecidanum processodito de "amnésia da gênese"."Em uma formação "violência simbólica" exercida pela escola não é a perda da cultura familiar de origem e a
social determinada, a cultura legítima, i.e., a cultura dotada da legitimidade dominante, "aculturação" em uma nova cultura exógena,mas o reconhecimento,por parte dos membros
não é outra coisa senão o arbitrário cultural dominante, na medida em que ele é ignorado desses grupos, da superioridade e legitimidade da cultura dominante. No início dos anos
em sua verdade objetiva de arbitrário cultural e de arbitrário cultural dominante" (LR,38). 1960, em Les héritiers, Bourdieu e Passeron escreviam: "Para os filhos dos camponeses,
· Desenvolvendomelhor o argumento,diríamos que Bourdieudefendeque nenhuma cultura dos operários ou dos pequenos comerciantes, a aquisição da cultura escolar é aculturação"
pode ser objetivamente definida como superior a outra cultura. Os conhecimentos, signifi- (LH,37). Esse reconhecimento se traduziria numa desvalorizaçãodo saber e do saber fazer
cados e valores que orientariam cada classe ou grupo social em suas disposiçõese condutas tradicionais dos meios populares, em favordo saber e do saber fazer socialmentelegitimados.
seriam, por definição,arbitrários, ou seja, não estariam fundamentados em nenhuma razão A esse respeito, na obra La distinction, com base em resultados de pesquisa sobre as
objetiva,universal. Porém, apesar de arbitrários, esses significadose valores- isto é, a cultura práticas culturais dos franceses, que demonstravam, entre outras coisas, a tendência dos
de cada grupo - seriam concebidose vividos pelos indivíduos como os únicos possíveisou, entrevistados menos instruídos em disfarçar sua ignorância e em exibir comportamentos e
pelo menos, como os únicos válidos. opiniõesquelhes pareciam as mais próximasda legitimidadecultural, Bourdieu(1979)conclui
Na perspectiva de Bourdieu,a conversãode um arbitrário cultural em cultura legítima só que "Os membros das diferentes classes sociais se distinguem menos pelo grau em que
pode ser compreendida quando se considera a relação entre os vários arbitrários em disputa reconhecem a cultura do que pelo grau em que eles a conhecem: as declarações de
em uma determinada sociedadee as relaçõesde força entre os grupos ou classessociais exis- indiferença são excepcionais e mais ainda as rejeições hostis - ao menos na situação de
tentes nessa mesma sociedade.No caso das sociedadesde classes,a capacidadede imposição, imposição de legitimidade que a relação de pesquisa cultural como um quase exame
de inculcação e de legitimação de um arbitrário cultural corresponderia à força da classe provoca. Um dos mais seguros testemunhos do reconhecimento da legitimidade reside
social que o sustenta. Assim, de um modo geral, os significados (conhecimentos, valores, na propensão dos mais desmunidos a dissimular sua ignorância ou sua indiferença
etc.) arbitrários, capazes de se impor como cultura legítima, seriam aqueles sustentados e a homenagear a legitimidade cultural da qual o entrevistador é, aos seus olhos, o
pelas classes dominantes. depositário, escolhendo em seu patrimônio aquilo que julgam o mais conforme com
Além disso, é fundamental, no pensamento bourdieusiano, a ideia de que a eficáciaou a definição de legitimidade" (LD,365).
a força social desse processo de imposição de um arbitrário cultural repousa sobre o fato de Várias são as críticas dirigidas hoje à teoria da legitimidade cultural. Uma das mais im-
que ele se dá de modo dissimulado, o que - de resto - aconteceria com todas as formas de portantes emana de dois antigos colaboradoresde Bourdieu, Claude Grignon e Jean-Claude
hierarquia social que retiram sua legitimidade do fato de que a arbitrariedade, que está na Passeron (1989),que reconhecemnessa teoria uma "força"e uma "limitação".A primeira viria
origem de sua constituição,passa despercebidaaos olhos dos atores sociais.É a esse processo do fato de que ela representa um justo golpe no relativismo cultural, por se negar a conceber

36 ARBITRÁRIO CULTURAL
ARBITRÁRIO CULTURAL 37
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argelina - que Bourdieu continuará em artigos posteriores (compiladosem EA). O livro foi
a cultura dos diferentes grupos sociais fora do quadro das relações de dominação existentes
muito mal recebido entre os franceses de Argel, majoritariamente opostos à independência
ent~e ~l~s.Por outro lado, segundo eles, ela não conseguiria "descrever positivamente 0
arbrtrano das culturas dominadas, isto é, descrever em todas as suas dimensões simbólicas e entre os quais predominavam posturas de extrema direita.
Após seu serviço militar, Bourdieu é contratado como assistente na Faculdade de Letras
o que existe e ainda funciona, mesmo quando se trata da cultura dos dominados". De tal
da Universidade de Argel, onde tem como aluno Abdelmalek Sayad. Entra em contato com
modo que "~spráticas e os traços culturais das classespopulares se veem privados do sentido
a Associationpour la RechercheDémographique,Économiqueet Sociale(ARDES),formada
que eles retiram de seu pertencimento a um sistema simbólico" (GRIGNON; PASSER0N, 1989,
por estatísticos franceses e argelinos. Esta associação recebe o encargo do exército francês
P· 36) na medida e~ ~ue .ºsociólogosó os enxerga pelo lado negativo da falta, da infração,
de investigar as populações deslocadas pela guerra (dois milhões de pessoas haviam sido
do erro, enfim da distancia envergonhada dos padrões legítimos.
deslocadas pelo exército francês para campos de reagrupamento e seus povoados foram
destruídos).Bourdieu é chamado para dirigir a pesquisa e realizar a interpretação sociológica
Referência
dos dados estatísticos. Organiza uma grande pesquisa, na qual combina todas as técnicas
GRIGNON,C.; PASSERON,J.C. Le savant et le populaire. Paris: Gallimard/Le Seuil, 1989.
de investigação - enquetes, análises de registros administrativos, observação participante,
entrevistas... -, centrada no alojamento e no emprego,sobre a desestruturação e a miséria da
io.ARGÉLIA sociedadeargelina por causa da colonizaçãoe da guerra e sobre a passagem de uma sociedade
pré-capitalista a uma sociedade capitalista.
Enrique Martín Criado Em 1960 Bourdieu, avisado de que se encontra na lista vermelha das associações de
extrema direita (o que significa, naquela época de intensa agitação repleta de atentados, que
A Argélia desempenha um papel essencial na obra de Bourdieu. É nesse país onde, após
sua vida corre perigo),volta a Paris, como assistente de Raymond Aron na Sorbonne.Entre-
haver ~studado filosofia,começa a se dedicar à sociologia.Na Argélia realiza sua primeira
tanto, continua analisando os materiais da pesquisa, a partir dos quais escreverádois livros:
pesqmsa e s~bre a Argéli~escreve seus primeiros textos. Uma região desse país, a Cabília,
Travail et travaílleur~en Algéríe (1963)e Le déracinement (1964).Ambos os trabalhos
lhe p~op~r:10nao ~atenal ~ndamental a partir do qual propõe uma de suas principais
oferecemuma detalhada descriçãoda sociedadeargelina no momento da independência.Seu
contnbmçoes, a teona da pratica. Na Argélia começa seu compromisso político público, de-
fio condutor é a análise da passagem de uma sociedadetradicional a uma sociedademoderna
fend~ndo~ ca~sa da independência diante da França. Este compromissocom o povo argelino
nas dramáticas condições da colonizaçãoe da guerra. Travailet travaílleursen Algéríe se
contmuara ate o final de sua vida, denunciando a cumplicidade do governo francês com 0
centra especialmentenos trabalhadoresurbanos - subproletários,operários,artesãos - dentro
go~re:nomilitar argelino na guerra que se desencadeia depois da anulação, em 1992, das
de uma análise geral da estrutura social argelina. Le déracinement, por sua vez, analisa a
elerçoesganhas pela Frente Islâmica de Salvação(FIS),fundando com outros intelectuais em
população camponesa a partir da pesquisa realizada nos campos de reagrupamento. Além
1994,o ComitêInternacional de Apoio aos Intelectuais Argelinos (CISIA),ou denunciando 0
de realizar uma documentada denúncia do colonialismofrancês, Bourdieu, em tais obras, já
fe~ha~ento das fro~teiras da França, impedindo o exílio de dezenas de milhares de pessoas se revela como um profundo sociólogo.Analisa nesses textos a estrutura social argelina, os
cu3avida corre pengo no cruzamento de massacres entre islamitas e militares argelinos
comportamentos trabalhistas, os arranjos em função das condições de existência, a relação
(alguns desses textos encontram-se em INT).
entre aspiraçõese condiçõesobjetivas,a relaçãoentre tipos de disposiçõese habitat,o "contágio
Dep~isde estudar_filosofiaem Paris e trabalhar durante um breveperíodo comoprofessor
das necessidades"nos comportamentos de consumo a partir dos modelos urbanos de classes
em um hceu de Moulms (centro da França), Bourdieu é recrutado. Destinado inicialmente a
médias, as consequências do trabalho assalariado nas relações familiares, na concepção do
Versalhes,é enviado no início de 1956para a Argélia, em plena guerra de independência da
tempo ou na transformação das sociedades rurais, a introdução de medidas homogêneas -
França (1954-196~)-Depoisde alguns meses na região de Chélif,é transferido para o Governo
de tempo, de produtos ... - e as resistências e mudanças que provoca, a transformação dos
Geralde Argel.Ali entra em contatocom vários pesquisadoresque, como ele,são muito críticos
rituais de sociabilidade cotidiana, a mudança na concepçãode enfermidade. O fio condutor
em relação à colon~za~ãofrancesa - como André Nouschi, que pesquisa a desestruturação do
é a contraposição entre a racionalidade pré-,capitalistae a capitalista, a passagem de uma
mu~do r_uralargel~~ a ~ustada colonizaçãoe_de suas leis.Nessaépoca, Bourdieucomeçaa ler
sociedade tradicional a uma sociedade moderna.
Sociologia- uma d1sc1phnamenosprezadana EcoleNormaleSupérieureondehaviaestudado-,
Nesses livros ele já põe em prática o que será sua teoria do habítus: as condições de
ao ~es~o tempo em que escreveseu primeiro livro, Sociologíede l".Algéríe (1958).Isola-se
existência produzem um determinado tipo de disposiçõesque tendem a reproduzir as con°
na brbh~te:a ,do Gove~~oGe~al,onde lê a literatura etnológica colonial sobre a Argélia, que <liçõesdas quais são produto. Nelasjá encontramos, igualmente, a relação entre projeção ao
se ~onstrtmra na matena-pnma de seu livro. Nele examina, também, os autores que então
futuro e condições de existência - a probabilidade de realizar projetos sensatos de futuro
esta con~ecendo:We~er,Marx, mas, sobretudo, Durkheim, Lévi-Strausse Margaret Mead,
depende das proteções que a situação presente ofereça- e a transferibilidade dos esquemas
a quem,le com entusiasmo e de quem toma os principais esquemas analíticos para O livro
do habítus - os mesmos esquemas são aplicados a domínios muito diferentes da prática.
(MARTINCRIADO, 2008). Além do mais, esse trabalho constitui uma crítica à colonização
ARGÉLIA 39
38 ARGÉLIA
À diferença dos textos posteriores em que teorizará o habitus - onde insiste no ajuste do Esses artigos, desse modo, proporcionam casos exemplares de uma sociedade onde a
habitus à situação -, aqui tudo é questão de desajuste. Caniponeses e subproletários se integração social se produziria a partir do hab.itus e onde o habitus estariam perfeitamente
acham em perpétua tensão entre uns esquemas adquiridos em uma sociedade tradicional e integrados e aplicariam seus esquemasbásicosaos diferentesâmbitos da prática. Cabíliaseria
a nova situação de extensão das relaçõescapitalistas. Este desajuste tem duas consequências. um caso exemplar porque seria uma sociedade tradicional.
Em primeiro lugar,a desestruturaçãoda sociedadetradicionallevaos indivíduosà consciência Assim, na Cabília as crianças seriam socializadas por meio da prática e da mimese,
do desajuste entre seus esquemas e a realidade e, a partir dela, ao retorno reflexivosobre tais por ser uma sociedade desprovida de escrita e de escolas: daí que nela se possa observar
esquemas. Passa-se de um ethos implícito a uma ética explícita. A segunda consequência é muito melhor a aquisição prática, corporal, das disposições que conformam o habitus. Na
o constante funcionamento, nos mesmos sujeitos, de duas lógicas distintas: a tradicional em Cabília, sem aparato jurídico dotado do monopólio da violência física, a ordem jurídica
que foram socializados e a nova em que estão aprendendo. A maioria dos argelinos utilizaria se basearia, sobretudo, nos princípios implícitos do habitus. Ela seria uma sociedade
constantemente ambas as lógicas segundo a situação ou realizaria sínteses mais ou menos agrícola pré-capitalista sem economia de mercado que produziria, por meios tradicionais,
instáveis:viveria uma experiência de desdobramento. para o autoconsumo e que excluiria o desenvolvimento das forças produtivas e a concen-
Todavia,os textos mais conhecidosde Bourdieu sobre a Argéliasão aquelesque dedica a tração de capitais: daí que se constitua em um exemplo privilegiado de uma sociedade
uma regiãobebere,a Cabília.Em suas pesquisasno país, Bourdieutambém haviase dedicadoa onde as estratégias de acumulação se baseiam no capital simbólico - na honra, nesse
compilarinformaçãoetnológicasobreesta região,perguntando a seus informantessobretemas caso. Sociedade simples e perfeitamente integrada, nela todos os domínios da prática se
tão variados como os rituais, a honra, os intercâmbios de dons, os calendários agrícolasou a organizariam a partir do mesmo conjunto reduzido de esquemas que conformariam uma
genealogia.Na sua volta à França trabalha sobre esses materiais e escreve,ao longo da década doxa que não necessitaria passar pela consciência ou reflexão ao ser compartilhada por
de 1960,três artigos:sobre o sentido da honra, a casa cabília e as estratégiasde parentescona todos e ao se achar perfeitamente ajustada à situação nessa sociedade estável e homogênea.
Cabília.Os três trabalhos se integram em Esquisse d'une théorie de la pratique, précédé de Como sociedade simples, na Cabília se observariam melhor as lógicas puras do habitus
Traisétudes d'ethnologie kabyle {1972)- ondeBourdieurealizaa primeiraexposiçãosistemática e do capital simbólico.
de sua teoria do habitus - e em diferentescapítulosde Le sens pratique. De fato,se tais artigos Este é o aspecto m_aisdiscutível desses estudos cabílios:a sociedadecabília havia deixado
têm tanta relevânciaé porqueBourdieuos utilizacomoexemplosmodelode sua teoriada prática. de ser uma sociedade tradicional muito tempo antes de que Bourdieu a conhecesse. Já no
Com efeito, os artigos podem ser lidos como etapas da viagem de Bourdieu desde o século XIXteria como principal atividade o comércio;desde as invasões islâmicas se regia
estruturalismo de Lévi-Strauss- representado, sobretudo, por "Acasa cabília" e, em menor por codificaçõesjurídicas - complicadas com a colonização francesa - e desde os fins do
grau, por "O sentido da honra" - até o estruturalismo genético, que já se pode ver em "O século XIXera a zona mais escolarizada da Argélia (MAHÉ,2001).Longe de ser uma socie-
sentido da honra", mas, sobretudo, em "O parentesco como representação e como vonta- dade tradicional, era a região mais modernizada da Argélia, onde as relações salariais e a
de". Aqui não só rejeita a análise do parentesco de Lévi-Strauss, como também introduz economia monetária mais se haviam desenvolvido.Bourdieu não ignoravatudo isso: de fato,
plenamente o conceito de estratégia como oposto ao de regra, analisando as práticas ma- o assinalavaem publicaçõescomo Travail et travailleurs en Algérie. Talveztenha construído
trimoniais não como atualizações de um sistema de regras subjacente, mas como práticas uma imagem da Cabíliatradicional porque era a que mais convinha para defender sua teoria
que jogam com as regras na persecução de determinados interesses - contra as práticas e da prática, para oferecerum exemplomodelo do habitus (MARTÍNCRIADO, 2013).
os interessas de outros agentes - que hão de ser entendidos no conjunto das estratégias de
reprodução dos grupos sociais. Referências
De fato, Bourdieu - como ele mesmo reconheceu em numerosas ocasiões - havia estado BOURDIEU,P. The Sentiment ofHonour in Kabyle Society.ln: PERlSTIANY,J.G. (Ed.). Honour
muito influenciado por Lévi-Strauss e seu método estruturalista. Um sinal evidente disso and Shame. The Values of Mediterranean Society. Londres: Weidenfeld and Nicholson, 1965.
é o artigo sobre a casa cabília: aqui nos apresenta o sistema de oposições fundamental - p. 191-24.
masculino/feminino, etc. -, suas correspondênciasnos diferentes âmbitos, assim como suas BOURDIEU,P. La maison kabyle ou le monde renversé. ln: POÜlLLON,J.;MARANDA,P. (Eds.).
transformações - a casa como espaço onde se invertem os termos. Por sua vez, o artigo Échanges et communications. Mélanges offerts à Claude Lévi-Strauss à l'occasion de son 60e
sobre o sentido da honra tenta recompor e formalizar a estrutura inconsciente - conjunto de anniversaire.Paris: Mouton, 1970.
oposiçõese regras - de todas as práticas de honra, que se aplicaria também a outras práticas, MAHÉ,A. Histoire de la Grande KabylieXIX-XX siecles.Anthropologiehistorique du lien social
como o intercâmbiode dons. No entanto, nesse artigo já introduz novidades que caracterizam dans les communautés villageois.Paris: Bouchene,2001.
sua teoria da prática: o habitus como princípio incorporado das práticas, a importância das MARTÍNCRIADO,E. Les deux Algériesde PierreBourdieu.L'enracinement de la théoriede l'habitus.
estratégias de reprodução, o capital simbólico.A ruptura com Lévi-Straussé mais evidente Paris: Croquant, 2008.
no artigo sobre o parentesco,onde analisa as relaçõesde parentesco como estratégiaspráticas MARTÍNCRIADO,E. Cabilia:la problemáticagénesis del concepto de habitus. Revista Mexicana
de reprodução social dos diferentes grupos sociais. de Sociología,v. 75, n. 1,p. 125-151,2013.

40 ARGÉLIA ARGÉLIA 41
11. ARTMOYEN(UN):ESSA/SURLESUSAGES
SOC/AUX
artigosescritospor Bourdieuao longode quarentaanos, consistindo-seem uma súmulade seu
DE LAPHOTOGRAPHIE engajamentoem distintos movimentossociaisfrancesese estrangeiros,revelaa intensidadee
································································································································
a contundênciade seu pensamento.Principio com tais consideraçõesacercadesselivro com
JoséCarlosG. Durand a finalidade de destacar que praticamente desde o início de sua longa carreira o sociólogo
francês jamais deixou de intervir nos movimentos sociais que considerava significativos
BOURDIEU,P.;BOLTANSKI, L.; CASTEL,R.; CHAMBOREDON,J.-C. Un art moyen: essaí sur les
usagessociaux de la photographíe.Paris: Minuit, 1965. para a transformação de uma dada realidade social adversaa grandes setores da população.
Nas décadas de 1980e 1990,Bourdieu intensificousua ação, começando por assinar a
Ao lado da moda, da história em quadrinhos, do romance popular e dojazz, a fotografia petição pública, com Michel Foucault,em 15 de dezembro de 1981,publicada no jornal Li-
foi vista por Bourdieucomo um gênero artístico "menor",atalho útil para se entenderem os bération,"Lesrendez-vousmanqués: aprés 1936et 1956,1981?",contra a recusa do governo
fundamentos da dominaçãocultural e da correspondentehierarquia de gêneros,encabeçada socialistafrancêsem apoiar o sindicatopolonêsSolidariedade,atacadopelastropas do general
pela pintura clássica,pela literatura erudita, pela ópera e pelo teatro de vanguarda. Jaruzelski.Em 1985coordenouo documento "Propositionspour l'enseignementde l'avenir",
A fotografiareintegraa família,solenizandoe perenizandoespaços,objetos,pessoase mo- elaboradopor professoresdo Collegede France,obtendoampla repercussãoem váriospaíses.
mentosmarcantes.Estaé sua funçãosocialbásica,razãode sua grandedifusão,a despeitode seu A exemplode ÉmileDurkheim,postulandoqueos interessesda ciênciapodemser resolvidos
parcoprestígiocomopráticacultural.Dasfotosde famíliasó se pede que sejamfiéiso suficiente apenaspelospróprioscientistas,criou,em 1989,aLiber:Revista Europeiade Livros(depois,
para que alguémse vejae se reconheça,e para que se aponteàs novasgeraçõesa importânciade como subtítuloRevista Internacionalde Livros,adotadoem 1994),quecirculouaté 1998.Era
cadaum no círculode parentesco.Nelasnão há lugarpara improviso,tudo tendendoao regulado uma publicaçãotrimestral encartada na revistaActes de la Rechercheen SciencesSociales.
e convencional,definindo,no limite,o universodo "fotografável"ou "nãofotografãvel". "Comparadoa veículossimilaresnos EstadosUnidose em diversospaíseseuropeus- TheNew
Por isso, nada a estranhar que os casados (com filhos) fotografemmais do que os sem YorkReview of Books,Times LiterarySupplement,London Review of Books,Le Monde des
filhos, e estes mais que os solteiros,ou que o casamento continue a ser o eventosocial mais Livres, etc. - com projetos gráficosdispendiosose sofisticados,tiragens em escalacomercial
fotografado.Só conhecendoas condiçõesde vida e os sistemasde pensamento e de percepção compensadorae esquemas empresariaisde produção e difusão, Liber procura tirar partido
de um grupo será possívelentender o sentido de suas práticas fotográficas.Seu habitus é a de sua autonomia perante os grandes órgãos da imprensa, os maiores impérios editoriais, o
sede dos valores éticos e estéticosque definem o que merece ser fixado,conservado. establishmentde celebridadespolíticas,artísticas e intelectuais,as agendasdos radicalismos
As práticase as ambiçõespropriamenteestéticasem fotografiase constroemna contramão de direita e de esquerda,voltando-separa um públicode estudantes,pesquisadoresespeciali-
de sua funçãointegrativa,o que se vê pela forte incidênciade celibatáriosentre os aficionados, zados e produtores de cultura, junto aos quais garante o acessopor intermédio de sua língua
ou "devotos",da fotografia.Eles são, a rigor, os "desviantes",ou autodidatas às voltas com nativa. Afora as versões em francês, alemão e italiano desta 'revista internacional de livros'
uma penosa e quase sempre não compensadaaspiração estética. trimestral [...], Liber é também publicadoem búlgaro,em húngaro, em sueco,em romeno,em
Diferentes pesquisas açerca dos hábitos de fotografar entre camponeses, operários, grego,em norueguês e em turco, ampliando desse modo sua força de penetração no interior
classes médias e altas e afiliados de fotodubes forneceram o material de campo. Posse de de cada um dessescamposnacionaisde produção cultural" (MICELI, 1997,p. 15).Foidefinida
câmera, frequênciae ocasiõesde uso, costumede mostrar álbuns estão entre os quesitoscujos por Bourdieucomouma forma de resistênciaa uma situaçãode ajusteintelectual,propondo-se
resultados foram cruzados pela condiçãosocioeconômica,idade, estado civil,nível de esco- o resgate da capacidadede aliar a autonomiada esferaintelectualcom o engajamentocrítico,
laridade e demais práticas culturais dos respondentes. em um espaçopúblicoe político,tendo sido definidoso modelo e a "missão"dos intelectuais:
em lugar do intelectualtotal sartriano, tem-se o intelectualtransdisciplinar e internacional,
alternativo aos poderes econômicos,políticos e à mídia (MICELI,1997,p. 12-13).
12. ASCETISMO Liber 1 (1997),editado apenas no Brasil, pela Editora da Universidade de São Paulo,
······················································································································· tem 321 páginas e a colaboraçãode 26 autores em 31 artigos; procura refletir sobre a crise
Ver:Boa vontade cultural política, econômicae cultural atravessadap'elaEuropa no fim do século passado. Dividido
em três partes concentra-se, na primeira ("Impasses da questão nacional"), no estudo do
13. ATIVISMO tema em países como Alemanha, Escócia e Irlanda, com artigos de Bourdieu, Christophe
························································ ······························································· Charle, Jürgen Habermas, Girgit Müller, Keith Dixon, Tom Nairn, Hugh Trevor-Roper,
Afrânio Mendes Catani Terry Eagleton,Gerry Adams e BillRolston.Os artigos da segunda parte ("Mestresdo pen-
samento") concentram-se no trabalho de homenagem e reconhecimento de alguns autores
~ma simple~consulta a Interventions, 1961-2001:sciencesociale et action politique,
mais inventivas da ciência social contemporânea, como Marcel Mauss, GeorgesDuby,E. P.
coletanea orgamzada por Franck Poupeau e Thierry Discepolo,que reúne uma centena de
Thompsone GeorgesDumézil,com textos de MarcelFournier, Enrico Artifoni, Maria Luísa
42 ART MOYEN (UN): ESSA/ SUR LES USAGES SOC/AUX DE LA PHOTOGRAPHIE
ATIVISMO 43
...
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_
Pesante, Huw Beynon, Didier Eribon e Frédérique Verrier. Na terceira parte (''Arte, Litera- Montlibert, Savoir à vendre: l'enseignement supérieur et la rechercheen danger (2004);
tura e Indústria Cultural"), dedicada à arte, à literatura e à indústria cultural, destacam-se Serge Halimi, Les nouveaux chiens de garde (1997).
artigos sobre o papel político e cultural dos intelectuais, os novos campos e áreas do saber Ainda em 1996, em 13 de outubro, Bourdieu e outros intelectuais se posicionam favo-
nas ~um~nidades, o perfil de alguns gêneros de ponta da indústria cultural, como a ficção ravelmente ao movimento dos sem documentos; em janeiro de 1998 realiza intervenções
multmac10nal e a arte globalizada - temas que normalmente encontram uma recepção públicas em prol do movimento dos desempregados e em 8 de abril escreve "Pour une gauche
reverencial em jornais, revistas e televisão. Escrevem aí Bourdieu, Louis Pinto, Ursula e de gauche", no jornal Le Monde. A partir daí se intensifica uma campanha orquestrada
Wolfgang Apitzsch, Robert Darnton, Didier Eribon, Pascale Casanova, Joseph Jurt, Mihai: contra ele na mídia. No ano seguinte redige "Maitres du monde, savez-vous ce que vous
D. Gheorghiu, Ines Champey e Isabelle Graw (MrcELI, 1997,p. 13-14). faites?", publicados nos jornais Libération e Le Monde, em 13 e 14 de outubro, e na Folha
Em 1989divulga "Príncipes pour une réflexion sur les contenus de l'enseignement", relatório de S.Paulo em 19 de outubro de 1999.Em 2000 deu seu apoio ao "Manifeste pour les états
da comissão que preside com François Gros, ministro da Educação Nacional, da Juventude e généraux du mouvement social européen" (1° de maio) e aos movimentos de luta contra
dos Esportes; em 1991torna-se membro do Conselho Científico do Instituto Maghreb-Euro- a mundialização neoliberal, reunidos em Nice (dezembro) e em Québec (abril de 2001).
pa e, nessa mesma data, cria a Associação de Reflexão sobre o Ensino Superior e a Pesquisa Acredito que o ativismo e o engajamento de Bourdieu possam ser exemplarmente
(ARESER), a qual preside. Em 1993 tem intensa participação no Parlamento Internacional resumidos em algumas passagens de seu livro A miséria do mundo, quando escreve
dos Escritores e no Comitê Internacional de Apoio aos Intelectuais Argelinos (CISIA). que "levar à consciência os mecanismos que tornam a vida dolorosa, inviável até, não é
. No início_da década de 1990, em que as desigualdades sociais e a marginalidade já ha- neutralizá-los; explicar as contradições não é resolvê-las". Não se pode anular o efeito
viam se mamfestado de forma acachapante, fazendo com que os tradicionais instrumentos que a mensagem sociológica pode exercer, por mais cético que se possa ser acerca de sua
de protesto coletivo ficassem superados, Bourdieu, através da revista Actes de la Recherche eficácia social, "ao permitir aos que sofrem que descubram a possibilidade de atribuir
en Sciences Sociales,que dirigiu de 1975 a 2001 (ver verbete ARSS), editou vários artigos seu sofrimento a causas sociais e assim se sentirem desculpados; e fazendo conhecer
baseados em biografias e depoimentos que homens e mulheres confiaram a vários autores amplamente a origem social, coletivamente oculta, da infelicidade sob todas as suas
"a propósito de sua existência e de sua dificuldade de viver" (MM, 9). Depois, tais estudo~ formas, inclusive as.mais íntimas e as mais secretas" (MM, 944). Tal constatação não tem
fo~a~ ampliado~, resultando em livro com quase mil páginas, trabalhando a questão da nada de desesperador: "o que o mundo social fez, o mundo social pode, armado deste
m1sena e do sofrimento social na França contemporânea: trata-se de A miséria dó mundo, saber, desfazer. Em todo caso, é certo que nada é menos inocente que o laisser-faire: se é
que se tornou um sucesso de vendas, sendo inclusive editado em muitos países. Coordenado verdade que a maioria dos mecanismos econômicos e sociais que estão no princípio dos
por Bourdieu, que também escreveu vários capítulos, o volume conta com o trabalho de sofrimentos mais cruéis, sobretudo os que regulam o mercado de trabalho e o mercado
outros 22 autores. escolar, não são fáceis de serem estancados ou modificados, segue-se que toda política
Bourdieu acompanhou de perto o conjunto de manifestações de rua ocorridos na França que não tira plenamente partido das possibilidades, por reduzidas que sejam, que são
em dezembro de 1995 e, na ocasião, fez brilhante intervenção na Gare de Lyon ("Contra a oferecidas à ação, e que a ciência pode ajudar a descobrir, pode ser considerada culpada
destruição de uma civilização"), posteriormente incluída em seu livro Contrafogos:táticas de não assistência à pessoas em perigo" (MM, 944).
para enfrentar a invasão neoliberal (1998),em que investe contra as posturas tecnocráti-
cas do governo socialista francês - em 1996, com um grupo de intelectuais criou a editora Referências
Liber - Raisons d'agir, depois apenas Raisons d'agir, publicando pequenos livros densos, DELSAULT, Y.;RIVIÊRE,M.-C.Bibliographie destravauxdePierreBourdieu,suivid'un entretien
be~,documentados e baratos sobre problemas políticos e sociais da atualidade, escritos por sur l'espritde la recherche.Paris: Les Tempsdes Cerises,2002.
soc10logos, economistas, escritores e artistas que possuíam "a vontade militante de difundir MICELI,S. Apresentação.ln: BOURDIEU,P. (Ed.);MICELI,S. (Seleçãoe organização).Liber1. São
o saber indispensável à reflexão e à ação política em uma democracia" (WACQUANT, 2002, p. Paulo:Ed. da USP,1997.p. 11-15.
WACQUANT, L. O legadosociológicode Pierre Bourdieu:duas dimensõese uma nota pessoal.Revista
99-101).A maioria desses livros - de Bourdieu ainda se incluem Sur la télévision, suivi de
L'empris: du jo~rnalism_e(1996), Contre-feux 2: pour un mouvement social européen de Sociologiae Política,Curitiba:UFPR,n. 19,;p.95-110,nov.2002.
(2001),~!em~~ hvro, c~let1voda ARESER, Quelques diagnostics et remedes urgentespour
une umversite en penl (1997)- foi publicada contra uma situação de cerceamento da mídia 14. AUTONOMIA
E HOMOLOGIA
DOSCAMPOS
e do mercado editorial, que se recusavam a discutir, aprofundar e editar vários temas que, se ····-······················
..··················..·············.............................................................
.
escamoteados, contribuiriam para a manutenção do que o autor denominou "os fundamentos GérardMauger
ocultos da dominação". Alguns títulos merecem destaque: Keith Dixon, Les évangélistesdu
Os conceitos de autonomia e de homologia ocupam um lugar central na teoria dos cam-
marché (1998);Loi:cWacquant, Les prisons de la misere (1999);Frédéric Lordon, Fonds
pos, na medida em que, por um lado, a "autonomia" (relativa) é a condição sine qua non da
de pension, piege à cons?Mirage de la démocratie actionnariale (2000); Christian de

AUTONOMIA E HOMOLOGIA DOS CAMPOS 45


44 ATIVISMO
,·,''1
(

própria existência dos "campos" e, por outro, a noção de "homologia"é mobilizada na análise
afirma-se à medida que aumenta a autonomia do campo científico em relação às de-
tanto de suas estruturas e de seu funcionamento interno quanto das relações entre os campos.
terminações externas. O privilégio concedido à "forma" em detrimento da "função"
("a arte pela arte") está subordinado à autonomização dos campos da arte em relação
Autonomia ao campo econômico e ao campo político. Mas a autonomia dos campos de produção
simbólica tem como contrapartida seu "corte escolástico com o mundo da produção":
O surgimento de campos relativamente autônomos deriva da divisão social do "ruptura libertadora", mas também "desconexão que encerra a virtualidade de uma
trabalho (Durkheim) ou da diferenciação das atividades sociais (Weber). Os campos mutilação", geradora das "três formas de erro escolástico" (MP).
mais autônomos são aqueles que definiram uma lógica própria irredutível à de outros
campos ("nomos"): "a arte pela arte", "negócio é negócio", etc. Tal lógica peculiar convoca
Homologias
e torna ativa uma "illusio" específica: reconhecimento tácito do valor dos interesses
envolvidos no campo. O pertencimento ao campo pressupõe, além do domínio prático A noção de homologia estrutural desempenha também um papel-chave na teoria
das regras e regularidades que definem o seu funcionamento normal, um senso do jogo dos campos. Olivier Roueff (2013) colocou em evidência a dupla função que ela exe-
e de suas implicações (um "habitus específico"), assim corno a detenção de recursos cuta na análise das estruturas internas dos diferentes campos de produção simbólica:
eficientes no campo: "capital específico", que é uma arma nas lutas internas ao campo 1º) Tendo em vista que todo campo é definido como um "espaço de posições"
e, ao mesmo tempo, o pretexto dessas lutas (o valor do capital econômico, do capital organizado pela distribuição das propriedades atuantes e um "espaço de tomadas
cultural, do capital social, etc., varia de acordo com os campos). Os limites do campo de posição" definido pela distribuição das práticas peculiares ao campo, a relação
estão em jogo nas lutas internas ao campo, onde se trata de levar ao reconhedmento entre espaço de posições e espaço de tomadas de posição é uma relação de homolo-
de uma definição de pertencimento, de impor um "direito de entrada" informal ou gia estrutural. Essa homologia é efetuada pela mediação do "espaço dos possíveis",
institucionalizado, além de lutas externas entre os campos (a imposição, ao Estado, associado ao "ponto de vista" próprio de cada posição no interior do campo. Na
de critérios de racionalidade econômica traduz, por exemplo, o predomínio crescente medida em que esse ponto de vista depende, simultaneamente, do "ponto" (isto é,
do campo econômico em relação ao campo político). da posição) e da "vista" (ou seja, dos esquemas de percepção do habitus), a homo-
Assim, a autonomização da economia seria o produto da lenta evolução que a logia entre "espaço das posições", "espaço dos possíveis" e "espaço das tomadas de
conduziu "a constituir-se como tal, não só na objetividade de um universo separa- posição" pressupõe igualmente a homologia entre espaço das posições e "espaço
do - regido por leis próprias, isto é, as do cálculo interessado, da concorrência e da .das disposições" (habitus).
exploração mas também, posteriormente, na teoria econômica ('pura')" (MP). Se o 2 º) Em cada campo, a homologia estrutural entre o espaço dos produtores e o
Estado permitiu ao campo da arte e ao campo musical emancipar-se do comando da espaço dos consumidores fundamenta "a magia social" do ajuste inintencional entre
Igreja e do clientelismo, a formação do mercado está na origem da autonomização do a oferta e a demanda: "o acordo que se estabelece [... ] objetivamente entre os tipos
campo literário e do campo de arte, libertando-os progressivamente do controle do de produtos e os tipos de consumidores só se realiza nas ações de consumo por meio
Estado. Inversamente, se o mercado permitiu afrouxar a coerção estatal, ele impõe, dessa espécie de sentido da homologia entre bens e grupos, que define o gosto" (LD).
por sua vez, a lei do lucro geradora de uma heteronomia crescente que o Estado pode Mas a noção de homologia é igualmente crucial na análise das relações entre os
compensar pela implementação de uma política cultural. A autonomia (relativa) campos:
aparece, assim, como o ponto culminante de um processo reversível de autonomização 1º) As homologias estruturais regulam, por um lado, as circulações entre os di-
e de "depuração" sempre inacabado, "tanto do lado da economia que reserva ainda ferentes campos e o campo do poder e, por outro, as trocas e os deslocamentos dos
um lugar importante aos fatos e aos efeitos simbólicos quanto do lado das atividades agentes entre os diferentes campos. Considerando que cada campo está associado a
simbólicas às quais a dimensão econômica continua sendo negada" (MP), uma espécie de capital, a passagem de um campo a outro pressupõe uma conversão de
O "grau de autonomia" de um campo pode ser avaliado pela importância do "efeito um capital específico que se detém, portanto, uma taxa de conversão que é um objeto
de retradução ou de refração" que sua lógica específica impõe às influências ou aos de lutas no seio do "campo do poder".
comandos externos, pelo rigor das sanções negativas infligidas às práticas heterôno- 2º) Enfim, se cada campo possui uma forma própria, os diferentes campos têm
mas, pelo vigor dos incentivos positivos à resistência contra a intrusão dos poderes igualmente propriedades invariantes, de modo que o estudo de um campo passa pelos
associados a um campo no funcionamento de outro campo (por exemplo, a tirania testes da pesquisa das propriedades gerais dos campos, colocadas em evidência no
de acotdo com Pascal), pelo grau ao qual o princípio de hierarquização interna está decorrer de pesquisas anteriores: as relações de homologia entre os campos autori-
subordinado a princípios de hierarquização externos (RA). É possível, finalmente, nos zam as transferências racionais de esquemas explicativos de um campo a outro (LD;
interrogarmos sobre os efeitos da autonomização de um campo. A "razão científica" BouRDIEU,2013).Assim, Bourdieu (LD) teria enfatizado a homologia entre as oposições
46 AUTONOMIA E HOMOLOGIA DOS CAMPOS
AUTONOMIA E HOMOLOGIA DOS CAMPOS 47
consti!utivas dos diferentes campos de produção simbólica (à semelhança daquela
entre campo de produção restrita" e "campo da grande produção"); a homologia
entre o campo político (definido como o campo das lutas de classes ordinárias ou
extra~rdinárias, dissimuladas ou abertas, individuais ou coletivas, espontâneas ou
orgamzada_s, etc.) e o campo de produção ideológica; a homologia entre o espaço da
classe domi~ante e o es?aço das classes médias (fundada em sua estrutura em quias-
ma), etc. Tais homologrns entre os campos permitem explicar não só solidariedades
parciais e ~lianç~s ~e fato entre do?1inados ou entre dominantes de diferentes campos,
mas tambem a log1ea dos atos dai decorrentes, culminando em um duplo resultado:
tal com_osatisfazer, no campo intelectual, seus interesses de intelectual sob o pretexto
de servir, no campo das classes sociais, aos interesses do proletariado.

Referências
BOURDIEU, P. De la méthode structurale au concept de champ. ARSS, n. 200, p. 12-37,déc. 1s.BACHELARD, GASTON( 1884-1962)
·······················································································································
2013.(Théorie des champs).
Vincent Bontems
ROUEFF, O. Les homologies structurales: une magie sociale sans magiciens? Laplace des in-
termédiaires dans la fabrique des valeurs. In: COULANGEON , Ph .,· DUVAL , J. (Org.). 71ren te
Gaston Bachelard nasceu em 27 de junho de 1884na aldeia de Bar-sur-Aube. O pai era
ans apres La distinction de Pierre Bourdieu. Paris: La Découverte, 2013. p. 153-164.
sapateiro, enquanto a mãe mantinha uma banca de tabaco e jornais. A sensibilidade de
Bachelard guardará a-marca desse meio rústico e convivial, assim como sua fala conservará
o sotaque de sua região, a Champagne. Após ter concluído o ensino médio, foi bem-sucedido
no concurso de admissão aos Correiose Telégrafos,em 1903,tendo prosseguido os estudos na
área das ciências, graças aos cursos noturnos. Depois da Primeira Grande Guerra, tornou-se
professor de física e de química em sua cidade natal e empreendeu estudos de filosofia.Em
1927,defendeu duas teses: Essai sur la connaissanceapprochée,orientada por Abel Rey,
e Étude sur l 'évolution d 'un probleme de physique: la propagation thermique dans les
solides,sob a orientação de Léon Brunschvicg. Na primeira, insiste particularmente sobre
o papel desempenhado pela dupla formada pela técnica e pela matemática na construção do
fato científico,bem como na razão de que todo o conhecimento científicoé, por essência,uma
aproximação.Ele guarda, assim, seu distanciamento tanto do idealismo que supõe categorias
fixasdo entendimento quanto do empirismo que parte do pressuposto da existênciade objetos
oferecidosà observação e coloca, no primeiro plano da análise, as relaçõesentre o sujeito e
o objeto. Na segunda tese, que se refere mais à história das ciên~iasdo que à filosofia,ele já
manifesta a principal caraterística de sua epistemologia,que consiste em apreender a ciência
de maneira dinâmica através do progressodas teorias (cujaevoluçãodescontínua está também
em relação com os progressos da precisão dós instrumentos de avaliação).Essas duas obras
rompem com a noção positivista do progresso como acúmulo contínuo.
Sua contribuição decisiva para a filosofiadas ciências deve muito à sua sólida formação
científica inicial, mas também e, sobretudo, ao fato de não ter deixado de reatualizá-la em
contato com revoluções teóricas representadas pelas teorias, seja da relatividade restrita e
geral, seja da mecânica quântica. Sua escrita toma uma feiçãopolêmica, produzindo francas
demarcações:em 1929,diante de Émile Meyerson,com La valeur inductive de la relativité,
obra em que mostra que a estrutura das relações matemáticas da teoria de Albert Einstein

48 AUTONOMIA E HOMOLOGIA DOS CAMPOS BACHELARD,GASTON (1884-1962) 49


"induz" as possibilidades da realidade física; em seguida, diante de Henri Bergson, a partir de também de Bachelard a exigência do controle reflexivo do pesquisador sobre sua própria
1932, com L'Intuition de l' instant, livro que critica a noção da duração absoluta e contínua produção: a insistência em relação à necessidade de uma "sociologia da sociologia" apa-
em nome da relatividade dos tempos próprios e de uma concepção instantânea do tempo. renta-se com a "vigilância racionalista" do espírito científico. Em seu livro Science de la
Em 1934, o Nouvel esprit scienti.fique preconiza a substituição do método cartesiano - science et réflexivité (2001), lembra o que sua prática da sociologia deve, nesse aspecto,
considerado por ele como ultrapassado - por um método não cartesiano: a redução de um a Bachelard. Enfim, o modo de construção analógica dos conceitos da sociologia, assim
fenômeno a seus elementos mais simples já não é operante quando se impõe, com a mecânica como a ontologia relacional que lhe é inerente, são pensados precisamente em relação com
quântica, a complexidade fundamental dos fenômenos. Além disso, a certeza absoluta obtida as análises de Bachelard. Bourdieu destaca, a propósito do conceito de "campo": "O modo
ao termo de uma dúvida hiperbólica é ilusória quando o trabalho do pesquisador se carac- de pensamento relacional e analógico, que o conceito de campo favorece, permite captar a
teriza, pelo contrário, por uma certeza provisória e perpetuamente revisível em função da particularidade no interior da generalidade e a generalidade no interior da particularidade,
experiência. Ele introduz também os conceitos "númeno matemático" e "fenomenotécnico", facilitando considerar o caso francês [do hàmo academicus], enquanto 'caso particular
ambos tornando-se a característica da física contemporânea: a matemática não é apenas do possível', como diz Bachelard" (R, 54).
uma linguagem, mas exprime a estrutura da realidade física. Por outro lado, os fenômenos O paradoxo da filiação entre Bachelard e Bourdieu resulta do fato de que as ferra-
estudados pelos físicos não são fatos oferecidos à observação direta, mas efeitos produzidos mentas conceituais, forjadas para tirar a filosofia do trilho escolástico, são mobilizadas
no interior de dispositivos tecnológicos que atualizam potencialidades naturais. Em 1938, por Bourdieu para assegurar a autonomia relativa da sociologia, desvinculando-a da
em seu livro, La Formation de l'esprit scienti.fique: contribution à une psychanalyse filosofia que é apresentada, muitas vezes, como uma disciplina puramente retórica.
de la connaissance objective, ele coloca em evidência os obstáculos epistemológicos Assim, a ruptura epistemológica parece revirada contra seu campo. Mas esse paradoxo
que impedem o progresso da mente, seja no ensino ou na história das ciências. Seu bom se desfaz desde o momento em que se percebe, por trás das críticas acerbas contra "a"
conhecimento do alemão permitiu-lhe também, no decorrer dos anos 1930, manter-se ao filosofia, que a fronteira metodológica da construção racional atravessa realmente todas
corrente dos trabalhos germânicos (Hans Reichenbach, Martin Buber, a fenomenologia, as disciplinas. Na maior parte dos livros de Bourdieu encontram-se referências esparsas,
a psicanálise). Durante a Segunda Grande Guerra, ele desafiou os rigores da ocupação do às vezes alusivas, mas sempre elogiosas, a Bachelard, particularmente quando se trata
território francês pelas tropas nazistas e retomou a cátedra de Rey na Sorbonne (assim de explicitar o método. À semelhança do que ocorreu com alguns outros filósofos (Ernst
como a presidência do Institut d'Histoire des Sciences), escreveu La Philosophie du non, Cassirer, Jules Vuillemin, Ludwig Wittgenstein), o filósofo de Bar-iur-Aube passa por ser
que insiste na necessidade de reformar a filosofia em função dos progressos da ciência, e um heterodoxo frequentável, tendo ele próprio criticado bastante as pretensões abusivas
desenvolveu uma nova linha de pesquisa sobre o imaginário dos elementos. Após o fim da dos filósofos presunçosos para poder ser citado sem correr o risco de pôr em causa a
guerra, produziu ainda obras decisivas em epistemologia: Le rationalisme appliqué (1949), científicidade da sociologia.
livro em que define o conceito de "ruptura epistemológica"; e L'Activité rationaliste de la
physique contemporaine (1951),obra em que mostra o caráter recorrente dos progressos
científicos. Ele encarna então a figura dominante da filosofia das ciências, mas deixa de 16. BALDESCÉLIBATAIRES
(LE):CRISEDE LASOCIÉTÉ
produzir nesse domínio após a publicação, em 1953, do livro, Le matérialisme rationnel, PAYSANNE
EN BÉARN
para se consagrar à poética. Durante esse período de consagração, recebeu honras civis e
foi solicitado pela rádio e, em seguida, pela televisão. Afrânio Mendes Catani
Não é certo que Bourdieu tenha seguido suas aulas na Sorbonne; no entanto, com toda
a certeza, acabou recebendo o eco de suas lições através do ensino de Georges Canguilhem, BOURDIEU,P. Le bal des célibataires:crisede Iasociétépaysanneen Béarn.Paris: Seuil, 2002.
além de citar profusamente seus livros. De Bachelard, Bourdieu retém a exigência primordial,
a saber, que um fato científico é uma construção racional e técnica. Fazer obra de cientista Bourdieu morreu dois meses antes de esse livro ser publicado. Ele escreveu uma introdução,
consiste em desprender-se das evidências do senso comum, que são outros tantos obstáculos em julho de 2001, mapeando o conteúdo da obra, explicando que os trabalhos remetem em
epistemológicos, a fim de operar uma "ruptura epistemológica". Como o fato social não pode três ocasiões ao mesmo problema, porém, em cada caso, com "uma bagagem teórica mais
resultar da simples observação, ele reclama uma objetivação quantitativa e objetiva. A obra profunda, porque é mais geral e, não obstante, tem maior base empírica". Assim, podem
Le métier de sociologue (1968), escrita com Jean-Claude Passeron e Jean-Claude Chambo- ser interessantes para aqueles que desejam seguir uma investigação segundo a lógica de seu
redon, constitui, nesse sentido, um manual verdadeiramente "bachelardiano": a crítica das desenvolvimento e convencê-los de que "quanto mais se aprofunda a análise teórica, mais
prenoções, preconizada por Émile Durkheim, é apresentada nesse livro como a dissolução próximo se está dos dados da observação".
dos obstáculos epistemológicos, enquanto os processos de objetivação quantitativa, tais O primeiro artigo, "Célibat et condition paysanne", foi publicado em Études rurales
como as estatísticas, são considerados como um esforço de dessubjetivação. Bourdieu retoma (1962);"Les stratégies matrimoniales dans le systeme de réproduction" nos Annales (1972),

50 BACHELARD, GASTON (1884-1962) BAL DES CÉLIBATAIRES (LE): CRISE DE LA SOCIÉTÉ PAYSANNE EN BÉARN 51
enquanto "Reproduction interdite. La dimension symbolique de la domination économique" tinha sido difundida anteriormente peio canal de televisão ARTE, sob o título Les cadets de
em Études Rurales (1989).Há, ainda, um posfácio, "Une classe objet", originalmente divul- Gascogne [Os caçulas da Gasconha). · . ., .
gado em Actes de la Recherche en Sciences Soei ales (1978). Na região do Béarn, o vilarejo de Lasseube é a terra natal e o lugar da mtancia de
Sua análise é matizada a partir de questão fundamental: como é possível que, em uma Pierre Bourdieu, antes de ele se tornar sociólogo, em Paris. Seu pai, Albert, que pertencia
sociedade assentada tradicionalmente no direito dos primogênitos, são justamente estes que a uma família de meeiros, aéabou exercendo a profissão de carteiro (e, posteriormente,
ficam solteiros? No artigo inicial elabora o que chama de "um Tristes trópicos às avessas", contador) na agência de correios local, depois de se casar com Noémie, que fez um ca-
entrevistando velhos solteiros de sua geração e da de seu pai (que o acompanha em grande samento socialmente desfavorável (por ser fiiha caçula de uma importante família de
parte delas, falando bearnês e ajudando "com sua presença e discretas intervenções, a des- agricultores da região). Pierre Bourdieu cursou o ensi~o médio co~o aluno-interno no
pertar a confiança e a confidência"). Acrescenta que a contenção objetivista de seu propósito Lycée Louis-Barthou, em Pau, a capital da região, manitestando~~e_su~ultaneamente bom
se deve, em parte, ·'ao fato de que tem a sensação de cometer uma espécie de traição, o que aluno e menino travesso, ou seja. seu jeito de viver a contract1çao entre uma elevada
me levou a rechaçar qualquer reedição de textos, a não ser em revistas eruditas de escassa consagração escolar e uma baixa extração social" (EAA, 127). Graças ao diretor desse
difusão, protegidos contra as leituras mal-intencionadas ou voyeuristas". estabelecimento de ensino, Bernard Lamicq - "um dos raros, senão o único estudante
"Les stratégies matrimoniales dans le systeme de réproduction" marca de forma manifesta a natural do Béarn, a se formar na Écoie Normale" -, ele conseguiu uma vaga, em Paris, para
ruptura com o paradigma estruturalista através da passagem da regra à estratégia, da estrutura fazer a khâgne (curso preparatório para a Escola Normal Superior), igualment~ co~o alu-
ao habítus e do sistema ao agente sociaÍizado, "por sua vez animado ou influenciado pelas no-interno, no Lycée Louis-le-Grand e, depois, na própria Escola Normal Superior, situada
estruturas das relações sociais da qual é produto". Publicado em Annales, uma revista de na rua d'Ulm, em Paris. Tal percurso irá transformá-lo em um "milagroso" social - ou.
história, ''como para assinalar melhor a distância com relação ao sincronismo estruturalista", um "trânsfuga filho de trânsfuga" -. habitado por um habitus clivado "gerador de toda a
foi escrito com Marie-Claire Bourdieu. espécie de contradições e tensões" (SSR, 214). .
"Reproduction interdite. La dimension symbolique de la domination" permite compreender Mas, para Bourdieu, o Béarn é sobretudo seu terreno privilegiado, começando por sua
de forma clara a unificação do mercado de bens simbólicos em escala nacional, condenando pesquisa de 1959-60,que culminará em um de seus mais célebres artigo: de juvent~de sobre
a "uma repentina e brutal desvalorização aqueles que tinham a ver com o mercado protegido o mistério do celibato dos primogênitos, nessa região de pequenos pro~utores agncolas em
dos antigos intercâmbios matrimoniais controlados pelas famílias". A busca da parceira vai que "a função primordial do casamento consistia em garantir a continuidade da _linhage~
depender, então, diretamente da iniciativa do interessado. sem comprometer a integridade do patrimônio" (BouRDIEU,1962,p. 34). E ele nao cessara
Bourdieu mostra o êxodo das jovens que já não querem mais trabalhar em ofícios de mais de retomar o estudo dessa questão (BouRDIEU,1972, 1989).
camponeses e fala da exclusão do mercado das trocas matrimoniais de um grande contin- Quando iniciou s~a pesquisa na região do Béarn, Bourdieu ainda residia na Argélia,
gente de primogênitos solteiros na faixa dos 30 anos. No baile, que representa um verdadeiro desenvolvendo esse estudo simultaneamente àquele sobre os cabilas. São as mesmas ques-
choque de civilizações, eles ficam ao redor da pista, mas não dançam, privilégio reservado tões que o preocupam, e sua reflexão sobre cada um desses campos se alimenta daquela que
aos mais jovens. Através do baile o mundo da cidade penetra na vida do campo, revelando produz sobre o outro. Em várias oportunidades, ele definiu seu retorno à terra ~atai como
seus modelos culturais, sua música, suas técnicas corporais. As mudanças nos costumes, "um Tristes tropiques às avessas": "Minhas pesquisas sobre o casamento no Bearn foram
impostas pela vida moderna, tornaram obsoletas as práticas tradicionais, convertendo para mim o ponto de passagem, e de articulação, entre a Etnologia e a Sociologia. De,s~ída,
este livro, dedicado ao seu Béarn natal - região rural do sudoeste da França, próximo aos havia concebido esse trabalho sobre minha própria região de origem como uma especie de
Pireneus -, em uma obra íntima e bela e, o que é mais relevante, em trabalho etnográfico experimentação epistemológica: analisar como etnólogo, num universo famili~r (a não ~er
de primeira linha. pela distância social), as práticas matrimoniais que eu havia estudado num umverso social
mais distante, a sociedade cabila, significava me dar uma oportunidade de objetivar o ato de
objetivação e o sujeito objetivante" (CD, 75). .
í7. BÉARN A transição da Etnologia para a Sociologia é'visível no fato de que, no artigo de 1962,ve~i-
Denis Baranger fica-se o recurso insistente à estatística, procedimento deplorado por alguns autores que nao
deixam de reconhecer sua natureza grandemente etnográfica (JENKINS, 2006). No entanto, ele
"Lucas, jovem sociólogo parisiense, retorna a seu Béarn natal para empreender uma deve ser entendido, sobretudo, em relação à passagem de um universo estranho - a Cabilia,
pesquisa sobre o celibato entre os camponeses" - eis o que era anunciado pelos jornais, em que representa o tipo de objeto tradicionalmente antropológico - ao mundo de sua infância
2004, P?r ocasião do lançamento, nas salas de cinema, do filme Vert Paradis [Paraíso verde] e, por conseguinte, a uma relação mais "sociológica'' com o objeto. Esse é o primeiro nível_de
de Emmanuel Bourdieu, o filho caçula de Pierre Bourdieu que, além de filósofo formado significação - se quisermos, "epistemológica" - dessa reviravolta mencionada por Bourdieu
na École Norrnale Supérieure, é cineasta. Aliás, uma versão abreviada dessa película já (mesmo que, na realidade, ele nunca tenha se importado muito com as diferenças disciplinares).

52 BÉARN BÉARN 53
Mas,e issoé importante,a reviravoltarefere-setambém - depoisde "LamaisonKabyle",seu tradiçãoparticular,pode reproduzir - de maneira mais inconscientedo que consciente-, esta
"últimotrabalhode estruturalistafeliz"(SP,22)- a uma evoluçãodecisivade seu sistemateórico: ou aquelasoluçãotípicanomeadaexplicitamentepor essatradição"(BouRDIEU, 1972,p. 1107).
a passagem"daregraàs estratégias"(CD),em ruptura como estruturalismode Lévi-Strauss, a fim A região do Béarn, longe de ser um capítulo encerrado na evoluçãodo pensamento de
de deixar de concebera práticacomourna execuçãomecânicada regra.Urnaobservaçãobanal Bourdieu,nunca deixou de figurar no âmago de sua teoria da prática.
de sua mãe é que irá ajudá-loa operar essapassagem:"Elesviraram parentesdos fulanos,desde
o momentoem que um delesse formouna Polytechnique"(EAA,86).Dessemodo, ele mostra Referências
que a práticaé criada,não pelaregra - menosainda, pelomodelo-, mas pelosprópriosagentes, BOURDIEU,P. Célibatet condition paysanne. ÉtudesRurales,v. 5-6, p. 32-136,1962.
dotadosde urna capacidadede manipular,não necessariamentede formaconsciente,as regras. BOURDIEU,P. Les stratégies matrimoniales dans le systeme de reproduction. Annales, v. 4-5,
As árvores genealógicasnão são senão uma invenção do etnólogoe, portanto, ao paren- p. 1105-1127,1972.
tesco oficial, convém opor o parentesco prático, aquele que se encontra verdadeiramente BOURDIEU,P. Reproduction interdite. La dimension symbolique de la domination économique.
em ação através dos habitus: "Asrelações de parentesco efetiva e atualmente conhecidas, ÉtudesRurales,v. 113-14,p. 15-36,1989.
reconhecidas, praticadas e, corno se diz, 'mantidas', são, para a genealogia construída, 0 JENKINS,T. Bourdieu'sbéarnais ethnography.Theory,Culture& Society,v. 23, n. 6, p. 45-72,2006.
que a malha rodoviária mantida, de fato, em boas condições, frequentada, desimpedida,
portanto, fácil de acesso- ou melhor ainda, o que o espaçohodológicodos entroncamentos
e dos percursos realmente efetuados - é para o espaço geométrico de um mapa enquanto
rn.BENSSIMBÓLICOS
(Economia
dos)
, representaçãoimaginária de todos os caminhos e de todos os itinerários teoricamentepos-
síveis.Prolongandoa metáfora, as relaçõesgenealógicasdesapareceriamrapidamente,como GiseleSapiro
caminhos abandonados,se elas não recebessemurna manutenção contínua, mesmo que se
forem utilizadas de forma descontínua"(BouRDIEU, 1972,p. 1108). A economiados bens simbólicosdesenvolvidapor Bourdieuestá enraizadaem uma crítica
O teina fundamental dos "usos sociais do parentesco"será desenvolvidoplenamente em do econornicismoque i;eduzas trocas ao cálculo interessado.Seus primeiros estudos sobre
Le sens pratique e, por esse meio, é todo o estatuto da teoria jurídica e antropológica do sociedadespré-capitalistas- a Cabília,na Argéliaainda colôniafrancesa,e sua regiãonatal do
parentesco que se encontra questionado, considerando que "as relações de parentesco são Béarn,no sopédos Pirineus - e, em seguida,seustrabalhossobreos camposliterário,artístico,
algo que se faz e com as quais se faz algo" (SP,279). religiosoe científico,revelama dimensãosimbólicadas trocas,cujafunçãoconsisteem torná-las
É fácilmostrar comoessareflexãoculmina rapidamentena ideiade capitalsocial(embora, irreconhecíveiscomotais. O economicismoque se consolidoua partir do séculoXVIIIé apenas
na época,tal noção ainda tendesse a se confundir com a de capitalsimbólico):"Seas pessoas uma forma particular da economiadas práticase das trocas.Alémdisso,se elese impôs corno
socialmentemais bemsituadastêm também as maioresfamílias,enquantoos 'parentespobres' paradigmadominante com o capitalismotriunfante, alguns universos- tais comoos campos
são também os mais pobres em parentes, é porque, neste domínio como em outros setores, de produção cultural ou científica- continuam funcionandode acordocom os princípiosda
o capital convergepara o capital, tanto mais que a memória da parentela e a propensão a economiapré-capitalista,enquantoo paternalismomostra quetais formasdenegadasde domi-
mantê-la são função dos lucros materiais ou simbólicosque podem ser auferidosquando se naçãosubsistemno próprioâmagodo campoeconômico.Essateoriapassoupor reformulações
pratica o parentesco"(BOURDIEU, 1972,p. 1109). sucessivasao longode sua obra,desdeEsquissed'une théoriede lapratique (1972)atéRaisons
Certamente,em "as categoriasde parentescoinstituem urna realidade" (SP,287),trata-se nrr.mn,,,,c (1994),livroem que se encontrasuaversãomaisacabadae maissintética,passandopor
de construçõessociais.Mas os agentestêm a capacidadede servir-sedessas"realidades",tendo Le senspratique (1980).Ostrabalhossobrea literatura,a arte, a religiãoe a ciência- universos
cornoimplicaçãoque "alguns casamentosidênticos,unicamente sob o aspecto genealógico, em que prevalece"o interessepelo desinteresse"- constituemsua ilustração.
podemrevestirsignificaçõese desempenharfunçõesdiferentes,inclusiveopostas,dependendo O senso de honra e o dom são os dois exemplosparadigmáticos do modo de funciona-
das estratégias em que estão inseridos" (SP,290), afirma ele, em ruptura igualmente com 0 mento da economiados bens simbólicos:eles se baseiam na recusa do cálculo, da lógicado
nominalismo positivistada antropologiabritânica. De fato, "contra a tradição antropológica valor, que está na origem do econornicismo.Não é suficienteobjetivar a realidade da troca,
que aborda cada casamentocomouma unidade autônoma [...] cada transação matrimonial só tal como faz Lévi-Straussa propósitodo dom e do contradorn,para levá-laem conta, porque
pode ser compreendidacomo um momento em urna série de trocas materiais e simbólicas. ela é dissimulada pelo intervalo temporal que introduz também alguma incerteza relativa-
Deste modo, o capital econômicoe simbólicoque uma família pode investir no casamento mente à reciprocidade.
de um de seus filhos vai depender, em grande parte, da posição ocupada por essa troca na Assim, a primeira característica da economia dos bens simbólicos é a denegação da
históric:!-
matrimonial da família" (BouRDIEU, 1972,p. 1120). economia economicista,ou seja, do cálculo em termos de interesse: o interesse econômico
Assim, "o casamento não é o produto da obediência a uma regra ideal, mas o desfecho é "recalcado","censurado".A segunda, correlata da primeira, é a transfiguração dos atos
de urna estratégia que, pondo em ação os princípios profundamente interiorizados de uma econômicosem atos simbólicos:essa alquimia requer um investimentoconstante por parte

54 BÉARN BENS SIMBÓLICOS (Economia dos) 55


dos agentes para euiemizar o caráter interessado da troca, investimento que não depende trabalho de negociaçãonecessáriopara se impor sem fazer concessõesàs expectativassociais.
de uma estratégia cinica, mas de um conjunto de disposiçõespara instalar as formas, para Mas, quase sempre, tais negociaçõessão assumidas por um intermediário - editor, dono de
dissimular as expectativasde reciprocidadeno dom, por exemplo,ou para ocultar o valor (tal galeria, agente - que, ao livrar o artista da suspeita do interesse implicada inevitavelmente
como ocorre quando se retira a etiqueta do preço em um objeto destinado a ser oferecido). pelosatos de autopromoção,participa da cadeia da "produção da crença"na obra;de acord?
Ao deslocar a expiicaçãodo ato da intenção para as disposições, Bourdieu destaca o papel com O título do artigo que, em 1977,Bourdieu dedicou à relação entre o escritor e o editor.A
do processo ciesocializaçãona transmissão dessas práticas instituídas, cuja transgressão é semelhançada grife do costureiro, o editor apõe de fato sua marca sobre a obra, contribuindo
suscetívelde ser punida ou repreendida. O ··rrabalho coletivode recalcamento" (RP,212) só para conferir-lhe seu valor por uma operação"mágica"de transferência de capital simbólico.
é possívelse os agentes compartilharem os mesmos esquemas de percepção e de apreciação. Essa troca simbólica faz com que a relação entre o autor e o editor não possa ser reduzida a
Em decorrénciadessetrabalho constante de transfiguração,a economiados bens simbólicosé um simples contrato: altamente personalizada, ela oscila entre o encantamento das relações
urna "economiafluidae indeterminada" que se apoia no ·'tabu da explicitação";as práticas daí baseadas nas afinidades eletivas e o ressentimento engendrado pela dependência e pelas
oriundas são,por conseguinte,"sempreambíguas,com duplafacee, até mesmo,aparentemente formas de exploraçãoque a acompanham.
contraditórias (por exemplo,os bens têm aí um preço e são 'sem preço')" (RP,211).Terceira Essarelaçãocomplexaentre o autore seu editor,ou entreo artista e o donoda galeria,deve-se
característica da economia dos bens simbólicos:é no decorrer da circulação dos bens que ao fato de que a economiados bens simbólicosapoia-secom maior frequênciano investimento
se acumula o capital simbólico,espécie de capital cuja eficiênciatem a ver com a percepção desinteressadonão apenas do criador,mas também do intermediário que aposta em sua obra.
pelas pessoas à volta (clã, tribo, classes, campo) de uma propriedade, tal como a riqueza, o Com efeito,esse investimento baseado na crença na obra está marcado pela incerteza e pelo
valor do guerreiro ou o valor cultural. Ainda neste aspecto, o valor simbólicoé reconhecido risco, nomeadamente em relação às obras inovadoras que têm dificuldadepara se impor no
com base em categoriascompartilhadas de percepção e de julgamento. mercado.E é um investimento- muitas vezes,deficitáriono plano econômico- que apostano
É também essa partilha dos valores fundamentais que sustenta a íllusio, ou seja, a crença longoprazo. De fato, uma das característicasda economiados bens simbólicosé a temporali-
no princípio da adesão dos agentes aos campos literário, artístico, científico,religioso.Para dade:o trabalho de reconhecimentode uma obra requer tempo e inscreve-sena longaduração.
compreender a origem dessa crença, Bourdieu d.ecideestudar, em um artigo publicado em É apenas no decorrer 9u no final do processo de consagração- se isso vier a acontecer - que
1971,as condiçõesde surgimento de um "mercado dos bens simbólicos"que é correlato do o valor simbólicoé suscetívelde se reconverterem valor mercantil. Às vezes,respaldadopela
processo de autonomizaçãodos campos literário e artístico em relação ao clientelismoe ao obtenção de prêmio, esse processo pode avançar até a entrada no panteão escolar quando a
mecenato.A apariçãode instâncias específicasde ctifusão(editores,galeristas)e de consagra- obra é consagrada como um clássico(muitas vezes,bem depois do óbito do autor), mas não
ção (academias,salões de pintura, prêmios),produtores de valor nesse mercado,faz com que há nada de linear ou de garantido. Esse investimento de longo prazo do intermediário não
os bens culturais não possam ser avaliadosde acordo com critérios puramente econômicos é totalmente desinteressado:ele lhe granjeia recompensas simbólicas, tais como a estima e
(faturamento, preço dos quadros); ou, em todo caso, faz com que o valor econômicodesses o reconhecimento do círculo literário e artístico por seu discernimento e por sua coragem,
itens seja mediado por seu valor simbólico.O julgamento estético é paralelamente objeto de contribuindo assim para manter e reforçar seu "crédito",ou seja, seu capital simbólico.No
especialização:críticosliterários,de arte, de músicaparticipam do processode valorizaçãodas entanto, tais apostas arriscadas exigemuma economia complexade distribuição igualitária
obras e, diante dos profanos,reivindicamo monopólioda competênciasobre a área de criação que consiste em compensar as perdas relacionadasa uma obra por ganhos obtidos em outra,
em pauta. Como mostra Bourdieu em Les reglesde l'art (1992),essas diferentes instâncias já consagrada ou que faz parte do circuito da grande produção, de acordo com uma fórmula
contribuem para a formação, a partir de meados do século XIX, de um polo de produção praticada comumente pelos grandes editores. Essa economiaapoia-setambém muitas vezes
restrita dos bens culturais que proclama a supremacia do valor estético sobre os critérios do em ajudas, públicas ou privadas (fundaçõesfilantrópicas, mecenato),que são outras tantas
sucesso econômico que prevalece no polo da grande produção (tais como o faturamento a formas modernas de patrocínio que dão testemunho do reconhecimento social, adquirido
curto prazo). Trata-se, portanto, de uma "economia invertida", que se baseia na denegação pela criação artística. As estruturas menores recorrem também ao trabalho voluntário, que
da dimensão econômicada atividade de criação lBOURDIEU, 1983). é a forma mais extrema de investimento desinteressado por parte dos intermediários, e a
A dissociaçãoentre valor estético e valor mercantil, que caracteriza o polo de produção expressãomais pura de sua crença em tal inv,estimento.
restrita desse mercado de bens simbólicos,além de servir de fundamento à autonomização Essa economia dos bens simbólicos, observa-se igualmente no campo religioso que,
dos campos de produção cultural, assume formas variadas segundo o medium ou sob inclusive, forneceu o respectivo modelo aos campos de produção cultural. Bourdieu (RP)
configuraçõesdiferentes, desde a figura romântica do dandy até a sacralização do "artista mostra, com efeito,que a Igrejaé um empreendimentoeconômicoque se denegacomotal. Essa
maldito",mas elas são a expressãoda ética do desinteresse do artista ou, pelo menos, de sua denegaçãoé manifesta na recusa em reconhecer as relaçõesde trabalho no seio da Igrejae no
recusa em submeter-se às condicionantes externas (econômicas, políticas, morais) que a recurso maciçoao voluntariado.As relaçõesde produção e de exploraçãodentro da Igrejasão
sociedade tenta lhe impor. Se os modelos "empresariais" de um Balzacou de um Beethoven eufemizadosatravésdo modelodas relaçõesfamiliares,ao qual é tomadode empréstimoo ideal
lembram que as carreiras artísticas não escapam a essas pressões, elas mostram também o da fraternidade. De forma mais geral, o trabalho de transfiguração observa-sena economia

BENS SIMBÓLICOS (Economia dos) 57


56 BENS SIMBÓLICOS (Economia dos)
da oferenda que caracteriza todas as religiões:o material nunca é oferecidoà divindade em a passagemdo estado de privaçãoàqueleda pretensão (PVD,54).Fazen~ou:o do termo "pe-
sua forma bruta, mas sob uma forma trabalhada (ouro trabalhado). quena-burguesia",no entanto, que ele se reportou a tais segmentos,no mtmto de demarcar,
O campo científicoé outro universo caracterizadopelo interesseno desinteressequando comO adjetivo"pequeno",a moral, a hexis corporal, enfim, "tudo o que diz, pensa, faz, tem
sãopreenchidasas condiçõesde sua autonomia(BoURDIEU, 1976).Esseuniversotem a seguinte ou é O pequeno-burguês [...] um homem que deve fazer-sepequeno para passar pela porta
propriedade:os principais clientesdas produçõessão os pares e, portanto, os concorrentesna estreita que dá acessoà burguesia" (BouRDIEU, 1974,p. 25).
luta pela autoridade científica.O interesse específicoque orienta as estratégias dos agentes o princípioda "boavontadecultural"residena distânciaentre o reconhecimento- do valor
neste campo tem sempre, por conseguinte,uma dupla natureza: interesse científico"puro" e da legitimidade- de determinadosprodutose práticasculturais, e o conhecimento- de fato,
e interesse no sentido da busca de reconhecimentoque permanece, no entanto, irredutível emtermosde apropriação,incorporação- destes.A provade tal reconhecimentoo autoraponta
unicamente às motivaçõespolíticas ou econômicas.É por isso que Bourdieurejeita, aliás, o na propensãodos sujeitos- sobretudoem situaçãode entrevista- a escondersua ignorânciae a
relativismoepistemológico.Ointeresseno desinteresse,associadoao controlecoletivoexercido tomar comosuas práticas e escolhasque avaliamcomoas mais legítimas,as mais nobres:um
pelocampo,é uma das condiçõesde sua autonomia,mesmoque elanunca deixede ser relativa. modo,segundoele,de homenageara legitimidadecultural.Suaobstinação,admiraçãoe devo-
Finalmente,a economiadosbens públicose do campo burocráticoé igualmenteum espaço çãoà cultura - recursocujaausênciaé percebidacomoprivação- são expressose_mavalia~ões,
caracterizadopeladenegaçãoda economia,atravésdas noçõesde serviçopúblicoe de interesse escolhase investimentosmarcadospor uma "reverência indiferenciada que mistura aVIdez
geral que pressupõem o desinteressedos agentes investidos em tais funções, mesmo que - e ânsia", geralmenteacompanhadade um sentimentode indignidade."O pequeno-burguêsé
como sublinha Bourdieu(RP,211)- este campo não tivessechegadoa "obterdedicaçõestão reverênciadiante da cultura [...] inclina-sediante de tudo aquiloque pode parecer cultura [...]"
completasquantoaquelasconseguidaspelafamília(ou, até mesmo,pela Igreja)".Essaéticaestá (LD,370).Ânsia que se traduz no apelopermanente a autoridadese modelosde conduta,bem
atualmenteameaçadapelaspolíticasneoliberaise pelo newpublic management, queintroduz comono evitamentode riscos.Comoexemplotípico,citadopeloautor,figuramas preferências
a racionalidadeeconômicana gestãodas políticaspúblicas,em detrimentoda noçãode serviço de leitura, que não ousam ultrapassara linha de segurançados clássicosou prêmiosliterários.
público.A partir de meadosdos anos 1990,Bourdieumobilizou-sevigorosamentecontra essa Avidezquese fazvisível,por sua vez,na inclinaçãoà acumulação,ao entesouramento,a exemplo
ideologianeoliberal.Um de seus últimos livros foi dedicado às Structures socialesde l'éco- da interpretaçãodo homem culto comodetentor de um tesouro de conhecimentos.
nomie (2000):nesse texto ele analisa, atravésdo caso do mercadoda habitação,na década de Aspropriedadesquedefinemumaposturaparticulardiantedocapitalculturalsãoidentificadas
1980,os mecanismossociaisque regulamentamo funcionamentoda economia,reintegrando peloautor na relaçãodessesindivíduoscoma moral.Issosignificaque a "boa vontadecultural"
a dimensãosimbólicae socialdas práticas dissimuladapeloseconomistas,sem deixar de levar tem um correspondenteno planomoral:o ascetismodos gruposintermediários,expressonuma
em conta as lógicasde campo (o dos construtores)e o papel do Estado(atravésdas políticasde disciplina,muitas vezesimpostaa todosos membrosda família,inteiramentesubordinadaaos
moradia).Eleterá assimlevadoa seu termo a reflexãoquehaviaempreendidoem suajuventude. imperativosde uma ascensãovividae quedeveserperpetuadapor meiode renúncias,contenções
e boa vontade.Umadisciplinaascéticaque se constituinuma formade pagamentoem sacrifício,
funcionandocomo garantia moral a avalizarseu baixovolumede capitais.Daí as disposições
Referências
marcadaspelorigor,peloesforço,pelocontrole,a exemplodaqueleexercidona limitaçãoda prole
BOURDIEU,P. Le marché des biens symboliques. L'Année Sociologique, v. 22, p. 49-126, 1971.
(malthusianismo), restrita,em geral,a um ou doisdescendentes,sobreos quaisrecaiconcentrada
BOURDIEU,P. Le champ scientifique.ARSS, n. 2-3, p. 88-104,jun. 1976.
todaa esperançafutura da familia,de prolongamentode uma trajetóriaascendenteiniciada.Para
BOURDIEU,P. La production de la croyance: contribution à une économie des biens symboliques.
essaclasseintermediária,tudo ocorrecomose o passadode privaçõesatuasseem seu presente,
ARSS, v. 13, p. 3-43, 1977.
exercendoumaforçacontrária,negativa,comopoderdelimitaçãoe contenção,manifestadaemsua
BOURDIEU,P. Toe Field of Cultural Production, or: Toe Economic World Reversed. Poetics, v. 12,
conduta:"umasedequaseinsaciáveldetécnicase regrasdecondutaquelevaa submetertoda a exis-
n. 4-5, p. 311-356,1983.
tênciaa uma rigorosadisciplinae a se governarem todas as coisas,por princípiose preceitos[...]"
(LD,382).É nesse sentido que as práticas, que concentraminvestimentose regulam gastos,
revelam-semenosvoltadaspara o presente- esteinteiramentecomprometidocomas exigências
19. BOAVONTADECULTURAL da ascensão:"Todaa existênciado pequeno-burguêsascendenteé antecipaçãode um futuro que,
Andréa Aguiar na maioriadas vezes,não poderáviver,senãopor procuração,por intermédiodos filhos,para os
quais 'transfere,como se diz, suas ambições'.Espéciede projeçãoimaginária de sua trajetória
É em La distinction: critiquesocialedu jugement (1979)que Bourdieu desenvolvemais passada,o futuro que sonha para o seu filhodevoraseu presente"(BouRDIEU, 1974,p. 20).
amplamentesua noção de "boavontade cultural", ao descreveras característicasparticulares Assinalandoa importânciado sentidoda trajetória,mais do que a posiçãode fato,eleloca-
que definem a relação das classesmédias com a cultura. Uma relação que, segundo ele, se liza, entre três fraçõesda pequenaburguesia(LD,398-421),um maior ou menor grau de boa
constitui no elementomais típicodo estilo de vida desse grupo social,cuja trajetória registra vontadee ascetismo.Assim,são própriosda "pequenaburguesiade execução"- em trajetória

58 BOA VONTADE CULTURAL BOA VONTADE CULTURAL 59


---------------·-· ..•-----

ascendente- a boavontadeculturalem seu estadopuro, bem comoum rigorismoascéticomais


acentuado,enquantoa "pequenaburguesiaem declínio"seriamaisdemarcadapelopessimismo ·20.····BOURDIEU
···················EDITOR
·········............................. M~~ã;;
:..........................
·;,j;.ã~;~·e~;~~;
e um conservadorismoque orienta ações e preferênciasausteras e tradicionais.Em oposição
mais evidente ao primeiro grupo figura a terceira fração, a "novaburguesia",relativamente Bourdieu,quando retorna da Argéliano início da década de 1960,torna-se assistentede
mais dotada de capitais - cultural, social ou econômico-, atuante em profissõesnovas e em RayinondAron (1905-1983)na Faculdade de Letras de Paris e integra-se ao Centro de So-
expansão,mais aberta aos riscose, nessesentido,menos refémda boa vontadee do ascetismo. ciologiaEuropeia (CSE),fundado e dirigido por Aron na 6ª seção da EscolaPrática de Altos
Quando tomados em seu conjunto, os grupos em questão distinguem-se por sua in- Estudos(EPHE).De 1961a 1964lecionana Faculdadede Letras de Lille;em 1962é designado
capacidade de estabelecer com a cultura uma relação de real familiaridade que autoriza secretário-geraldo CSEe no ano seguinte publica Travail et travailleurs en Algérie, com
liberdades e audácias (LD,381).Isso porque o modo tardio, metódico e escolar de aquisição Alain Darbel, Jean-PaulRivet e ClaudeSeibel.O ano 1964foi importante em sua carreira,
de capital cultural deixa marcas indeléveis em suas disposições, distantes daquelas de sendoeleito,aos 34 anos, diretor de estudos na 6ª seção da EPHE,além de assumir a direção
desenvoltura e segurança de si - e de suas escolhas - que definem as ações dos detentores adjuntado CSE.Nessamesmadata lança,pelasÉditionsde Minuit,a coleçãoLeSensCommun,
da cultura legitimada.É nesse sentido que a "boa vontade cultural" dos pequeno-burgueses organizadapor ele até 1992.Passa também a lecionar na EscolaNormal Superior,onde per-
acaba por trair seus esforços vigilantes, mas fracassados - a exemplo da hipercorreção manece até 1984.Quanto às publicações,datam desse mesmo 1964,Le déracinement: la
linguística -, incessantemente empregados na tentativa de apagar, eliminar os vestígios crisede l'agriculturetraditionnelle en Algérie (comAbdelmalekSayad),Les héritiers:les
dessa "marca de origem" (PVD). Todos os seus movimentos, estratégias e investimen- étudiants et la culture e Les étudiants et leur études, ambos com Jean-ClaudePasseron.
tos, que visam também evidenciar sua distância das frações mais desprovidas de capital Ou seja, nessa mesma data, já dispondo de condiçõesobjetivaspara promoverum trabalho
cultural, só fazem realçar sua deferência e tornar, por vezes, caricatural uma relacão com coletivo,evitandoas distraçõesdo estrelatomidiáticoe procurando salvaguardara autonomia
a cultura construída por meio da racionalização, do esforço e dependente de ;egras e intelectual,pré-condiçãopara uma Sociologiarigorosa e para uma política vigorosa,devota
preceitos. O caso extremo dessas condições, a boa vontade cultural em seu estado exacer- "suas energias a construir instituições de produção científicaprotegidas das dependências
bado, pode ser identificado no autodidata, cujo empenho em fazer reconhecer seu saber, gêmeasdo comando estatal e das regras do mercado" (WACQUANT, 2002,p. 99}.
não certificado e sancionado pela instituição escolar, remete inevitavelmente a seu modo As atividades editoriais do sociólogo,que se iniciam em 1964,sã~ realizadas com suas
herético de aquisição da cultura legítima. A esse tipo de postura construída, Bourdieu assistentesRosine Christin e Marie-Christine Riviere, que colaboram com ele até o fim de
opõe aquela que resulta da aquisição natural, que se dá pela familiarização insensível, sua vida. Na colecãoLe Sens Commun ele editou um ambiciosoconjuntode livros dos mais
progressiva e lenta, uma incorporação precoce iniciada na socialização primária, desde variadosmatizes/entre obras clássicasse destacamÉmileDurkheim,MarcelMauss,Maurice
a infância, no ambiente familiar: umá "postura estética", que se constrói ao longo do Halbwachs,Ernst Cassirer,JosephSchumpeter,Mikhail Bakhtin, Émile Benveniste,Erwin
tempo, de maneira imperceptível, que pressupõe uma distância objetiva, mas igualmente Panofsky;traduções de autores contemporâneosrelevantes- TheodorW. Adorno, Gregory
subjetiva das urgências práticas. Bateson,BasilBernstein,John Blacking,MosesFinley,Erving Goffman,Albert Hirschman,
O esquema interpretativo que está na base da noção de boa vontade cultural tem sido Richard Hoggart, William Labov,Ralf Linton, Herbert Marcuse, A. R. Radcliffe-Brown,
explorado em análises mais recentes de fenômenos sociais específicos,a exemploda "boa EdwardSapir;pesquisasoriginaisde jovenssociólogose historiadoresfrancesese mesmo es-
vontadelinguística"(DuBors,2003),queabordaa relaçãoparticular dos gruposintermediários, trangeiros (LucBoltanski,Robert Castel,Patrick Champagne,ChristopheCharle,Jean-Louis
na atualidade, com os modelos linguísticoslegitimados;ou da "boa vontade internacional" Fabiani,ClaudeGrignon,SylvainMaresca,Francine Muel-Dreyfus,CharlesSuaud,Jeannine
(NOGUEIRA; AGUIAR, 2008), que diz respeito à atenção recente e aos investimentos desses Verdes-Leroux,Anna Boschetti,Dario Gamboni),além de livros de seus grandes amigosJean
mesmos segmentos em estratégias que possam aproximá-los do estilo internacionalizado Bollacke LouisMarin, de seu antigomestre JulesVuillemin,sem contar obras de sua autoria
de vida das elites. e em parcerias- saíram na coleção,apenasde Bourdieu,Algérie 60:structureséconomiques
et structures temporelles;La distinction: critique socialedu jugement; Le senspratique;
Referências Questions de sociologie;Leçon sur la leçon;Homo academicus;Chosesdites;L'Ontologie
BOURDIEU,P.Avenirde classe et causalité du probable. Revue Française de Sociologie, v. XV,n. 1, politique de Martin Heidegger;La noblessed'État: GrandesÉcoleset esprit de corps;de
p. 3-42, jan./mars 1974. Bourdieucom colaboradores:Le déracinement: la crise de l'agriculturetraditionnelle en
DUBOIS,V.Commentla langue devient une affaired'État. La défensede la langue française au milieu Algérie (comAbdelmalekSayad);Les héritiers:les étudiants et la culture (comJean-Claude
des années 1960. In: LAGROYE, J.(Org.).La politisation. Paris: Belin,2003. p. 461-474. Passeron);Un art moyen:essaisur lesusagessociauxde laphotographie(comLucBoltanski,
NOGUE,IRA,M. A.; AGUIAR, A. La formation des élites et l'internationalisation des études: RobertCastele Jean-ClaudeChamboredon}; L'Amour de l'art: les musées d'art européenset
peut-on parler d'une "bonne volonté internationale"? Éducation et Sociétés, Paris, v. 21, n. 1, p. leurpublique (comAlain Darbele DominiqueSchnapper);La reproduction:élémentspour
105-119, 2008. une théoriedu systeme d'enseignement(comJean-ClaudePasseron).

60 BOA VONTADE CULTURAL BOURDIEU EDITOR 61


r
!

Em 1975,"com a bênção e o apoio de Fernand Braudel, diretor da Maison des Sciences de livros de autoria de Louis Pinto, Pascal Durand, Sébastien Chauvin, SylvieTissot, Marie-
de l'Homme [...], cria a revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales, que se firmou France Garcia-Parpet, Philippe Mary, etc.
como uma das mais importantes publicações em ciências sociais no mundo. Embora tenha Bourdieu, durante mais de quarenta anos, sempre devotou especial atenção para a pu-
permanecido altamente singular em seu formato, tom e missão [...] a revista procurou blicaçãodos resultados de suas investigações,bem como daquelas desenvolvidaspor colegas
publicar os mais avançados produtos da pesquisa social a fim de impingi-los sobre a cons- franceses e estrangeiros, divulgadas sob a forma de livros e de artigos em periódicos cientí-
ciência coletiva e sobre a discussão pública na França e no exterior". Bourdieu a dirigiu ficos.Na maior parte de sua trajetória acadêmica, conforme se escreveuaqui, teve o controle
de 1975a 2001 (WACQUANT, 2002) -ver, sobre a revista, o verbete ''.Actesde la Recherche do conteúdo que publicou, inclusive possuindo o senso de oportunidade política de editar,
en Sciences Sociales". quando julgou necessário, textos de intervenção (não poucos de sua autoria) em que ajudou
Nos anos 1980-1990Bourdieu continuou sua ação, entendendo, a exemplo de Émile a colocaro saber intelectual numa linguagem apropriada, a serviço de parcelas da população
Durkheim, que os interesses da ciência só podem ser resolvidos pelos próprios cientistas. ·quenão possuem as chaves para decifrar obras que normalmente circulam apenas entre os
Na perseguição desse objetivo,criou, em 1989,a Liber: Revista Europeia de Livros (depois, produtores da cultura erudita.
com o subtítulo Revista Internacional de Livros, adotado em 1994),que durou até 1998.
Era uma publicação trimestral encartada na Actes, que saía simultaneamente em vários Referências
países, nos seguintes idiomas: francês, alemão, italiano, búlgaro, húngaro, sueco, romeno, MICELI,S. Apresentação.ln: BOURDIEU,P. (Ed.).MICELI,S. (Org.).Liber 1. São Paulo:Ed. da USP,
grego,norueguês e turco, sendo definida por Bourdieu como uma forma de resistência a uma 1997.p. 11-15.
situação de "ajuste intelectual", propondo o resgate da capacidade de aliar a autonomia da WACQUANT, L. O legadosociológicode Pierre Bourdieu:duas dimensões e urna nota pessoal.Revista
esfera intelectual com o engajamento crítico, em um espaço público e político. O modelo e a de Sociologiae Política,Curitiba: UFPR,n. 19,p. 95-110,nov. 2002.
"missão" dos intelectuais são redefinidos: em lugar do intelectual total sartria~o, tem-se o
intelectual transdisciplinar e internacional, alternativo aos poderes econômicos,políticos e
à mídia. SergioMicelidestaca na apresentação a coletânea Liber 1, que reúne 32 textos sele-
cionados do suplemento,que o desafioinicial de um empreendimento dessa natureza foi o de 2í. BURGUESIA
···························································································•,•··························
"firmar alianças supranacionais com vistas à montagem de uma rede de autores e correntes
guiada por lideranças intelectuaisindependentes"(MICELI,1997,p. 12).As bases de tal acordo Ver: Classe social
operacional e doutrinário eram "o respeito intelectual recíproco e, tão ou mais importante
num momento de resistência aos arautos da modernidade neoliberal", constituindo-se em
"contraveículo de combate intelectual e divulgação cultural de qualidade" (MICELI,1997,
p. 12-13).Voltando-separa um público de estudantes, de pesquisadores especializadose de
prod~tores de cultura, Liber tinha entre seus colaboradores GeorgesDuby,Robert Darnton,
Terry Eagleton, Jürgen Habermas, E. P. Thompson, Keith Dixon, Didier Eribon, Christophe
Chade, PascaleCasanova,além de vários outros intelectuais originários da França e de outras
nações em que o suplemento era publicado.
Ainda nos anos 1990,Bourdieu capitaneou a criação da editora Liber - Raisons d'agir,
depois apenas Raisons d'agir, publicando pequenos livros, bem documentados e a preços
baixos, sobre temas políticos e sociais da atualidade - ver verbete "Ativismo".
Em 1997, o sociólogo criou a coleção Liber, nas Éditions du Seuil, editando, de sua
autoria, Méditations pascaliennes, La domination masculine e Les structures sociales
de l' économie - Esquisses algériennes (2008), póstumo, reunindo textos que escreveu
em vários momentos sobre o país africano, organizado por Tassadit Yacine.Nessa coleção
foram editados livros de seu amigo e colaborador Abdelmalek Sayad, Olívier Christin,
Jacques Bouveresse,Frédéric Lebaron, Jacques Dubois, Bertrand Geay,Julien Duval, Yves
Dezalay, Bryant G. Garth, Anna Boschetti, Ian Hacking e Aaron Victor Cicourel, entre
outros. Após sua morte, em janeiro de 2002, a coleção, que passou a ser dirigida por seu
filho, Jérôme Bourdieu, por Johan Heílbron e YvesWinkin, prosseguiu com a publicação

62 BOURDIEU EDITOR BURGUESIA 63


"'-,~,.,...---------,------- . ·----------

propriedadesessenciaisde um campo.Naverdade,se a tarefaé facilitadapelopróprioautor- que


retomouem várias ocasiõesum conceitoque havia ocupado,desdea décadade 1980,um lugar
central em sua sociologia(BouRDIEU, 1980, 1991) -, ela se tornou difícil pelas minúsculas
inflexõesque_oconceitosofrepor ocasiãode cada utilizaçãoparticular que Bourdieufaz dele.
Os elementosfundamentais é relativamenteinvariantes da definiçãode campo, suscetíveis
de serem extraídos das diferentes obras e artigos do autor sobre a questão,são os seguintes:
• Um campo é um microcosmoincluído no macrocosmoconstituído pelo espaçosocial
global(nacionalou, mais raramente, internacional).
• Cadacampo possui regras do jogo e desafiosespecíficos,irredutíveisàs regras do jogo e
aos desafiosdos outros campos. Por exemplo,o que mobilizaum matemático- e a maneira
comomobiliza - nada tem a ver com o que mobiliza - e a maneira como o faz - um indus-
trial ou um grande costureiro. Os interessessociais são sempre específicosa cada campo e,
CABÍLIA portanto, não se reduzem ao interesse de tipo econômico.
·····························-························································································· • Um campo é um "sistema"ou um "espaço"estruturado de posiçõesocupadaspelos dife-
Ver:Argélia rentesagentesdo campo.As práticas e estratégiasdos agentessó se tornam compreensíveisse
foremrelacionadasàs suas posiçõesno campo.Entre as estratégiasinvariantes,encontra-sea
n. CAMPO oposiçãoentre as estratégiasde conservaçãoe as estratégiasde subversãodo estadoda relação
······················································································································· . de forças existente: as primeiras são mais frequentemente as estratégias dos dominantes,
Bernard Lahire enquantoas segundas correspondemàs dos dominados (e,entre eles,mais particularmente,
dos "recém-chegados"no campo).Essa oposiçãopode assumir a forma de um conflitoentre
É muito raro encontraruma concordânciacientíficade fundo entreo conjuntodas correntes "velhos"e "novos","ortodoxos"e "heterodoxos","conservadores"e "revolucionários",etc.
sociológicasquesedefrontamcomquestõesdosmaisdiferentestipos.Todavia,sehá um fenômeno • Esse espaço é um espaço de lutas, uma arena onde está em jogo uma concorrênciaou
que suscitaa unanimidade,é exatamenteo da diferenciaçãosocialdas atividades.Qualificadas competiçãoentre os agentes que ocupam as diversasposições.
comomodernasou industriais,nossassociedadessão consideradaspelosmais diversosautores • O objetivodessas lutas reside na apropriação do capital específicodo campo (obtenção
comoconjuntoscaracterizadospor uma fortediferenciaçãosocialdas atividadesoufunções.Neste do monopóliodo capital específicolegítimo)e/ou a redefiniçãodesse capital.
aspecto,elassedistinguemdassociedades- quasesempremaislimitadasdopontodevistademo- • Esse capital é desigualmentedistribuído no seio do campo. Por conseguinte,existem,
gráfico- em quea divisãosocialdotrabalhoé infinitamentemenospronunciada.DeAdamSmith nele,dominantes e dominados. A distribuição desigual do capital determina a estrutura do
a PierreBourdieu,passandopor HerbertSpencer,Karl Marx,ÉmileDurkheim,GeorgSimmel, campoque é definido,portanto, pelo estado de uma relaçãode forçashistóricaentre as forças
MaxWeber,MauriceHalbwachs,KarlPolanyi,TalcottParsons,ossociólogosda Escolade Chicago, (agentese instituições)em confronto no campo.
MarshallSahlins,NorbertElias,PeterBergere ThomasLuckmannou Nil<lasLuhmann,todos • Em luta uns contra os outros, todos os agentes de um campo têm, contudo, interesse
concordampelomenosemrelaçãoaofatode queessaheterogeneidade crescentedeveserestudada. em que o campo exista.Elesmantêm, portanto, uma "cumplicidadeobjetiva"para além das
Comsua teoria dos campos,Pierre Bourdieupretendeu propor um modelobastante geral lutas que os opõem.
para pensarmos nossas sociedadesdiferenciadas."Nassociedadesaltamente diferenciadas", • A cada campo correspondeum habitus (sistemade disposiçõesincorporadas)próprio
escreveuele, "o cosmosocial é constituído pelo conjunto desses microcosmossociais relati- do campo (habitus filológico,habitus jurídico, habitus futebolístico,etc.).Apenas os que
vamente autônomos,espaços de relações objetivasque são o lugar de uma lógica e de uma tiverem incorporado o habitus próprio do campo estão em condições de disputar o jogo e
necessidadeespecíficase irredutíveis àquelas que regem os outros campos. Por exemplo,o de acreditar na importância dele.
campo artístico, o campo religioso ou o campo econômico obedecem a lógicas diferentes: • Todocampo possui uma autonomiarelativa:as lutas que se desenrolamem seu interior
o campo econômico emergiu, historicamente, enquanto universo no qual, como se diz, têm uma lógicaprópria, mesmoque o resultado das lutas (econômicas,sociais,políticas,etc.) -
'amigos, amigos,negóciosà parte', business is business, e do qual as relações- envoltasem externas ao campo pese fortementeno desfechodas relaçõesde força internas.
encantamento - de parentesco,amizade e amor são, em princípio, excluídas.Pelocontrário, Essalista de propriedadesdeveser consideradacomoum resumo provisóriodo estado da
o campo artístico constituiu-sena e pela recusa, ou inversão,da lei do lucro material" (R, 73). pesquisana matéria - baseado em uma série (limitada, mesmoquejá importante) de estudos
Bourdieu definiu seu conceitode campo, combinando propriedades pertencentes a uni- de casos,mais ou menosbem conduzidose mais ou menos detalhados- que permite orientar
versos teóricosdiferentes,em particular, os de Durkheim e de Weber.Não é fácil resumir as o pesquisador no decorrer de suas pesquisas.

64 CABÍLIA
CAMPO 65
Bourdieu tinha indubitavelmenteo sentimento de ter feito justiça à especificidadedos d então tais comoaquelarepresentadapelospartidáriosde obras"socialmenteengajadas",ou a
campos,assimcomode ter enfatizadoos invariantesconstitutivosde qualquercampo,ao lutar d:s produtoresmais afinadoscomos públicosampliados,também chamadoscomo"burgueses"
contra o reducionismoeconômicoque vê, em tudo, o interesse de tipo econômicoe a busca ou "comerciais". Recuperava,assim,o universode disputasque os defensoresda "artepela arte",
de maximizaçãodo lucro econômico.Ao mostrar que os interesses,os capitais,as estratégias comoFlaubert,tiveramde enfrentara fim de conseguirimpor seu ponto de vista comoo domi-
e, até mesmo,as formas de luta eram específicosde cada campo, ele permitia efetivamentea nante.Comtal análise,Bourdieudemonstraquea crençana qualidadeformaldas obrasfoigerada
possibilidadede fazer diferenças:"O universo'puro' da ciênciamais 'pura', escreviaele,é um peloprópriocampo artístico,ao longoda trajetóriade disputasentre grupose visõesde mundo
campo social como qualqueroutro, com suas relaçõesde força e seus monopólios,suas lutas distintas.Aohistoricizara gêneseda crençana "autonomiada obrade arte",vendo-acomoresul-
e estratégias,seus interessese suas vantagens,mas no qual todas essas invariantes revestem tado da hegemoniaconquistadapelosdefensoresda arte pura, permite que se reavaliea suposta
formas específicas"(BouRDIEU, 1976,p. 89). Entretanto, o modelo permaneceu insensível universalidadedo paradigmaestéticoformalista,o qualseprojetou,ao longodo séculoXX,como
em relação a outras diferençasque são também cruciais e podem levar a designar,de outro válido,independentementedo tempo e da sociedadeem queas obrasteriam sidoproduzidas.
modo, determinados "campos":o grau de profissionalizaçãodo campo e, em particular, de O campo artístico constitui-se como um espaço estruturado de posições obje~i"~ramente
estabilizaçãodos atores no campo; a relaçãoentre os agentesdo campo e o "público"ao qual definidas,por meio das quais indivíduos,grupos e instituiçõeslutam pelo monopoho da a~-
eles se dirigem ou a quem eles destinam suas produções (obras, discursos, competências, toridade artística, ou seja,pelo direito de definir quem é ou não é artista, controlando entao
etc.); o grau de esoterismo ou exotismo com o qual os agentes do campo podem praticar os critérios de apreciaçãoe legitimaçãodas obras de arte. Comotodos os campos sociais, o
sua atividade, etc. Pode-se falar de "jogo" para designar um "campo secundário" no qual campo artístico é um espaçode forças que se impõe sobre todos os agentes que d~lequerem
a remuneração, a institucionalizaçãoe a profissionalizaçãosão precárias (LAHIRE, 2006). participar. Mas, diferindo dos demais (comoo acadêmico,por exemplo),caract:nza-se_pelo
baixo grau de codificaçãode suas fronteiras; para nele ingressar, os agente~nao preci~a1:1
Referências estarmunidos de diplomasespecíficos,formaçõesescolarespréviasou outros tipos de capitais
BOURDIEU,P. Le champ scientifique.ARSS, n. 2, p. 88-104,1976. formalmente regulamentados. O que está em jogo nesse campo é, justamente, o direito ao
BOURDIEU,P. Quelquespropriétés des champs. ln: Questions de sociologie.Paris: Minuit, 1980. controle de tais fronteiras, ou seja, todos os agentes aí competempor um capital específico:
p. 113-120. o da autoridade artística que lhes permite impor a definição de quem é ou não artista, de
BOURDIEU,P. Le champ littéraire. ARSS, n. 89,p. 3-46, 1991. quemfaz ou não parte desse universo na medida em que suas produçõessão percebidas,ou
LAHIRE,B. La condition littéraíre:la doublevie des écrivains.Paris: La Découverte,2006. não, como propriamente "artísticas".
Valenotar que, para além da definiçãomais geral de um campo de forçasestruturado em
torno de posições em disputa pelo monopólioda autoridade artísti~a, q~e ~ode ser tom_ada
24. CAMPOARTÍSTICO como estruturalmente válida, o campo artístico possui configuraçoesdistmtas que vanam
Ana Paula Símíoni conforme o momento e a sociedade em que se inscreve.No caso da França do século XIX,
a revolução provocada pela imposição do princípio da "arte pura" como o mais legítimo
O conceitode campo artísticocomeçoua ser desenvolvidopor PierreBourdieuem meados implicou a autonomizaçãoplena do campo, isto é, que, doravante, esse passasse a se _carac-
da décadade 1960,tendo comoobjetivodiferenciar-sedas análisesestéticasque dominavamos terizar pelo "princípio econômicoinvertido".Com isso, os julgamentos so~r: ~s qualidades
debatesintelectuaisdo momento.Por um lado,tratava-sede superar as explicaçõessociológicas da obra ocorrem a partir de valores distintos dos econômicos,contra os cntenos do lucro e
caudatáriasdomarxismo(comoas deLukács,Goldmane Hauser)quetendiama reduziras obrasde da aceitaçãodo mercado. Nesse universo afirma-se uma lógicaparticular_por mei~ d~ qual
arte a simples"reflexos"das relaçõessociais,subordinandoos criadoresàs coerçõessociaisde seus os agentesinteressam-sepela defesado" desinteresse"comoum estilo de vida, da c~ia~ao~m
grupossociaise clientela.Por outro,ao ponderara existênciade uma lógicaparticularao campo detrimentoao comércio,da gratuidadeem relaçãoaos rendimentos.Essecampoconstitmassim
artístico,Bourdieunãopretendiasubscreveras teoriasditas"internalistas",as quaispostulamque uma lógica de valorizaçãoprópria, fruto de um desenvolvimentohist_óricode longa dura~ão
as obrassó podemser explicadaspor si mesmas,por meiode seuselementosformais.Paraele,tais no qual as obras de arte foram paulatinamente dissociando-sedo um~erso das mer~a~onas
doutrinastomamcomoevidenteo mito da obra de arte comouma "criação"feitapor um criador triviais. Diferindodessas que são costumeiramenteavaliadaspor sua simplesmatenahdade,
"incriado",aceitandocomofato aquiloque é, na realidade,o produtofinal e mais bem acabado as obras de arte foram sendo consideradasfruto de habilidadesincomensuráveisde um ponto
de um processosociale históricoa ser explicado,a saber,o da autonomizaçãodo campoartístico. de vista exclusivamenteeconômico,por exemplo,pautando-se pela habilidade dos artistas.
Em As regrasda arte, Bourdieudetém-senas transformaçõeslevadasa cabopelo mundo Comoprodutoseminentementesimbólicos,as obrasde arte necessitamde certas condições
literáriofrancêsdo séculoXIX,de sorte a compreendera emergênciade uma nova posiçãoes- parasua execução:a de quesejamfrutodeum atode consagraçao - operado por aiguem' soci·a1me~te
a
tética, da "artepura",exemplarmentepostuladapor GustaveFlaubert.Partindo da análisedo reconhecidocomo capazde efetuarsua transmutação,comoos artistas. Segueque a produçao
romanceA educaçãosentimental,reconstróias posiçõesexistentesno campoliteráriofrancês da obra de arte comouma mercadoriaespecíficadotada de valor singular exigea produçãoda

66 CAMPO ARTISTICO CAMPO ARTISTICO 67


1
crença socialno valor do artista. A sociologiada arte deve,então, debruçar-senão apenas nas em função do volume e da estrutura de capitais detidos por eles e que constituem os recursos
posiçõessociaisconstitutivasdo campo artístico e nos determinantes sociaisque levam certos da ação. A forma de interesse específicono campo científicoconsiste na imposição de uma
artistas a ocuparem certas posições,mas fundamentalmente o modo com que os campos são concepçãoparticular de ciência graças à mobilização 4e recursos aos quais Bourdieu atribui
capazesde produzir os artistas como produtores legítimos de objetos de crença, de valor e de a denominação de "capital científico".
prazer estético.Nesse sentido, a pergunta central deve ser "não o que faz o artista, mas quem Eledistingue,de fato,duas formasde capital:um, "temporal",remetea uma espéciede poder
faz o artista". É o campo que produz a crença na raridade social do produtor e, com isso, no institucionalsobreosmeiosde produçãoe reprodução;enquantoo outro,"científico", estávinculado
valor que sua assinatura é capaz de conferir aos objetos que cria. Assim,para entender a obra ao reconhecimentodos pares, poucoinstitucionalizadoe mais expostoà contestação(USS;SSR).
e seu valor é preciso reconstituir a gêneseda posição e da crença na singularidadedo artista, a Essasduas formasde capitalconhecemdiferentesleis de acúmulo:um, adquire-sepelaprodução
qual é construída por meio de um conluioque envolvea todos os participantes desseuniverso, de contribuiçõesatribuídas ao progressoda ciência,enquantoo outro, obtém-sepela estratégia
como os críticos,colecionadores,historiadoresda arte, museólogos,galeristas,públicos,etc. políticae institucional.Além disso,se o primeiro é dificilmentetransmissível,a transmissãodo
Trabalharcoma noçãodecampoartísticoexigetrêsoperaçõesfundamentais:emprimeirolugar, segundoocorrecom maior facilidade.Aspossibilidadesde conversãode um capitalem um outro
a análisedo campode criaçãocultural em relaçãoao campo do poder,ou seja,uma reflexãosobre sãoigualmenteassimétricas:o capitalcientíficopodepermitir,como decorrerdo tempo,a obtenção
o grau de autonomiaque estepossuino momentoem que está sendoanalisado.Em segundo,uma de créditoseconômicose políticos,mas é mais frequenteobservaragentesdotadosde um elevado
análisede sua estrutura interna, o quesignificao mapeamentodas posiçõesobjetivasaí existentes capitaltemporal obteremcapitalcientíficosem se investirfortementena produçãocientífica.
e as relaçõesentre elas,envolvendoassimuma descriçãoda concorrênciapor legítimidadeqÚeas A existência dessas duas formas de capital confirma o caráter relativo da autonomia do
perpassa.Finalmente,é precisoinvestigara gênesedo habitus de cada um dos ocupantesdessas campo científico. O capital temporal é um indício da dominação burocrática de poderes
posições,posto que as práticasartísticas resultam de uma dialéticaentre as necessidadesestru- temporais (ministérios, administração da pesquisa, instituições econômicas, mídia, etc.)
turais do própriocampoe das açõesexercidaspelosprópriosagentes.Compreenderas trajetórias sobre os campos científicos.A autonomia relativa de um campo depende, portanto, do grau
desses,e os sistemasde disposiçõesinternalizadosque possuem, é fundamentalpara entender de diferenciação da hierarquia segundo a distribuição do capital científico e da hierarquia
suas condutas,se essasatualizarãoou não as potencialidadesinscritasnas posiçõesque ocupam. segundo a distribuição do capital temporal. Quanto mais essas hierarquias estiverem emba-
O conceito de campo artístico tem se mostrado extremamente frutífero para as análises ralhadas, mais a avaliaçãocientíficadas contribuiçõesserá contaminada,por critériosligados
contemporâneas.Metodologicamente permite transcenderas oposiçõesentre as teoriasdetermi- propriamente ao conhecimento das potencialidades sociais dos indivíduos.
nistas e as formalistas,conformejá foi dito. Possuitambém um papel crítico e desmistiiicador: A estrutura do campo científicoé determinada pelo estado das relaçõesde força entre os
ao consideraras lutaspela autoridadeartísticacomoo centro das disputasque envolvemtodos os cientistas,o qual resulta,por sua vez,das lutas anteriorese vai orientar as estratégiasde cadaum.
seus agentes,traz consigoa possibilidadede análisesque se detenham não apenasnas definições, Qualquerespecialistaem ciênciasinvesteem função da sua dotaçãoatual em capitaise de suas
estilos e artistas consagrados,mas em todos aquelesrelegados,inferiorizados,esquecidos,os aspirações- e, por conseguinte,em funçãoda posiçãoefetivaque ocupano campocientíficoe da-
"perdedores"de tais batalhas,os quais,porém,sãofundamentaispara dotar o campo,e suaslutas, quelapretendidapor ele.Destemodo,aspropriedadesestruturaise morfológicasdo campoexercem
de inteligibilidade.O conceitopermite compreendercomo nascem os cânones artísticose, com influênciasobrea configuraçãoda competiçãocientífica.Bourdieuopõedoistipos de estratégias
isso,repensá-los,questioná-los,subvertê-los.É, porém,necessáriolembrarque o conceito,em sua correspondentesa duas categoriasde pesquisadores:os dominantesdesenvolvem"estratégiasde
configuraçãocompleta,nascepara explicaruma realidadehistóricae socialbastante específica, conservação",tendo em vista a perenidadeda ordem científica;de outro lado, Bourdieucoloca
comoa da Françado séculoXIX.Cabeao analistaatualizá-lo,testarseuslimitese potencialidadesà os "recém-chegados"que, desprovidosou muito precariamentedotados em capitaltemporal e
luz dos casos,circunstânciase agentesconcretoscom que se defrontaem sua própriainvestigação. científico,implementam,seja "estratégiasde sucessão",consistindoem "aplicaçõesseguras",seja
"estratégiasde subversão"que têm a ver comescolhasarriscadassuscetíveisde redundar em uma
2s.CAMPOCIENTÍFICO "redefiniçãodosprincípiosde legitimaçãoe da dominação".Enquantoas estratégiasde conservação
······················································································································· vêmreforçara ciênciaoficialem seu funcionamentoe em sua estrutura epistêmica,as estratégias
PascalRagouet de subversãotêm em mira a fundaçãode uma ordem científicaheréticae, ao mesmotempo,dão
a partida a um processode acúmulomedianteuma açãoimpositiva.
O conceito·decampocientífico,expostopelaprimeira vezem 1975,surgiudo distanciamento Em Bourdieu,as práticas dos cientistastornam-se possíveispela existênciade um habitus,
crítico em relação à concepçãopacíficade ciênciadesenvolvidapor Merton (BOURDIEU, 1975, de competências e de interesses específicos.Em Le sens pratique (1980),Bourdieu define a
1976).Pode-se considerar o campo científico como um espaço concorrencial e, ao mesmo noção de habitus como resultado de "condicionamentosassociadosa uma classeparticular de
tempo, como um espaço de integração social.
condiçõesde existência";trata-se de "sistemade disposiçõesduráveise transponíveis,estruturas
Na sociologiade Bourdieu,qualquercampo socialé um espaçode concorrênciaestruturada estruturadas predispostasa funcionar como estruturas estruturantes, ou seja,comoprincípios
em torno de desafiose de interesses espec;íficosno âmago do qual os "agentes"se distribuem geradorese organizadoresde práticase de representaçõesquepodemser objetivamenteadaptadas

68 CAMPOCIENTIFICO 69
CAMPO CIENTÍFICO
a seu objetivosem supor a intençãoconscientede fins, nem o domínio expressodas operações ·26.····CAMPO
··············CULTURAL
···············.............................
·.......................................
E~·i;
-p~;t~~t
necessáriaspara alcançá-los,objetivamente'reguladas'e 'regulares'sem ser em nada o produto
da obediênciaa regras e, sendo tudo ~sso,coletivamenteorquestradas sem ser o produto da Maria Arminda do Nascimento Arruda
ação organizadorade um maestro" (SP,88-89).Essa longa citação poderia credenciara ideia
de que Bourdieunão desenvolve,de modo algum, uma sociologiaque atribua às normas um Ateoria dos camposde Pierre Bourdieu,inspirada na ideiadas esferasda açãode Weber,é,
peso importante na explicaçãodas práticas.Tal pressupostoseria errôneo.Bourdieuadmite a claramente,uma resposta às definiçõesde cultura e sociedadeque algumas correntesteórico-
existênciade regras peculiares da atividadecientífica;no entanto, a capacidadedas mesmas metodológicasdas ciências sociais oferecem.É, por assim dizer, a ferramenta por meio da
para suscitar uma orientaçãodas práticas eruditas depende,em seu entender,das disposições qualé possívelacessara totalidade social,compostapor mundos sociaisdistintos.Aopreferir
interiorizadaspelos cientistas.Dito de outra maneira, a capacidadecoercitivae incitativadas a noção de campo em detrimento de conceitoscomo "grupos","populações","organizações"
normas dependeda capacidadedos agentesde percebê-las,de apreciá-lase de implementá-las.E ou "instituições",Bourdieupretende chamar a atençãopara osjogos de interessese lutas que
Bourdieunão deixade sublinharque essaatividadede percepçãoé inseparavelmenteda ordem modelama existênciado mundo social,apresentando-secomouma metáfora espacial-chave
tanto do conhecimentoquanto do reconhecimentoprático. em sua sociologia.Em suas próprias palavras, a sociologiaé uma espéciede topologiasocial
Em outras palavras, em Bourdieu, a explicação da prática pelas normas se encontra preocupadacom a construção de uma teoria do espaçosocial.
estreitamente articulada a uma explicação pelas disposições: pelo fato de que os agentes Deum só golpe,Bourdieurompecomaquelasrepresentaçõesmaistradicionaisda hierarquia
estão "dispostos" por intermédio de uma aprendizagemsocial - é que eles são "sensíveis" ba~;ea<1as
numavisãopiramidalda sociedade,típicasdomaterialismovulgare,igualmente,
às restrições advindas das normas e podem dar-lhes uma resposta de modo "sensato" ou, coma concepçãode que existe"â' sociedade,um todo homogêneo,um conjuntounificado.O
ainda, mais ou menos apropriado. No agir disposicional descrito por Bourdieu, existe conceitode "campo cultural" é também uma reação contra, basicamente,duas tendências-
uma dimensão interpretativa sob a condição, todavia, de ter em mente a ideia de que as uma sociológica,outra não -, que pesquisamos bens culturais:a primeira é representadapor
latitudes de interpretação são circunscritas. Se é o indivíduo que seleciona e identifica certomarxismo que pensa as manifestaçõesculturais como determinaçõesda infraestrutura
as normas ou as regras a fim de interpretar seu sentido e responder-lhes da maneira que econômicada sociedade-,meros epifenômenos,numa operaçãode reducionismoque nega à
ele julga adequada, essa atividade interpretativa não se desenrola, de modo algum, em cultura qualquerautonomia;a segunda,ao contrário,profundamenteformalista,encaraa arte
um vazio social; o campo tem uma história, no qual usos e tradições se sedimentaram, e a cultura como apartadas da realidadesocial,livresdas influênciasmundanas da sociedadee
e ele se construiu progressivamente a partir de um suporte de crenças aparentemente do conjuntode relações(políticas,econômicase sociais)que a forma, e supostamentedotadas
não questionadas que constituem a base do "jogo" da ciência. E, assim, chega-se aqui à de uma pureza absoluta,comopretendemcertas vertentesda semióticae da semiologia.
noção de illusio. Segundo Bourdieu, a realidade social é formada por três campos principais: o campo
Contrariamente à sociologiafuncionalista de Merton, a qual inscreve a competiçãoem político, o econômico e o cultural ou da produção simbólica. Cada um desses campos é
um quadro meritocrático,cujofuncionamento é pouco discutido, em Bourdieutudo parece, compostopor inúmeros outros subcampos,e tanto os camposquanto os subcampos,embora
à primeira vista, objeto de lutas: o acessoao reconhecimento,mas, também, a definiçãodos apresentemuma história e um desenvolvimentoparticulares, agentes einstituições sociais
critérios que presidem à atribuição desse capital simbólico,as fronteiras das especialidades específicos,lógicas de funcionamento peculiares, exibem "homologias estruturais" entre
e das disciplinas, os critérios de uma boa reprodução das experiências, etc. Entretanto, si, isto é, propriedades comuns, "leis gerais" invariáveis ou "mecanismos universais" que
Bourdieuinsiste no fato de que.há sempre, em um espaçoconcorrencial,realidades que não os estruturam. Os campos são atravessadospor relaçõesde força, por formas específicasde
ocasionam debate, o que ele designa por illusio. A filiação ao campo científicoimpõe aos luta que visam acumular os capitais gerados por cada um dos campos e subcampos, sendo
atores o respeitode princípiosgeradoresconstitutivosde uma espéciede axiomáticaprática, que é a propriedade do capital que vai definir a posição dos dominantes e dos dominados e
cuja incorporaçãocondicionaa participação de cada um no jogo da concorrênciacientífica. do exercíciodo poder de uns sobre outros.
As lutas que contribuem para a estruturação do "campo científico" desenvolvem-se,por O conceitode "campocultural" torna visívelas disputas e os conflitosque constituemum
conseguinte, no respeito de normas que escapam aos conflitos de definição:prestar-se ao dos princípios fundamentais da produção cultural. Ainda que Bourdieu admita a existência
jogo da argumentação e da contra-argumentação,submeter-se à crítica, etc. Trata-se,então, dos subcampos,raramente utiliza o termo, preferindo a expressão"campo"para se referir,a
das condiçõessociais que tornam possívelo conhecimentoobjetivo. rigor, àquilo que seriam os subcamposdo campo cultural, como o literário, o da moda, o do
jornalismo, o da pintura, o científico,o religiosoe outros. Como se disse, cada (sub)campo
Referência
é composto por agentes e instituições sociais específicos:o campo literário, por exemplo,é
formado por escritores, editoras, prêmios literários, academiasliterárias, críticos, editores,
BOUR~IEU,P. La spécificité du champ scientifique et les conditions sociales du progres de la rai-
son. Sociologie et Sociétés, v. 7, n. 1, p. 91-118,1975.[Novaed. Le champ scientifique.ARSS, v. 2/3,
professores;o científico,por cientistas, universidades,centros de pesquisa, divulgadores,e
p. 88-103,1976.]
assim sucessivamentepara cada uma das regiõessociais que formam o campo da produção

CAMPO CULTURAL 71
70 CAMPO CIENTÍFICO
simbólica. Os produtores culturais, proprietários de um elevado capital cultural, encon- são as regras da disputa, elaboradase aceitaspor todos os jogadores - é a illusio do campo
tram-se em disputas constantes, procurando manter e aumentar seu capital simbólico,que ou, simplesmente,a crença nas regras que o fundam e o fundamentam. O segundo equívoco
podem ou não ser reconvertidosem capital monetário. Os bens simbólicosem disputa são o é aqueleque vê Bourdieu apenas como um teórico da reprodução. Se, por um lado, de fato
reconhecimento,o prestígio,o status, a autoridadeem determinada área de atuaçãocultural. o campo cultural reproduz a luta e a dominação de classeque lhe são externas, por outro, a
Os agentesreúnem-se em grupos, formam alianças, elegemadversáriospara levar adiante as dinâmicaintensa das lutas intestinas ao campo geram obras culturais (artísticase científicas)
contendas,cujavitória significaconquistara hegemoniado campo,posicionar-see manter-se extremamente críticas, que abalam certezas e podem oferecerperspectivas alternativas ao
comogrupo dominante, o qual, inevitavelmente,sofrerá a concorrênciaconstantedos grupos status quo, ensejando mudanças internas e externas ao campo.
subordinados.Entronizar-se como grupo ou agente hegemônicosignificaadquirir e exercer
o poder de nomeação, de classificação,atribuindo e distribuindo títulos, rótulos oficiais,
batizando, consagrando certos intelectuais e obras em detrimento de outros. 21. CAMPODAALTACOSTURA
······················································
·································································
Aquele(s)que ocupa(m)a posiçãodominante goza(m)do direito de definir quem é o me- JoséCarlosG. Durand
lhor ou o pior escritor,qual obra é grande ou medíocre, quais músicas devemser ouvidas ou
esquecidas,qual teoria apresenta maior poder explicativo,quais livros devemser lidos - no Tomandoa alta costura como caso particular de bens de luxo, e examinando-acomoum
limite,definir o que é literatura, o que é arte e o que é ciência.O campocultural funcionacomo campo,Bourdieureconstituia históriadas principaismaisons, atentoà sua dinâmicaentre 1945
um sistema hierárquico de classificaçõesque vai do mais ao menos legítimo,constituindo-se e 1975,que foi um período-chavede mudanças.É de 1975a publicação,comYvetteDelsaut,de
numa autêntica arena de lutas por reconhecimento,pelo direito de instituir o que é e o que "Lecouturier et sa griffe: contribution à une théorie de la magie': longoartigo nutrido de
não é culturalmente legítimo, legitimando,por conseguinte, a própria posição dominante. dossiêsdosprincipaiscostureiros,montadosa partir de entrevistase matériasde imprensageral
Autônomos,os campos não se encontram isolados, mas comunicam-seentre si a partir de e de moda.Anode fundação,origemsocialdo fundador,localizaçãona geografiasocialde Paris,
suas áreas de contato, ou seja, existem entre os campos zonas de intersecção ocupadas por estilode decoraçãoda loja (eventualmenteda residênciado costureiro),visual de apresentação
indivíduos e instituições que exercemuma dupla função, agentes duplos que transitam por dasvendedoras,sãoos elementosqueos autorescombinampara mostrar as afinidadesde cada
camposdistintos e realizam as mediaçõese trocas necessáriasentre lógicassociaisdiferentes. um com o público a que serve. Assim como em outros campos, a dipâmica da alta costura
Podemos citar, como ilustração, o caso dos editores, que agem, simultaneamente, no acionauma duplade opostos,no casoa ortodoxiados dominantes,os n'omesconsagrados,que
campo econômicoe no literário; situação semelhante é a do marchand, que serve de elo de insistem em autenticidade,exclusividadee refinamento,e em seus componentesespecíficos:
ligaçãoentre o campo econômicoe o da pintura. Fica claro, assim, que o campo cultural não sobriedade,elegância,equilJbrioe harmonia.E, no polooposto,a heresiados não confirmados,
está livre das influênciase demandas externas oriundas dos demais;contudo,elassão sempre queglorificaa audácia,a liberdadede criação,a juventudee a fantasia.
retraduzidas de acordo com suas regras e princípios organizativos internos, convertendo Quanto à clientela,os dominantes servem às mulheres em "idade canônica" (isto é, ma-
tais demandas e influênciasem problemas,questões,respostas e linguagenssimbólicos.Tal duras) da alta burguesia tradicional e seu discurso respeita o orçamento farto, a discriçãoe
porosidadedeixa evidenteque há uma homologiaentre a estrutura social mais abrangente e o classicismode gosto implícitosem sua cultura de classe.O polo dominante da alta costura
os campos sociais,envolvendo,dessa maneira, o campo cultural na reproduçãodas relações fornece marcas de "classe",marcas que são de rigueur nas cerimônias exclusivasdo culto
e dominação de classe:as diferentesclassese frações de classeestão empenhadas numa luta que a classeburguesa presta a si própria, por meio da celebraçãode sua distinção, sendo os
simbólica para impor a definição de mundo social que mais convém aos seus interesses, costureiros,pois, produtores de emblemasde classe (BouRDIEU; DELSAUT, 1975,p. 29).
e tal disputa pode ser conduzida diretamente, nos conflitos simbólicos da vida cotidiana, Já os costureiros não confirmadoslutam por conquistar outro segmento - a nova bur-
ou indiretamente, por procuração, a partir da luta travada pelos especialistasda produção guesia - representada por mulheres profissionaisliberais ou esposas de executivose altos
simbólica,proprietários do monopólioda violênciasimbólicalegítima. funcionários.Esbeltas,bronzeadas,de corpo cultivado,elasse vestemnão mais para ocasiões
A definiçãode campo cultural de Bourdieu,infelizmente,sofreuleituras equivocadaspor solenes (extraordinárias),mas para o cotidiano, dentro e fora de casa. A elas se agregam as
parte de seus críticos.O primeiro desses equívocosdiz respeito a certo relativismoatribuído jovens da burguesia tradicional, vistas como portadoras de um gosto, de um estilo de vida
a Bourdieu quanto à produção cultural: fruto das disputas pelo poder simbólico, é como e talvez mesmo de um alinhamento político distante ou oposto ao de sua classe de origem,
se as obras culturais fossem desprovidas de virtudes internas, formais, e sua classificação e de orçamento curto. Exemplo:a mulher para quem Courregesdiz costurar é alta, jovem,
dependesseapenas da boa vontade do grupo hegemônicono interior do campo. Na verdade, bronzeada, cabelocurto, limpa, sorridente, radiante (BouRDIEU; DELSAUT, 1975,p. 30).

o que Bourdieunos mostra é que os campos impõem formas específicasde luta; assim, no O queestá emjogona oposiçãoquepolarizao campoda alta costuraé a emergênciade novos
caso do campo cultural, os querelantes, para validar ou invalidar esta ou aquela obra, se signósde distinção.Esportesde elite,turismo em locaisexóticos,residênciassecundárias,dietas
utilizam, comosuas armas, de critériosrigorososde interpretação,avaliaçãoe validação.Por e exercíciosfísicossão,entre outros,sinaisde um aggiornamento do cerimonialtradicionalda
isso,não é qualquerobra, autor ou teoria que recebeo aval dos participantes do campo.Essas distinçãoburguesa,instilando intolerânciaem relaçãoao cerimonialantigo.A novaburguesia

72 CAMPO CULTURAL CAMPO DA ALTACOSTURA 73


aprendeu a desafiar o simbolismopor meio do qual a burguesia tradicional reivindicavasua se limpar, tudo operando de modo prático, constituem um imenso mapa que muito diz da
superioridade;nessesentido,a reestruturação do campo da moda deveser vista comoum equi- origem de classe, da inserção familiar, da identidade de gênero, da posição social passada e
valente (e ao mesmo tempo como efeito)da reestruturação do campo do poder. Com a ressalva presente e do momento no ciclode vida. Sendoo corpo o mais irrefutávellocus de objetivação
de que o ofuscamentodo ritual antigo e o brilho do novojamais podem ser interpretados como do gosto de classe, é impossívelentender a maneira legítima de mantê-lo e apresentá-losem
fim da dominação,mas apenascomoresultadoda reestruturação do campo do poder,na qual o considerar a roupa (a "tenué"). No livro síntese A distinção o autor examina rico e variado
trabalho de dominaçãose reorganizae incorporanovas categoriassociaisque, atravésde novas elencode hábitos de lazer (teatro, cinema,TV,leitura, música, esportes, práticas alimentares)
estratégias,passam a ter acessoaos lucros e aos encantos da existênciaburguesa. para configurar estilos de vida. Observatambém gastosfamiliares com itens de apresentação
A oposição assim construída recobre aquela que distingue "burguês" de "intelectual", social, entre os quais, a vestimenta. Muitas inserções fotográficasconfirmam o interesse de
definindo uma posição "à direita" e outra "à esquerda",retraduzindo na lógicarelativamente Bourdieu em mostrar a relação com o corpo e a roupa na luta pela distinção social.
autônoma do campo da alta costura (e, por extensão, da moda) a clivagemsocial ao mesmo
tempo cultural e econômicaem que se exprime, na contemporaneidade,a luta de classes (ou, Referência
em outro léxico,a divisão do trabalho de dominação e de sua contestação). BOURDIEU,P.;DELSAUT,Y.Le couturier et sa griffe:contribution à une théorie de la magie.ARSS,
Sabe-seque é longoo ciclode consagraçãonas ciênciase nas artes "maiores",comoa pintura n. 1, p. 7-36,jan. 1975.
ou o romance.Quantomais demoradaa consagração,mais fácilé fazercrer que as estratégiasde
artistas e demaisprodutores simbólicossão economicamentedesinteressadas.Só que o campo
da alta costura opera uma temporalidademais curta, cujas "rupturas" devem ocorrer em in- 2s.CAMPO DOPODER
·······················································································································
tervalosregulares,conformeo calendário oficialde desfiles,quando cada maison é obrigadaa FrançoisDenord
mostrar suas novidades,convertendoas do ano anterior ao "fora de moda".Taisrupturas "com
data marcada",a partir das quais se hierarquizam economicamenteos produtos, estão na raiz A noção de "campo do poder" deve ser compreendida em referência a três contextos de
do dégradé de preços que força a comercializaçãoa se aproximar do momento de fabricação. elaboração:a sociologiada classedominante, proposta por Pierre Bourdieuno início dos anos
Bourdieu observa que, do início ao apogeu,o percurso de uma maison é de trinta anos. A 1970;a teoria geral dos campos que ele elabora desde essa época e vai desenvolverao longo
moda, assim como outras artes "menores" (canção,fotografiaou romance popular), situa-se de toda a sua obra; e a sociologiahistórica do Estado esboçada por ele entre o final dos anos
na curta temporalidade dos bens perecíveis, que só produzem efeitos de distinção jogando 1980e meados dos anos 1990.
com diferenças temporais, ou seja, com a mudança. Introduzida em sua sociologia no início dos anos 1970, a noção de campo do poder
Umavez chegadaao apogeu,coloca-seà maison o sério problemada sucessãodo "criador", permite, em primeiro lugar, superar a oposição entre monismo e pluralismo que serve de
ou de comopreservarou aumentar o prestígiodo nome sem ameaçar o faturamentoda casa.No estrutura à sociologiaempírica das elites,desde os anos 1950.Por um lado, alguns sociólogos
fundo, instala-seo confrontoentre o carismada "criação"e a racionalidadeda gestão.O sucessor de inspiração marxista apresentam as elites sob a forma de uma classe dirigente unificada e
não pode ser apenasalguém"criativo";antes, é alguémque precisacultivaro carismade criador consciente de seus interesses; por outro, sociólogosde orientação mais liberal afirmam que
ao mesmo tempo em que garante o respeitopela aura do fundador e assegurasua continuidade. diversos interesses e maneiras de agir coexistem no seio das categorias dirigentes. A esta
O sucessoré, pois, um "criador",mas que não surge a partir do nada, sendo,antes, alguémcom oposição teórica sobrepõe-se uma outra que é de natureza mais metodológica:enquanto os
repertórioe projetodevida sintonizadoscom os do fundador.Eisporque os sucessoresdas casas defensores da unidade estudam a classe dirigente, privilegiando a abordagem monográfica
de alta costura são, em geral, trânsfugas de maisons preexistentes,portadores, em maior ou e o recurso a informantes (a tese desses autores comporta uma dimensão criptológica),os
menor grau, do habitus específicodo campo, capazesde operar a síntese entre o carismáticoe adeptos do pluralismo entregam-se a análises setoriais ou decisórias.
o racional, como,aliás, o modo como é tratado o posto de sucessor: "responsávelda criação". Pierre Bourdieu entendia distanciar-se dessas duas abordagens.Por um lado, considerava
Bourdieue Delsautemprestamde Mausso conceitode magia.A mesmaalquimiada transubs- que a escala da análise pertinente não é o indivíduo, mas o espaçoposicionalque lhe confere
tanciação,que transforma o pão em corpo de Cristo,se verificana possibilidadede alterar para suas propriedades; por outro, ele rejeitavao pressuposto comum ao monismo e ao pluralismo
cima, em preço e aceitaçãoestética,a peça de vestuário feita por terceiros,mas que um acordo segundoo qual a tomada de decisãoimplicauma coordenaçãoconscientedas açõesindividuais.
de licençapermite receberuma etiquetade prestígio.Assim comona religião,o que desencadeia Pelo contrário, ele insistia sobre o papel da socialização na reprodução da estrutura social
essa força não é o trabalho de ninguém isoladamente,mas o campo como espaçode luta entre e sobre a orquestração, "sem maestro", que permite uma similaridade de habitus de classe.
forçascoletivas,por meio de um processode conspiração(collusion) objetivade interesses. A expressão "campo do poder" é usada como sinônimo da expressão"classedominante".
No conjunto de suas pesquisas de campo, Bourdieuprocura mostrar, sempre que possível, Enquantoobjetoempírico,esta se revela,de fato,suficientementediferenciadapara ser analisada
indivíduos de corpo inteiro, pois é na hexis corporelle que se inscrevem melhor as deter- como um campo, isto é, um espaço de posições estruturado por uma distribuição desigual
minações sociais. Reações,gestos, posturas, modos de falar, de andar, de se alimentar e de de capitais, cujo acúmulo constitui um conflito de poder. De maneira mais abstrata, pode-se

CAMPO DO PODER 75
74 CAMPO DA ALTACOSTURA
definir o campo do poder como o espaçoem que se estabeleceo valor relativodos diferentes dominantesdo ponto de vista cultural e dominadaseconomicamente.Nesseespaço,a nobreza
tipos de capitaisque proporcionamum poder sobre o funcionamentodos diferentescampos. do Estado ocupa uma posição intermediária.
O desafiop~culiara esseespaçode lutas é a imposiçãodo princípiolegítimode dominação. Trabalhosrecentesmostramquea desvinculação dopoderpúblicoemrelaçãoà esferaprodutiva
Desdeentão,asestratégiasdereprodução- implementadaspelosdominantesdosdiversoscampos- teveo efeitode levarà aproximaçãoentre o patronatodo Estadoe o patronatodo setorprivado:
comportamuma dimensãosimbólicaquevisalegitimara espéciede capitalem que repousaseu o primeiroperdeu a intensídadecomotal, mas reconverteu-seaos negóciosprivados,enquanto
poder.Eisa razãopelaquala coexistênciaentrepoderestemporaise espirituais,sublinhadajá por o segundoincrementousua formaçãoe ganhou em prestígio.Esseduplomovimentoproduzas
Marxe Engelsem L'Idéologie allemande (MARx;ENGELS, 1976,p. 45)permaneceum invariante desregulamentações, as privatizaçõese o humor ideológicodos anos 1980,além de diminuir os
estruturaldo campodo poder,assimcomode todosos campos.O poder tem necessidadede ser lucrossimbólicosque as fraçõesintelectuaispodiamtirar da exploraçãode seusconhecimentos.
legitimado,de setornar irreconhecívelenquantoarbitráriopara seperpetuar.Existemintelectuais Elasdeixamde ter o monopólioabsolutonessedomínioe sãoafetadasfortementepelorecorrente
(em sentidoamplo)queparticipamassimdos"circuitosde legitimação"da classedominante,cuja questionamentoda cultura clássica.O relativodeclíniodessascategoriasnem por issosignificao
eficáciaserá tanto maior quantomaior for a extensãodessescircuitos:se a proximidadereal ou desaparecimentodo Estado;aliás,os indivíduosmaisvinculadosao públicoé que se encontram
potencialdos membrosda classedominantefosseconhecidapor todos,as formasde legitimação sempreem posiçãode estabelecero vinculoentrepatronato,administraçãoe dirigentespolíticos.
cruzadaa queelesse submetemempúblicoperderiamuma grandeparte da sua eficácia.E se esses A estrutura do campo do poder, na França, na época contemporânea,pode ser analisada
circuitosdelegitimaçãodeixamde aparecerdemaneiratãonítidaé,emparte,porqueosagentesque a partir de quatro critérios principais: a integração no campo econômico; a antiguidade
povoamo campodopoderserevelamfrequentementemultiposicionais. Assim,corre-seo riscode da filiação à burguesia; a proximidade ao Estado; e a visibilidade pública. Notar-se-á que
atribuirsuastomadasde posiçãoa posiçõesàs quaiselassãopoucotributárias(BOLTANSKI, 1973). princípios de divisão comparáveis (pelo menos, os dois citados em primeiro lugar) se re-
Em relação à coabitaçãopraticamente constante entre poderes temporais e espirituais, velam operatórios em outros países. Aliás, eles são bastante semelhantes aos que Bourdieu
a estrutura do campo do poder não é fixa no tempo. Trata-se de um produto do aprofunda- colocouem evidência nos anos 1980.A estrutura do campo do poder resulta sempre deste
mento da divisãodo trabalho social e da emergênciade uma pluralidade de campos sociais. duplo processo: por um lado, de diferenciaçãoe, por outro, de estratificação.No momento
Em seu curso, Sur l'État, Bourdieumostra que o campo do poder está igualme~tevinculado em que o capital econômico se impôs como princípio dominante de classificação,a posse
ao Estado e, ao mesmo tempo, é distinto dele: preexistindo ao Estado, o campo do poder (ou não) de um poder sobre os meios de produção cria a separação entre as elites, cuja
não deixa de enfrentar em seu âmago o controle do Estado como um de seus desafiosprin- hierarquização está sempre, por sua vez, estreitamente vinculada àantiguidade na classe.
cipais. Com efeito,o Estado apropriou-seprogressivamentedo monopólio do uso legítimo Esta permite evitar o recurso a longasestratégias de reproduçãona transmissão dos poderes
da violênciafísica e simbólica;portanto, possui a capacidade de tomar medidas suscetíveis e oferece,com menor dispêndio, uma parte não desprezíveldo capital simbólico familiar.
de modificar o valor relativodas diferentesespéciesde capital. Esse metacapital constitui o
objetode uma concorrênciano cerne dessemetacampo, que é o campo do poder. Para expli- Referências
cá-lo,Bourdieudescreveo longoprocesso que, desde o século XII até a RevoluçãoFrancesa, MARX,K.; ENGELS,F. L'Idéologie allemande. Paris: Sociales,1976.
assistiu ao confronto entre nobreza armada e nobreza togada, entre o rei e o Parlamento. O BOLTANSKI, L. L'Espacepositionnel:multiplicité des positions institutionnelles et habitus de classe.
campo do poder tira sua dinâmica interna da oposiçãoentre dois modos de reprodução:por Revue Française de Sociologie, p. 3-26,jan./mars 1973.
um lado, a reproduçãohereditária e, por outro, a reproduçãoburocrática.O desenvolvimento DENORD,F.; LAGNEAU-YMONET, P.; TRINE, S. Le champ du pouvoir en France. ARSS, n. 190,
da instrução e o aumento do número de assalariados da função pública, cuja autoridade se dez. 2011.
baseia na competência, põem em causa a hereditariedade assente nos laços de sangue. A HJELLBREKKE, J.; LE ROUX,B.;KORSNES,O.;LEBARON,F.;ROSENLUND,L.; ROUANET,H. Toe
autonomizaçãode um campo buroáático (o Estado) e a constituição correlata dos "grands Norwegian Field of Power Anno 2000. European Societies, n. 2, p. 245-273,2007.
corps" desfazem,em parte, a contradição entre esses dois modos de reprodução.Uma nova
nobrezase constituiem nome de suas competênciasescolaresque são garantidaspeloEstado.
Bourdieudedicounumerosostrabalhos ao estudo das Grandes Écoles - bastante seletivas 29. CAMPOECONÔMICO
·······················································································································
do ponto de vista social- que alimentamos "grandscorps"do Estado.O campodessas"écoles" Frédéric Lebaron
e o campo do poder revelamum funcionamentohomólogo:em seu livro,La noblesse d'État,
ele mostra que ambos têm uma estrutura quiasmática. A distribuição segundo a desigual Antes de se servir da locução"campo econômico",Bourdieu- ao trabalhar, no final dos
dotação em capital econômicoé cruzada com a distribuição segundo o capital cultural pos- anos 1950,sobreas estruturas econômicase sociaisda Argélia- utilizade preferênciaos termos
suído que, por sua vez, hierarquiza os campos segundo uma ordem inversa. Desse modo, o "sistemà' ou "cosmos"econômico,designandocomissoum universorelativamente"fechado",
campo do poder seria organizadopela oposiçãoentre posiçõesdominantes do ponto de vista regido por uma "lei" própria ("nomos").O cosmos"capitalista"teria, mais particularmente,
econômicoou temporal, mas dominadas culturalmente, por um lado e, por outro, posições uma tendênciaà expansãoe esta teria o efeitode destruir as estruturas sociais"tradicionais",

76 CAMPO DO PODER CAMPOECONÔMICO 77


r--~;-----~,----------'----:··---------------'---

vez, se impõe. A illusio econômicapode ser definida como a crença,mais ou menos exposta
mesmo que fossem altamente sofisticadase milenares, tais como as da Cabília.Essa visão
claramente,na necessidadede maximizar os lucros monetários. A teoria neoclássicaé falsa
("expansionista"e "destrutiva")da ordem econômicacapitalistasubentende sua concepção
ao atribuir comportamentosque os atoreseconômicossão incapazesde ter: a "racionalidade"
da "inserção social da economià' ("embeddedness").Ela está em coerênciacom sua análise
desses atores está mais próxima do "razoável"que do estrito cálculoracional, enquanto sua
sociopolítica,desenvolvidanos anos 1990,da ameaça que a dominaçãoda ordem econômica
prática está baseada em uni senso prático, senso de orientação impreciso.Contudo, a "ver-
faz pairar sobre os campos mais autônomos (ciência,arte ...) e, até mesmo, sobre universos
dade" da teoria neoclássicase mantém pelo fato de retraduzir, de forma bastante fidedigna
commenor autonomia,tais comoa funçãopúblicae o jornalismo.No entanto,a imposiçãodo
em seu princípio, sob uma forma escolástica,a illusio particular do campo econômico.Ela
cos~os capitalistatornou-sepossível,para Bourdieu,na Argélia,assim como na globalização
a "consolida","separando"a racionalidade"econômicà'de qualquer outra lógicacom a qual
neoliberalcontemporânea,pelaviolênciasociale políticada colonização.Alémdisso,as análises
ela está sempre intimamente ligada. Deste modo, no ponto em que a teoria neoclássicafor-
da eco~omiade mercadonunca serão dissociadaspor Bourdieude sua sociologiado Estado,
mula a hipótese de um ator consciente,transparente a si próprio em relaçãoa seus objetivos,
comoe demonstradooportunamentepelapublicaçãode seu curso Sur l'État,no iníciode 2012.
preferênciase escolhas,ela radicalizauma visão implícitaque subentendea ação dos agentes
A existência do campo econômicoé o resultado de um processo de autonomização que
econômicose tende, nos universos"maisracionalizados",a aproximar-sedesseideal-tiposem
~evoua :ógicaeconômicaa definir-sesob uma forma tautológica:"amigos,amigos,negócios
nunca, todavia, ser capaz de alcançá-lo.Elaparticipa assim do trabalho geralde submissão
a parte , como todos os outros campos, segundo as análises desenvolvidas em seu livro
da ordem socialàs lógicasdominantesdo universoeconômico.Um dos resultadosda pesquisa
Raison_spratiques (1994).~sse processo, próximo do "desencastramento" analisado por
sobreo mercadoimobiliário,levadaa efeitonos anos 1980,consistiuem colocarem evidência
Polany1(1983),tornou autonoma uma ordem da realidade social - a ordem econômica-,
o papel decisivoda política e das lutas políticas no processo de construção de um mercado.
por ter tornado autônoma uma illusio, uma crença particular no valor do jogo, uma
Em vez de se contentar em regulamentar o mercado, o Estado o constrói, organiza e define
forma de libido, de energia específicaque impele os atores econômicos,sejam eles quais
em sua estrutura e em suas funções.Procedendodeste modo, ele modifica,de maneira mais
forem, a maximizar seu ganho individual. A extensão dessa illusio é o produto de um
ou menos irreversível,o processode desenvolvimentoeconômico.Aoreavaliaros fatorespolí-
longo processo conflitante no qual o Estado desempenhou um papel decisivo,mediante a
ticos na construçãosocialda economia,Bourdieuquestionaa representação- daí em diante,
unificaçãomonetária, a edificaçãode um monopólio fiscal, em suma, graças à constituição
muito dominante -, segundo a qual o processo de "mundialização'\ tal como se desenvolve
de um espaço relativamente estabilizado de trocas e de circulação monetária (SSE,24-26).
hoje, seria inelutávele natural. A sociologiada economiadesfataliza a ordem econômicae,
1:ªs. a ~dade mais profundado campoeconômicoestávinculadaao fatode que os agentes
ao mesmo tempo, colocaem evidênciasua lentidão e suas forças de inércia que têm origem
econoID1cos Jogamo mesmojogo,lutampelomesmoobjetivo,etc.O ethoseconômico"racional"
nos habitus econômicose nos sistemasde crenças que lhes são inerentes.
(a lei do campo econômico)tevetendênciaa difundir-see a generalizar-se,mas de acordocom
dete~inadas condiçõeseconômicasparticulares,como é demonstradoa partir do exemploda
Cabilia(A60,83-116).Duranteessemesmoprocessohistórico,instalam-seasinstituiçõese aspráticas Referência
POLANYI,K.La grande transformation:aux originespolitiques et économiquesde notre temps.
associadasà ordemcapitalista"moderna":o empréstimoajuros,o sistemafinanceiroe astécnicas
bancárias,a contabilidade,a oposiçãotrabalho/lazersob sua forma"moderna",o assalariado,etc. Paris: Gallimard, 1983.
Paralelamente,desenvolvem-seas predisposiçõesao cálculo,à antecipação,ao acúmulo,à
poupança,etc.,que estãoassociadasao funcionamento"normal"desseuniversoe pressupõem 30. CAMPO
ESPORTIVO
um mínimo de capitais(econômico,cultural,social).A existênciade universosantieconômicos- ·······················································································································
WanderleyMarchiJúnior
ou seja,de espaçosem que a busca de capitalsimbólicorepousa em um recalqueda economia
monetária (campoartístico,campo científico,campo burocrático...) - mostra até que ponto a
Pierre Bourdieupreconizavauma forma particular de entender o esporte moderno. Para
illusioeconômicaé apenasum caso particular de investimentoem um jogo social.
ele, as manifestações que compõem o fenômeno esportivo ocupam um espaço de práticas
O campo econômicoé um universode lutas incessantes.Atémesmono interior do campo
sociais denominado campo, no qual se atribuem posiçõescompatíveiscom o capital social,
das empresas,as lutas de concorrênciatêm uma dimensãosimbólica:o dominanteimpõe sua
econômico ou cultural de cada componente. No interior desse espaço, existem formas de
definiçãodo jogo,suas escolhas,sua concepçãodo produto, etc. Todasas estratégiasdo domi-
disputas, lutas e concorrência na busca pela hegemonia de determinadas práticas, além
nante têm em vista reforçarsua posição,apoiando-seem todos os recursospossíveis,incluindo
da distinção social das pessoas envolvidas, conforme o seu potencial de poder simbólico.
todosos recursospropriamentesimbólicos(criaçãode marcas,etc.).Oprópriocampopatronalé
Para o esporte moderno, Bourdieu reserva a caracterizaçãode uma prática, introjetada
atravessadopor lutasentre detentoresde formasdiferentesde capital em particular,de capitais
na formação da sociedade, que respeita os contornos da lógica mercantil estabelecidano
escolares- associadasa trajetóriasdiferenciadase a disposiçõesdiferentesquelhessãoinerentes.
universo das relaçõeshumanas. Nessesentido, defineque o principal responsávelpelomovi-
A teoria econômica neoclássica é uma formalização, uma racionalização erudita da
mento dessa engrenagemé a relaçãoconstruída entre a oferta e a demanda por determinadas
illusio do campo econômico,tanto mais forte em uma sociedadeem que essa illusio,por sua
CAMPO ESPORTIVO 79
78 CAMPO ECONÔMICO
práticas culturais. O conjunto dessas relações pode ser comparado, analogicamente, aos estudos de um "subespaço"no interior de um espaço,de um subcampo em um campo ou de
pressupostose leis que regem o mercado de produtos e consumidores.Pode-seincluir nessa uma modalidade no universo dos esportes (~BS;82-121;QSp,127-135;CDp,208-213).
análise o estabelecimentode processosde concorrêncianas configuraçõesou campossociais. Há,na análisedo sociólogofrancês,um pressupostode queo campoesportivocontribuipara
Dessemodo, o esporte é tido como um produto que respeita e reflete as estratégiasmer- produzira necessidadedeseusprópriosprodutos;entretanto,elanãodesconsidera alógicadaprática
cadológicasque a sociedademoderna define por conta das inúmeras formas de intervenção esportivainscritapela unidadé de disposiçõespertinentesa uma fraçãode classe.Assimsendo,
e inserção social.A dinâmica instalada nesse campo goza de determinada autonomia,pois, percebemosque no campo esportivosão estabelecidasrelaçõesestruturantesentre disposições
segundoo autor,cada campo constróisuas própriasleis funcionais,sua cronologiaespecíficae sociaise a composiçãoda ofertae demandade um esporte.Acrescenta-sea essecontexto,como .
seus objetosde disputa, que refletemposiçõessociaise estilosde vida. Bourdieuentendeque, destacadoinicialmente,a efetivaçãodas transformaçõesocorridasnas modalidadesno decorrer
para discutirmos o desenvolvimentodas modalidades esportivas,temos que tê-las inseridas da suahistória.Bourdieuanalisaessemote,considerando:"[ ...] queo princípiodastransformações
no processo de mercantilização,o qual determina as estruturas constituintes da sociedade das práticase dos consumosesportivosdeveser buscadona relaçãoentre as transformaçõesda
e as relaçõesque são estabelecidasno interior dos campos. ofertae as transformaçõesda demanda:as transformaçõesda oferta(invençãoou importaçãode
Assim sendo, o surgimento, as transformações e a evoluçãodos esportes são estudados esportesou de equipamentosnovos,reinterpretaçãodos esportesou jogosantigos,etc.)são en-
a partir de uma proposta de leitura da história estrutural relativamenteautônoma das mo- gendradasnas lutasde concorrênciapelaimposiçãoda práticaesportivalegítimae pelaconquista
dalidades.A análise da constituição do campo esportivo deve estar associada,diretamente, da clientelados praticantescomuns(proselitismoesportivo),lutas entre diferentesesportese, no
ao espaçosocial em que as manifestaçõesesportivas construíram suas estruturas. Sobre as interiorde cadaesporte,entre as diferentesescolasou tradições(porexemplo,esquide pista,fora
transições e transformações do esporte, Bourdieu é incisivo:"Pareceindiscutívelque a pas- da pista,de fundo,etc.),lutasentreas diferentescategoriasde agentesengajadosnestaconcorrência
sagemdojogo ao esportepropriamentedito tenha se realizadonas grandes escolasreservadas (esportistasde altonível,treinadores,professoresde ginástica,fabricantede equipamentos,etc.);as
às "elites" da sociedadeburguesa, nas public schools inglesas, onde os filhos das famílias transformaçõesda demandasãouma dimensãoda transformaçãodosestilosdevidae obedecem,
da aristocraciaou da grande burguesia retomaram algunsjogos populares,isto é, vulgares, portanto,às leisgeraisdestatransformação"(QSp,152).
impondo-lhesuma mudança de significadoe de função muito parecida àquela que o campo O campo esportivo-comouma noção que permite variadas perspectivasde análise deve
da música erudita impôs às danças populares, bourrées,gavotase sarabandas, para fazê-las ser contextualizado em relação a outros conceitos geradores, tais coi;nohabitus, campo e
assumir formas eruditas como a suíte" (QSp,139,grifos do original). capital, além de considerar que o autor trabalhou essa definição coi:nas perspectivas do
Objetivamente, podemosdizerqueBourdieuadmitea constituiçãodocampoesportivoa partir esporte moderno e que, talvez, a contemporaneidadedo objeto, alocada, por exemplo,nas
da evolução,ruptura e transformaçãodos antigosjogospopularesem esportesmodernos,estes questões da globalização,da mundialização das práticas culturais e da inexorávelinserção
detentoresde especificidadesmercantise convergentespara um modeloestrutural de sociedade socioeconômicados legadose megaeventosesportivosem dimensõesplanetárias tenha dado
de consumo.Entretanto,esseprocessode transiçãonão é o únicoexistenteno estabelecimento das outras possíveisdimensõespara repensarmos,senão a definição,pelo menos o conjunto dos
manifestaçõesesportivas.Houvealgumasmodalidadesqueforaminventadassema necessidadede contornos e de relaçõessociais estabelecidasno campo esportivo.
respeitarum processoevolutivoda formaprimáriado jogopopularou passatempoaristocrático.
Os esportes modernos, sejam eles invenção ou manifestação evolutiva de jogos popu- 31. CAMPOFILOSÓFICO
lares, segundo Bourdieu, são práticas institucionais construídas para agentes sociais com ·······················································································································
Louis Pinto
variado e distintivo potencialde consumo, o qual é manifestado pelas demandas no interior
do campo. Nesse contexto, a complexidadedo fenômeno esportivo passa a ser regido pelas
franceses,PierreBourdieuseguiuum cursusuniversitário
À semelhançade outrossociólogos
relaçõespróprias da lógicado mercado nas quais os esportes são conduzidosao processode
defilosofia(ÉcoleNormale Supérieure,agrégation) quelheforneceuumagrandefamiliaridadecom
espetacularizaçãoe mercantilização.
autoresclássicos,tais comoPlatão,Descartes,Pascal,Spinoza,Leibniz,Hume,Kante Hegel.Para
Para entender essa dinâmica e lógica do campo esportivo, Bourdieu afirma que é ne-
os aprendizesfilósofosde sua geração,o espaçodasproblemáticasestavaestruturadopelaoposição
cessário o reconhecimento da posição que determinada modalidade ocupa no espaço dos
entre o polo da fenomenologia(Husserl,Heidegger,Sartre,Merleau-Ponty)e o da epistemologia
esportes.Esse espaço,ou campo, é identificadopor um conjunto de indicadores,tais como:a
francesa (Bachelard,Canguilhem)- oposiçãoque permaneceuimportante em seus trabalhos
relaçãodos praticantes e determinadas modalidadesconformesua posiçãoou extrato social;
de sociólogomedianteo binômioobjetivismo-sµbjetivismo. Maistarde, os autoresanglo-saxões
as diferentes representatividades federativas; o número de praticantes e seus respectivos
contemporâneostomaramparte crescenteem suareflexão(especialmente, Wittgensteine Austin).
capitais;as característicaspolítico-sociaisdos dirigentes; o tipo de relaçãocom o corpo que
Apesar de não ter construído uma teoria do campo filosófico como tal, Pierre Bour-
determinados esportes exigem (de contato ou de interposição com bola). O passo seguinte
dieu forneceu numerosas análises tanto conceituais(sobre o campo, as disciplinas)quanto
é relacionar no campo esportivoa manifestação do seu espaço social,representado em seus
concretas.Osfilósofossãoindivíduosqueocupamasposiçõesinscritasem determinadoestadodo
elementosde distinção e "gostosde classe".Para tanto, o autor considera a possibilidadede
CAMPO FILOSÓFICO 81
80 C.AMPOESPORTIVO
campo:dotadosdedesafiosespecíficos, visamimporuma definiçãolegítimada filosofiaajustadaao Outradescriçãodo campofilosóficofoiesboçadapor Bourdieuno seulivrosobreHeidegger.
tipo de capital(científico,
literário,religioso,etc.)que elesdetêm.Apóso séculoXIX,a instituição Umdosobjetivosdessefilósofoconsistiuemsubverterashierarquias,impondouma novaformade
universitáriapareceter conseguidomonopolizar,não só a formaçãodos filósofos,o percursode filosofar:eranecessárioarrancara filosofiaàs ciênciassociais,radicalizandocontraessasciênciasa
suascarreiras,mastambéma definiçãodosprogramas,a listados autorescanônicos,o conteúdoe críticaque elaspodiamfazerdaphilosophiaperennise,maisprecisamente,inscrevendoo tempo
a formadosexercíciosescolares(dissertação,tese).Dizerquea filosofiafuncionacomoum campo no âmagodo Ser.Heideggersalvavaa filosofia,medianteessesaltoparadoxal,do relativismohis-
significaque ela tem a garantiade certa autonomia,a qual supõe a delimitaçãode fronteiras,a toricista,assegurando-lhea preeminênciana ordemdo pensamentofundamental,dopensamento
ruptura comos interessesexteriores,a constituiçãode desafiosinternos,a existênciade um elenco dofundamento("ontologia-fundamental"). Aoreinterpretara fenomenologia, Heideggerdesfazia
de profissionaisdedicadosao tratamentode objetospróprios.O valorfilosóficode um problema 0
vínculo com o racionalismo cartesiano,
do qual Husserlera herdeiro,e questionava diretamente
ou de um autor é aquiloque é reconhecidopelosprofissionaispossuidoresdos saberesdistintos a hegemoniado neokantismo,outra correnteracionalistaque tendia a reduzir a filosofiaa uma
do senso comum (uma filosofiado senso comumnão é o senso comum).Mas, essa autonomia "teoriado conhecimento"e da cultura.A razão,o espaçoe o tempo"objetivos", o sujeitoe o objeto
é fundamentalmenteambígua:por um lado,ela permite a formaçãode um domínioseparado, da tradiçãofilosóficaestavamdesvalorizadosem benefíciode uma experiênciamais "originárià':
voltadoexpressamentepara objetosespecíficos.E, por outro,elapode ser menosreal queformal: a do "estar-no-mundo",da finitude,da angústia,etc. Mas o sucessode Heideggernão pode ser
o estatutofilosóficodo discursopode ser tributárioapenasdo que Bourdieudesignacomouma compreendidounicamenteno campofilosófico:no cernedeste,o pensadorreproduzum sistema
"retóricado corte falso",recurso destinado a dissimular a reinscriçãode conteúdosprofanos de oposiçõeshomólogoàqueleque está presenteentre os pensadoresalemães"revolucionários-
(ideológicos)no campofilosóficosob as aparênciasde qualidadefilosófica. conservadores"da época - Spengler,Moellervan den Bruck,Jünger -, que refutavamtanto o
Espaço diferenciado, o campo filosóficoé um lugar de lutas entre profissionais. A se- conservadorismotradicionalistaquanto o pensamentoprogressista.Bourdieuesforça-sepor
melhança do que ocorre em qualquer campo, podem-se analisar hierarquias, inversão de mostrar o caráteressencialmenteequivocadodo discursoheideggerianoconstruídoa partir de
hierarquias, estratégias intelectuais (combinadascom estratégias institucionais, editoriais, "significaçõessuspeitas"que podem ser apreendidasem um registropolíticoordinário (c~tica
políticas,etc.).Em sua tentativapara "reconstruir o espaçodos possíveis"no campo filosófico das massas,do socialismo,do intelectualismo,dosjudeus)e, simultaneamente,em um registro
dos anos 1950,Pierre Bourdieu refere-sea uma clivagemobservadapelos contemporâneos: propriamentefilosófico(o ser contra o ente,a ontologiacontra o naturalismo).Heideggerlevaa
por um lado, Jean-PaulSartre, "intelectual total" que ocupavauma posiçãodominante, mas seuápicecertasvirtualidadesdo discursofilosóficoque,graçasaosmeiosda" eufemização",pode
ambígua (consideradademasiadomundana) e MauriceMerleau-Ponty,propenso "a conceber dizeras coisasdizendoque não as diz.Dessemodo,tirando partido das raízesdo termo "Sorge",
a fenomenologiacomouma ciênciarigorosa"aberta às ciênciashumanas. E, por outro, "uma erigidoem conceitoontológico(a"Apreensão" comodimensãofundamentaldoDa-sein,estar-aí),
história da filosofiamuito estreitamenteligada à história das ciências","uma epistemologia a críticafilosóficada assistência(Fürsorge),
do "alguém",da "tagarelagem"- termosquetêm como
e uma história das ciênciasrepresentadaspor autores,tais como GastonBachelard,Georges antagônicosa existência-autêntica(Eigentlichkeit)e a resolução(Entschluss)diante d~ morte
Canguilheme AlexandreKoyré".Essa clivagemnão deveser autonomizada,mas relacionada assumida- permitetransfigurar,em uma formaelevadae inatacável,um velhotema do discurso
às condiçõessociaisde produção das hierarquias filosóficas:os lugaresmais prestigiosossão conservador,a críticapolíticada segurançasocial(Sozialfürsorge) e do bem-estar.
a "khâgne" e a ÉcoleNormaleSupérieure,que contribuempara a integraçãológicae ética de A atençãoatribuídaàs palavrasmostra comoo corteentre abordagemexternae abordagem
uma "nobreza escolar",inculcando um senso da proeminência ou da profundidade através interna é inapropriada à sociologiada filosofiaque deve aplicar-se a descrevero funciona-
do culto de pensadoresproféticos(Heidegger)e um desdém pelos objetostriviais, empíricos, mento do campo filosóficoe, ao mesmo tempo, a considerar sua autonomia sem deixar de
escolaresou simplesmenteeruditos. Destemodo, a "improvisaçãoretórica" do aprendiz e as estar continuamente em jogo através dos compromissos com forças exteriores ao campo,
"exibiçõesteatralizadas da improvisaçãofilosófica"do mestre são instrumentos de apren- além das importações de temas e de ideias.
dizagem, graças aos quais são adquiridos um senso da posição no espaço intelectual, uma
doxa e um espaçode assuntos e de maneiras de pensar que evitem a transgressão e sejam
32. CAMPOINTELECTUAL
a garantia de elevadasambições.Toda a lógica do campo transformava o polo racionalista ·······················································································································
ChristopheCharle
da história das ciênciasem uma região dominada, votada à "submissãoao modelo filosófico
dominante".Apesardas aparências,a referênciaà ciêncianos anos 1960(Althusser,Foucault)
não assinala, segundo Bourdieu, uma ruptura com essa dominação: tal postura liberta os Bourdieuelaborouo conceitode campointelectual- noçãoquevai desempenharum papel
filósofosdas condicionantesda herança acadêmica e metafísica sem impor-lhes uma con- cadavez mais importante em seu método de pesquisae em seus trabalhos da maturidade - a
versão total, tampouco uma renúncia às vantagens do aristocratismo filosófico.Eis o que é partir de 1966, com o artigo "Champ intellectuel et projet créateur" e, depois, em 1971,
testemun,hadopelo "efeito-logià'que consiste em dar as aparências da ciência a uma nova "Champ du pouvoir,champ intellectuelet habitus de classe".Esses dois artigos, focalizados
disciplina("arqueologia","gramatologia")constituídacom o objetivode contornar as ciências na sociologiado campoliterário - cujainsuficiênciafoi criticada,mais tarde, por Bourdieu-,
sociais e remetê-lasàs zonas inferiores da empiria. foram completadose corrigidospor suas duas importantes contribuiçõessobreoutros espaços

CAMPO INTELECTUAL 83
82 CAMPO FILOSÓFICO
simbólicos,o campo religiosoe o campo artístico, permitindo generalizar essasproposições subordinaçãoe renunciam a defendersua autonomiaestéticacontra as injunçõesdo mercado.
ao campointelectualglobal:"Uneinterprétation de la théorie de Ia religionselonMaxWeber" Mas a exaltaçãoda literatura pura e artística, em Flaubert,não se limita à deploraçãode uma
e "Le marché des biens symboliques". ordem simbólica caduca (e, em parte, mítica, uma vez que o antigo regime literário estava
Comesseconceito,trata-sede rompercomuma sociologiaque estabeleceuma relaçãodireta submetidoa outras formas de restrições,como ficou demonstradopelos trabalhos de Alain
- como faziaa sociologiada literatura marxista na época (GyõrgyLukàcs,LucienGoldmann) Viala,DanielRocheou Robertbarnton sobreos séculosXVIIe XVIII).Seo autor de Madame
ou o funcionalismo- entre interesse de classe,por um lado e, por outro, orientaçõesideo- Bovaryrejeitao compromissoou o profetismoda geraçãoromântica,esfaceladapelofracassoda
lógicas e intelectuais. Essa abordagem questiona igualmente a tradição letrada, idealista e Revoluçãode 1848,e, em suas obrasmais célebres,trabalha a denúnciadas ilusõesromânticas,
intelectualista, dominante desde sempre no estudo desses temas: ela limita a interpretação elefixatambém a seu empreendimentouma ambiçãocríticae irônicada literaturade consumo
dos conflitosintelectuais a um conflitode ideias puras, autônoma em relação aos contextos correntepor uma escrita desconcertanteque embaralha os códigosestabelecidos.Trata-sede
mais amplos,privilegiandoo estudo do discurso,a exegesedos textos e a abordagemherme- outramaneira, intrínsecaao trabalho do escritor,de reivindiçara autonomiaem relaçãoa todas
nêutica enfática.A vulgarizaçãoda expressão"campointelectual",nos últimos trinta anos, à as convençõesestabelecidasdo campoliteráriocontemporâneo.Essaduplanegaçãoe essadupla
medida de seu sucessoe das discussõesque ela suscitou no cerne das disciplinasenvolvidas reivindicaçãoexplicamque a Éducation sentimentale (1869)- romanceamplamentebaseado
e, frequentemente,hostis (história da filosofia,história das ideias,história da literatura, his- em uma autoanálisede Flaubert e em uma reconstituiçãofeita pelo romancista da principal
tória da arte, etc.),manifestoutendência a fazer-lheperder várias de suas virtudes críticas e criseatravessadapelaFrançaem torno de 1848- propõepraticamenteuma análisesociológica
incômodasiniciais,transformando-aem uma noção puramente descritivaque reduz "campo das relaçõesentre campo intelectuale campo do poder, na França de meadosdo séculoXIX,
intelectual"à "vidaintelectual"ou "esferaintelectual"e, até mesmo,intelligentsia.Tratava-se atravésdo conjuntodos personagense de suas trajetórias.Essaprimeira aplicaçãodo método
de fato,para Bourdieu- e trata-se sempre,se pretendemosser fiéisà sua inspiraçãoatravésdo de análise em termos de campo intelectualserá prolongadae aprofundadano livro Les regles
uso rigorosodesteconceito-, de elaborarcom eleum questionárioe um programade pesquisa de l'art (1992),integrando as contribuiçõesdos trabalhos de igual inspiraçãode C. Charle,R.
para testar diversashipóteses:em tal período ou em tal contextogeográfico,será que se pode Pontone A.-M.Tuiessesobreo campointelectuale literáriono final do séculoXIXe suscitando
identificar,ou não, um campo intelectual (ou literário), ou seja, um conjunto de posiçõese outras pesquisas que hão de aperfeiçoare enriquecero esquemageral e as hipótesesiniciais
oposiçõesentre grupos (intelectuais)em luta pela hegemoniae pela autonomiarelativamente sobreoutros períodoscomplexos,tais comoos da Guerrade 1940e da Lib~ração(SAPIRO'. 1999)
a outros grupos (intelectuaisou não)?Em que desafiosse baseiam suas oposiçõese debates? ou comparar o campoliterário e intelectualna Françacom outros camposde outros pa1sesou
De que maneira tem sido sua evolução?Serãoeles específicos,como ocorre em determinados de outras épocas (cf.VIALA,1985;CHARLE, 1996;OP;CASANOVA, 1999).
campos científicosou ainda heteronômicoscomo é o caso nos domínios que dizem respeito Tais ampliaçõespermitiram avaliar em melhores condiçõesas especificidadesda evolu-
mais de perto ao poder e à economia?Que trunfos, disposições,caraterísticasdos produtores ção dos diferentes campos intelectuais em diferentes países e os fenômenosde dominação
em concorrênciaexplicamsuas trajetórias,sucessose fracassos,tomadas de posição?Qual a entre eles, em conformidade com os subconjuntos (campo universitário, campo literário,
margem de liberdadeà disposiçãodessecampo intelectualem relaçãoao campo do poder, ao campo artístico, etc.).O processode autonomização,se estiverativo em toda a parte, assume
campo econômico,ao campo religioso,etc.?Em que sentido evoluiessa margem, segundo as formas e segue caminhos fortemente divergentes, até mesmo em nações aparentemente
conjunturashistóricas?Respondera essasquestõespressupõe,por conseguinte,diferentestipos próximas. Ele nunca será definitivamente alcançado e pode passar por questionamentos
de pesquisascomplementares:morfológicas,sociológicas,ideológicase políticas.Issoimplica, radicais, inclusive, na França (na época do governo de Vichy) ou nos Estados Unidos (no
por exemplo,estabelecerbiografiassociais (isto é, construídas),cruzadas e comparadas,dos período do macarthismo). Ora, essas duas nações não deixam, no entanto, de reivindic~r,
principais intelectuais;análisesinstitucionaisdas instâncias de legitimação,de produção ou desde o século XVIII, seu papel de vanguarda nesses domínios. A abordagem transnac10-
de reproduçãodas posiçõesno campo intelectual;estabelecimentode múltiplasrelaçõesentre nal permitiu também destacar a importância dos fenômenos de dominação cultural entre
essesdiversosfatorese condicionantes,sem esquecera análiserelacionaldas caraterísticasdos grandes e pequenas nações, entre grandes e pequenos idiomas que exercem uma grande
t_extos,das tomadasde posiçãoe das obrasproduzidasno cernedessasdiferentesconfigurações. influência sobre as características dos campos literários e intelectuais, não só entre nações
E possívelencontrar tais tentativasem ação nos trabalhos empreendidospor Bourdieue por imperiais e nações colonizadas ou antigamente colonizadas,mas até mesmo no interior do
seus colaboradoresao tentarem proceder a descriçõesaprofundadasdeste ou daquelecampo espaço europeu, segundo as relações de força entre os mercados literários ou intelectuais;
intelectual(ouartístico,ou religioso,ou literário)singular e, até mesmo,destaou daquelaobra, tal dominação foi avaliada, por exemplo,pela sociologiada tradução, como ficou demons-
deste ou daqueleautor.Assim,na primeira aplicaçãodessas hipótesesde pesquisa ao campo trado por GiseleSapiro e por seus colaboradores no que se refere à época contemporânea
literário francês, através do caso de Flaubert, Bourdieu colocaem evidênciaa oposição que (SAPIROet al., 2008). Todos estes exemplos mostram a fecundidade sempre visível e a
atraves~aesse campo entre os raros autores que reivindicam sua autonomia em relação aos diversidade dos programas de pesquisa implicados pelo conceito de campo intelectual
desafios econômicosde uma literatura em via de comercializaçãoacelerada pela impren- ou de campo literário. Com efeito, ele pode ser declinado na escala tanto de um pequeno
sa, teatro, romance, por um lado, e, por outro, uma maioria de literatos que aceitam essa grupo e, até mesmo, de um autor importante (sob a condição de reposicioná-losno espaço

CAMPO INTELECTUAL 85
84 CAMPO INTELECTUAL
1 -----------------

das múltiplas relações, permitindo compreender seus projetos e sua situação) quanto de propriedadesestatutárias]impõem à percepçãode todos [...], comoinscritas em uma essência
espaços globais e, até mesmo, internacionais, o que obriga, em qualquer caso, a adaptar 0 de natureza socialmente garantida", aquela que é conferida pelo Estado. Para Bourdieu, o
q~e~tionário:a implementar os métodos de análise ou de comparação adaptados às espe- direito consagra a ordem estabelecidaao reconhecer comolegítima uma visão dessa ordem,
c1fic1dadese as fontes para evitar a queda, de novo, nas armadilhas positivistas e eruditas, que é uma visão de Estado e garantida pelo Estado. ·
ou o recurso aos esquemas convencionaisdas abordagens contra as quais essa ferramenta As referênciasao direitoinscrevem-se,na maior parte das vezes,nos estudosempreendidos
havia sido concebida. porBourdieusobreas formase os efeitosda dominaçãosimbólica.O direito,em seuentender,age
comoem suplemento"aoformalizar"e "aocolocarformasnas relaçõesde poder",de acordocom
Referências suasexpressões.E Bourdieuainda fornecea seguinteprecisão:"Aforçada forma [jurídica]- a
BOURDIEU,
P.Champintellectuel
etprojetcréateur.Les Temps Modernes, v.246,p.895-906,nov.1966. visJormae mencionadapelos antigos- é a forçapropriamentesimbólicaque permite à força
BOURDIEU,
P. Champdu pouvoir,champintellectuelet habitus de classe.Scolies, Cahiers de exercer-seplenamente,fazendo-sedesconhecerenquantoforçae fazendo-sereconhecer,aprovare
Recherche de l'École Normale Supérieure, v. 1, p. 7-26, 1971. aceitarpelofatode seapresentarsobas aparênciasda universalidade,aquelada razãoou da moral".
BOURDIEU, P.L'Inventionde la vied'artiste.ARSS, n. 2, p. 67-94, mars 1975. O Estado é uma ficçãode juristas, os primeiros "nobres do Estado",que desenvolveram
BOURDIEU, P.Lemarchédesbienssymboliques. L'Année Sociologique, v.22, p. 49-126, 1971. uma visãopolíticado serviçodo Estadocomoum serviçopúblico,ou seja,comouma atividade
BOURDIEU, P.UneinterprétationdelathéoriedelareligionselonMaxWeber.Archives Européennes desinteressadaorientada para fins universais e não unicamente para o serviço e a glória do
de Sociologie, Paris,v.XII,n. I, p. 3-21, 1971. rei, a fortiori não para a defesa de seus próprios interesses.
CASANOVA, P.La république mondiale des lettres. Paris:Seuil,1999. A nobreza do Estado, como escreveurepetidamente Bourdieu, fundou sua razão de ser
CHARLE, C. Naissance des "intellectuels" (1880-1900). Paris:Minuit,1990. social e sua dominação ao afirmar e defender a auton01;11ia do serviço público em nome do
CHARLE, C. La crise littéraire à l'époque du naturalisme: Roman, théâtre et politique; essai direitoem relaçãoao poder régio,em nome da competênciaem relaçãoà nobrezahereditária
d'histoire sociale des groupes et des genres littéraires. Paris:P.E.N.S.,1979. e em nome do interessegeral por oposiçãoao universo econômico.O que não evita a questão
CHARLE, C.Les intellectuels en Europe au XIX' siecle. Paris:Seuil,1996. da finalidadesocialdo direito que não poderia reduzir-seà invençãode um modo racionalde
PONTON, R.Le champ littéraire de 1865 à 1905. Paris:EHESS,1977.These. gestãoadministrativa, nem à burocracia,tampouco ao ideal de neutralidade, de desinteresse
SAPIRO, G.(Org.).Translatio. Paris:CNRS,2008. e de universalidade que lhe é inerente. ·
SAPIRO, G.La guerre des écrivains (1940-1953). Paris:Fayard,1999. Com efeito,o "universal" não preexiste,de acordo com Bourdieu,à formaçãodo Estado
TRIESSE, A.-M.Le roman du quotidien. Paris:LeCheminVert,1984. moderno.Osfuncionáriosdessetipo de Estadonão o utilizampara dissimularseusprivilégios
VIALA, A.Naissance de l' écrivain: sociologie de la littérature à l' âge classique. Paris:Minuit,1985. e seusinteressespróprios.Ao elaborarprincípiosnormativose o direito quelhes corresponde,
os juristas e os parlamentares dos séculosXVIIe XVIIIprocuraram justificar a autoridade
33. CAMPO
JURÍDICO superior que elestentam encarnar, produzindouma filosofiajurídica e políticado Estadopela
······················································································································· qual é desvalorizada, para não dizer desqualificada,qualquer outra teoria imediatamente
Remi Lenoir reduzidaaos interessesdos grupos, desdeentão constituídoscomoparticulares,corporativos,
em suma, pré-estatais. "Elestiveram de inventar o universal- o direito, a ideia de serviço
As análises de Bourdieu sobre o direito incidem sempre sobre um objeto que supera a público, de interesse geral, de população, etc. - e, se é que se pode dizer, a dominação em
definiçãoque se dá comumentepara práticas e produçõesjurídicas:assim, "a forçado direito" nome do universal para ter acesso à dominação".
remete ao que ele designa como "a magia do Estado" e o efeitode oficializaçãoe certificação À semelhança do que ocorre com todos os universos que conquistaram sua autonomia
que lhe é inerente. O certificado escolar é seu ato típico. O diploma faz parte da categoria de funcionamento - como é confirmadopela constituição de uma doutrina, ou seja, de um
dos atos de certificação,de validação,pelos quais o Estado garante e consagra determinado direito erudito -, a produçãojurídica não poderia ser interpretada, de acordocom Bourdieu,
estado de coisas sociais: neste caso concreto, um nível escolar, mas, em outros setores da comoum sistemafechadoe unicamente do ponto de vista de sua lógicainterna (dogmatismo
atividade social, o âmbito de competência de uma profissão, uma identidade, um estado legal),nem como o reflexodireto de fatores que lhe são, em diversosgraus, exteriores (eco-
civ~. O Estado, ao reconhecer esses estados de fato, leva-os a submeter-se ao que Bourdieu nômicos,políticose midiáticos).A noção de campo aplicadaao universojurídico lembra que
designa por uma promoção ontológica,uma transmutação. Os atos de registro realizados este último deve ser pensado de um modo relacional,tanto em seu funcionamento interno
pelos agentesdo Estadoconferemum status oficiala situaçõesreais: o que não altera nada e, quanto em suas relaçõescom os outros campos, como um espaçoestruturado de posições-
~o m~smo;tempo, modificatudo. Comose confirma, por exemplo,pela diferençaentre uma e de postos que lhes correspondem - às quais estão vinculadas propriedades relativamente
hgaçao e um casamento.Os atosjurídicos são atos de reconhecimentoque prescrevemo que independentes daquelas peculiares aos indivíduos que as ocupam. Ela permite estabelecer
eles consagram por serem dotados "de uma objetividade e de uma universalidade que [as as relações objetivasentre essas posições- a estrutura das disciplinasjurídicas, aquela das

86 CAMPO JURÍDICO 87
CAMPO JURÍDICO
hierarquias profissionais, aquelas das homenagens acadêmicas - e entre estas últimas e as créateur",publicadoem 1966,na revistaLes TempsModernes,fundada e dirigidapor Jean-Paul
diferentes formas de produção jurídica, inclusiveas definiçõesda própria atividadejurídica. Sartre.Sea ideiade um universosocialrelativamenteautônomo,dotado de uma históriaprópria
O estabelecimentode relaçõesentre essas posiçõese as propriedades sociais e culturais de e deregrasespecíficas,já estápresentenessetexto,Bourdieuirá renegaressaprimeira elaboração,
seus ocúpantes não teria sentido se não fossem definidos os desafiosespecíficosdo universo queconsideracomodemasiadointeracionista,em benefíciode uma concepçãomais objetivistae
ed~s ~ubuniversosjurídicos. É evidente,por exemplo,que distinções como aquela que opõe topológicado campo,desenvolvidaem váriosartigospublicadosentre 1971e 1991- "Lemarché
o direito público ao direito privado remetem ainda a interesses muito diferentes, embora os des biens symboliques"(1971);"Quelquespropriétés des champs" (1980);"Mais qui a créé les
agen:es tenham em comum uma disposiçãoa jogar o jogo exigidopelo espaço da disciplina, créateurs?"(1980),"Toefieldof culturalproduction"(1983)e "Lechamplittéraire"(1991)-, antes
~u seJa,um habítus que implica o conhecimento e o reconhecimento das regras do jogo e do de elaboraruma obramaior:Les reglesde l'art (1992).
mteresse do que está em jogo (ou seja, a íllusío específicadeste campo que, muitas vezes, é Deacordocom essadefiniçãoobjetivistae, ao mesmotempo,relacional- inspiradapelanoção
designada como "um espírito",neste caso concreto, o "espíritojurídico"). Tem a ver também, físicade campo magnético(princípiode atração-repulsão)-,o campodesigna,simultaneamente,
e antes de mais nada, com ofícios,um conjunto de técnicas, de referências,de conhecimentos um espaçode posiçõesquesedefinemumasem relaçãoàsoutrasem funçãoda distribuiçãodesigual
e de "crenças" próprios desse espaço, tratando-se, seja da hierarquia dos princípios funda- do capitalespecíficoe um espaçode tomadasde posiçãoinscritasem uma história,que também
mentais, das disciplinas,das faculdades,seja das revistas e das editoras, sem falar da maneira adquiremsentidoumasem relaçãoàs outras.Essesdoisespaçosmantêmuma relaçãodehomologia.
de redigir textos e da importância atribuída às chamadas e notas de rodapé. Comefeito,se o espaçodas possibilidadesse apresentaaosescritoressoba formade escolhaa fazer
entreopçõesmais ou menosconstituídascomotais no decorrer de sua história - rimas ou verso
Referência
livre, narrador extradiegético ou interdiegético,etc. -, essas escolhas estéticas são correlatas
BOURDIEU,P. La forcedu droit: élémentspour une sociologiedu champjuridique.ARSS, n. 64, das posições ocupadas por seus autores no campo, em função do volume e da composição
p. 3-19, sept. 1986.
do capitalsimbólicoespecíficodetido,ou seja,do grau e do tipo de reconhecimentoque haviam
adquiridoenquantoescritores.Para compreenderessadistribuiçãodo capitalespecífico,impõe-se
34. CAMPOLITERÁRIO relacioná-lacom as principaisoposiçõesque estruturam o campoliterário.
······················································································································· A primeiralimita-sea ser a especificaçãono campode uma clivagemqueservede estrutura ao
GiseleSapiro espaçosociale se encontraem todosos universossociais:elaopõeos" dominantes"aos" domina-
dos",segundoo volumeglobaldo capitalcom cotaçãonesseuniverso,no casoconcreto,o capital
O conceitode campoliterário,forjadopor PierreBourdieu,apreendeo mundo dasletras como de reconhecimento.Essaclivagemcoincide,frequentemente,com a oposiçãoentre "velhos"e "jo-
~ ~iverso social dotado de uma relativaautonomia, no sentido em que é regido por regras vens",escritoresreputadose recém-chegados.Elapode ser ilustradapelosmembrosdaAcadémíe
propr~asquese referemà sua história,além de determinaremas condiçõesde acúmulodo capital Françaíse,por um lado,e, por outro,pelasvanguardas(porexemplo,os surrealistas).Enquantoos
específicoa esseuniverso.Esseconceitovisa escaparde uma duplaarmadilha.Contraa ideologia dominantesestãointeressadosna conservaçãodo estadodas relaçõesde força,os dominados,que
românticado "criadorincriado",que encontrousua expressãomais acabadana noçãosartríana procuramsubvertertal situação,rompemcomas convençõese os códigosestabelecidos. Aoextrair
de "projetocriador"e queservede fundamentoà abordagempuramentehermenêuticadas obras, elementosda teoria da religiãode Max Weberpara pensar essesconfrontos,Bourdieurecorreàs
ele chama a atençãopara o fato de que os produtoresnão escapamàs restriçõesque governam0 noçõesde ortodoxiae heterodoxia.Aoevocaras seitasreunidasem torno de uma figuraprofética,
mundo social.Uma sociologiada literatura tem o direito de formular a seguintepergunta:"Mas asvanguardasaparecem,comefeito,comoheterodoxasem suatentativadesubverteras convenções
quemteriacriadoos criadores?",ou seja,por quaisprocessosse formao valorsimbólicodas obras? de escritade sua época,suscitandoreaçõesmais ou menosacirradaspor parte dos defensoresda
No entanto,contraa sociologiamarxistaque reduz a obra às característicassociaisde seupúblico ortodoxia,comparáveisàquelasdos sacerdotesporta-vozesde determinadaigreja.As lutas entre
ou de seu autor,e contra a abordagemeconomicistaque se interessaapenaspelas condiçõesma- os partidários da ortodoxiae os heregessão recorrentese, em grande parte, constitutivasda his-
:e~ais d~produç~oe do consumoconcernentesà indústria do livro,PierreBourdieuafirma que tória do campo. O princípioda originalidadeque rege o mundo das letras desdeo Romantismo
e llllposs1velexplicaros universosculturais sem levar em consideraçãosua autonomiarelativae fazcom que as lutas de concorrênciapara a imposiçãoda definiçãolegítimada literaturatenham
suaprincipalpropriedadequeé a crença.Do pontode vista metodológico,tal abordagempretende assumidouma formaabertae, às vezes,violenta,ilustradaperfeitamentepelaformado manifesto.
superar a tradicionaloposiçãoentre análiseinterna e análise externa:a primeira está focalizada A segundaoposiçãoé mais específicaaos universosda produçãocultural,definindoa relação
na decifração,ao invésdo ato criador.Inversamente,a segunda tende a reduzir as obras a suas de tais universoscom as condicionantesexternas:ela distinguetipos de reconhecimento,simbó-
condiçõesde produçãoe recepção.Enquantoa análiseinternase interessapelaestruturadas obras lico ou temporal,de acordo com seu grau de autonomiaem relaçãoà demanda,tratando-sedas
a anápse externaenfatiza,sobretudosua função social.O conceitode campovisa articular esse~ expectativasdo públicoou da demandaideológica.Segundoa lógicaheterônoma,o valor da obra
doisaspectosda análise,tendo em contaas mediaçõesentre essasduas ordensde fenômenos.Tal é reduzido,seja a seu valor de mercado,cujavendagemconstitui o indicador- por exemplo,os
conceitoaparecepelaprimeiravezsob a pena de Bourdieuno artigo"Champintellectuelet projet best-sellers-, sejaa seuvalorpedagógico,de acordocomcritériosmorais ou ideológicos.No lado
88 CAMPO LITERÁRIO
CAMPO LITERÁRIO 89
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oposto,a lógicaautônomafazprevalecero valorpropriamenteestéticoda obra,o qualsomenteos de pesquisa que inspirou e renovounumerosos trabalhos da ciênciapolítica, ao trazer como
especialistas- ou seja,os pares e os críticos- estãoem condiçõesde apreciar:o reconhecimento problemáticafundamental o corte que se estabeleceraentre o político em relaçãoao social.
dos pares será,portanto,o critériode acúmulode capitalsimbólicoespecíficono campo. O campo políticoé definidocomoum espaçorelativamenteautônomo,dependentede um
Aproduçãoliteráriaautonomizou-seda demandadas classesdominantese do grandepúblico, universode regras, crenças e papéis próprios. É "o lugar em que se geram - na concorrência
ao valorizaro julgamentodos especialistas.Se Bourdieusitua esseprocessode autonomização entre os agentes que nele se atham envolvidos- produtos políticos, problemas,programas,
do campoliterárioem meadosdo séculoXIX,sob o SegundoImpério,algunshistoriadoresda análises,comentários,conceitos,acontecimentos,entre os quaisos cidadãoscomuns,reduzidos
literatura- tais comoDenisSaint-Jacques e AlainViala(1994)- detectamseusprimórdiosdesde ao estatuto de 'consumidores',devemescolher" (BouRDIEU, 1981a).E escolhercom grandes
o séculoXVII.Noentanto,esseprocessonão é linear,nem homogêneo(SAPIRO, 2012),tendoassu- chancesde mal-entendidos,pois o acessoaos meios de participaçãopolíticaaí se distribuem
midodiversasmodalidadesem funçãodospaíses.Assim,no Brasil,foino iníciodo séculoXX,no de forma desigual,tanto do ponto de vista da socializaçãoquanto da posiçãono espaçosocial.
períodomodernista,queseassisteà autonomizaçãodeum campoliterárionacional(MrcELI, 2001). Esta definição,que sublinha a concentraçãodos meios de produção propriamentepolíti-
cosnas mãos de profissionaise o desapossamentodesses meios pela maioria da população,
Referências condensasua oposiçãoaos postulados clássicosda ciênciapolítica (dissociaçãoda políticado
BOURDIEU, P.Champintellectuelet projetcréateur.Les TempsModernes,v.246,p. 895-906,nov.1966. mundo social, escolha racional, delegação,etc.) centrados na figura do cidadão esclarecido
BOURDIEU,P. Le marché des biens symboliques.L'.AnnéeSociologique,v. 22, p. 49-126,1971. e competente,dado como proprietário de uma opinião. Ao contrário, faz ver os constrangi-
BOURDIEU,P. Toe Field of Cultural Production, or: Toe Economic World Reversed.Poetics,v. 12, mentos que pesam nas opções dos "consumidores"desprovidosde competênciasocial para
n. 4-5, p. 311-356,1983. a políticae de instrumentos próprios de produção de discursos ou atos políticos:abster-seou
BOURDIEU,P. Le champ littéraire. ARSS, n. 89,p. 4-46, 1991. se conformar com as escolhasde seus representantes.Na sequênciade Weber,e utilizando a
MICELI,S. Intelectuais à brasileira.São Paulo: Companhia das Letras, 2001. linguagemda análise marxista da economiacapitalista (produtores,consumidores,concen-
SAINT-JACQUES, D.;VIALA,A. À propos du champ littéraire: histoire, géographie,histoire littéraire. tração de capital, etc.) para definir uma distribuição desigualde forçasno campo, Bourdieu
Annales, Histoire, SciencesSociales,v. 49, n. 2, p. 395-406, 1994. questionaa natureza do laço que une representantes e representados.
SAPIRO,G. Autonomy Revisited:Toe Question ofMediations and its MethodologicalImplications. A definição retoma o processo de deslocamentodo político em relação à vida social or-
Paragraph,v. 35,p. 30-48, 2012. dinária que atravessoutodo o séculoXIX,ou seja, um fenômenoque se explicana sociedade
ocidentalmoderna, quando do aparecimento de domínios separados de atividades,presos
a formas legais específicas(direito,política, esfera acadêmica,etc.). Sob este prisma, e com
35. CAMPOPOLÍTICO um conjuntode ferramentas metodológicase teóricas extraídas da sociologia,antropologiae
··:···················································································································· história Bourdieuevoca Max Weberna sua sã brutalidade materialista ("pode-seviverpara
) -

Letícia BicalhoCanêdo a política e da política")para refletir sobre esse "microcosmo"social,no interior do enorme
mundo social,onde se geramproblemasque agitam os políticosem suas posiçõeshierárquicas
Em seu modelo de funcionamento e dinâmica histórica, o campo político é explicitado dentro do campo,permitindo-lhesse distinguir entre eles,mas que, entretanto,não interessam
pela primeira vez no artigo "La représentation politique. Éléments pour une théorie du ao comum dos mortais. Um microcosmo que comporta fenômenos e objetos que parecem
champ politique" (BouRDIEU, 1981a).Bourdieu o formula sem o estudo empírico detalhado ter existido desde sempre (a democracia,o voto, os partidos políticos, o cidadão eleitor,as
que caracteriza suas descrições da lógica dos campos de produção simbólica (intelectual, sondagens,os deputados),mqs que são invençõesrecentes presas a conjunturas históricas.
religioso,da alta costura, etc.).A coerênciada noção se sustenta em suas pesquisasanteriores, Enfim,com a ferramentaanalíticado campo,Bourdieudeixa claro desde seu artigo inau-
nascidas de inquietaçõespráticas de seu envolvimentocom questõespolíticas (colonialismo gural que seu objetode investigaçãonão é a política,mas o espaçosocialonde se confrontam
na Argéliae escola)e na assimilaçãoda vasta literatura de sociologiapolítica (Weber,Marx, as elitespolíticas.Com isso,ele restitui a especificidadedos fenômenospolíticosem relaçãoàs
Michels),que ele reinterpreta. Assim, neste artigo fundador, pôde reconstruir os objetos lógicassociaisde onde derivam:desnaturalizaas instituiçõespolíticase o próprio Estadopela
classicamenteabordados pela ciênciapolítica (representatividade,partidos, etc.) e aplicar a apreensãodas relaçõesque unem indivíduose grupos concorrentesque pretendem falar em
sua teoria geral dos campospara o caso particular da política,podendo dotá-lados conceitos seunome (BouRDIEU, 1993).A ferramentapermite estabelecerde que maneira os mecanismos
associadosde capital (social,cultural e simbólico),estratégia, trajetória e habitus. Parte da genéricosque regulam a aceitaçãoou eliminaçãodos novosentrantes na dinâmica do campo
ambição de Bourdieu de elaborar uma sociologiacomparada dos modos de legitimaçãodo político(lutade gerações,reputação),ou a concorrênciaentreos diferentesprodutores(trajetória
poder e,das formas de violênciasimbólica,o artigo foi publicado dois anos após a revolução de acumulaçãode capital),determinam os discursosa serem produzidosou reproduzidose a
que sua teoria do espaço social, composiçãode grupos e competição simbólica efetuou no apariçãode ideias-forças,relativamenteindependentesde suas condiçõessociaisde produção,
estudo das classese das culturas (La distinction, 1979).Equivale,portanto, a um programa e que têm por alvo"impor a visão legítimado mundo social" (BouRDIEU, 1981b).

90 CAMPO POLÍTICO CAMPO POLÍTICO 91


A forçadas ideiaspropostaspelos agentespolíticosmede-se,diferentementedo que acon- BOURDIEU,P. La délegation et le fétichisme politique. ARSS, v; 52-53,p. 49-55, 1984.
tece no terreno da ciência,não pelo seu valor de verdade, mas pela força de mobilizaçãoque BOURDIEU,P. Quand les Canaques prennent la parole. ARSS, v. 56, p. 68-85, 1985.
encerram, pela força do grupo que a reconhece.Depende,pois, da autoridade daqueleque a BOURDIEU,P. Esprits d'État. ARSS, v. 96-97,p. 49-62, 1993.
pronuncia, da sua capacidadede fazer crer sua veracidade e seu mérito. Ou seja, o anúncio BOURDIEU,P. Le rnystere du ministere. ARSS, v. 140,p. 7-11,2001.
de uin projeto, de uma esperança ou simplesmente de um futuro se executa desde que os
destinatários se reconheçamnele, conferindo-lhea forçasimbólicae material - em forma de
votos, mas também de subvenções,quotizaçõesou luta militante (BOURDIEU, 1981b).
····CAMPO
·36. ··············RELIGIOSO M~~t~ A~;ú~ i,;;~"i~
···························.··...····....................................
Ocampopolítico,diferentementedoscamposdeproduçãoculturale científica,nãopode,pois,
selibertartotalmentedosinteressessociaise dosgruposem nomedos quaisa políticase organiza. O texto de Pierre Bourdieu sobre o campo religioso,inspirado nos estudos sobre reli-
Mesmoporqueosprofissionaisda representaçãoagememnomederepresentadosqueelesmesmos gião de Max Weber, constitui uma primeira elaboração do conceito que, juntamente com
contribuíramparafazerexistire unificar(os"trabalhadores",as "classesmédias","osjovens",etc.). aquele de habitus, sustenta a estrutura do pensamento sociológicodesse autor. De fato, a
Anoçãode campopolíticonãoprevê,portanto,um cortefatalentreprofissionaise "profanos". sua concepçãodo conjunto da sociedadecomo espaçomultidimensionalem que as posições
Seuobjetivoé revelaro conjuntodetransaçõesoperadasentreessesdoislados,capazesdeproduzire diferenciadasocupadas por agentes são definidas umas em relação às outras segundo uma
manterumalegitimidadena baseda crençapolítica,vistaem analogiaà crençareligiosa(BoURDIEU, série de variáveis,notadamente o volumee a composiçãode capitais - econômico,cultural,
1971).Nessastransações,o desapossamentodos "profanos"tende a se aprofundarà medida que sociale simbólico- detidos pelo agentee pertinentes para o contextoconsiderado,Bourdieu
o campoganha mais autonomia,torna-semais profissionalizadoe aparecemas instituiçõesen- sobrepôso conceitoanalítico de campos.
carregadasde selecionare formar,alémdospolíticospropriamenteditos,os especialistasda área: Adiferenciação progressivadomundosocialaolongodahistórialevouaosurgimentodecampos
jornalistas,institutosdesondagens,comentaristaspolíticos,assessoresem comunicação.
Aí,mesmo mais ou menosautônomos,produzidospela divisãosocialdo trabalho.Ao contrárioda divisão
ossemiprofissionais (militantes,colaboradores)
contribuemparatransformaras questõespolíticas técnicadotrabalho,queserestringeà organizaçãoda produção,a divisãosocialdotrabalhorecobre
em "casosde especialistasqueaosespecialistascompeteresolver",desapossandoo cidadãocomum toda a vida sociale estárelacionadaa um processode diferenciaçãoque distinguefunçõesespe-
dosmeiosde produçãodosatossocialmentereconhecidoscomopolíticos(BoURDIEU, 1984,2001). cializadas,comoas funçõespolítica,econômica,artística,entreoutras.Em cadacampo,operando
A grande utilidade da noção de campo político situa-se no fato de as operaçõesa serem dentro de sua autonomiarelativae obedecendoa sua lógicaespecífica,os agentes,posicionados
realizadaspara a sua análise não se originarem nas categorias de pensamento e problemas de acordocomseuvolumee composiçãode capitais,interagemcomojogadoresem um mercado,
levantados e praticados pelos próprios agentes políticos. Não partem, tampouco, do que é enfrentando-separa conservare acumularas formasde capitalquepermitemdominaro campo.
formulado nos registros do direito, da história das ideias ou da ciência política. A lógica A gênesehistóricade um camporeligiosorelativamenteautônomoestárelacionadaa certos
estrutural própria do conceito convida ao levantamento e estudo das propriedades sociais aspectos específicosdas transformações socioeconômicase da divisão social do trabalho.
dos agentes que trabalham em concorrênciapelo monopólio da manipulação dos bens po- O desenvolvimentoda urbanização caracterizou uma ruptura entre campo e cidade, que é
líticos (posiçõesde controle)e do estabelecimentodas regras do jogo (cabineeleitoralpara diretamente associadaà divisão entre trabalho material e trabalho intelectual.A progressiva
voto secreto,urna eletrônica,sufrágio para menores de 18anos, obrigatoriedadedo voto).A autonomia do trabalho intelectual na cidade emancipou a consciênciahumana da concre-
força da noção está em apreender o que une os titulares que ocupam posiçõesdominantes tude da natureza, permitindo que ela se imaginasse como a representaçãode algo não real.
nos diversosespaçossociais(campopolítico,econômico,burocrático,mediático),opondo-os Emancipadado mundo concreto e da práxis, a consciênciahumana pôde chegar à formação
nas lutas simbólicas travadas no espaço político com armas, capitais e poderes desiguais, de teorias "puras" e abstratas, como a filosofiae a religião.
bem como em compreenderas formas de organização coletivaque possibilitamfazer parte O desenvolvimento de um corpo de especialistas encarregados da gestão dos bens de
do jogo.A noção abarca, assim, as transformaçõesestruturais do universopolíticotrazendo salvação,preparados e legitimados para o exercíciomonopolizado dessa função, constitui
novas reflexõessobre a problemática das condições que possibilitam a ação política e seus outro aspecto da divisão social do trabalho que contribuiu com a gênese da religião como
limites (BOURDIEU, 1985). campo autônomo.De fato, a formaçãode um campo religiosopressupôsuma distinção entre
especialistasreligiosos,detentores de capital religioso,e leigosprofanos, destituídos desse
Referências tipo de capital. Tal desapropriaçãovaleu não apenas para distinguir sacerdotese fiéis,mas
BOURDIEU,P. Genese et structure du champ religieux. Revue Françaisede Sociologie,n. 12-3,p. também os grupos anteriormente reconhecidoscomo legítimosespecialistasreligiosos,que
295-334,1971. passaram a ocuparuma posiçãoinferiorna estrutura do campo,com seu conhecimentosendo
BOURDH\U,P. Questions de politique. ARSS, n. 16,p. 55-89, 1977. classificadocomo magia,feitiçaria ou outras formas profanas de manipulação do sagrado.
BOURDIEU,P. La représentation politique. ARSS, v. 36-37,p. 3-24, 1981a. Oslimitesdo camporeligiosorelativamente autônomoseconsolidaram,assim,na distinçãosim-
BOURDIEU,P. Décrire et prescrire. ARSS, v. 38, p. 69-73,1981b. bólicaentreo monopóliodosabersagradoe a ignorância profana,quea noçãodesegredo/mistério

CAMPO RELIGIOSO 93
92 CAMPO POLfTICO
exprimee re:orça.~ reli~~o,comotodosossistemassimbólicos,cumpreuma funçãode distinção empresárioindependenteda salvação,o profetaou feiticeirodependeda aptidãode seu discursoe
entre a marupu~açaolegitimado sagradoe formas inferioresde religião,tanto formaspassadas suapráticapara mobilizaros interessesreligiososde fiéispotenciaise para operaruma subversão
quanto c~nco~itantes,~uepassam a ocupar uma posiçãodominadana estrutura das práticase da ordemsimbólicavigentee uma reordenaçãosimbólicadessasubversão,dessacralizandoo sa-
crençasSimbolicasassociadasa uma formaçãosocialdeterminada.Todapráticaou crençadomi- gradoe sacralizandoo sacrilégio.Todaseitaquelograsucessotendea tornar-seIgrejadepositária
na~a ~p~rececomoprofanadora,pois, por sua própria existência,constituiuma contestaçãoou e guardiãde uma ortodoxia,detentorade hierarquias,dogmase legitimidade.Da mesmaforma,
res1ste~cia
ao monopólioe à legitimidadeda gestãodo sagradopelocorposacerdotalhegemônico. no interiorde uma mesmaIgreja,é possívelque se estabeleçamrelaçõesde concorrênciaentre a
A~~~ estrutur~da:a religiãoé um sistemasimbólicoquefuncionacomoprincípioqueconstróia ortodoxiae a heresia.O conflitoteológicopelaautoridadereligiosaentre especialistasse combina
expenenaa.Eladelimitao quemereceser discutidoe o quedeveser admitidosemdiscussão,como com o conflitopor poder na hierarquia eclesiástica,tomando a forma de heresia quando uma
dogmaou mist~~oda fé.~l~ converteospreceitosimplícitosdeum ethosdesejável,consagrando-os parte do c}erocontestao monopólioeclesiásticonas mãos das classessacerdotaishegemônicas.
com~n~rma~~ticase~Iíc1tas,racionalizadase sistematizadas.A religião,portanto,cumpreuma Estemodeloinicialde campo,exaustivamenteretrabalhadopor Bourdieu,é posteriormente
funçao1deo~ogica poss1v~l de ser mobilizadapor um grupo ou classena medidaem que permite aplicadoà análise dos movimentos e das relações de poder em diferentes domínios sociais
a consagraç~odas propnedadescaracterísticasde um estilo de vida determinado.Taisproprie- - econômico,político, cultural, científico,jornalístico, etc. -, que, embora interligados,não
dades,associadasa um grupo ou classeque ocupauma posiçãodeterminadana estrutura social podem ser remetidos a uma lógicasocialúnica, mas que, em conjunto,garantem a produção,
e, portanto,semprearbitrárias,podem ser legitimadaspela religião,que as sacralizae naturaliza a reproduçãoe a imposiçãodo poder simbólicoem nossas sociedadese, portanto, seu próprio
em siste~as de repr~sentaçõesconsagradoscuja estrutura reproduz,de forma transfiguradae, funcionamento (ver também: ETS;OPS;LoYOLA, 2002).
portanto,rrreconhec1vel, a estrutura das relaçõessocioeconômicasvigentes.
Em u~a sociedadedividida em classes,os sistemas religiosospróprios às diferentesclas- Referências
ses cont:1bu~m?ara a reprodução da ordem social, na medida em que a consagra, sanciona · LOYOLA,M. A. Bourdieu e a Sociologia.ln: ____ . Pierre Bourdieu entrevistado por Maria
e s~:rahz_a,Justificando a hegemonia das classes dominantes e impondo aos dominados a
Andréa Loyola. Rio de Janeiro: Eduerj, 2002.
legit1maçaoda dominação.Dissimulandoem seus símbolosque a dominaçãoé arbitrária, bem
WEBER,M. Economia e sociedade.Brasília:UNB;SãoPaulo:Imprensa Oficial,2000.v. I.
como_as fo,rmasP:las quais se opera, a religião reforça o ethos da resignaçãoe da renúncia
WEBER,M. Economia e sociedade.Brasília:UNB;SãoPaulo:Imprensa Oficial,2004.v. II.
as~ociado~s condições,~eexistência dominada. A crença na eficáciasimbólica da religião
exigeque o mteressepohtico que a determina sejamantido veladoe apresentadocomounidade
aparente, tanto para os profanos quanto para os especialistas religiosos. 37. CAMPOUNIVERSITÁRIO

_D~ntro
do própriocamporeligioso,os diferentesagentes(indivíduosou grupos)quedisputam Afrânio Mendes Catani
0
P_siçoesna estru~ra das relaçõesde forçapodem lançar mão elocapitalreligiosona concorrên-
cia pela hegemoma,dominaçãoou monopólioda gestão dos bens de salvação.Tal monopólio Homo academicus(1984),um dos principais livros de Bourdieudedicadoao campo uni-
garante aos agenteso exercíciolegítimodo poder religioso,ou seja, o poder de influenciarde versitáriofrancês - o outro é La noblessed'État: GrandesÉcoleset esprit de corps(1989)-,
forma duradoura ~s ~e~resentaçõese práticas de leigos,incuUndoneles um habitus religioso estuda duas décadas de expansão do sistema de ensino superior de seu país até os anos
que passa a ser prmcip10gerador de pensamentos,percepçõese ações,em concordânciacom 1970.Nesse trabalho o autor leva às últimas consequênciasaquilo que afirmavaem sua aula
as normas de uma representaçãoreligiosado mundo que é ajustada a uma determinadavisão inaugural no College de France: "qualquerproposiçãoformulada pela ciência da sociedade
p~líticado m~ndo social.O capitalde autoridadede que dispõeum agentereligiosose associa pode e deve aplicar-seà própria pessoa do sociólogo"(LL,7).
diretamente a forçamaterial e simbólicados grupos ou classesque ele pode mobilizar,ofere- Em algumaspáginas de Réponses:pour une anthropologieréflexive,comentaque Homo
cendo-lhesbens e serviçoscapazesde satisfazerseus interessesreligiosose políticos. academicuslhe custoumuito em termosde tempo,de reflexão,de redaçãoe pesquisa,irritando
Dessaforma,_noc~po religioso,segundouma lógicaprópria de mercado,as Igrejasdomi- . bastanteos colegasuniversitáriosquandoexaminaa si mesmo,poiso textocontémváriaspáginas
nantes tendema Impedira entrada de novasempresasde salvaçãoconcorrentes,comoas seitas. reservadasà sua pessoatodas as vezesque analisa categoriasàs quais pertence- ao falar de si
El~ss~es~o~çam para preservaro capitalde controledo acessoaosmeiosde produção,reprodução revelaverdadesqueatingema outros.Justamenteo capítuloprimeiro,"Um'livropara queimar'?",
e distribmçao~osbens de salvação.Esseacessoprivilegiadoé delegadoaossacerdotesque atuam seiniciacomum períodoreveladordo quevirá aolongodas mais de trezentaspáginas:"Aotomar
n~~onta,continuamentejunto aosfiéis,conferindo-lhesautoridadena medidaem quesãofuncio- comoobjetoum mundo socialno qualse estápreso,somosobrigadosa reencontrar,numa forma
nanos ~: ~a estrutu~aburocratizadadetentorade capitalinstitucionalsacramental.Oprofeta que se pode dizer dramatizada, um certo número de problemasepistemológicosfundamen-
ou ~feztz,cezro e sua seita,c_oncorrentes da Igrejahegemônica,colocamem questãoO monopólio tais, todos vinculadosà questão da diferençaentre o conhecimentoprático e o conhecimento
do~~strumentos d: salvaçao,mas,para tanto,precisamoperaruma acumulaçãoinicialde capital erudito e, principahnente,à dificuldadeparticular da ruptura com a experiênciaautóctonee
religioso,afim de disputaro exercíciolegítimodo poder religiososobreos leigos.Na condiçãode com a restituiçãodo conhecimentoobtido,à custa dessa rupturà' (HA, 11,grifos do original).

94 CAMPO RELIGIOSO
CAMPOUNIVERSITÁRIO 95
No posfácio("Vingtans apres"),datado de janeiro de 1987,diz que "analisarcientificamenteo financiados, pertencimentoa comitêseditoriaisde revistascientíficas,
índicesde citação,publicações
mundo universitárioé tomar comoobjetouma instituiçãoque é socialmentereconhecidacomo relevantes,currículo"internacionalizado", orientaçõesde doutorado,tomadasdeposiçãopolíticas,
fundadapara realizaruma objetivaçãoquepretendea objetividadee a universalidade"(HA,291). relacionamentocom a mídia, etc. Precisamser levadosem containdicadoresdetalhadossobre
Em La noblessed'État, por sua vez,o focoanalíticorecai no estudoda estrutura do espaço osprofessores,os diferentescorposestudantis,as própriasuniversidades,as hierarquiasuniver-
de educaçãodas elitesna Françaa partir da segundametade dos anos 1960,estendendo-seaté sitárias,as classificaçõesdos departamentose institutos.Entretanto,é fundamentalestabelecer
a décadade 80. Bourdieu,ao trabalhar o campo das grandes escolase a produçãoe a reprodu- deformaprecisaa relaçãoque os cientistasmantêmcom as distintasinstituiçõesqueintegramo
ção dos grupos dirigentes,mostra a divisãoexistenteentre as escolas(grandese pequenas)e, queeledenominou"campodo poder".Na França,por exemplo,considera-seo pertencimentoa
também, entre instituiçõesque salvaguardamos valoresintelectuaise aquelasque preparam comissõesadministrativasoficiais,comitêsgovernamentais,conselhosde administração,etc.Nos
quadros para os postos econômicose políticos.No entender de Wacquant(2007),tal procedi- EstadosUnidosé essencialverificaros comitêse relaçõesde expertscientíficos,a integraçãoàs
mento permite, nas sociedadescapitalistasavançadas,analisar simultaneamenteas conexões grandesfundaçõesfilantrópicas,aos institutosdepolicy research,etc.No Brasil,por suavez,há
e interseçõesestruturantes do espaçosocial,do sistemade educaçãoe do campo do poder. quese observaro aparatoque o Estadoassegurapara garantira produção,circulaçãoe mesmoo
A partir das ideias centrais de Homo academicus e de La noblessed'État, pretende-se consumodebens simbólicosquelhe sãoinerentes,envolvendoo conjuntodas organizaçõesdedi-
apresentar as concepçõesde Bourdieu acerca do que denominou campo universitário. cadasà educaçãosuperiorpúblicae privada,em seusmaisvariadosníveis,formatose naturezas;
Ao longo de sua obra, escreveu que pensar em termos de campo significapensar em as agênciasfinanciadorase de fomentoà pesquisa,nacionaise estaduais;os órgãosestataisde
termos de relações,chegandoa falar que "o real é relacional":o que existe no mundo social avaliaçãode políticaseducacionais;o(s)setor(es)do Ministérioda Educaçãoresponsável/eis pela
são relações, "independentemente da consciência e da vontade individuais", como disse educaçãosuperiore os institutosde pesquisaquepossuema mesmafinalidade(Inep);os setores
Marx (R, 57).Analiticamente,um campo se estrutura como uma rede de relaçõesobjetivas ou câmara dos Conselhosde Educaçãoem distintosníveis;as associaçõese entidadesde classe
entre posições - e estas se definem objetivamente em sua existência e nas determinações (CRUB,Andifes,Andes/SN,PROIFESFederação,ABMES,ANUP,ABRUC,ANAMEC,ANAFI,
que impõem a seus ocupantes (agentesou instituições) por sua situação atual e potencial SEMESP, etc.)e as comissõesgovernamentais(CATANI, 2013,p. 75).No entenderde Bourdieu,tais
na distribuição das diferentes espéciesde capital ou de poder, "cuja posse implica o acesso comissõesrepresentamumaformatipicamenteburocráticadeconsulta,emqueosagentesdoestado
aos lucros específicosque estão em jogo no interior do campo e, também, por suas relações têm condiçõesde impor nomes que referendemsuas posiçõesconservandoassim o monopólio
objetivascom as demais posições(dominação,subordinação,homologia,etc.)" (R, 57-58). da preparaçãodas decisõescoletivas,da sua açãoe da avaliaçãodos resultados(SSE,130-134).
Para o sociólogo,uma análise em termos de campo implica em três momentos necessá- A estrutura do espaçoda educaçãosuperior francesa de elite encontra-seorganizada em
rios e inter-relacionados.De início, é preciso que se verifiquea posiçãodo campo em relação GrandesÉcoles- "escolasde graduaçãoseletivas,baseadasem numerus clausus,em classes
ao campo do poder. Em seguida, deve-seestabelecera estrutura objetivadas relaçõesentre especiaisde preparaçãoe examesde acessonacionaiscompetitivos,compassagemdireta para
as posições ocupadas - por agentesou instituições - que competem no interior do campo. postosde trabalho e elevadoperfil" (WACQUANT, 2007,p. 302)- e universidades,organismos
Por fim, "se devem analisar o habitus dos agentes, os diferentes sistemas de posições que de massa, abertos a todos que concluemo curso secundário. No interior do próprio campo
estes adquiriram mediante a interiorização de um tipo determinado de condiçõessociais e das GrandesÉcoles,observa-sea divisãoentre as "melhores"e as "piores"e, também, entre
econômicase que encontraram, em uma trajetória definida dentro do campo considerado, as voltadasa valoresintelectuais e as que preparam para posiçõeseconômico-políticas.Há as
uma oportunidade mais ou menos favorávelde atualizar-se" (R, 64-65). quesão "intelectuais",como a ÉcoleNormaleSupérieure,que forma os intelectuais da nação
O campouniversitário,para ele,é o espaçosocialespecíficoonde se trava uma luta encarni- e têm como estudantesas fraçõescultivadasda burguesia.Há outras quepreparam dirigentes
çada para estabelecero monopóliolegítimoda verdadeacadêmicaou universitária,espaçoesse industriais e do Estado, como a Écoledes Hautes Études Commercialese a ÉcolePolytech-
marcadopor contínuascontrovérsiascom relaçãoao sentidodo mundo e desseprópriomundo. nique, espaço dos oriundos e destinados às frações ricas da alta burguesia francesa. Por sua
Todavia,essecampopossuiforteparticularidade:seusveredictosestãoentre os mais poderosos vez,a ÉcoleNationaled'Administrationencontra-seao meio do caminho entre os dois polos,
socialmente(R,50).Constitui-seem um locusde relaçõesqueenvolvecomoprotagonistasagentes dela originando os ocupantes dos gabinetese altos funcionários da administração, mescla
quepossuema delegaçãopara gerire produzirpolíticasuniversitárias,istoé, uma modalidadede de competênciaculturais e econômicas,recrutando estudantes cujo patrimônio familiar é
produçãoconsagradae legitimada.Éum espaçosocialinstitucionalizado, delimitado,comobjetivos composto"de diplomasraros e riquezaantigà' (WACQUANT, 2007,p. 300,302;CATANI, 2013).
e finalidadesespecíficasondeseinstalauma verdadeiraluta para classificaro quepertenceounão Essa caracterizaçãode diferentesinstituições corresponde a funções sociais distintas e,
a essemundoe ondesãoproduzidosdistintosenjeuxdepoder.As diferentesnaturezasde capitale principalmente, produz agentes determinados que exercem papéis sociais de acordo com
as disposiçõesacadêmicasgeradase atuantesno campomaterializam-senas tomadasde posição, prerrogativas externas ao mundo universitário, mas que se transfiguram em legitimidade
é dizer,1:ºsistemaestruturadodas práticase das expressõesdos agentes(CATANI, 2013,p. 74-75). · através do título obtido. Bourdieu explicitaa compreensão do campo do poder como rede
Devemser analisadosos diferentestipos de capitalque dão o tom no campo universitário, cruzada das ligações estruturais e funcionais que entrelaçam o espaço das escolasde elite
tais comoescolasqueos indivíduosfrequentam,títulosobtidos,premiações,projetosde pesquisa com o das classes dirigentes, segundo suas articulações. Nas atuais sociedadescomplexas,

CAMPO UNIVERSITÁRIO 97
96 CAMPO UNIVERSITÁRIO

L
a escola se converte em organização encarregada do trabalho de consagraçãodas divisões 1930desligou-sedessacorrentepor razões,ao mesmotempo,políticas(confereprioridadeà luta
sociais,alémde exigirduas espéciesde capitalque dão acessoa posiçõesde poder,definindoo antisfacista)e teóricas(voltou-separa a históriadas ciências).Durantea SegundaGrandeGuerra,
espaçosociale regulando as oportunidades e trajetórias de grupos e indivíduos,quais sejam, adereao mo~ento de Resistênciacontrao invasornazistae defendesua tese de medicina,em
o capitaleconômicoe o capitalsocial(WACQUANT, 2007,p. 298).A generalizaçãodos títulos 1943,Essaisur quelquesproblemesconcernantle normal et lepathologique,publicadapela
educativosconstitui-seem pré-requisitopara a ascensão ao vértice das empresasprivadas e PUFsob o título Le normal et iepathologique.Nesseestudocriticao positivismoda fisiologia,
das burocraciasdo Estado,consolidandoum novomodelode dominação(CATANI, 2013,p. 70). manifestaum vitalismonietzschianoe,dopersonalismo,mantéma atençãoprestadaaoindivíduo.
Bourdieuchama a atenção,ainda, para uma dimensãode caráteruniversal:quer na França Deacordocom sua tese,ao invésde conceberas relaçõesdo normal e do patológicoao definira
ou em váriasoutrasformaçõessociais,ser "herdeiro"tem custocadavezmais elevado,financei- patologiapor um desvioda norma (definidacomomédia),deve-se,sobretudo,levarem consi~e-
ramentefalando,mas, sobretudo,quanto aos custosemocionaise vivenciais.As escolasde elite raçãoa normatividadevariáveldo indivíduoem funçãode seu meio,além de concebera saude
submetemseus estudantesa regimesde trabalho severos,a estilosde vida austeros,a práticas comoa "atitude"("allure"]mediantea qual o indivíduoé capazde cometerexcessos,enquantoa
de mortificaçãosocial e mesmo intelectual.São sacrifíciospessoaisterríveisa que nem todos doençasignificaestar reduzidoa uma norma fixadapor uma deficiência.
conseguemou queremse submeter.Apesarde se beneficiaremde uma sériede vantagensdesdea Após a guerra, ensinou na Universidadede Estrasburgo,antes de se tornar insp~t~r_geral
tenraidade,nemtodofilhode dirigenteempresarial,médicocirurgiãoou cientistatem a garantia (1947),função que exercerácom.severidade,tendo escolhidoGastonBachelardpara dir1grrsua
de obtençãode uma posiçãode destaque.Nem todos os jovens da eliteapresentamtrajetórias tese sobreLa Jormation du conceptde réjlexeaux XVII' et XVIII• siecles,texto em que o
escolaresexitosas,não sendopoucosos que abandonamas escolaspreparatórias,ou são expul- métodobachelardianose manifestapelouso dos conceitosde "obstáculoepistemológico" e de
sos, ou tentam o suicídioou simplesmenteoptam por outras carreiras (CATANI, 2013,p. 71-72). "fenomenotécnico". Em 1955,logoapós a defesada tese,foi eleitopara a cátedrade filosofiadas
Em La noblessed'État destaca-se,igualmente,que um dos obstáculosprincipais à socio- ciênciasda Sorbonne,deixadarecentementepor Bachelardque, além disso,vai legar-lheapre-
logiado Estadoresidena incapacidadeque estepossuipara tornar secretoo seu própriopoder. sidênciado Institut d'Histoiredes Sciences.Investidode tais funções,Canguilhemdesenvolve
Em primeiro lugar, o Estado é o "banco central de crédito simbólico"que endossa os atos de umahistóriados conceitosda biologiae da medicina- La connaissancede la vie - e transmitea
nomeaçãopor meio dos quais "as divisõese os altos cargossão atribuídos e proclamados,i.e., herançabachelardianamedianteseuscursosna Sorbonnee no IHS:"Aodar continuidade~obra
promulgadoscomouniversalmenteválidos no campo de ação de um determinado território de GastonBachelard,sobrea qualofereceude uma apresentaçãoadmirável,GeorgesCanguilhem
e população [...]. O título acadêmicoé a manifestaçãoparadigmática desta 'magia do Estado' produziuuma c~ntribuiçãodecisivapara a epistemologiahistóricaou,mais,para a historicização
atravésda qual, a pretexto da certificação,as identidadese os destinossociaissão produzidos, da epistemologia,para a análiserigorosada gênesedos conceitoscientíficose dos obstáculoshis-
as competênciastécnicas e sociais fundidas e os privilégios exorbitantestransmutados em tóricosà sua emergência,sobretudopor meiode descriçõesclínicasdas patologiasdo pensamento
direitos devidos"(WACQUANT, 2007,p. 307-308). científico,das falsasciênciase dos usospolíticosda ciência,em especialda biologiâ'(EAA,41).
A violênciado Estado é exercidasobre nós através da inculcação de categoriaspor meio Nomeadopresidentedo júri da agrégationde filosofia(1964-1968),promovea exigência
do sistema educacional, que produz "mentes dóceis" e, não é supérfluo recordar, docilis de científicidadee encarna o espírito de rigor para a geração de estudantes de filosofiada
deriva de docere,ensinar. ÉcoleNormale Supérieuredas décadas de 1950-1960:"Condiscípulode Sartre e de Aron na
ÉcoleNormale, dos quais se distingue por uma origem popular e provinciana, Canguilhem
Referências poderá ser reivindicado, ao mesmo tempo, pelos ocupantes de posições opostas no campo
CATANI,A. M. Origem e destino: pensando a sociologia reflexiva de Bourdieu. Campinas, SP: universitário:enquanto homo academicus exemplar - tendo desempenhado,durante um
Mercado de Letras, 2013. longoperíodo, e com o mais extremado rigor, as funções de inspetor geral do ensino s~cun-
WACQUANT,L. Lendo o "Capital" de Bourdieu. In: PINTO, J.M.; PEREIRA,V. B. (Orgs.).Pierre dário -, ele servirá de emblemaa professoresque ocupam posiçõesinteiramente homologas
Bourdieu: a teoria da prática e a construção da sociologia em Portugal. Porto: Afrontamento, à sua nas instâncias de reprodução e consagraçãodo corpo; entretanto, enquanto defensor
2007. de uma tradição de história das ciênciase de epistemologia,o refúgioheréticopor excelência
da seriedade e do rigor na época do triunfo do existencialismo,ele será consagrado,junto
38. CANGUILHEM, GEORGES ( 1904-1995) com Gaston Bachelard,como mestre do pensamento por parte de filósofosmais afastados
.......................................................................................................................
Vincent Bontems
do núcleo da tradição acadêmica,tais como Althusser,Foucaulte alguns outros" (MP,49).
Foi escolhidopor Bourdieupara orientar sua tese sobre "Lesstructures temporellesde la
Nascidoem4 dejunhode 1904,GeorgesCanguilhemconcorreuparaa ÉcoleNormale Supérieure vie affective".Ainda que, nesse estudo,não façanenhuma referênciaàs obras de Canguilhem,
em 19~4.Começoupor ser "alanista",isto é, discípulodo filósofo,Érnile-AugusteChartier,dito Bourdieuexibea mesmaformade expressão,laboriosae austera.Alémdisso,a proximidadedos
Alain (1868-1951),que tinha sidoseu professorno LiceuHenri IV e cujopacifismoexerceuuma doishomens era também, sem dúvida,grandementetributária da semelhançade suas trajetó-
influênciadecisivasobrea juventudeno períodoentreas duas GrandesGuerras.Nofinaldosanos rias:de origemrural e modesta,ambostinham sido "salvos"pela educação,até fazeremparte

CANGUILHEM, GEORGES (1904-1995) 99


98 CANGUILHEM, GEORGES (1904-1995)
-"----~--"--------------------'------

da eliteintelectualparisiense(a ENS)sem deixaremde manter-se apegadosa uma identidade


provinciana(comoprova,por exemplo,o fato de ambos conservaremo sotaquemeridional). ····CAPITAL
·39. ·············.··............................................................................
·j;;út;i;
-i~i;;~~
Todavia,apesar da atençãobenevolenteque lhe presta seu "irmão mais velho",as escolhasde
carreirade Bourdieuvão distanciá-los:estese esquivaquando Canguilhemlhe propõeum posto Conceitotomado de empréstimo à economia, o "capital" é radicalmente repensado por
que ele próprio já havia ocupadoem um liceu de Toulouse.Em seguida,Bourdieuabandona Bourdieu,desde o início dos ~nos 1960,na perspectiva de uma "economiageral das práti-
sua tese de filosofia,em 1957,para empreenderpesquisas de campo;finalmente,rompe com a cas"que ele não cessará mais de aprofundar em seus trabalhos. O processo da transmissão
disciplina.Produziu-seentãouma ruptura, tantointelectualquantoafetiva,entreos doishomens: hereditária do "patrimônio" é um dos modelos analíticos que lhe permitem operar uma
"Elese afeiçoaraa mim, por um dessesmovimentosde simpatia obscura que se enraíza na duplatransformação: extensão (a zona de pertinência da noção é ampliada, em particular, à
afinidade dos habitus. Lembroque, após a agrégation, havia me proposto um cargono liceu cultura)e, simultaneamente,redefiniçãoprofunda (a noção é desmonetizadae desvencilhada
de Toulouse,acreditando me dar o maior prazer devolvendo-meao 'interior', e ficoudeveras de qualquer a priori utilitarista, em uma perspectiva durkheimiana).
espantado, quem sabe até um tanto chocado,ao ver- me recusar (preferi o liceu de Moulins, Um "capital" é um "recurso",segundo o modelo do "patrimônio",isto é, um estoque de
que me aproximavade Clermont-Ferrande de Jules Vuillemin).Quando pensei numa tese, elementos(ou "componentes")que podem ser possuídos por um indivíduo, um casal, um
voltei-mepara ele, em vez de Jean Hyppolite,por exemplo,como preferiram outros, numa estabelecimento, uma "comunidade", um país, etc. Um capital é também uma forma de
espéciede relaçãode identificaçãocujos signos,em sua maioria, levam-mea crer que se tra- "segurança",especialmentedo ponto de vista do futuro; tem a característica de poder, em
tava de algo em mão dupla (eleme arrumava uma carreira universitária e científicacalcada determinados casos, ser investido e acumulado de modo mais ou menos ilimitado.
na sua). Em seguida, quando ia vê-lo,em seu escritório da rue du Four, segurava-metardes Na escala do indivíduo biológico,o patrimônio genético,os estados físico e fisiológico
inteiras (escarafunchavaem sua biblioteca, para presentear-me, artigos em separatas, às de uma pessoa fazem parte evidentementedesses "recursos".O segundo depende de fatores
vezes com dedicatóriasde grandes cientistas estrangeiros, como Cannon) e eu só o deixava sociais,levando à ideia de um "capitalcorporal" ou "físico"individual,vinculado a diversas
com o cair da noite [...] Após um período de desavença (ficoumuito magoado comigopor propriedades fisiológicas(incluindo a saúde "objetiva").Esse capital corporal não é apenas
não haver aceitado o cargo que me reservara no Liceu Pierre Fermat, de Toulouse,onde ele um dado (fixado,à semelhança do tamanho na idade adulta), na medida em que ele é sus-
mesmo tinha começado),retomamos nossas trocas e tivemos conversasfrequentesdurante cetívelde conhecervariações culturais e sociais. Ele determina muito diretamente diversas
as jornadas de maio de 1968:ele fazia parte desses oblatosque haviam dado tudo à Escolae modalidadesde satisfaçãoe de bem-estar, sob sua forma física. ·
vivenciavama simpatia de seus alunos (da minha geração)pelo movimentoestudantil como Os outros tipos de capitalexistemno estadoobjetivado- por exemplo,sob a forma de bens
uma traição inspirada pelo oportunismo ou pela ambição" (EAA,42-44). imobiliáriosou de pertencesfinanceirosque podem ser avaliadosem determinadomomento,
A diferença de geração entre os dois homens sugere que a figura tutelar de Canguilhem graçasaos preços do mercadoou de outras convençõesde avaliação.Elesexistemtambém no
pôde desempenhar o papel de "pai" em um complexo de Édipo acadêmico, mas convém, estado incorporado,sob a forma de disposiçõesinscritas nos cérebrose nos corpos (e, nessa
sobretudo observar que a escolha de deixar a filosofia, mesmo rigorosa, para se tornar qualidade,dependemde uma formaalargadade capitalcorporal).Estesegundoaspectoenfatiza
sociólogo,prolonga e ultrapassa as exigências de cientificidade de Canguilhem. É forçoso o caráter social ou psicossocialdas dimensõescorporais do comportamento.Enfim, eles têm
constatar a ausência de referênciasaos trabalhos do mestre, do qual ele retém, sobretudo, a igualmenteuma formainstitucionalizadaqueremeteao direitoe ao reconhecimentodos capitais
rejeiçãodo brilho fácil e o gosto pela árida demonstração que são a marca da epistemologia por instituições.Um diploma,a carteira de habilitação,o direitode votar,etc.,são outras tantas
bachelardiana. De certa maneira, Bourdieu é ainda mais bachelardiano do que Can- formasobjetivadas,institucionalizadas,de um capitalparticular (escolar,técnico-prático,etc.).
guilhem. A fim de assegurar a autonomia relativa da sociologia,ele precisava insurgir-se Forado capitalcorporalevocadoacima,quatrograndesfamíliasde capitalpodemserdistinguidas:
contra a pretensão da filosofiano sentido de apoderar-se das questões sociais sem fazer as O capital econômico. Esta noção corresponde a uma extensão da noção corrente de
pesquisas empíricase os investimentosteóricosnecessários.Evidentemente,sua crítica não "patrimônio".Eleé "naturalmente"avaliadoem unidades monetárias, mas é também muitas
é, neste caso, contra Canguilhem, mas tem em mira, por exemplo,os discípulos marxistas vezesfísico:terra, bens imobiliários, automóvel,equipamentos (domésticoou industrial...),
de Louis Althusser (a quem Canguilhem tomara de empréstimo o conceito de ideologia: "posses"diversas,etc. O capital financeiro(a poupança) é apenas um componenteparticular
Idéologie et rationalité dans l'histoire des sciences de la vie, 1977). Os althusserianos do capital econômicoem sua acepçãomais ampla. O capital econômicoproduz igualmente
consideravamque o materialismohistórico constituía a única ciênciasocial (veja-se,em Ce rendimentos (em particular, os rendimentos do patrimônio, como aluguéis ou dividendos)
que parler veut dire, a crítica do "discurso de importância" de Étienne Balibar). Assim, e pode estar associado,sobretudo, a diversas formas de "conforto":tamanho das moradias,
a ruptura epistemológicarealizada por Bourdieu implicava uma franca desvinculação em número e qualidade dos meios de locomoção, etc. Os fluxos de proventos (especialmente
relaç~o à filosofiainstitucional de que Canguilhem permanecia, mesmo que de maneira salariais) não constituem, em si mesmos, um capital econômico,mas permitem eventual-
crítica, um modelo. De acordo com as palavras do próprio Bourdieu: "Avida científica mente constituí-lo. São, contudo, um indicador de posição econômica,vinculado a outras
estava em outro lugar" (EAA,45-46). formas de capital (comotudo o que se refere à noção de "qualificação").Eles são também o

100 CANGUILHEM, GEORGES (1904-1995) CAPITAL 101


fundamento possível de um acúmulo patrimonial. Mesmo que os rendimentos não sejam
ao indivíduo como "cidadão"'eos diversosdireitos associadosa qualquer estatuto, mas tam-
uma boa aproximação do capital econômico, sua avaliação continua sendo um elemento bém - sobretudo, nos grupos dominantes - as condecorações,os títulos, as "honrarias" em
central em toda a análise socioeconômica,particularmente em matéria de distribuição dos
geral.A exposiçãomidiática está, por exemplo,na origem de formas particulares de capital
fluxosde riqueza. Os rendimentos e o consumo são, evidentemente,fatores importantes de
"bem-estarmaterial".Nestamatéria, uma das discussõesmais clássicasincidesobreo vínculo 1 simbólicoque erigemindivíduosem personalidadespúblicas(os"people",as "personalidades",
etc.).No lado oposto,a discriminaçãoou a estigmatização(sejaqual for a origem:cor de pele,
entre o nível de riqueza (rendimentos,patrimônio) e a "felicidade"subjetiva.Em função do
posiçãona ordem das castas, deficiência,etc.) são fontes de diversas formas de opressãoque
ethos econômico(quepode, por exemplo,ser mais ou menos ascéticoou hedonista),a relação fortalecemos efeitosde dotaçõesinferioresnas três precedentesespéciesde capital. O capital
entre os dois não é idêntica:as estruturas simbólicasdevemser levadasem consideraçãopara
simbólicoestá sempre associadoàs outras formas de capital.
compreenderos efeitose o valor dado ao capital econômico.
Os diferentes tipos de capital- definidosdeste modo - podem ser acumulados,conver-
O capital cultural. Construída nos anos 1960para explicar as desigualdadessociais em tidos uns nos outros, transmitidos de geraçãoem geração,mas de maneiras muito variáveis
matéria educativa,cultural ou, ainda, certas diferenciaçõesnos comportamentosem maté-
e sempre dependentes dos contextossociais que condicionamseu "valor"social.Uma parte
ria de saúde, de relação com o corpo, etc., a noção de capital cultural remete a um conjunto
importante das estratégias dos indivíduose dos grupos visa manter ou estender sua dotação
multidimensional de ''competências"(por exemplo,o domínio da língua, do cálculo,etc.) e
(absolutae relativa)nesses diferentestipos de capital. No entanto, essas estratégias não são,
de disposições(que constituem sua versão incorporada, sob a forma de conexõesneurais e
em geral, estratégias de "maximização"conscientese explícitas.Assim, o valor relativodos
de automatismosmentais e corporais).Ela institucionaliza-sepor meio de diversasentidades diferentestipos de capital torna-se, por sua vez, um fator de lutas simbólicas.
jurídicas (diplomasescolares,qualificações,etc.).A restrição do capitalcultural a "competên-
cias" valorizadaspelo mercado (valorizaçãoacompanhada frequentementede uma medida
monetária), sob a forma do que se designa por "capitalhumano", é uma redução manifesta 40. CAPITAL CULTURAL
das competênciasculturais, assim como a limitação destas às competênciasmais institucio- ·······················································································································
Maria Alice Nogueira
nalizadas ou mais legítimas.Pode-seperguntar em que medida o capital cultural aprimora,
ou não, o bem-estar: a relação não é, evidentemente,mais direta do que no caso do capital A noção de capital cultural é fundamental na obra de Pierre Bourdieu. Formulada pelo
econômico,mas as práticas culturais e de lazer são potencialmentefontesde diversasformas sociólogoa partir dos anos 1960,tal noção tornou-se uma das mais poderosas categorias
de bem-estar e valorizadas como tais.
analíticas da teoria social e da pesquisa educacionalcontemporâneas.
O capital social.No plano individual,trata-se das "relaçõespessoais"enquanto recursos No início de sua carreira de pesquisador,Bourdieuestava em busca de uma ferramenta
possuídos por uma pessoa, uma família, e constitutivas de uma "rede"... Em um nível cole- conceitualque conseguisseexplicaras oportunidades desiguaisde sucessoescolarde alunos
tivo, o capital social remete, de preferência,à noção durkheimiana de integração social: é pertencentesaos diferentesmeiossociais.Em outraspalavras,era precisoexplicarsociologica-
possívelconcebê-lono plano de um bairro, de uma "comunidade"ou de qualquer entidade mente a alta probabilidadede fracassoescolarexistenteentre as criançase j~venssocialmente
político-administrativa.Sua medida é controversa,mas as relaçõespessoais constituem um desfavorecidos,sem recorrer às teses essencialistasda "ideologiado dom".E que, até meados
elementoimportante da vida coletiva.Alguns autores, na esteira de Putnam, transformam do séculoXX,a explicaçãopredominantepara essa desigualdadefundava-sena ideiade que os
esse componenteem um fator determinante da "confiança"e de fenômenospolíticos e eco- sereshumanosseriamdotadosde capacidadescognitivasinatasquefaziamdelessujeitosnatural
nômicos (democracia,crescimento,etc.).Essa associaçãoparece,no momento,pouco estável e desigualmentemunidos dos atributosintelectuaisrequeridospelas aprendizagensescolares.
entre os estudiosos, mas é mais comum que eles enxerguem em certo nível de integração Combaseem uma sériede grandeslevantamentosquantitativosproduzidosa partir dosanos
social, uma condição do bem-estar, o que, ao inverso, a perda dos laços sociais dos desem- 1950,na França,que demonstravamuma altacorrelaçãoestatísticaentrea origemsocialdo aluno
pregados demonstra. De qualquer modo, com Durkheim e Halbwachs,pode-se pensar que (sobretudoo nívelde escolaridadedos pais)e seu desempenhoescolar,Bourdieucomeçaentãoa
o volume e a composiçãodos laços sociaisdeterminam formas de "centralidade",de poder e testarnovashipótesesque tinham por sustentaçãoo pressupostode que as criançasoriginárias
de reconhecimentono âmago de determinada sociedade.
das classessociaissuperioresherdam de suas familias um patrimônio cultural diversificado
O capital simbólico. O capital simbólicode um indivíduo (mas também de um grupo, compostode estruturasmentais(maneirasde pensaro mundo),domínioda línguaculta,cultura
de uma instituição, de um país, etc.)é definidopelo "oihar" depositado(o "valor"dado) pelo geral,posturascorporais,disposiçõesestéticas,bens culturaisvariados(livrose outrosmateriais
resto da sociedadesobreesseindivíduo(e,respectivamente,sobreessegrupo, essainstituição, de cultura),etc.,os quaisse transformamem vantagens,uma vezinvestidosno mercadoescolar.
esse país). Há, portanto, uma dimensão intrinsecamente "relacional"e coletiva.É, antes de Mas,obviamente,isso só é possívelporqueos conteúdoscurricularesimpostosaos alunose os
;,udo,º;estatuto simbólico,em sua dimensão mais concreta, que correspondeao fato de ser sistemasde avaliaçãoda aprendizagempraticadospela instituiçãoescolarse assentamem uma
reconhecido"e "valorizado"("considerado","apreciado","amado",etc.).Talreconhecimento culturatida como"legítima",istoé, constituídapelosprodutossimbólicossocialmentevalorizados
assumeformasmais ou menosinstitucionalizadas:pode-seintegrar aí o estatutoreconhecido (asletras, as ciências,as artes) que emanam dos grupos sociaisdominantes,os quais exercem,
102 CAPITAL
CAPITAL CULTURAL 103
por isso mesmo,uma ação de "violênciasimbólicâ' sobre os grupos dominados.De tal modo estéticas,competênciasintelectuais,etc.).Esse é, para Bourdieu,o estado "fundamen-
que a seleçãoe a classificaçãoescolardos alunosse revestemda aparência(socialmenteaceitável) tal" do capital cultural;
do mérito individual,dissimulandoa realidadedo privilégiosocial.A instituiçãoescolarseria, b) em seu estado objetivado,configura-secomo a posse de bens materiais que represen-
portanto,um fatorde "reprodução"(enão de" democratização")da sociedade. tam a cultura dominante (ex.:livros, obras de arte e toda sorte de objetosarmazena-
· Esseconjuntode ideiasfoisistematizadonos livrosLes héritiers (1964)e La reproduction dos em bibliotecas,múseus, laboratórios,galerias de arte, etc.);
(1970),obrasda primeiraetapada carreiradedicadasao estudodos sistemasde ensinoe escritas c) em seu estado institucionalizado,manifesta-secomo atestado e reconhecimentoins-
comJean-ClaudePasseron.Masa partir dessaorigem,fortementeassociadaao universoescolar, titucional de competênciasculturais adquiridas (ex.:o diploma e todo tipo de certifi-
o conceitoirá se irradiar para a análise de outras esferas da vida social, onde se supõe que a cados escolares).
riqueza cultural exerçaefeitospoderosos sobre a classificaçãodos indivíduos nas diferentes Como se vê, para se constituírem em "capital",é preciso que esses bens tenham como
hierarquias sociais. Para citar apenas alguns dos mais expressivosexemplos,já em 1966,no única fonte aquelaparte da produção cultural humana identificadacom o produto e com as
livro L'Amour de l'art, Bourdieu abordava os efeitos do capital cultural sobre o acesso e a propriedadesintelectuaisdas classesdominantes,configurandoaquiloque o autor denomina
apropriaçãodas obras de arte pelos sujeitos,bem como sobre sua própria experiênciaestéti- de "cultura legítima"porque tem curso e validade na escala da sociedadecomo um todo. O
ca. Mais tarde, em uma de suas obras magnas - La distinction (1979)-, diferentespráticas que significa dizer que esse repertório cultural - que é particular porque emanado de um
culturais (alimentação,indumentária, decoração,esporte, lazer, etc.) que compõemo estilo determinado grupo social - tem o poder de se impor e de se fazer reconhecer por todos,
de vida dos indivíduos e dos grupos sociais serão encaradas como sistemas classificatórios adquirindo a aparência (enganosa)de universal.
que opõem o "bom gosto" ao gosto "vulgar",configurando estratégiasde distinção nas lutas No que concernea suas origenshistóricas,e no caso da França, Bourdieuassociaráo apa-
simbólicase cotidianas pela classificaçãosocial.Em Homo academicus (1984),a noção de recimento do capital cultural ao surgimento do Estadomoderno, difusor das ideias de bem e
capital cultural será utilizada na análise dos determinantes sociais da produção intelectual de serviçopúblico,o qual se assenta em um corpo de burocratas, originários da aristocracia
e do corpo docente da universidadefrancesa. Posteriormente,no livro La noblesse d'État e da nobreza togada, cuja legitimidadederiva de suas credenciaisescolaresobtidas em_insti-
(1989),o autor examinará a produção de uma elite burocrática, a partir de mecanismos de tuições de ensino que se desenvolveramdesde o século XVIII,chegandoàs Grandes Ecoles
seleçãoe de consagraçãode um grupo cuja reprodução social repousa na conversãode seu da atualidade. "Assim,para se impor nas lutas que a opõem a outras frações dominantes,
capital cultural em excelênciaescolar.
nobres de espada e também burgueses da indústria e dos negócios,a nova classe,cujopoder
Partindo do pressuposto de que o mundo social é multidimensional e que, portanto, os e autoridade repousam sobre o novo capital, o capital cultural, deve alçar seus interesses
bens econômicosou financeirosnão constituem a única forma de riqueza que fundamenta particulares a um grau de universalização superior, e inventar uma versão que podemos
a divisão da sociedadeem classesou estratos sociais, o autor forneceu,ao longo de sua obra, chamar de "progressista"[...] da ideologiado serviçopúblico e da meritocracia"(RPp,41).
inúmeras e robustas evidências empíricas da existência de outros tipos de recursos que Mas o processo de expansão e valorização do capital cultural só encontrará seu pleno
atuam na definiçãoda posiçãoocupada por um indivíduo (oupor um grupo de indivíduos), desenvolvimentonas sociedadescapitalistasavançadas,em decorrênciade mudanças estru-
no interior das hierarquias sociais.Ele defendeque as diferençasrelativas às condiçõesma- turais advindas da industrialização e do desenvolvimentosocial e econômico.A expansão
teriais de existênciase transmutam - por meio de um processo subjetivode internalização massiva das taxas de escolarização, a ampliação do acesso aos níveis mais avançados do
de disposiçõese de competências- em diferençasno estilo de viver,isto é, na maneira de se sistema de ensino, o surgimento e forte crescimentode uma indústria cultural e dos meios
usufruir os bens materiaispossuídos,engendrandodistinçõessimbólicasentre os indivíduos de comunicaçãode massa, tudo isso acarretará o aparecimentode novas profissõesligadas
ou, em outras palavras, distinções relativas à posse de bens culturais. à divisão do trabalho cultural e promoveráa acumulaçãodessa "nova"espéciede riqueza.
Por analogia ao pensamento de Marx sobre o processo de acumulação dos recursos De modo que, segundo Bourdieu, em sociedades como as nossas, o espaço social está
materiais nas mãos de um determinado grupo social, Bourdieu toma-lhe de empréstimo o estruturado por dois princípios principais de diferenciação que repousam sobre as duas
termo "capital",acoplando-oao qualificativo"cultural", para deixar bem claro que se trata mais importantes formas de capital - o capital econômico e o capital cultural -, as quais
de uma outra dimensão da realidade social, a qual - ainda que menos tangível - implica se encontram desigualmente distribuídas entre a população e operam em favor da repro-
igualmentena produção, distribuição e consumo de (um tipo específicode) bens capazes de dução das estruturas de dominação, embora os bens simbólicoso façam de um modo mais
render dividendos,ou seja, de proporcionar lucros simbólicosa seus detentores. indireto e menos perceptível.
Para o autor, esse conjunto de bens simbólicos abarcados sob a expressão de "capital No que diz respeitoàs leis de aquisiçãodo capital cultural, o pressupostocentral da argu-
cultural" pode existir sob três modalidades (EE):
mentação bourdieusiana é o de que ela se dá, principalmente,por meio da família e de suas
a) e?1 seu estado incorporado, apresenta-se como disposiçõesou predisposiçõesdura- açõessocializadoras.De tal modo que as famílias cultas transmitiriam, a seus descentes,um
douras que se entranham no corpo de uma pessoa, tornando-se suas propriedadesfísi- conjuntosocialmentelegitimado de recursos, competênciase disposiçõesde natureza diver-
cas (ex.:posturas corporais, esquemasmentais, habilidadeslinguísticas, preferências sificadaque rendem a eleslucrosmateriais ou simbólicosem diferentesmercadossociais:"De
104 CAPITAL CULTURAL
CAPITAL CULTURAL 105
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fato,a familiatem um papeldeterminantena manutençãoda ordemsocial,na reprodução,não


apenasbiológica,mas social,isto é, na reproduçãoda estrutura do espaçosociale das relações ·· · · ·CAPITAL
41.
· · · · · · · · · · · · · · ·ECONÔMICO
· · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · ································································
· Roberto Grün
sociais.Ela é um dos lugarespor excelênciade acumulaçãode capitalsob seus diferentestipos
e de sua transmissão entre as gerações:ela resguarda sua unidade pela transmissão e para a Em aula ministrada no College de France em 21 de fevereirode 1991,posteriormente
transmissão, para poder transmitir e porque ela pode transmitir" (RPp, 131). editada,Bourdieuescrevequ~"Ariquezamaterialjamais funciona somentecomo riqueza. O
Entretanto, é necessário estabelecer uma distinção entre as lógicas de transmissão do reconhecimentoconcedidoà riquezavaria segundoas sociedadese os momentose os próprios
capital cultural em seu estado objetivadoe em seu estado incorporado. No primeiro caso, a efeitosda representaçãodessa riqueza fazem com que a forçaeconômicamais bruta acabe se
transmissão de um bem material é instantânea, "mas o que é transmissívelé a propriedade beneficiandode um efeitosimbólicosuplementarque fortaleceessemesmoreconhecimento"
jurídica e não (ounão necessariamente)o que constitui a condiçãoda apropriaçãoespecífica, (SE,303).Nessa chave,Bourdieu se inspira em autores de uma geração anterior a dele que
isto é, a possessãodos instrumentos que permitem desfrutar de um quadro ou utilizar uma discutiramo funcionamentoda economiade sociedadesque antecederamo capitalismoe suas
máquina" (EE,77). especificidadesface à contemporaneidade,especialmenteMosesFinley ~ Karl Polanyi.Es_sa
Já no caso do capital cultural em seu estado incorporado, as leis de apropriaçãosão pre- aproximaçãoapareceespecialmenteem Le senspratique (1980)e, a partir dessa genealo~1~,
coces,e muito mais sutis e dissimuladas (e, por isso mesmo, mais eficazes),operando - no pode-seligar O autor à "novasociologiaeconômica"que então começavaa aparecerno cenano
mais das vezes - de modo insensívele através de um processo que se desenrola no tempo. anglo-saxãoe que se refere a Polanyicomo mestre fundador. .
"Sabe-se,por outro lado, que a acumulaçãoinicial do capital cultural [...] só começa desde Em seguida,a partir dos anos 1980,Bourdieuse aproximamais explicitamentedo umverso
a origem,sem atraso, sem perda de tempo pelos membros das famílias dotadas de um forte intelectualnorte-americano e estabeleceuma zona de diálogocom os neoinstitucionalismos,
capital cultural; nesse caso, o tempo de acumulaçãoenglobaa totalidade do tempo de socia- notadamente o econômico (R). Tais correntes de pensamento pregam a importância das
lização" (EE,76, grifos do autor). instituições na explicaçãodo funcionamentodas esferaseconômicaou política.A s~c~ologia
Além disso, a aquisiçãode capital cultural supõe um investimentodo próprio sujeitoque de Bourdieu fornece pistas e metodologias para investigar não só as formas explicitas de
deve se expor às ações de inculcação e assimilação do patrimônio cultural, entregando-se institucionalizaçãocomo também, através da noção de habitus e das sugestõessobre como
a um trabalho pessoal sobre si mesmo, pois, "tal como o bronzeamento, essa incorporação investigá-la,aquelasmaneiras implícitase bem menosrecuperáveisatravésdas metodologias
não pode efetuar-sepor procuração. Sendo pessoal, o trabalho de aquisição é um trabalho tradicionais das ciências sociais e do direito (FLIGSTEIN,1990; POWELL; DIMAGGIO, 1991).
do 'sujeito' sobre si mesmo (fala-seem cultivar-se)"(EE, 74,grifos do autor). Indo além, aponta tautologiasno conceitocentral da "escoladas convenções",uma corrente
Disso decorre que o tempo de aquisiçãoconstitui o melhor estalão para medir o volume econômicacontemporâneaimportante na França, com razoáveldifusão internacional (MP).
do capitalcultural. "Segue-seque, de todas as medidas do capital cultural, as menosinexatas A teoria geral dos capitais de Bourdieudiz que elesfuncionam de maneira e intensidade
são aquelas que tomam por padrão de medida o tempo de aquisicão- com a condição,certa- diferentesem cada espaço,ou campo,em quesãoutilizados.Issopareceevidentepara os outros
mente, de não o reduzir ao tempo de escolarizaçãoe de levar em conta a primeira educação capitais,mas é pouco intuitivo para o econômico.Essa é outra virtude heurística do conceito
familiar" (EE,74,grifos do autor). de Bourdieu:elenos conduza procurar essadiferencialidadee suas consequências.Em espaços
Por fim, cabeainda acrescentarque,na visãode Bourdieu,cadauma das diferentesespécies comoo religiosoe o intelectual,o capitaleconômicofuncionacaprichosamente,tendo que ser
de riquezaquetêm cursoem nossassociedades(ocapitaleconômico,o capitalcultural,o capital denegado.Seisso não acontecer,elepode perder a condiçãode trunfo e até virar um problema
sociale o capitalsimbólico)pode ser transformadaem outra espécie.Issoocorreporque,embora para seu portador.Jáem universoscomoo financeiro,mesmoas pulsõesemocionaistêm de s~r
sendode naturezamuitodiversa,elasmantêm entresi relaçõesmuitofortes;o quefazcomque- expressasna "fria linguagemdo dinheiro".Casocontrárioelasserão consideradasdesproposi-
no âmbito das dinâmicas sociais - elas se reconvertam incessantementeumas nas outras, tadas e seu locutor serávisto como destituídoda condiçãode agentelegítimodaqueleespaço.
segundo leis que o autor trabalhava arduamente para desvendar. No que tange ao capital Aplicadoem universoscomo o cultural,nos quais o princípiolegitimadorrejeitaa riqueza
cultural, o autor insistirá, sobretudo nas lógicas que presidem a sua reconversãoem capital material e em especiala sua ostentação,o capital econômicoestá sujeitoa "taxas de câmbio"
econômicoe vice-versa."Aoconferirao capitalcultural possuídopor determinado agenteum variáveis.Nessesentido,as estratégiasde denegaçãodo seu uso e açãolatentevariam no tempo
reconhecimentoinstitucional,o certificadoescolar [...] permite também estabelecertaxas de e no espaço.Por exemplo,se um capitalistaquiserpromovera carreiraartísticade seu filho: ~le
convertibilidadeentre o capitalcultural e o capitaleconômico,garantindo o valorem dinheiro nãopode simplesmentecompraruma galeriapara exporseustrabalhos,ou contratarum cntico
de determinado capitalescolar.Produto da conversãode capital econômicoem capitalcultu- de arte para elogiá-lo.A "sua"galeriadeveriapassar anos expondoartistas consagradosou de
ral, ele estabeleceo valor,no plano do capital cultural, do detentor de determinado diploma vanguardaatépoderprogramarseuparente.Se,alternativamente,elepretenderfaz~r~o~ascom
em relação aos outros detentores de diploma e, inseparavelmente,o valor em dinheiro pelo outrogalerista,expondoo filhodeleenquantoo outro exporiao seu filho,a poucadistanciae~tre
qual pode'ser trocado no mercadode trabalho - o investimentoescolarsó tem sentido se um elesatrairia suspeitassobrea operaçãoconjuntae os eventuaisméritosartís~cosdo,s~romoVId~s
mínimo de reversibilidadeda conversãoque eleimplicafor objetivamentegarantido"(EE,79). seriam desprezados.É assim que a possibilidadede alavancaruma carreira art1st1caa partir

CAPITAL ECONÔMICO 107


106 CAPITAL CULTURAL
do capitaleconômicodemandarianão só dispêndiomonetário,comotambém um período de na constituição do poder simbólico.De um lado, o Estado produz e mantém a sua força e o
carênciamais ou menoslongopara legitimara aplicaçãode capitaleconômiconum espaçoem seu capital econômico através da centralização do imposto e da constituição do monopó-
que ele não é sinônimode virtude.O montantede dinheiroe o tempode carênciairãovariar de lio da emissão de moeda. Da mesma forma, através do controle da emissão dos diplomas
acordocomo grau de independênciado espaçoartísticoem relaçãoao econômico.A comparação escolares,controla o fundamento último da distribuição dos capitais cultural e simbólico.
dessasduas variáveisentre doisperíodosde um mesmo espaçosocialou mesmoentre espaços A partir dessetópicopodemosfazerinferênciassobreas preocupaçõesa propósitodo enfra-
sociaisdiferentesacabamdandoboasmedidasdas especificidades e dosgrausde autonomização quecimentodos estadosnacionaistanto na esferasimbólicaquantona propriamenteeconômica.
de cadacampoem cadamomentoe assimelase tornauma boa estratégiainvestigativa.Damesma Esses temas estavam presentes no último Bourdieue se tornaram mais relevantesnos anos
formapoderíamosolharpara a distânciasocialentreos sponsorsque estariamtrocandofavores. posterioresao do seu falecimento.Assistimosna primeira década do séculoXXIa construção
Ograu de proximidadequeserápercebidocomoilegítimovariasegundooslocaise osmomentos, de estruturas estatais supranacionaiscomo a UniãoEuropeia,que retirou o poder de emissão
tambémservindopara comparaçõese a construçãode gradientesde autonomização. de moeda dos estadosnacionaisnela incluídose que também impôs mudanças significativas
Nodecorrerda trajetóriaintelectualde Bourdieu,a noçãode capitaleconômicofoise especifi- nos sistemas de ensino nacionais.Na economiamundial vimos o aumento de intensidade e
candopara dar contade perguntasgeradaspor ambientesintelectuaisdiferentes.Nofinaldosanos velocidadeda circulaçãointernacionalde capitaisprovocadapela chamada"financeirizaçãoda
1950e iníciodos 1960,a Françaviviao impériodomarxismo.Ocapital,no sentidoqueosmarxistas economia".Essasduas novidadesalterarama relaçãoentre os estadosnacionaise os detentores
davama ele,tinha algode reificado,poisescondiaas condiçõesde utilizaçãodessetrunfochamado de capitaiseconômicose simbólicos.Os indivíduose organizaçõesfinanceirasnão estataisau-
dinheiro.O ramo do empresariadomais próximodo Estadoestavacrescendoem importânciae mentaram sua forçadiante do Estado,que Bourdieucostumavacomparara um BancoCentral
impunhaaosoutrossuapróprialógicade reproduçãosocial.A abordagemmarxistanão conseguia não só estritamenteeconômico,comotambém simbólico.Essastransformaçõessociaisforam
captara lógicadasformasdelegitimaçãoqueseconfiguravamdaqueleperíodoemqueascredenciais seguidaspor pesquisadorespróximosde Bourdieu,comoDezalaye Garth {2011) eWagner(2011).
escolaresestavamganhandoum pesobemsuperiorao demomentosanterioresno reconhecimento
sociale nas estratégiasde reproduçãodosprivilégiossociaispara asgeraçõesseguintes.Anoçãode Referências
capitaleconômicodeixavaclaroque os trunfos mobilizadospeloscapitalistasnaquelemomento BAKER,K. M. Inventing the French Revolution: Essays on French Political Culture in the Eigh-
não eram diretamenteos econômicos,mas os culturaise os simbólicosde maneirageral. teenth Century. Cambridge:CambridgeUniversityPress, 1990. \
Entre as obras mais conhecidasde Bourdieu,o artigo "Opatronato",escritocom Monique CORRIGAN,P.R. D.;SAYER,D. The Great Arch: English State Formation as Cultural Revolution.
de SaintMartin, depoisconsolidadono livroA distinção,no interiorde uma análisemais siste- Oxford:Blackwell,1985.
máticada estrutura socialcomoum todo,expressabem os problemasque eletentavaresolvere DEZALAY, Y.;GARTH,B. G. Lawyers and the Rule of Law in an Era of Globalization. Abingdon:
o sentidodo conceitopara essafase.Alémdisso,elasjá apontama evoluçãodos usosdo conceito Oxon;NewYork:Routledge,2011.
numa nova fase em que as ciênciassociaiscomeçavama incorporar alguns conceitos,como o ELIAS,N. La dynamique de l'Occident. Paris: Calmann-Lévy,1976.
de network,que irá adquirir centralidadeem diversosdos seus segmentos.No tópicoriqueza FLIGSTEIN,N. The Transformation of Corporate Contrai. Cambridge:HarvardUniversityPress,1990.
econômica,Bourdieufoi seguidopelos sociólogosMichelPinçou e MoniquePinçou-Charlot, HANLEY,S. The Lit de Justice of the Kings of France: Constitutional Ideology in Legend, Ritual,
que dedicam décadas de pesquisa às formas de sociabilidadee de legitimaçãodas camadas and Díscourse. Princeton: Princeton UniversityPress, 1983.
mais elevadasdas burguesias econômicaseuropeias contemporâneas,inclusiveadaptando PINÇON,M.; PINÇON-CHARLOT, M. Les ghettos du gotha: au coeur de la grande bourgeoisie.
o conceitomainstream de rede à sociologiade Bourdieupara dar sentido às transformações Paris: Points, 2010.
ocorridasnesse segmentoprivilegiadoda estrutura social (PINÇON; PINÇON-CHARLOT, 2010). POWELL,W. W.; DiMAGGIO,P. The New Institutionalism in Organizational Analysis. Chicago:
Apublicaçãodo livropóstumocontendoo curso sobreo Estadoexplicitaoutrosdesenvolvi- Universityof ChicagoPress, 1991.
mentosdo conceitode capitaleconômico,agoravinculadoà construçãodos Estadosmodernos. TILLY,C. Coercion, Capital, and European States, AD 990-1990. Cambridge:Blackwell,1990.
DialogandocomElias(1976),Tilly{1990),Baker(1990),Hanley(1983),Corrigane Sayer(1985), WAGNER, A.-C.Lesclassesdominantesà l'épreuvede la mondialisation.ARSS, Paris,v. 190,p. 4-9,2011.
entre outros, Bourdieumostra como a coletade recursos que aconteciana sociedadeeuropeia
medievalvai se transformando no imposto contemporâneoe, nesse sentido, sistematizando
42. CAPITAL SIMBÓLICO
ao mesmotempo as centralidadeseconômicae cultural do Estado.Nessecaminho analíticose ·······················································································································
estabelecemdiversasrelaçõesinsuspeitas.Uma delas é a invençãodo patriotismo como uma Monique de Saint Martin
formadejustificaçãoda imposiçãofiscalpermanente.Era fáciljustificara coletade recursospara
custeargastosextraordinárioscausadospor guerras,masmais difícilnosperíodosdepaz relativa. O conceitode capital simbólicofoi elaboradopor Pierre Bourdieu desde seus primeiros
Insistindo na indissociabilidadeentre história econômica e história cultural, Bourdieu trabalhos, empreendidosno final da década de 1950e no início dos anos 1960,sobre o Béarn
recolocano sentido inverso uma de suas teses fundamentais sobre a centralidade do Estado e sobre a sociedadecabilana qual o acúmulo de capitalsimbólicoé, de acordocom Bourdieu,

CAPITALSIMBÓLICO 109
108 CAPITALECONÔMICO
a única forma possívelde acúmulo;tal conceitopermeia quase toda a sua obra e ostenta, sem O capital simbólico possui propriedades bastante particulares e diferentes das outras
qualquer dúvida, a grife de Bourdieu.Ele é forjadoprogressivamentepelo autor, desde seus espécies de capital: não é uma espécie de capital semelhante à do capital econômico, do
primeiros artigos, nos quais é frequentementeassociadoao capital material, sem deixar de capital cultural e, também, do capital social; ele é, por sua vez, particularmente lábil, frágil
distinguir-se dele,assim comoem um de seusprimeiros livros,Esquissed'une théorie de la e vulnerável.De acordo com a explicaçãode Bourdieu,tal fragilidadedeve-seao fato de que
pratique (1972),até suas últimas obras,tratando-se seja de Méditations pascaliennes(1997) eleé "um capital alienadopor definição,um capital que se apoia necessariamentenos outros,
ou de Le Bal des célibataires(2002)e vai retomá-lo incessantemente,abrindo então novas no olhar e na fala dos outros" (BouRDIEU, 2007,p. 389).Ele pode perder-se facilmente,tal
perspectivas,por exemplo,em seustrabalhossobrea linguagem(PVD;LPS)ou em seus cursos como a honra que pode se perder por uma ninharia - por exemplo,no teatro do Séculode
sobre o Estado, ministrados no College de France, entre 1989e 1992(SE).Nenhum artigo Ouro espanhol. Ele é também distribuído de maneira bastante desigual: "Dentre todas as
foi dedicadoao capitalsimbólico,de maneira específica,na revistaActes de la Rechercheen distribuições,uma das mais desiguaise, sem dúvida, a mais cruel - explicavaBourdieu - é
SciencesSociales,diferentementedo que ele fez em relação ao capital cultural ou ao capital decertoa repartição do capitalsimbólico,ou seja, da importânciasociale das razões de viver"
social.No entanto, reflexõesbastante aprofundadas - às vezes,capítuloscompletos- foram (MP,284).Essa distribuição é tão desigual que Bourdieuchegoua falar da "maldiçãode um
elaboradassobre esse conceitoem várias obras. capital simbólico negativo" a propósito do "pária estigmatizado"que podia ser o judeu da
Nãohá dúvidaalguma de que é difícilpropor uma definição- mesmo que provisória- do épocade Kafkaou, atualmente,o preto dos guetos,o árabe ou o turco dos subúrbiosoperários
capital simbólicoem Bourdieu:por um lado, pelo fato de que ele desconfiavadas definições, das cidadeseuropeias (BouRDIEU,2007, p. 389).
julgando que tal espécie de proposta constituía "um ritual científicoum tanto positivista" Não se pode avaliar nem padronizar o capital simbólico,que é dificilmenteobjetivável
(BouRDIEu,2007),mas também pelo fato de que o capital simbólicoé, para ele,um "capital na medida exata em que é um conjunto de propriedades distintivas que existem na e pela
denegado","desconhecidoenquanto capital",e que se apoia, em parte, na crença ou no reco- percepçãode agentesdotados das categoriasde percepçãoadequadas. Ora, tais categoriasse
nhecimento (SP).O capitalsimbólicofunciona,conformeexplicaem Le senspratique, como àdquirem,nomeadamente, através da experiênciada estrutura da distribuição desse capital
"um crédito,mas no sentido mais amplo do termo, ou seja, uma espéciede adiantamento, de no interior do espaçosocial ou de um microcosmosocial particular, por exemplo,o campo
desconto,de promissória"que os membros de um grupo atribuem somenteàquelesque - em científicoou o campo da alta costura.
razão de sua posição,do trabalho que eles executam para mantê-lo - lhe fornecem o maior A fragilidade do capital simbólicotambém tem a ver, sem dúvida, com o fato de serdes-
número de garantias. A manutenção desse capital pode, aliás, entrar em contradição com a tituído, de certa forma, de autonomia:será, ou não, uma espéciede capital autônomo,ou não
gestão dos interesseseconômicos,profissionaisou até mesmo culturais. terá tendência a confundir-se com as outras espéciesde capital?A questãopode ser suscitada
Se é impossíveldar uma definiçãoprecisa, vamos mesmo assim tentar, no mínimo, cir- quando se lê, por exemplo,em Raisons pratiques: "Designopor capital simbólicoqualquer
cunscrevero conceitoe identificarsuas principais características.Por ocasiãode uma inter- espéciede capital (econômico,cultural, escolar ou social) quando ela é percebida segundo
vençãoem um colóquiorealizado em Toulouse,em 1994,intitulado ''.Ancienneset nouvelles categoriasde percepção, princípios de visão e divisão,sistemas de classificação,esquemas
aristocratiesde 1880à nos jours", cujotexto foi publicadoapós sua morte, Bourdieuindicava classificatórios,esquemascognitivosque são, pelo menos em parte, o produto da incorpora-
com precisão e explicitavacom suficienteclareza, diante de historiadores e de sociólogos,o ção das estruturas objetivasdo campo considerado,ou seja, da estrutura da distribuição do
que entendia por esse conceito:"O capital simbólico é um capital com base cognitiva que capitalno campoconsiderado"(RP,161).Ou ainda, em Méditationspascaliennes:"Qualquer
se apoia no conhecimento (não intelectual, mas um domínio prático, um senso prático). espéciede capital (econômico,cultural, social)tende (emgraus diferentes)a funcionar como
Qualquerpropriedade - conchasnas Ilhas Trobriand, número de voltas do colar de pérolas capital simbólico (de modo que, talvez, fosse preferívelfalar, a rigor, de efeitos simbólicos
na corte da Suécia [... ] -, qualquer diferençapode tornar-se capital simbólico,distinção, se do capital) quando obtém um reconhecimentoexplícitoou prático, o de um habitus estru-
a distinção makes sense, 'adquire sentido' para as pessoas que dispõem de categorias de turado segundo as mesmas estruturas do espaçoem que foi engendrado.Em outros termos,
percepçãopara apreendê-la"(BouRDIEU, 2007,p. 388). E, em seguida, sublinhava que, em o capital simbólico (a honra masculina das sociedadesmediterrâneas, a honorabilidade do
seu entender,capitalsimbólicoé algo "melhorque prestígio,o qual destrói,pela banalização, homem ilustre ou do mandarim chinês, o prestígio do escritor renomado,etc.)não constitui
o que ele designa; inclusive,melhor que carisma porque ele tem a ideia de que, sob certas uma espécie particular de capital, mas aquilo em que se torna qualquer espécie de capital
condições,o capital simbólicopode ser uma importante fonte de ganhos"."É algo da honra, quando é desconhecidaenquanto capital, ou seja, enquanto força, poder ou capacidadede
da posição, da diferença que existe parnalguém que é capaz de fazer diferenças, de ver à exploração(atual ou potencial),portanto, reconhecidacomo legítima" (MP, 285).Assim,se
primeira vista a diferença entre três posiçõese quatro voltas do colar de pérolas".Bourdieu não chegoua duvidar do rigor desseconceito,o próprio Bourdieuse questionou,pelomenos,
referia-se,nesse caso, à intervenção de Angela Rundquist que, nesse colóquio,analisava o para saber se não seria preferívelfocalizara atençãonos efeitossimbólicosdo capital,seja ele
ritual de apresentaçãopública das damas, jovens e mais idosas, em vigor até 1962na corte econômico,cultural ou social, em vez de se concentrar no capital simbólico.
real da Suécia,na qual estas últimas iam fazer uma profunda reverênciaàs damas da família O capitalsimbólicopode, efetivamente,ser difuso,baseadounicamenteno reconhecimento
real a fim de serem assim conhecidase reconhecidas (RUNDQUIST, 2007). coletivo;no entanto, e de acordocom a observaçãode Bourdieuem seus trabalhos e reflexões

11 O CAPITALSIMBÓLICO CAPITALSIMBÓLICO 111


sobre o Estado, esse capital pode tornar-se objetivado,codificado,delegadoe garantido pelo 43. CAPITAL SOCIAL
········..·····················································_·························································
Estado, até mesmo, burocratizado. Monique de Saint Martin
O acúmuloprimitivodo capitalsimbólicoestá,segundoBourdieu,na origemda emergência
do Estado,principalagentee instrumento primordial de construçãoda realidadesocial.Bour- Foi em 1980que Pierre Bourdieupublicou,em ARSS, o que designoupor "Notesprovi-
dieu, observaRemiLenoir (2012),utilizavacom frequência- nomeadamenteem seus cursos soires"sobre o capital social,como introdução ao número 31da revista que tem o título geral
sobreo Estado,no College de France - o exemploda transformaçãodessaespécieparticular "Lecapital social" (BouRDIEU, 1980).Esse curto artigo é considerado,pela maior parte dos
de capital simbólicoque é a honra feudal, baseada no reconhecimentoprodigalizado pelos comentaristas e analistas, como o pivô central de suas reflexõese contribuiçõessobre essa
pares (epelosplebeus),honra que deveser incessantementeconquistadae mantida, em honras noção, além de ser citado com frequência. É, com efeito,nesse texto - traduzido em 1998
burocráticasreconhecidase conferidaspeloEstado(LENOIR, 2012).Eleentendiaassimexplicar (EE)- que Bourdieuexplicitade maneira mais clara sua concepçãoacerca desse conceito.
que o Estado tornara-se o único a garantir o valor das diferentesespéciesde capital ou, em "Anoção de capitalsocialimpôs-secomoo único meiode designaro fundamentode efeitos
outros termos, o capitalsimbólicopode, então,ser consideradocomoum capitalde autoridade sociaisque,mesmosendoclaramentecompreendidosno planodos agentessingulares- em que
de modo que, no caso concreto,somente o Estado está autorizadoa dizer de um indivíduo o sesituainevitavelmentea pesquisaestatística-, não sãoredutíveisao conjuntodas propriedades
que ele é, a consagrá-losocialmente,em suma, a nomeá-lo(PVD,99-100,126-127).Ao fixar a individuaispossuídaspor determinado agente.Tais efeitos,em que a sociologiaespontânea
identidadesocialde um indivíduoou de um grupo, esseato de classificaçãotem a forçade algo reconhece,de bom grado, a ação das 'relações',são particularmentevisíveisem todos os casos
oficiale se impõea todos (e,simultaneamente,impõe o Estadoa todos)."Osatos de nomeação, em que diferentesindivíduosobtêmum rendimentomuito desigualde um capital(econômico
desdeos mais triviais da ordemburocráticaordinária, tais comoa outorgade uma carteira de ou cultural)mais ou menosequivalente,segundoo grau em que elespodemmobilizar,por pro-
identidadeou de um atestado de doença ou de invalidez,até os mais solenesque consagram curação,o capitalde um grupo (família,antigosalunosde escolasde 'elite',clubeseleto,nobreza,
as nobrezas,conduzem,ao termo de uma espéciede regressãoao infinito, até essa espéciede etc.)mais ou menosconstituídocomotal e mais ou menosprovidode capital.O capitalsocialé o
realizaçãode Deussobrea terra quevem a ser o Estadoque garante,em última instância,a série conjuntode recursosatuais ou potenciaisque estãoligadosà possede uma rededuradourade
infinitados atosde autoridade,atestandopor delegaçãoa validadedos certificadosde existência relaçõesmais ou menosinstitucionalizadasde interconhecimentoe de inter-reconhecimento;
legítima (comodoente,inválido,professortitulado ou pároco)"(MP,288).Esse monopólio,à ou,em outrostermos,à vinculaçãoa um grupo,comoconjuntode agentesque,além de serem
semelhançado que ocorre em relaçãoàs outras espéciesde capital,é então o resultadode um dotadosde propriedadescomuns (passíveisde serempercebidaspelo observador,pelosoutros
processode objetivaçãoque inscreveas lutas em prol da identidadee da sobrevivênciasociais ou por elesmesmos),estão unidos por ligaçõespermanentese úteis" (BouRDIEU, 1980,p. 2).
na longaduração;neste sentidoé que, a respeitodo Estado,Bourdieuchegoua afirmar que ele . Assim,sua concepçãode capitalsocialvai muito alémda definiçãomais corrente,ou do que
é uma "reserva"ou um "bancocentral" de capitalsimbólico,"lugarem que se engendrame são Bourdieudesignapor "sociologiaespontânea".Comfrequênciaele é definidocomo "caderno
garantidas as moedasfiduciáriasque circulamno mundo social" (SE,196). de endereços" ou "rede de relações",o que evoca, sobretudo, um conjunto de indivíduos e
Assim, o capital simbólico teria sido apreendido por Bourdieu em diversas socieda- tende a apagar tanto a vinculaçãoa um grupo, a uma família ou a uma corporação,os efeitos
des, em numerosos grupos e em contextos bastante diferentes (desde a sociedade cabila produzidos por esta filiação quanto a necessidadede levar em consideraçãoos outros tipos
ao Estado da Era Moderna, passando pelo campo artístico ou pelo campo científico). O ou outras espéciesde capitais (econômico,cultural, simbólico)aos quais o capital social está
conceito pode, sem dúvida, prestar-se a equívocos, até mesmo, a confusões: com efeito, estreitamenteligado (e sobre os quais ele pode exercerum "efeitomultiplicador").
além de remeter a um grande número de situações ou realidades diferentes, seus alicerces A vinculaçãoa um grupo e os efeitosdessafiliaçãosão decisivosna concepçãode Bourdieu;
(crença, reconhecimento pelos outros, conhecimento), assim como sua área de influên- elestinham sido enfatizadosem particular por ocasiãoda pesquisasobreos presidentesdire-
cia, parecem incertos. Apesar disso, ele encontra-se entre os conceitos mais heurísticos tores-geraisdas grandes empresasfrancesas.No artigo "Lepatronat" (1978),escrevíamos:"Se
propostos por Bourdieu. o capitalsocialé relativamenteirredutívelàs diferentesespéciesde capital- e, em particular,
ao capitaleconômicoe ao capitalcultural (cujorendimentopode ser multiplicadopor ele),sem
Referências ser completamenteindependentedeles-, é porque o volumedo capitalsocialpossuídopor um
BOURDIEU,P. Postface.La noblesse: capital social et capital syrnbolique. ln: LANCIEN,D.;SAINT agenteindividual(portanto,pelo grupo a que pertence)dependedo volumedo capitalque de-
MARTIN,M. (Orgs.).Anciennes et nouvelles aristocraties de 1880 à nos jours. Paris: Ed. de la tém cada um de seusmembrose do grau de integraçãodo grupo" (BouRDIEU; SAINTMARTIN,
MSH,2007. 1978,p. 28).E, no mesmo artigo, a fotografiado funeral de Françoisde Wendel [engenheiro
LENOIR,R. rÉtat selon Pierre Bourdieu. Sociétés Contemporaines, Paris, n. 87,p. 123-154,2012. da Écolede Mines,foi presidentedo Comitêdas Forgesde France e proprietáriode empresas
RUNDQl,JIST,A. Pornpeen noir et blanc. Présentation officielledes darnes. ln: LANCIEN,D.;SAINT metalúrgicas],em janeiro de 1949- soleneagrupamentoquepermitiu procedera uma exibição
MARTIN,M. (Orgs.).Anciennes et nouvelles aristocraties de 1880 à nos jours. Paris: Ed. de la pública e oficialdo capital social -, assim como a apresentaçãoda família Debré, reunindo
MSH,2007. políticos,médicosfamosos,altos funcionáriosdo governo,presidentesde grandes empresas, '

CAPITALSOCIAL 113
1
112 CAPITALSIMBÓLICO

L
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professoresuniversitários,arquitetos,artistas, propunham duas ilustrações,entre outras, do Aliás,esse capitalnão é completamenteindependentedeles(BoURDIEU; SAINTMARTIN, 1978,
pesoimportantede vinculaçãoa um grupo quepode ser uma família,mas tambémumagrande p. 28),de tal modo que é impossível,frequentemente,isolá-lodas outras espéciesou tipos de
école,uma grande corporação,um conselhode administraçãoou um clube.O capitalsocialé, capitais.Ao mesmo tempo, não pode ser reduzido a esta ou aquela das diferentesespéciesde
com efeito,possuídocoletivamentee permite a cada um dos membrosde um grupo participar capital,em particular, ao capital econômicoe ao capital cultural (cujorendimento pode ser
do capital possuído individualmentepor todos os outros (NE).Tal vinculação proporciona multiplicado por ele).No texto de 1980Bourdieusublinha que, "embora seja relativamente
diferentesganhos, que constituemo alicerceda solidariedademediante a qual elesse tornam irredutível ao capital econômico e cultural possuído por um agente determinado ou, até
possíveis.No grupo, nem todos detêm o mesmovolumede capitalsocialque tampoucotem a mesmo,pelo conjunto de agentes a quem está ligado (comobem se vê no caso do novo rico),
mesma antiguidade;daí, uma das questõesformuladaspor Bourdieu,em 1980,se refere aos o capital social não é jamais completamenteindependente deles pelo fato de que as trocas
"mecanismosde delegaçãoe de representação",além de saber quem,entre os seus numerosos que instituem o inter-reconhecimentosupõem ore-conhecimento de um mínimo de homo-
membros,pode ou não representarou, mais ainda, aplicaro capitalsocialdessecoletivo. geneidade'objetiva',e de que ele exerceum efeitomultiplicadorsobre o capitalpossuído com
Aliás, a aplicaçãodo capital social do grupo só é possívelpor alguém que tenha realizado exclusividade"(BouRDIEU, 1980,p. 2).
um importante trabalho de instauração e manutenção desse capital. ''A existência de uma Ao escreveras "Notes provisoires",Bourdieunão utilizavapela primeira vez esta noção
rede de ligaçõesnão é um dado natural, nem mesmo um 'dado social', constituído de uma de capital social, mas é a primeira vez que a tornava central em um trabalho. Ele irá indicar
vezpor todas e para semprepor um ato social de instituição (representado,no caso do grupo com precisão, vinte anos mais tarde, que havia forjado efetivamentetal conceito em suas
familiar, pela definiçãogenealógicadas relaçõesde parentesco que é característica de uma produçõesiniciaisde etnologiana Cabíliaou no Béarn,"para explicaras diferençasresiduais
formação social),mas o produto do trabalho de instauração e manutenção que é necessário associadas,grossomodo, aos recursos que podem ser reunidos, por procuração,através das
para produzir e reproduzirligaçõesduradouras e úteis, aptas a proporcionarganhosmateriais redes de 'relações'mais ou menos numerosas e mais ou menos fecundas" (SSE).Foi,de fato,
e simbólicos"(BOURDIEU, 1980,p. 2). ao empreender suas pesquisas no final dos anos 1950e na década de 1960,na Argélia e no
Desdesuaspesquisassobreos camponesesdo Béarn e das respectivasestratégiasmatrimo- Béarn, sobre a crise das sociedadescamponesase tradicionais, que pôde observar e analisar, .
niais,Bourdieujá estabeleciaa distinçãoentrerelaçõesde parentescoefetivamente"conhecidas, entre outros aspectos, as famílias (sejade condiçãoinferior ou superior), os casamentosou
reconhecidas,praticadas e, como se diz, 'mantidas"',que haviam exigidotrabalho e relações alianças e os casamentos desiguais feitos com pessoa de condição inferior, o celibato dos
genealógicasque "não tardariam a desaparecer,à semelhançado que ocorre com as veredas caçulas no Béarn e a reprodução das linhagens, além de elaborar de forma progressiva
abandonadas,se elasnão recebessemuma manutençãocontínua,mesmoque sejamutilizadas essa noção que ele não utiliza diretamente, na época, em seus textos. A família - conforme
apenasde maneiradescontínuà'.Evoca-sefrequentemente,acrescentavaele,"o quantoé difícil sublinhará posteriormente é o espaço principal do acúmulo e da transmissão do capital
restabeleceruma relaçãoquenãotenhasidomantidaem ação,mediantetrocasregularesdevisitas, social (BouRDIEU, 1980);por conseguinte,ela constitui ponto de partida decisivopara suas
cartas e presentes"(BouRDIEU, 1972).As relaçõese a vinculaçãoa um grupo podemperder sua análises e para a elaboraçãode tal conceito.
eficáciae seu valor,até mesmodesaparecer,se não houverum trabalho contínuopor parte dos Foi nas décadas de 1970-1980,no momento em que Bourdieu empreende pesquisas,
atoresenvolvidos.Semmobilizaçãonem trabalho sobreo capitalsocial,este corre o risco de se simultaneamente, sobre o gosto nas diferentes classes sociais, sobre as Grandes Écoles e
tornar uma espéciede peso morto. E esse trabalho pode ser efetuadoem diferentescontextos, sobre o que ele designa como o campo do poder - de maneira mais concreta, por ocasião
desdea formamundanarealizadapelosaristocratasaté os coquetéisdoseditores,passandopelos das pesquisas que serviram de suporte para seus livros, La distinction (1979)e La noblesse
intercâmbiosde relatórioselaboradospor professoresuniversitáriosou pesquisadores(QS). d'État (1989)-, que recorre com maior frequência à noção de capital social, explicitando-a,
Associações, clubese rallyesde diversostiposencontram-seentreosespaçosquedesenvolvem a mediante o aporte de precisões em diferentes artigos e obras. Na impossibilidade de
aptidãopara constituire manterredes,quepermitemtrabalharsobreo capitalsociale fortalecê-lo. esboçar o percurso completo dessa noção, vamos fornecer aqui alguns pontos mínimos
Alémdisso,essecapitalsocial- quepode ser herdadoda família,adquirido,sejapelocasamento de referência.
ou pelafrequênciaaosmelhoresestabelecimentosde ensino,sejapúblicoouprivado,de Grandes O capital social é evocado em rápidas tintas como "um capital de relações mundanas,
Écoles,de associações,de clubes,que é acumulado,transmitidoe reproduzido- tem-setornado, capital de honorabilidade e capital de respeitabilidade",no artigo "Reproductionculturelle
com uma frequênciacada vez maior,internacional.ComolembraAnne-CatherineWagner,as et reproduction sociale" (1971),que aborda prioritariamente a estrutura da distribuição do
classessuperioresdistinguiram-sesempre por seu cosmopolitismo,constitutivodo estilo de capitalcultural, assim como a estrutura da distribuiçãodo capitaleconômico.Em "Anatomie
vida aristocrata(WAGNER, 2007).Sejacomofor,o volumedo capitalsocialenquantocarteirade du gout" (1976},a concepçãoe a definiçãodo capital social são apresentadas_deforma mais
relaçõesdeixaum espaçocadavezmaior aosdiferentestiposde ligaçõese de relaçõesinternacio- detalhada.Assim,no momentode analisar os clubes,sublinha-seo seguinte:"Ereduzido,sem
nais, constituindo-sede maneirabastantedesiguale, quasesempre,sendoo acessoa eledifícil. dúvida, o número de instituições (seexcetuarmos,em determinados casos,o casamento)que
Nãose pode, com efeito,compreendero que é o capital social,segundo Bourdieu,se essa estejammais diretamente orientadas para o acúmulo racional de capital social:sem mesmo
noção não for relacionada às outras espécies de capital: econômico, cultural e simbólico. falar de todos os ganhos, atuais ou potenciais,que proporcionamou prometem 'relações'tão

CAPITAL SOCIAL 115


114 CAPITAL SOCIAL
1,-,.,.....,--,------------------ . •0--

insere sua atividade. Bourdieuprocurava afastar-se vigorosamentenão só dessa concepção


interessantes,a começarpelas informaçõesraras, e sem contar - o que, no entanto, não deixa
do capital social, encarnada por James Coleman e, em seguida, por Robert Putnam, mas
de ter sua importância - todas as gratificaçõesafetivas que estão associadas à vinculação
também da sociologiadas redes sociais.Foi Coleman,um adepto das ideias de GaryBecker,
plena a um grupo, ao mesmotempo, raro e homogêneo,em que o indivíduo se sente em casa
quem nos Estados Unidos (EUA)impôs o conceito na agenda científica.Seu artigo de 1988
e entre pares, essa espéciede sociedadespor ações - que são ricas da riqueza acumulada de
significativamenteintitula-sé "SocialCapitalin the CreationofHuman Capital" (CoLEMAN,
todos os seus membros - permitem a cada um de seus membros participar do capital acu-
1988),no qual propõe uma definição do conceito bastante imprecisa, permitindo-lhe re-
mulado desse modo e retirar dessa participação um ganho tanto maior quanto seu aporte
unir fenômenos de naturezas muito diferentes, cujo denominador comum é unicamente
pessoal é mais baixo e/ou quanto seu sucessoprofissionale social depende sobretudo de seu
sua função. O capital social é produtivo e torna possível a realização de alguns objetivos
capital social" (BouRDIEU; SAINTMARTIN,1976,p. 105).Reflexõesmais aprofundadas ao
que, em sua ausência, não poderiam ser efetuados. Os trabalhos de Putnam permitem ao
capital social aparecem em vários artigos - entre os quais "Lepatronat", já citado -, e mais
capital social, por sua vez, adquirir um público mais amplo, incluindo os campos político
tarde, no livro La noblesse d'État.
e midiático: em 2000, seu livro Bowling Alone - que utilizava numerosos dados sobre a
Nos anos de 1990e até sua morte, Bourdieumobiliza com menor frequênciao conceito
evoluçãodas relações sociais nos EUA,país em que mostrava que se assistia a uma queda
de capital social, um pouco como se tivesse dúvidas sobre sua centralidade, talvez também
da participação política, cívica, religiosa e sindical, além de relações sociais informais -
porque o conceito,um tanto polissêmico- daí em diante difundido amplamentepor James
obteveenorme repercussão(PuTNAM, 2000).A noção acabousendo instrumentalizada pelas
Coleman(1988)e, em seguida,por RobertPutnam (2000)-, acabasendoutilizadocomsentidos
instituições internacionais, como o Banco Mundial ou a Organização para a Cooperação
e acepçõesbem diferentes daquelesque ele havia pretendido atribuir-lhe ou, ainda, porque
julgavater sido suficientementeexplícitono texto de "Notesprovisoires".O capital social é e DesenvolvimentoEconômico (OCDE).
Para além das controvérsias,gostaríamosde lembrar que o capital socialpermeia parcela
citado de passagemem La misere du monde (1993)e não figura no índice de Méditations
significativada obra de Bourdieu, sem deixar de ser, em parte, uma noção relativamente
pascaliennes (1997);é, efetivamente,mencionadonesse livro em uma evocaçãoàs diferentes
provisória, em decorrência do grande número de dificuldadespara dissociá-la das outras
espéciesde capital,mas não dá lugar a nenhuma análise. Ele não aparece,por exemplo,em
espéciesde capital,nomeadamente,do capitalsimbólico,conceitomais fortementeenraizado
Les regles de l'art. No entanto, o capital social é citado em uma de suas últimas obras, Les
structures sociales de l' économie, ao evocarum sistema de conceitosque "poderia apresen- e mais bem explicitado,ao qual Bourdieunão cessou de retornar.
tar-se como uma teoria alternativapara compreendera ação econômica",depois do habitus
e do capital cultural, e antes do capital simbólicoe do campo (SSE,12). Referências
Setentarmos fazerum balanço,podemos dizer que o capitalsocialé forjadopor Bourdieu BEVORT,A.; LALLEMENT,M. Le capital social: performance, équité et récíprocité. Paris: La
desde suas primeiras pesquisas, mas nomeado somente no início dos anos 1970,utilizado Découverte, 2006.
frequentementenos escritos dos anos de 1976a 1989e, em seguida, raramente. Em suma, BOURDIEU,P. Reproduction culturelle et reproduction sociale. Information Sur Les Sciences So-
apesar de ser muito mencionado,é pouco utilizado e objetivadoem raras ocasiões.No mo- cíales, v. 10, n. 2, 1971.
mento em que se desenvolve,em meados dos anos 1990,uma abundante literatura em torno BOURDIEU,P. Les stratégies matrimoniales dans le systeme de reproduction. Annales, v. 4-5,
da noção de capital social,Bourdieu deixa de lhe dedicar análises substanciais. juil./oct. 1972.
Esse conceitoé provavelmenteaqueleque suscitou o maior número de trabalhos e deba- BOURDIEU,P.; SAINTMARTIN,M. de. Anatomie du gout. ARSS, v. 5, oct. 1976.
tes, de amplitude internacional, em sociologia,em ciência política e em economia, desde a BOURDIEU,P.;SAINTMARTIN,M. de. Le patronat. ARSS, v. 20-21,mars/avr. 1978.
última década do século passado (BEvoRT;LALLEMENT, 2006).Com efeito,uma abundante BOURDIEU,P. Le capital social: notes provisoires. ARSS, v. 31,jan. 1980.
literatura tem sido publicada sobre ele. A variedade das questões para as quais o capital COLEMAN, J. S. Social Capital in the Creation of Human Capital. The American Journal of
social é mobilizado merece a perplexidade de Sophie Ponthieux, que assim observa: do Socíology, v. 94, p. 95-120, 1988.
sucessoescolar das crianças ao êxito de alguns projetos de desenvolvimento,da mortalidade PONTHIEUX,S. Le capital social. Paris: La Découverte, 2006.
nos países em transição ao sucesso econômicodos managers ou ao crescimentono Sudeste PUTNAM, R. Bowling Alone: the Collapse and Revival of American Community. New York:
Asiático,fica a impressão de que ele pode ser aplicado a quase tudo (PONTHIEUX, 2006).A Simon & Schuster, 2000.
ênfase é colocada,daqui em diante, por vários autores,sobre a reciprocidade,a solidariedade WAGNER,A.-C. Les classes sociales dans la mondialisation. Paris: La Découverte, 2007.
ou a confiançaentre os membros de um grupo e sobre as características institucionais - ou
até mesmo culturais - de toda uma sociedade. É impossível analisar aqui esses trabalhos,
cujo traço comum consisteem aventar a hipótese segundo a qual a eficáciaeconômicade um 44. CATEGORIAS
DEPENSAMENTO
·······················································································································
indivíduo, de uma empresa ou de uma nação não depende tanto da quantidade de capital
econômico à sua disposição,mas da qualidade das relações sociais no âmago das quais se Ver: Taxionomia; Classificação (lutas de)

CATEGORIASDE PENSAMENTO 117


116 CAPITALSOCIAL
'1
}

se conforme a posição relativa que ocupam no espaço social, todas elas dependentes das
45. CAUSALIDADE
DO PROVÁVEL
propriedadesde que dispõem.As classessociais,para Bourdieu,de;ern ser ent~n~idascomo
conjuntosde agentessituados em posiçõespróximas no espaçosocial,q~e_se~zstmgue~ _de
Ver:Destino
outras classes, situadas em posiçõesrelativas distintas. Em suma, as distmçoes de posiçao,
fundadas em diferençasde propriedade,conferempoder de umas classesem relaçãoàs outras

l
45. CIÊNCIA
(OPS,133-135;MPp, 164).
Pascal Ragouet O significadodado por Bourdieuaos termos "propriedade" e "distinção" - centrais já
na primeira aproximação,abstrata, do seu conceitode classesocial - permite demarcar sua
Para Bourdieu,a ciênciaconstituium "mundoà parte",não só por ser produzidano âmbito perspectivaem relaçãoà marxista, usada frequentementepor ele cornocontrapont_oda sua.
de um camposocialespecífico,mas tambémpor constituirum modo de conhecimentoobjetivo Vejamos,primeiro, 0 que ele entendepor propriedade.Trata-se,desdelogo,de propriedades-
da realidadecomestatutoepistemológico particular.No entanto,a objetividadeda ciênciaé uma no plural _ atuantes, quer dizer, que permitem aos agentesexercerempoder sobre os outros
produçãosocialcoletiva:"Oprocessodevalidaçãodo conhecimentocomolegitimaçãodizrespeito situadosem distintas posiçõesdo espaçosocial.As propriedadessão, pois, recursos de poder
à relaçãoentre o sujeitoe o objeto,mas igualmenteà relaçãoentre os sujeitose, sobretudo,às e as relaçõesde classesão relaçõesdepoder. As propriedadesatuantes,ademais,referem-se
relaçõesentre os sujeitosa propósitodo objeto"(SSR,143).Bourdieugostade lembrar a tese de a distintasformas de capital,não só a modalidadesde capital econômico,mas também ao
Bachelardsegundoa qual "ofatoé conquistado,construído,constatado".Conquistadocontra a que chama capital cultural, ao capitalsociale ao capitalsimbólico.As várias modalidadesde
ilusãodo saberimediato;construídograçasao trabalho de conceitualizaçãoe à implementação recursos econômicos- fundiários, financeiros,monetários, etc. - correspondemao que ele
do raciocíniohipotético-dedutivo;e constatado,ou seja, validadopela coletividadeatravésde entendepor capital econômico.O conjuntodos recursosculturais - sabe~es,incorporad~sou
um trabalho de comunicação.Bachelardinsistesobreesseaspectoem sua obra,LaJormation não _ possuídos pelos agentes, constituem o seu capital cultural. O con3untodos relaciona-
de l'esprit scientifique:"Qualquer doutrina da objetividadeacaba sempre por submeter o mentos sociaisa que cada um pode recorrer para alcançarseus objetivosé denominado,por
conhecimentodo objetoao controlede outrem" (BACHELARD, 1938,p. 241). ele,comocapitalsocialdos agentes.Por último, o capitalsimbólicodiz respeitoao modo como
Mas corno,então,os atores envolvidosem uma dinâmica concorrencial- para impor sua o agentesocial,portador dos seus vários recursos, é percebidopelos ou~rosagentes.Cornoo
definiçãotanto do verdadeiroquanto dos meioslegítimospara dizer o verdadeiro- chegama espaçosocial é multidimensional,cada uma destas formas de capitaltein relevânciavariá;el
um consensoracionalsobrea validadecientíficade um enunciado?Para Bourdieu,esseconsenso em cada um de seus campos- econômico,cultural,político,etc. O que importa para Bourdieu
resulta de urna dinâmica intersubjetivade circulaçãocrítica - que leva a urna "desparticula- é enfatizarque tais recursos (ou capitais)permitem aos agentesexerceremp~der nas dis_putas
rização"e a urna "universalizaçãodos resultados"-, enquadrado socialmentepela existência que ocorrem no espaçosocial ou em camposparticulares deste. Quanto mais se a~ropnarem
de normas que são os produtos da história do campo científicoe arbitrado igualmentepelo de recursos,mais possibilidadesobjetivasde ganho terão as classesde agentesnas disputasque
"real",cujaexistênciaé postuladatacitamentepelospesquisadores.Nessascon1ições,o discurso ocorremno espaçosocial. , .
científiconão poderia ser assimiladoa "um reflexodireto da realidade,a um puro registro", o outro termo em questão, "distinção", diz respeito à exclusão mutua dos agentessi-
nem ao "produto de urna construção, orientada por interesses e estruturas cognitivas,que tuados em posiçõesrelativasdiferentes,cada classesituando-seem luga~distinto em_re!açã~
viessea produzir visõesmúltiplas- subdeterrninadaspelo mundo - dessemundo" (SSR,151). às outras _ posiçõesacima, entre ou abaixo,próximas ou distantes. As diferentesposiçoesso
têm sentido em contraponto umas com as outras.
Referência Em suma, 0 espaçosocialé um espaçomultidimensional de posiçõesrelativas.Neleca_da
BACHELARD,G. La formation de l'esprit scientifique: contribution à une psychanalyse de la posiçãopode ser definidaem função de um conjuntomultidimensionalde c~or~ena~as,cu~os
connaissance objective. Paris: Vrin, 1938. valorescorrespondemao volume total de capitalpossuídopelosagentes(primeiradrmensao)
e à sua composição,quer dizer, ao peso relativo que as diferentesespéciesde capitaltê~ no
47. CLASSE
SOCIAL conjunto (segundadimensão).Além disso, a posiçãosocialde um agenteou de um con3unto
de agentes não é apenas uma posição relativa em urna estrutura social em dado moi:nento;
Brasílio Sallum Jr.
ao invés, a posição social é sempre um ponto em uma trajetória (individual e colet1v:,~e
Edison Ricardo Bertoncelo
ascensãoou descenso)que orientaos agentespara pontos de chegadamais ou menosprovaveis
segundo seus diferentespontos de partida (terceiradimensão). . _
Trata-sede um conceitocuja compreensãodepende de se concebera sociedadecornoes-
Em seus estudossobre a sociedadefrancesa, Bourdieucostumavarepresentar as posiçoes
paço soc,ial.Entendidaa sociedadedesta forma, os agentessociaisocupamdistintasposições
que os agentesocupam no espaçosegundo essas três dimensões.Duas delas_estabele~em_ um
relativas,definidas conforme se distribuem as propriedades entre eles, o que lhes confere
cortesincrônicona estrutura sociale correspondemao volume total de capitaleconomzcoe
poder nas relaçõescom os outros. Assim,os agentessociaissão distinguidose distinguem-
CLASSE SOCIAL 119
118 CAUSALIDADE DO PROVÁVEL
cultural que possuemos agentesem um dado momento (eixovertical) e aopeso relativoque O habitus, o princípionão escolhidodas "escolhas"cotidianas,com sua duplacapacidade
essas espéciesde capital têm no conjunto (eixohorizontal). Assim, no topo da estrutura da de engendrar práticas e de produzir juízos práticossobre as práticas,transmuta o espaçodas
sociedadefrancesa,encontram-seosgrupos dominantes (grandesempresários,profissionais classessociais,o espaçodas diferençasobjetivas,em espaçosimbólico,queé o espaçodos estilos
e intelectuais),que se diferenciamdos demais grupos (operários,funcionários de escritório) de vida. As marcas ou signos de distinção - o conjuntode traços de um estilo de vida - são,
eni termos do volume de capital que possuem e entre si, segundo o peso que os capitais na verdade,retraduçõesexpressivas,por meioda fórmulageradorado habitus, das diferenças
cultural e econômicotêm na composiçãodo capital total. A outra dimensão estabeleceum objetivas.Assimsendo,diferentementede MaxWeber,queentendiaclassee status comoprin-
corte diacrônico na estrutura social, apreendendo cada posição em uma trajetória entre cípiosopostosde diferenciaçãosocial,Bourdieuarticula a ordem econômicae a ordem social.
uma origem e um destino.Assim,determinadasposiçõesintermediáriasna estrutura social Dissemosantesqueo habitus consistede disposiçõesduráveise transponíveis.Sãoduráveis
(comoocupaçõesde escritório)podem ser, para alguns indivíduos,posiçõestemporárias em porqueo habitustendea carregaras "marcas"do passadodo qual é produto,sobretudodas "pri-
uma trajetória que os orienta para posiçõesgerenciaisou de direção. meirasexperiências",relacionadascomas "manifestaçõespropriamentefamiliais"de urna dada
Combase nessaspropriedadese posiçõesrelativas,Bourdieusustentaque se podem definir condiçãode classe.Taisexperiênciasdeurnacondiçãode classee de seuscondicionamentos sociais
classesno sentido lógicodo termo - conjuntosde agentesque ocupamposiçõessemelhantes tendem a se inscreverno habitus comoesquemasde avaliaçãoe percepçãode toda experiência
e estão sujeitosa condicionamentossociaissemelhantes.Em função,podemossupor que têm posterior(SPp,89).Alémdisso,as disposiçõesdo habitussão transponíveisporqueos esquemas
boa probabilidadede terem atitudes e interessessemelhantese, consequentemente,práticas e de ação e percepçãoque orientamas práticasdos agentesse manifestamnos diferentescampos
tomadas de posiçãosimilares.É o que denomina,para sublinhar seu ponto de vista, classes em que se organizaa vida socialsegundoas lógicasquelhes são específicas(campoeconômico,
no papel;não uma classeefetiva,um grupo mobilizadopara a luta, mas urna classeprovável, campopolítico,campocultural,etc.).Comoconsequência,as práticasdos agentesnos diferentes
conjuntode agentesque oporãomenos resistênciaà mobilizaçãocoletivado que se mesclados campossociaistendema se organizaratravésde oposiçõesquesãohomólogasentresi e também
comoutrossituadosem lugaresdistintosdo espaçosocial.Assim,tais classes"nãoexistemcomo homólogasem relaçãoao espaçodasrelaçõesde classe.Nessesentido,as transposiçõessistemáticas
gruposreaisemboraexpliquema probabilidadede se constituíremem grupospráticos,famílias produzidaspelohabitus conformeos camposem que eleoperaconferemcerta homogeneidade
(homogamia),clubes,associaçõese mesmo 'movimentos'sindicaise políticos"(OPS,137). às práticasdos agentesde urna mesmaclasseindependentementede qualquerintencionalidade.
Esteé o primeiroesquemacomqueBourdieuanalisaas classessociais,as classesdefinidas"no Issoporque,diferentementeda tradiçãomarxista,que vê na consciência~e classeo elo queliga
papel".Elede fatovai além.Tentamostrar,ademais,comoelasse manifestamna práticasocial. estruturae ação,Bourdieusublinhaque o habitus é muitomais um inconscientede classe,pois
O habitus é o elementomediadorentre as classesprováveise as práticas.Eleé um sistema operaem um nívelpré-reflexivo,aquémda representaçãoexplícita.
de disposiçõesde conduta duráveis e transponíveis,que funciona comoprincípio gerador O gostode classe- a "fórmulageradoraque se encontrana origemdo estilo de vidâ' - é o
de práticase representações.Elenão se confunde,pois, com o que é "habitual".Aoinvés,o ha- produtoda transponibilidadedo habitus(LDp,165).Assim,diziaBourdieuem seusestudossobre
bitus é um conjuntode esquemassubjacentesàs práticas diversase improvisaçõesreguladas, as camadas populares na França, as escolhas e práticas das classespopulares em diferentes
dentro de limitesassociadosàs condiçõessociaisde sua gênese.Vê-seaqui outra característica domíniosda vida socialexprimem o gosto de necessidade:"[a] submissãoà necessidadeque
do habitus: ele é produto da incorporaçãopelos agentesde uma condiçãode classe,que de- [...] leva as classes populares a uma 'estética' pragmática e funcionalista, recusando a gra-
corre,simultaneamente,de uma situaçãode classe,quer dizer,das "propriedadesintrínsecas" tuidade e a futilidade dos exercíciosformais e de toda espéciede arte pela arte, encontra-se,
a determinadascondiçõesde existência,e de umaposição de classe,ou seja,das propriedades, também, na origem de todas as escolhasda existênciacotidiana e de uma arte de viver que
relativamenteindependentesdas anteriores,que se devem às relaçõesque unem uma classe impõe a exclusão,comose tratasse de 'loucuras', das intençõespropriamenteestéticas"(LDp,
socialàs "outraspartes constituintesda estrutura social."Assim,a condiçãodo camponês,sua 353).Por meio do gosto de classe, as "preferênciasdistintivas" que compõem um estilo de
condiçãode classe,se deve,em parte, à situaçãode trabalhador da terra, que envolvecerto tipo vida exprimem "a mesma intenção expressivâ' em diversossubespaçossimbólicos(mobília,
de relaçãocom a natureza, "feitode dependênciae submissãoe correlativode determinados vestuário, alimentação,etc.) segundo as lógicas que lhes são específicas(LDp,165).
traços recorrentesda religiosidadecamponesâ', e, também, a sua posiçãona estrutura social, Omodeloteóricopropostopor Bourdieuimplica,portanto,na sobreposiçãode três esquemas
que "é sempredominadapela relaçãocom o citadino e com a vida urbana" (EIS, 4). analíticos:o espaçosocial,habitus e o espaçodos estilosde vida, sendo o habitus o elemento
Aspropriedadesde posiçãoestãoligadas,também,ao sentidoprovávelda trajetóriado agente que medeiaa transmutaçãodas diferençasobjetivasem signosdistintivos.Vê-se,assim, que o
e/oupela classea quepertence.Sobretudose essesentidoforvivenciadocomoparte de urna tra- espaçosocialé, simultaneamente,uma estrutura de relaçõesobjetivasque estána origemdos
jetória de classe,eletende a produzir,por meiodas disposiçõesde condutainscritasno habitus, esquemasde percepção,classificaçãoe ação que orientam a prática, e um conjuntode lugares
percepçõescomunsacercado passadoe do futuro e do valor conferidoa eles:"o grau em que os estratégicosa partir dos quais os agenteslutampelaapropriaçãode bens econômicose culturais
indivíd1;1os e os gruposestãovoltadospara o futuro,a novidade,o movimento,a inovação,o pro- e em torno da distribuiçãodos capitais.E comotais lutaspelaapropriaçãodosbens não passam
gresso[...] ou, ao contrário,estãoorientadospara o passado,movidospeloressentimentosociale de disputasem torno da possibilidadede apropriá-losenquantosinais distintivos,o espaçodos
peloconservadorismo, depende[...] de sua trajetóriacoletiva,passadae potencial[...]"(LDp,425). estilosde vida tende a exprimir "um balanço,em determinadomomento,das lutas simbólicas

CLASSE SOCIAL 121


120 CLASSE SOCIAL
cujopretextoé a imposiçãodo estilode vida legítimo",seja atravésda monopolizaçãodos "em- 48. CLASSIFICAÇÃO (Lutas de) ................................ ..
······················································.
······························
blemasda classe"ou do "modode apropriaçãolegítimodessesbens" (LDp,233). Maria Alice Nogueira
O fundamento das disputas simbólicasque são, de fato,lutaspolíticas em torno das cate-
gorias de percepçãodo mundo e de construção do senso comum, reside na relativa indeter- Derivada da expressão"luta de classes",própria do vocabulário marxista, o termo "lutas
minação do mundo social.Issoporque, embora as relaçõesobjetivastendam a se reproduzir de classificação"(luttes de classement) foi criado por Bourdieu para assinalar que, nas
nas visões de mundo por meio do habitus, o sentido que o agente possui de sua posição no sociedades capitalistas contemporâneas, a luta entre as classes sociais se desdobra numa
mundo nunca é totalmente definido:ao invés, os objetos do mundo social carregam algo de luta simbólica para impor a visão de mundo e as categorias de pensamento.dos grupos
vago e indeterminado que, aliado ao caráter pré-reflexivodo habitus, abrem espaçopara as dominantes. Ela constitui, em outras palavras, uma versão modificada e suav1zad~(e, por
disputas que têm comopretexto a verdadedo mundo social (OPS,141-142).E mais: embora o isso mesmo, socialmente admitida) das lutas de classes frontais e brutai~ ocorrida~, ao
mundo social se apresenteaos agentesde uma forma parcialmente estruturada, sob a forma longoda história, entre patrícios e plebeus,servos da gleba e senhores feudais, proletariado
de objetos(por exemplo,instituições e pessoas que nelas encontram) cujas propriedades es- e burguesia, etc. ,,
tão combinadas de maneira muito peculiar, os agentes sociais reintroduzem, em suas vidas No entanto, Bourdieua consideracomo "uma dimensão fundamental da luta de cla~se~ _
cotidianas,a indeterminaçãono mundo social,por meio das estratégiasde apresentaçãode si (CDp,167)porque,alémde dar contada luta dos agentessociaispel~~istribui?ão,e~propriaçao
que envolvemo manejo de símbolosou signosdistintos e que tendem a "mascarar" a relação dos bens raros, ela é uma luta pela hierarquização e pelo monopobo dos princ1p10se modos
entre práticas e posições(BouRDIEU, 1987). legítimosde percepçãoe de ação no mundo social. . " . _ , .
Ainda assim, as classesdominadas têm menor probabilidadede ter sucessona imposição Em 1980, em seu livro Le sens pratique, o autor escrevia: As class1ficaç~es, e a propr:a
de sua visão de mundo às demais classesporque a forçarelativa dos agentesem tais disputas noção de classe social, não seriam um aspecto da luta (de classe~)tão,d~cis1vose ela.snao
dependede sua posiçãorelativana estrutura de distribuiçãodo capitalnos várioscampos.Por contribuíssempara a existênciadas classessociais,ao acrescentara efi~ac1ados mecamsmos
isso, diz Bourdieu,as classesdominadas tendem a "intervir" em tais disputas essencialmente objetivos- que determinam as distribuiçõese asseguramsua reproduçao- o reforçoquelhes
como"referênciapassiva".É assim que o gostoque orienta as "escolhas"das classespopulares proporcionaa adesão dãs mentes que elas estruturam" (SP,144). .
é gosto "de necessidade",em oposição ao "ascetismo aristocrático" do intelectual ou à "es- · Em suma, uma "luta de classesno cotidiano"(AccARD0, 2006, p. 213),a luta pela~las~~ca-
tética hedonista da naturalidade e da facilidade"da burguesia (LDp,167).Porque reduzido çãosocialdeveser vista como uma luta que se trava, sobretudo,no plano dos bens s1mbobcos
à escolhado necessário,define-sepelo comum, pelo grosseiro,pela primazia que confere à e da qual dão prova as lutas pelo "bom gosto",pelo "bom senso"(AccARDO, 2006, P· 213),etc.
função em detrimento da forma; serve, portanto, tão somente de contrastepara aquilo que
está no centro das lutas simbólicas,a disputa entre as diferentes classes e suas frações em Referência . . . . 200 6
torno da maneira legítima de viver, disputa que se expressa na França, para Bourdieu,pela A. Jntroduction à une sociologiecritique:lirePierreBourd1eu.Marse11le.
ACCARDO, Agone, ·
dialética entre a pretensão e a distinção.
Apretensão é a forma tipicamentepequeno-burguesade perceber o mundo social e agir
49. COISASDITAS(Chosesdites) ..................................................
.
nele. Presa à contradição entre o pertencimento a uma posição dominada e a aspiração por ···································································· Cristina Carta Cardosode Medeiros
participar dos valores dominantes, a pequena burguesia busca apropriar-se da distinção,
ainda que sob a forma do blefeou da imitação,para distanciar-sedaquelesque estãoexcluídos
desse jogo porque desprovidosdas disposiçõespara priorizar o parecer em detrimento do BOURDIEU,P. Coisasditas.São Paulo:Brasiliense,1990.
ser. Aspirando adquirir as propried~desmais distintivas, banalizando-as, os "pretendentes
pretensiosos"inclinam os "detentoresdistintos" (a burguesia) a buscarem em novos objetos Publicado originalmente pelas Éditions de Minuit (1987),Coisas dit~s se~ue de perto 0
ou em novas maneiras de apropriação o fundamento de sua exclusividadeou raridade. objetivofixadopor Bourdieuquando do lançamento de Questões.de_socwlogza ~198~),qual
Vê-se,pois,quetais disputascotidianasnão sãomeramenteindividuais;nelasmanifestam-se seja, 0 de compilar transcrições de palestras, entrevistas, conferenciase comumcaçoes.Na
também asformas coletivasdas lutas simbólicas.Nessasdisputas,o que está em jogoé funda- apresentaçãoda obra ele se refere ao discurso escrito, sempre à margem de qualquer expe-
mentalmentea imposiçãoda visãolegítimado mundosociale de suasdivisões,quetem no poder riência direta de relação social - daí sua preocupaçãoconstante em fazer-secompree.nd~ra
de nomeaçãomantidopeloEstadoseu meio oficialde consagração(BoURDIEU, 1987,p. 13-14).
partir da comunicação oral e de poder realizar, nessas ocasiões, "contrações,abreviaçoes,
aproximações,favoráveisà evocaçãode totalidades complexas"(CDp,10). Co1?1o afirmado
Referência pelo autor, o discurso oral pode propiciar a revelaçãode um pensam~ntoe~ açao que.a obra
BOURDIEU,P. What Makes a Social Class?On Toe Theoretical and Practical Existence of Groups. escrita por vezes pode dissimular. Dividido em três partes, em Coisas ditas Bourdieu.c~-
Berkeleyfournal of Sociology,v. 32, p. 1-17, 1987. menta sua formaçãointelectual,nomeandoautoreslidos por ele em seu processode transiçao

COISAS DITAS{Choses dites) 123


122 CLASSE SOCIAL
da filosofiapara etnologia e, por fim, para a sociologia,referências estas que foram sendo fase funcionando como mera formalidade. Destaque-se que não se exige dos candidatos
incorporadas em suas proposiçõesfundamentais. Também aborda a sociogênesede alguns qualquer grau universitário, sendo eles avaliadosem razão da importância e originalidade
de seus conceitos,que foram repensadose reinterpretados.Admite,nesta primeira parte, ser dos seus trabalhos (ALMEIDA, 1999,p. 18).
um estruturalista genéticoque busca analisar as estruturas objetivasde forma inseparávelà O Collegede France, esta instituição pública de ensino superior, goza de grande liber-
análise da gênesedas estruturas mentais,produto da incorporaçãodas estruturas sociaisnos dade para realizar suas pesquisas, constituindo-se em instância máxima de valorizaçãoda
agentes.Na segunda parte exploraas noções de estratégia, adaptaçõesao jogo social,regras, autonomia e do trabalho intelectual. Apenas a título ilustrativo, foram (ou são) professores
sensoprático e senso do jogo,com a finalidade de abordar as lógicasda prática. Na terceira e na casa, entre outros humanistas, LucienFebvre,MarcelMauss,MauriceHalbwachs,Émile
última parte, priorizando temas como o espaçosocial e o poder simbólico,tece comentários Benveniste,Maurice Merleau-Ponty,Paul Veyne,GeorgesDuby;GeorgesDumézil,Fernand
sobre o campo intelectual, suas relaçõesde força,capital de reconhecimentoe consagração, Braudel,ClaudeLévi-Strauss,PierreBoulez,RaymondAron,JerzyGrotowski,MichelFoucault,
além de analisar o campo político, a delegaçãoe a autoconsagraçãodos mandatários. Um Roland Barthes, Pierre Bourdieu,RogerChartier, Pierre Rosanvallon.
texto bem relevantee que exemplificaa forçaintelectualde Bourdieue a operacionalidadede
seu quadro de análise é o que discorre sobre um programa para uma sociologiado esporte,
Referências
importante igualmentepara uma sociologiado corpo, ocasiãoem que procura propiciaruma ALMEIDA,A. O Collegede France e o sistema de ensino francês. ln: CATANI,A. M.;MARTINEZ,P.
ruptura teórica que instale um clima científico decisivopara a criação de uma sociologia (Org.).Sete ensaios sobre o Collegede France.São Paulo: Cortez, 1999.p. 15-30.
empírica com identidade específica,tendo o esporte como foco de suas preocupações. CATANI,A. M. Aulas no Collegede France. ln: CATANI,A. M; MARTINEZ,P. (Orgs.).Sete ensaios
sobreo Collegede France.São Paulo: Cortez, 1999.p. 7-13.
so.COLLEGE
DE FRANCE ERIBON,D. Michel Foucault (1926-1984).São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
Afrânio Mendes Catani HAROCHE,S. Enseignerla scienceen train de sefaire. Disponívelem: <www.colege-de-france.fr>.
Acessoem: 8 maio 2013.
O site do Collegede Francerevelaque a instituiçãovai fazer,em breve,500 anos,tendo sido LÉVI-STRAUSS, C. Minhas palavras. São Paulo:Brasiliense,1986.
criada em 1530pelorei FranciscoI, vivendovárias transformaçõesao longodos séculos,desde
que era denominada CollegeRoyalaté o momento, em que reúne 57professorestrabalhando
com outros pesquisadores,auxiliares, técnicos e funcionários administrativos. O Collegeé s1.CONATUS
·······················································································································
organizado em cátedras, que abarcam um vasto conjunto de disciplinas: das matemáticas Mariá Alice Nogueira
ao estudo das grandes civilizações,passando pela física, química, biologiae medicina, pela
filosofae literatura, pelas ciênciassociais e economia,pela pré-história, arqueologiae a his- Expressãode uso esporádicoe infrequente na obra de Bourdieu,o termo "conatus" tem
tória, pela linguística. Das 57 cátedras, 5 são anuais e recebem a cada ano um novo titular. sua origemetimológicano verbolatino conari, que significa"esforçar-se",e do qual constitui
O Collegede Francedefinerelaçõesespeciaiscom seus usuários,legalmentedenominados o particípio passado. De modo resumido, é possíveldefini-locomo uma tendência incons-
ouvintese não alunos,onde as pessoasque assistemàs aulas e aos cursos não são acompanha- ciente dos agentes,ao longo de sua trajetória de vida, a manter sua posiçãono espaçosocial.
das, não passam por controle de frequência nem por provas e exames. As aulas funcionam Na obra Homo academicus (1984),o autor esclareceque se trata de uma "combinação
como conferências,não havendo debates nem perguntas e tão pouco ocorre o diálogoentre das disposições e dos interesses associados a uma classe particular de posição social que
ouvintes e professores(ALMEIDA, 1999,p. 17).Para Lévi-Strauss,"inteiramente senhor de inclina os agentes a se esforçar para reproduzir, sem sequer precisar sabê-loou querê-lo,as
suas escolhasno quadro de sua cátedra, o professorestá preso a uma única, porém rigorosa, propriedades- constantes ou ampliadas - constitutivasde sua identidade social" (HA,230).
obrigação:tratar em cada ano de um tema novo" (1986,p. 10).Ou, segundo SergeHaroche Mas é no texto "Ascontradições da herança", presente no livro A miséria do mundo
(2013),Presidenteda Assembleiade Professoresdo College,a instituição possui uma carac- (1993),que o conceitoencontra sua aplicaçãoplena, ao ser empregadonuma acurada reflexão
terística singular: os docentesapresentam "o saber sendo elaborado em todos os domínios, sobre o papel da família, especialmentedo pai ("aqueleque em nossas sociedadesencarna
das letras, das ciências, das artes". Para isso, cada professor recebe uma bolsa vitalícia de a linhagem"),na transmissão de um projeto de manutenção da história familiar, e sobre os
pesquisa e, anualmente, presta contas de suas atividadesministrando 12 aulas. efeitossubjetivospesados desse fenômenona vida dos filhos "herdeiros"."O pai é o lugar e
O Collegeé organizado em cátedras que podem ser transformadas pela Assembleiade o instrumento de um "projeto" (ou, melhor, de um conatus) que, estando inscrito em suas
Professores.Cadavez que uma cátedra se encontra vaga, é redefinidapara o novo titular em disposiçõesherdadas,é transmitidoinconscientementeem e por sua maneirade ser,e também,
um pro1=esso de votação em duas etapas. A Assembleiadecide,na primeira fase, o título da explicitamente,por açõeseducativasorientadaspara a perpetuação da linhagem"(MM,712).
cátedra que deve substituí-la. Tão logo a cátedra é recriada e declarada vaga, a Assembleia Ainda nesse mesmo texto, em nota de rodapé, Bourdieu revela o motivo que o levou a
elegeo titular. Na prática a cátedra já é criada para um candidato específico,com a segunda forjar a noção de "conatus" e, ao mesmo tempo, a colocar aspas na palavra "projeto":

CONATUS 125
124 COLLÉGE DE FRANCE
1-,,--------------------· ·-•---

"Para evitar a lógicada intenção conscienteque a palavra projeto evoca,nós falaremosde de um sistemade regras:por exemplo,a proibiçãodo incestoé interpretada,nesta perspectiva,
conatus, mesmo com o risco de aparentar uma afetação de linguagem" (MM,712). como a expressãoda regra do intercâmbio entre clãs.
Conatus é, portanto, uma noção correlataao conceitode habitus e à noção de amorfati SeBourdieusecongratulacoma rupturaepistemológica queo objetivismo,diferentementedo
(amour de son destin) também usada esporadicamentepor Bourdieu. Esta última para se conhecimentofenomenológico, operaemrelaçãoao sensocomum,elevaicriticá-lopor negligenciar
referir às expectativassubjetivasque escondemo papel determinante das condiçõesobjetivas o ponto de vista subjetivodos·agentese sua experiênciado conhecimentoprimeiro do mundo
de vida, às quais se ajustam perfeitamente. socialcomoevidente,ou por reduzirambosà categoriade "falsaconsciêncià',de "alienação".Essa
negligênciae, até mesmo,essemenosprezo,deve-seao queBourdieudesignarámais tarde - em
Le sens pratique (1980)e, posteriormente,em Méditations pascaliennes(1997)- por "viés
s2.CONDIÇÃO
DECLASSE intelectualistà'ou "viésescolástico",a saber,o esquecimento,pelo pesquisador,de sua própria
·······················································································································
condiçãoque o conduza projetaro modeloconstruídopor elesobreo real.Bourdieulembra,por
Ver: Classesocial exemplo,quese a línguaaparececomoa condiçãoda falado pontode vistalógico,intelectualista,
ocorre que, na prática,verifica-seo inverso:a língua, o sistemade regras, nunca se manifesta
53. CONHECIMENTO PRAXIOLÓGICO
··································· separadamentedas práticasque a encarname atualizam.E mais do queisso,a aprendizagemda
····················································································
GiseleSapiro
língua se fazpelafala,e esta se encontrana origemdas transformaçõesda língua.Alémdisso,o
intelectualismolevaa erigircomomodeloas situaçõesde compreensãoperfeitaque,na realidade,
Em Esquissed'une théoriede la pratique (1972),PierreBourdieudefineos três modos de são apenasum casoparticular das situaçõesde comunicação,em detrimentode todos os casos,
conhecimentoteóricode queo mundosocialpodeserobjeto,tendoem comumo fatode seoporem tão frequentes,de dissonânciacognitiva.Comefeito,a comunicação,a emissãoe a recepçãoda
aomodode conhecimentoprático,ou seja,ao sensocomum:o conhecimento"fenomenológico", 0 mensagem,o sentidoqueelaencerra,sãoamplamentedependentesda situaçãoe do contexto,ou
conhecimento"objetivistà'e o conhecimento"praxiológico". O conhecimento"fenomenológico" seja,das relaçõessociaisem que elasse insereme que condicionamtambém a forma da comu-
explicitaa familiaridadecom o mundo circundante,percebidocomonatural, óbvio,takenfor nicação.Recusando-sea escolherentreo "modelo"e a "situação"- segundoos termosdo debate
granted. Essemodo de conhecimentoé privilegiado,nas ciênciassociais,pelo interacionismo que,na época,opôsJean-PaulSartrea ClaudeLévi-Strauss-,Bourdieupreconizauma abordagem
simbólicoe pela etnometodologia.Semnegar o interessede tal abordagem,adotadano decorrer quenão reduza as práticasà execuçãomecânicade uma regra,independentementedessaregra
de sua formaçãoem filosofia,Bourdieuvai criticá-lapor permanecerno nívelsubjetivoou in- se referir a uma norma (juridicismo),a um inconscientecoletivoou a um modeloteórico.
tersubjetivo,semnunca se questionarsobreas condiçõesde possibilidadedesseconhecimento. Omodode conhecimento"praxiológico" visaprecisamentea reposicionara práticano âmago
O segundo modo de conhecimentoteórico identificadopor Bourdieu é o procedimento do questionamento.Semrejeitara construçãoobjetivista,comofazo humanismoingênuo- que,
"objetivista",ao qual elevai dedicar-sedurante um períodomais longo,considerandoa posição aliás,a consideracomoum "anti-humanismo"-, Bourdieupretendeintegrar as própriasrefle-
dominante que tal modalidadehavia adquirido no campo intelectualda década de 1960 com xõesao modo de conhecimentopraxiológico,superando-o:ele reintroduzo que o objetivismo
o marxismo e o estruturalismo. Esseprocedimento consiste em construir relaçõesobjetivas foiobrigadoa excluir,ou seja,a questãoda experiênciaprimeirado mundo comonatural, como
(econômicas,linguísticas) que estruturam as práticas e as representações independente- óbviae, portanto, o ponto de vista dos atorescomofazendoparte da realidadea ser observada.
men~e~a_sconsciênciasindividuais. Assim, no lado oposto da abordagem fenomenológica, Por conseguinte, seu objeto não é somente o sistema das relaçõesobjetivas,mas também o
o ob~e~1:1smo caracteriza-se precisamente por seu questionamento sobre as condições de processode interiorizaçãodessesistemasob a forma de disposições.Ao serviremde estrutura
possibilidadedo conhecimento,mas ao preço de uma ruptura com as evidênciasdo senso ao comportamento- encarnando-senas práticasindividuais- e à percepçãodos agentes,tais
comum - portanto, com os pressupostos que tornam o mundo familiar. Ele opera, assim, disposiçõesfazemcom que esse sistemalhes apareçacomonatural. O modo de conhecimento
uma "desnaturalização"da percepçãodo mundo. praxiológicoadota, assim, os meios de estudar as condiçõesde possibilidadeda percepçãodo
Esseé o caso do marxismo ao se interessar pelas relaçõesde forçaeconômicas.Da mesma mundo comoóbvia.Aspráticase representaçõesnão sãoapenascapturadasdoladode fora,mas
forma, a linguística saussuriana toma como objeto a língua enquanto sistema de regras que no processode sua interiorização- atravésda educação- soba formade estruturasestruturantes
torna possível a comunicação,em vez da fala, reduzida a manifestações individuais desse das disposiçõespara agir e percebero mundo.Vê-seaqui,em ação,o trabalho de construçãodo
sistema:assim, ela se colocado lado do ato de decifração,decodificação,e não do lado da ação conceitode habitusparaexplicaro princípiogeradordepráticase dasrepresentações estruturadas.
do locutor.Na história da arte, a iconologia(tal como é desenvolvida,por exemplo,por Erwin Se o conceitode "praxiologià',com conotaçãomarxista, irá bem cedodesaparecerda obra
Panofsky,1967) considera, da mesma forma, que o sentido objetivoda obra é irredutível à de Bourdieu,a abordagemque eledesenvolvesob esteconceitoirá permanecerfundamentalnão
von_tade~do,artista ou às percepçõessubjetivasdo espectador. Neste aspecto, a operação de só para a construçãode uma teoria da prática,mas também em sua práticasociológicapropria-
dec1fraçaoe colocadaainda no cerne do questionamento.Na esteirado modeloda linguística, mentedita; testemunhodissoé o lugarque Bourdieuatribuiao ponto devista dos agentes,à sua
a antropologiaestrutural de Lévi-Straussapreende,por sua vez, as práticas comoa execução visãodo mundo,na construçãodo objetoe na metodologiade investigação- ponto de vista que

126 CONDIÇÃO DE CLASSE CONHECIMENTOPRAXIOLÓGICO 127


i..-~-------------··--· -·---·

é restituídopor entrevistasou fontesescritas-, cujailustração mais bem acabadaé seu livro La essa fórmula, Bourdieu procura reconciliar a estrutura com a ação: "Por estruturalismo
miseredu monde (1993).No entanto, fielà sua crítica do modo de conhecimentoprax:iológico, ou estruturalista, pretendo dizer que, no próprio mundo social - e não apenas nos siste-
Bourdieununca chegaráa endossaras abordagenssubjetivistasque limitam a análisecientífica mas simbólicos, linguagem, mitos, etc. ~, existem estruturas objetivas, independentes da
à explicitaçãodo ponto de vista dos indivíduos.Essa é, sem dúvida, a razão pela qual, na nova consciênciae da vontade dos agentes, que são capazes de orientar ou restringir as práticas
ediçãode Esquissed'une théoriede la pratique, em 2000, ele acrescentouum trecho em que ou representações desses agentes. Por construtivismo, quero dizer que há urna gênese
critica o subjetivismoou o intersubjetivismofenomenológicoque se tinha tornado dominante social de urna parte dos esquemas de percepção, de pensamento e de ação que são cons-
nas ciênciassociais,desde os anos 1980(emLe senspratique, 1980,sua crítica da antropologia titutivos do que designo como campos e grupos, nomeadamente do que é denominado,
imaginária do subjetivismoconcentrava-seem Sartre e nas teorias da açãoracional):de acordo de modo habitual, corno classes sociais" (CD, 147). Ele sublinha a complementaridade
com Bourdieu,de fato,a ciênciado mundo socialnão pode ser reduzida a construçõesde cons- entre essas duas abordagens,"em boa lógica,inseparáveis"(NE,7). Todavia,do ponto de vista
truções - ou construções de segundo grau -, como havia sugeridoAlfred Schütz,ou ainda a da construção do objeto, existe uma preeminência do momento objetivista, único meio de
accountsof accountssegundoHarold Garfinkel,porque ela não seria, então,nada além de um garantir a indispensável ruptura com o senso comum e a doxa.
"registrodo dado tal como elese dá, ou seja,da ordem estabelecida".O modo de conhecimento SeBourdieu fala de construtivismo em vez de subjetivismo,é para indicar que os agentes
praxiológicoexigeque se relacioneo ponto de vista dos indivíduos, assim como suas crenças, participam ativamente da produção e reprodução das estruturas sociais, que o mundo social
com suas condiçõeseconômicase sociais;nesse aspecto é que a sociologiado conhecimentoé, é efetivamenteconstruído pelas ações desses agentes.No entanto, isso não significa,de modo
"inseparavelmente,uma sociologiada política"no sentido em que ela revelaos "mecanismos algum, que o mundo social seja uma pura criação das decisões conscientesdos mesmos: "Se
gnoseológicosque contribuempara a manutenção da ordem estabelecida"(ETP,241). é convenientelembrar, contra certa visão mecanicista da ação, que os agentes sociais cons-
troem a realidade social, individual e também coletivamente,impõe-se não esquecer - como
Referência ocorre,muitas vezes, com os interacionistas e etnometodólogos-, que eles não construíram
PANOFSKY,E. Architecture gothique et pensée scolastique. Tradução e posfácio de P. Bourdieu. as categorias que estão empregando nesse trabalho de construção" (NE, 47).
Paris: Minuit, 1967. Emmatériadesociedade,o construtivismose opõeà naturalizaçãoda ordemsociale,portanto,
combinaperfeitamentecom a ideiade arbitráriocultural.O construtivismotem uma vantagem:
eledesfatalizapor implicar que a sociedadepoderia ser,certamente,construídade outra manei-
54. CONSTRUTIVISMO ra. Mas,podeter também uma desvantagemse induzir a acreditarque,por seremconstruídas,as
Denis Baranger estruturas deixam de ser reais - essaé a "rigidezdo mundo",diria RobertCastel(2003,p. 347)-,
e que a liberdade dos agentes para se livrarem dos determinismos sociais é ilimitada.
É na década de 1980que Bourdieu utiliza esta palavra. A seu respeito, conviria distinguir O mesmo ocorre no que se refere ao conhecimento científico.Em seu último curso mi-
dois sentidos, mesmo que estes não sejam totalmente independentes um do outro: por um nistrado no College de France (2000-2001),o termo "construtivismo" permanece quase
lado, trata-se da construção significativado mundo social, de acordo com o título original imperceptível,embora esse rótulo pudesse ser apropriado para designar a região do "campo
do livro de Schütz (1932),ou seja, da capacidade dos agentes de construir a sociedade; por das ciênciasda ciência"que Bourdieu torna como objetode estudo. Ele se assume ainda como
outro, continua sendo a construçãodo objeto bachelardiana.Assim, Bourdieu pode definir construtivistacontra o "paradigmanorte-americano"(SSR,41),mas essa era apenas a maneira
a ciência social como "uma construção social de uma construção social" (SSR,172);mas não de se diferenciar melhor do c~nstrutivismo radical e do relativismo, os quais unificam o
seria possível,de modo algum, qualificar Bourdieu como construtivista propriamente dito. subcampo pós-modernista na "guerra das ciências".O que Bourdieu rejeita absolutamente é
Para Bourdieu,à semelhançado que se passa com Bachelard,o oxímoro é a figura retórica a ideia de que as verdades científicaspossam ser reduzidas a relações de força políticas: em
prediletapara se desvencilharda armadilha de um binômio epistemológico.QuandoBourdieu, um campo científicoautêntico (portanto, autônomo),as proposiçõessó devemser tributárias
em sua conferênciaproferida em San Diego, escolhe o rótulo "construtivismo estruturalis- "da prova da coerência e do veredito da experiência" (MP,132-133).
ta" - ou "estruturalismo construtivista" - para caracterizar seu trabalho (CD,147),pode-se Aotornar o campo científicocomo objeto,Bourdieué levadoa rejeitartanto a visão realista
ver nessa postura uma transfiguração do binômio objetivismo/subjetivismo,presente desde ingênua quanto a visão construtivista relativista, superando assim "a alternativa do constru-
seus primeiros trabalhos, culminando emEsquisse d'une théorie de la pratique, nos "três tivismo idealista e do positivismo realista em favor de um racionalismorealista"(SSR,151).
modos de conhecimento teórico" (ETP,163). Para ele, isso tem a ver ainda com um oxímoro, já que se trata aqui, evidentemente, de um
Assim, o estruturalismo levisstraussiano seria uma forma particular de manifestação realismo epistemológico(e não ontológico,à semelhança do que ocorre com o de Popper).
do objetivismo(do mesmo modo que a linguística saussuriana, a serniologiae a estatística), F. Vandenberghe (1999,p. 62) refere-se a uma carta em que Bourdieu declarava que, "a
enquanto a fenomenologia e o pensamento de Sartre - assim como a etnometodologia, exemplode [Roy]Bhaskar,do qual havia descoberto recentementeos trabalhos, eletinha sido
o interacionismo e a rational choice theory - seriam expressões do subjetivismo. Com sempre um realista". Por sua vez, I. Hacking (2004, p. 161)evoca o realismo interno de H.

CONSTRUTIVISMO 129
128 CONSTRUTIVISMO
Putnam: "interno pelo fato de que todos os critérios da verdadesão internos a nossaspráticas Em dezembrode 1995desencadeou-sena Françaum grandemovimentosocial- marcado
científicas",explica ele. Bachelard não teria escolhido, certamente, a expressão, mas não pela greve,durante um mês, de diversosserviçospúblicos para protestar contra a revisão,
estaria assim tão longe da ideia. Hacking (2004,p."156)toma distância em relaçãoa Popper: pelo governo de direita, de "direitos sociaisjá adquiridos" e, em particular, dos regimes de
"Bourdieupretendeu transformar as lutas de confronto travadas no campo científicoem um aposentadoria.Alémdessesaspectos,o pensamentoneoliberalquestionava,no finaldas contas,
fator constitutivo da objetividadee, até mesmo, da verdade dos enunciadoscientíficos.Para o Estado-Providênciae seu papel na sociedade.Se Pierre Bourdieu,desde o início,pretendeu
Popper, a verdade é sempre uma correspondênciacom algo de diferente, algo de absoluto, que as ciênciassociaisdeveriamestar ativamentepresentesnos debatespolíticos,ocorre que,
enquanto Bourdieu rejeita qualquer espécie de teoria da verdade como correspondência". até o final dos anos 1980,sua participaçãose limitou, em grande parte, ao campo intelectuale
Hacking está cheio de razão ao opor, neste ponto, Bourdieu a Popper, mas vai talvez longe à produçãode obras, algumas das quais - cf. Les héritiers,1964;La reproduction,1970;La
demais quando concluipor sua rejeiçãode qualquer ideia de correspondência. distinction,1979,etc. - haviam obtidoalgum sucessoentre o público.No entanto,La misere
J.Bouveresse(2003,p. 29), por último, que se define de bom grado como discípulo e -du monde,livro publicadoem 1993,marca uma virada no sentidoem queBourdieumanifesta
amigo de Bourdieu, partilha com ele "a necessidadede reabilitar - e, se for o caso, contra mais diretamente sua preocupaçãoem se envolverna luta política,intervindopor meio de to-
os próprios sociólogos- uma filosofiadas ciências e uma teoria do conhecimento de tipo madasde posiçãopontuais,de artigosenviadospara a imprensa,de assinaturasde petição,etc.
realista" (BOUVERESSE, 2003,p. 132). No final de 1996,em consonânciacom as lutas sociais,elecria uma pequenaeditoramilitante
Bourdieu havia tomado sempre o partido da ciência contra os exagerosconstrutivistas - Éditions Raisons d'agir - por meio da qual pretendeprosseguir,em companhiade outros
que, em última instância, conduzem à negação da ciência social. Ele teria subscrito, sem autores,o combatecontra o neoliberalismoatravésda publicaçãode opúsculosbastante aces-
nenhuma dúvida, as simples questões de bom senso formuladas por Bernard Lahire (2001) síveis,redigidospor pesquisadores.Contre-feuxinscreve-se,pois, precisamentenessalógica.
a propósito da deriva construtivista pós-modernista: "Se o ator comum é maior sociólogo O livro é publicado em 1998e agrupa diversas intervençõespontuais de Bourdieu, cujo
que o sociólogo,que tipo de legitimidadetem o sociólogopara lhe atribuir um certificadode ponto de convergênciareside na denúncia dos lugares comuns e das falsas evidências,pro-
sociologia?Se o relato dos atores é mais completoe exprime melhor do que poderia ser dito duzidospela ideologianeoliberal. Entre outros, é de se destacar a importância do texto "La
pelo sociólogo,por que motivoesteúltimo correria o risco de destruir essaverdadeem estado main gaucheet la main droite de l'État",que abre a coletâneae torna explícitaa oposiçãoentre
bruto ao escreversobre o assunto? Se o ator comum revela-semais erudito que o cientista, uma pequena nobreza de Estado que, sofrivelmente,gerenciaos danos da políticaneoliberal
por que razão este continua vivendo como funcionário do Estado?"(SSR,111). empreendidapor uma alta nobreza do Estado privilegiada,e o texto principal que encerra
o livro, "Lenéo-libéralisme,utopie (en voie de réalisation) d'une exploitationsans limites".
Referências
BOUVERESSE, J. Bourdieu:savant et politique. Marseille:Agone,2003.
56. CONTRAFOGOS
2: PORUM MOVIMENTOSOCIALEUROPEU
CAST_EL, R. Pierre Bourdieu et la dureté du monde. In: ENCREVÉ,P.; LAGRAVE,R.-M. (Orgs.).
TravailleravecBourdieu. Paris: Flammarion, 2003.p. 347-355. (Contre-feux 2: pour un mouvement social européen)
•••••••• .. •••~••••••••••••••••••••••••••••••••••••n••••••••••••••••u•••••••••••n••••••••••--•••u•••••••--•••••••••••••••••••••••••u•••••••••••••n••••••••••••••••••••••• •
ENCREVÉ,P.;LAGRAVE, R.-M. (Orgs.).Travailleravec Bourdieu. Paris: Flammarion, 2003.
Patrick Champagne
HACKING,I. La scíencede la scíencechez Pierre Bourdieu. In: BOUVERESSE, J.; ROCHE,D. (Orgs.).
La libertépar la connaissance.Paris: Odíle Jacob,2004. p. 147-162.
P. Contrafogos2:por um movimento social europeu.Rio de Janeiro:JorgeZahar, 2001.
BOURDIEU,
LAHIRE,B. Leslímbes du constructívisme. Contretemps,v. 1,p. 101-112,2001.
SCHÜTZ,A. Der sinnhafte Aufbau der sozialen Welt: eine Einleitung in die verstehende Sozio-
Naprecedenteobra Contre-feux(1998),PierreBourdieuhaviaelaboradouma críticaradical
logie. [A construção significativado mundo social: introdução à sociologiacompreensiva]Viena: J.
do neoliberalismo,condiçãoprévia para qualqueração racional.Em Contre-feux2 (2001)ele
Springer-Verlag,1932.
reúne,segundoo mesmoprincípioadotadopara a primeiraobra,diversostextosde intervenção
VANDENBERGHE, F. "The Real is Relatíonal": an Epistemologícal Analysis of Pierre Bourdieu's
GenerativeStructuralísm. SociologicalTheory,v. 17,n. 1, p. 32-67,1999. quevisam lançar as bases de uma açãoem escalaeuropeia.Bourdieuexplicasua participação,
cada vez mais ativa e visível,no movimentosocial:"Acabeipor pensar que todos aquelesque
têm a oportunidadede dedicar suas vidas ao estudo do mundo socialnão podem permanecer
55. CONTRAFOGOS:
TÁTICAS
PARAENFRENTAR
A INVASÃONEOLIBERAL neutrose indiferentes,longedas lutas que põem em jogo o futuro destemundo",escreveelena
(Contre-feux:
propospour servirà la résistancecontrel'invasionnéo-libérale) introduçãoao livro. Os textos reunidos neste volumesão, em comparaçãocom o precedente,
menospontuais, mais longos,mais construídose mais elaborados,talvezpor se inscreverem
Patrick Champagne em lutas intelectuaisque, em sua essência,são "lutas teóricasnas quais os dominantespodem
contarcommilharesde cumplicidades".Em suas diversasintervenções,analisao novomodode
P.Contrafogos:
BOURDIEU, táticaspara enfrentara invasãoneoliberal.Riode Janeiro:JorgeZahar,1998. dominação,tão complexoquantorefinado,queo neoliberalismoimplantou:verdadeiramáquina

130 CONTRAFOGOS: TÁTICAS PARA ENFRENTAR A INVASÃO NEOLIBERAL CONTRAFOGOS 2: POR UM MOVIMENTO SOCIAL EUROPEU 131
(Contre-feux: propos pour servir à la résistance contre l'invasion néo-libérale) (Contre-feux 2: pour un mouvement social européen)
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cegae sem condutor,na qual o poder simbólicoocupaum lugar importante,o quejustifica,em No artigo "Os três estados do capital cultural", Bourdieu destaca o estado incorporado
seu entender,o papeleminenteque os pesquisadoresdeverãodesempenharem um movimento comouma das três formas de existir do capital cultural e, mais ainda, afirma que este seria
socialeuropeuque ainda está por criar. O artigo central dessacoletâneade intervençãoé, sem seu estado fundamental. Ligado ao corpo e pressupondo sua incorporação, a acumulação
dúvida,aquelequese intitula:"Contrela politiquede dépolitisation".Nesselongotexto,Bourdieu desse tipo de capital cultural demandaria um trabalho de inculcação e de assimilaçãoque
mostra que aquiloque se encontradescritosob o nome de "globalização"é o efeito,não de uma custaria tempo de investimenfodo agentesocial,tal como um "bronzeamento"(EE,74).
fatalidadeeconômica,mas de uma políticadeliberada,inconscientede suas consequências,que Em Questões de sociologia (1980),por sua vez, aborda vários textos sobre a problemá-
visalibertaras forçaseconômicasde qualquercontrole.Contraessapolíticade despolitização,ele tica do corpo, as práticas corporais e a mimesis corporal.Refere-se,na obra, à história feita
preconizaa restauraçãoda política.Mas, doravante,convémagir em um nívelque se situa para coisae a história feita corpo, afirmando que "a história está inscrita nas coisas,ou seja, nas
alémdas fronteirasdoEstadonacional:o movimentosocialdeveposicionar-seem escalaeuropeia. instituições e também no corpo" (QS,74).Todo seu esforçoteria consistidoem descobrir a
história onde ela se escondemelhor, a saber,nos cérebrose nas dobras do corpo.
As reflexõessobre o corpo ainda se fazempresentes em Coisas ditas (1987),Meditações
57. CORPO
······················································································································· pascalianas (1987)e A dominação masculina (1998),onde se exploram o conhecimento
Cristina Carta Cardosode Medeiros pelo corpo, a incorporação das disposiçõese a coerçãopelo corpo.
Na abordagemsociológicadesenvolvidapor Bourdieuficaclaro que a maneira de estar no
A partir de uma genealogiadestetema nos escritosde Bourdieu,percebe-seque as reflexões mundo se devea um processode pertencimentosocial.O indivíduoé um coletivoencarnado,
sobreo corpojá estavampresentesdesdeos anos 1960,em suaspesquisasrealizadasna Argélia. um socialincorporado.A relaçãodo corpocom o mundo é, implícitae explicitamente,ligadaà
Foiobservandoque a inversãosimbólicaentre o interior e o exteriorda casacabilaera também imposiçãode uma representaçãolegítimado·corpo.Ocorposocialé o corpodoindivíduoportador
uma inversãogeométrica,e assim corporal, que Bourdieu (ETPp)começoua introduzir em do habitus, uma vez que as disposiçõesincorporadasmoldam o corpo a partir das condições
suas análisesuma sociologiado corpo.Paralelamenteàs investigaçõesna Argélia,eletambém materiaise culturais. Este é o processode socialização,produzindoum ser individualforjado
verificavao celibatodos filhosmais velhosno Béarn e desenhavaa condiçãocampesinaa partir nas e pelasrelaçõessociais,fazendoda própriaindividualizaçãoum produtoda socialização.Por
do corpo (BC).Realizandoa observaçãode determinadoseventossociais,descreveue interpre- issoa noção de habitus articula o individuale o coletivoe englobao corpo,porque,enquanto
tou as técnicascorporaiscomoverdadeirossistemassolidáriosa todo um contextocultural. disposição,passa a orientar as práticascorporaisque traduzemuma maneira de ser no mundo.
Em "Remarquesprovisoiressur la perceptionsocialedu corps"(1977),Bourdieuafirmaque "Oquese aprendepelocorponão é algoque, comoum saber,se possasegurar diante de si, mas
o corpo, comouma forma perceptívelque causa uma impressão,é, de todas as manifestações é algoque se é" (SP,123).Nessaafirmaçãoo autorse refereà ideiade que o saberaprendidopelo
do indivíduo,a que menos se deixa modificar,apesar de investimentosde ordem variada. O corpo,entendendoestesabercomoum esquemade sistemasde investimentosocialque o corpo
corpo deveser levadoem consideraçãopor significar,de maneira mais adequada,a natureza incorpora,não é palpável.O corpo não representaum papel,não interpretaum personagem,e
de uma pessoa,funcionando,portanto, como um meio de linguagemda identidadesocialem simse identificacomesteformatodeterminadosocialmente,constituindoa partir desteformato
que "seé falado,mais do que se fala"(BouRDIEU, 1977,p. 51).No corpo se leria a linguagemda a imagem de si. Reconhecidacomo sua maneira de ser, o agentenão consegueperceberque
natureza cultivadaem que se trai o mais escondidoe o mais verdadeiro,já que é o menoscons- grandeparte do investimentono corpoquevisa a sua construçãosocializadaé responsávelpor
cientementecontroladoe controlávele que contamina e determina as mensagenspercebidase determinar sua posiçãode ocupaçãono espas;osocial.
despercebidas.O corpo seria entãoum produto socialdesdeas dimensõesde sua conformação Bourdieu(LD)utiliza também em seu quadro teóricode análise a noção de capitalcorpo-
visível,derivadade condiçõessociais,até as formasde se portar e de se comportar,expressando ral, afirmando que as propriedadescorporaispodem funcionar como capitalpara a obtenção
toda a relaçãocom o mundo social. de lucros sociais, para conceder à representaçãodominante do corpo um reconhecimento
Em A distinção: crítica social do julgamento (1979),Bourdieu destaca que as aquisi- incondicional. Além das propriedades corporais, o capital corporal também abrangeria a
ções incorporadas são determinadas socialmentee se inscrevemno corpo na maneira de se habilidade corporal para a prática de esportes. A aprendizagemde uma habilidade especí-
movimentar e de cuidar do corpo. O sociólogodestaca a manipulação entre o ser e o dever ficaseria mais rentávelna medida em que se daria de forma precoce.A tradição familiar, a
ser em tudo que concerneà imagem ou à utilização do corpo, que conta com a cumplicidade postura, as técnicas de sociabilidadese a aprendizagemprecoce de uma habilidade motora
inconscientedaquelesque contribuempara a produçãode um mercadoinesgotávelde produtos podem interditar alguns esportes e práticas corporais às classespopulares.
que são oferecidospara impor uma nova hexis corporal, dimensão fundamental do senso Destacando a importância do que é apreendido pelo corpo e que se encontra velado à
de orientação social. Bourdieu (LD,210) afirma que "o gosto contribui para fazer o corpo compreensãodo agente,Bourdieu(1998,p. 3) escreveque "as injunçõessão particularmente
de class,e"pela cultura tornada natureza, ou seja, incorporada, que escolhee modifica tudo poderosasporque elasse dirigemprimeiramenteao corpoe não passam necessariamentepela
que o corpo ingere,digere e assimila. O corpo é, portanto, "a objetivaçãomais irrecusáveldo linguagem e pela consciência".A submissãoàs determinaçõesdas disposiçõesse origina na
gosto de classe"(LD,210). própria incorporação destas disposições.Esta submissão se aloja profundamente no corpo

i 132 CORPO CORPO 133

L
socializado, sendo a expressão do que ele denomina a somatização das relações sociais de O uso da noção de crença passa por um desejo do autor de provocar e sensibilizar o olhar
dominação. Para o autor, a somatizaçãoprogressivadas relaçõesfundamentais que são cons- do observadorsocialsobre o caráter arbitrário e sagrado do universosimbólicodas sociedades.
titutivas da ordem social inscreve-sena hexis corporal, ou seja, nas posturas, disposiçõese De caráter naturalizado, as crenças são sempre coletivas e sempre produtos de construções
relaçõesdo corpointeriorizadaspelo indivíduo,induzindo sua maneira de agir,sentir e pensar. queremetem a um jogo de forçasentre agentesou grupos sociaisdiferentementeposicionados
Os efeitosda dominação se exercempor intermédio de uma relação de adesão corporal e na estrutura social. Derivam do conhecimento de uma "verdade", de seu conhecimento e
o vocabulário da dominação estaria repleto de metáforas corporais, sendo que a submissão a reconhecimentosocial e individual, que se realiza como umq segunda natureza. As crenças
uma "ginástica"da dominação encontra-se inscrita nas posturas, na maneira como se curva se constituem no pano de fundo que orientam as condutas, os pensamentos, um conjunto de
o corpo, onde a ordem social se inscreve de forma duradoura, e nos automatismos do cérebro disposiçõeséticas e estéticas que alimentam o sentido prático das ações individuais.
(BouRDIEU,1982).Os investimentos no corpo e em suas posturas têm destaque no processo Nessesentido, poderíamos afirmar que "crença"não é um simplesvocábulona estrutura
de dominação, como princípio de atuação do poder. A concretude desse investimento pode do pensamento de Bourdieu. Trata-se de um termo que revela significativa contribuição
ser verificada, por exemplo, nas instituições de ensino, onde se atesta a associacão de duas para se compreenderem os processos de construç.ãodo social, tornando-se um importante
formas de comunicaçãoe inculcação,a saber, os discursos e a modulagem de um ~orposocial . instrumental para perscrutar o universo inconsciente das ações individuais e coletivas.Não
encarnado em um corpo biológico,servindo de porta-voz das crenças socialmente determi- fazendouso das distinções entre as ciênciashumanas, Bourdieuentende que o cientista social
nadas e aceitas. É o que evoca a noção de "esprit de corps",fórmula que, segundo Bourdieu deve se armar de todo o tipo de ferramenta conceituai para penetrar na complexidadedas
(1982),é sociologicamentefascinante e aterrorizante. realidades sociológicas.Tudo leva a crer que a noção de crença encerra essa complexidade,
O efeito da dominação simbólica sobre o corpo é tratado por Bourdieu (DMp,50) como remetendo a um feixede condicionamentossocializadoresque mescla dimensões obJetivase
uma "força mágica",ou seja, uma força simbólica·como"forma de poder que se exercesobre materiaisbem como subjetivase simbólicasda vida grupal e individual. Semdúvida tal noção
os corpos, diretamente, e como que por magia, sem qualquer coaçãofísica;mas essa magia só é reveladorade um esforçooriginal de compreensãodas relaçõesdialéticas entre indivíduo e
atua com o apoiode predisposiçõescolocadas,comomolas propulsaras,na zona mais profunda sociedade,expressandoa força do pensamento interdisciplinardo autor bem comoseu esforço
dos corpos". É sob forma de esquemas de percepções e de disposições que se inscreve um em revelar os mecanismos de orquestração dos sentidos que tecem as urdiduras do social.
sistemade estruturas nos corpos dos dominados,tornando-os sensíveisa certas manifestações
simbólicas do poder e aptos a entrar no jogo social.A ordem social determina então a ordem
Referências
do corpo, tornando-o ao mesmo tempo lugar de investimento e princípio de sua eficácia.
DURKHEIM,E. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo:Martins Fontes,2009.
Referências MAUSS,M. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. Sociologia e
BOURDIEU, P.Remarquesprovisoiressur la perceptionsocialedu corps.ARSS, v. 14,p. 51-54,abr. 1977. Antropologia, São Paulo:EPU/EDUSP,v. II, 1974.
BOURDIEU,P. Ce que parler veut dire. Entrevista com Didier Eribon. Libération, Paris, 19out. 1982. WEBER,M. Economia e sociedade. Brasília:Ed. da UNB, 1991.
BOURDIEU,P.Le corset invisible.Entrevista com Catherine Portevin. Télérama, Paris, v. 3, n. 2534,
5 ago.1998.
59. CULTURA

Enio Passiani
ss. CRENÇA
······················································································································· Maria Arminda do Nascimento Arruda
Maria da Graça]acintho Setton
Oconceitode culturaelaboradopor Bourdieu,comotoda a sua obra,é o resultadodo esforçode
Herdeirodo pensamento sociológicoclássico,Bourdieuse apropria do termo "crença"para integraras tradiçõesdos "paisfundadores"da sociologia,Marx,Durkheime Weber.Dessemodo,
analisar o caráter mágico e oculto de processos de interiorização de valores sociais realizados a culturarefere-seaoselementossimbólicosda vida social,ou seja,um conjuntode representações,
em uma açãopedagógicaanônima extremamentepoderosa.Tributáriodo raciocíniode autores valoresmorais e ideaisque institui e organizaa sociedade.Os aspectossimbólicosde uma dada
comoMax Weber(1991)- carisma-, ÉmileDurkheim (2009)- conformismomoral e lógico-, organizaçãosocialnão existemacimados indivíduos,como"estruturaestruturadà', mas a partir
e Marcel Mauss (1974)- a economia das reciprocidades simbólicas -, Bourdieu faz uso da da açãodos própriosindivíduosuns em relaçãoaos outros,sujeitaa mudanças,como"estrutura
noção de crença para expressar mecanismos dialéticos de reforço entre estruturas sociais e estruturante".A ação, pois, não se resume à mera execuçãodeterminada pela estrutura, mas
estruturas mentais não facilmente identificáveis. Ainda que a análise desses autores, nesse toma-sea fonte da qual brotam as significaçõesdo mundo social,os seus possíveissentidos;em
particular, se refira, sobretudo, à esfera da vida religiosa e cultural dos grupos, Bourdieu · suma,a cultura é, a partir da açãodos agentes,a elaboraçãode esquemasde percepçãodo mundo,
vai além, extrapolando sua utilidade para outras dimensões da vida social - ou seja, todas uma maneira de descrevê-loe compreendê-lo.Os agentessociais,por sua vez,ocupam posições
aquelas responsáveispela produção dos sentidos (SP). objetivamentedefinidasna estrutura socioeconôrnicada sociedade;são suas posiçõesde classe,

134 CRENÇA
CULTURA 135
responsáveispor nelescriar certasinclinações,disposições,inclusiveas culturais.Essesistemade emsi mesmos.Asoposiçõesentreas classes,portanto,nãoserestringemà possedebensmateriais,
disposiçõesduráveis,transferíveis,mas não imutáveis(o habitus),determina,em boa medida, mastambémseverificamnos estilosde vida configuradospelaspráticasculturais,manifestações
as práticassubjetivasdos agentes.A cultura,assim,passapor um processosocialde objetivação, fenomênicasda cultura,principalmenteo gostoestético.A dominaçãode classe,nos termosde
ganhandomaterialidadee tornando-seo domíniodaspráticase bensculturais,quese comportam Bourdieu,supõea mobilizaçãode um poder simbólicoque consegueimpor certassignificações
comosuportesdos sentidos.O universosimbólicoconhecidocomocultura,espéciede instância comolegítimas.Dessaperspéctiva,asrelaçõessociaissãoigualmenterelaçõesdeconcorrênciaentre
metafísicae subjetiva,é objetivadoem práticasque se relacionamcom as posiçõesde classedos "arbítriosculturais",sãolutasde classificação.
É a lutaentreclassese fraçõesde classestranspostas
indivíduos,portanto,comsuascondiçõesmateriaisde existência.Oconhecimentoe o consumodos paraa dimensãocultural.A imposiçãodo arbitráriocultural,autênticoatode violênciasimbólica,
bensculturaissãoclassificantes, istoé,os agentessociaisse classificame se opõemreciprocamente garanteà cultura dominantese apresentarcomoúnica culturalegítima,tornando a dominação
no momentoem que se dedicama esta ou aquelapráticapor meiodas quaismanifestamos seus reconhecidae aceitapelosdemaisgrupos.As hierarquiasculturais (a alta cultura,a cultura das
gostos(estéticos):frequentaçãoaosmuseus,osusose a apreciaçãoda fotografia,osgostosliterário classesmédiase a culturapopular)reproduzem,de formaeufemizada,as hierarquiassociaise a
e musical,o tipo de vestimenta,a gastronomiae até mesmoa hexis corporal. estruturade dominaçãoda sociedade.Assim,osindivíduosnãopercebemquea culturadominante
Nessesentido,as capacidadesde produzir,reconhecer,consumir,admirar e apreciaros bens é a culturadas classesdominantes;elesacreditamqueelaé dominanteporqueé intrinsecamente
culturaisnão correspondema predisposiçõesou competênciasinatas,mas são arbitrárioscul- superioràs demais.Ouseja,os indivíduospercebemcomohierarquiassimplesmentesimbólicaso
turais inculcadospor processosde aprendizagemdesenvolvidospor instituiçõessociaiscomoa quesão,principalmente,hierarquiassociais.Atransfiguraçãodashierarquiassociaisemsimbólicas
familiae a escola:a primeira transmite comoherança às geraçõesmais jovensurna disposição permite,apontaBourdieu,a legitimaçãoe a justificaçãodas diferençassociais,revelandoque as
cultivadapor meiode experiênciasextraescolarese de modo muitasvezeslúdico,livredas obri- práticasculturaisnadatêm de ingênuasouinofensivas,poisestabelecem,de maneiradissimulada,
gaçõesimpostaspelaescola(éo capitalculturalincorporado),porém,ao mesmotempo,crucial uma lógicada distinçãoque é, ao mesmotempo,produtoe reprodutorade urnahierarquiasocial;
para garantir o bom desempenhoe o êxitoeducacionais;a segundaé responsávelpor transmitir por conseguinte,o significadodas coisas,o sentidodo mundosocialqueas práticasculturaiscar-
o conhecimentoe a cultura (obras,autores,cientistas,teorias,etc.)oficiaisde formametódicae regame difundemsãoaspectosda dominaçãosimbólicaexercidapelasclassesdominantes.Épor
organizada,sancionadose reconhecidosposterionnentepelosdiplomase certificadosescolares.Se meiodaspráticasqueas representaçõesdominantes- quecorrespondemao conjuntode opiniões
o volumede capitalculturalherdadoe acumuladovaria de acordocoma posiçãosocioeconômica comuns,crençasestabelecidas,ideiaspreconcebidas,definidocomodoxa - são objetivadase se
do agente,entãoseu consumocultural e gostoestéticovariam de acordocom as classessociais. impõem.Culturae política,para Bourdieu,apresentam-secomoelementosindissociáveis,urna
As elitesdetentorasde elevadocapitalcultural(quese encontraem estreitarelaçãocom o capital vezque é por meioda primeira quese torna possívelo exercícioeficazdo poder e da dominação.
escolar),provavelmentebem posicionadasna estrutura socioeconômicada sociedade,são as res- Suanoçãode culturase apresentacomouma via de acessoprivilegiadopara o conhecimentoda
ponsáveispor elaboraruma ideiade gostoe estéticalegítimos,que,num movimentode retorno, sociedade,das formasde poder e dominaçãoque a configurame sustentam.Issonão quer dizer
legítimamo própriocapitalculturalde que dispõem.O gostocultivadose manifestacomo"gosto quea culturasereduzaà simplesdeterminaçãoda políticae da economia,meroreflexodessasduas
puro",supostamentelivredaspressõese necessidadesda vidacotidianae independentede toda e instânciasdo mundosocial.Aocontrário,a culturapossuiurnalinguagempeculiare é dotadade
qualquerfunção,reforçandoa ideiade queas práticasculturaissãoinatas,manifestaçõesnaturais urna dinâmica,organizaçãoe regrasprópriasdefinidaspor aquelesagentese agênciassociaisque
de indivíduos,em tese,bem dotadosintelectualmente,portadoresde capacidadese competências compõemum campoespecíficoda sociedade,o campocultural.
queoutrosnãopossuem,ocultandoo fatode que,no interiordas sociedadescapitalistas,asvárias
formasde capital- o econômico,o cultural e o social- são desigualmentedistribuídosentre as
classese fraçõesde classe,comportando-secomorecursosexistentese acumuladosqueconstituem 60. CULTURA
POPULAR
o fundamentoda distinção.
Ana Maria de OliveiraGalvão
Em síntese,a posiçãosocialgera urna certa disposição,o habitus, que,por sua vez,tende a JulianaFerreirade Melo
fortalecera própriaposição,gerandoa distânciasocialentre indivíduose grupos.Taldisposição
correspondeà "objetividade interiorizada",
à estruturade classesinteriorizadapeloagentemediante Bourdieuraramente utiliza, em sua obra,-a expressão"cultura popular".Quandoo termo
o condicionamento exercidopor determinadasinstituiçõesaolongodetoda a suatrajetóriasocial, é usado, é posto sempreentre aspas,pois,para o autor,as noçõesque se referemao "povo"e ao
intimamenteassociadaa certascondiçõesdevida.Seas disposiçõessãoajustadasde acordocomas "popular"são"conceitosde geometriavariável",urnavezqueelespodemser ampliadosconforme
posiçõessociais,entãopode-seafirmarquesãoajustadasde acordocoma estruturade classes.Há a vontadede quem os usa (BouRDIEU, 1996).Nessadireção,Bourdieuchegaa afirmar,em outra
todo um sistemade relações(econômicas,sociaise culturais)ao qualtodas as classese fraçõesde publicação,que a "culturapopular"é "um sacode gatos",na medidaem que "asprópriascatego-
classe~se remetem.O estilode vida de urna classeganha sentidona medidaem que diz respeito rias empregadaspara pensá-la,as questõesquelhe são colocadassão inadequadas"(CDp,186).
à própriaclassee, ainda, na medidaem que se refereà outra classe,urna vezque um sistemade Segundoo sociólogo(BOURDIEU, 1978),a ambiguidadeda expressãoinicia-sena contradição
posiçõessociaisé semprerelacional,quer dizer,elesse definemuns em relaçãoaos outrose não existentenos própriostermos que a compõem,pois, se cultura significa"cultura dominante",

136 CULTURA
CULTURA POPULAR 137
a culturepar lepeuple somenteexistequando ela toma as formas reconhecidaspela "cultura a contenção (BouRDIEU, 1996).A palavra "popular",assim como outras que se encontram
dominante"comoas formasde uma cultura.Mesmoquandose evidenciaa existênciada culture reunidas no mesmo conjunto semântico - "baixo, inferior, para todos" - encontra-se, no
du peuple, que apresentaformasque não correspondemà definiçãonormalizada,o problema espaço social, em oposição ao que é "alto, legítimo, superior, raro" (BouRDIEU,1996),por
persistepor causada palavracultura.Na visãodo autor,o jogo entre essaspalavras- culturae um efeito,socialmenteconstruído, de crença.
povo- é,portanto,polêmico.Para ele,não fazsentidodiscutira existênciada "culturapopular" Muitas foram as crítiéas recebidas por Bourdieu em relação às suas formulaçõessobre
em si, mas somenteem relaçãoa modos dominantes de julgamentoe classificaçãoculturais, cultura popular (ver,por exemplo,GRIGN0N; PASSER0N, 1989).O próprio autor (CDp)de-
que a remetema um lugar de "empobrecimento". fende-sedaqueles que o acusaram de consagrar a diferença entre a cultura denominada de
Para Bourdieu,o uso das aspasservetambémpara demarcarque falar de "culturapopular" popular e a cultura erudita. Para ele, qualquer que seja a nossa opinião pessoal ~u o no~so
é, sobretudo, referir-sea uma sociologiada produção do discurso sobre a classepopular; ou julgamentode valor sobre essa dicotomia,ela existe,na realidade,sob a forma de h1erarq~ias
seja, a sociologiadas classespopulares é, em outras palavras, uma questão da sociologiados que estão inscritas na objetividadedos funcionamentossociais e na subjet~~id~~edos s1s~e-
intelectuaise de suas disputas simbólicas.O autor afirma que a maior parte dos discursosque mas de classificaçãoe dos gostos,elesmesmoshierarquizados.Afirma que e mutil denunciar
"foram ou são pronunciadosem favordo 'povo' são obra de produtores que ocupam posições verbalmenteessa hierarquia; o que é necessáriomudar são as condiçõesque a fazem existir,
dominadas no campo de produção" (CDp, 183).A preocupação dos dominados do campo na realidade e "nos cérebros".
intelectuale artístico em reabilitar as culturas socialmenteinferioresou formasminoritárias A problematização da expressão "cultura popular" feita por Bourdieu certamente tem
de cultura, tornando-as um "popular positivo"é, então, inseparável"da preocupaçãode seu trazido impactos, nas últimas décadas, para as áreas de conhecimento que normalmente
próprio enobrecimento"(CDp,182). dela se ocupam, como a antropologia, a história e os estudos sobre folclore.No campo da
Talvez,por essasrazões, é que a expressãoapenas apareçana obra do autor em momentos história,por exemplo,traz elementosimportantespara a história cultural que,principalmente
em que ele é provocado a falar sobre ela como em um colóquio organizado pelo Centre de a partir dos estudos de Michel de Certeau (1994) e de Roger Chartier (1990),tem co!ocado
Recherchede l'Éducation Spécialiséeet de l'AdaptationScolaire(CRESAS), em 1978,ou em o foco não apenas na análise dos diferentes objetos culturais, mas, sobretudo, nos diversos
um seminário realizado na Universidadede Chicago,em 1987.No conjunto de sua obra, é modos de apropriação dos mesmos objetos,renovando a tradição de estudos sobre o tema
mais comumenteutilizado o termo popular como adjetivonão da cultura, mas da estética, realizadosaté meadosdos anos 1960,como aquelede RobertMand~ou(1964),que tendiam a
dogosto e da língua/linguagem.Nessescasos,Bourdieu (LDp)refere-se,sobretudo,a estilos associar alguns desses objetos- os destinados, em sua produção, ao "povo"- a uma suposta
de vida, que encontram a sua mais elevada frequência nas classes populares e variam em "mentalidadepopular" (ver CHARTIER, 1995).
razão inversaao capital escolar.A estéticapopular, por exemplo,define-seem contraposição Certamente, a problematização realizada por Bourdieu, ao colocar no centro de sua
ao desinteresse,à fruição, ao distanciamento do mundo natural e social, quando se trata de análise as relações de poder e os processos de legitimaçãodas diferenças sociais, constitui
práticas culturais. Caracteriza-se,assim, por uma espécie de continuidade entre a arte e a um poderoso instrumento para a superação de ideias, ainda muito pr~sentes em ~studo~
vida. Nesse sentido, a apreciação de indivíduos das camadas populares, segundo o autor, contemporâneossobre cultura popular, que a vinculam, por um lado, a espontane1~ade,a
teria a tendência de seguir o princípio ético, que subordina a forma à função. Aplicando, pureza e à ingenuidade,e, P?r outro, ao "empoderamento"das camadaspopulares e as lutas
no espaço da cultura, os esquemas que opera na prática, o "povo"acreditaria nas coisas re- dos movimentossociais.
presentadas, enquanto os intelectuais acreditariam, sobretudo na representação,operando
com um desprendimento próprio do olhar puro. Os sujeitos que adquiriram a disposição Referências
estética, possívelapenas fora das necessidadeseconômicas,não se submeteriam, assim, às BOURDIEU,P. La sociologiede la culture populaire. In: Le handicap socio-culturel en question.
necessidadese pulsõesprimárias. Esse olhar puro implica, desse modo, "uma ruptura com a Paris: ESF,1978.p. 117-120.
atitude habitual em relação ao mundo que é, por isso mesmo, uma ruptura social (LDp,34). BOURDIEU,P. Vocêdisse "popular"?Revista Brasileirade Educação, São Paulo,v. 1,n. 1,P· 16-26,
Não se trata, portanto, de algo que está inscrito naturalmente nas pessoas, que pudesse ser jan./abr. 1996.
identificadoa um dom especialou a uma aptidão para a apreciaçãoestética. Para Bourdieu CERTEAU,M de. A invenção do cotidiano:artes defazer. Petrópolis, RJ:Vozes,1994.
(LDp),não há, então, possibilidadede atribuir a existênciaa um objeto apenas por critérios CHARTIER,R. A história cultural: entre práticas e representações.Lisboa:Difel;Rio de Janeiro:
puramente "artísticos"ou "estéticos".Ele entende que somente é possíveldefinir a "estética Bertrand Brasil, 1990.
popular"em relaçãoàs estéticaseruditase aosseus efeitosde legitimidade,que a desqualificam, CHARTIER,R. "Cultura popular": revisitando um conceitohistoriográfico.Estudos Históricos,Rio
atribuindo-lhe um julgamento negativo.Para aqueles que ocupam posiçõesdominantes na de Janeiro,v. 8, n. 16,p. 179-192,1995.
socied~de,o gostopopular é, dessemodo, considerado"bárbaro" e "rústico";para as próprias GRIGNON,C.;PASSERON, J.-C.Le savant et lepopulaire:misérabilismeetpopulisme en sociologie
camadas populares, é, por outro lado, uma afirmação, por exemplo,do masculino sobre a et en littérature. Paris: Gallimard/Seuil, 1989.
feminilidade,da linguagem crua/direta sobre o eufemismoou da festa/sociabilidadessobre MANDROU,R. De la culture populaire aux 17' et 18' siecles.Paris: Stock, 1964.

138 CULTURA POPULAR CULTURA POPULAR 139


62. DÉRACINEMENT
(LE):LA CRISEDE L'AGRICULTURE
TRADITIONNELLE
ENALGÉRIE

EnriqueMartín Criado

B0URDIEU,P.; SAYAD,A. Le déracínement:la crisede l'agriculturetraditionnelleen Algérie.


Paris: Minuit, 1964.

Esse livro que Bourdieuescreveucom AbdelmalekSayadem 1964,cujo título em portu-


guês seria O desenraizamento, recolheparte do trabalho empírico que o sociólogofrancês
desenvolveuem plena guerra da Argélia, liderando um grupo de jovens pesquisadores. O
texto analisa a desestruturação da sociedade rural argelina em consequênciada extensão
das relações capitalistas, da política colonial e das ações de guerras francesas - que deslo-
cam mais de dois milhões de camponesespara campos de reagrupamento,ao mesmotempo
em que destroem seus povoados. Essas transformações solapavam as bases objetivas e
subjetivas- da agricultura tradicional. Objetivas:a legislaçãocolonial,as expropriaçõesde
terras e os deslocamentosimpedem a subsistênciada agricultura tradicional. Subjetivas:ao
desapareceremas condiçõesobjetivase ao se estenderemas relaçõessalariais, desaparecem
_61.DENEGAÇÃO
······················································································································ os fundamentos do ethos camponês. Os camponeses se veem, assim, em uma situação de
PatrickChampagne desdobramento entre o ethos tradicionalpré-capitalista- que não media a atividadepor seu
benefício e o capitalista- que toma comobase de comparaçãodas atividadesseu rendimento
Oriundo da psicanálise, denegação (Verneinung), significa "recusa de reconhecer", "o econômicoe a relação salarial: situações que antes se viam como atividade, agora se veem
que não se pode confessar cOmotal" e designa um processo de "recalque".Esse conceito como desemprego.Em função desta realidade, os camponesesagora ativam uma lógica ou
aparecemuito cedo na obra de Bourdieu,desde seus trabalhos sobre a sociedadetradicional outra, ou - quando as condiçõesde existênciaimpedemtoda projeçãono futuro - se fundem
camponesa na Argélia, e designa o processo pelo qual a economia camponesa resiste ao no fatalismo ou no tradicionalismo.
"toma lá dá cá" de uma economia capitalista que tende a se introduzir na sociedade rural, O livro constitui uma das primeiras denúnciascontundentesda destruiçãoda sociedade
a solapá-lae a desestruturar todas as relações de ajuda mútua e de solidariedade nas quais argelinapelocolonialismofrancêse um dosprimeirosestudosondeBourdieupõeemprática- sem
está assente a economiado dom. Ao apoiar-se em Lukács,Bourdieudescreve- brevemente, formulá-laexplicitamente - suateoriadohabitus.Essaformulação,entretanto,é muitodistinta da
em Algérie 60: structures économiques et structures temporelles (1977)e, de forma mais que realizará em obras posteriores, como Le sens pratique (1980):enquanto aqui Bourdieu
aprofundada, em Le sens pratique (1980)- essa recusa de conferir à realidade econômica insisteno ajustedo habitus às condiçõesobjetivasde existência,em Le déracinementanalisa
seu sentido propriamente e puramente econômico: recusa no plano dos indivíduos, mas o constante desajusteentre o habitus e as condiçõesatuais de existência.•
sobretudo processo de recalque coletivo de uma sociedade inteira que trabalha para a re-
Referência
cusa do reconhecimento da verdade objetiva das trocas e, de forma mais geral, do mundo
social. O conceito é amplamente utilizado em La distinction (1979)e designa aquilo que, MARTÍNCRIADO,E. L'Algériecornrneterrain d'apprentissage du jeune Sociologueln: LEBAR0N,
por uma espécie de hipocrisia socialmente incentivada, leva a "fazer o que se faz como se F.;MAUGER,G. (0rgs.). Lecturesde Bourdieu.Ellipses:Paris, 2012.p. 77-94.
não se o fizesse",a classificar objetivamente, por exemplo, em função das classes sociais,
como se classificassesubjetivamente em função de variáveis propriamente escolares. Em
63. DESENCANTAMENTO
DOMUNDO(O):ESTRUTURAS
ECONÔMICAS
E
La distinction, a denegação designa, portanto, um processo muito geral que Bourdieu
ilustra por esta fórmula: "Averdade é dita, mas de um modo tal que ela não é dita". O
ESTRUTURAS
TEMPORAIS
conceito é mobilizado também em sua análise do campo filosófico(L'Ontologiepolitique
EnriqueMartín Criado
de Martin Heidegger, 1988)em que Bourdieu mostra que a existência de uma linguagem
propriamente filosóficatorna possível o processo de denegação do mundo social real, ou B0URDIEU,P. O desencantamentodo mundo: estruturaseconômicase estruturastemporais.
seja, neste caso, de neutralização do social.
São Paulo: Perspectiva, 1979.

140 DENEGAÇÃO
DESENCANTAMENTO DO MUNDO (O): ESTRUTURAS ECONÔMICAS E ESTRUTURAS TEMPORAIS 141
No livro publicadopela Minuit (1977),com o título Algérie 60: structures économiques e promovidasna escolae as competênciasincorporadaspelosindivíduosde famíliasde classes
et structures temporelles, Bourdieu retoma as pesquisas realizadas na Argélia, especial- maisbaixas.Por essarazão,a escola,em vezde ofereceracessodemocráticoà cultura,acabapor
mente Travai! et travailleurs en Algérie (1963),para analisar o tipo de disposições que reforçaras distinçõessimbólicasde capitalcultural,comseus desdobramentosmateriais.
requer e fomenta uma atividade econômicacapitalista.Ele defendeque a busca do benefício Assim,ao contrário da máxima de que "gostonão se discute",ele deveser discutidoe cri-
econômiconão é uma racionalidade universal: encontra-se historicamente situada e supõe ticado.Na sociologiade BoÚrdieusobreojogode poder das distinçõeseconômicase culturais
condiçõesde possibilidadeque não ocorrem em todas as sociedadese estratos sociais.Ilustra numa sociedadehierarquizada,as distinçõesdo gostorevelam,antes de tudo, as desigualdades
tal afirmaçãoanalisando a passagemde uma racionalidadepré-capitalistaa uma capitalista da ordemsocial,em quediferençasde cultura e de origemsão convertidasem diferençasentreo
na situação colonialargelina.A racionalidadepré-capitalistanão media a atividadepelo seu bom e o mau gosto, que tanto em sua origemcomoem seu final se ligama destinosdiferentes.
rendimento econômico,e sim por sua função social dentro de uma ordem tradicional, sem
distinguir entre atividadesprodutivas e improdutivas. As lógicasimperantes eram a honra
e o intercâmbio de dons. A racionalidadecapitalista mede toda atividade por seu benefício
65. DETERMINISMO
·······················································································································
econômico,introduzindo o cálculo constante entre inversão e benefício.Ora, esta raciona- GiseleSapiro
lidade requer algumas condições- especialmenteuma segurança econômicaque permita a
projeção no futuro - que não ocorrem em todas as camadas sociais - como os subproletá- A sociologiade Pierre Bourdieué frequentementetachada de" determinista"por ter reve-
rios, condenadosa viver o dia a dia. As esperanças subjetivas dependem das possibilidades lado alguns determinismos sociaisque orientam a ação e as preferênciasdos indivíduos.No
objetivas:a disposiçãoao cálculoa longoprazo necessitade uma estabilidadeeconômicaque entanto,comosublinha o filósofoJacquesBouveresse(2004)no livro que dedicoua Bourdieu,
nem todas as camadas sociaispossuem. Bourdieutambém aplica esta análise às disposições o determinismo é uma postura metodológica sem a qual é impossível elaborar qualquer
políticas:perante aquelesque, como Frantz Fanon, confiam no subproletariadoe no campe- ciência.Em sua obra, Le métier de sociologue, Bourdieue seus coautoresse referiam, por
sinato para fazer avançar o socialismo,Bourdieuafirma que a nova ordem argelinahaveráde um lado, a ClaudeBernard, que considera que "a admissão de um fato sem causa - ou seja,
ser construída a partir daquelascamadas que, graças à sua estabilidadeeconômica- como a indeterminado em suas condições de existência é, nem mais nem menos, a negação da
classeoperária estável-, podem fazerprojeçõesracionaisno futuro. O livro introduz também ciência"(MS,31);e, por outro, a Émile Durkheim, para quem os fatos sociais estão ligados
uma nova análise das disposiçõese práticas frente ao realojamentode antigos faveladosque entre si de acordo com determinadas relações (MS,154-157).
não aparecia em Travai! et travailleurs en Algérie. A questãodo determinismo remeteao debatesobrea causalidadenas ciênciashumanas e
sociais.As oposiçõesencontradaspela sociologiaincipiente,na Françado séculoXIX,tinham
a ver com a recusa de considerar a ação humana como compelidapor causalidadesque lhe
64. DESTINO são exteriores.Eis por que, ao determinismo,é oposto muitas vezes o conceitode liberdade.
Na Alemanha, as "ciências da mente" constituíram-se, na mesma época, em oposição às
Maria Andréa Loyola
ciências naturais com base na ideia de que as ações humanas são orientadas em relação a
Destino é uma expressãoque pode ser usada para descrevero resultado das açõesimpul- valores e fins; por conseguinte, conviria privilegiar uma abordagem hermenêutica para o
sionadas pelo habitus, noção básica da teoria de Bourdieu. Os indivíduos não agem apenas estudo dos fenômenosculturais. Da mesma forma, a abordagemfinalista desenvolvidapela
sob a determinação de estruturas objetivas, mas de acordo com sistemas de disposições fenomenologiarejeita a causalidademecânica do behaviorismo.
duráveis, em parte assimilados das estruturas sociais e em parte como respostas próprias, Iniciado na fenomenologiano curso de sua formaçãoem filosofia,Bourdieuirá criticar o
individuais, a situações ocorridas em suas experiênciasde vida - o habitus. E, sendo este, estruturalismopor transformar os agentesem suportesmecânicosdas estruturas.É contraessa
além de esquemade ação,um sistemaadquirido de preferências,princípiosde visão e divisão, determinaçãomecânicaque ele desenvolveo conceitofinalista de estratégia.Mas trata-se de
e estruturas cognitivasduradouras, ele é princípio gerador que engendra também aquilo que uma liberdaderestringidapor determinaçõessociais:a estratégiatem a ver coma improvisação
se costuma chamar de gosto que, por sua vez, produz escolhas que, probabilisticamente, regulada,no âmbito de um espaçode possíveiscircunscritopelo habitus. A teoria do habitus
conduzem a um determinado destino social ou de classe (EE). permite-lhesuperar a oposiçãocausalidadee finalismo,entrereaçãomecânicaa determinações
Avariaçãodo gostoe das práticasculturaisentreas classessociaisé menosresultadode uma e ação racional. Como é explicadoem seu artigo intitulado "Avenirde classeet causalitédu
sensibilidadeinata do que fruto de um processoeducativoque acontecena famíliae na escola. probable",ela permite compreender"a lógicaespecíficade todas as açõesque trazem a marca
Indivíduosde um mesmogrupoou classetêmmaiorchancedevivenciarexperiênciassemelhantes da razão sem serem o produto de uma meta racionalizadaou, mais ainda, de um cálculora-
e, assim,~endema incorporarum habitus, um gosto,um destinosocialde grupoou de classe.Em cional;que são habitadas por uma espéciede finalidadeobjetivasem serem conscientemente
uma sociedadehierarquizadae desigual,poucassão as famíliasque dispõemde capitalcultural organizadasem relaçãoa um fim explicitamenteconstituído;[...] que são ajustadasao futuro
para transmitira suaprole,o quelevaa um descompassoentreas competênciasculturaisexigidas sem serem o produto de um projetoou de um plano" (BouRDIEU, 1974,p. 3).

DETERMINISMO 143
142 DESTINO
\
(

Segundoa teoria do habitus, as estruturas sociaissão interiorizadaspelos indivíduosno Assim,cornoeleexplicano mesmolivro:''.Apesarde não seremindiferentesaojogoe, ao mesmo
decorrerde sua socializaçãosob a formade disposiçõespara agir,pensarejulgar,orientandosuas tempo,capazesde nele instaurar diferenças,as disposições(preferências,gostos)só podem se
práticase escolhasem todas as áreas.Elaslevam,quase sempre,os indivíduosnão só a ajustar constituirem meio à relaçãocom as tendênciasimanentesde um universosocial,com as pro-
suas expectativassubjetivasàs possibilidadesobjetivas,mas também a renunciar de imediato babilidadesinscritas em suas regularidadese suas regras ou nos mecanismosque garantem a
ao que "não é para eles".Assim,longede detectar esquemasde causalidademecânica,pode-se distribuiçãodas oportunidades de ganho nos diferentes'mercados';e tais disposiçõespodem
dizer que a sociologiade Bourdieubaseia-seem urna causalidadeestrutural que determina engendraresperançasou desesperanças,expectativasou impaciências[...]" (MP,255).
probabilidades- por exemplo,as possibilidadesde acessoà universidadeque, de acordocom a Longe de uma conclusãopessimista sobre a condiçãohumana, a reflexãoempreendida
demonstraçãode Bourdieue Passeronem Les héritiers:les étudiants et la culture (1964),são por Bourdieu sobre as determinações sociais tem uma finalidade emancipatória, como é
desigualmentedistribuídassegundoa origemsocialdos estudantes- e leistendenciaisinerentes testemunhado por esta frase mediante a qual ele transpõe o paradoxo do conhecimentode
aosfenômenosde reproduçãoque,em compensação,as reforçampor urna causalidadecircular: sua própria condição,enunciado por Pascal: "Sendodeterminado (miséria),o homem pode
por exemplo,a propensãoda "noblessed'État" (1989)para se reproduzir. conhecersuas determinações (grandeza) e trabalhar para superá-las" (MP,157).
No entanto, o ajusteentre as disposiçõese as estruturas pressupõeque o indivíduoevolui
em um espaçosocialrelativamenteestabilizado,ou seja,que as estruturas sociaisque elehavia Referências
interiorizadoduranteseuperíodode socializaçãosãosemelhantesàquelasqueenfrentaenquan- BOURDIEU,P. Les sous-prolétaires algériens.Les Temps Modernes, v. 199,dez. 1962 [reproduzido
to adulto,o que é apenas "um caso particular do possível",de acordocom urna expressãoque emEsquisses algériennes. Paris: Seuil,2010.p. 193-212].
Bourdieu(1974,p. 5)tornade empréstimode GastonBachelard.Aoverificar-sealgumamudança BOURDIEU,P. Avenir de classe et causalité du probable. Revue Française de Sociologie, v. XV,
em tais estruturas, esseajustenão é automáticoe pode se tornar difícil,cornomostrouBourdieu p. 3-42, 1974.
(1962)no caso dos subproletáriosargelinos,antigoscamponesesque passam por grandes difi- BOUVERESSE, J.Bourdieu, savant & politique. Marseille:Agone,2004.
culdadespara se adaptar às estruturas temporaisde um capitalismoimpostopela colonização. RYLE,G. The Concept of Mind. Chicago:Toe Universityof ChicagoPress, 1949.
O quelevaa nos questionarsobreas condiçõesda mudança social.Comefeito,existeoutra
forma de causalidadeem Bourdieu:trata-se da causalidadehistórica, definida em seu livro
Homo academicus (1984),corno o encontro entre séries causais independentes que fazem 66.DIPLOMA
o acontecimento(no caso concreto,Maio de 1968).Aí, ocorre algo que nada tem a ver com Antônio Augusto Gomes Batista
um determinismo histórico:essesencontros entre séries causais independentes,que podem
caracterizar também o encontro entre urna trajetória e um campo concebidocorno espaço A análise bourdieusiana do diploma integra não apenas o estudo da reprodução das
dos possíveis,implica uma parcela de indeterminação que leva à elaboraçãode estratégias desigualdadessociais pela escola,mas também o das estratégias de reprodução dos grupos
individu~is e coletivas,mais ou menos ajustadas às situações e dispondo de um maior ou sociais por meio da escola, em contextos de inflação e desvalorização de diplomas (EE).
menor grau de possibilidadede sucessoface a outras. Eis a razão pela qual, no curso dado no Para o sociólogo,o diploma constitui um capital cultural institucionalizado,uma "certidão
Collegede France Sur l 'État (2012),Bourdieuexplicaque o trabalho de sociogêneseconsiste de competência cultural que confere ao seu portador um valor convencional,constante e
em reconstituir os possíveisnão ocorridos em determinada situação histórica. juridicamente garantido no que diz respeito à cultura" (EE, 78).
Ao retornar em seu livro Méditations pascaliennes (1997)a questãodo determinismo- A outorgadesse"título de nobrezacultural' (LDp)resultade um ato performático,baseado
lembrandoque não se trata de "urna questãode crença"(MP,14)-, Bourdieusugereestender na crença coletiva,por meio do qual uma instituiçãoproduz uma realidade,uma" diferença
à explicaçãodas condutashumanas uma proposiçãode GilbertRyle(1949):"Domesmomodo de essência",entre aquelesque têm seus conhecimentosreconhecidose aquelesque não o têm.
que não se devedizer que o vidro se quebroupelofato de ter sido atingidopor urna pedra, mas Ao criar €Ssadiferença,produz um efeitoestatutário, um "grupo como realidade" (EE,78),
que se quebrouquando a pedra o atingiuporque era quebrável,assimtambém, [...] não se deve transcendente aos indivíduos,marcado por uma fronteirajurídica e organizadopela crença
dizer que um acontecimentohistóricodeterminou urna conduta,mas que teve esse efeitode- em seu próprio valor e pela oposiçãoa outros-grupos.
terminanteporqueum habitus suscetívelde ser afetadopor esseacontecimentolhe conferiutal Sendoum tipo de capital,o diplomapode ser convertidoem outrostiposde capital.Evidente-
eficácia"(MP,177).Bourdieubaseia-sena attribution theory segundoa qual as causasque os mente,em capitaleconômico:"ele[o diploma]estabeleceo valor [...] do detentorde determinado
indivíduosatribuema uma experiênciaestão entre os determinantessignificativosda conduta diplomaem relaçãoaosoutrosdetentoresde diplomase,inseparavelmente, ovalorem dinheiropelo
que adotarão cornoresposta a essa experiência.No entanto, sublinha Bourdieu,se, por esse qualpode ser trocadono mercadode trabalho"(EE,79).Permitetambéma conversãoem capital
fato, o ffi;divíduoparticipana construçãoda situaçãoque o determina, deve-seter presentena simbólicoouprestígio.Apossede um diplomatambémimplicapossibilidades maioresoumenores
mente "que ele não escolheuo princípio de sua escolha",ou seja, seu habitus. A este respeito, de aquisiçãode um capitalsocial.Opróprioprocessode aquisiçãodo títulooferecepossibilidades
prossegueBourdieu,"ohabituscontribuitambémpara determinaro queo transforma"(MP,14). diferentesde aquisiçãode relaçõespermanentese úteis,capazesde permitir a mobilização,"por

144 DETERMINISMO
DIPLOMA 145

L
procuração,[d]ocapitalde um grupo" (EE,67).Permite a possibilidadede estabelecimentode
produtorespropõem,muitasvezes,bensquenãodiferemdosquesãooferecidospelosconcorrentes
ligaçõesduráveis,dentre elaso matrimônio,em cujomercadotende a funcionarcomoum dote
a não ser por tênues diferençasque, aliás, são valorizadasextremamentepor eles. Os agentes
(SINGLY,1977,1982).Por fim,apesarde o título escolarser,por definição,uma garantiade posse
estãoimplicadosem jogos sociaisque, por sua vez, se apresentamcomo conjuntosde opções
de um capital cultural, pode, elemesmo,induzir à aquisiçãode mais capitalculturalpor estu-
ou escolhasdesigualmentedistintivas:por exemplo,entre todos os esportes- que, em teoria,
dantescommenorcapitalculturalherdado.Bourdieu(LDp,28)denomina"autodida:x:ia legítima''
sepode praticar em determinadaépoca-, alguns são muito menos divulgadosdo que outros e
a um efeitosimbólicodo diploma,queconsisteno desenvolvimentode um conjuntode esforçose
pressupõemuma série de condições(a aquisiçãode uma técnica,o acessoa locaisespecíficos,
estratégiaspara ajustarcondutase práticasculturaisaosideaisorganizadosem tomo do diploma,
a parceiros...) que, de fato,os reservaa uma minoria. Em La distinction é sublinhadoque, em
sobretudoem matériade culturalivre,não ensinadadiretamentepelasinstituiçõesescolares.
determinadoespaço,o valor distintivode uma prática ou de um bem é tanto maior na medida
Referências em que sua apropriaçãopressupõepropriedadesou competênciasraras nesseespaço.
Os mecanismos de distinção resultam da relação entre bens e práticas desigualmente
SINGLY,F. de. Mobilité féminine par !e mariage et dot scolaire. Economie et Statistique, n. 91,
p. 33-44,juil./aout 1977. distintivos,por um lado, e, por outro, agentese grupos sociaiscuja existênciasó é possívelao
se distinguirem uns dos outros. Os agentes estão mais ou menos equipadospara identificar
F.de.Mariage,dot scolaireet positionsociale.Economie et Statistique, n. 142,p. 8-25,mars 1982.
SINGLY,
os bens e as práticas raros e suscetíveisde produzir ganhos de distinção. A propensão para
distinguir-seem determinadodomínioé inseparávelde uma competênciarara e específicaque
67. DISPOSIÇÃO é uma arte prática de perceberdiferençassutis. A capacidadedo amador de arte de identificar
······················································································································· "raridades"pressupõe,assim, a possibilidadede fazer distinções. Enquanto o não entendido
Ver:Habitus se limita a ver quadros indiferenciadas (ou estabelecediferenças inadequadas, estranhas à
história da arte), o conhecedorreconhecemovimentospictóricos,estilos pessoaisno âmbito
-~~...~.1-~_!l.~~-~o da mesma escola,períodose influênciasdiferentesno interior da obra de determinadoartista.
·································································································· O exemplo das classes médias recentemente escolarizadas que - segundo um mecanismo
Julien Duval chamado allodoxia em La distinction, tomam pelo qualificativode "grande arte" obras de
valor secundário -, constituem um caso de grupo que, desprovidodessa competência,faz
Atravésde sua análise dos mecanismosde distinção - em particular em seu livro de 1979, escolhasque, longede serem valorizadaspor seu valor distintivo,acabampor estigmatizá-lo.
La distinction -, PierreBourdieuintroduziuuma novanoçãonas ciênciassociaisque,às vezes,
O "sensoda distinção"culmina no topo do espaçosocial.A língua francesa,aliás, qualifica
é equiparadaao conceitode conspicuous consumption que Veblen(1899)tinha desenvolvido como"distinguidas" as maneiras de ser (maneiras de se comportar, de falar...) próprias das
para designaros consumosde luxopelo qual as classesmais ricas manifestama superioridade classesdominantes. Elas são, certamente, pelo menos, em parte, o produto do "processode
de seu status social. No entanto, ela é mais ambiciosae se situa em um contexto de análise civilização"analisado por Norbert Elias (1939)e se caracterizam por uma estilizaçãoque as
menos intencionalista.Bourdieunão deu uma definição explícitadessa noção, que, aliás, é torna muito diferentes das maneiras de ser mais "instintivas", que são as mais frequentes
acompanhadapor noçõesderivadas:"estratégiasdistintivas","ganhos [profits]de distinção", nos meios populares. Em vez de considerar essas maneiras de ser comouma espéciede qua-
"sensoda distinção"... Ela aparece,em primeiro lugar, como um produto de suas pesquisas.
lidades naturais ou inatas, Bourdieu vai concebê-lascomo um produto da educação que é
Ora'.se suas origens se encontram na filosofia(nomeadamente,escolástica),ela procede de prodigalizada, desde a primeira infância, nas camadas sociais mais elevadase que inscreve
um Jogosobre a polissemiaque - pelo menos, em francês - caracteriza o termo "distinção": nos corpos uma diferença distintiva em relação a todas as outras classes.
se, com efeito,este designa a operaçãocognitivapela qual se identificauma diferença entre Sem dúvida, particularmente acentuados na aristocracia e na grande burguesia, os me-
duas palavras, é também na linguagem corrente um meio de nomear a elegânciae-anobreza
canismos de distinção são atuantes em todo o espaçosocial e têm uma dimensão dinâmica
de maneirasde ser.Eledesigna,finalmente,recompensasque - por exemplo,à semelhançadas
(uma prática distintiva em determinado momento pode perder tal característica).Bourdieu
medalhas escolaresou militares-, atestam o valor social reconhecidoa determinada pessoa. desenvolveessetema desde a década de 1960; em um contextomarcado, na França,por forte
A atençãoprestadapor Bourdieuàs lógicasde distinção remeteà sua análise da existência crescimentoeconômicoe pelo acessode novas camadas sociaisa bens de consumo,até então
socialcomodiferença("existiré ser diferente").A vida socialé uma luta pelo reconhecimento;
reservadosaos mais privilegiados.Enquanto alguns sociólogosconsideravamtais alterações
no entanto, como mostra o exemplodas medalhas ou dos "ritos de instituição",o reconheci-
comoum fator de redução das desigualdadesentre os grupos sociais,Bourdieuenfatizaque
mento de um agentetem semprecomocontrapartida a relegaçãodos outros em uma forma de
a "democratização" dos bens de consumo tem como contrapartida um deslocamentodas
indifer~nciação(MP).Avida socialnão cessade instituir diferenças,de operar distinçõesentre
práticas distintivas. Ao adotar determinadas características do nível de vida das categorias
os agentessociais.A necessidadede se distinguirdos outrospareceserparticularmentefortenos
superiores, as classes médias encontram uma oportunidade para marcar sua distância em
camposquevalorizammais a "originalidade":nos domíniosda arte e da ciência,determinados relaçãoàs classespopulares. Por sua vez, as camadas privilegiadasconservamsua distância
146 DISPOSIÇÃO
DISTINÇÃO 147
atravésde diferentesestratégiasconscientesou inconscientes(por exemplo,o estigmados usos francesaa partir do inícioda décadade 1960,no âmbitodo centrode pesquisasqueeledirigiaem
que as classesmédias fazem dos novosbens a que têm acesso).As questõesmuit~ específicas Paris.Aliás,o livrobaseia-sena exploraçãoestatísticade uma sondagemrealizadanessecentro,
formuladasna pesquisa de La distinction confirmam essavisão das coisas:se, por exemplo, durantea décadade 1960,na continuidadedas pesquisassobreas relaçõesdos estudantescoma
o fato de escutar música clássicajá não é o monopóliodas camadas superiores,mesmo assim cultura,mas envolvendouma amostraqueabrangiatodaa populaçãofrancesa.Esselivroprolonga
subsistem fortes diferençasentre as classesquando se leva em conta, de forma mais sutil, a tambémas reflexõesque Bourdieutinha elaborado,na mesmaépoca- em junho de 1965-, em
amplitude dos conhecimentosmusicais ou a familiaridade com trechos pouco vulgarizados. companhiade economistase especialistasde estatísticasobrea questãoda democratizaçãodo
Emborapossa parecer tautológica,é muito importante a ideia d6 que os grupos que estão acessoaosbens econômicose culturais,na França,nas décadasdo pós-guerra(BoURDIEU, 1966),
mais orientadospara os bens distintivossão aquelesque possuem o mais sutil "sensoda dis- alémde retomar,sob uma novaforma,a análisedo "amorpelaarte",não comoum dom natural
tinção".Ela sublinha,por um lado, que o interessepelo~mecanismosde distinçãose inscreve ouuma capacidadeuniversal,mas comodisposiçãoherdadarelacionadacoma frequênciaprecoce
em uma análiseda tendênciaà reproduçãodo mundo social:na concorrênciapela distinção,os à culturalegítima,emparticular,nos círculoscultivados.La distinctionherda,simultaneamente,
~ai~ "~istintos"encontram-sena dianteirados outros.Alémdisso,elatransformaas lógicasde aspreocupaçõese osinstrumentosdesenvolvidos por Bourdieuno decorrerda décadade 1970:as
d1stmçaono produtode um sensoprático,de um habitus:o amador de arte que apreciaas rari- reflexõessobreas "classessociais"e sua reprodução(queaprofundavamas análisesdosanos 1960
dadesnão é movidopela obsessãode se distinguir do comum dos mortais, mas por uma forma sobreo sistemade ensino);e ostrabalhossobrea "opiniãopúblicà'.Olivrosebeneficiaigualmente
de instinto, um "amorpela arte" (AA)que pode ser muito sincero.Nessesentido,Bourdieunão doprogressoda "teoriados campos",sistematizadapor Bourdieua partir do inícioda décadade
diz, de modo algum, que a busca da distinçãoseria a mola propulsoradas condutashumanas 1970e que está associadaà técnicade análisedas correspondênciasutilizadaem La distinction.
(MP,161);a lógicadosjogossociais- por exemplo,aquelaquelevaos camposculturaisa propor Em resumo,esselivro é uma construçãofecundae complexa:do ponto de vista teórico,ele
aosconsumidoresuma ofertadiversificada,em constanterenovação- é queproduz a distinção. propõeuma teoriarelacionalda estruturasociale, ao mesmotempo,uma críticasociológicadas
Uma questão que podem colocar essas análises - aliás bastante úteis para os estudos tesesde ImmanuelKantsobreo juízode gosto.Dopontodevistaempírico,forneceuma descrição
históricos e sociológicosde diferentes setores, como a moda, a cultura, o esporte ou O con- extremamenteprecisada sociedadefrancesade seu tempoe das lutas que entãose travam entre
sumo - é a de saber se elas são generalizáveisa outras sociedades,além da França do século classese fraçõesde classes,abordando,paraalémdo domínioprivilegiadoda cultura,os consumos
XX.Alguns trabalhos, como o de Craig Clunas (1991)sobre a China dos séculosXVI e XVII, alimentares,os gostosesportivos,a competênciapolítica... La distinction que, por alguns de
fornecemos primeiros elementosde resposta. seusaspectos,evocatambémempreendimentosliterários- emparticular,o de MarcelProust-, é
igualmenteo produtodeuma reflexãoaprofundadasobrea escritaem ciênciassociais:a construção
Referências dasfrasese o uso intensivode documentos- trechosde entrevistas,recursosfotográficos, gráficos
CLUNAS,C. Superjluous Things:Material Culture and Social Status in Early Modern China. oriundosde análisesestatísticas...-visam não só conjugar,de uma formanova,a análiseabstrata
Cambridge:Polity Press, 1991. e a evocaçãoempírica,mastambémrestituira complexidadedosmecanismossociaisanalisados.
ELIAS,N. Überden Prozeflder Zivilisation:soziogenetischeund psychogenetischeUntersuchungen. A ideia central desselivro - por natureza, difícil de resumir - é a de que os agentessociais
Base!:VerlagHaus zum Falken, 1939. tendem a ter gostos relacionadoscom suas condições econômicase sociais. As opções que
VEBLEN,T. Theory of the Leisure Class:an Economic Study of Institutions. London:Macmillan elesfazem em domíniosdiversificados- estética,práticas esportivas,escolhasmatrimoniais,
Publishers, 1899. inclinaçõesde caráter moral, alimentação,política... - são produtos do mesmo princípio:o
habitus. Em tais condições,essas escolhas apresentam uma robusta coerênciae tendem a
exprimir a posiçãono espaçosocial.As diferençasde estilosde vida e os desacordosde gosto
69. DISTINÇÃO (A):CRÍTICASOCIALDOJULGAMENTO
são,destemodo,objetivamentejulgamentosde classe;elesparticipam de uma "luta simbólica"
(La distinction: critique sacia/e du jugement)
pela qual, cotidianamente,os agentese os grupos sociais,ao classificarembens de consumo,
..................................................................................................................................
não cessamde se classificaruns em relaçãoaos outros.La distinction mostra que os estilosde
Julien Duval vida identificáveisna Françada décadade 1970formamum espaçohomólogodo espaçosocial
BOURDIEU,P.A distinção:críticasocialdojulgamento. SãoPaulo:Edusp;Porto Alegre:Zouk,2007.
que é estruturado, em primeiro lugar,em função do volume,da estrutura e da antiguidadedo
capitalpossuído.Três capítulosdo livro incidem,sucessivamente,sobretrês estilosde vida e
Publicadaem 1979,La distinction. Critiquesocialedu jugement é, comLe senspratique suas variantes: "o senso da distinção" característicodas classesdominantes; "a boa vontade
(1980),um dos dois volumososlivros que Pierre Bourdieu publicou nas Éditions de Minuit cultural" associadaàs classesmédias; e "o senso do necessário"prevalecentenas classespo-
no meio ~e sua carreira acadêmicae nas vésperas de sua eleiçãopara o Collegede France. pulares. As transformações,no decorrer do tempo, do espaçodos gostos e do espaçosocial,
SeLe senspratique opera um retomo aos trabalhosde etnologiaempreendidosna Argélia, são abordadas igualmente em La distinction: determinadas práticas podem deixar de ser
La distinctioné uma espéciede síntesedas pesquisasefetuadaspor Bourdieusobrea sociedade distintivas - por exemplo,ao se "democratizarem"- e as transformaçõeseconômicas,assim

148 DISTINÇÃO (A): CRITICA SOCIAL DO JULGAMENTO DO JUL_GAMENTO 149


DISTINÇÃO(A): CR(TIC~ SOCIAL_
(La distinction: critique sociale du jugement) (La distinction: cnt1que sociale du 1ugement)
~--~---------------

como as mudanças do sistema escolar,estão na origem de uma modificaçãodas relaçõesde PRIEUR,A.; ROSENLUND, L.; SKJOTT-LARSEN, J. Cultural CapitalToday:A CaseStudy from Den-
força ~~treas classesou as frações de classes.Um capítulo inteiro mostra também que - ao mark. Poetics, n. 36, p. 45-71,2008.
contrario do que pressupõemmuitas vezes a ciênciapolítica ou as sondagens- a capacidade ROSENLUND,L. Cultural Change in Norway: Cultural and Economic Dimensions. International
de formar uma opinião pessoal é tão pouco universal quanto o julgamento estético "puro": Journal of Contemporary Sociology, v. 37,n. 2, p. 245-275,2000.
ela depe~d~de ~ma competênciapolíticamuito desigualmentedistribuída no espaçosocial.
La drstmctwn exerceumuita influênciatanto na França quanto no exterior (asprimeiras
t:aduções integrais - para o alemão e, em seguida,para o inglês - datam de 1982 e 1984).o 10. DOM(Ideologia do)
·······················································································································
livro tornou-se uma referênciaclássicapara a sociologiada cultura, mas, também, às vezes, Kátia Maria Penido Bueno
para a s~c_iologiado esporte,para o estudoda participaçãopolítica...Suastesesforam objetode
comentanose debates.NaFrança,a obrafoidiscutida,em particular,por sua análisedemasiado Ao longo da década de 1960, Bourdieu formula uma severa crítica ao papel da escola,
"legitimista"da culturapopular (GRIGNON; PASSERON, 1989).Maisrecentemente,a coerênciado denunciando sua incapacidadede promovera igualdade de oportunidades entre os indiví-
h~bitu5_e ~os_e~tilosde vida tem sido questionadacom a noçãode" dissonância",que insistena duos. Suas pesquisas de então concluemque a instituição escolar desempenhauma função
d11Uensao mdmdual da formaçãodos gostos(LAHIRE, 2004).Umapesquisacomparativa,citada de reprodução(conservação)social,sancionando,legitimandoe perpetuando desigualdades
frequentemente,chegouà conclusãoque, se a análisedesenvolvidaem La distinction é, talvez, preexistentesa ela. É nesse contexto intelectual que surge sua crítica à ideologiado dom, a
ad~quadapara a sociedadefrancesa,ela não seria generalizávelpara um país como os Estados qual confere ao termo "ideologia"o sentido marxiano de falsa representaçãoda realidade,
Urudo~(LA'.'10NT, 1992).Alémdisso,a partir da décadade 1990,um grandenúmerode pesquisas apontando, desse modo, a mistificaçãoem que se incorre quando se atribui a propriedades
de soo~logiada cultura enfatizou na esteirados trabalhos de RichardPeterson(1992)- que individuais,e até mesmo inatas, aquilo que é social e culturalmente construído. Ao atribuir
as relaçoe~entre a~categorias~ruditas_ e a "culturapopular" podemter passado,desdeo tempo aos dons (dotes) pessoais a responsabilidade pelas diferenças de êxito verificadas entre os
das pesqmsasde PierreBourdieu,por llllportantestransformaçõescom,nomeadamente,0 de- alunos,a escolaerigea ideologiado dom em explicaçãolegitimadorapara resultadosescolares
senvolvimentoespetacularde um "ecletismocultural" nas regiõessuperioresdo espaçosocial. desiguais,mascarando .desigualdadesreais do ponto de vista das condiçõessocioculturais
A posteridadeinternacionalde La distinction passa também pelos trabalhos que constroem dos educandos.O sucessonos estudos assumiria, segundo ele,a aparê~ciaenganosade uma
e~paçosde estilosde vida em outroscontextosespaço-temporais:assim,pesquisasrecentestêm · essênciapessoal, e não sua real condiçãode produto de um contexto social e cultural.
sido empreendidasna Austrália(BENNET et al., 1999),Noruega(RoSENLUND, 2000), Portugal Em trabalhos posteriores,tal concepçãoe a referênciaà ideologiado dom se estenderão
(BORGES PEREIRA, 2005),Grã-Bretanha(BENNET et al.,2008)e Dinamarca(PRIEUR et al.,2008). à análise das disposiçõesestéticas e de outras habilidades correntes nos campos artístico,
esportivo, literário, acadêmico,jurídico, etc. Em suma, Bourdieu detecta na ideologia do
Referências
dom um viés substancialista,em que se faz abstração da estrutura das relaçõessociaise das
BENNETT,T.; EMMISON,M.; FROW,J. Accounting for Tastes: Australian Everyday Cultures. circunstânciasnas quais vivem os indivíduos.
Cambridge:CambridgeUniversityPress, 1999.
BENNETT,T.;SAVAGE, M.;Da SILVA,E.; WARDE,A.; GAYO-CAL,
M.;WRIGHT,D. Culture, Class,
Distinction. London:Routledge,2008. 11. DOMINAÇÃO
····································;··················································································
BORGESPEREIRA,J. V.Classes e culturas de classe das famílias portuenses: classes sociais e "mo- Ana Paula Hey
dalidades de estilização da vida" na cidade do Porto. Porto: Afrontamento/Instituto de Sociologia
da Faculdadede Letras da Universidadedo Porto, 2005. Da mesma forma que ocorre com outros constructos elaboradospor Bourdieu,derivados
~O,UR~~EU,P. Différences et distinction. ln: DARRAS.Le partage des bénéfices: expansion et de apropriações,interpretações e ajustes de autores diversos,desde clássicosda filosofia,da
megalite en France. Paris: Minuit, 1966. P: 117-129:Colóquio do "Cercle du Noroit d'Arras", em sociologia,da etnologia,passando por seus contemporâneosnestes domínios e em outros, e
colaboraçãocom Alain Darbel.
operacionalizadospor meio de inserçõesempíricasbastante diversificadas,a dominaçãonão
GRIGNON,C.; PASSERON, J.-C.Le savant et le populaire, Paris: Gallimard-EHESS,1989. pode ser descolada do processo generativopelo qual a abordagem ganha corpo. Trazendo
LAHIRE, B. La culture des individus: dissonances culturelles et distinction de sai. Paris: La para o debate a dominação como aquilo que permite a uma ordem social reproduzir-se no
Découverte,2004.
reconhecimentoe no desconhecimentoda arbitrariedade que a institui, ela é inscrita nas dis-
L~MONT,M. Money, Morais and Manners: the Culture of the French and American Upper- cussõesmais amplas acercade quais são os mecanismossociaisque produzem e reproduzem
Chicago:Toe Universityof ChicagoPress, 1992.
Mzddle C::Iass. as estruturas e como elassão (e estão)incorporadas nos indivíduos,agindocomoum sistema
PETERSON,R. Understanding Audience Segmentation: From elite and mass to omnivore and de disposiçõespráticas. A correlaçãoentre estruturas objetivase estruturas cognitivasseria,
univore. Poetics, n. 21,p. 243-258,1992.
para ele, a fundação de uma verdadeirateoria realista da dominação (Ri, 168).

150 DISTINÇÃO(A): CRITICASOCIALDO JULGAMENTO DOMINAÇÃO 151


(La distinction: critique sociale du jugement)
Aofalar de dominação,eleestáse referindoaosmecanismossociaisdisponíveispara engen- a transformações decorrentes dessas lutas; como luta exigeo engendramento de processos
drar a reproduçãosocial,não meramenteno plano da garantia da perpetuaçãoeconômica,mas, de legitimação,que podem assumir diferentesformas em distintas configuraçõeshistóríco-
sobretudo,no âmbitoda reproduçãocultural.Nointuitode afastara dominaçãoda caracterização sociais.Mas o elementoinvariante é a luta pela acumulaçãoe apropriaçãodessasduas espécies
de seupertencimentoapenasao reinoda apropriaçãoeconômicaou determinadapor elee, ainda, de capital, o econômicoe o cultural, e pelas outras formas daí derivadas.
comoum processoque envolvecoaçãoou submissãoexteriorao indivíduo,Bourdieudeslocao Emboraa dominaçãopossuâum caráterestrutural,a ideiaem si de dominaçãopode servista
focopara a dimensãosimbólicados processossociaise à maneira como os agentesordenam a duplamente:tanto comoestrutura geralde análisequantoà,maneira com~engen~radíferent~s
realidade.A ênfaserecaíem verificara eficáciada dominaçãose realizandopor meiodosinstru- princípiose modosem cada campo socialpossívelde escrutínio,tornando llllperativaa necessi-
mentossimbólicosdirecionadospara cumpriremsuas funçõesde comunicaçãoe conhecimento dade de se utilizar um métodopara objetivá-la,orientadopor princípiosepistemológicos. Para
(criandoo consensosobreo mundo),mas,também,em conferirseu caráterpolítico(legitimando Bourdieu,a busca da construçãode um modelodas estruturasfundamentaisda visão e divisão
as diferençassociais),correlacionando-se estritamentecomviolênciae podersimbólicos,núcleos domundo,postasnosmecanismosobjetivos,"contribuempara a instauraçãode relaçõesduráv~is
fortes da sua teoria sociológica.Invocandoa base dos processosde incorporaçãodas divisões dedominação,mas tambémpara a dissimulaçãodessasrelações.Para compreenderas produçoes
sociaise dos esquemasmentaispara reproduzi-lapor meio do reconhecimentoe da cumplici- simbólicashá que se construir"não somentea estrutura das produçõessimbólicas,ou melhor,o
dade,sua leituraé condicionadapeloentendimentode noçõescomoestrutura e habitus,campo espaçodas tomadasdeposiçãosimbólicasnum determinadodomínioda prática[...],~~s também
e espéciesde capital,visõese divisõessociais,classificaçõessociaise cognitivas. a estruturado sistemados agentesqueas produzem[...], ou melhor,o espaçodeposiçoesqueeles
Bourdieu afirma, em entrevista de 1989, que o centro de seu trabalho "é analisar os ocupamna concorrênciaque opõeuns aosoutros"(MPp,216,grifosdo origin~). _ .
fundamentos das formas simbólicas de dominação, a violênciasimbólicado poder do tipo Evitando imprimir uma direção única ao conceito,vale destacar a classificaçaode_Pm~o
colonial,da dominaçãocultural, da masculinidade,poderes estes que têm em comum o fato (1998),que apontatrês conjuntosde pesquisasdesenvolvidos por Bo~dieu ac,~rcada dom~aça~
de serem exercidos,de algum modo, de estrutura para estrutura. Sãopoderes que estão nas entendidacomocondiçãode possibilidadede submissãoà ordemsocialcomo ordemdas co1Sas•
estruturas objetivas[...],masque para funcionar precisam da cumplicidadedos agentesque Oprimeirogrupo envolveo sistemaescolare seupapelna reproduçãodas desigualdadessoci~ís,
interiorizam as estruturas segundoas quais o mundo é organizado.Todasas lutas simbólicas ressaltandoos mecanismosde consagraçãodas classificaçõessociaistransmutadasem seleçoes
começam sempre por uma denúncia [...] das formas objetivadasda dominação,porque elas escolares.A ênfaserecaina legitimidadeda triagem ali operada,uma vez que a dístríbuíç~ode
podem ser vistas, porque se pode tocá-las" (SMS,20-21). títulosválidossocialmentetransfiguraa objetividadede estruturas,que agemde formadesigual
A dominaçãosimbólica,a dimensãosimbólicade outras formasde dominaçãoe as relações conformeas disposiçõesconstituídasno interior das diferentesclassese fraçõesde classepelos
de dominação em si constituem a originalidade do autor, ao situá-las no plano estrutural, seusmembros.A segundamatriz de trabalhosrelativaao espaçosociale campodopoderdi~o~a
como instrumentos de poder que atuam na ordenação da realidade a ser percebida e viven- com os escritosque evidenciama composiçãodo mundo socialpor variados campos socia1s,
ciada. Assim se expressa:"Mesmoquando repousa sobre a força nua e crua, a das armas ou os quais se caracterizampor um sistemade posiçõesdeterminadopor espéciesdiferentes~e
a do dinheiro, a dominação possuí sempre uma dimensão simbólica.Por sua vez, os atos de capital,mas em homologiacom a distribuiçãogeralentre capitaleconômicoe cultural.A partir
submissão, de obediência, são atos de conhecimento e de reconhecimento os quais, nessa da oposiçãoentre dominantese dominadosem cada camposocial,a constitu~ç~o do ~':111Pº
do
qualidade,mobilizam estruturas cognitivassusceptíveisde serem aplicadasa todas as coisas poderse dá por indivíduosquedetêmuma espéciede capitalquelhe confereposiçaolegitimapara
do mundo e, em particular,às estruturas sociais"(MPp,209).Essadimensãosimbólica,marco lutar pela imposiçãode um princípiode classificaçãodominante.Há, na p~ática,o a_fast~~ento
central de seu pensamento,envolvesempre o exercícioconsentidodo poder e da dominação dosprincípiosde cada campopara o exercíciode funçõesque respondema forma sllllbolicade
relacionadoà luta pelas classificaçõese pela obtenção do direito de classificar. dominação- comoconstituir"o"ponto de vista acercado mundo social.O último conj~~o de
Apesar de se constatar que o conceitode dominaçãoaparecepouco nos índices analíticos investigaçõesrefere-seà construçãosocialda realidade,enfatizandoaquelassobreos ~s~tos
das obras de Bourdieu (SAINTMARTIN, 2003,p. 27), entendo que o interesse do autor é de- camposprodutoresde bens simbólicos(político,jornalístico,econômico,intelectual,soc10logico,
monstrado no decorrer de sua feitura sociológicaao valer-se da ideia segundo a qual alguns científico),os quais se encontram envolvidosna luta políticapela definiçãolegítimado_m~d_o
dominam a produção de sentido sobre o mundo social (ou parte dele),forjando uma visão sociale na produçãoou refutaçãoda doxa. Nessesentido,aponta a necessidadede se m_qun:_rr
sobre ele que engendra sua direção. Traz assim, como eixo fundamental, as classificações sobre"os circuitosde circulaçãodosbens políticos"e,também,das tecnologiasde formalízaçao
sociais e as taxionomias aí geradas como uma forma de dominação, pois elas resultam da e representaçãoda realidadeprópriasàs diferentescategoriasde agentes",quetendema ratificar
luta travada a partir da ocupaçãode diferentes posições nesse sistema de classificação,em "uma definiçãode realidadeproduzidano campo político"(PINTO,1998,p. 173).
que alguns adquirema posiçãodominante e outros, a dominada. Parafraseandoo poeta René Devem ser destacados, ainda, artigos seminais para a gênese da noção, publicados em
Char (1967),para quem há certas guerras que não acabam nunca, a dominaçãocomosistema ARSS, que propiciamseu entendimentopela lógicado autor.Os textos apresentama sist:ma-
se constituíem motor de luta permanente entre grupos e indivíduosrepresentativosde grupos tização de dominaçãocentradosnos estudossobre a sociedadecabila,o mundo camponesde
0
sociaisespecíficos;por ser luta instituí-se comodominação,com dinâmica específicae sujeita Béarne a sociedadefrancesados anos 1970,dialogandointensamentecoma etnografiae com

DOMINAÇÃO 153
152 DOMINAÇÃO
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estruturalismo,representadospor "Lesmodesde domination"(1976),"Stratégiesde reproduction de formas de exercer o poder nas sociedadescapitalistas-democráticasque, sem recorrer à
et modesde domination"(1994)e o desenvolvido cóm LucBoltanski,"Laproductiondel' idéologie violênciafísica,permitem proteger os interessesde uma classee assegurar a dominação por
dominante"(1976).Apesarde aparentementeexporemmundosmuito distantes,estestrabalhos meio da visão de mundo incorporada a uma política (BOLTANSKI, 2008,p. 139).
discorremde formadireta comas batalhassimbólicaspara instituir formasde classificaçãoe de Ressalta-se,por fim,o papeldo Estadona dominaçãoque,alémde tornar possívela integração
visãodo mundosocialengendradasna práticacotidiana.Ointeressepelasestruturascognitivas, lógicae moral do mundo sociãl,age comoprodutor de sistemasclassificatórios,reivindicando
pelas taxionomiase pelas atividadesclassificatóriasdos agentesé enfatizadotanto ao expor a o monopóliodos princípiosde classificaçãosusceptíveisde serem aplicadosa todas as coisas
criaçãode estruturas objetivasque vão atenderao preceitode eficáciasimbólicada dominação do mundo social (SEp,227).Se o essencialda dominaçãopassa pela incorporaçãodas estru-
ao seincarnareminstitucionalmente(oEstado,o sistemade ensino,o aparatojurídico)comopor turas por meio da socializaçãoe pela introjeçãode princípiosde classificação,a investigação
atos de conhecimentoe reconhecimentodos agentes(o cabila,os camponeses,as mulheres,os dos mecanismosque permitem a submissãoao Estado,sem que este preciseexercera coerção
políticos,os especialistas)e peloEstadocomolegítimopara formataruma ordemsocial,tornan- permanente, inscreve-ocomo aqueleque contribui plenament_e para a ~eproduçãoda o~dem
do-a universale fornecendoa forma oficialpúblicapara essa ordem.Ao submetero conceitode simbólicae das ferramentas cognitivasde construção da realidade social.Dessa maneira, a
dominaçãoàs condiçõeshistóricasdas estruturassociais,destacaa funçãoideológicae políticado análise da dominaçãonão pode excluiro ato de submissãodóxicoà ordem estatal,e mais, de
simbólicona produçãode legitimidadepor meiodosdiversosdispositivosdeproduçãosimbólica. como o Estado exercea "função simbólicà' de produção de um consensoentre as estruturas
Nesse ponto, Bourdieu recorre às instituições - entendidas em sua dupla forma, na cognitivase as estruturasobjetivas,por meioda próprialógicade "funcionamentodesseuniverso
realidade e nos cérebros (SEp,228) -, envolvidasno trabalho de dominação simbólicapara de agentesde Estado que fizeram o discurso do Estado",revelandotambém os interessesque
demonstrar a translação de um modo de dominação simples para um mais complexo.Na elespossuíam em função da posiçãoque ocupavamno espaçodessaslutas (SE,239).
primeira situação,estratégiasconstantementerenovadasprecisamser instauradaspara garan- Afastando a ideia de que a dominação se instituiria pela razão imediata entre quem
tir as condiçõesde apropriaçãodireta do trabalho, dos bens, dos serviços,das homenagens, domina e quem é dominado, vale lembrar que "a dominação não é o efeitodireto e simples
uma vez que estão ausentes mecanismos indiretos, tais como o Estado, o sistema de ensino da ação exercidapor um conjunto de agentes (a "classedominante") investidos de poderes
e o aparato jurídico, caracterizando sociedadesdesprovidas de mercado autorregulado.No de coerção,mas o efeitoindireto de um conjunto complexode ações que se engendram na
outro modo de dominação,a mediação exercidapela posse dos meios - capital econômicoe rede cruzada de limitações que cada um dos dominantes, dominado assim pela estrutura
cultural - de se apropriar dos campos de produção econômicae cultural tende a assegurar do campo através do qual se exerce a dominação, sofre de parte de todos os outros" (RPp,
a própria reprodução deles por via exclusivade seu funcionamento,independentementede 52).Essa forma de pensamento exigedesvelarmecanismoshistórico-sociaiscomplexose os
qualquer intervençãointencionaldos agentes.Assim, continua Bourdieu (1976,p. 122),é no arranjos construídospara perpetuar modos de dominaçãocada vez mais eficazes,porquanto
grau de objetivaçãodo capitalsocialacumuladoqueresideo fundamentode todas as diferenças mais dissimulados,pelo fato de legitimarem uma ordem simbólicaque é incorporada.
pertinentes entre os modos de dominação - quer dizer, entre os universos sociaisem que as
relações de dominação se estabelecempor meio da interação pessoal e pelo uso do capital Referências
simbólico,e as formações sociais em que a dominação é mediada por uma estrutura que a BOLTANSKI, L. Rendre la réalité inacceptable.Paris: Demopolis,2008.
legitima.Osmecanismosobjetivose institucionalizadospromovema distribuiçãodesigualde BOURDIEU,P. Les modes de domination. ARSS, Paris, n. 2-3,p. 122-132,juin 1976.
recursos sociaise permitem seus usos diferenciaisno interior das classese fraçõesde classe. BOURDIEU, P.Stratégiesde reproductionetmodes de domination.ARSS,Paris,n. 105,p. 3-12,déc.1994.
Na mesma direção analítica, Bourdieu e Boltanski (1976)evidenciamo modo de domi- BOURDIEU, P.;BOLTANSKI, L.Laproductiondel'idéologiedominante.ARSS, Paris,n. 2-3,p. 3-73,juin 1976.
nação expostona filosofiasocialdas "fraçõesdominantes da classedominante" da sociedade CHAR,R. Fureur et mystere. Paris: Gallimard, 1967 [1948].
francesa dos anos 1970.Expondo o "bom senso" das visões de mundo dos políticos e seus PINTO,L. Pierre Bourdieu et la théorie du monde social.Paris: Albin Michel, 1998.
experts (economistas,demógrafos,politólogos,estatísticos, sociólogos),mas também dos SAINTMARTIN,M. de. Dominação social, dominação escolar.Educação & Realidade, v. 28, n. 1,
lugaresneutros (centrosde cálculose previsões,círculos de debates de conjuntura), escruti- p. 21-29,jan./jul. 2003.
nam atores e lugares que concebema "mudança"que será imposta a todos e cuja expressão
reside na ideia de "novas tendências".Esse modo de dominação, que consiste em "mudar
para conservar", comporta a passagem de uma forma simples, na qual as instâncias de n DOMINACÃOMASCULINA(A) (La domination masculine)
····················::: ...............................................................................................
..
.
poder são orientadas para a manutenção da ortodoxia e pelo afastamento da crítica, para
ClariceEhlersPeixoto
um modo mais aperfeiçoado,operando justamente pela incorporação da crítica ou de seus
traços mais superficiais;engajandodispositivosde poder (empresas,administrações,Estado)
BOURDIEU,P.A dominaçãomasculina.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
nas con~ínuasséries de reformas; incorporando-as a um processo de acompanhamento de
mudanças permanentes (BOLTANSKI, 2008, p. 139)e, sobretudo, recebendo o selo da visão Década e meia após a publicaçãode A dominação masculina, e numerosas críticaspu-
neutra atestada pelas competênciasdos especialistas.Demonstram, assim, a especificidade blicadasmundo afora, como redigir um verbete que dê conta da análise elaboradapelo autor

154 DOMINAÇÃO 155


DOMINAÇÃO MASCULINA (A) (La domination masculine)
sobre as relaçõesde dominação entre os sexosna sociedadecontemporânea,tendo a sociedade de devotamentoe de abnegação"(DMp,73).Ainda nesse capítulo,o casal Ramsey,do romance
Cabila como contraponto reflexivo,e de tudo o que foi dito e analisado a partir dele, sem ser de v.Woolf,To the Lighthouse(1927),serve de base para o autor elaborar uma bela análise da,
repetitiva?Há que se considerar que, antes mesmo do lançamento do livro, o próprio Bourdieu "visãofeminina da visão masculina'', e eleusa pares de oposição(alto/baixo,seco/úmido,ativo/
publicoutextos nos quais já esboçavaas ideias que nele aprofunda. Dois se destacam: em 1990, passivo,leve/pesado,etc.)para "ilustrar o que seria uma 'ordem das coisas"'(FoURNIER, 2002).
o artigo de mesmo nome em ARSS (n. 84) e, em agosto 1998, o preâmbulo do livro em Le Ainda que critique a "visão meramente 'semiológica'de Lévi-Strauss",esses d?i~c~~ítulos~ão
monde diplomatique (p. 24). Escrevia no prefácio ao livro: "É contra estas forças históricas profundamenteestruturalistas, como diz Fine (1998,p. 3),mas basta~te opera~ono,s.na medida
de des-historicizaçãoque deve orientar-se, prioritariamente, uma iniciativa de mobilização em que ele insiste, a justo título, sobre a coerência e o peso de um sistema simbolico que, em
visando repor em marcha a história, neutralizando os mecanismosde neutralizaçãoda história. todas as sociedades,hierarquiza o masculino e o feminino".Para ela, a análise de Bourdieu é
Esta mobilizaçãomarcadamentepolítica, que abriria às mulheres a possibilidadede uma ação muito próxima da definição de sistema simbólico de Lévi-Strauss.O capítulo termina com a
coletivade resistência,orientada no sentido de reformas jurídicas e políticas, opõe-se tanto à relaçãoentre o amor do dominante e de sua dominação (libidodominantis).
resignação a que encorajam as visões essencialistas [... ] da diferença entre os sexos quanto à No capítulo 3 - "Permanências e Mudança" -, o autor reconhece que o m~ndo muda, a
resistência reduzida a atos individuais [... ]. Convocar as mulheres a se comprometerem com economiaidem, mas as estruturas sexuais permanecem as mesmas, sendo que isso nada tem
uma ação política que rompe com a tentação da revolta introvertida de pequenos grupos de a ver com "a ordem das coisas".Para ele, esta constância é fruto de um trabalho de "(re)cria-
solidariedadee ajuda mútua[ ... ] é desejar que elas saibam trabalhar para inventar e impor[ ... ] ção continuada das estruturas objetivase subjetivas da domin:ção masculina, qu_ese realiza
formas de organizaçãoe de ação coletivase armas eficazes,simbólicassobretudo, capazes de permanentemente, desde que existem homens e mulheres [... ]_ (DMp, 100).Os P~~resdessa
abalar as instituições [... ] que contribuem para eternizar sua subordinação". dominação são a família, a igreja, o Estado e a escola. O autor não avança na analise d~ss,as
Diria que a teoria da dominação é o fio condutor de toda sua obra e nela formula noções e instituições e dos agentes que, historicamente, perpetuam essa dominação. Se ª.f~~ilia e a
conceitos- habitus, campo, violênciasimbólica, mercado de bens simbólicos,e outros - principal responsávelpela reprodução da dominação, a escolasurge como a possibilidadede
que serãosuas ferramentasde análise.Para Bourdieu,os dominantessão grupos sociaisou etnias mudança nas relaçõesentre os sexos.
e, nesselivro, oshomens. Elesimpõem seus valorese regras aos dominadosque os internalizam
inconscientemente,adotamseusesquemasde pensamentoe,por isso,a elesse submetem.Trata-se, Referências
aqui,de seguira mesmalinha depensamento,evocandoos mesmosconceitos.Assim,a dominação CORRÊA,M. Bourdieu e o sexo da dominação.Novos Estudos, CEBRAP, v:54, P· 43-53,1999.
masculina, e o modo como é imposta, é o "resultadodaquilo que eu chamo de violênciasimbó- FINE,A. Pierre Bourdieu.La domination masculine. Paris: Seuil, 1998.
lica, violênciasuave,insensível,invisívela suas próprias vítimas, que se exerceessencialmente FOURNIER,M. La domination masculine. Sciences Humaines, p. 50-53, 2002. Numéro Spécial:
pelas vias puramente simbólicasda comunicaçãoe do conhecimento,ou, mais precisamente, rreuvre de Pierre Bourdieu.
do desconhecimento,do reconhecimentoou, em última instância, do sentimento"(DMp,7).
O livro tem três capítulos.No primeiro - "Umaimagem ampliada"-, Bourdieuse apoia nas
73.DOXA
culturas da sociedadepré-capitalistae dos Berberesda Cabiliapara analisar o androcentrismo ·················································· ·····································································
Louis Pinto
ocidental,solidificadonas estruturas sociaise cognitivas.Dizele:"a visãoandrocêntricaé, assim,
continuamentelegitimadapelasprópriaspráticasque ela determina:pelofatode suas disposições
resultaremda incorporaçãodopreconceitodesfavorávelcontra o feminino,instituídona ordem A palavra gregadoxa é mais frequentementetraduzida em francêsp~r "opini~~"-Em_Platão,
das coisas,as mulheres não podem senão confirmar seguidamente tal preconceito"(DMp,44). estetermo designauma forma degradadade crençaque se opõeao conhecimentosolidoe rigoroso
Para Corrêa, "ao empurrar a dominaçãomasculina para um ponto remoto da nossa história - e da ciência(episteme),do qual a filosofiaé o modelosupremo.Enquantoa ciênciaé apropriadapelos
para um "estadoarcaico"- fazendo-aenraizar-seem um difusoinconscienteculturalque é nosso, filósofos,a mera opiniãoé o destino do homem comum,mergulhadono falsoclarãoda Caverna.
ainda que não o seja mais, Bourdieuse colocatambém numa perspectiva exterior a ela, isto é, Este termo é retomado por Husserl,mas utilizado com um sentido muito diferenteem suas
na de um analista isento da lógicaque analisa, não contaminado nem pela "visãomasculina", descriçõesdo "mundo da vida'' (Lebenswelt):elepretendia construir o estatuto_feno°:enol~gico
que denuncia, nem pelo "inconsciente masculino", que é, não obstante, o nosso inconsciente específicode uma modalidade da experiênciaque se distingue das formas de ~tenc1on~dade
cultural" (1999,p. 45). No capítulo 2 - "Anamnesedas constantes ocultas" -, o autor elabora visandoa um objeto,analisadasaté então.A doxa deixade ter o significadonegativoque~a na
uma rica descrição das formas constantes e ocultas de dominação, introduzindo a noção de tradiçãoda filosofiaintelectualista.Em vezde concebê-lana esferado julgamento,na medida em
"vocação"para reafirmar a dominação consentida, cuja lógicaproduz "encontrosharmoniosos que ela não se referea conteúdosapresentadosde maneira "temática",Husserlvai enten~~-la,_de
entre~ disposiçõese as posições,encontros que fazem com que as vítimas da dominação sim- preferência,comouma forma de relaçãocom o mundo queincluium segundoplanode eVIdencias,
bólicapossam cumprir comfelicidade (no duplo sentido do termo) as tarefas subordinadas ou ao mesmotempo, onipresentese despercebidas,certezase expectativassobreo estadodo mundo,
subalternas que lhes são atribuídas por suas virtudes de submissão,de gentileza,de docilidade, julgamentosimplícitos.É a Alfred Schütz (1899-1959),autor bem conhecidode Bourdieu,que

DOXA 157
156 DOMINAÇÃO MASCULINA (A) (La domination masculine)
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se deveuma reinterpretaçãosociológicadessaproblemática:tratava-se,para ele,de descrevera (BouRDIEU, 1972),cuja figura emblemáticaé o produtor e intérpretede sondagensde opinião,
parcelado evidente(takenfor granted) própriade nossaexperiênciaordinária,raramenteques- sãoeruditosde aparênciae das aparências,os "semieruditos"que dão ares de científicidadea um
tionada e explicitadaa não ser em situaçõesde estranhamentoou de crise.Taisevidênciasestão discursosobreo mundo socialbaseadoem pressupostosnão elucidados,os mesmosutilizados
baseadasna práticae estruturadas·poroperaçõesde tipificaçãoque favorecema compreensãoe pelospolíticos,jornalistas e ensaístas.Tal doxa, que pode eventualmenteassumir a forma sis-
a ação."Naatitudenatural, escreveAlfredSchütz,considerocomosendoevidenteque os outros temáticade um discursoideológico- a "opinião",expressãoe reflexo"democráticos"do povo-,
existam,que atuem sobre mim como eu atuo sobre eles, que a comunicaçãoe a compreensão tem a propriedadede acumular os lucrosdo rigor e os da evidência(QS).Para se desvencilhar
mútuas possam se estabelecerentre nós [...] tudo issograças a um sistemade signose símbolos das categoriasde pensamento próprias a esse universo,convémtrazer à luz as questõesque,
e no âmbitode uma organizaçãoe de instituiçõessociaisquenão são obraminha" (1962,p. 145). nas sondagensde opinião (ou em entrevistas),pressupõema posse universalde uma opinião
ParaBourdieu,é impossívelsecontentarcom"essaspoucasconstataçõesantropológicasgerais ("vocêacha que..."), de um códigocomum de noções unívocas (o "Estado",as "reformas",o
e a-históricas"(MP,208),mesmoque o projetode uma ciênciada experiênciaordináriamereça "déficitorçamentário",a "Europa"...). Essasperguntas impostas de fora a indivíduosdóceise
serlevadoa sério.A doxa contémo sentimentode familiaridadequeengendra,sobdeterminadas incapazesde reconheceros pressupostosdas mesmas e de contestá-los,suscitam uma forma
condições,o ajustedas estruturas do habitus às estruturas objetivas,da "históriafeita corpo" de adesãoilusóriabaseada na "allodoxia, que consisteem se reconhecererroneamentenuma
e da "históriafeitacoisa".Comotal, ela contribuipara reproduzira ordem existente,impondo formaparticular de representaçãoe de explicitaçãopúblicada doxa" (MP,221).
evidênciasque,por não seremda ordem dos pensamentos,acabamsendomais eficientes.Essa Por razões tanto científicasquanto políticas,a sociologiadeveempenhar-separa elucidar
é uma das razõespelas quais Bourdieuopõe a doxa à ideologia:"Seaos poucosfui banindo o 0 que diz e o que não diz a doxa, o que ela incita a pensar implicitamente;e isso é, em conso-
empregoda palavra 'ideologia',não é somenteem razão de sua polissemiae dos equívocosdaí nância com a exigênciade reflexividade,uma condiçãoprévia para a análise dos universos
resultantes.Ao evocara ordem das ideias,bem como da açãopelasideiase sobreas ideias,esse de produção simbólica.A não ser que se submeta a repetir, sob um modo erudito, o ponto de
termotendea cancelarum dosmaispotentesmecanismosdemanutençãoda ordemsimbólica,qual vista dos agentes, a sociologianão pode deixar de exercerefeitoscríticos sobre as visões do
seja,a dupla naturalização queresultada inscriçãodo socialnas coisase nos corpos"(MP,216). mundo social.Ela não propõe uma denúncia suspeitosaou desconfiadadas aparências,mas
Bourdieuesforçou-separa completaressa abordagemda relaçãopré-reflexivacom o mun- uma análise das crenças e das condiçõessociaisde produção das mesmas, a qual se inscreve
do, inspirada pela fenomenologia,com outra linha de inspiração,sobretudo durkheimiana. na tradição weberiana de análise da dominação e da legitimidade. \
O senso comum de um agente é determinado pela interiorização das oposiçõesobjetivasda Se o conhecimentocientíficocontribui para tornar menos evidente·arealidade social,ele
sociedadesob a forma de sistemas de classificação(alto/baixo,reto/curvo,masculino/femi- develevar em consideraçãoa força dos mecanismos sociais que tendem a manter a crença.
nino...). A adesão dóxica ao mundo social está baseada na relação de harmonia entre duas Eis o motivo pelo qual os intelectuais não devem superestimar o poder de sua crítica. Uma
ordens de coisas:as classese as classificações,as posiçõese as disposições,as probabilidades tomada de consciênciapode ser suscitada,sejapor acontecimentosbiográficossingulares,seja
objetivase as expectativassubjetivas,as estruturas objetivadase as estruturas incorporadas. por conjunturashistóricasque conturbam as referênciasanteriorese revelama arbitrariedade
Ninguémvivesem uma dose de "algoevidente",mas a mesma doxa não é compartilhada do que aparecia como a ordem natural das coisas.
por-todosos indivíduos:uma pessoapode sentir-seestranha ao universode outra. E o mesmo
ocorreem relaçãoa cadacampo:"Comoo campoartístico,cadauniversoeruditopossuisua doxa Referências
específica,conjuntode pressupostosinseparavelmentecognitivose avaliativoscuja aceitaçãoé BOURDIEU,P. Les doxosophes.Minuit, n. 1, p. 26-45, nov. 1972.
inerenteà própriapertinência"(MP,121).O grau de ajustepode ser apreendidoatravésdas ex- SCHÜTZ,A. CollectedPapers,I, TheProblemof SocialReality.LaHaye:MartinusNijhoff,1962,p.145.
periênciasque se distribuementre o polo da familiaridade,da facilidade,e o do incômodoe da
confusão.Comcerteza,a linha divisóriaentre o evidentee o inconcebível,longede ser fixa,não
cessade se deslocarsob o efeitode lutas e de "revoluçõessimbólicas"que oferecemnovosinstru- 74. DURKHEIM, ÉMILE(1858-1917) ........................
·······························································································
:;1entosde percepção.O que era evidente,até então,pode tornar-seobjetode discursoexplícito: Louis Pinto
O trabalhodos guardiõesda ordemsimbólica,que têm um trato como bom senso,consisteem
tentar restaurar,no modo explícitoda orto-doxia,as evidênciasprimitivasda doxa" (MP,224). Com seus escritos,Pierre Bourdieucontribuiupara dar a conhecera obra de Durkheim e
Deve-seprocedera uma distinçãoentre,por um lado, o sensocomumde que dispõem,sem dos durkheimianos. Alémdisso,providencioua republicaçãode algunstrabalhosdessesauto-
aprendizagemcodificada,todosos agentesno interiorde uma sociedadee queé a condiçãode um res em LesÉditionsde Minuit. No entanto, durante o período em que Bourdieuera estudante
mundocomum,suscetívelde sercontroladoe manifestadoe,por outro,as crençascompartilhadas de filosofia,Durkheim era consideradoum autor antiquado, sendo desacreditadotanto por
por gru~osde especialistasenvolvidosna produção,relativamentesistemáticae duradoura, de filósofosquanto por sociólogos.Foi,-emparticular, a obrigaçãode dar cursos sobreDurkheim
bens eruditos.Pode-seafirmar que qualqueruniversoerudito contémalgoindiscutido,sejana que,no inícioda décadade 1960,lhe permitiu descobriralgodiferentedo pensadorestérilque
forma de crençasteóricas,de valoresou de hierarquias institucionais,sociais.Os "doxósofos" eleesperavaencontrar.
1

' 158 DOXA DURKHEIM, ÉMILE (1858-1917) 159

L
Osdoissociólogos seguiramo mesmopercursoescolar(ÉcoleNormaleSupérieure,agrégation paradoxal,no caso de grupos desprovidosde meios objetivosde coesão.Assim,a unidade dos
de filosofia),sendo que o projetointelectualde ambos pode ser caracterizadoem termos quase estudantes,por não estarbaseadanem numa comunidadede trajetórias,nem na intensidadedo
idênticos,a começarpelarecusada mundanidadee da tradiçãoletrada.Enquantoracionalistas, enquadramentopedagógicoou na vitalidadede tradições,deve-seessencialmentea um conjunto
elesmostraram também relutânciano tocante às correntesrelativistasque assumem as apa- de ritos destinadosa manifestar a filiaçãoao grupo (frequênciaa determinadoslugares,inte-
rências radicais da liberdadee da imaginação.Contra adversários,tais cornoo empirismodo ressepelosgrandes debates,etc.)."Condenado,pela condiçãotransitória e preparatóriaem que
senso comum e o amadorismoerudito, eles criticaram a ideia de que seja possívelprescindir é colocado,a ser apenaso que projetaser ou, até mesmo,puro projetode ser",o estudanteestá
de "teoria".A ciênciase adquire contra a "pré-noção",contra o que é pré-construído,ao que destinadoa manifestarsua filiação,seu ser,mediante "comportamentossimbólicos"(LH,59).
ela opõe urna construçãoprópria. Elescompartilham também a ideia de uma unidade funda- A análise durkheimiana dos sistemas de pensamento e de classificaçãoconcerneprin-
mental das diferentesespecialidadesenvolvidasno conhecimentodo mundo social,a começar cipalmente à religião e ao conhecimento, estreitamente associados no livro Les formes
pela história.Para eles,o estudotanto do presentequanto do passadoé indissociável.Bourdieu élémentaires de la vie religieuse:deste ponto de vista, Bourdieu retorna o procedimento
pôde apoiar-sena ideia durkheimiana, ilustrada em L'Évolutionpédagogiqueen France,de de seu predecessor.Em relaçãoao sistema mítico-ritual cabila,Bourdieuformulou questões
que o inconscienteé um dos efeitosde urna história desconhecidamas sempreativa,ideia essa muito semelhantes àquelas que haviam sido abordadas por Durkheim e Mauss no famoso
que está no centro da sociologiada educaçãoe da sociologiado conhecimento,bastante inter- artigo sobre os sistemas de pensamento (DuRKHEIM; MAuss, 1969).A contribuição de
ligadas,segundoBourdieu.Váriasdécadasdepoisdas críticasde Durkheimao positivismodos Durkheirnconsistiu em enfatizar o trabalho cognitivo- nos sistemas simbólicos,em geral,
historiadorescontemporâneos(CharlesSeignobos),Bourdieudirigeacusaçõessemelhantesaos e na religião,em particular -, trabalho que tem o efeitode estruturar a ordem do pensável
historiadoresde sua época:culto excessivodos fatos e da precisão,relaçãoarnbivalentecom a graçasa um reduzidonúmerode esquemasmítico-rituais.No entanto,ao assumiruma postura
teoria, consideradaassunto de filósofose sociólogos(BOURDIEU; RAPHAEL, 1995). intelectualista,Durkheim é levadoa ignorar as "relaçõesde forçà', incapazde reconhecer,na
O preceito durkheimiano segundo o qual convém "explicar o social pelo social" deve sequência,que essas relaçõessó podem ser realizadas precisamentepor meio de "relaçõesde
ser entendido "unicamente" como "o lembrete da decisão metodológica de não abdicar sentido",que ele tem razão em sublinhar (contra Marx e Weber),mas que ele tende a tratar
prematuramente do direito à explicação sociológica [...] enquanto a eficáciados métodos de maneira idealista como termos últimos.
de explicaçãopropriamente sociológicanão tiver sido completamente comprovada" (MS, Aocitar Durkheim,Bourdieufaziaapelo,em seu livroMéditationspascaliennes,à noção
42). O antipsicologismotem um conteúdo puramente metodológico ou "provisório" (MS, aparentementeparadoxal de "condiçõessociotranscendentaisdo conhecimento"(MP,155'.
43), que diz respeito à fase inicial do trabalho de pesquisa. Durkheim poderia ter sido ci- 158),semelhante à "gramáticà' wittgensteiniana. A ideia segundo a qual o fundamento do
tado sobre este ponto, já que havia declarado o seguinte: se o sociólogo,"no início de seus valor só pode ser social,imanente ao mundo social para além do qual nada existe,pode ser
esforços,parece afastar-se do homem, é com a intenção de retornar a ele e para conseguir atribuída a Durkheim mesmo que os termos sejam diferentes (emvez de capital,Durkheim
compreendê-lomelhor [...]. Portanto, bem longe de ser estranha à psicologia,a sociologia falade grupo enquantofonteespecíficade uma autoridadequesó poderia ser supraindividual).
entendida assim chega, por sua vez, a ser urna psicologia,mas muito mais concreta e com- O campo é O lugar em que circula o capital,o valor coletivo:"Overdadeiro 'sujeito'das obras
plexa do que aquela elaborada pelos psicólogospropriamente ditos" (DURKHEIM, 1975,p. humanas mais bem-sucedidasnão é outro senão o campo" (MP,137).
185).Na esteira de Durkheirn, Bourdieuleva em conta a especificidadedo coletivosem cair Finalmente,Durkheimestápresenteemum trechoprivilegiadodeMéditationspascaliennes,
no "holismo",porque a oposição individual-coletivo é imanente ao mundo social; é essa na frasefinalem queBourdieuevocao capitalsimbólicocornoum capitaldas razões(sociais)de
oposição que é pertinente, mais do que cada um dos dois termos. Ela pode ser considerada existir.Essecapital,de que o Estadoé a garantiamáxima,não poderia ser confundidocomum
de um ponto de vista empírico. simplesacúmulode sinaisde distinção:eleé a medida e a expressãoda excelência,socialmente
O conceitode integraçãofoimobilizadodesdeos primeirostrabalhos destinadosa analisar reconhecida,de um indivíduo,de que sua existênciaestájustificada,que elamereceser vivida,
a coe~ã_o de grupos sociais,sua maneira de existir como grupo. As pesquisassobre fotografia imitada,honrada. "Cornose vê,Durkheimnão era tão ingênuocornose quer fazercrer quando
permitiram revelaro quanto a fotografiaestá associadaà família e seus temposfortes (festas, · dizia,assim cornoKafkapoderia tê-lofeito,que 'a sociedadeé Deus"' (MP,288).
batizados,casamentos).A probabilidadede possuir urna máquina fotográficaaumenta com
o tamanho da familia: enquanto os camponesessão um dos grupos mais apegadosaos usos Referências
familiaresda fotografia,as classessuperioresurbanas tendem a tornar distânciaem relaçãoa BOURDIEU,
P.;RAPHAEL,L. Surles rapports entre l'histoire et la sociologieen Franceet en Alemagne.
essesusos exclusivos.Essamesmalógicapresideas práticas"desviantes"própriasde indivíduos ARSS, n. 106-107,1995.
que,desprendidosde laçosfamiliaresou mais isolados,podem dedicar-secommaior empenho DURKHEIM,E. Elémentsd'une histoire sociale. In:___ . Textes. Paris: Minuit, 1975.Tome 1.
a utilizaçõesestetizantes,amplamenteliberadasdas cerimôniasfamiliares. DURKHEIM,E.; MAUSS,M. De quelquesformes primitives de classification.Contribution à l' étude
Osconceitosdurkheimianospodemfuncionarnão só no casode gruposobjetivae subjetiva- des représentations collectives. Année Sociologique, v. 6, p. 1-72. (Reproduzido em MAUSS,M.
menteunificados,tais cornoasfamíliascamponesastradicionais,mas também,de formabastante CEuvres.Paris: Minuit, 1969v. 2).

1 60 DURKHEIM, ÉMILE (1858-19 77) DURKHEIM, ÉMILE (1858-7917) 161


objetoda linguísticaa língua(oprimeiro),a competência(osegundo),desconsiderandoambos
asinterferênciase os efeitosde condiçõese situaçõessociaisno uso da língua.Bourdieuafirmaque
"acompetênciadefinidapor Chomskyé apenasoutro nomeda línguasegundoSaussure"(PVDp,
30),e esclarece,comcitaçãode Chomsky(emAspectosda teoriada sintaxe),queo queinteressa
à teorialinguística"é um locutor~auditor ideal,inseridonuma comunidadelinguísticacompleta-
mentehomogênea,queconheceperfeitamentesualínguae a salvodosefeitosgramaticalmentenão
pertinentes"(PVDp,30).Para Bourdieu,cabeà sociologiarompercomessaconcepçãode língua,
consideradauma abstração,uma vez que,do ponto de vistasociológico,não há "locutor-auditor
ideal",e não há "comunidadelinguísticacompletamentehomogêneà':as trocaslinguísticassão
relaçõesde poder simbólico,decorrentesde relaçõesdeforça entre interlocutoresinseridosem
determinadomercadolinguístico,isto é, em situaçãode trocaslinguísticasem que uma deter-
minadamodalidadede língua é reconhecidacomo língualegítima,outras modalidadessendo
75. ÉCOLE NORMALESUPÉRIEURE
·······················································································································
submetidasa sançõese censuras,conferindo-sevalor e poder ao discursodos que dominam o
habituslinguísticoreconhecidono mercadocomolegítimo:habituslinguísticoalçadoa capital
Ver: GrandesÉcoles
linguístico.Assim,Bourdieusubstitui o conceitode língua, de competência,pelo conceitode
língualegítima;o conceitode interaçõeslinguísticasentendidascomorelaçõesde comunicação,
76. ECONOMIA
DASTROCAS
LINGUÍSTICAS
(A):O QUEFALAR
QUERDIZER peloconceitode trocaslinguísticasentendidascomorelaçõesdeforça simbólicas;a atribuição
(CEQUEPARLER
VEUTDIRE:L'ÉCONOM!E
DESÉCHANGES
L!NGU!ST!QUES) às interaçõeslinguísticasda funçãoapenasde comunicar,peloreconhecimentode sua funçãode
•••••• •• •••••• ••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••o•oooo,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,0,0,,,,,o,,o,,,,o,o exercíciode violênciasimbólica,em queo discursodosdetentoresde capitallinguísticosereveste
Magda BeckerSoares de valore poder.Enquantopara o linguistaa aceitabilidadedo discursose reduz à gramatica-
lidade,esta, na perspectivada economiadas trocas linguísticas,não é condiçãosuficiente,nem
mesmonecessária,para a construçãodo sentido;o querealmentecontaé a aceitabilidadesocial
BOURDIEU,P.A economia das trocas linguísticas:o quefalar quer dizer.São Paulo:Edusp, 1996.
dodiscurso,que dependeda competênciade uso da língualegítimano mercadolinguísticoem
queesseuso ocorre,istoé, dependedo "domíniopráticode um uso da línguae o domínioprático
Obrapublicadaoriginalmenteem 1982como título Cequeparlerveut dire:l' économiedes
dassituaçõesnas quaisesseuso da línguaé socialmenteaceitável"(PVDp,70)Assim,o mercado
éc~a~geslingui:tiques,foilançadaem traduçãopara o português(1996),comprefáciode Sergio
linguísticose caracteriza,tal como o mercadoeconômico,por "leis de formação de preços,
MJCeli.A traduçaoopta por intitular a obra com o subtítulodo original,passandoo título a ser
leis capazes de definir as condições sociais da aceitabilidade" (PVDp,64) e determinantes
subtítulo,talvezpara criar uma relaçãocom A economiadas trocassimbólicas,coletâneade
de uma antecipaçãodaspossibilidadesde lucro(PVDp,65).SegundoBourdieu,"o que se ex-
~~xtosde Bourdieutraduzidose publicadosanteriormente(1974),relaçãosem dúvidapertinente,
prime através do habituslinguístico é todo o habitus de classe do qual ele constitui uma
Jª que as trocaslinguísticassão,na teoria de Bourdieu,uma dimensãodas trocas simbólicas.O
dimensão, ou seja, de fato, a posição ocupada, sincrônica e diacronicamente, na estrutura
títulod_ooriginal,subtítuloda tradução,anuncia,comojogodepalavrasfalar/quererdizer,a tese
social" (PVDp,71).Diferençasde habituslinguísticose associama diferençassociais,de modo
defendidapeloautor:a discrepânciaentre o uso objetivodas palavras,tomadascomoreferência
que as práticas linguísticasdominantesse impõem comoúnicas legítimas,realizandoassim a
linguística_areferentesobjetivos-ofalar,e a atribuiçãodesentidoàspalavras,segundoascondições
unificaçãodo mercadoe operando "como um capital linguístico capaz de assegurar um
1
de produçaodo falar - o que as palavrasquerem dizer,para além de seu significado.Cincodos
lucro de distinção em sua relação com as demais competências" (PVDp,44).
dez capítulossãoartigospublicadosanteriormente,a partir de 1975,em ARSS.
A segunda parte tematiza mais amplamente o poder simbólicoem instâncias em que a
O livro se divide em três partes. A primeira recebe como título o subtítulo da obra - A
linguagemé instrumentoessencialde seu exercício,o quese evidenciano subtítuloque engloba
eco~omiad~s_tro:as,~inguístic~s. Constituídade dois capítulos,"Aproduçãoe a reprodução
os capítulosda seção,"Linguageme poder simbólico".Sãoquatro capítulos,em que Bourdieu
da língua leg1tuna e A formaçao dos preços e a antecipação dos lucros",é a retomada, sob
analisa a violênciasimbólicaexercidapelo discurso em quatro instâncias:o discurso ritual
formareestruturada,de artigopublicadoem 1977em LangueFrançaise,em númerotemático
religioso;o discurso de imposiçãode identidade,nos ritos de passagem,consideradosritos de
sobre linguística e sociolinguística,artigo que tem como título precisamente o subtítulo da
obra: "1/Économiedes échangeslinguistiques". instituição;o discursoque constróirepresentaçõesregionaisou étnicas;o discursopolíticoque
produz e impõe representaçõesdo mundo social,prescrevendo,sob a aparênciade descrever.
Bourdieuintroduz a primeiraparte com uma críticaa Saussuree a Chomskyque, diferen-
A terceira parte, "Análisesde discursos",reúne três capítulosem que Bourdieuevidencia
ciando,o primeiro, língua defala, e o segundo,competênciade desempenho,elegemcomo
os recursos discursivosque revelam as condiçõessociais de produção e circulaçãode textos
162
ÉCOLE NORMALESUPÉRIEURE
ECONOMIA
DASTROCAS
LINGU(STJCAS
(A):O QUEFALAR DIZER 163
QUER

- (CE QUE PARLER VEUT DIRE: L'ÉCONOMIE DES ÉCHANGES LINGUISTIQUES)


filosófic~s,sendo analisada a retórica de Heidegger,sob o critério das estratégias de ruptura 78. EDUCAÇÃO
e~tr~: lmguagem c~mum e a linguagem especializada;denunciado o "discurso de impor- ·······················································································································
tancra em texto de Etienne Balibar sobre Marx e, também, a "retórica da cientificidade"a Ver:Sistema de ensino
partir da análise da teoria dos climas de Montesquieu.
. ~ t_eoriada economiadas trocas linguísticasé um componente,com presençaexplícitaou 79. ELIAS,NORBERT (1897-1990)
·······················································································································
imphcita,de grande parte de suas pesquisase análises sociológicas,e representauma contri- FernandoA. PinheiroFilho
buiçãode inestimávelvalorpara a compreensãodo papel da linguagemnas interaçõessociais,
quer nas situaçõesdistensasdas trocas cotidianas,quer nas situaçõestensas de trocas formais Se Norbert Elias e Pierre Bourdieu adquiriram ao longo da segunda metade do século
. ou escritas.
orais . '
XXo estatuto de clássicosmodernos da sociologia,isso se deveem grande parte, e para além
do acerto no enfrentamento específicodas questões colocadaspelo trabalho de cada um, a
Referência uma característicacomum ao projeto de ambos, qual seja, a tentativa de superar a antinomia
P.L'Économiedes échangeslinguistiques.LangueFrançaise,Paris,n. 34,p. 17-34,maio 1977.
BOURDIEU, entre ação e sistema na teoria social. Esseproblema, colocadojá no período de formaçãoda
disciplinae que, sob diferentes roupagens e concernenteaos mais variados domínios empí-
ricos,permaneceu subjacenteao debate intelectual na sociologiaorientando, de forma mais
n. ECONOMIADASTROCASSIMBÓLICAS
A
• •••• • ••• • ••• • • ••• • ••• • •••• • ••• • • ••• • •••• • •••• • •••••••• • I
······························································· ou menos consciente,escolhas no plano teórico e metodológico,teve uma inflexãodecisiva
Ana Paula Hey a partir do impacto da obra dos dois sociólogos,condicionando os desdobramentos mais
recentes do debate. Nesse sentido, o paralelo entre eles desenvolvidoa partir desse ponto
BOURDIEU,P.A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974. lança luz sobre afinidades e diferenças,e pode contribuir para explicaro padrão de recepção
que se constituiu no sentido de aproximá-los.O exame de três núcleos das obras será usado
. Oli_vro,_
organizadopor SergioMiceli,quetambém traduziu 7 dos 10textosque o compõem, comomeio de acesso:o objeto da sociologia,o estatuto da história e o fenômenodo poder.
foi.ª pnme1raobra editada no Brasila apresentar de modo sistemáticoo pensamentoe as pes- Em linhas gerais, o dilema mencionado diz respeito à ênfase na explicação,entre uma
qmsas de Bourdieuaté o início dos anos 1970.Antes,havia apenas a ediçãode poucos artigos perspectivaobjetivistae outra subjetivista.Ou,noutros termos, a considerarprioritariamente
do_au~or:sem qualquer apresentaçãometódica - a longa introdução, ''Aforça do sentido",de as constriçõesobjetivasque modelam os agentes,oriundas de dimensões da realidade social
MICeh,situava o sociólogofrancês diante do estado da arte da produção relativaaos estudos descritasgeralmenteem termos de estrutura ou sistema;e, de outro lado,privilegiara agência
da ideologiae da cultura, em especiala sociologiados sistemas simbólicos. dos sujeitossociais como a dimensão do real capaz de gerar padrões que podem ser descritos
Ness~~ economiadas trocassimbólicas,há capítulosbásicospara entendero autor,publi- em termos estruturais ou sistêmicos.No primeiro caso,o sociólogoatenta para as constrições
:ados ~~gmahnentenos entãoperiódicosacadêmicosdos mais legítimosde sociologia,a saber: que pesam sobre os agentes,mas perde o foco·em suas práticas, que afinal são um produto
Condiçaode classeeposiçãode classe"e "Umainterpretaçãoda teoriada religiãode MaxWeber" derivado;no segundo, o domínio das práticas ganha autonomia,mas o enraizamento social
(ArchivesEuropéennesde Sociologie); "Gênesee estrutura do camporeligioso"e "Sistemasde dessesujeito perde relevância,restringindo-se à contingênciadas interações.
ensinoe sistemasde pensamento"(RevueFrançaisede Sociologie); ''Aexcelênciae osvaloresdo Elias pensa o problema na oposiçãoentre "indivíduo" e "sociedade",notando que, já no
sistemade ensinofrancês"(Annales);"Campodo poder,campointelectuale habitus de classe" plano linguístico, o uso dos termos como antagônicosimpõe uma relação de exterioridade
(S~~lies);"Reproduçãoculturale reproduçãosocial"(Informationsur lesSciencesSociales),além entre eles. Com apoio da filosofiada linguagem de Wittgenstein, mostra como a tradição
de Modosdeproduçãoe modosdepercepçãoartísticos"(LesTempsModernes),"Estrutura ha- sociológicaficou refém do preconceitosubstancialista da linguagem comum, em que cada
bituse prá~ca"(posfácioaolivrodeErwinPanofsky,Architecturegothiqueetpenséescolast:que, substantivo parece corresponder a uma substância, de modo que as realidades abrangidas
de 1967'.,editado
por Bourdieuna coleçãoLeSensCommun,que coordenouna Minuit,de 1964a pelos dois termos seriam claramente separadas, duas coisas com fronteiras fixas e nítida
1982)e O mercadode bens simbólicos"(originalmimeografadode 1970). delimitação.A solução consiste então em redefinir o objeto da sociologia- não mais a so-
Ler essa obra é se deparar com vários capítulos que possuem, até hoje, extrema atuali- ciedade ou o indivíduo, mas os homens interdependentes. A noção de interdependência
dade, bem_com~,_em_algu~s outros, perceber uma série de antecipaçõesde uma sociologia é posta assim como vínculo social logicamente originário, resolvendo a antinomia: se a
que Bourd1euvma d1ssemmar,sobretudo em relação ao diálogo que ele trava com autores dependênciarecíprocanos constitui como seres sociais,não há mais espaçopara um sujeito
dominantes das ciências sociais acerca da construção da realidade social como distinta do autoinstituído. Num movimento conexo,as redes de interdependência(que Elias chama de
0_bjet~~~al,cabendo posicionar esta produção simbólica em um sistema prático dos bens figurações)devem ser abordadas como formaçõeshistóricas, de maior ou menor amplitude
simbohcos.Ademais,anunciam-se estudos empíricos envolvendodistintos campos sociais e duração. Assim, a história é o recurso heurístico por excelência,pois é em seu âmbito que
tomados como possibilidadede desvelarestruturas de relaçõesobjetivas. as figuraçõesse cristalizam em estruturas ou sistemas.

164 ECONOMIA DAS TROCAS SIMBÓLICAS, A ELIAS, NORBERT (1897-1990) 165


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_________________________
.._,,

Na mesma direção do sociólogoalemão,as noções bourdiesianasde campo e habitus in- não é histórica no mesmo sentido que a de Elias;não obstante, ambos desenvolvemformas
tentam mostrar que a sociologiaenredara-senum falsodilema.De fato,Bourdieuevitapensar de temporalizaçãode seus objetos,que no primeiro funciona como garantia contra a inter-
a relaçãoentre agentee mundo socialconformeo modeloda dinâmica entre uma consciência vençãoindevida de categoriasmetafísicasno andamento da explicação,e no segundo remete
e seu objeto,porqueesteúltimo supõeum corte que não dá contada cumplicidadeefetivaentre à discussãosobre a natureza social do tempo herdada da tradição durkheimiana.
os termos da relação:há um entrelaçamentoontológicoentre as disposiçõesinternas do sujeito Do ponto de vista metodológico,um paralelo entre as obras levaria menos a marcar sin-
(habitus)e o espaço,limitadopela disputa de um poder específico(campo),cujafrequentação gularidades pelo uso desta ou daquela estratégia do que a notar a adoção de instrumentos
duradoura deu origem a elas. Cabe então à análise reconverteros paradigmas em tensão em adequadosao problema específicode pesquisa a ser enfrentado. Talveza coincidênciamais
momentosdo andamento do trabalho, que abandona provisoriamenteas representaçõesdos curiosa esteja na atenção ao momento instituinte de uma formação social como aspecto
agentespara construir o espaçode posiçõesvincadopela distribuiçãodesigualde recursosque condicionantede seu estado atual, o que nos leva de volta à importância da história. A título
condicionamas interaçõese representações;para, em seguida,reportar a ação exteriorizadaà de exemplo,lembremosque o interesse de Eliaspela sociedadede corte explica-seporque ela
estrutura subjetivado agentequea projetaa partir do interior,revelandoseu modode apreensão é vista como o berço dos paradoxos fundantes da modernidade; e que Bourdieudedica-seà
práticado mundo.Assim,o passoobjetivistaimplicanuma ruptura epistêmicada naturalização compreensãoda emergênciada autonomia do campo literário porque é esse o momento de
da ligaçãoentre agentee mundo socialvividode forma espontânea,e deveser completadopelo instauração da lei imanente que vai regular as relaçõesem seu interior até o tempo presente.
passo subjetivistaque correspondeà compreensãodas razões do agentedo interior,mas não
necessariamenteda consciênciaque tem de seus atos. Comodiz o autor, tudo se passa como
se a realidadesocialexistisseduas vezes,nas coisase nos sujeitos,de modo que a primazia da so.ELITES
análisesociológicanão está em nenhum deles,mas em suas relações. ····························································································
...----·····················
FrédéricLebaron
As afinidadesentre os autores tratados remetemjustamente a esse ponto crucial:ambos
procuram contornar a antinomia por meio de uma sociologiaradicalmente relacional,seja Se ele critica a noção de "elite" - tal como esta é empregada em pesquisas empíricas
incorporandoessa dimensãona descriçãodo objeto(Elias)seja evitandoelegerentre polos de internacionaisdos anos 1960,sob o impulso nomeadamentede Paul Lazarsfeld(1901-1976),
um contínuo ao propor que ação e estrutura (bem como o habitus, produto de sua interação) PierreBourdieunem por issodeixade ser considerado,acertadamente,co:rpoum dosprincipais
não têm peso substantivopróprio,existindode fato como e na relação.À sua maneira, os dois teóricose analistasda formaçãoe da "reprodução"das elites,desdeseustrabalhosda décadade
sociólogosencontram as ferramentas conceituaispara dizer ao mesmo tempo "homem na 1960,em particular,às pesquisassobreo sistemafrancêsdas GrandesÉcoles.Aliás,o subtítulo
sociedade"e "sociedadeno homem"ao referir-sea seu objeto.E, em ambos, essemodo de ver da tradução em língua inglesa de sua obra, La noblessed'État (1989)é Elite Schoolsin the
acarretapensaro podercomodimensãoindissociávelda condiçãosocial.EmElias,issose dá pela Field of Power (1996).Escolasde formaçãodas futuras elitessociais,as GrandesÉcolessão,
assimetriainescapáveldas relaçõesde dependênciarecíproca,queconferepoderao que depende antesde mais nada, ramos do ensinosuperiorelitizados,do ponto de vista escolare social,cujo
me~ossobre o que dependemais. Já Bourdieufilia-senesse aspectoà tradição da antropologia acessoé destinado a um reduzidonúmero de estudantesdas classespopulares,número ainda
soCialfrancesaque entende a troca como base da sociabilidade.Mas comentandoa tríade do menoselevadodo que ocorrenas universidades(comexceçãode setorescomoa medicina).
dom desenvolvidapor Mauss,Bourdieutemporalizaum processoque a tradiçãoestruturalista Para o estudodas elites,Bourdieuaventaa hipótese,inovadora,do papelcentralda "cultura",
via como puramente lógico:no circuito entre dar, receber e retribuir instaura-seum lapso de enquantoconjuntode disposiçõesinteriorizadas- um patrimônio,a um só tempo,linguístico
tempo entre o recebimentodo dom e a contraprestação,período em que o devedorassume a e comportamental- que facilitamnão só o "sucessoescolar",mas também a adoçãode estilos
posiçãode dominadoem relaçãoao doador.O fundamento da associaçãoremeteassim ao de- de vida específicos,propíciosa contribuir para a permanência das desigualdadessociais. O
curso do tempo e, portanto, à história,e as ligaçõessão geneticamenteassimétricas.A história capital cultural "pesa",assim, tanto quanto a posse de patrimônio ou de rendimentos eleva-
ganha relevânciano procedimentoanalítico, mas como fundamento último e não princípio dos. As "elites" ou "grupos dominantes" são, portanto, definidos por Bourdieu em termos
explicativopor excelência,diferençaimportante em relação a Elias.A própria racionalidade "relacionais",ou seja, a partir de sua dotação relativa, mais elevada,em diferentes espécies
científicadesenvolve-senas relaçõesde produçãodo conhecimentoque se objetivamno campo de capital:econômico,cultural, social e simbólico.Assim, as elites sociais são apreendidas
intelectual,não havendoqualqueroutra instância de produção da razão. de maneira multidimensional,levandocseem consideraçãoa diversidadede recursos que as
As poucas mençõescríticas expressasde Bourdieusobre a sociologiaeliasiana remetem caracterizam,o que conduza uma nítida distinção entre as diferentesfraçõesdas elites:elites
a essa diferençano estatuto da história, sobretudo na consideraçãodos macroprocessos(de culturais, elites econômicas,etc.
que O processo civilizador (1939),obra maior de Elias, é um marco fundamental),já que a A partir do final dos anos 1960,PierreBourdieue seus colegasdo Européenne(CSE,que se
mirada ~os desenvolvimentosdo mundo social em amplitude secular tenderia a nublar as tornou CSEC,Centrede Sociologiede l' Éducationet de la Cultureapós a ruptura comRaymond
diferenças,rupturas e descontinuidadessignificativas,abrindo o risco de fazer submergir o Aron, em maio de 1968)empreendem a elaboração de um conjunto de pesquisas coletivas
objeto em meio às generalidadescaptáveisnesse arco mais longo.A sociologiade Bourdieu sobre diferentes frações das "classesdominantes", de acordo com a terminologia utilizada
1

166 ELIAS, NORBERT (1897-1990)


ELITES 167

L
durante esseperíodo:professoresuniversitários,artistas, funcionáriosde alto escalão,patrões, uma tensãopotencialmentecadavezmais forte,no cernedeste,entreuma legitimidadeexperte
etc. Paralelamente,a pesquisa chamada "Gosto"dá lugar a análises sobre as diferenciações técnica(ados diplomadosem management)e uma legitimidadepatrimoniale prática(ocapital
entre as referidas frações em matéria de estilos de vida, as quais serão publicadas no artigo simbólicoe o capitaleconômicodos"herdeiros''da burguesia).Essacaracterística,observa-seno
''L'Anatomie du gout" (1976)e na obra La distinction (1979). âmagodopatronatofrancêsestudadoporBourdieue de SaintMartin,em 1978.Afraçãodominante
Cada vez mais, as pesquisas são realizadas a partir de dados prosopográficos(biográfi- dopatronatofrancêsé,na épõca,altamentediplomada(ENA,Polytechnique... ) e associadaao
cos) coletadosnos anuários específicos(emparticular, o Who's Who?) e em diversasfontes Estado,emparticular,aopolofinanceirodoEstado(oMinistérioda Fazenda,o BancoCentral... ).
(jornalísticas,etc.).Até hoje, com os trabalhos de François Denord, Paul Lagneau-Ymonete As relações entre as diferentes frações das elites são, portanto, mais facilmente com-
SylvainThine (2011),essa tradição de pesquisa prosopográficasobre as elites nunca chegou preensíveisse forem analisadas do ponto de vista da sociologiada educação,a qual se torna
a ser interrompida no âmbito do CSEC-CSE e, mais amplamente,da "escolabourdieusiana". assimuma peça central da sociologiado poder, comoé evocadopor Bourdieuem La noblesse
Pode-seacrescentar,ainda, as pesquisas de Luc Boltanski sobre os produtores de ideologia d'État.No seio do campopolítico,por exemplo,as elites"tecnocráticas"(na França,aquelesa
dominante (nomeadamente,os professoresde Sciences Po/Paris); as de Christophe Chade quem é atribuído o qualificativode énarques)sofrema concorrênciade novasfrações,diplo-
sobreas elitesda RepúblicaFrancesano séculoXIX;os trabalhos de Moniquede SaintMartin madas, notadamente, pelas escolasde comércio(businessschools)ou pelos departamentos
sobre a nobreza;além de numerosas teses de doutorado, cujotema incide sobre grupos espe- universitáriosde economiae gestão.
cíficos- escritores,economistas,jornalistas, etc. - no âmago das elites. A progressãoda economia e do management na formação das elites contemporâneasé
Essas diversas pesquisas coletivas vão conduzir Bourdieu, por um lado, a formalizar uma característicafrequentementeenfatizadaem numerosospaíses. Elaexplicaamplamente
a noção de "campo do poder", que é o ponto culminante de sua sociologiadas elites e, por a tendência para o economicismodos grupos de elite, ou seja, o predomínio em seu cerne
outro, a enfatizar a homologiaestrutural entre o campo do poder e o campo das "escolasda de uma visão centrada na esfera "econômicâ' definida de maneira restritiva, quase sempre,
elite" (GrandesÉcoles,na França). em termos, antes de tudo, financeiros.Ela conduz à constituiçãode um mercadomundial de
O campo do poder é o subespaçosocial compostopor agentesque lutam em prol do exer- ensino superior,focalizadonos MBA,e ao desenvolvimentode trajetórias acadêmicasinter-
cícioda dominação.Mas esse"princípiounificador",essa illusiocomum,é acompanhadopor nacionais,associadoa redes sociaistransnacionais. Os grupos dominantes que emergemdo
consideráveisdiferenças,em particular, aquela que se estabeleceentre um polo dominante processode globalizaçãosão, nomeadamente,os executivosda finan\a - traders, dirigentes
no plano econômicoe um polo dominante do ponto de vista intelectual,que os distingue em dos bancos e das instituições financeiras,etc. -, os consultores,os advogadosde negóciose
termos de estilos de vida, assim como de posiçõese de tomadas de posição. os economistas,os quais constituem grupos profissionaisfortemente internacionalizadose
Essaoposiçãoserá reencontradano campo das GrandesÉcolescom,por um lado, escolas relativamentehomogêneospara além das fronteiras nacionais.
voltadaspara a reproduçãodo poder intelectuale científico(em primeirolugar,N ormale Supé-
rieure); e,por outro, "escolasdo poder" econômicoe político(Hautes Études Commerciales, Referências
École Nationale d'Administration ... ). A evoluçãodas relaçõesde forçaentre essasdiferentes P. The State Nobility: Elite Schoolsin the Fieldof Power.Stanford:StanfordUniversity
BOURDIEU,
escolasilustra a transformaçãodo campo do poder,na França,e de maneira mais específica,o Press, 1996.
fortalecimentodo polo do poder diante da marginalizaçãodas escolas"intelectuais". BOURDIEU,P.;SAINTMARTIN,M. L'anatomiedu goíit.ARSS, v. 2, n. 5, p. 1-81,1976.
Se,dopontodevistaconceituale empírico,eleé inovador,Bourdieurespondetambéma questões BOURDIEU,P.;SAINTMARTIN,M. Le patronat. ARSS, v. 20-21,p. 3-82, 1978.
mais "clássicas",tais comoaquela- lancinantenos trabalhossobrea estratificaçãosocial- que DENORD,F.; LAGNEAU-YMONET, P.; THINE, S. Le champ du pouvoir en France. ARSS, v. 190,
incidesobreo fundamentoda existênciadas elites.Em sua construçãoteórica,a permanênciadas p. 24-57,2011.
classesdominantesremeteà noçãode modo de reproduçãoque caracterizariacada sociedade:
trata-sedas modalidadespelasquaisuma sociedadeorganizaa transmissãodas posiçõessociais
21. EMPREGO
dos pais aos filhos.Nesteaspecto,a transmissãohereditáriado patrimônio (a terra e o capital) ·······················································································································
desempenhatradicionalmenteo papelcentral.As sociedadesdominadaspelasforçaseconômi-
Ver: Trabalho
cas atribuem,assim,ao patrimônio,um lugar determinanteno acessoàs posiçõesdominantes.
Nassociedadescontemporâneas,esselugar - que não desapareceu- é contrabalançadopor
diversosprocessos:o papelcrescentedo sistemaescolare suatraduçãona ideologiameritocrática; 22. EPISTEMOLOGIA
·······················································································································
a ascensãodos executivose assalariadoscom alto nível de qualificaçãoque detêm expertises Denis Baranger
relati~amenteraras. Bourdieufala, então, de "modode reproduçãocom componenteescolar".
A acentuaçãoda competiçãoescolarconduzao incrementodo papeldo sistemaeducativono SeBourdieununca deixou de refletir epistemologicamente,elese recusou na maior parte
funcionamentoda ordemsocial,inclusiveentreas fraçõeseconômicas,tais comoo patronato.Daí do tempo a manter um discurso especificamenteepistemológico:"Odiscurso sobre a prática

168 ELITES EPISTEMOLOGIA 169


, . ')
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científica, quando toma o lugar da prática científica propriamente dita, é completamente . our scientifiques", falava da "philosophie spontanée des savants" (filosofia espontânea dos
desastroso. A verdadeira teoria é aquela que se dissipa e se realiza no trabalho científico que ~ientistas [PSS, 1974]),enquanto em Le métier de sociologue,com todas as aparências de
ela permitiu produzir" (R,134-135). um eco, tratava-se de uma "sociologie spontanée des sociologues" (sociologia espontânea
É difícil falar da epistemologia de Bourdieu sem levar em conta suas opiniões a respeito dos sociólogos [SSS]).
da teoria e da metodologia na medida em que, em seu entender, se tratava de três níveis Do mesmo modo que· a PSS althusseriana, assim também a SSS é engendrada de
inseparáveis da prática científica, o que explica a razão pela qual ele denunciava tanto o maneira permanente e necessária pela prática social e, neste sentido, evoca ind~bita-
teorismo quanto "o absurdo científico que é designado por 'metodologia"' (R, 137). Se é velmente as "ideologias práticas" althusserianas: "[...] a familiaridade com o umverso
possível, sem dúvida, determinar afinidades eletivas entre epistemologia, metodologia e social constitui, para O sociólogo, o obstáculo epistemológico por excelência pelo fato de
teoria, no entanto, cada uma dessas instâncias mantém uma relativa autonomia, permitindo produzir continuamente tanto concepções ou sistematização fictíc~as q~anto as c,ondiçõe~
por exemplo que, em seus primeiros trabalhos sociológicos, Bourdieu tenha utilizado a de sua credibilidade. O sociólogo nunca conseguirá eliminar a soc10logia espontanea [...]
análise de variáveis de Lazarsfeld, sem ter deixado de rejeitar a epistemologia positivista (ALTHUSSER, 1968, p. 35). _
desse autor (BoURDIEU,1991,p. 247). Na realidade, a SSS, assim como a PSS, está enraizada em Bachelard, que nao
Bourdieu defendeu sempre uma sociologia científica, o que é considerado jocosamente aceitava de modo algum a ideia de uma metaciência que viesse a se pos~cionar ~a
por alguns comentaristas como uma postura cientificista e, até mesmo, positivista. No en- base das ciências. No entanto, a ideia de uma TCS em luta contra a SSS e essencial
tanto, quando ele subscreve com Passeron a fórmula de Bachelard, "o vetor epistemológico para a argumentação adotada em Le métier du sociologuee, por co_n~eguinte, ~ara a
[...] vai do racional ao real [...]" (MS, 14;BACHELARD, 2003), isso se dá por razões idênticas epistemologia de Bourdieu nessa época. Para não c:íre~ ~~ contradiçao, a soluç,~o do~
às de Popper, o qual defendia - diante da indutividade dos positivistas lógicos - a primazia autores dessa obra consiste em desdobrar o termo teona : por um lado, tem-se TCS
da teoria sobre os dados. Com efeito, é sobretudo na tradição francesa (fundamentalmente - formulação ambígua, de acordo com De Ípola (1970, p. 133), dado qu~ ela a~r~n~e,
antipositivista) da história e da filosofia das ciências que se pode encontrar a origem de suas de fato, nada menos do que a epistemologia - e, por outro, tem-se teona soc10,lo~ica
ideias epistemológicas. propriamente dita; Graças a esse artifício é que se realiza o milagre d~ Santissm_ia
É costume buscar a epistemologia de Bourdieu em seu livro, Le métier de sociologue Trindade, unindo Marx, Durkheim e Weber em uma única e piesma epistemologia.
(1968).Essa obra, concebida explicitamente como um manifesto antipositivista (BouRDIEU, Em suma, a epistemologia geral negada por Bachelard ressuscita como uma TCS que,
1991,p. 247), tem a desventura de começar por uma citação de Auguste Comte (MS, 7). Em supostamente, deveria ser defendida a contragosto pelos sociólogos. .
seguida, afirma-se que "a sociologia é uma ciência como as outras que esbarra somente em De fato, depois de Le métier du sociologue,a TCS é encontrada em Bourd~eu ~o-
uma dificuldade particular de ser uma ciência como as outras" (MS, 43). Uma tese que se mente em duas oportunidades: em sua obra, La reproduction,na qual um pnmeiro
0
presta a uma interpretação positivista, se a fórmula - como as outras - for entendida como axioma referente à força própria da violência simbólica é seguido por um escólio que
"unidade de método", e se se levar em consideração que o problema para as ciências humanas transforma em "um princípio da TCS" (LR, 18); e em uma entrevista com Otto Hahn,
não seria o fato de se deixar guiar por uma epistemologia das ciências naturais, mas por uma em que se trata da TCS e, ao mesmo tempo, do campo científico ~Bo~~DIEU, 197?, y-
representaçãofalsa de tal epistemologia (MS, 26). 13), o que faz com que esse texto possa ser considerado como um mdicio da transiçao
Mas o que é, afinal de contas, essa "dificuldade particular" da sociologia para ser uma de uma categoria para a outra.
ciência como as outras? Nesse livro, Le métier de sociologue,ela está na base da necessidade Já na conclusão dos "Preliminares epistemológicos", a TCS começava a dar lugar a uma
de uma teoria do conhecimento sociológico(TCS). Com efeito, Bourdieu, Chamboredon sociologia da sociologia: "A questão de saber se a sociologia é, ou não, uma ciência - ~ u~a
e Passeron não se limitam a retomar as principais categorias de Bachelard (o autor mais ciência como as outras deve ser substituída, portanto, pela questão do tipo de orgamzaçao
citado), complementadas por diversas fontes (francesas e outras) da filosofia das ciências, e de funcionamento da cidadela erudita mais favorável à aparição e ao desenvolvimento de
mas pretendem realizar também uma síntese das contribuições metateóricas dos três "pais uma pesquisa submetida a controles estritamente científicos" (MS, l~l). , .
fundadores" da sociologia: Marx, Weber e Durkheim. Trata-se de uma tentativa de constru- Em Le métier du sociologue,não é utilizada a noção de campo científico.Se nesse livro
ção dos princípios epistemológicos gerais que estes teriam implementado em suas teorias é possível encontrar o termo "campo" (p. 105), este não aparece no índice temático que se
parciais do social (MS, 55). Assim, os autores podiam afirmar a filiação da TCS à ordem de refere à cidadelaerudita e à comunidade.A ideia de cidadelacientíficavem de Bachelard,
uma metaciência sociológica. enquanto a de comunidade científicaé tomada de empréstimo principalmente de Polanyi
Nessa obra, Le métier de sociologue,tal noção de metaciência era referida explicitamente (Kuhn, Merton e Popper só aparecem em nota de rodapé).
a K. Polanyi (1983).No entanto, é possível também associá-la à distinção althusserianaentre Em 1975,Bourdieu publicou "Le champ scientifique", um artigo decisivo para a conforma-
Teoria(com T maiúsculo) e teorias,ou seja, entre o materialismo dialético e as ciências. So- ção de sua epistemologia, no qual ele define a característica fundament_al desse cam~o: o fato
bretudo porque, na mesma época (outubro de 1967),Althusser, em seu "Cours de philosophie de que nele o principal fator em jogo é intrinsecamente duplo, na medida em que O mteresse

EPISTEMOLOGIA 171
170 EPISTEMOLOGIA
dos agentesé aí tanto intelectualquanto político.Essa duplicidade,longede ser um obstáculo Tudo o que Bourdieu nos diz poderia ser resumido em uma única diferença para com
para o desenvolvimentodo campo, é a própria base do mecanismo que, de maneira natural, as ciênciasnaturais, diferença que consisteem uma resistênciaativa do objeto.Nas ciências
orienta seu funcionamento: "Aluta pela autoridade científica [...] deve o essencial de suas sociais, afirma ele, "impõe-se dar um passo suplementar, do qual as ciênciasnaturais po-
característicasao fato de que os produtores tendem a não ter outros possíveisclientesalém dem se eximir [...] é necessáriohistoricizar o sujeitoda historicização,objetivaro sujeitoda
de seus concorrentes [...] Isso significaque, em um campo científicofortemente autônomo, objetivação,ou seja, o tra~scendental histórico" (SSR,168).A necessidadeda socioanálise
um produtor particular só pode esperar que o reconhecimentode seus produtos [...] venha seria, finalmente,a única especificidadeda ciênciasocial.Se se concordacom a necessidade
dos outros produtores que, sendo também seus concorrentes,são os menos inclinados a lhe de "objetivar o sujeito",surge a questão de saber como proceder a tal objetivação.No que
conferir,sem discussão nem análise, tal reconhecimento"(BouRDIEU, 1975,p. 95).Esse é o diz respeito a Bourdieu, a resposta parece óbvia: a objetivaçãosó pode ser feita a partir das
mecanismo fundamental do campo científico,mecanismo que tinha sido, aliás, formulado ferramentas fornecidaspor sua própria teoria do espaçosocial e dos campos, o que faz com
anteriormente em termos semelhantespor Kuhn ([1968]1977,p. 143). que se volte incessantementeao ponto de partida.
É óbvio que, após Le métier du sociologue,Bourdieuleu Kuhn de maneira mais atenta: Maspor queatribuirtodo o ônusao sujeitoe não ao objeto?Semqueissosignifiquerenunciar
ele vai citá-lo em seis oportunidades, por necessidade de se distinguir de um pensamento a um conhecimentocientíficodo social,semvoltara cair na ilusãohermenêutica,pode-sepensar
que não lhe era assim tão estranho porque, em seu entender,tudo o que Kuhn havia trazido queexistemcaracterísticasdesseobjetoqueexigemabordá-lode maneiradiferentedas "outras"
de novo para o mainstream epistemológicoanglo-saxão já estava presente em Bachelard ciências.Esseé o sentidoadotadopor J.-C.PasseronemLe raisonnementsociologique(2006),
(BouRDIEU, 1975,p. 114).Elecritica o funcionalismode Kuhn, apresentandosua teoria corno a propósitodo estatuto argumentativoda sociologiaenquantociênciade um mundo histórico.
a simples contrapartida do positivismo (BouRDIEU, 1975,p. 106),e também se opõe a esta Mas,mesmoque Bourdieutenha reconhecido,no final,algum mérito a essa abordagem(SSR,
"prescriçãodissimulada:a existênciade um paradigma é um sinal de maturidade científica" 146),elenunca se resignoua aceitarque éjustamenteporqueas ciênciassociaisnão funcionam
(Idem,p. 114),à luz da qual as ciênciassociaisnão seriam científicas. "comoas outras" que é impossívelpara elas chegara um acordosobreum nomos unificado.
Em seu último curso no College de France, Bourdieumostra-se mais favorávelàs ideias
de Kuhn, com quem compartilha sua oposiçãoao logicismodos positivistase de Popper,ou Referências
seja, à ideia de que haveria "regras gerais a priori para a avaliaçãocientíficae'um códigode ALTHUSSER, L. Philosophieet philosophie spontanée des savants. Parisi Maspero, 1974.
leis imutáveispara estabelecera distinção entre ciênciaverdadeira e falsa" (SSR,12). BACHELARD, G. Le nouvelespritscientifique(1934).7. ed. Paris: PUF,2003.
No entanto, ele continuajulgando que o modelo de revoluçãocientíficade Kuhn é exces- BOURDIEUP.Lathéorie Entretien avecOtto Hahn. VH 101,Revue Trimestrielle,v.2, p. 12-21,1970.
sivamenteinternalista, além de reservar demasiadoespaçoaos fatoresirracionais.Bourdieu BOURDIEU,P. La spécificitédu champ scientifiqueet les conditions sociales du progres de la raison.
pensaquenão sepode compreendera mudançade paradigmacomoum processonão científico, Sociologie et Sociétés, v. 7, n. 1, p. 91-118,1975. [Novaed.: Le champ scientifique. ARSS, v. 2/3,
quando ela é realizadanão pelosmais desprovidos,mas pelos mais ricos em capitalcientífico p. 88-103,1976].
entre os recém-chegadosao campo,o que faz com que "o revolucionáriosejanecessariamente BOURDIEU, P.;KRAIS,B.Meanwhile,I HaveCometo KnowAli the DiseasesofSociological
Understanding.
alguém que tem capital [...] - ou seja,um enorme controledos recursos coletivosacumulados ln: BOURDIEU,P.; CHAMBOREDON,J.-C.;PASSERON,J.-C. The Craft of Sociology.New York: .
- e que,por isso,conservanecessariamenteconsigoaquilo que ultrapassa"(SSR,39).Bourdieu Walter de Gruyter, 1991.p. 247-259.
é, certamente, menos relativista que Kuhn e mais favorávelà ideia de progresso científico. DE íPOLA, E. Vers une science du texte social: le (re)commencement de la sociologie marxiste.
Nesse livro Bourdieu volta à questão das ciências sociais e parece estar mais inclinado Sociologieet Sociétés,v. 2, n. 1,p. 123-43,1970.
a atribuir-lhes um estatuto epistemológicodistinto (SSR,167).As ciênciassociais têm "um KUHN,T.S.ToeHistory ofScience(1968).InternationalEncyclopedia
of theSocialSciences,NovaYork:
objeto importante demais", o que as torna mais expostas à heteronomia. Devido à falta de CrowellCollier and Macmillan, p. 74-83,1977.
autonomiada sociologiapara com a sociedade,"uma liberdademuito grande é dada, inclusive PASSERON, J.-C. Le raisonnement sociologique:un espace non poppérien de l'argumentation.
no interior do campo, àqueles que contradizem o próprio nomos do campo" (SSR,171).A Paris: Albin Michel,2006.
conclusãode Bourdieu é a seguinte: ''Asociologiaé socialmentefrágil e, tanto mais, talvez, POLANYI,K. La grande transformation: aux óriginespolitiques et économiquesde notre temps.
quanto mais científicafor" (SSR,173).A verdade sociológica,em ruptura com o senso co- Paris: Gallimard, 1983.
mum, será aquela que mais dificuldadetem de se impor, em razão das oposiçõessuscitadas
por sua própria verdade. Não há nenhuma "força intrínseca à ideia verdadeira",lamenta-se
83. ESBOÇO DEAUTO-ANÁLISE (ESQU!SSE POURUNEAUTO-ANALYSE)
Bourdieu, inspirando-se em Spinoza. O problema, então, em vez de ser epistemológico,é ·······················································································································
polítiço. Observemosque essa afirmação considera resolvido o único problema realmente Afrânio Mendes Catani
importante:o da existênciade um nomos reconhecívelda sociologia.Seesse nomos - ou esse
único paradigma - existisse efetivamente,não haveria nenhum problema epistemológico. BOURDIEU,P. Esboçode auto-análise. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

172 EPISTEMOLOGIA ESBOÇO DE AUTO-ANÁLISE 173


(ESQUISSE POUR UNE AUTO-ANALYSE))
Parte de Esboço de auto-análise foi redigido entre outubro e dezembro de 2001 no sociologia.NestadisciplinapontificavamGeorgesGurvitch,JeanStoetzele RaymondAron,além
hospital, embora Bourdieu trabalhasse no texto havia anos. Foi concebido a partir de seu dosqueseencontravamem ascensão:AlainTouràine,Jean-DanielReynaud e Jean-RenéTréanton
último curso no College de France, como versão desenvolvidae reelaborada do capítulo (sociologia dotrabalho);VivianeIsambert-Jamati(sociologia
da educação);François-André Isambert
final de Science de la science et réflexivité. É um testemunho tocante, com linguagem (sociologiada religião);Henri Mendras,Paul-HenryChombartde Lauwee JoffreDumazedierse
enxuta, comovida e ferina. Publicado antes na Alemanha (2002),saiu na França em 2004. dedicavam,respectivamente:às sociologiasrural, urbanae dolazer (EAAp,62-63).Haviapoucas
Da mesma forma que elaborara em 1982,quando de seu ingresso no College, uma Aula revistas(RevueFrançaisede Sociologie,Les CahiersInternationauxde Sociologie,Archives
sobre a aula, onde a extrema reflexividadedava o tom, nesse curso submeteu ele mesmo, Européennesde Sociologie,Sociologiedu Travaile Études Rurales),mas nada era tão moti-
como derradeiro desafio, "ao exercício da reflexividade que havia constituído ao longo vador,a ponto de escreverque "a vida científicaestavaem outro lugar" (EAAp,62),enaltecendo
de sua vida de pesquisador num dos requisitos necessários à pesquisa científica". Na a açãode FernandBraudele a grandeinfluênciaexercidapelarevistaJ;Homme,tendo à frente
apresentação à edição brasileira (2005), Sergio Miceli escreve que Bourdieu recorrera à Lévi-Strauss,ocupandoposiçãodominanteno campoacadêmicofrancês(EAAp,68).
palavra esboçoem Esboço de uma teoria da prática (1972),considerada "a obra matriz Dedicavárias páginas ao período passado na Argélia,a partir de 1955,ao iniciar seu ser-
da etapa afirmativa de seu projeto intelectual", em que fazia um acerto de contas com o viço militar, onde faz suas primeiras pesquisas de campo sobre a sociedadecabila e publica
estruturalismo, testava hipóteses com relação à congruência de fontes e materiais, "dando Sociologiede l'.Algérie(1958).Retorna a Paris e torna-se assistente de Aron, após lecionar
arremate à viagem iniciática ao enlaçar as vivências do Béarn às do trabalho de campo filosofiae sociologiana Faculdade de Letras de Argel. Inicia carreira exitosa, fazendo sua
na Argélia, e um baita desafio às teorias e modelos de parentesco então hegemônicos na conversão às ciências sociais, como etnólogo e sociólogo,no momento de uma guerra de
antropologia" (p.19).A obra introduzia longa digressão sobre os modos de conhecimento, libertação que, para ele, marcou a ruptura decisiva com a experiência escolar (EAAp,71).
em especial "aquele suscitado pela práxis, que está na raiz do conceito de habitus", que Apesar das discordâncias que manterá com Lévi-Strauss,reconheceque ele, com Braudele
plasmaria "uma sociologianucleada na razão prática, marca que o distinguiria tanto das Aron, lhe garantiram a entrada, bem jovem,na EscolaPrática de Altos Estu~os (EAAp,74).
correntes interacionistas como das vertentes estruturalistas" (MICELI,2005, p. 19).Bour- Publica outros trabalhos sobre a Cabíliae o Béarn, região onde nasceu, em Etudes Rurales,
dieu escreve que no esforço que faz para explicar-se e compreender-se, irá apoiar-se "nos nos Annales e em Les TempsModernes (EAAp,87).
cacos de objetivação de mim mesmo que fui deixando pelo caminho, ao longo de minha Apresentaaspesquisasdesenvolvidas nos anos 1970,80e 90,queconsolidariamsuareputação,
pesquisa, e tentarei aqui aprofundar e ainda sistematizar" (EAAp,39). além de elementosautobiográficose informaçõesfamiliaresresponsáveispela formaçãode seu
Para justificar as tomadas de posição que marcaram sua carreira, realiza uma análise habitusprimário.Seupai era filhode meeiroe,por voltados30anos (quandonasceuPierre),tor-
do campo intelectual francês nos anos 1950,quando concluiu seus estudos de filosofiana nou-sefuncionáriodoscorreios,depoispromovidoa carteiro-cobrador; foi,a vidatoda,empregado
École Normale Supérieure (ENS)e, também, de sua própria formação, caracterizada pelo numa vilapróximaa Pau."Aexperiênciainfantilde trânsfugafilhode trânsfuga,pesoubastante
êxito escolar e por origem social modesta: seu pai era carteiro num povoado do sudoeste na formaçãode minhas disposiçõesem relaçãoao mundosocial"(EAAp,109).Muitopróximode
da França. Seus primeiros trabalhos exploram o desenraizamento das origens - a família seuscolegasde escolaprimária (filhosde pequenosagricultores,artesãosou comerciantes), tinha
numa comunidade rural da região do Béarn - e a necessária familiarização com os espa- comeles"quasetudo em comum,excetoo êxitoescolar,queme faziasobressair"(EAAp,110).As
ços sociais de adoção, em Paris. Afirmou, em entrevistas, que tal familiarização forçada passagensem relaçãoao pai, suas tomadasde posiçãopolíticase sociais,são tocantes.Suamãe
levou-o, inclusive, à perda de seu forte sotaque - só aos 11 anos, no liceu de Pau, deixou provinha de uma "grandefamílià' camponesa,pelo lado materno, enfrentandoa vontadedos
de falar apenas o gascão. pais"parafazerum casamentopercebidocomouma aliançadesastrosà'(EAAp,111).Filhoúnico,
De 1951a 1954foi aluno da ENScursando filosofia,época em que era a disciplinadomi- a experiênciado internato nos liceusde Pau (1941-1947)e no liceu Louis-le-Grand(1948-1951),
nante, sendo o campo intelectual dominado por Jean-PaulSartre. Entende que "o choque de em Paris, são vistas como uma "terrívelescolade realismosocial,onde tudo já se faz presente,
1968"foi decisivopara que os filósofosingressantesnos anos 40 e 50 se confrontassemcom o por conta das necessidadesda luta pelavida" (EAAp,115).Falado frio passadono inverno,os
problemado poder e da política- cita os casosparadigmáticosde Deleuzee Foucault(EAAp, constrangimentospara seusaremosbanheiros,as admoestações,a lutapara obterseu quinhãoe
42).Alémda correnteintelectualmentedominante, representadapor Sartre, havia outras, em conservarseulugar,a prontidãopara dar um safanãosenecessário.Suanarrativaautobiográfica
que se destacavamMartial Gueroult,JulesVuillemin,GastonBachelard,GeorgesCanguilhem, retomao argumentodesenvolvidoemAs regrasda arte (1992):"a ficçãoe a sociologiasão inter-
AlexandreKoyré,ÉricWeil,MauriceMerleau-Ponty.A revista Critique,dirigida por Georges cambiáveis,pelofatode possuíremo mundosocialcomoreferente"(MICELI, 2005,p.18).Recebeu
Bataillee Éric Weil,ao dar acessoa uma cultura internacional e transdisciplinar, "permitia mais de 300 "suspensões"e "reprimendas"ao longode sua escolaridade.Viviaangustiado:"eu
escapar ao efeitode clausura exercidopor qualquer escolade elite" (EAAp,47). tinha 11ou 12anos,ninguémem quepudesseconfiarouquepudesseapenascompreender"(EAAp,
Ataca;asposturasde Sartre,falade seumentor,RaymondAron,da simpatiapor Canguilhem 119)."Euviviaminha vida de interno numa espéciede furor obcecado[...] Flaubertnão estava
e peloscolegasfilósofosde sua geração,Jean-ClaudePariente,HenryJolye LouisMarin.Recons- de todo errado ao pensar que, comoescrevenas Memórias de um louco,'aquelequeconheceu
titui o espaçode possíveisque se abriadiante delenesseperíodode transiçãoentre a filosofiae a o internatoconhece,aos dozeanos,quasetudo na vidà" (EAAp,120).

ESBOÇO DE AUTO-ANÁLISE 175


174 ESBOÇO DE AUTO-ANÁLISE (ESQUISSE POUR UNE AUTO-ANALYSE))
(ESQUISSE POUR UNE AUTO-ANALYSE)
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Faladas dificuldades.queenfrentoucom os colegasna classepreparatóriano Louis-le-Grand Os escritos reunidos nesse volume constituem excelenteintrodução aos temas trabalha-
e que começoua praticar o rúgbi, com os colegasde internato, para evitar que seu êxito escolar dos por Bourdieu e tornaram acessívelsua abordagem teórica da educação e da reprodução
o afastasse da chamada comunidade viril da equipe esportiva, "único lugar [...] de verdadeira cultural, inclusive para estudiosos de outras áreas das ciências humanas que incorporaram
solidariedade,muito mais sólida e direta do que aquelavigente no universo escolar,na luta co- 0 aparato analítico e metodológico que fundam suas reflexõessociológicas.
mum pela vitória, no apoio mútuo em caso de briga, ou na admiração irrestrita pelas façanhas" Ordenados em temáticas-dedicadas a variadas dimensões do aparelho escolar em sua
(EAAp,123).A sala de aula "divide ao hierarquizar"; o internato "isola ao atomizar". relação com o contexto social e com a reprodução cultural, os artigos foram selecionados
Há páginassaborosassobreseu ingressono College de France e seu entendimentosegundoo procurando difundir aspectos seminais do sistema teórico elaborado por Bourdieu em dife-
qual "a ficçãoe a sociologiasão intercambiáveis,pelofatode possuíremo mundo socialcomorefe- rentes momentos de sua trajetória intelectual.Alguns textos apresentam e discutem conceitos
rente"(MICELI, 2005,p. 18).Retomandoo quese escreveuantes,atravésda evocaçãodas condições fundamentais para a compreensão da educação, enquanto outros se dedicam a análises de
históricasem que seu trabalho foielaborado,conseguiu"assumir o ponto de vista do autor",como pesquisas acerca de facetas dessa temática. . ·
dizia Flaubert.Isso implicaem "colocar-seem pensamento"exatamente"no lugar que, escritor, No conjunto, os artigos revelam a inovação que o pensamento de Bourdieu trouxe para a
pintor,operárioou empregadode escritório,cada um delesocupano mundo social"(EAAp,134). sociologiada educação, abrindo novas perspectivas para se proceder à reflexãodo processo
Miceli aponta o silêncio de Bourdieu "acerca de seu casamento, dos filhos, das mulheres de escolarização, articulando-o com as desigualdades de acesso aos estabelecimentos de
importantes em sua vida", falando que o pudor de classe lhe impediu isso: "elenão dispunha ensino por educandos de distintas frações das classes sociais, com a reprodução cultural,
da prontidão de habitus requerida para tamanha autocomplacência, que lhe teria habili- com o sistema de avaliação escolar e com análises de outros aspectos que incidem sobre o
tado a aprontar uma versão enevoada de sua experiência afetiva, similar àquela veiculada, sistema educacional.
por exemplo, nas narrativas memorialísticas de Sartre ou Leiris, tão ao agrado de letrados A pertinência e o alcance desses escritos podem ser documentados pela utilização que
estetas" (MICELI,2005, p. 18).A favor do trabalho sociológicodo autor, termino com a frase inúmeros pesquisadores têm feito deles e também pelo fato de esta coletânea ter experimen-
de Ricardo Piglia, que ilustra com felicidade o processo de autoanálise desenvolvido por tado várias reedições, o que constitui indicador significativoda repercussão desses textos na
Bourdieu: "A crítica é a forma moderna de autobiografia. A pessoa escreve sua vida quando área da educação_
crê escrever suas leituras [...] O crítico é aquele que encontra sua vida no interior dos textos
que lê" (2004, p. 117).
-~~---~~~~~?.-~~-~~~~-----···-·-···-···-··--·-····--·-···--·-····-···--·--·---·
Referências CláudioMarquesMartins Nogueira
MICELI,S.A emoçãoracionada_ln: BOURDIEU,P.Esboço de auto-análise. São Paulo: Companhia
das Letras, 2005_p. 7-20. A noção de espaço social é utilizada por Bourdieu (CDp;RPp; LDp) para se referir ao
PIGLIA,R_Formas breves.São Paulo:Companhia das Letras, 2004. sistema formado pelo conjunto das posições sociais ocupadas pelos agentes em uma dada
formação social. Influenciado pela perspectiva estruturalista, dominante nos anos 1960 e
70, o autor enfatiza que as propriedades sociologicamenterelevantes dos indivíduos ou das
s11. ESCOLA
........................................................................................................................ instituições sociais dependem, em grande medida, da posição relativa que eles ocupam na
estrutura social. Assim, o grau de prestígio, de riqueza ou de poder de um agente individual
Ver: Sistema de ensino
ou de uma instituição coletiva (uma universidade, um sindicato, uma igreja, uma família,
etc.) só poderiam ser considerados em termos das distâncias que esses mantêm em relação
~~~~-'-~?.~ _~-~-
-~~--- -~-~~-~~ÇÃO
................................................................................ aos demais agentes individuais ou coletivos.Ter uma escolarizaçãobásica numa sociedade
em que a maioria não teve acesso à escola pode ser suficiente,por exemplo,para se ocupar
GeraldoRomanelli
uma posição de prestígio ou mesmo para se garantir algum poder e renda_Indivíduos com
BOURDIEU,p_Escritos de Educação_Organizado por M_A-Nogueira e A_Catani. Petrópolis, RJ: esse mesmo nível de instrução numa sociedade altamente escolarizada tendem a ocupar, ao
Vozes,1998_ contrário, uma posição social subalterna_
É importante observar que na perspectiva de Bourdieu as posições no espaço social não
Escritos de Educação, coletânea cuja primeira edição é de 1998,trouxe ao público brasi- se definem apenas pela dimensão econômica.Contrapondo-seà tradição marxista, que tende
leiro doze ~extosde Bourdieu redigidos entre 1966e 1998,acompanhados de apresentaçãodos a considerar a localização dos agentes nas relações de produção como o critério definidor
organizadores esclarecendo o conteúdo de cada artigo e de dois anexos relevantes contendo da posição ou classe social dos mesmos, Bourdieu enfatiza que o espaço social se define a
informações acerca do sistema escolar francês. partir do modo como se distribuem numa dada sociedade diferentes formas de poder, ou

176 ESCOLA ESPAÇO SOCIAL 177


-------------------------

seja,diferentestipos de capital.Alémdo capitaleconômico,formadopor recursosfinanceiros


de posição",ou seja, escolhas,preferências,ações,típicas dos ocupantes dessaposição,e que
e bens materiais, o autor realça especialmente a importância do que ele chama de capital
configurariam,assim, um estilo de vida característico.
cu~tu:al, ou seja, a posse da cultura legítima ou dominante, nas suas formas incorporada,
A noção de espaçosocial é construída e operacionalizadapor Bourdieu,portanto, como
obJetivadae, sobretudo, institucionalizada. Aponta, também, o papel que podem desem-
forma de ressaltar as homologias (evitandoas acusaçõesde determinismo ou mecanicismo)
penhar outros tipos de capital, como o social (conjunto de relações socialmente úteis) e o
entrecondiçõesobjetivas,disposiçõesincorporadase açõespráticassimbolicamente classificadas
e
simbólico (prestígio relacionado à suposição da posse dos demais capitais, como no caso
classificantes,
ou seja,típicase demarcadorasde uma determinadaposiçãosocial.Em outras pala-
de um sobrenome típico das elites).Afirma, no entanto, que nas sociedades modernas, os
vras, é possíveldizer que por meio desseinstrumento conceituaiBourdieubusca demonstrar
dois tipos mais importantes de recurso são o cultural - em boa medida, sancionado pelos
como as tomadas de posição,as estratégiase as ações dos agentes,bem como as disposições
títulos escolares - e o econômico.Assim, a posição de um agente no espaço social dessas
incorporadas que supostamente as orientam estão relacionadase se distribuem em função
soci~dades define-se basicamente em função do volume total desses capitais e pelo peso
relativo de cada um deles no interior de seu patrimônio. das condiçõesobjetivasdiferenciadasem que esses agentesse encontram, ou seja, do acesso
mais ou menos privilegiadoque elestêm às diferentesformas de riqueza que configuramum
. E~tudando o caso francês, Bourdieu (LDp, 118)sintetiza o modo como os agentes se
dado espaço social e que caracterizam dentro desse uma dada posição social.
d1stnbuem no espaço das posições sociais por meio de um gráfico formado por dois eixos
- É importante, ainda, ressaltar que o espaçosocialnão seriaum constructofixo,a-histórico
transversais dispostos em forma de cruz. Na parte superior do eixo vertical estariam os
e diretamente válido em termos universais. Caberia a cada sociólogo- sobretudo quando
detentores de um grande volume de capitais. Bourdieu cita, entre outros, os empresários,
analisacontextoshistóricaou socialmenteafastadosdas sociedadescapitalistasdesenvolvidas-
os profissionais liberais, os professores universitários e os artistas. Na parte inferior, es~
identificar as formas de riqueza mais importantes na formação social em questão, o modo
tariam os detentores de um volume menor. O autor menciona os técnicos, os operários,
comoas posiçõessociaisaí se defineme as maneiras comoisso se traduz nas disposiçõesdos
os professoresprimários, os artesãos, os trabalhadores rurais, entre outros. Essa primeira
agentese em suas tomadas de posiçãocotidianas, ou seja, em seus estilos de vida.
divisão corresponderia à contraposição,apontada por Bourdieu, entre classes dominantes
É preciso considerar também que, na perspectivade Bourdieu,os próprios agentesestão
e dominadas. Cada uma dessas partes seria, por outro lado, subdividida - tendo como
continuamente lutando por meio do que o autor chama de estratégias de reprodução da
referência o eixo horizontal e transversal em relação ao primeiro - conforme o peso maior
posiçãosocial para conservar ou transformar o espaçosocial e para manter ou melhorar sua
do ,capital econômico ou cultural na composição do patrimônio de seus agentes. Assim,
localizaçãono interior dele.Os agentesmais bem posicionadostenderiàm a adotar estratégias
tenamos na parte superior a diferença entre elites culturais e empresariais. Da mesma
de conservação,legitimando os critériosvigentesde classificaçãodas posiçõessociais e em-
forma, entre os dominados,poderíamos contrastar, por exemplo,a situação dos professores
penhando-seem manter distância em relaçãoaos gruposinferiores,incluindoos emergentes.
primários, cujo patrimônio está baseado na posse de algum capital cultural, com a dos
Os agentesem posiçõesmenos privilegiadastendem, por sua vez - conformeas expectativas
pequenos comerciantes, cujo principal recurso é econômico. Essas diferenças no peso de
reais de sucessoque vislumbram, dados os recursos de que dispõem e o contextoespecífico
cada um dos capitais no patrimônio total dos indivíduos corresponderiam às diferenças
entre frações de classe. no qual agem-, a adotar alternativamenteas estratégiasmais conformistas,de legitimaçãoe
acumulaçãodos recursosvalorizados,comoé o casodo investimentoeducacionalintensoe da
Bourdieuargumentaainda quena definiçãoda posiçãode um agenteindividualou coletivo
boa vontade cultural das classesmédias,-0uas estratégiasde questionamentodos critérios de
no espaço social é preciso considerar sua trajetória, ascendente ou descendente.A mesma
classificaçãovigentes,comose observanas lutas por maiorvalorizaçãodo capitalcultural face
posiçãoobjetiva,definida em termos do volume e da estrutura do capitalpossuído,pode ser
ao econômico,ou nos esforçosde legitimaçãoda cultura popular frente à cultura dominante.
ocupadapor agentesque se diferenciambastante em função de suas origenssociaise de suas
perspectivasde mobilidadesocial.Assimé possívelcontrastar,por exemplo,diferentesfrações
das elites econômicasou culturais em função da antiguidade do seu patrimônio. Do mesmo 87. ESPRIT DECORPS
........................
~.............................................................................................
.
modo, seria possíveldiferenciar as frações das classes médias que realizam uma trajetória
Ana Paula Hey
ascendenteem relaçãoàs classespopulares das frações oriundas dos estratos decadentesdas
camadas dominantes. Elisa Klüger
Naperspectivado autor,seriapossível,portanto, observandoessestrês critérios- volume,
As noções esprit de corps(espíritode corpo) e effet de corps (efeitode corpo) aparecem
estrutura e trajetória do patrimônio -, distinguir e delimitar posiçõessociaisrelativamente
no percurso da obra de Bourdieuem meados dos anos 1980,extrapolandoa associaçãouni-
homogêneasno espaço social. Os indivíduos que compartilham cada uma dessas posições
camentefeita à La noblessed'État: GrandesÉcoleset esprit de corps(1989),livro em que o
teriam c?ndições objetivasde existênciarazoavelmentesemelhantes, que propiciariam ex-
termo "espritde corps"foi consagrado.Nessetrabalho, ao estudar o campo das instituições
periências de vida similares e que tenderiam a se traduzir subjetivamenteem um habitus
de ensinosuperiorna Françae, nele,as especificidadesdas escolaspreparatóriase das Grandes
ou sistema de disposiçõestípico da posição.Esse habitus, por sua vez, orientaria "tomadas
Escolasdestinadasà reproduçãodas elites,empreendeo uso do termo "espíritode corpo"para
178 ESPAÇO SOCIAL
ESPRITDE CORPS 179

L
-----·------------------

.olidariedadedos dominantes.ena origemde suas tramas de ~~ul~s _socia~~ qu~~ão origem:


designar os sentimentosde afeto,de admiração e de solidariedadeentre aquelesque por elas s os dotadosde espíritoscomuns.A coesãocriada nessasmstltmçoes,o espmto de_co~po

!::
passam decorrentesda homogeneidadede suas estruturas mentais, ou seja, do compartilha- corp ominantes,é visto comoelementoessencialà coesãodos gruposdominantes,c~nstlt~m~o
mento dos esquemasde percepção,de apreciação,de pensamento e de ação de sujeitos que solidariedadecapaz de amalgamar e fortaleceras elites,não obstante sua~div~rgencias
funda a conivênciade inconscientesbem orquestrados.Conformeo autor,o "espíritode corpo" . 1· posiçãodos princípios prevalecentesde dommaçao.
lIIl.

é um dos fundamentosdesseencantamentoafetivo,que nasce de poder se amar e se admirar e as disputas que travam pe a d 1 .


A ftuição do "espíritode corpo"deve-seà consagraçãosocialoutorga a pe .ª no~una-
a si mesmonos seus pares (NE, lll). Essa comunhãode reciprocidadesinscritas na aparência ão ~;:~da uma verdadeirasolidariedadede interessessimbólicos,molda~do~ identidade
do natural é quevai garantir a instituiçãode poderesassociadosà frequênciadistintivadesses ? d'qidual a uma identidade coletiva.Em síntese, ele é um sentimento de sohdanedade ~om
espaçoscontroladosde reproduçãosocial.
Ao agregarsujeitoscuja identidadeestá fundada na coincidênciados esquemasde visão e
divisãodo mundosocial,o "espíritode corpo"podedar origema corpos(profissionais, sociedades,
::::;~;:~:~::::c~~~:
m i~ . sua honra, mas também com seus membros, o que coman a a
reproduçãodo corpo, quer dizer, de sua identidade, daquilo que
o constitui como tal, sua solidariedade (BouRDIEU,1985). d .- d les
clubes),grupos que são capazesde conferiridentidade,estabelecervínculosde solidariedadee
O "espíritode corpo" deve,portanto, ser pensado comoum eleme~t~- e~oesao daque. 1
promovero reforçomútuo de espéciesde capital,sobretudoo social,dos participantes.O "efeito
de corpo",por sua vez,seria a expressãoda forçados corpos sobrea sociedadee deveser tanto cujasafinidadese laçosdevem-seà par~il~ad~s esquemasde visão e
forjados na frequência a meios de sociah~:~::~::::
::~:10:
:suds;::!:s es~éciesde capital dos
::;~:-
!:::ª~s
maior quanto mais intenso for o "espíritode corpo"do corpo que o exerce.
Em Homo academicus (1984), o autor procura explicar como são constituídos esses çadospelo espírito de corpo, por sua vez, i . d " fi ito de corpo",
que por ele são aglutinados e fortalecemo poder ~o coletivo e exercerum e e
coletivosque se reconhecem como corpos, ou seja, como se dá o processo de cooptação/de
imprimindo suas orientaçõessobre o mundo social.
adesão a um grupo e a seus valores.Sendo o "espírito de corpo" o liame de coesãodo corpo,
quer dizer, às verdades que fundam a identidade do grupo, a adesão ao "espírito de corpo"
constituiria o verdadeirodireito de entrada no grupo. Assim,a seleçãodos membrosdo corpo Referências l985
BOURDIEUP. Effetde Ghampet effetde corps. ARSS, v. 59,P· 73, set. . - 1 1
seria irredutívelà aquisiçãode determinadascompetênciastécnicas,devendo-se,sobretudo,à ' . , • . 1 hamp des Grandes Eco es et e
BOURDIEU,P.; SAINTMARTIN,M. Agrégat1onet segregauon. e c ·..
convergênciadas competênciassociaise das estruturas mentais do candidato, de seus ethos,
champ du pouvoir.ARSS, v. 69, p. 2-50,set. 1987. .
habitus e hexis corporal, em relação àquelasdos outros membros do grupo.
NoartigoEffetde champet effetde corps(1985),Bourdieuvinculao termo"espíritode corpo"
à ideiade queum corpopoderiaexercerum "efeitode corpo".Oscorpos,comogrupossocialmente 88. ESQUISSED'UNE THÉORIEDE LA PRATIQUE,PRÉCÉDÉDE
conhecidose reconhecidosatravésde um nome - que atua comoum marcadorsimbólicoconsa-
TROIS ÉTUDESD'ETHNOLOGIE KABYLE ..................................
..
gradordaquelesque comungamdo capitaldo grupo -, dotadosde uma forçaprópria,poderiam ...........................................................................
··················: .
tentar imprimirno mundosocialsuasorientaçõese a chancede quelograsseexercerefeitossobre GiseleSapiro
o camposeriatanto maior quantomais fortea coesãodo corpo,ou seja,o seu "espíritode corpo".
. , ,d, de Traisétudes d'ethnologiekabyle.
Em texto escrito com Moniquede Saint Martin nas ARSS (1987),acercada relaçãoentre BOURDIEU, P.Esquissed'une théorie de la pratique, prece e . .
o campo das GrandesEscolase o campo do poder, exploraa relaçãode homologiatalhada na Genebra:Droz,1972. [Novaed. aum. Paris: Le Seuil,2000. ColeçãoPomts Essa1s].
divisão entre as escolasintelectuais e as de poder (filosofiaversus economia,por exemplo)
e a oposiçãono campo do poder que separa o polo intelectual e artístico daquele do poder . . 1b - de uma teoriada práticade
Esselivro ublicadoem 1972,representaa prlIIleITae a oraçao ,.
econômicoe político.Afirma quehá uma verdadeirasolidariedadeorgânicareunindo alunos Bourdieu.É ~!cedidopor três estudosde etnologiacabila,redigidosapósseureto~noda Argelia,
eleitossocialmentee que asseguram a excelênciadessas escolas,consagrandoas identidades p " .d d h ,, (1960) a "Casacabilaou o mundo ao avesso (1963-1964)e
sociais, ao mesmo tempo concorrentes e complementares,produzindo um "grande corpo" cujostemassão O senti o a onra ' ,, 960 e 1970) Essestrês estudosfoca-
"Oparentescocomorepresentaçãoe comovontade (e?tre 1 d. - d iedadecabila
unido, apesar dos antagonismosdevidos à posição no campo do poder.
Comojá se afirmou, é em La noblessed'État que o termo "espírito de corpo" tem maior
destaque.Dedicadoem grande parte à análise da estrutura e do funcionamento do ápice do
faziamparte de um projetomais amplo- ~ q~epermaneceumaca
em reconstituiro sistemada!irelaçõesobJetivasque servemde e~
:u~:
lizadosnas implicaçõessimbólicasque sustentamo sistema_derer~ ~ac:joªo~:tivo consistia
à ordem econômicae
a do livro é reveladordo
sistemade ensino superior francês e ao papel desempenhadopor ele na produção e na repro-
dução dos grupos dominantes, o livro de Bourdieu analisa a incorporaçãopelos indivíduos
políticadessasociedade.O lugar ocupadopor essesestuios na a e:~
struída combase em
de dispqsiçõese de espéciesde capital no processo de socializaçãotranscorrido em espaços procedimento~~e irá caracterizartoda ª o~r: !~!~:e:: ::~::s;a:: vaivémem relaçãoao
sociaisbem delimitados.Esse tipo de estabelecimentoescolar é apresentadopor ele como o pesquisasempmcasaprofundifi~adas,
_demanterr_a da maiorpartedossistemasconceituaiselaborados
terreno.Esseé o aspectoque erenaaessa eon
espaço por excelênciada conformaçãodas afinidades e dos afetos que estão na essênciada
181
ESQUISSE D'UNE THÉORIE DE LA PRATIQUE,
180 ESPRIT DE CORPS PRÉCÉDÉ DE TROIS ÉTUDES D'ETHNOLOGIE KABYLE
.,,,.,.,,,,,_-----------------------

adequação das estruturas sociais atuais às do passado. É por isso que as situações de crise
nas ciênciassociais,os quais procedem quase sempre de maneira dedutiva.Outra originalidade provocam perdas de referência e dificuldades de ajuste desigualmente superadas. Operador
dess~obra:em a ver c~1=1 a trajetó~iasingular desse"aprendizde filósofo"que se tomou etnólogo: da improvisação regulada em situações sempre novas, o habitus permite compreender como
a articul~çaode descnçoesetnograficassutis com as inúmeras referênciasfilosóficasmobilizadas as práticas podem ser reguladas e regulares, sem ser o produto da obediência a uma regra,
pa~aapma~a refl~xãoteórica(Spinoza,Leibniz,Hegel,Husserl,Heidegger,Sartre,Merleau-Ponty, nem da ação orquestrada de Um regente. Contra a ilusão ocasionalista que tende a explicar
Wittgenste~, Qu~~---),ao ladode referênciasdas ciênciassociais(Durkheim,Mauss,Lévy-Bruhl, as práticas pela situação, Bourdieu sublinha, no entanto, que "a verdade da interação nunca
Weber,Schutz,LeVI-Strauss, Malinowski,Lowie,etc.). reside inteiramente na interação" (ETP,275),mas que esta reflete as relações objetivas entre
~nalisadas a ~artir da teoria dos jogos, a qual pressupõe a capacidade de antecipar as os agentes. O habitus sustenta as afinidades eletivas (simpatia, amizade, amor), como é con-
reaç~~sdos pa~ce1ro~,as condutas guiadas pelo sentido da honra são apreendidas como es- firmado pela homogamia de classe constatada com muita frequência, através da harmonia
tr~tegia~ q~e visam a reprodução do capital simbólico individual e coletivo nas sociedades dos ethos e dos gostos. O corpo é o principal operador prático dessas interações: um corpo
pre-:apltahstas. A noção de estratégia adquire, nesse trabalho, sentido no que diz respeito à socializado,habituado, adestrado (polidez,precedência, autocontrole),um corpo "geômetra''
relativa imprevisibilidade das trocas. Ao mesmo tempo em que se serve dos ensinamentos da (capaz de se situar em um espaço significante) e "estruturado temporalmente" (segundo a
abord~gemre~acion~ldo e~truturalísmo - aliás, implementado por ele no estudo seguinte-, lógicado prazo e do desvio, implicando a antecipação e o cálculo), que é o lugar de emoções
Bo~rdi~use distancia,_a~m, dessa corrente ao restituir aos agentes uma margem de improvi- e de manifestações somáticas, ocultadas pela abordagem intelectualista.
saçao diante da~ ~on~ic:o_nantes sociais, ao invés de transformá-los em simples suportes das Os modelos geométricos ou genealógicos,construídos pelo erudito, ocultam também a
es,tr~turas. Redigido m1C1almente para a coletânea de estudos, Mélanges, em homenagem a dimensão temporal das trocas que os inscreve na longa duração, tornando-os irreversíveis.
Lev1-Strauss,o estudo sobre a casa cabila complementa o precedente ao mostrar a inscrição Ora, é graças ao intervalo de tempo, gerador de incerteza, que a troca pode ser irreconhecida
da divisão sexuada [gendered] do mundo nas estruturas do habitat, o qual situa o feminino enquanto tal, como é ilustrado pelo exemplo paradigmático do dom e do contradom. Até
no lado de dentro, da obscuridade, da umidade, da natureza, enquanto o masculino fica do mesmo nas práticas mais ritualizadas, como a resposta à ofensa ou à vingança, a temporali-
lado de fora, da clareza, do seco e da cultura. O estudo sobre o parentesco é uma crítica ainda dade torna possível a implementação de estratégias, noção que Bourdieu coloca no lugar do
mais explícita, da a~tropologia estrutural. Baseando-se na regra do casamento com a,prima conceito de regra, a fim de romper com a concepção da ação como u~a simples execução.
paralela_para ques~10nar_ se~~pressupostos - ou seja, a noção de unifiliação e o princípio da O livro termina com uma crítica ao economicismo que oculta a dimensão simbólica das
exoga~i~ -, Bour~i_eu vai cnticar a antropologiaestrutural por negligenciaras funções sociais trocas nas economias chamadas pré-capitalistas, dime_nsãoque, no entanto, não deixa de ser
(econ~m~case ~ohticas)das relaçõesde parentesco e de seus usos. Desseestudo surgiu a crítica central em universos não diferenciados que se caracterizam pela convertibilidade do capital
da propna noçao de regra, que se encontra no âmago de sua teoria da prática. econômico e do capital simbólico (por exemplo, o prestígio e a reputação vinculados a uma
O_quese entendequandose diz"aregrasegmidoa qualeleprocede"?- questiona-seBourdieuem família, ou as condutas de honra). Portanto, o patrimônio da família ou da linhagem não se
Esquisse,retomandouma perguntaformuladapor Wittgenstein.A regra,no sentidojurídico,que reduz à terra, nem aos instrumentos de produção, mas inclui a parentela e a clientela, a rede
~sagent_es seguemde maneira consciente(norma)?Ou,ainda, aquelaqueelesseguemde maneira de alianças ou de relacionamentos que devem ser mantidos e que constituem um capital
mconsciente(esquema)e que a análise estrutural (modeloteórico)reconstitui?Ao observarO uso social. Eis a razão pela qual, de acordo com Bourdieu, "a teoria das práticas propriamente
polissê~icod~termopelaantropologiaestrutural,Bourdieucriticaseu "juridicismo",formulando econômicas é apenas um caso particular de uma teoria geral da economia das práticas".
a questaoda dif~r~nçaentre o modelode análise e a realidade:com a noção de "regra",desliza-se Assim, a teoria da prática redunda em uma economia dos bens simbólicos que Bourdieu
de fatosub-repticiamentedo modeloda realidadepara a realidadedo modelo.
desenvolveuparalelamente nessa época.
Or~, a imitação não se refere a modelos, mas às ações dos outros: tal é o postulado de Alguns anos mais tarde, Bourdieu vai retomar e sistematizar essa reflexão em seu livro,
B~urdieuq,~eo leva a el,aboraruma teoria da prática, superando a alternativa entre "situações" Le sens pratique (1980).Ele voltou a lançar Esquisse (2000)com algumas modificações,em
e modelos , a qual,na epoca, opunha Sartre e os interacionistas simbólicosaos estruturalistas. particular o acréscimo - antes da crítica ao objetivismoestruturalista, que omite de levar em
O mod~ d_e~onhecimento praxiológico que Bourdieu preconiza contra a abstração operada consideração a experiência dos atores - de uma crítica contra o subjetivismo (ETP,235-236),
pelo ~b3et1V1sm~ estruturalísta convida a passar do opus operatum para o modus operandi, que se tornou, nesse intervalo de tempo, o paradigma dominante no lugar do objetivismo
ou se3a,para a logica da ação.
que prevalecia na década de 1970.
. A_teoria do habitus, que nesse livro conhece sua primeira elaboração completa, tem o
:bJetivo ~e apreende~a m~i~r ou men~r capacidade dos agentes de se ajustarem às situações
Referência
m fun~ao d~ su~s ~isposiçoes, ou se3a,das estruturas cognitivas e comportamentais que BOURDIEU,P. La maison kabyle ou le monde renversé. ln: POUILLON,J.;MARANDA,P. (Orgs.).
el~sh~vi,ammte.:10r~zadono decorrer-de sua socialização primária e secundária (tendo as Échanges et communications. Mélanges ojferts à Cl. Lévi-Strauss pour son 60êmeanniversaire.
pni:ueiras expenencia~ um peso determinante) e que orientam suas estratégias de maneira
Paris-LaHaye:Mouton, 1970.p. 739-758.
mais ou menos consciente. As possibilidades de ajuste dependem, em grande parte, da
ESQUISSED'UNE THÉORIE DE LA PRATIQUE,
183
182 Esqu1~s~ D'UNE THÉORIE DE LA PRATIQUE, PRÉCÉDÉ DE TROIS ÉTUDES D'ETHNOLOGIE KABYLE
PRECEDE DE TRO/S ÉTUDES D'ETHNOLOGIE KABYLE
·;
i

89. ESQUISSES ALGÉRIENNES Desseconfronto,emergeum modelo explicativo.Se, diferentementede Durkheim e de Weber,


·······················································································································
Marx se questiona sobre as funções do Estado - "quem se beneficiacom o Estado?"-, no en-
Ver:Argélia tanto, de acordo com Bourdieu,ele não as relacionacom as particularidades de seu funciona-
mento, a saber, as operaçõespróprias e as condiçõesespecíficasem que ele opera. Ao deslocar
9o.ESTADO a questão das funções do Estado para aquelaque se refere à eficáciada dominaçãobaseada na
·······················································································································
RemíLenoir opinião comum - "como se explica a obediência dos dominados?" - é que Bourdieu rompe
coma abordagemmarxista. E é em Durkheim que ele encontra os elementosque lhe permitem
O interesse manifestado por Bourdieu em relação ao Estado deve-se,no essencial,a seus estabeleceros alicercesdo poder simbólicodo Estado. Com efeito,no entender de Bourdieu,o
estudos sobre os modos de dominação e a suas pesquisas sobre as diferentesfrações da classe que está na origem da coesãosocial que contribui para engendrar o Estado é o "conformismo
dominante - a "noblesse d'État" - que contribuíram muito para a elaboração da noção de lógico",expressãotomada de empréstimoa Durkheim e sobre a qual eleinsiste de forma parti-
capital simbólico, cuja acumulação primitiva está, segundo ele, na base da emergência do cular:"Os agentessociaiscorretamentesocializadosdispõem em comum de estruturas lógicas
Esta_?o,principal agente e instrumento primordial de construção da realidade social. semelhantes,de modo que prescindemde se comunicar,de colaborarpara estarem de acordo".
E a partir da definiçãode Estadoforjadapor WeberqueBourdieucriticaestanoçãonão apenas E a integraçãológicaproduzida pelo Estado é a própria condiçãoda dominação exercidapelo
estendendoo alcancedo monopóliodo Estadoa todas as formas de violência,em especialavio- Estadoa serviçodaquelesque podem apropriar-sedele.Detal modo que o Estadoé a instituição
lênciasimbólica,mas, sobretudo,estudando-oem relaçãoà construçãode um "campodo poder". que tem o poder extraordinário de produzir um mundo socialordenado sem necessariamente
O campo do Estado resulta de um duplo processo dado pela autonomização dos campos dar ordens, sem exerceruma coerçãopermanente (nãohá um policialatrás de cada motorista).
e das espécies de capital que lhes correspondem e, também, pela concentração dos poderes É a "essa espécie de efeito quase mágico", a essa "espéciede milagre àa eficáciasimbóli-
no respectivovalor destas últimas. "Essa espécie de metacapital, capaz de exercerum poder ca",que é essencialmente dedicado o curso de Bourdieu, Sobre o Estado, que foi publicado
sobre as outras espéciesde capital e, em particular, sobre as taxas de câmbio entre elas - e, ao na França. O Estado modela as estruturas mentais através do conjunto das instituições de
mesmo tempo, sobre as relaçõesde força entre seus detentores-, define o poder propriamente construção da realidade social como são, nomeadamente, os sistemas escolares, judiciais
do Estado". Ao retomar a oposição entre Estado dinástico e Estado burocrático, Bourdieu e sociais, ao inculcar sistemas de classificação,princípios de visão e qivisão comuns e, por
mostra em quais aspectos a transição de um para o outro constitui não só uma mudança de conseguinte, o que é constituído como "a identidade nacional". O "conformismo lógico"
modo de governo,mas uma verdadeira revoluçãosimbólica. É nessa dimensão - e, de forma que produz e reproduz o Estado é uma forma de integração social muito mais profunda e
geral, na noção de capital simbólico, cuja acumulação primitiva é a condição necessária da mais estável que aquela garantida, por exemplo,pelas propagandas políticas, contribuindo
monopolizaçãodas outras espéciesde capital - que Bourdieu está interessado,em particular assim para a produção e reprodução da ordem simbólica e, por conseguinte, da ordem
e~ ~eu c~rs~ Sobre o Estado, fornecendo ali uma contribuição decisiva para seu projeto social. Deste modo, além de um simples instrumento de coerção, o Estado é muito mais
teonco pnnc1pal:construir uma teoria materialista do simbólico. um instrumento de produção e reprodução do consenso, um senso comum constituinte, de
Um dos traços distintivos,sublinhados com insistência por Bourdieu,do Estado burocrá- acordo com Bourdieu, um conjunto oficialde instrumentos estruturados e estruturantes de
tico em relação ao Estado dinástico é a passagem de um poder direto com base pessoal para conhecimento e de comunicação - aliás, os mesmos que são compartilhados por aqueles
um poder indireto com base territorial, exercendo-sepor intermédio de delegados,tendo os que estão submetidos a ele.
feudos se transformado em "províncias".Essas "províncias" são definidas progressivamente À semelhança do que ocorre em qualquer campo, o campo burocrático é em si mesmo
como fragmentos de um todo, agregando pessoas unidas mais pela proximidade espacial do um espaço de lutas em prol do poder, onde o campo tem o monopólio dos instrumentos
~ue pela proximidade genealógicae, de forma geral, de natureza vassalática.Essa unificação de gestão e administração dos bens públicos. Na medida em que os campos autônomos se
e acompanhada, entre outros aspectos, de uma padronização das normas de medição (pesos diversificame se multiplicam, as grandes burocracias do Estado têm a função de coordenar
e medidas, símbolosmonetários, regras jurídicas...), da homogeneizaçãodo espaço,do espaço os interesses concorrentes, retraduzindo-os segundo a lógicaprópria desse universo do qual
geográfico, em detrimento daquilo que, por isso mesmo, se torna particul~ridade local (a Bourdieuanalisou o funcionamento,sobretudo a propósito da política de moradia, ao estudar
capital engendra o provincianismo)... De maneira geral, o Estado contribui para integrar o a composiçãoe o desenrolar de um comitê que reunia os atores "eficientes"encarregados de
espaçoeconômico(mercadonacional),o espaçosocial, o espaçosimbólicoe o espaçocultural definir suas orientações. Tais atores, aliás, encontram "apoios" estruturais no campo das
(unificaçãodos códigosjurídico, linguístico, vestimentar, burocrático...). Essa coesãopassa, instituições públicas. O comitê é o próprio tipo de instituição que resulta da transação entre
no essencial,pelo sistema escolar, que forma os cidadãos para uma nova visão do mundo e as classes, entre as frações de classe,procurando aparentar que tudo está situado para além
uma no~a estruturação do mundo, aquela da qual deriva o conceito de nação. dos interesses de classe. O controle sobre o Estado - ou seja, sobre os recursos econômicose
. ~ara explici~ara estrut~ra e a função do Estado, a exemplode sua análise sobre o campo políticos permitindo que o Estado exerça poder sobre todos os campos - é um fator dotado
religioso,Bourd1eurecorre as grandes tradiçõessociológicas- as de Marx, Durkheim e Weber. de configuraçõesvariáveis segundo os desafiosno âmago do campo do poder.

184 ESQUJSSES ALGÉRIENNES ESTADO 185


O campo do Estadoé relativamenteautônomoem relaçãoa todos os campos,assim como 2012),realizam uma aproximaçãorica com o discursoliterário,especialmentecom o romance
ao própriocampodo poder.Ora, de acordocom a análiseque Bourdieujá haviaempreendidoa moderno,que abre novaspossibilidadespara o discursosociológico.
propósitodo sistemade ensino,tal autonomiaé a garantiade sua eficáciasimbólica,de sua função
legitimadora,que consisteem transmutar os interessesde gruposparticularesem interessesdo Referências
conjuntodos grupos, ou seja,em favordo "público",no sentidoem que ele é constituídocomo JENKINS,R. Pierre Bourdieu. London:Routledge,1992.
"universal"em determinadocontextosocial.Oprocessosegundoo qualse constituiessainstância SPELLER,J.R. W. Bourdieu and Literature. Cambridge:Open Books,2012.
de gestãodo universalé inseparávelda apariçãode uma categoriade agentesque têm a proprie-
dadede se apropriardo universal,ou seja,osjuristas que teorizama noçãode bempúblicoe que,
92. ESTILOS
DEVIDA
ao assimprocederem,tendiam a apropriar-sedelee dele tirar proveito.Assim,ao produziremo ······················································· ·························································
Julien Duval
universalpara seusinteressesparticulares,osjuristas fazemprogrediro universal.

Apesar de ter sido utilizada por Bourdieu apenas em La distinction (1979),a noçã,o_de
s1. ESTILO
DEESCRITA
DE BOURDIEU "estilode vida"não deixade desempenharnesselivroum papelimportante.No quadro teonco
quelhe é próprio,a noção de lifestyle- popularizadaa partir dos anos_1930 pelasramificações
Antônio Augusto Gomes Batista
da psicologiae da sociologia,associadasao marketing - parece ter sido reformuladapor ele
Tantoem seuslivrosquantona revistaActesde la Rechercheen SciencesSociales(ARSS), para designar O conjunto de práticas e de consumos que_tendema ser adotadospelo mesmo
Bourdieue sua equiperealizamexperimentosno modode comunicaçãoda pesquisasociológica. indivíduoou grupo.Convémobservar,no entanto,que noçõessemelhantesjá se encontramem
Embora recorram a procedimentosdo campo literário, respondem a problemassociológicos autoresclássicos,citadoscom frequênciapor Bourdieu.Em particular,MaxWeber,em trechos
comuns à prática de pesquisa de um grupo num determinado estado do acadêmicofrancês. deA éticaprotestante e o "espírito"do capitalismo(1905),trata da emergência,medianteos
Na medida em que, porém, a figura de Bourdieuse desprendedessegrupo, essas disposições imperativosde conduta-ascética,de um estilo de vida "moderno"ou "burguês",marcadop~la
estilísticasganham outros matizes e é mais correto falar, a partir de então, de um estilo de recusado luxoostensivoe por um retraimentoao espaçodoméstico.Da mesmaforma,Maunce
escritade Bourdieu. Halbwachs- sociólogofrancês durkheimiano do período do entre guerras - havia forjadoas
Exemplosdas experimentaçõesde caráter bourdieusianasão as "montagensdiscursivas" noçõesde "nívelde vida" (1913)e, em seguida,de "gênerode vida" (1930)~ue:à se~elhança do
(R,66).Muitofrequentesnos artigosdaARSS e especialmenteem livroscomoA distinção,são conceitode "estilode vida" em Bourdieu,chamam a atençãopara a coerenciae a mterdepen-
construídascomo"assemblages". Aoladodo textoanalítico,trechosde entrevistas,fotografias,e dênciafundamentaisdos elementos,aparentementebastanteheterogêneosque os constituem.
recortesde revistasbuscamforneceruma descriçãodo fenômenoanalisado,mas a partir de uma O "estilodevidà' em Bourdieué, comefeito,inseparávelda tesesegundoa qual os domínios
"intuiçãoimediatà' que é excluídada explicaçãoanalítica(R,66).Aoleitoré tambémpermitido da existência que, na aparência, obedecema lógicasmuito diferentes (consumode ali~en-
reconhecero mundo socialtal comolhe é familiar,mas essafamiliaridadeé, comonecessário, tos, práticas esportivas e culturais, concepçõeséticas e políticas do mundo...), s~ orgamzam
desfeitapelo conjunto.Tambémé exemplodessasexperimentaçõesliteráriaso uso do discurso de acordo com princípios homólogos. O estudo estatístico do consumo de alimentos ~os
indiretolivre(SPELLER,2012),especialmentequandoregistraclassificações do mundosocial,bus- diferentesgrupos sociais,de suas práticas esportivasou de seus lazeres,faz aparecer,a~sim,
candoapreenderosdistintospontosdevistadosagentessobreosdemais.Comoessetipode registro uma série de ecos.Em relação aos alimentos constata-se,por exemplo,na França da decada
do discursode outremnão empregaaspas,consegue-setransmitir uma fortecargaemocional. de 1970,uma oposição entre alimentos baratos e bastante nutritivos (carne de p~rco, pão,
A sintaxede Bourdieué o traço mais identificadocomseu estilo.Suassentençasnão apenas batatas...), consumidos particularmente nas categoriaspopulares, e alimentos mais caros e
sãolongas,mas possuemum grandenúmero de oraçõese apostosintercaladosque exigemuma mais leves (peixe,frutas...), preferidospelas classes superiores.Essa oposiçãobaseia-se_em
sobrecargada memóriaem seuprocessamentoe na hierarquizaçãodas informaçõesprincipais princípiosque se encontram, em parte, na área esportiva,domínio em que esportescoletivos
e secundárias.SegundoBourdieu,essas características,assim como a presençaconstante da que pressupõem um importante dispêndio físico e podem ser praticados pra_ticamenteem
negaçãoe do paradoxo,devem-sefundamentalmentea duas necessidadesdo trabalho socioló- qualquer lugar (tal como O futebol) se opõem a esportes individuais subm~ti~osa ,compe-
gico.Por um lado, o sociólogodeve se bater contra as representaçõesdo leitor sobre o mundo tições ritualizadas (esgrima, tênis...), cuja prática pressupõe recursos economico~,as ve~es
social,mas para issodeveusar o mesmomaterialquealicerçaessasrepresentações:a linguagem. bastante consideráveis,e que são praticados em lugares reservados do ponto de vista social.
\~ Assim,devecriar uma ruptura com a linguagemcotidiana.Em segundolugar,para Bourdieu, Uma oposição parcialmente similar opõe as atividades de lazer populares que: a exemplo
"-,~ que é complexo,hierarquizadoe articulado,precisaser dito de maneira complexa,hierarqui- das festas juninas, são acompanhadas da participaçãodo público,aos lazeresmais _refinados
,<la~'fortemente" articulada (CDp).Separa alguns (JENKINS, 1992)essestraços estilísticos e mais ritualizados que, na França, são apreciados,sobretudo pelas classessuperiores (por
~111 de .umabusca de distinção no campo intelectual francês, para outros (SPELLER, exemplo,o teatro ou a ópera).
ESTILOS DE VIDA 187
,TILO DE ESCRITA DE BOURDIEU
De maneirageral,Bourdieudefendea ideiade que os grupossociaisse opõem,nos diferentes que,muitasvezes,se faz dessanoçãono âmbitode uma simplespsicologiado consu.n:iidor. ~ém
domínios da existência,de acordo com lógicasque se referema princípiosque distribuem os disso,La distinctionpropõeuma descriçãoempíricadetalhadade um espaçodosestilosdevida:
agentese grupos no espaçosocialsegundo o volume,a estrutura e a antiguidadedos capitais sealgumasobservaçõessão,sem dúvida,específicasà situaçãoinvestigada,outras (p~rexem~lo,
que elesdetêm.Issopossibilitaa construçãode um "espaçodos estilosde vida" que, de alguma aquelasresultantesda distância da necessidadeeconômicaou a oposiçãoentre estil~sde vida
forma, resulta da sobreposiçãodos espaçosque cada domínio analisadoconstitui (alimentos, ascéticose hedonistas)são, coÍncerteza,transponíveispara outros contextos.Uma dificuldade
esportes,etc.).Umavez que ele concebeas práticas comoum produto do habitus e das condi- que pode surgir na aplicaçãodo conceitoé que ela exige_umi~por_tante~ateria! e~pí~ico,
ções econômicase sociaisda existência,Bourdieuconsideraque as práticas de determinado obtidopor métodosbastantevariados(osúnicosque permitema noçao funci~narem mvei~de
agentesocial,nos diferentesdomíniosda vida, tendem a ser o produto dos mesmosprincípios agregaçãomuito diferentes).Alémdisso,ela é solidáriaa uma tesebem consolidada'.q~~ sep, a
e a apresentarum "ar de familiâ' que faz a unidade do "estilode vida".Pelamesma razão, ele coerênciadas práticasinduzidaspelohabitus.A tesecontráriasegundoa qual os pnncip10sque
observaqueos agentesda mesmaclasse,pelofatode terem de enfrentarcondiçõesde existência orientamas práticas do mesmo indivíduo,nas diferentesesferasde sua e~stê~;ia,_pode~ s~~
muito semelhantes,tendem a ter as mesmaspráticas e o mesmotipo de "estilode vida". de tipos diferentes(LAHIRE,2004) obrigaria,sem dúvida,a reajustara noçaode estilode VIda.
A demonstraçãoempíricados "estilosde vida"combinao estudoestatísticoda distribuição
diferencialdas práticas em funçãodos grupos sociais,com observaçõesetnográficas.Segundo Referências
um exemplodado por Bourdieu,tais observaçõesmostram o quanto os diferentes aspectos HALBWACHS, M. La classe ouvríere et les níveaux de víe. Paris: Alcan, 1913.
da vida de um marceneiro (suamaneira de exercera profissão,seu cuidado com o corpo, seu HALBWACHS, M. Les causes du suicide. Paris: Alcan, 1930.
modo de falar...) são marcados pela mesma mistura de meticulosidade e de paciência.La LAHIRE,B. La culture des índívídus: díssonances culturelles et dístinctíon de soí. Paris: La
distinction apoia-seassim,simulta~eamente,em fontesestatísticas,entrevistase observações Découverte,
2004.
para identificar os estilos de vida peculiares a cada classe, para desvendar seus princípios WEBER,M. Die protestantische Ethik und der "Geist" des Kapitalismus.Archiv Für Sozialwíssen-
unificadores,assim como as variantes de acordo com as frações de classes.As práticas mais schaft Und Sozialpolítik, 1905.
específicasdas classespopulares,na Françada décadade 1970(futebol,truco, acordeão,vinho
tinto), compõem assim um estilo de vida marcado pelos efeitos da necessidadeeconômica
93 ESTRATÉGIA/ESTRATÉGIAS DEREPRODUÇÃO
e pela recusa do luxo. Ele se opõe ao estilo de vida prevalecentenas categoriassuperiores, .
·················································
·····························································
Ernesto Seídl
materializando-senomeadamentena prática do bridge ou do tênis:a distânciada necessidade
econômicaengendra uma tendência a denegar as necessidadesprimárias e a adicionar uma
dimensãosimbólicaa qualquerprática. As classesmédias parecemreplicaresseestilode vida, A noção de estratégia ocupa lugar central no esquemaanalítico de Pierre_Bourdieue está
mas com menor grau de legitimidade:nelas predominam o gosto pela opereta (ao invés da conectadaao núcleo de sua teoria, primeiramente apresentadode forma articulada no texto
ópera),o consumo de cerveja(emvez de uísque),assim como tocar violão (em vez de piano). Esquissed'une théoriede la pratique (1972).Naquelemesmoano o autor t~m~,émpublica~a
Esses estilos de vida se especificamsegundo as frações de classes,de acordo com os re- o artigo "Les stratégies matrimoniales dans le systeme de reproduction (1972), cu~o
cursos específicosque cada uma delaspossui. No seio das classessuperiores,por exemplo,os título sugeria a importância daquela noção e sua associaçãoestreita com a de reproduçao
artistas ou os professoresdo ensino superior tendem a desenvolverum estilo de vida que, nos social.Aolançar mão da noção de estratégia,Bourdieuprocura enfrentar o problemado uso
diferentes setores, privilegia práticas relativamente pouco onerosas economicamente,mas da noção de regra, cara aos etnólogos,como crença na obediência exclus~vado~ agentes a
com um bom desempenho cultural. A prática do xadrez, de andar a pé ou das caminhadas regras, codificadasem leis ou não, e romper com uma visão racional da açao so~,ial. , . ,,
na montanha, assim como o gosto pelas culinárias "exóticas",materializam esse estilo de Aocontráriodo sentidoracionale utilitarista comumentesugeridopelotermo estrategia ,
vida bastante ascéticoque se opõe ao estilo de vida mais hedonista das fraçõeseconômicasda associadoà ideia de cálculointencional,ação conscientee planejadavoltada à maximização
burguesia,simbolizadopela equitação,pela caçaou pelo consumode champanhe.No interior de interesses,no esquemade Bourdieuessaperspectivaé praticamenteinverti~a.Isso ~or~~e
das frações de classes é possívelestabelecernumerosas distinções: diferenças de estilos de sua teoria da prática está calçada na ideia de ação social como fruto do habitu~, pnn~i~IO
vida separam, por exemplo,nos recintos esportivos ou políticos, a aristocracia e as antigas que organiza a relaçãodos agentescom o mundo social,fornecendo-lhesum s~ntidopratico.
frações da burguesia econômica,cuja orientação nacionalista é duplicadapor um gosto em Assim,embora as estratégiasreflitamobjetivamenteinteressessocialmenteonentad~s ma-
prol dos esportes de luta ou belicosos(aviação,boxe...), e as novas frações dos executivosde nutençãodo patrimônio econômico,reproduçãodo grupo familiar-, não são necessanamente
grandes empresas,mais internacionalizadase praticantes de esqui ou dos esportes de vela. objeto de reflexãocomo cálculo ou intenção estratégica pelos agentes que as levam a cabo,
Em resumo,La distinction faz um uso particularmenteelaboradoda noção de "estilode situando-se,na maioria das vezes,no nívelpré-reflexivoou infraconsciente.
vidâ'. A maneiracomoelase articulacomos conceitosde habitus e de espaçosocial,bem como Bourdieuempregacom frequênciaa metáforadojogo para esclarecersua visão das lógicas
a variedadedos domíniosabrangidospela obra opõem-se,assim,à utilizaçãomais rudimentar da ação sociale, em especial,das estratégias,comoproduto do domínioprático das formas de

ESTRATÉGIA/ESTRATÉGIAS DE REPRODUÇÃO 189


188 ESTILOS DE VIDA
condutanos diferentesespaçosdo mundo social.Esse domínio é explicadopelo habitus, que pelaexistênciade tipos específicosde recursos segl!-ndoos diferentescampos,as estratégias
pode ser entendidoao mesmotempo comosentido do jogo e comoo própriojogoincorporado de reprodução dependem progressivamentedo acessoa instituições reguladas pelo Estado,
individualmentepor cada agenteao longodo tempo. É nesseviés que a estratégia é encarada sobretudoo sistema escolar.No entanto, como demonstrado especialmenteem La noblesse
como o produto do sentido prático como sentido do jogo, que se adquire desde a infância d'État (1989),essas duas lógicasdo sistemade reproduçãopodem combinar-se,comoo atesta
ao se participar das atividades sociais. Entretanto, a capacidade de domínio do jogo está a perpetuação da lógicada família em certos espaçosregidos,em princípio,por mecanismos
distribuída de-formadesigualentre os agentes;logo, reflete-senas condiçõesde adoção das impessoais,como é o caso do espaçoescolar.
melhoresestratégias,como no caso da escolhado cônjuge,de investimentoem determinada Asformase o graucomqueosagentese osgruposutilizamas estratégiasde reproduçãovariam
forma de educaçãopara os filhos ou de opção por certa carreira. em função do volumee da estrutura do patrimônio de recursosdisponível.Isso se refletenas
Foicombase,sobretudoem estudossobrematrimônioe sucessãofamiliar- elementos-chave diferentespropensõesque têm a investirem determinadasatividadesou mercados,comonos
do sistemade reproduçãosocial em sociedadesrurais em transformação,comoa Cabilia,na estudos,em atividadeseconômicasou finançeirasou no acúmulode relaçõespessoais.Desse
Argéliae o Béarn,na França,que inicialmenteBourdieudesenvolveuo uso da noção de estra- modo,por exemplo,quantomaisricoem capitaleconômicoum agenteougrupofor,menosdepen-
tégia em oposição à de regra. Esta perspectiva em seguida seria incorporada e expandida derádo capitalculturalpara sua reprodução- logo,menorsuapropensãoa investirem diplomas
a muitas outras pesquisas endereçadas à sociedade francesa como um todo ou a espaços e escolarese a se submeterà lógicado sistemaescolarcomoformade assegurara perpetuaçãodo
grupos sociais específicos,como os intelectuais, o patronato, o espaço da literatura e o do patrimônio.Inversamente,uma menor dotaçãoem capitaleconômicotende a se refletirnum
poder. Com auxílio em especial da estatística, Bourdieu demonstrou como a reprodução maiore mais intensoinvestimentono domíniodosmecanismose recursosoferecidospelaescola.
social em parte das sociedades argelina e francesa dependia de complexas alianças ma- Em situações de ameaça de desvalorizaçãodos capitais detidos por determinados gru-
trimoniais e de escolhas de herdeiros cujas lógicas não se ajustavam às regras explícitas pos - como as revoluçõesou mudanças de regimes -, as estratégias de reconversãosoc_ial
(escritasou não) ou implícitas.A análise tratava como estratégiasas recorrênciasnas formas aparecem como saída face à impossibilidadede manutenção da posiçãono estado anterior
de ação - escolhas dos cônjuges, dos herdeiros das terras - que ganhavam sentido como de estruturação do espaço social. As reconversões de espécies de capital em processo de
respostas (socio)lógicasa outros complexosde interesses, como a melhor transmissão do desvalorização(títulos de nobreza)em outras espéciesmais rentáveisou legítimas (diplomas
patrimônio, a manutenção biológica da linhagem ou a reprodução da força de trabalho. universitários)implicam, portanto, ao mesmo tempo, uma constância na posição social do
Ao conceberas estratégiasde reproduçãosocial como sistemaformadopor um conjunto grupo e uma alteração substancial no conteúdo de suas propriedades:
de diferentesestratégias- de fecundidade,sucessorais,educativas,matrimoniais,profiláticas,
econômicas,de investimentosocial,de socipdiceia- e situá-lasno vérticede seu instrumental, Referência
Bourdieuexplicitauma concepçãoda sociologiacomo,em grandemedida,o estudoda reprodução BOURDIEU, P. Les stratégies matrimoniales dans le systeme de reproduction. Annales, v. 4-5,
social.Aperspectivado mundosociale de seusespaçosespecíficos(campos)comolugarno quais p.1105-1127,1972.
gruposde agentesdesigualmentedotadosde recursoslutampelamanutençãoou melhoramento
de suas posiçõesrelativasestá, assim, na base do empregoda noção de estratégiacomo chave
para a compreensãodo modo de reproduçãodominante em cada sociedade. 94. ESTRUTURA (sociale mental)
·······················································································································
Embora cada campo determine em maior ou menor grau as modalidades de sua re- Ana Paula Hey
produção, duas lógicasprincipais orientam as estratégias de reprodução.De um lado, uma
lógica doméstica que tende a favorecer a integração e a distinção do grupo familiar pelo A noção de estrutura acompanha o pensamento de Bourdieudesde seus estudos iniciais,
entretenimento de relações de parentesco e o acúmulo de um capital simbólicoencarnado representandoestreito diálogocom as bases da sociologiae da etnologia,mas, ainda, com os
no nome da familia e na reputação, associada primordialmente a sociedades sem Estado terrenosempíricosorigináriosde exposiçõesacercadocamponêscabilaoubearnêse dasalterações
ou em que este é pouco desenvolvido.Em tais configurações, as diferentes estratégias de em seu modo de produçãoe de reprodução(expostos,entre outros,em Esquissed'une théoríe
reprodução - com forte peso das estratégias matrimoniais, mas também das sucessoraise de la pratique e em Le senspratique).O mundo socialpassa a ser objetode entendimentoa
eco~~micas- tendem a ser coordenadas como forma de garantir a posição de todo o grupo partir da relaçãoentre suas divisõesobjetivase os esquemasde percepção,de pensamentoe de
fam1hare de preservar seu capital simbólico.De outro lado, uma lógicaregida pela vigência açãoinstituídosnas práticas.Talpreocupação,que assumefacetasrelacionadasa seustrabalhos
de instituições e mecanismos objetivos que mediatizam a distribuição de diferentes tipos específicos,é sistematizadana introduçãode seu livroLa noblessed'État,publicadoem 1989.
de recursos (títulos escolares ou econômicos,por exemplo)e os fazem valer em mercados Ao evocara relaçãoentre estrutura social/objetivae estrutura mental/cognitiva,o autortraz
impe~soais, caso das sociedades estatais em que a dominação legitima-se com base em à tona a constituiçãodos esquemasgeradoresde classificaçõese de práticasclassificatóriasque
princípios universais e abstratos. Nestes universos sociais estruturados fundamentalmente funcionamem estadopráticopor seremprodutosda incorporaçãode uma posiçãosocial.Como
em torno da distribuição do capital econômicoe do capital cultural e caracterizados ainda máquinas cognitivas,os agentesnão são simplesmenteo efeitode uma estrutura, pois estão

190 ESTRATÉGIA/ESTRATÉGIAS DE REPRODUÇÃO ESTRUTURA (social e mental) 191


engendradosna construçãode um espaçoamalgamadoresultantede percepçõese açõesanterio- A tal ponto que ele irá operá-la no nívelnão só dos sistemas de representações,mas também
res. O desafiosociológicoresideem apreenderem que medidahá o acordoentre as categoriasde das relaçõessociais. Em 1968 publica na revista Social Researchum artigo dedicadoao es-
percepçãoe de açãoempregadasnos atosindividuaise as estruturas de um espaçosocial,sendo truturalismo, no qual expõea contribuiçãoepistemológicadesta correntepara a sociologiae,
tais categoriasproduto da incorporaçãodestasestruturas. Explorara correspondênciaentre as emseguida,desenvolvea própria abordagemrelacionalda realidadesocial(BouRDIEU, 1968).
divisõesobjetivas- entre os dominantese os dominadosnos diferentescampos- e osprincípios O estruturalismo rompe com o procedimento substancialista ao interpretar os elementos
de visão e divisãoacionadospelosagentespermite abordar os processosde naturalizaçãoe de comoparte de um sistema de relações,às quais eles ficam devendosuas propriedades.e sua
submissãoa uma ordem,bem comoo encontroentre as expectativasdos agentese seussistemas significaçãosocial. O que é válido não só para as representaçõessociaismas também para as
de preferênciacomo cumplicidadea um espaçoforjadopara a realizaçãode seus interesses. relaçõesobjetivasentreos sujeitos,quenão sãoredutíveisàs interaçõesnem à intersubjetividade:
Nãoé por outrarazãoqueno posfáciode um livroanterior,cujofocoé o campouniversitário existemrelaçõesobjetivasentre agentesque nunca chegarama se encontrar,à semelhançado
afirma:"Seos agentescontribuemefetivamentepara construir as estruturas é, a cadamomento: que ocorre entre as pessoas instruídas e aquelas que não o são. O sentido que os indivíduos
nos limitesdos constrangimentosestruturais que se exercemsobreseus atos de construçãoao oriundos de diferentesclassesatribuem a suas práticas, "vulgares"ou "distintas", é mediado
mesmotempode fora,atravésdosdeterminantesassociadosà suaposiçãonas estruturasobjetivas pelo sistema das relaçõesobjetivasque os une naquilo que os diferencia.Assim, enquanto o
e, de dentro,por meiodas estruturasmentais- por exemplo,as categoriasdojuízoprofessoral-, marxismoconsideravaos sistemassimbólicoscomosuperestruturasdas relaçõeseconômicas,
que organizamsua percepçãoe sua apreciaçãodo mundo social" (HA,293). Bourdieuvai integrá-los a uma economia das práticas, em que o simbólico e o econômico
interagempara estruturar o espaçosocial,de acordo com oposiçõeshierarquizadas em fun-
ss. ESTRUTURALISMO ção da significaçãoe do valor que lhes são atribuídos em determinada configuraçãosocial,e
······················································································································· transformáveisde acordo com os princípios da homologiaestrutural.
GiseleSapiro No entanto,os limitese as contradiçõesinerentesao métodoestruturalforamsendodetecta-
dos,aos poucos,por Bourdieu,no momentoem que eletentavaaplicá-loàs práticasdos cabilas,
Formado em filosofia,Bourdieu orientou-separa a etnologiano momento em que O es- conformesua descrição_ na introduçãode Le senspratique (1980).Seuesforçopara encontrar
truturalismo se impunha comoparadigma dominante nas ciênciashumanas e sociais.Sesua uma coerênciaperfeita estavavotado, com efeito,ao fracassoporque, de acordo com sua ex-
o~ra é intensamente marcada por esseparadigma sob determinados aspectos,em particular plicaçãoem Esquissed'une théorie de la pratique (1972),os sistemassimbólicossão regidos
o mteressepelos sistemas simbólicose pela abordagem relacional,ela construiu-se também por uma coerênciaprática e não lógica.Assim,os elementosinclassificáveisque dificultama
no confronto e na crítica a um grande número de seus pressupostos. sistematizaçãodas homologiasestruturais são significativospor sua própria ambiguidade.A
Na in:rodução de seu livro,Le sens pratique (1980),Bourdieuevocao "choqueinsepara- buscade uma coerêncialógicaprocede,segundoBourdieu,de um erro intelectualistatípico,a
velmentemtelectuale emocional"que havia representadopara elea leitura de Race et histoire saber,a propensãoa transformar o "modelo"construídopelo pesquisadorna origemda ação
(1952)de ClaudeLévi-Strauss:longe de qualquer etnocentrismo,esta obra analisavaas mito- dosindivíduos,ou seja,no princípioquedeterminariaa sua prática.Talerro residena passagem
logiasdos índios americanoscomo uma linguagemde pleno direito,em um momentoem que das regularidadesobservadaspara a "regrà', concebidaora como"norma"(juridicismo)- por
Bou~~ieuestavaenvolvidototalmenteem pesquisassobrea sociedadecabilano âmagode uma exemplo,na obra de Lévi-Strausssobre Les structures élémentairesde la parenté (1948)-,
Argeliaem guerra. E, de fato, Bourdieudeve ao estruturalismo - mas também a Durkheim, oracomo"modelo"que orientainconscientementeas condutas.A críticado que,mais tarde, ele
Mausse Cassirer- a atençãoprestadaaos sistemassimbólicos,dissimuladosmuitasvezespelas definirácomoum "viésescolástico",devidoà posiçãoprivilegiadado pesquisador,que usufrui
abordagensfuncionalistas.É de maneira mais manifestaem sua contribuiçãopara a coletânea dotempo da reflexão,estána origemde uma teoriasobrea práticaque atribuiao corpoum lugar
de textos,Mélanges,em homenagema Lévi-Strauss- cujoseminário Bourdieufrequentouna centralna produção de condutasmais ou menos ajustadasàs situações.Em vez dos conceitos
Escolade AltosEstudos em CiênciasSociais,ao retornar à França -, que se observa a marca de "regras"e de "modelos",Bourdieupropõe assim os de "estratégias"e de "esquemas",cujo
do método estrutural na elaboraçãode sua obra. Intitulado "La maison kabyle ou le monde operadoré o habitus, estruturas incorporadassob a formade disposiçõesque orientama ação.
renversé"(BOURDIEU, 1970),essetexto,que expõeo sistemade oposiçõessimbólicasque serve Alémdo erro intelectualista,o estruturalismopeca,na opiniãode Bourdieu,por seu duplo
~e:str~t~ra à casa cabila,constitui um modelo do gênero.Nele,Bourdieumostra que a opo- preconceitoantigenéticoe antifuncionalista, de que é acusado por seus adversáriosexisten-
s1çaom1t1caentre masculino e feminino sustenta tal estrutura, opondo o interior ao exterior, cialistase marxistas. Por um lado, o estruturalismo se desinteressada gênesedas estruturas
a obscuridadeà luz, o úmido ao seco, a natureza à cultura. A propósitodessetexto, redigido objetivase das estruturas interiorizadaspelosagentes;por outro, eleocultaas funçõessociais,
em 1963,Bourdieudirá que eletinha sido seu "último trabalho de estruturalista feliz"(SP,22). econômicase políticas que os sistemas simbólicosdesempenham na reprodução da ordem
No,entanto, para além do interesse pelos sistemas simbólicos,a abordagemrelacional social. Eis a razão pela qual, a partir de meados da década de 1960, Bourdieu se distancia
que o estruturalismo opõe tanto ao essencialismoque naturaliza a ordem social quanto ao do estruturalismo. Em novembro de 1966, ele participa da edição especial que Les Temps
funcionalismoque reduz o sentido à função irá marcar vigorosamentea obra de Bourdieu. Modernes,a revistade Sartre, dedicaaos "problemasdo estruturalismo",abordandoquestões
192 ESTRUTURALISMO
ESTRUTURALISMO 193
como a relaçãoentre estruturas e mudança ou, ainda, estruturas e práxis. Bourdieupublica
ent~o,seu artigo "Champlittéraire et projet créateur",no qual o coordenadorda edição,Jea~
Pomllon, vê a prova de que "a práxis e a causalidade estrutural não são antinômicas, mas
co~plementarese vinculadasinextricavelmente"(BoURDIEU, 1966,p. 789),articulandoas pro-
pn~dadesdos_elementos situadosem um campoestruturadocompropriedadesde posição.Esse
artigo,posteriormenterenegadopor Bourdieuem decorrênciado fato de estar ainda marcado
demaispelointeracionismosimbólico,lança as primeirasbasesda teoriados camposenquanto
e~paços~e posiçõesdefinidaspor relaçõesde afinidadee de oposição,teoria que Bourdieuvai
s1stemat1zarpor meio da combinaçãoentre método estrutural e análise topológica.Assim,os
campos se caracterizampela oposiçãoentre os indivíduosque ocupam posiçõesdominantes .
e aquelesque ocupam posiçõesdominadas. Na mesma época, ele começaa aplicar o método
estrutur~l a tod~ o ~sp~çosocialpara pensar a diferenciaçãodas práticas e das representações
em funçao da d1stnbmçãodesigual das diferentesespéciesde capital (econômico,cultural,
social),procedimentoque culminará na elaboraçãode La distinction (1979).
97. FAMÍLIA
·······················································································································
Referências Françoisde Singly
BOURDIEU, P.Champintellectuelet projetcréateur.Les TempsModernes,n. 246,p. 895-906,nov.1966.
BOURDIEU,P. Structuralism and TheoryofSociologicalKnowledge.SocialResearch,v. XXXV,n. 4,
Na coleçãoLe Sens Commun (EditoraMinuit), dirigidapor Pierre Bourdieu,os índices
p. 681-706,1968. temáticoseram objeto de um trabalho muito cuidadoso.Ora, no que se refere aos livros do
~OURDIEU,P. La maison kabyle ou le monde renversé. ln: POUILLON,J.; MARANDA,P. (Org.).
sociólogo- nem em Les héritiers(1964),nem em La reproduction(1970)-, o termo "família"
Echangeset communications. Mélanges offerts à Cl. Lévi-Strauss pour son 601me anniversaire. figuranos respectivosüidices.Tal ocorrênciapode parecer algo estranho, a posteriori,uma
Paris-LaHaye:Mouton, 1970.p. 739-758. vez que nessas duas obras é analisada a transmissão do capital cultural no seio da família
BOURDIEU,P.Esquissed'une théorie de la pratique, précédé de Traisétudes d'ethnologiekabyle
entre pais e filhos. Se nos permitimos fazer uma leitura sintomática, apreciada por Louis
- Le sens de l'honneur; La maison ou le monde renversé;La parenté comme représentation et comme
Althusser,temos realmente o direito de nos questionar sobre essa ausência.Nas décadas de
volonté.Genéve:Droz, 1972.[Novaed. aum. Paris: Seuil, 2000]. 1960-1970,a utilização desse termo era entendida na França - pelo menos, para a esquerda
:ÉVI-STRAUSS, C.Lesstructuresélémentairesde laparenté(1948).Paris:Éditionsde l'Écoledes Hautes
- como algo que fortalecia essa instituição e indicava uma posição "familiarista" de quem
Etudes en SciencesSociales,2002. viessea servir-sede tal palavra. Bourdieu,à semelhançade numerosossociólogosfranceses,
LÉVI-STRAUSS, C. Race et histoire.Paris: 1952.[Novaed. Paris: Gallimard, 2007]. preferiao termo "classes".
LES TEMPS MODERNES. Paris, n. 246, nov. 1966. Textos de Jean Pouillon, Marc Barbut, A. J.
Peloque sabemos,foinecessárioesperarpelonúmero 100da revistaARSS (1993)para que
Greimas,Maurice Godelier,Pierre Bourdieu, Pier!e Macherey,JacquesEhrmann. Bourdieuutilizasseessapalavrano título de um de seusartigos:"À proposde la familiecomme
catégorieréalisée".Tudo se passa como se a relação distante de Bourdieu com a categoria
"família"tivessepor função evitar seu fortalecimento,como se, ao contornar essa palavra,
96. ETHOS ele tentasse não perpetuar a ordem social desigual, cuja criação conta com a contribuição
······················································································································· dessa instituição. À semelhança do que ocorre com qualquer luta simbólica,o evitamento
Ver:Habitus constitui, por si só, um fator a ser considerado.Algumas décadas mais tarde verifica-sea
. reviravoltada situaçãoideológica,já que se trata, pelo contrário,de forneceruma existênciaa
"famíliassem nome" (BouRDIEU, 1996):desde éntão, o uso do termo torna-se progressivo.E
no séculoXXI,nos damos conta de que a expressão"famíliahomoparental"constitui,de fato,
um reconhecimentosocial ao conectar essa maneira de organizar a vida privada à familia
"de papel passado".Esselongo evitamentonão impede Bourdieude propor,implicitamente,
desde o começode sua obra, uma sociologiada família.
Para Bourdieu,a visão da sociedade,de todas as sociedades,é centradanas desigualdades
e na maneira como elasse produzem e se reproduzem.Nessequadro, a família ocupa, apesar
da quase ausênciado termo, uma posiçãocentral. DesdeLes héritierse La reproduction,a
194 ETHOS
FAMILIA 195
função da família está posta: a de contribuir para a reproduçãodas relaçõessociais, em dois seudestino provávelde herdeiros, alteram-se de acordo com o modo de produção. Segundo
aspectos:não somente pela transmissão de uma herança cultural, mais ou menos próxima Bourdieu,as mudanças na família derivam, antes de mais nada, das alteraçõesno modo de
da cultura escolarlegítima,mas também pela naturalização que ela opera sob o disfarcedos produçãoe de reprodução da sociedade.
dons que dissimula o trabalho social da herança. No entanto, foi necessária uma segunda No artigo "Stratégiesde reproduction et modes de domination" (1994),Bourdieucoloca
etapa, com a publicaçãode dois artigos - "Les stratégies matrimoniales dans le systemede uma questão, pouco presente·nos outros textos escritos por ele: "Quem é, afinal de contas,
reproduction"(1972)e "Avenirde classeet causalitédu probable"(1974)-, para que o conceito 0 'sujeito' das estratégias de reprodução?"(p. 11).Com toda a clareza, ele responde que "o
central da sociologiada família em Bourdieu fosse apresentado:o das estratégias de repro- 'sujeito'da maior parte das estratégiasde reproduçãoé a família, que age como uma espécie
dução e, de forma mais precisa, o de "sistema das estratégias de reprodução".Trata-se "de de sujeitocoletivoe não como um simplesagregadode indivíduos" (BouRDIEU, 1994).Essa
sequênciasobjetivamenteordenadas e orientadas de práticas que todo grupo deveproduzir tomada de posiçãoapoia-seno pressupostosegundo o qual a família está unida, integrada; e
para reproduzir-se enquanto grupo" (BouRDIEU,1974,p. 32). O termo "objetivamente"é as "forçasde fusão"levam a melhor em relaçãoàs "forçasde fissão".É possívelse questionar,
importante porque essaspráticas "desempenham sempre, em parte, funções de reprodução: no entanto, sobre a pertinência de tal pressuposto quando se conhece a taxa de separação e
quaisquer que sejam as funções que seus autores ou o grupo em conjuntolhes atribuam ofi- de divórciodos casais. Para Bourdieuisso significa,sem dúvida, que "as transformaçõesdas
cialmente,elassão objetivamenteorientadaspara a conservaçãoou o aumentodo patrimônio estratégiasde reprodução tendem a reduzir a necessidadeda unidade doméstica''.Se isso é
e, correlativamente,para a manutençãoou melhoria da posiçãodo grupo dentro da estrutura verdade,seria necessário,no mínimo, modificar o tipo de enunciadojá que se torna inexato
social" (BOURDIEU, 1974,p. 30). considerar"a família" (enquantogrupo homogêneo)como"sujeito".Pode-setambém pensar
Bourdieuestabelecea distinção entre as estratégias "negativasde reprodução que visam que outros elementossociais - notadamente o processo de individualização(SINGLY, 2010)
evitaro esfacelamentodo patrimônio",incluindoas estratégiasde fecundidade,e as estratégias - venham a produzir perturbações nas estratégias de reprodução familiar e, portanto, que
positivas,tais como as estratégias sucessoriais,as estratégias educativase, nomeadamente, há certa disjunção entre as famílias e os imperativos da reprodução.
as escolares,as estratégiasprofiláticasdestinadas a proteger o capital "saúde",as estratégias
propriamenteeconômicas,as estratégiasde investimentosocialpara acumular capitalsocial, Referências
as estratégiasmatrimoniais e, por fim, as estratégiasideológicaspara tornar legítimaa posse BOURDIEU,P. Les stratégies de reproduction dans le systemede reproduction. Annales ESC,v. 27,
do capital. Essas estratégias formam um sistema, "cada nova estratégia encontra seu ponto n.4-5,p. 1105-1125,1972.
de partida e seus limites no produto das estratégias anteriores" (BOURDIEU, 1974,p. 34).É BOURDIEU,P. Avenir de classe et causalité du probable. Revue Françaisede Sociologie,v. XV,n. 1,
possívelapresentar,como exemplode articulação das estratégias em conjunto,a escolhado p. 3-42, 1974.
domicílio:ela determina tanto escolha do estabelecimentode ensino para os filhos como a BOURDIEU,P.;SAINTMARTIN,M. de. Le patronat. ARSS, p. 3-83, 1978.
configuraçãodo capital socialposto à disposiçãodeles. BOURDIEU,P. À propos de la famille comme catégorieréalisée.ARSS, v. 100,p. 32-36,1993.
Em um terceiromomento,com seu estudosobre"Lepatronat" (1978),Bourdieuintroduziu BOURDIEU,P. Stratégies de reproduction et modes de domination. ARSS, v'.105,p. 3-12, 1994.
um elementohistórico em sua análise das estratégias de reprodução,o que ele designacomo BOURDIEU,P. Des familles sans nom. ARSS, v. 113,p. 3-5, 1996.
"o modo de produção com dominante estolar". Nas sociedadestradicionais,o capital de refe- SINGLY, F. de. Sociologiede lafamille contemporaine.4. ed. Paris: A. Colin, 2010.
rênciapara ocupar uma posiçãoe justificá-laé o capital econômico(emparticular, a terra ou
um comércio);nas sociedadesmodernas, o capital de referênciatorna-se progressivamenteo
98. FENOMENOLOGIA
capitalescolar.Nomodode reproduçãocomcomponenteeconômicae comdominantefamiliar, .....
·................................................................................................................. .
o poder da família é mais robusto porque ela "tem o domínio das escolhas sucessorais,ou JoséLuís Moreno Pestana
seja, o poder de designar [...] aqueles que estão destinados a reproduzir a classe com todas
as suas propriedades ou a serem excluídosda classe" (BoURDIEU, 1978,p. 23).No modo de É possívelrastrear em três planos a vinculação de Bourdieu com a fenomenologia.Por
reproduçãocom componenteescolar,predomina uma lógicaestatística:"Diferentementeda um lado, (1)Bourdieutoma partido nos debates fenomenológicosque conheceudurante seu
transmissão direta dos direitos de propriedade entre o detentor e o herdeiro designadopelo período de formação e, desse modo, formula sua própria filosofia.Por outro, (2) Bourdieu
próprio detentor,a transmissão operadapor intermédio da escolaapoia-sena agregaçãoesta- utiliza sua formação fenomenológicapara se distanciar das filosofiasdo mundo social de
tística das açõesisoladas"e "garante à classe,em seu conjunto,propriedadesque ela recusa a seus concorrentes no campo da sociologia.Por último, (3) Bourdieu utiliza as ferramentas
este ou aquelede seus elementosconsideradosseparadamente"(BouRDIEU, 1978,p. 25).Sobo da fenomenologiapara produzir problemasempíricosque determinam com precisãonosso
modo,de produção com dominante escolar,a família perde objetivamentepoder, mesmo que conhecimentodo mundo social.
ela procure compensar essa perda mediante a implementaçãodas estratégiasde reprodução 1) Bourdieu escolheu Jean-Paul Sartre como exemplo de umà filosofiasubjetivista do
escolar.As relaçõesno interior da família, a hierarquização dos/das filhos/asde acordo com mundosocial.Sartre - segundoBourdieu- converteos papéissociaisem resultadosdo projeto

196 FAMILIA FENOMENOLOGIA 197


pessoal dos sujeitos.Diante dele, Bourdieu considera que os postos que os agentes ocupam, que em outros pode se distanciar - ou segundo a posição no espaço social que ocupa - uma
com uma trajetória específica,são o resultado de uma história coletivapersonificadatanto nas pessoaque quer modificarsua posiçãosocialtende a revisar os "primeirosmovimentos"de seu
funções sociais como nos corpos. A união entre a história feita corpo e a história feita coisa habitus com muito mais precisão que aquela que se sente intensamente alegre ou fatalmente
só em raríssimas ocasiõesse converte em objeto de realização intelectual. Semelhantecrítica destinada a um tipo de vida (MP, 184-193).
a Sartre mostra como Bourdieu critica certas versões da fenomenologiacom ferramentas _
sociologicamenteelaboradas- oriundas de outras modificaçõesda mesma. Em um texto_ no Referências
qual a crítica mordaz contra Sartre acompanha uma severa revisão, entre outras, da filosofia BOURDIEU,P. Le mort saisit !evif: les relations entre l'histoire réifiéeet l'histoire incorporée.ARSS,
de Althusser e Foucault - o próprio Bourdieu declara que sua concepçãodo vínculo íntimo n. 32-33, 1980.
entre o agentee o mundo é uma declinaçãosociológicadaquilo "que o Heideggerdos últimos HERAN,F. La seconde nature de l'habitus: tradition philosophiqueet sens commun dans !e langage
~scritose Merleau-Ponty(especialmenteem Le visible et l'invisible) tentaram exprimir na sociologique.Revue Française de Sociologie, v. XXVIII,1987.
lmguagemda ontologia,quer dizer,um aquém 'selvagem'ou 'bárbaro' - eu diria simplesmente
prático - da relaçãointencionalcom o objeto"(BouRDIEU, 1980,p. 7).
99. FILOSOFIA
, ~) Pode-se ve,r- e passamos à segunda dimensão - que Bourdieu utiliza suas compe- ·······················································································································
tencias como filosofo para pensar a filosofia implícita no trabalho sociológico. Assim, e Louis Pinto
continuando com o problema anterior, ele considera que todo juízo de um agente constitui
uma liga variável entre juízo reflexivoe tendências pré-reflexivas.Um indivíduo pode, por Um dos mais importantes pressupostos da prática de Bourdieu enquanto sociólogo é
exemplo,conscienciosamente,decidir como se vestir para parecer mais elegante.De tal pro- cique poderia ser denominado como um racionalismo não intelectualista que consiste em
cesso se deduz que esse sujeito atuou reflexivamentee, portanto, como um agente racional? defender,por um lado, que a sociologiaé uma disciplina científicaportadora de pretensões de
Não. Cert~mente o sujeito não se veste de uma forma automática: para os que são incapazes · objetivaçãomuito ambiciosas,não recuando diante da conquista de novosobjetos,amplos ou
de detectar as coaçõessociais que não se expressam de modo mecanicista, isso testemunha minúsculos, nobres ou humildes; e, por outro, que essa ciência deve ter como objeto o senso
sua liberdade e sua reflexividade.Não obstante, na base da atividade eletiva se encontram prático, do qual ela difere, senão radicalmente, pelo menos, de forma bastante sensível.Os
juízos cujas "pregações"em absoluto se revisam e que permitem e condicionam a atividade principaisclássicosde referênciade Bourdieusão, em relaçãoà correntefacionalista, Descar-
subjetiva: em nosso exemplo,o juízo de que a vestimenta é algo que serve para aparentar e tes, Spinoza,Leibniz e Kant; quanto à filosofiae à história das ciências,ele se refere a Gaston
não para estar confortável. Esse modo de tratar o problema da vinculação entre liberdade Bachelarde GeorgesCanguilhem. Enfim,seus pensadoresda prática são Pascal,Hume, Marx
e ~eterminação, atividade e passividade, procede de uma tradição fenomenológicaque tem (ojovem),Husserl, Heidegger,Merleau-Ponty,Wittgenstein, Austin.
ongem em Husserl. Para ela, os juízos que conduzem nossa atividade têm diferentes graus Racionalista na contracorrente, Bourdieu nunca cedeu ao jogo perigoso do humor filo-
de formalização:temos alguns completamente bem definidos e explícitos,outros se alojam sóficopós-moderno, da French theory, da desconstrução que tinha como alvo os absolutos
obscuramente em nós e definem a realidade que nos desmente com uma distorção peculiar. do pensamento "ocidental", quais sejam, a razão, a verdade e a ciência. Evitou tal postura,
Ambos os tipos de juízos se comunicam entre si e não é fácildiscernir quanto à atividade coti- em primeiro lugar, devido a seu ethos intelectual que o privava de qualquer crença na illusio
diana do agente deve a um e a outro (HERAN,1987,p. 407-408).Nela, as tendências do hábito acadêmica,incluindo suas variantes radicais e, em segundo lugar,por convicçãoprogressista,
e as decisões criativas se superpõem de modo instável. A bagagemfilosóficade Bourdieu lhe na medida em que a defesa do progresso social estava, para não dizer arruinada, pelo me-
permite, desse modo, complicar a diferença filosóficaentre liberdade e necessidadeque faz o nos, seriamente enfraquecida ao prescindir dos apoios da razão e do universal. As ciências
que quer - ocasionalmentede maneira despercebida- em muitos debatesdas ciênciassociais. históricas não são em si relativistas nem irracionalistas e, apesar de "derrubarem a ilusão da
3) Essa complicação teórica ajuda Bourdieu a interrogar melhor os casos de figura que transparênciade uma razão trans-históricae transpessoal",elastêm o insubstituívelmérito de
se apresentam no trabalho empírico. Dado que os agentes têm graus variáveis de distância "permitir o prolongar e radicalizar a intenção crítica do racionalismokantiano" (MP,143).O
~ de absorção por suas labutas, o habitus se apresenta com diferentes graus de integração racionalismonunca é denunciado, mas somente repensado em função do acervo de conheci-
mterna, resultado de uma dialética complexa com a posição social que ocupa. Portanto, a mentos de uma sociologiaque é efetivamentesua ilustração e que incentiva a envolver-sena
vinculação entre o habitus e seu lugar no mundo pode ser: a) de co-pertença absoluta; b) de via original de um "historicismo racionalista" e, até mesmo, de uma "Realpolitik da razão",
decalage entre umas disposições,resultado de uma trajetória social e um mundo que, ao se preocupada em inscrever concretamente na vida cívica as normas do debate democrático
transformar, já não as acolhe; c) de suspensão momentânea da identificaçãoe, portanto, de e do intercâmbio crítico. Bourdieu insere-se na linhagem do "racionalismo aplicado" de
abertl/ra de certo grau de indeterminação em uma atividade que até então funcionava sem Bachelard:o sociólogodispõe, necessariamente, de "pressupostosteóricos" e sua tarefa, em
questionamento; d) de inserção diferente segundo os domínios de atividade nos quais se de- vez de ignorá-los, consiste em explicitá-losno decorrer do trabalho de construção do objeto,
senvolveo agente - em alguns pode estar vinculado absolutamente com seu papel, enquanto em retificá-lose envolvê-losem uma prática concreta de pesquisa. ·

198 FENOMENOLOGIA FILOSOFIA 199


"Decididiscutir certas questões que teria preferido deixar por conta da filosofiaporque Sea ciênciaé uma obra humana - e, nessa qualidade, frágil e falível-, comoserá possível
me convencide que ela mesma, aliás tão questionadora,não as abordava"(MP,9). Portanto, · o conhecimentoda verdade?Como escapar à alternativa do realismo metafísicoe do relati-
não se deve esperar algo cornouma filosofiade Bourdieu,a não ser uma "filosofianegativa", vismo?O campo é gerador de skhole, condiçãosocial da aparição de uma postura teórica,
semelhanteao procedimentocrítico-terapêuticode estilo wittgensteiniano em que o impor- "forma de vida" dedicada inteiramente ao conhecimentodesinteressado.O campo, criação
tante é livrar-se dos "feitiçosda linguagem"e clarificar os usos. histórica,oferece"o princípio da independênciarelativa da razão perante a história, da qual
A contribuiçãodo sociólogopara a filosofianegativa,de que fala Bourdieu,é, em primei- . é o produto" (MP,130-131),ou seja, a soluçãopara o problematradicional das relaçõesentre
ro lugar, a sociologiada filosofiaque se interessa pelos fundamentos sociais dos conceitos a história e a verdade, entre o fato e o valor, entre a atividade de pesquisa e a objetividade.
e problemas.Pelo fato de questionar o efeitode autonomia e de confinamentopeculiar a tal Bourdieu serve-se, de bom grado, de oximoros: "(...] as ciências sociais, assumindo sem
universoerudito, essa sociologianão é certamentepara ele uma "merapreliminar cujoúnico subterfúgios a historicidade radical da razão e encharcadas pela prova da historicização
propósitoseriaintroduzir a urna críticapropriamentefilosóficamais radical e mais específica" permanente,poderiam tornar-se o sustentáculomais seguro de um racionalismohistoricista
(MP,41): sua convicçãoé a "de que não existe atividade mais filosófica[...] do que a análise ou de um historicismoracionalista" (MP,145).
da lógicaespecíficado campo filosófico,das disposiçõese crenças socialmentereconhecidas Esseracionalismoradicalnada cedeaovalorintrínsecodosbens produzidosem um campo,
como 'filosóficas'que aí se engendram e se realizam" (MP,40). mas defende que os locais de produção têm um estatuto fundamentalmente histórico. "Se
Em vez de desqualificara filosofia,o objetivode Bourdieuconsisteapenas em recusar-lhe existeuma verdade, é o fato de a verdadeconstituir um móvelde lutas" (MP,140).A verdade
o estatuto, frequentementereivindicado,de exceçãoe, portanto, em favorecersua libertação é engendrada na história por uma luta, por um confronto que tem urna lógicavirtuosa: ao
em relaçãoà contingênciade urna história desconhecidae a seu inconscienteacadêmico.Ao lutarem para se impor no campo, os agentestravam seu combate apenas em conformidade
aristocratismo espontâneo do filósofo,Bourdieu opõe o caráter fundamentalmente demo- com o nomos próprio do campo, esforçando-separa que os pares çmconcorrentesvenham
crático da sociologiaque se ocupa de pessoas e coisas ordinárias com meios desprovidosde a reconhecerseus conceitose argumentos cornodotados de valor.
prestígio e de mistério. Três ternas estão estreitamente ligados:o senso prático, a crítica da
razão escolásticae um racionalismohistoricista. Referência
Em Pascal, sob a égide do qual foi escrito Méditations pascaliennes (1997), Bourdieu PASCAL,B. Pensées.Paris: GarniercFlammarion, 1976.
encontrou argumentos sobre o poder simbólico e sobre o "cancelamento da ambição do
fundamento". Pascal mostra, contra os poderosos, a força dos costumes e das cerimônias;
100. FOTOGRAFIA
contra os cientistas, a importância do pensamento comum e da prática. Finalmente, em
uma reviravoltado pró ao contra, mostra a multiplicidadedos pontos de vista: "O povo tem
Ver:Art moyen (Un): essai sur les usages sociaux de la photographie
opiniões muito sadias: por exemplo [...] de ter escolhido o divertimento e a caça em lugar
da poesia. Os semieruditos zombam e triunfam em mostrar com isso a loucura do mundo;
mas, por uma razão de que não se dão conta, o povo tem razão" (PASCAL, 1976,p. 141-142). 101. FOUCAULT,
MICHEL(1926-1984)
A ciência enquanto ciência é construída,.sobretudo contra os sernieruditos e não contra o MarcosCésarAlvarez
povo, cujas "opiniõessadias" encerram alguma razão que, não sendo ciência,tem a ver com
uma ciêncialiberada de seu menosprezopara com os profanos. Diversoscomentadoresjá indicaramas afinidadesexistentesentreospercursosintelectuaisde
Aquelesque têm a profissãoe a ambição de pensar o mundo, entre os quais os filósofos, PierreBourdieue deMichelFoucault.Tantoa perspectivahistórico-filosófica,adotadaporFoucault,
consideram sua atividade como uma evidênciaque não exigenenhuma reflexãoparticular quantoa sociologiada cultura, desenvolvidapor Bourdieu,buscaramromper com as tentações
(bastauma evocaçãoritual ao "estalo"do filósofo,segundoPlatão).Comoo mundolhes aparece fundacionistasda tradiçãofilosófica,diversificaros objetossociaisde investigaçãoconsiderados
espontaneamentecomo objetode pensamento,elesomitem de levar em consideraçãoas con- legítimose transferirquestõesda filosofiaparao planoda investigação
empírica(PINTO, 2000,p. 31).
diçõessociaisde possibilidaderelativamenteà atividadede pensar que estálongede ser dada a A constelaçãointelectual em que se moviam também era próxima. Em "Fieldwork in
todos e a qualquermomento.A relaçãoteóricacom o mundo não passa de uma possibilidade Philosophy", emboraBourdieuafirmasseque estavaseparadode Foucaultem termos geracio-
socialmentedeterminada que deve ser colocadaem contraste com a relaçãoprática marcada nais, tendo inclusivesido seu aluno, admitia, em contrapartida,que compartilhavade muitas
pela pressãodas coisas,pela urgência,pela implicaçãodo agenteno que elevê e faz.A consta- dasmesmasdisposiçõesintelectuaisdo filósofoquehaviaestudadoa loucurae as prisões(CDp).
tação dessedualismoredunda em um reforçoda vigilânciacrítica:o teórico- que é o status, A referênciaao estruturalismo,ainda segundoBourdieu,seriaimportantepara ambos,apesar
propri~mentefalando, do sociólogo- deve se esforçarem controlar os efeitosda postura de das distânciastomadasposteriormente.E os pontosde referênciaao mesmotempointelectuais
conhecimentosobreo objetode conhecimentoou, mais simplesmente,em reconhecerque em e pessoais- quer em termos de atração,quer em termos de repulsão- também seriam conver-
relaçãoao mundo o ponto de vista dos agentesnão é o do observadordesinteressado. gentes,nas figurasde GeorgesCanguilhem,dé Lévi-Strauss,de LouisAlthusser,entre outros.

200 FILOSOFIA
FOUCAULT, MICHEL (1926-1984) 201
Mesmoseparadospela origemsocial,mas compartilhandoexperiênciascomuns de certas Ainda no Esboço de auto-análise, Bourdieu se detém rapidamente na maneira como
geraçõesde intelectuais franceses, chegaram inclusivea ter grande proximidade pessoal e se situava em relação a MichelFoucault,mas novamenteexpressaaí uma relação ambígua,
política (EAAp). Enfim,Foucaulte Bourdieupoderiam ter encontradomuitos pontos de con- ao enfatizar tanto as proximidades quanto as diferenças que aproximariam os dois estilos
vergênciaem suas reflexões.No entanto,nem o diálogoexplícito,nem a cooperaçãointelectual intelectuais(EAAp,104-106).Afirma,no entanto,quebuscava,sobretudo,evitaras "aparentes
sistemáticaentre os dois realmenteefetivou-se.Essanão convergênciatalvezse expliquemais, semelhanças"e enfatiza, em êontrapartida, as "diferençasprofundas nas disposiçõese nas
no que diz respeitoà Foucault,pelo seu distanciamento em relaçãoà reflexãosociológicaem posiçõesrespectivas"(EAAp,106),ao indicarque,apesarde suas experiênciasd: engaja.~ento,
geral, ao passo que, em Bourdieu,de forma simétrica, se expliquepor sua postura crítica em Foucaultsempreteria permanecidorefémdas expectativasrelacionadasao eruditotradic10nal,
relaçãoà tradição filosóficaentão praticada na França no pós-guerra. ao passo que Bourdieuse autoatribui, comotraço intelectualfundamental, a ruptura com as
É conhecidaa reticênciade Foucaultem relaçãoà sociologia.Embora sua grande quanti- expectativase as exigênciasdo mundo intelectualparisiense. .
dade de livros, cursos e entrevistas tenham descortinado inúmeros novos temas e questões Seem Esboço de auto-análise Bourdieuestá muito preocupadoem demarcar a diferença
que tiveram significativaressonâncianas assim chamadas ciênciassociais - ao abrir novas de seu habitus intelectual em relação à postura consideradaainda por demais filosóficade
perspectivaspara os estudos de gêneroe sexualidade,acercadas relaçõesentre corpo, saúdee Foucault,em outrospequenostextos,em queprestahomenagema Foucault,apósa morte deste,
doença,sobre crime,desvioe punição,entre muitos outros temas -, o próprio Foucaultnunca outras possibilidadesde entrecruzamento dos dois percursos intelectuais aparecem ~~sc~r-
buscouum enfrentamentosistemáticodas investigaçõessociológicas.Em diversosmomentos, tinadas, pois Bourdieuexplicitamuito mais o que haveriade comum entre suas ex~enen~ia~
Foucaultmanifestou mesmo alguns déficitsem reláçãoà compreensãode autores da própria de pensamento. Em texto redigido poucosmeses após a morte de Foucault,Bourd:euatnbm
tradição sociológica,como no caso de Weber,lido de forma um tanto quanto inapropriada, ao filósofofrancês uma série de disposiçõesintelectuais que na verdade compartilhavam:o
ainda nos anos 1970,COIJlO admite um comentadorpróximo, como Paul Veyne(2008,p. 56), anticonformismoem relação a todas as categorizaçõese classificaçõesintelectuais, a busca
e só posteriormente visto como uma espéciede autor em paralelo com seu próprio projeto, por situar em termos materialistas as formas de conhecimento,a distância em rela?~º ~o
assim como os autores da assim chamada Escola de Frankfurt (FoucAULT, 2001). oportunismo político de certos intelectuais,o empenho em revelar o impensado da ciencia,
A recepção dos livros de Foucault pela sociologia francesa foi, igualmente, bastante o rompimento com o estilo tradicional de segmentar ciência e política, próprio do homo
ambígua. Se uma sociologiamais operatória irá empregá-loscada vez com mais frequência, academicus, etc. (BouRDIEU, 2013). \
por exemplo,para uma crítica da autoridade e das instituições e também em lutas setoriais, Em outro texto, apresentadonum congressona França,anos depoisda morte de F~ucaul:,
voltadasao problemadas prisões,dos serviçosde saúde, das normas sexuais,etc.,haveráuma Bourdieuse preocupa em desmontar as armadilhas que se interporiam a uma recepça~~ais
recepçãolimitada e por vezeshostil dos estudos de Foucault por parte da sociologiauniver- pertinente da obra de Foucault. Contra a fetichizaçãodo pensamento do a~~or,~ soci~l~go
sitária exemplificadapor algumas figuras emblemáticas,como Alain Touraine,Raymond francêsdefendeque seria necessáriosubmeteras_citaçõesrotineiras a uma criticasistem_atica,
Boudone MichelCrozier(BERT, 2006). questionar, como fez Foucault em diversas ocasiões,o estatuto mesmo da -~gura s?cial d~
Bourdieunão deixoude expressartal relaçãoambíguada sociologiafrancesacoma postura autor;afinal,o que seria "fazerfalar um autor"?(BouRDIEU, 1996).Para o soc10logo,so respei-
intelectual de Foucault,embora aspectos dessa postura possam ser explicadosigualmente a taríamos de fato um pensamento ao desfetichizarmosa relaçãocom os próprios pensadores,
partir de aspectosespecíficosdo próprio percurso intelectualdo sociólogofrancês,sobretudo ao evitarmos o comentárioritualístico e restituirmos o campo de produçãoe de recepçãodas
seu deslocamentoda formaçãofilosóficapara a pesquisa sociológica,sua busca por libertar ideias em jogo. De modo ainda mais interessante,Bourdieu_lançaa hipótese de que um dos
as ciênciassociais do imperialismo da filosofia(EAAp). desafios,em termos de recepção das ideias no ambienteuniversitário,consistiria e~ que ~s
Ao contrário de Foucault, que não se deteve nos trabalhos de Bourdieu, em diversas contemporâneosse leem pouco, que a recepçãode novas ideias pelos colegas,~elosJ~rnais,
passagens de seus escritos, o sociólogofrancês ensaia críticas aos trabalhos de seu colega pelosestudantes, ocorreria,sobretudopor meio de rumores intelectuais,Pº,~meiod:, c,~~u!a-
filósofo.Tais críticas, no entanto, são, com frequência,circunscritas a um momento da tra- ção de slogans, palavras-chaveou mesmo apenas pelostítulos dos livros - loucura , vigiar
jetória do pensamento de Foucault, como no exemplode Meditações pascalianas (2001), e punir", "panoptismo","saber-poder",etc. -, o que levaria ao empobrecime~todo debate
em que o Foucaultde As palavras e as coisas (FoucAULT, 1981)é visto por Bourdieucomo intelectual.Outro desafio,para a compreensãcfdeum autor entre seus pares, amda segundo
um representanteda postura estruturalista, que teria "o imenso mérito de se empenhar em Bourdieu,seria o de que uma obra está acessívelem sua totalidade apenaspostumamente;os
captar a coerênciados sistemassimbólicos,consideradoscomotais",mas "estaria condenada contemporâneos,em contrapartida, só teriam acessoa uma parte ínfima ~ostraba~os de um
a ignorar a dimensãoativa da produçãosimbólica"(MP,214).Ou no Esboço de auto-análise, autor, ao geralmenteignorar o conjunto das entrevistas, dos textos publicadosna _imprensa,
em que afirma que para "o Foucault da teoria pós-68 do poder, a fronteira com as ciências da correspondência privada, etc. Bourdieu abre, assim, a interessante perspectiva de _que
sociais, em especial,a sociologia,permanece socialmenteintransponível" (EAAp,49), sem, tanto o seu percurso intelectual quanto o de Foucaultpoderiam ser melhor compr~e~didos
no entanto, uma preocupaçãomaior,por parte do sociólogofrancês, em acompanhara lógica a partir de um trabalho meticulosofeitopela posteridade,por meio do qual as proxim~d.ades
dos deslocamentosde Foucault,da arqueologiapara a genealogiae a ética (DAVIDSON, 1988). e distâncias entre os diferentesestilosintelectuaispudessemser elucidadas.Tal exerc1ciode

202 F0UCAULT, MICHEL (1926-7984) F0UCAULT, MJCHEL (1926-1984) 203


pe~quisa,queimplicariaem reconstruiroscontextosdeproduçãoe de circulaçãodasideiasdesses
d~1spensadores-chaveda contemporaneidade,pode abrir espaçopara novasleiturasparalelas
nao voltadasp~a ~ comentárioestéril- quer a favor,quer contraum ou outro autor-, mas par~
o empregodas c~txasde ferramentas"legadaspor essesintelectuais,tendo em vista O efetivo
avançodo conheCimento no âmbitodas ciênciassociais.

Referências
BtESRT,
'.:F:Réserve,juxtapositionet adhésion:la placede MichelFoucaultdans la sociologie.Sociologie
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DAVIDSON,A. I. Arqueologia,genealogia, ética. ln: HOY,D. C. (Comp.).Foucault. Buenos Aires· 102. GOFFMAN, ERVING(1922-1982)
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Yves Winkin
FOUCAULT, M.Aspalavrase ascoisas:uma arqueologia
dasciênciashumanas(1966).2. ed. SãoPaulo:
Martins Fontes, 1981.
Graças a Bourdieu é que as principais obras de Erving Goffmanforam traduzidas para
FOUCAULT, M. Qu'est-ceque IesLurnieres.ln:__ . Dits et écritsII, 1976-1988.Paris: Gallimard
o francês, entre 1968 e 1991,na coleçãoLe Sens Commun da LesÉditions de Minuit. Foram
2001.p. 1498-1507. '
publicadosexatamenteseislivros:Asiles,em 1968;La présentation de sai e Les relationsen
PINTO,L. PierreBourdieu e a teoria do mundo social. Rio de Janeiro: Ed. da FGV,2000.
public (tomos 1 e 2 de La mise en scene de.la vie quotidienne),em 1973;Les rites d'inte-
VEYNE,P. Foucault:sa pensée, sa personne. Paris: Albin Michel,2008.
raction,em 1974;Stigmate,em 1975;Façonsdeparler,em 1987;Les cadresde l'expérience,
em 1991.Além disso,Pierre Bourdieupublicouvários textos de Goffmanem ARSS:extratos
de GenderAdvertisements (n. 14, 1977);um capítulode sua tese de doutorado(n, 100, 1993);
e um comentário-sínteseque elaboreide "ToeArrangementBetweenthe Sexes"(n. 83, 1990).
Bourdieuiria, igualmente,acompanhar de perto a redação da primeira biografiaintelectual
de Goffman(WINKIN,1988).
Qual seria o motivo de tamanho interesse pela microssociologia, aparentemente tão
afastada de sua concepção do mundo social? Foi, no entanto, o próprio Bourdieu quem
escreveuem Esquisse d'une théorie de la pratique: ''A verdade da interação nunca reside
inteiramente na interação" (ETP,184).De fato, ele não visavaa Goffman,mas de preferência
aos interacionistassimbólicosradicais e aos etnometodólogos,cujostrabalhos estavam che-
gando a seu conhecimento.Contrariamente a um grande número de sociólogosfranceses,
Bourdieucompreenderámuito rapidamente que Goffmantinha uma visão durkheimiana
da sociedade,plenamente compatívelcom a sua, e bastante afastada, por exemplo,das con-
cepçõesde Blumer ou de Garfinkel. A hipersensibilidade comum a ambos em relação aos
"símbolosde status de classe",para fazer alusão a um texto de Goffman(1951)que poderia
ser lido como a sinopse de La distinctíon (1979),irá consolidar ainda mais a aproximação
entre eles. A homologiados habitus fará o resto: BourdieuconsideravaGoffmancomo um
irmão na resistência,lutando com suas palavras contra a sociologiadominante. Elesentia-se
próximo dos livros de Goffman que exprimiam o ponto de vista de diversas vítimas da
violênciasimbólica:os doentesmentais, os portadores de deficiênciae as mulheres.Exemplo
emblemático:Bourdieu fazia uma equiparação entre sua Leçon sur la leçon (1982) e "Toe

204 FOUCAULT, MICHEL (1926-1984) GOFFMAN, ERVING (1922-1982) 205


Lecture" (1981),de Goffman.Ele ficouimpressionadocom a similitude dos dois textos, com Calhoun.Ele tinha tendência a "cultivarseu jardim". Suastrocas com Bourdieu,até mesmo
a capacidadede Goffmande produzir uma "distância do papel a desempenhar" que não seja episódicas,acabaram por levá-loa plantar nesse canteiro algumas sementes exóticas.Para
apenas irônica, mas uma maneira exigentede desconfiardas complacênciasda autoanálise. sermais concretoem relaçãoa essastrocas, que sejapermitidoao autor destaslinhas fornecer
Assim, compreende-se melhor o motivo que levará Bourdieu, pouco depois da morte de um testemunho pessoal.
Goffman,a escreverno jornal Libération:"Asociologiadeixará de ser, após Goffman,o que Ao final do último seminário de PierreBourdieu, no ano universitáriode 1975-76,
ela havia sido anteriormente:tanto por aquilo que eletornou possível,quanto por aquilo que tomei a liberdadede ir a seu encontroe dizer-lheque eu estavaindopara a Universidade
tornou impossívelou insuportável" (1982a). da Pensilvânia onde permaneceria durante dois anos. Visivelmente muito feliz com
Foi Robert Castel (1933-2013)quem chamou a atenção de Bourdieupara a obra de Gof- essa notícia, ele me pede para apresentarseus cumprimentos a Erving Goffman. Ao
fman, ao propor-lhe uma tradução de Asylums (1961),para a qual Bourdieu escreveuuma encontraro pesquisador americano em agostode 1976,este me pergunta, de imediato,
magistral introdução. Na época, Castel era próximo de Foucault e preparava seus estudos "how is Pierre?"e em que ponto se encontraa traduçãofrancesa de "FrameAnalysis"...
sobre "psicanalismo"(1973)e "ordem psiquiátrica" (1977).Em 1972-1973,Bourdieu é eleito No decorrerda conversação,Gojfman comunica-mesua perplexidade diante da noção
membro do Institute for AdvancedStudy(IAS)de Princeton.Elevai à Filadélfiae encontra-se de classesocialem Bourdieu.Por ocasiãode meu retorno no Natal, evocoessa questão
com Goffman.Inicia-se,dessemodo, um bom entendimento entre os dois. Bourdieupropõe com Bourdieu que me diz que, no seu caso, não compreendecomo Goffman pode re-
a candidatura de Goffmancomo membro permanente do IAS de Princeton, ideia que será duzir a noção de classesocial a uma categoriadescritiva.Em janeiro de 1977,evoco o
rejeitada com desdém pelos grandes eleitoresdesse instituto. Bourdieuirá transformar essa assunto com Goffman que me explicaque osfranceses nunca chegarãoa compreender
rejeiçãoem um elementosuplementarde sua cumplicidadecom Goffman.Osdoispesquisado- as relaçõesentre Durkheim e Warner...[W.LloydWarner (1898-1970),antropólogo,uma
res 1:Ilanterão
uma correspondênciaregular. Em duas oportunidades e a convitede Bourdieu, das maiores influênciasexercidassobre Goffmanquando ele cursava seu doutorado na Uni-
Goffmanvisitará Paris, nomeadamente em maio de 1982,acompanhado da esposa, Gillian versidadede Chicago].
Sankoff,e da filha de ambos, Alice,nascida alguns meses antes. Por sua vez, Bourdieufará Fiquemos por aqui. Essa historieta tinha o único objetivo de ilustrar a relação entre
uma visita a GillianSankoff,em maio de 1986,na Filadélfia. Bourdieue Goffman,feita simultaneamente de common miscognition(MP) e de working
Em vários de seus livros, Bourdieu retoma expressões de Goffman, em particular "the consensus (GOFFMAN, 1959),com um fundo de apreciação pessoal, sem estratégia nem
sense of one's place" (GoFFMAN,1951).Se essa fórmula se torna recorrente nos textos intenção de provocar alguma impressão.
de Bourdieu, é, sem dúvida, pelo fato de exprimir particularmente bem a ideia de uma
autoatribuição de lugar por parte dos atores sociais que reconhecem, imediatamente, o Referências
perímetro de seus territórios sociais. Bourdieu nunca discutirá, de maneira aprofunda- BOURDIEU,P. Erving Goffmanest mort. Libération, 2 dez. 1982a.
da, as ideias de Goffman, mas dará sempre a impressão de profundo respeito por elas. BOURDIEU,
P.Lamort du sociologueErvingGoffman.Ledécouvreurde l'infiniment petit. Le Monde,
Será que é possível afirmar que Goffman exerceu "influência" sobre o pensamento de p. 1,30, 4 dez. 1982b.
Bourdieu? Certamente que não, mas pode-se facilmente sugerir que o procedimento de GOFFMAN,E. Symbolsof Class Status. British Journal of Sociology, v. II, p. 294-304,1951.
Goffman, descrito por Bourdieu como "o descobridor do infinitamente pequeno" (1982b), GOFFMAN,E. The Presentation of Self in Everyday Life. NewYork:DoubledayAnchor, 1959.
irá influenciar a escrita "etnográfica" de algumas páginas de La distinction (1979),assim GOFFMAN,E. Asylums: Essays on the Social Situation of Mental Patients and Other Inmates.
como de La misere du monde (1993).Nelas, Bourdieu mostra uma paixão pelo detalhe NewYork:DoubledayAnchor, 1961.
sociologicamente pertinente, aspecto que remete efetivamente à obra de Goffman. Essa GOFFMAN,E. Stigma: Notes on the Management of Spoiled Identity. EnglewoodCliffs:Prentice-
escrita pontilhista já estava presente nos primeiros estudos antropológicos de Bourdieu Hall, 1963.
- por exemplo, nos belíssimos retratos de Travai! et travailleurs en Algérie (1963) -, GOFFMAN,E. La ritualisation de la féminité.ARSS, v. 14,p. 34-50, avr. 1977.(Extratos de Gender
que não deixam de lembrar fotografias da época (IA). Mas tudo se passou como se o Advertisementscom fotografias).
patrocínio etnográfico de Goffman tivesse conferido uma nova legitimidade aos estudos GOFFMAN,E. Toe Lecture. ln:___ . Forms of Talk. Philadelphia:Universityof Pennsylvania
ulteriores redigidos com esse espírito. Press, 1981.p. 160-195.
Inversamente,será que se pode dizer que BourdieuinfluenciouGoffman?Nãorealmente: GOFFMAN,E. La communication en défaut. ARSS, v. 100,p. 66-72,déc. 1993.(Capítuloda tese de
basta dizer que, em seu último livro, Forms of Talk (1981),Goffmancita Bourdieu uma só doutorado).
vez, um pouco como se se tratasse de pagar com a mesma moeda. Mas a presença de Bour- . WINKIN,Y. (Org.).Erving Goffman: les moments et leurs hommes. Paris: Seuil-Minuit,1988.
dieu em 1>euuniverso intelectual terá contribuído para torná-lo, no mínimo, mais atento ao WINKIN,Y. Goffrnanet les femmes.ARSS, Masculin/Féminin-1,v. 83, p. 57-61,juin 1990.(Síntese
cenário sociológicoeuropeu, o que já é bastante significativo.Apesar de sua imensa cultura, comentada de The Arrangement Between the Sexes).
Goffmanestavalonge de ser um sociólogointercontinental à maneira de Sennett, Sassenou

206 GOFFMAN, ERVING (1922-1982) GOFFMAN, ERVING (1922-1982) 207


103. GOSTO existência,a proximidade dos gostos tende a diminuir com a distância social entre indiví-
······················································································································· duos ou classes. Bourdieu sublinha que os gostos são um dos princípios da aproximação
Julien Duval
das pessoas, como é ilustrado pelos fenômenosde homogamia ou homofilia.Eles intervêm
Comoindica seu subtítulo - crítica social do julgamento, La distinction (1979)aborda, simetricamente nos conflitos e nos sentimentos de inimizade. Por estar, mais geralmente
mas com os recursosda sociologia,a questãodo gostotal como ela havia sido formuladapela ainda, na origem de numerosas escolhasdos agentessociais, o gosto constitui uma "espécie
filosofia.Para Kant, "o gostoé a faculdadede julgar e apreciarum objeto,ou um modo de re- de senso da orientaçãosocial" (LD,544).
presentação,por uma satisfaçãoou um desprazer,independentemente de qualquer interesse. Bourdieuabordoutambémas modalidadesconcretaspelasquais os gostosse transformam
Ao objetode tal satisfaçãoatribui-seo qualificativode belo"(KANT,1990,p. 139).Por sua vez, em escolhasou práticas efetivas.Váriostrechos de La distinction incidem, assim, sobre os
Bourdieudefineo gosto como "uma disposiçãoadquirida para 'diferenciar'e 'apreciar"'(LD, "taste markers", que são os críticos de literatura ou de teatro. As lutas intestinas que lhes
543),mas eleabandonaa referênciaao belo e a hierarquiade que elaé solidáriacomo agradável são peculiares retraduzem os gostos concorrentes em seus leitorados. Para encontrarem
e o sublime.A análisedesenvolvidaem La distinction, da qual um primeiro ensaiohaviasido produtos ou bens ajustados a seus gostos - que são "sistemasde classificaçãoincorporadà'
propostojá em 1965(AM),desmentea concepçãosegundoa qual o gosto"puro"- que se afirma (LD,505) -, os consumidores podem apoiar-se também nos "sistemas de classificaçãoin-
no domínio da arte - seria um tipo radicalmentediferentedos prazerescorporais. corporados"que se referemà posiçãodos produtores (preço,hierarquia das editoras, etc.)no
Em La distinction, a esferaalimentar tende a constituir,pelo contrário,um modelopara campo da produção. Elespodem circunscreverigualmente suas escolhasa uma unidade de
pensartodosos gostos,incluindoos maisintelectuais.Para Bourdieu,os gostosculináriosquese produção (marca de carro, editora, etc.).La distinction evocatambém o problema,familiar
adquiremna primeirainfânciae se revelamextremamenteduradourosfazemaparecer,sobuma aos anunciantes, das preferênciasde consumo que têm a ver, não com um indivíduo, mas
formaparticularmentevisível,característicasgeraisdos gostos:estesdependemessencialmente com um sujeito coletivoque, à semelhançade um casal ou de uma família, é compostopor
de automatismosinscritosno corpo e estão solidamenteassociadosa sistemasde preferências · membroscujos gostosindividuais são, muitas vezes,parecidos,mas sem nunca coincidirem
integradosdesdea primeirainfância.Umapassagemde La distinction é dedicada,assim,aopapel completamente.Na França das décadasde 1960 e 1970,tirando os grupos mais diplomados,
desempenhadopelolugarde origem,chamadometaforicamente"a terra natal",na formaçãodos uma concepçãotradicionalfaziaprevalecero gostotanto da mulher em domíniosque afetam
gostos:o ambienteem queocorreo crescimentodos agentessociaisengendraapegose repugnân~ o interior das casas (mas também as roupas do homem) quanto do homem em domínios,
ciasduradouros.Nesteaspecto,é sugestivoo exemplodas infânciasprivilegiadas,marcadasde tais como a política.
imediatopeloquecaracterizaosinterioresburgueses(atmosferaaconchegantedosapartamentos, A análisedo gostoem La distinction abrange,finalmente,uma caracterizaçãodas grandes
carpetese paredesde coressuavest! tranquilizantes,muitas vezes,um piano familiarem que é famíliasde gostosna sociedadefrancesada época.Aoprimeiroprincípioque organizao espaço
tocadamúsicaclássica...) e as experiênciascorporaisquaseinconscientesquelhessãoassociadas. social- ou seja, o volumeglobalde capital-, está associadauma tendênciapara a estilização
O gosto aparece,assim, como profundamente vinculado às condiçõesmateriais de exis- dos gostos:as classessuperiorestendem a exibir gostosem que prevalecea forma em relação
tência em que se formou: incide, em primeiro lugar, sobre o que nos é familiar, sobre o que . à função e que exercemefeitosde legitimidade.O segundoprincípio - ou seja, a estrutura do
nos é acessível.Nesteponto, Bourdieuretoma o argumento do amor fati: os agentessociais capital- tende a opor gostosvoltadospara a ascese,acentuadosparticularmente nas frações
tendem a desenvolvero gostopor aquilo que suas condiçõesde existêncialhes acostumaram culturais das classessuperiores,aos gostosmais hedonistasdas fraçõeseconômicas.A análise
e por aquilo que elas lhes permitem aspirar de modo razoável.Eles tendem a gostar do que sociológicaconduz, por fim, a conceberas observaçõesde Kant como situadas do ponto de
têm. As pessoas oriundas do meio popular têm, assim, tendência a valorizar,em seus gostos, vista social: ao condenar os prazeres "vulgares"e ao afirmar a superioridade de um "gosto
os produtos e os consumos "úteis","necessários",em detrimento daquelesque lhes parecem puro" ascético,Kant sublima e legitima os sistemas de preferênciasque, no final do século
associadosao luxo ou ao supérfluo.O exemplode pessoas de condição social inferior que, XVIII, eram dominantes na "intelligentsia burguesa" e que, na França, segundo parece,
frente ao aumento de sua renda, conservam o nível de vida anterior, confirma as análises estão, sobretudo difundidos nas frações culturais das classessuperiores e, particularmente,
que levam a observar o gosto como um elemento-chavenos mecanismos que garantem o entre os professores(a respeito de quem Bourdieulembra que eles constituem os principais
ajuste dos agentessociais a suas condiçõesde existênciae, por conseguinte,à ordem social. leitoresda filosofiade Kant).
Uma particularidade dessa análise do gosto é seu caráter relacional.O atrativo por um A análise do gostoproposta por Bourdieupode, obviamente,ser mobilizadaem história
alimentoou um bem é indissociavelmenterepulsãopor outros bens. Os gostosde uma pessoa e em sociologia,na medida em que ela pode servir também para o estudo de domínios muito
são sempre acompanhadospor repugnâncias e, até mesmo, por uma rejeiçãodos gostos de específicos,comomostra,por exemplo,uma "anatomiedu goutphilosophique"(Sou11É,1995),
outros agentes sociais que podem, às vezes, exprimir-se sob a forma de reações corporais e que serve de suporte às análises de La distinction para compreenderos gostosque animam
violei).tas.No Brasil,algumas aversõesao samba, segundo parece, podem ser perfeitamente alguns estudantes de filosofiana escolhade seus temas de pesquisa. De maneira talvezmais
analisadasnestecontexto(RIVRON, 2010).Em geral,os gostosse inscrevemprofundamentenas inesperada - sem deixar de ser muito pertinente -, essa análise pode também ser investida
relaçõesentre os agentese os grupossociais.Comoos gostosestãorelacionadosàs condiçõesde em economiapor questionaras hipótesesneoclássicasque consideramo consumocomouma

GOSTO 209
208 GOSTO
função da renda, além de consideraremque o equilíbrio entre oferta e demanda passa pelos As GrandesÉcolesconsomemcercade 30%do orçamentouniversitárionacional,sendo
preços.La distinction lembra que não existe o consumidor indiferenciado,postulado pelos responsáveispor quase 5% do total das matrículas em instituições de educaçãosuperior do
economistas. Na realidade, cada consumidor possui gostos específicosque orientam suas país.Os estudantesque desejamingressarnestas escolasnormalmentenecessitamrealizarum
escolhaseconômicase organizam a percepçãoparticular que ele tem da oferta. cursopreparatóriocoma finalidadede enfrentarexameem nívelnacio~al,que envolvegrande
competição.Talcurso,chamádoClassesPréparatoires aux Grandes Ecoles (CPGE),tem, em
Referências geral,a duração de dois anos, período no qual o candidatoé preparado atravésde intensivoe
KANT,E. Critiquede lafaculté dejugement (1790).Paris: Gallimard-Folio,1990. exaustivoprograma de estudos.A quantidadede trabalho exigidapor semanaé muito grande
RIVRON,V.Le goíit de ces choses bien à nous. ARSS, n. 181-182,p. 127-141,2010. e apenas quem obtémbom índice no baccalauréat- examerealizadono final do ensino se-
SOULIÉ,Ch. Anatomie du goíit philosophique.ARSS, n. 109,p. 3-28, 1995. cundário,necessáriopara o ingressona educaçãosuperior,divididoem três áreas:Scientifique
(para exatas e saúde), Sciences économiques et sociales (parahumanas)e ~ittéraire (para
literatura)_ pode se matricularno CPGE,ministradoem apenasalgunspoucosliceus.Talcurso
í o4. GRANDES
ÉCOLES equivaleaosdoisprimeirosanos de uma universidade.Assim,quemnão consegueaprovaçãoem
Afrânio Mendes Catani uma grande écoleapós a conclusãodo préparatoiretem a possibilidadede ingressarem anos
maisavançadosde um cursode graduação.A competiçãointernae a pressãosãofortíssimase ~s
Na grande maioria dos países as universidades se encontram no topo do sistema de alunosnecessitamdispor da capacidadede lidar com essasituaçãoestressantepara consegu1r
educaçãosuperior. Se alguém disser que ingressou em determinada universidade que goza sobrevivere ter êxitonos exames,que duram várias semanase envolvemprovasorais e escri-
de grande prestígio, certamente terá grande probabilidade, assim que obtiver seu diploma tas.Apenas poucascentenasde estudantessão admitidosem cadagrande écoleto~o~os anos.
e iniciar sua trajetória profissional,de receber como retribuição as gratificaçõesmateriais Entretanto,mais recentemente,observam-semodificaçõesnesseprocessode admissao,que se
e simbólicas esperadas. Entretanto, na França a situação é diferente. Isso porque o sistema abre a estudantesuniversitáriosoriundosde outras escolas,que obtiverembom desempenho
universitáriodo país é integradopor universidadese GrandesÉcoles.O decretodo Ministério escolar.A maioriadas GrandesÉcolesé gratuita (exceçãonas businessschools)e, em algumas
da EducaçãoNacionale da Cultura, de 27 de agosto de 1992,publicadono Journal Officiel outras (casosda ÉcolePolytechnique,da ÉcoleNationald'Administration,da ÉcoleNormale
de 11de setembro do mesmo ano, referente à terminologiada educação,defineuma grande Supérieure),os estudantessão pagospara estudar.
école como "um estabelecimentode ensino superior que recruta seus alunos por concurso As GrandesÉcolesde maior prestígiosão,além das citadasno parágrafo anterior,outras
e assegura a formação de alto nível". A qualidade da formação oferecida confere enorme que se inscrevemnos domínios da engenharia,da administração, da econom~a,da pol~tica,
prestígioa essasinstituições,sendonelas preparadas as elitespolíticase científicasfrancesas. etc., merecendo destaque a ÉcoleNationaleSupérieuredes Mines de Paris, a EcoleNat10nal
O termo "grandeécole"teve origem em 1794,após a RevoluçãoFrancesa,quando foram des Ponts et Chaussées,a Écoledes HautesÉtudes Commerciales,a ÉcoleCentrale de Paris,
criadas a ÉcolePolytechnique,a ÉcoleNormale Supérieure e o ConservatoireNational des o Institut d'Études Politiquesde Paris (SciencesPo),a ESSECBusinessSchool,além daquelas
Arts et Métiers.Tais es.colastiveram suas precursoras nos séculosXVIIe XVIII,devendoser voltadas às áreas militares. Entre as Grandes Écoles que não exigem curso preparatório,
mencionadasa Écoled'Arts et Métiers(1780);a Écoledes Mines de Paris (1783);a ÉcoleRoyale mas um excelenteresultado no baccalauréat e em outras provas, mencionem-se a École
des Ponts et Chaussées(1747);a Écoledes Ingénieurs-Constructeursdes VaisseauxRoyaux des Hautes Études en SciencesSociales,a École Nationale Supérieure des Arts Décoratifs,
(1741),além de academiasmilitares de engenharia e escolasde artilharia, estabelecidasno a ÉcoleNationale Supérieure des Beaux-Arts,etc. Com frequência,seus alunos acabam se
século XVII,como a Écolede l'Artillerie de Douai. Posteriormente,no início dos anos 1800, direcionando,em seguida, para escolasde administração e comércio. _
NapoleãoBonapartecriou a ÉcoleSpécialeMilitaire de Saint-Cyr,para a formaçãode oficiais Bourdieupublicou,sobre o tema, livro cuja leitura é indispensável:La noblessed'Etat:
do exército.Ao longo dos séculosXIX e XXmuitas outras foram constituídas, até alcançar, Grandes Écoleset esprit de corps,mostrando como a educaçãorecebidanestas escolasde
nos dias de hoje, um total aproximadode 250 estabelecimentos. eliteconsagra uma "nobreza"de novotipo, possuidorade títulos acadêmicosque a~segur~m
O objetivoda criação das Grandes Écoles ao longo da história francesa, não é demais sua própria exclusividadeatravés de rigorososmecanismosde seleçãoe filtros sutis. A~slffi,
demarcar, é o de fornecer as estruturas técnicas (e militares) dos mais elevadoscargos do os postos de trabalho acabamse definindoa partir dos estabelecimentos_esco~aresde on~e11:',
estado, nos domínios essenciais da sociedade: administração central, exército, pontes e desdeo modestoprofessorde escolaprimária de uma pequenacidadedo mtenor ao funciona-
estradas, agricultura, águas e florestas, minas, ciências médicas e veterinárias, formação rio de alto escalãona administração pública ou privada. Comojá fizera em outros trabalhos
de professores,portos e arsenais, etc. Atualmente, o Ministério da EducaçãoNacional, do (Osherdeirose Homo academicus),ele desnuda os segredosda magia social que assegura,
Ensino Superiore da Pesquisada França assegura a tutela dos cursos preparatóriosa todas as através da educação, a reprodução das hierarquias sociais. Não é por outra razão que no
GrandesÉcoles,mas estas se encontram sob a supervisão de outros ministérios, de acordo prólogode La noblessed 'État,intitulado "Estruturas sociaise estruturas mentais",_Bou~dieu
com a natureza de cada escola. escreveuque "a sociologiada educaçãoé um capítulo,e não dos menores, da soc10logiado

GRANDES ÉCOLES 211


210 GRANDES ÉCOLES
conhecimentoe também da sociologiado poder - para não falar da sociologiados filósofos
do poder. Long~de ser essa espéciede ciênciaaplicada,portanto inferior, e boa apenas para
os pedagogos.'situa-se_no,~nda~ento de_uma ~ntropolo,giageral do poder e da legitimidade:
lev~,~omefeito,ao pnnc1p10dos mecamsmos responsaveispela reproduçãodas estruturas
s_ociaise pela reproduçãodas estruturas mentais que, como estão genéticae estruturalmente
ligadasa ela,favorecemo desconhecimentoda verdadedessasestruturas obietivase comiss
h . d ' , o,
o recon_ec1mento e sua legitimidade [...]. A estrutura do espeçosocial,tal como se observa
nas s~c1edades. d~erenciadas,é o produto de dois princípios de diferenciaçãofundamentais,
o cap1t~leconom1coe o c~pital c~lt~ral'.com a instituição escolar desempenhando papel
determmante na reproduçao da d1stnbmçãodo capital cultural e, portanto, na reprodução
da estrutura do espaçosocial,tornando-se uma aposta central nas lutas pelo monopóliodas
posiçõesdominantes" (NE, 13).

Referências 106. HABITUS


wvrw.legifrance.gouv.fr
(Acessoem: 7 dez. 2015) ·······················································································································
Loi"cWacquant
www.french-property.com/guides/france/public-services/higher-education/grandes-ecoles
(Acesso
em: 8 dez. 2015)
Habitus é uma noçãofilosóficaantiga,originárianopensamentodeAristótelese na Escolástica
www.enseignementsup-recherche.gouv.fr
(Acessoem: 8 dez. 2015)
medieval,quefoirecuperadae retrabalhadadepoisdos anos 1960por PierreBourdieupara forjar
www.understandfrance.org/France/Education.html(Acessoem: 9 dez. 2015)
umateoriadisposicionalda açãocapazde reintroduzirna antropologiaestruturalistaa capacidade
inventivadosagentes,semcomissoretrocederao intelectualismocartesianoqueenviesaas abor-
10s. GRUPOS
DOMINANTES dagenssubjetivistasda condutasocial,dobehaviorismoaointeracionismosimbólicopassandopela
························ ······························································································· teoriada açãoracional.Anoçãotem um papelcentralno esforçolevadoa caboduranteuma vida
Ver:Classe social inteirapor Bourdieu(ETPp;SPi;SSEi)para construiruma "economiadas práticasgeneralizadà'
capazde subsumira economia,historizandoe, por aí,pluralizandoas categoriasque estaúltima
toma como invariantes(tais como interesse,capital,mercadoe racionalidade)e especificando
queras condiçõessociaisda emergênciados atoreseconômicose sistemasde troca,quer o modo
concretocomoestesse encontram,se propulsionamou se contrariamuns aos outros.
As raízes do habitus encontram-se na noção aristotélica de hexis, elaborada na sua
doutrina sobre a virtude, significandoum estado adquirido e firmemente estabelecidodo
caráter moral que orienta os nossos sentimentos e desejos numa situação e, como tal, a
nossa conduta. No século XIII o termo foi traduzido para latim como habitus (particípio
passado do verbo habere, ter ou possuir) por Tomás de Aquino na sua Summa Iheologice,
em que adquiriu o sentido acrescentadode capacidadepara crescer através da atividade, ou
disposiçãodurável suspensa a meio caminho entre potência e ação propositada. Foi usado
parcimoniosa e descritivamentepor sociólogosda geração clássica como Émile Durkheim
(no seu curso sobre L'Évolution Pédagogique en France, de 1904-1905),pelo seu sobrinho
e colaboradorpróximoMarcelMauss(mais especificamenteno seu ensaio sobre"Astécnicas
do corpo",de 1934),assimcomopor MaxWeber(emsua discussãosobreo ascetismoreligioso
em Wirtschaft und Gesellschaft, de 1918)e ThorsteinVeblen(quemedita sobre o" habitus
mental predatório" dos industriais em The Iheory of the Leisure Class, de 1899).A noção
ressurgiu na fenomenologia,de forma mais proeminente nos escritos de Edmund Husserl,
que designavapor habitus a conduta mental entre experiênciaspassadas e açõesvindouras.
Husserl (1973)também usava como cognatoconceptualo termo "Habitualitãt", mais tarde

212 GRUPOS DOMINANTES HAB/TUS 213


traduzido para inglêspelo seu aluno Alfred Schützcomo "conhecimentohabitual" (daí a sua desproporcionadodos esquemasimplantadosna infância);(v)introduz um desfasamento e,
adoção p~la etnometodologia),uma noção que se assemelha com a de hábito, generalizada por vezes,um hiato entre as determinaçõespassadas que o produziram e as determinações
p_or~aunce Merleau-Ponty(1947)em sua análise sobre o "corpo vivido" como o impulsor atuaisque o interpelam:como"históriatornada natureza",o habitus "é aquiloque confereàs
silenciosodo comportamentosocial. O habitus também figura de passagemnos escritosde práticas a sua relativa autonomiano que diz respeito às determinaçõesexternas do presente
outro,:studante de ~usserl'..Norbert Elias, que fala de "habitus psíquico das pessoas 'civili- imediato.Esta autonomiaé a do passado,ordenado e atuante que, funcionando como capital
zadas no estudo classico Uber den Prozefl der Zivilisation (1937). acumulado, produz história na base da história e, assim, assegura que a permanência no
Mas é no trabalho de PierreBourdieu,que estavaprofundamenteenvolvidonessesdebates interior da mudança faça do agenteindividual um mundo no interior do mundo" (SPi,56).
filosóficos,que encontramosa mais completarenovaçãosociológicado conceitodelineadopara Contrao estruturalismo,a teoria do habitus reconheceque os agentesfazemativamenteo
t~anscendera oposiçãoentreobjetivismoe subjetivismo:o habitus é uma noçãomediadoraque mundosocialatravésdo envolvimento deinstrumentosincorporadosde construçãocognitiva;ma~
ajudaa rompercom a dualidadede sensocomumentre indivíduoe sociedadeao captar "a inte- tambémafirma,contrao construtivismo, queestesinstrumentosforamtambémelesprópriosfeitos
riorizaçãoda exterioridadee a exteriorizaçãoda interioridade",ou seja,o modocomoa sociedade pelomundosocial(MPi,175-177).Ohabitusfornece,ao mesmotempo,um princípiode sociação
se torna depositadanas pessoassob a formade disposiçõesduráveis,ou capacidadestreinadase e de individuação:sociaçãoporqueas nossascategoriasde juízoe de ação,vindas da sociedade,
propensõesestruturadaspara pensar,sentir e agir de modos determinados,que entãoas guiam sãopartilhadaspor todosaquelesqueforamsubmetidosa condiçõese condicionamentossociais
nas suas respostascriativasaos constrangimentose solicitaçõesdo seu meiosocialexistente. similares(assimpodemosfalarde um habitusmasculino,deum habitusnacional,deum habitus
Bourdieu começoupor reintroduzir a noção de uma forma denotativanos seus estudos burguês,etc.);individuaçãoporquecadapessoa,ao ter uma trajetóriae uma localizaçãoúnicas
empírico,sde juventudesobrea antropologiaeconômicada mudançana sociedadecamponesa no mundo,intemalizauma combinaçãoincomparávelde esquemas.Porqueé simultaneamente
do seu Bearn natal, no sudoesteda França, ou nas comunidadescabilasde expressãoberbere, estruturado(por meiossociaispassados)e estruturante(deaçõese representaçõespresentes),o
na Argélia colonial (BCi;DR),e elaborou-a analiticamente no seu Esquisse d'une théorie habitusoperacomoo "princípionãoescolhidodetodasas escolhas"guiandoaçõesqueassumemo
de la pratique (2002).Neste e noutros escritossubsequentes,Bourdieupropõe que a prática carátersistemáticode estratégiasmesmoquenãosejamo resultadode intençãoestratégicae sejam
~ão é ~em o pre~ip~tadomecânico de ditames estruturais, nem o resultado da perseguição objetivamente "orquestradassemseremo produtoda atividadeorgariizadorade um maestro"(SPi,
mtenc1onalde obJetivospelos indivíduos;é, antes, "o produto de uma relaçãodialéticaentre a 256).Paraestafilosofiada açãodisposicional,o atoreconômiconão é o indivíduoegoístae isolado
~ituaçãoe o habitus, entendidocomoum sistemade disposiçõesduráveise transponíveisque, da teorianeoclássica,uma máquinacomputadorizadaqueprocuradelibeddamentemaximizar
mtegrando todas as experiênciaspassadas,funcionaem cada momentocomouma matriz de a utilidadena perseguiçãode objetivosclaros.É, antes,um ser carnalhabitadopelanecessidade
percepções,apreciaçõese açõese torna possívelcumprir tarefas infinitamentediferenciadas históricaqueserelacionacomo mundoatravésde uma relaçãoopacade "cumplicidade ontológica"
graças à transferênciaanalógicade esquemas"adquiridosnuma prática anterior (ETPp,261). e que está necessariamenteligadoaos outros atravésde uma "conivênciaimplícita"sustentado
Comohistória individual e grupal sedimentada no corpo, estrutura socialtornada estru- por categoriaspartilhadasde percepçãoe de apreciação(MPi,163;SSEi).
tura mental, o habitus pode ser pensado em analogiacom a "gramáticagenerativa"de Noam Retraçar as origens filosóficase o uso inicial do habitus por Bourdieu (2000)para dar
Chomsky,quepermite aos falantesproficientesde uma dada língua produzir impensadamente contada ruptura econômicae da desconexãosocialtrazida pela guerra argelinade libertação
atos de discurso corretos de acordocom regras partilhadas de um modo inventivo,mas, não nacionalpermite-nosclarificarquatro incompreensõesrecorrentessobreo conceito.Primeiro,
obstante,previsível.Designauma competênciaprática, adquirida na epara a ação,que opera o habitus nunca é a réplicade uma única estrutura social,na medida em que é um conjunto
sob o nível da consciência.Entretanto, ao contrário da gramática de Chomsky,o habitus (i) dinâmicode disposiçõessobrepostasem camadasque grava,armazenae prolongaa influência
resume não uma aptidão natural, mas social que é, por esta mesma razão, variávelatravés dosdiversosambientessucessivamenteencontradosna vida de uma pessoa.Em segundolugar,
d? ~empo,~o_lugar e, ,s~bretudo,através das distribuições de poder; (ii) é transferívelpara o habitus não é necessariamentecoerentee unificado,mas revelagrausvariadosde integração
vanos domm10sde pratICa,o que explicaa coerênciaque se verifica,por exemplo,entre vários e tensão dependendoda compatibilidadee do caráter das situaçõessociaisque o produziram
domínios de consumo - música, desporto, alimentação, mobília e, também, nas escolhas ao longodo tempo:universosirregularestendem a produzir sistemasde disposiçõesdivididos
políticas e matrimoniais - no interior e entre indivíduos da mesma classee que fundamenta entresi, que geramlinhas de ação irregularese por vezesincoerentes.Terceiro,o conceitonão
o~disti~tos estilos de vida (LDi);(iii) é durável mas não estático ou eterno: as disposições estámenos preparadopara analisar a crise e a mudança do que está para analisar a coesãoe a
sao socialmente montadas e podem ser corroídas, contrariadas ou mesmo desmanteladas perpetuação.Talaconteceporqueo habitus não está necessariamentede acordocom o mundo
~ela exposição a novas forças externas, como demonstrado, por exemplo, a propósito de socialem que evolui.Bourdieu(SPi,62-63) nos adverte que deveremos"evitar universalizar
s1tu~çõesde migração; (iv)contudo, é dotado de inércia incorporada,na medida em que o inconscientementeo modelo da relaçãoquase-circularda quase-perfeitareprodução,que é
habz_tus, tende a produzir práticas moldadasdepoisdas estruturas sociaisque as geraram e na plenamenteválido apenasno caso em que as condiçõesde produçãodo habitus são idênticas
medida em que cada uma das suas camadas opera comoum prisma atravésdo qual as últimas ou homólogasàs suas condiçõesde funcionamento".O fato de o habitus poder "falhar" e de
experiênciassãofiltradase os subsequentesestratosde disposiçõessãosobrepostos(daío peso ter "momentoscríticosde perplexidadee discrepância"(MPi,191)quando é incapazde gerar

214 HABITUS HAB/TUS 215


práticasconformesao meioconstituium dosprincipaisimpulsionadoresde mudançaeconômica MERLEAU-PONTY, M. Phenomenologyof Perception(1947). London:Routledge,1962.
e inovaçãosocial- o queconfereà noçãode Bourdieuuma grande afinidadecomas concepções SUAUD,Ch. La vocation: conversion et reconversiondesprêtres ruraux. Paris: Minuit, 1976.
neoinstitucionalistasde racionalidadelimitada e de preferênciasmaleáveis,comona teoria da WACQUANT, L. BodyandSoul:Notebooksofan ApprenticeBoxer(2000). NewYork:OxfordUniversity
regulação(BoYER, 2004).Por último, o habitus não é um mecanismoautossuficientepara a Press,2003.
geraçãoda ação:opera como uma mola que necessitade um gatilho externo e não pode, por-
tanto, ser consideradoisoladamentedos mundos sociaisparticulares,ou "campos",no interior
dos quais evolui.Uma análise completada prática requer uma tripla elucidaçãoda gênesee 101. HEIDEGGER, MARTIN(1889-1976)
·······················································································································
estrutura sociaisdo habitus e do campoe das dinâmicasda sua "confrontaçãodialética"(MPi).
EmborafilósofoscomoCharlesTaylor,JacquesBouveressee JohnSearletenham discutidoa Ver: Ontologia política de Martin Heidegger (A) (L'Ontologie politique de Martin
elaboraçãode Bourdieusobreo habitus na sua relaçãocoma filosofiada mente,da linguageme Heidegger)
do self, deveser destacadoquepara Bourdieua noçãoé, em primeirolugar e acimade tudo, um
modo estenográficode designaruma postura de investigação, ao apontar um caminho para
10s. HERANCA CULTURAL
escavaras categoriasimplícitasatravésdas quais as pessoasmontam continuadamenteo seu ···················:::..................................................................................................
.
mundovivido,quetem informadopesquisasempíricasem tornoda constituiçãosocialde agentes Ana Maria F. Almeida
competentesnuma gama variada de quadros institucionais.Assim,Suaud (1976)esclareceua
formaçãoe a desestruturaçãoda vocaçãosacerdotalna regiãofrancesada Vendéemostrando Central ao argumento desenvolvidono livro Les héritiers, a noção de herança cultural
como, durante os anos 1930,o seminário atuava em continuidadecom a comunidadealdeã foi objeto de intensa e minuciosa elaboração em diferentes obras de Pierre Bourdieu. Ela
fechadapara desencadearchamamentosem massa,mas perdendoa sua capacidadepara forjar ancora hipóteses e demonstrações em A reprodução e nos escritos das décadas de 1960e
um habitus religiosorobustoquando,por alturadosanos 1970,a igrejacedeua suaproeminência 1970sobre os grupos camponesesda Argéliae do Béarn. Desempenhaum papel central na
simbólicaà escola.Charlesworth(2000)captou a formaçãoe desdobramentode uma sensibi- análise proposta em A.s:regras da arte e concluio inventário do sofrimentocontemporâneo
lidade operária distintiva,criando silêncioe falta de clareza,nascida da incorporaçãode uma apresentadoem A miséria do mundo. 1

experiênciaduradourade desapossamentoeconômicoe de impotênciapolíticanuma pequena A noção ofereceinstrumentos para examinar o problemada transmissão intergeracional
cidadeem declíniono sul de Yorkshire,na Inglaterra.Lehmann (2002)traçou o modo comoas da cultura que, atribuída a processosde socializaçãoe aprendizagemna antropologiaclássica
disposiçõesmusicaisinculcadaspelotreinoinstrumentalse combinamcomdisposiçõesde classe e contemporânea, foi apenas raramente tomada como objeto de estudos em si. Na obra de
herdadas da famíliapara determinar a trajetóriae as estratégiasprofissionaisdos músicosno Pierre Bourdieu,ela constitui um dos organizadoresdo programa de pesquisa encarregado
interiordo espaçohierárquicoda orquestrasinfônica.Wacquant(2003)dissecoua produçãodo de examinar as condiçõesque presidema permanência e a mudança social.Mobilizara ideia
nexode competências,categoriase desejosincorporadosquecompõemo boxeprofissionalcomo de herança cultural nessa discussão representou uma ruptura em diferentesníveis com os
um ofíciocorpóreomasculinono gueto negro americano,revelandoque a feitura do habitus modos tradicionais de pensar a transmissão e sua relaçãocom a organizaçãosocial.
pugilisticoacarretanão só o domínioindividualda técnica,mas, mais decisivamente,a inscri- Apresentadade maneira explícitae mesmobrutal no título de Les héritiers, a noção per-
ção coletivana carne de uma ética ocupacionalheroicano interior do microcosmosdo ginásio mitiu mostrar que a reproduçãosocialnas sociedadescontemporâneasnão dependia apenas
de boxe.Estesestudosdemonstramque a convocaçãoe o empregodos esquemascognitivose da transmissão de bens materiais de uma geraçãoa outra, mas estava subordinada cada vez
motivacionaisque compõemo habitus é acessívelà observaçãometódica.Em última análise,a mais à transmissão de um patrimônio cultural. Ao mesmo tempo, ao identificar a escola
provado pudim teóricodo habitus deveconsistirem comê-loempiricamente. como instância encarregada de definir o maior ou menor valor dos diferentespatrimônios
transmitidos pelas famíli~s,como demonstrado em A reprodução, reveloua contribuição
Referências particular dada pelo Estado à reprodução social. Por fim, ao explicitar o ponto de vista dos
BOURDIEU,P. Making the EconomicHabitus: AlgerianWorkersRevisited.Ethnography,v. 1, n. 1, que estão submetidos aos processos de transmissão, sejam eles camponeses do Béarn, es-
p. 17-41, jul. 2000. tudantes das Grandes Écoles ou escritores,expôs as contradiçõese tensões que definem os
BOYER,R. Pierre Bourdieu et la théorie de la régulation.ARSS, Paris, n. 150, p. 65-78, fev.2004. processos de transmissão nas sociedades diferenciadas,nas quais herdar significaem boa
CHARLESWORTH, S. J.A Phenomenology of Working ClassExperience. Cambridge:Cambridge parte se distinguir dos pais e às vezesultrapassá-los.
UniversityPress, 2000. Discutidas à luz de duzentos anos de debates sobre o controle da herança dos bens
HUSSERL,E. ExperienceandJudgment(1947). London:Routledgeand KeganPaul, 1973. materiais que, atrelados a lutas por igualdade e pela neutralidade do estado em relação aos
LEHMANN,B. L'Orchestre dans tous ses éclats: ethnographie desformations symphoniques. interesses privados, haviam produzido na França uma das legislaçõesmais restritivas da
Paris: La Découverte,2002. Europa(BECKERT, 2008),tais revelaçõesrepresentaramum abalode proporçõessignificativas

216 HABITUS HERANÇA CULTURAL 217


nas percepçõesem vigor sobre a justiça social.Talvezisso explique,pelo menos em parte, as cotidianas as disposiçõesmais rentáveis com relação à escola - como é o caso do domínio
controvérsiasque cercaram sua recepção. do corpo e da relação controladacom o tempo, entre outros.
O estudo dos processosde transmissão cultural ganhou uma forçaparticular nas análises É esse trabalho minucioso e exaustivoque define a potência heurística do conceito.Do-
sobre o seu rendimento no sistema de ensino. Sua importância, no entanto, não se esgotaaí. cumentadanas inúmeras investigaçõesque inspirou, o estudo dos processosde transmissão
Mesmoque nas sociedadescontemporâneaso valor da pessoa estejacada vez mais associado e herança cultural constitui hoje uma das áreas mais ricas da sociologiaque se interessa
às credenciaisescolares,outros princípios de hierarquizaçãose mantêm e a escolanão define em desvendar a contribuição da escolapara a produção e a reprodução das desigualdades.
a entrada em todas as posiçõesdominantes. Parte dessas pesquisas se dedicou a examinar os processossutis de transmissão doméstica
Herança cultural diz respeito à transmissão, de uma geraçãoa outra, de maneiras de ser do capital cultural; outra vertente cuidou de explorar os casos daqueles que, submetidos à
e de se portar, mas também de habilidades,competênciase sensibilidadesque os indivíduos transmissão de competênciase modos de ver desvalorizadospelo sistema de ensino, ainda
adquirem muitas vezes sem sentir e, certamente, sem escolher.A unidade de análise dos assimeram bem-sucedidosna escola.Por fim há ainda, emboramenos numerosas,pesquisas
processos de transmissão é, antes de tudo, a família. Seu estudo exige, em primeiro lugar, que exploram casos de transmissão mal-sucedidos,situaçõesem que o capital cultural dos
a definiçãoprecisa do patrimônio a ser transmitido pela primeira, isto é, a identificaçãodo pais não serviu para garantir trajetórias escolaresvalorizadas.
volume e da estrutura dos capitais ali reunidos num momento dado, assim como o modo Poucos,no entanto, têm sido os estudos que aprofundaram ou estenderam o exame da
como se chegoua essa situaçãoparticular - a maior ou a menor rapidez, a caracterizaçãodo · maneira como a escola fixa o valor da cultura transmitida pela família. Pierre Bourdieu e
processocomoacumulaçãoou dilapidação,etc.Exige,em segundolugar,o examecircunstan- seuscolaboradorespromoveramincursõesreveladorasnas microinteraçõesque,mobilizando
ciadodas microinteraçõesentre os membros (LAREAU, 2011),preferencialmenteapoiadapor saberesespecíficose relaçõesparticularescom essessaberes,constituema relaçãopedagógica
uma sociologiados afetos (MAUGER, 2003)que problematizeas relaçõesno interior do grupo e contribuempara definiras diferençasde desempenhoentre os estudantes(BouRDIEUet al.,
familiar, dissecandoas marcas geracionais,de gênero,etc. Por fim, exigetambém situar essa 1965).Diante das tensões e dos dilemas que perpassam a escolacontemporânea,essa é uma
família no espaçosocial que a cerca,identificandoos princípios que estruturam a percepção área que definitivamentemereceria maior investimento.
que os membrostêm de si mesmose dos outros. Cabe,portanto, nesseeixo,uma interrogação
sobre o espaçode relações no qual estão imersas as famílias em estudo, os pertencimentos 'Referências
étnicos e raciais, religiosos,políticos,assim como o significadoatribuído a eles. BECKERT,J. Inherited Wealth. Princeton: Princeton UniversityPress, 2008.·
Modosde transmissãopodem ser mais ou menos implícitos,mais ou menosestruturados. BOURDIEU,P. L'Inventionde la vie d'artiste. ARSS, n. 2, p. 67-93,1975.
Por isso,emborasetrate de um trabalho que as geraçõesmaisvelhasdesenvolvemsobreas mais BOURDIEU,P.; PASSERON, J.-C.;SAINTMARTIN,M. Rapport pédagogique et communication.
novas,a transmissão nem sempreé percebidacomotal. A noção é útil, portanto, para revelar Paris: Mouton, 1965. .
a vantagemobtida pela imersãoprecocenos ambientesem que competênciasvalorizadasem LAREAU,A. Unequal Childhoods: Class, Race and Family Life. 2. ed. Berkeley,CA:Universityof
certas esferas de ação social estão incorporadas nos indivíduos sob a forma de disposições CaliforniaPress, 2011.
duráveis,hexis corporal, sensibilidadesou quando estão incorporadas no mundo material, MAUGER,G. Élection parentale, élection scolaire. ln: HUERRE,P.;RENNARD,L. (Orgs.).Parents
isto é, nos objetos e na sua disposição,estruturando a experiênciado mundo daqueles que et adolescents. Paris: ERES,2003.
são destinados a circular em meio a eles. Esses são os casos em que a transmissão pode se
dar de maneira eufemizadae implícita. Sua apropriaçãodepende de longa exposição,de um
trabalho de inculcação que, para ser bem-sucedido, exige o autoengajamentopor parte da 109. HERDEIROS
(OS):OSESTUDANTES
EA CULTURA
criança, supondo a concordância, por parte daquele que se submete, em "ser herdado por (Les héritiers: /es étudiants et la culture)
sua herança" (BOURDIEU, 1975).Nessas circunstâncias, o resultado pode ser muitas vezes ·········································
..·······································································--·················
. .
Cristina Carta Cardoso de Medeiros
tomado como o final de um processonatural de desenvolvimentode qualidadesque passam
a ser vistas como pessoais,isto é, individuais e preexistentes.
BOURDIEU,P.; PASSERON,J-C. Os herdeiros: os estudantes e a cultura. Florianópolis: Ed. da
Quando são forçadas a se submeter à medida escolar,isto é, ao veredito da escola,essas
maneiras de ser e de se portar, essas habilidades,competênciase sensibilidadessão desigual- UFSC,2014.
mente apreciadas.Apresentam,por consequência,uma rentabilidade,quevaria em função da
maior ou menor valorização,pela escola,da cultura do grupo de origem.Podem,por isso, ser Pierre Bourdieu e Jean-ClaudePasseron publicaram Les héritiers: les étudiants et la
tratadas como capital. A transformação do capital incorporado em capital cultural institu- culture em 1964.Fruto de pesquisas empíricas realizadas em 1962-1963,eles descreveram
cionali'zado,isto é, em capitalescolar,exigeum trabalho especialpor parte das famílias.Esse os mecanismos e processospelos quais o sistema de ensino legitima os privilégiossociais,
trabalho será tanto mais explícitoquanto a família não tiver interiorizado nas suas práticas eliminando os "deserdados",seja no acesso à instituição de ensino superior,fato percebido

HERDEIROS (OS): OS ESTUDANTES E A CULTURA 219


218 HERANÇA CULTURAL
(Les héritiers: /es étudiants et la culture)
na representaçãodesigual das diversas camadas sociais nesse grau de escolarização,seja no de informaçõestécnicase de incitaçõesintelectuaissão raros. Percebe-seque os estudantesnão
interior da mesma, provocando práticas escolares comuns, embora tais experiências não constituemum gruposocialhomogêneo,independentee integrado.Estapassividadedo ser estu-
possam ser consideradas"idênticas e, sobretudo, coletivas"(LH,25). dantetambém estáligadaà condiçãodo alunoem direta associaçãocomseu futuroprofissional.
É justamente essa questão que dá início ao livro: "seria suficienteconstatar e lamentar a Osprofessores,por seu turno, em suaspráticaspedagógicas,só reconhecemos alunoscomo
representaçãodesigualdas diferentesclassessociaisno ensinosuperiorpara estar dispensadode iguaisem deverese direitos.Nâspráticasescolarescotidianas,normalmente,serãoenxergadas
qualquerobrigaçãocomrelaçãoàs desigualdadesfrenteà escola?"(LH,11).Apartir daí,Bourdieu apenasas lacunasculturaisgrosseirasquepossuemdeterminadosalunosem sua formaçãoesco-
e Passerondeixamclaroque a intençãonão é a realizaçãode um trabalho de pesquisaestatístico larizada.Essasituaçãodestacadapelosautoresé bastante significativa,pois interferena relação
e monográficosobreos problemasde desigualdadede acessoao ensinosuperior,mas efetivaro que o aluno procura no corpo professoral,que é a de mestre e aprendiz,em uma tentativade
desvelamentode um quadro sociologicamenteestabelecidona educaçãoe detectaros possíveis obterreferênciasintelectuaise de valoresculturais. O professortem a função de criar o desejo
mecanismosque desfaçamtal lógica.Mesmoque as análises contidasno livro se atenham ao do consumo do saber ao mesmo tempo em que busca satisfazê-lo.Para Bourdieue Passeron,
ensinosuperior,é evidentequeo quadroquese apresentouvinha se delineandoprogressivamente "o carisma professoralseria uma incitaçãopermanente à consumaçãocultivadà' (LH,64) - e
nos níveis de escolaridadeprecedentes,que poderiam ser relacionalmenteexaminados.Um também neste aspectose prova que o ensinonão tem influenciadonada nem ninguém,já que
exemplodissoé a constataçãodos autoressobrea noçãode democraciadesencantadado sistema tem suscitadonos alunos a necessidadede produtos que elestêm dispensado.Isso se dá pela
escolar,das vias múltiplase desviadaspelas quais a "escolaelimina continuamenteos alunos lógicaexistenteno sistemaescolare osprodutosdestesistema,ou seja,os alunose osprofessores
origináriosdos meiosmenosfavorecidose que culminam nos obstáculosculturais,percebidos experimentamtal lógica."Osestudantesnão contribuemcoma orientaçãoou a transmissãodo
nas diferençasde atitudese de aptidõessignificativamenteligadasà origemsocial,interferindo saber.Os professoresnão consultam os alunos sobre suas necessidadese, quando o fazem,se
na formaçãodo estudante,mesmoque essetenha permanecidodurante quinzea vinte anos sob deparam com a passividadee espantodos discentes,que demandam dos professoresrespostas
a ação homogeneizanteda escola"(LH,19-22).A escolaseria a via real da democratizaçãoda sobresuas urgênciase escolhasque possam satisfazersuas necessidades"(LH,64).A escolaé
cultura se ela não consagrasse,ignorando-as,as desigualdadesiniciaisdiante da cultura. Esta responsável,então, "por produzir um lote de consumidoresparticularmente conformados"
ignorânciaseriano sentidode não reconhecerque existemalunoscom déficitcultural,quenão (LH,65),comoutilizadorese transmissoresde uma cultura criadapor outros.Para os autores,
podem ser percebidosda mesma forma,como categoriahomogênea. estudarnestesistemaescolarem cursonão é produzir,mas se produzircomocapazde produzir.
Apesarde escaparda eliminaçãodecorrentedas chancessimbólicasde acessoaos níveisde Na conclusãose retomamalgunspontoscentraisdiscutidos,sendosistematizadaa descrição
ensinosuperiore conseguindoingressarna universidade,novasdesigualdadesserãoimputadas das diferençassociaise das desigualdadesescolarese questionando-seas ideiashegemônicas
para essesestudantes,quedevemescolheras áreasquepodemser objetivamentefrequentadaspor sobreas quais o sistemaescolarse fundamenta.Desvelaro privilégiocultural e a ideologiado
uma determinadaclassesocial,sendoque ainda terão que lidar com as desigualdadesde infor- dom a partir de uma reflexãocrítica e denunciadoracolocaem xequeafirmativascorriqueiras
maçõessobreos estudos,aptidãodo manejode instrumentosintelectuais,os modelosculturais como, por exemplo,"os estudantes não leem mais" ou "o nível dos estudantes baixa a cada
associadosa certasprofissõese a adaptaçãodas regrase valoresqueregema escola.ParaBourdieu ano".Explora-seainda o caso de uma mãe que, na presençado filho,afirma que elenão é bom
e Passeron,no desempenhoescolarexisteuma tendênciade atribuiraopassadoimediatoo sucesso em francês,ignorandoque os resultadosque ele apresentaencontram-se"diretamenteligados
ou o fracassoescolar,quando na verdadedependemde orientaçõesprecocesque são feitas,por à atmosferacultural da familia, que ela está transformandoem um destinoindividualo que é
definição,no meio familiar.A ação direta dos hábitos culturais e das disposiçõesherdadas do fruto de uma educação,e que pode ainda ser corrigido,ao menosparcialmente,por uma ação·
meiode origemé redobradapeloefeitomultiplicadordas orientaçõesiniciais,desencadeandona educativà'(LH,109).Assim,para os autores,a autoridadelegitimadorada escolapoderedobrar
lógicaescolaras sançõesque consagramas desigualdadessociaissob a aparênciade ignorá-las. as desigualdadessociais,já que as classesmenosfavorecidas,conscientesdemaisde seu destino
Issose deveem grandeparte em razão da escolavalorizara cultura livre,a cultura herdada e sem a consciênciadas vias pelas quais essese realiza,contribuempara a sua realização.
dos indivíduos das classesfavorecidasadquirida nas experiênciasextraescolares,desvalori- Bourdieue Passeronrevelamaindaquecadaprogressono sentidoda explicitação dasexigências
zando a cultura que ela própria transmite. A cultura escolar,segundo os autores, "não seria recíprocasde alunose professores,bem comoda organizaçãodos estudospara permitir que os
então uma cultura parcial ou uma parte da cultura, seria sim uma cultura inferior" (LH, estudantesdesfavorecidos possamsuperarsuasdesvantagens,é um avançoem direçãoà igualdade
33).Os elementosque a compõemnão possuem o sentido que teriam em um conjunto mais de condiçõesno interiorda escola.Entendemo ensinorealmentedemocráticocomo"aqueleque
amplo.Isso se prova quando é percebidoque os indivíduos de origem socialinferior e que só permitequeo maior númeropossívelde indivíduosconquiste,no menortempopossível,e da
adquiriram a cultura escolar,em uma aprendizagemde renúncia de sua própria cultura, em melhorforma, as aptidõesque estruturama culturaescolarem um dadomomento"(LH,114,
uma aculturação, são inferiorizadosdiante da exaltaçãoda cultura dos herdeiros. grifosdo original}.Percebe-seque estemodelodemocráticose opõetanto ao ensinotradicional,
Outroaspectolevadoem consideraçãono espaçoescolare destacadono livroé quetal espaço orientadoem direçãoà formaçãoe seleçãode uma elitebem-nascida,comoaoensinotecnocrático,
contribuipara acentuaras desigualdadesfrenteà cultura pela faltade integraçãono meioestu- voltadoà produçãoem sériedeespecialistassobmedida.A democratização realdoensinonãopode
dantil. Os contatosentre os estudantesque objetivemtrocas de experiênciaspara a transmissão acontecersem "umapedagogiaracionalquese dediquea neutralizar,metódicae continuamente,

220 HERDEIROS (OS): OS ESTUDANTES E A CULTURA HERDEIROS (OS): OS ESTUDANTES E A CULTURA 221
(Les héritiers: les étudiants et la culture) (Les héritiers: les étudiants et la culture)
da educaçãoinfantilà universidade,a açãodosfatoressociaisde desigualdadeculturale a pos · as ações dos grupos e dos indivíduos (sejaa crise da sociedade_ rural tradicional na Argélia
a vontadepolíticapara dar a todoschancesiguaisdiante do ensino"(LH,114-115). suu- ou no Béarn ou as transformações do sistema educacionalcom o crescimento do número
de alunos do ensino médio e superior nos anos 1960) estão permeadas semprepela duração
históricae por um movimentooriundo das tensõese da impossívelreproduçãoinalterada das
1ío. HfX/SCORPORAL relaçõesde dominação.A história é marcada pela discordânciaentre o habitus dos grupos
································
·················································································
ou dos indivíduos, produto de um estado antigo das estruturas sociais, e as novas condi-
Ver:Corpo; Habitus çõessociais emergentesque implicam "reconversões"ou adaptações das estratégias sociais
habituais. Eis o que explica a predileção de numerosos trabalhos de Bourdieu, ou de seus
estudantes,pelas situaçõesde crise em que as antigas estruturas ou os habitus manifestam
111. HISTÓRIA de modo tão explícitosua lógica específicaque são ameaçadosou se veem a contracorrente
······················································································································· das transformações- o que implica,por parte de seus defensoresou partidários, a elaboração
Christophe Charle de estratégias de defesa que os obrigam a explicitar seu impensado ou a justificá-lasdiante
"E.somente ~ história pode nos livrar da história" - P. Bourdieu, Aula inaugural daquelesque as questionam.A análise sociológicadeste ou daquelecampo é, portanto, uma
proferida no Collegede France, sexta-feira,23 de abril de 1982. forma de apreender, ao mesmo tempo, a história estrutural de tal campo e as relações de
Na França, as relações entre a história e a sociologia foram marcadas, durante muito força entre seus polos, assim como a transformação, realizada ou não de um campo, per-
te~po, por tensões ~ incompreensõesdesde as origens, inclusiveda sociologiauniversitária mite avaliar a dinâmica dos indivíduos ou dos grupos em competiçãotanto para definir os
na_epoca de Durkhe1m(1858-1917).Convémevocar,aqui, a polêmica de 1903 entre Charles respectivosdesafiose limites quanto para obter a posição dominante em seu seio. Todosos
Se1gnobos,d~f~nsorda história crítica, e o discípulode Durkheim, FrançoisSimiand,repro- elementosestão sempreem movimento e em questão,em função não só das lutas intestinas,
vando o empmsmo dos historiadores, suas prenoções e sua recusa em detectar leis sociais mas também da posiçãodessecampo no espaçosocialmais global- em particular, do campo
da evoluçãodas sociedadeshumanas, através de procedimentosrigorosose de comparações do poder - e da conjuntµra geral. Portanto, a história e a sociologiasão, segundo Bourdieu,
no tempo e no espaço.Essa tensão atenuou-seum pouco com o sucesso das ideias dos fun- ciências sociais praticamente indistintas, pelo menos no pressuposto de que lhes sejam
dadores da revista~nnales d'Histoire Économique et Sociale (primeironúmero publicado fixadosos objetivosde compreensãodinâmica das estruturas e das esfratégiascoletivasou
em ~929),em particular com o reconhecimentopor parte de seus diretores - Marc Bloche individuais:''A oposição(entre a história e a sociologia)é, a um só tempo, muito profunda
Luci~nF~bvre- da impo:tância dos trabalhos de Durkheim, Simiand e Halbwachspara por estar baseada em diferençasde tradição e de formação,além de completamentefictícia,
os hi storiadores que deseJavam,como eles dois, desbravar novos terrenos fora da clássica porque a sociologiae a história têm o mesmo objetoe poderiam ter os mesmosinstrumentos
hist~ria política e baseada em grandes acontecimentos. O interesse que a história acabou teóricos e técnicos para construí-lo e analisá-lo" (BouRDIEU, 1995, p. 111).A derradeira
suscrtand~entre os s~ciól~go~da geraçãoque precedea de Bourdieu,em particular Raymond diferençareside, em particular, segundo os assuntos e as épocas estudados,nas fontes e nos
Ar?~• assim como a mfluenciada antropologiasocial e da sociologiasobre os historiadores materiaisutilizadose, sobretudo,utilizáveis,já que a informaçãonecessáriapara a construção
proxu~os de Bourdi~u Jean-Pierre Vérnant, Pierre Vidal-Naquet ou Georges Duby -, do modelo de compreensãoé cada vez mais fragmentada, parcial, incompleta ou difícil de
redefin_rr~~de manerra duradoura as relaçõesentre essas duas disciplinas. interpretar, na medida em que o investigadorse afasta da sociedadeatual, em que é possível
No imc~o,a _reflexãode Bourdieusobrea históriafoi alimentadapor essenovoclima,ainda empreender diretamente a pesquisa, interrogar os atores e as testemunhas, além de cons-
~ueseus ~rimeirostrabalhos - pesquisasempíricasna Argéliae na regiãonatal de Béarn - se truir o questionário sem intermediário opaco (historiografiaanterior, arquivosprivados ou
tr~e~semmspirado,ini~ialmente,nos m~t~dosda etnologiae da antropologia,em um diálogo públicospré-construídos,etc.).
cnti~oco~ 0 es~ru~r~ismo de Cl~udeLev1-Strauss. Todavia,seuprimeirotrabalho de síntese, Apropósitodo Homo academicus - livro em que Bourdieutenta fazeruma análisecrítica
S~~wlogzede_l'Algene (1958),alem de suas pesquisas de campo anteriores, apoia-seem um de seu próprio círculo-, afirma:"Trabalheicomoum historiadorpor ter tomadopreviamente
solido conhecimentoda história e do passado colonial desse território que estavapassando uma decisãometodológica.Eu pretendia romper com a imagem do sociólogoenquanto revo-
por uma terrível guerra de independência (1954-1962). lucionárioou policial.Limitei-meportanto a utilizar fontesescritas e públicas,mesmo que o
. _Ahist~ri~é concebidapor Bourdieu - que, nesse aspecto, se posicionana linhagem das acessoa esse 'público'seja,muitas vezes,difícil. [...] No entanto, minha maneira de proceder
ideiasde S~mian_d ~ c~moum repertório de experiênciassociaisespecíficasna qual é possível distingue-sedo método dos historiadores.Pensoque não se pode compreendero que se passa
dete~tarleis soc10logrcas,cuja validade é mais ampla do que a simplesinterpretação de um no campo universitário se esse conteúdonão for reposicionadoem um espaçoque possa ser
caso isolado,construindo-se rigorosamenteo modelo estrutural dos fatorescomuns e diver- designadopor campo do poder ou espaçoda classe dominante" (BouRDIEU, 1985,p. 177).
ge~tes de um caso histórico em relação a outro. Embora a qualificaçãode "estruturalistas" Quantomaiorfoiseuprogressona obrateóricaou reflexiva,tanto maissolidamenteBourdieu
atribuída aos primeiros trabalhos de Bourdieu seja abusiva,as estruturas que condicionam se apoiou em material histórico emprestadode diversoscontextosa serem comparados,ou

222 HEX/S CORPORAL HISTÓRIA 223


refletiu a partir de trabalho~ de historiadores que, em seu entender, tinham afinidade com BOURDIEU,P. Prefácio. In: PANOFSKY,E. Architecture gothique et pensée scolastique. Paris:
suas próprias orientações.Neste caso,pode-se citar seu longoposfáciopara o livro de Erwin Minuit, 1967.
Panofsky(1967);as pesquisas de história e de história literária mobilizadasou desenvolvidas BOURDIEU,P. L'Institutionnalisation de l'anomie. Les Cahiers du Musée National d'Art Moderne,
para o livro Les reglesde l'art (1992);a análise do contextohistórico da emergênciada pin-
p. 6-19,juin 1987.
tura moderna com a figura de Manet (BouRDIEU, 1987);a crise universitária e cultural, na
Alemanha,analisadapor FritzK. Ringer,autor em que Bourdieuse apoiano livroL'Ontologie
politique de Martin Heidegger;o número da revista ARSS (1995)ou do Le Bulletin de la
Société d'Histoire Moderne et Contemporaine (SHMC,1999),nos quais entabula diálogo
l BOURDIEU,P. Les historiens et la sociologiede Pierre Bourdieu. Le Bulletin de la S.H.M.C., 1999.

1·12. HOMOACADEM/CUS
·······················································································································
crítico com os historiadores (BouRDIEU, 1995- nesse mesmo número há artigos de Carola Ana Paula Hey
Lipp,Hartmut Kaelble,C. Charle e E. François);os trabalhos e cursos sobre o Estado que se
baseiam em uma importante bibliografiae em reflexõeshistóricas tomadas de empréstimoa BOURDIEU,P. Homo academicus. Paris: Minuit, 1984.
diversoscontextos.Do mesmomodo,ARSS publicounumerososartigos escritospor historia-
dores e sociólogosda área da história para mostrar com maior nitidez a complementaridade Editadaem 1984,a obra focao sistemauniversitáriofrancêsnas duas décadasde expansão
e a convergênciadessas duas ciênciassociais, separadas artificialmentepela história e pela ocorridas até os anos 1970.Resultado de mais de 20 anos de pesquisas, insere-se em uma
organização universitárias, destacando-se as contribuições de Maurice Agulhon, Michael linhagemde análisesdo campo intelectual,debatendoas relaçõessubjacentesao inconsciente
Baxandall,Enrico Castelnuovo,RogerChartier, Robert Darnton, Eric Hobsbawm,Hartmut científicoque regula a prática e o poder dos professorescomoprodutores simbólicosespecí-
Kaelble,JürgenKocka,ErnestLabrousse,CarlSchorske,etc.Nessaprática,Bourdieusituava-se ficos.Ao trazer à tona tal universo, arrisca-se a tomar como objeto seu próprio mundo, sua
não só na longatradição de Durkheim (L'Évolutionpédagogique en France,1938),de Max posição e as relações aí geradas, para o qual mobiliza as ferramentas de objetivaçãode um
Weber(Economieet société,1971),de Marc Bloch(La sociétéféodale, 1939-1940, verdadeira campo composto por diferentes espéciesde capital que forjam a estrutura de distribuição
sociologiahistórica das sociedades medievais),mas também esforçava-sepor lutar contra de poderes particulares constitutivosdo princípio das tomadas de posiçãotanto intelectuais
"o confinamentoescolástico"em disciplinas e subdisciplinasque não cessoude se acentuar, quanto políticas. ,
desde os anos 1960,com o forte crescimentodo número de pesquisadorese de professores Nessa direção, duas maneiras distintas de leitura do livro emergem.'Aprimeira, relativa
universitários, e em razão do maior conforto de se criarem territórios confinados,ao invés à construção empírica do sistema universitário,realiza a distribuiçãodas faculdades- Ciên-
de se abordarem grandes questões em ampla escala ou na longa duração. Em seu entender, cias, Letras, Direito,Medicina- conformea posiçãode cada uma na estrutura universitária,
o conhecimento da história social de cada disciplina era a condição prévia para controlar por meio da classificaçãode poderes e de posiçõesali constituídos,bem como se dedica ao
melhor os impensados transmitidos pela tradição e livrar-se dos falsos debates e dos falsos ordenamento do espaço das disciplinas no interior das faculdades de Letras e de Ciências
conceitosherdados do passado:"Por conseguinte,somenteum uso reflexivoda história pode Humanas. Demonstrando as mudanças morfológicasdas faculdadese das disciplinas,visa
nos dar a liberdade em relação à história, pode nos fornecer algumas possibilidadesde não apreender as formas, os níveis da legitimidadee do poder universitáriose seus princípios de
veicular conceitosobnubiladospor sua historicidade"(BouRDIEU, 1999,p. 18). funcionamentoe de transformaçãoem interfacecom o campodo poder comoprincípiodeter-
A despeito do desaparecimentode Bourdieu e do inacabado de alguns de seus últimos minante do espaçosocial.A segunda refere-seao poder de cientificidadeda sociologiacomo
canteirosde obras em que a dimensãohistórica estavaparticularmente presente,a renovação mecanismo de objetivaçãopertinente e válido de uma "instituição socialmentereconhecida
da históriaglobale transnacionalentre os historiadoresdo mundo inteiroe o atrativocrescente comofundamentadapara operar uma objetivaçãoque aspiraà objetividadee à universalidade"
da sociologiahistórica entre alguns sociólogosdas jovens geraçõesconfirmam que o projeto (CD,144),inscrevendoa abordagem nas preocupaçõesdo autor sobre a natureza do métier
de convergênciada história e da sociologia,preconizado por Bourdieu,continua mantendo científico.Vista "comoum experimento sociológicoa propósito do trabalho sociológico",o
grande atualidade científicae, até mesmo, política. livro fornece princípios para a investigaçãocrítica e teórica, fundada na pesquisa empírica,
bem como para a defesa da autonomia do campo intelectual em relação às forças externas,
Referências sejam políticas, midiáticas ou religiosas.
BOURDIEU,P. Sur les rapports entre la sociologie et l'histoire en Allemagne et en France. ARSS, A discussãoempreendidabaseia-seno poder da Sociologiacomosocioanáliseao produzir
n. 106-107,mars 1995. ferramentas de objetivaçãoque podem neutralizar os vieses entre o observadorsociológico
BOURDIEU,P. Les professeurs de l'Université de Paris à la veille de mai 1968. In: CHARLE,C.; e seu objeto,visto que o observador ocupa uma posiçãonesse universo de investigação(WA-
FERRÉ,;R.(Orgs.).Le personnel de l'enseignement supérieur en France aux XIX' et XX' siecles. CQUANT, 1989).Ao se referir à sua publicação,Bourdieu afirma que o trabalho causou-lhe
Paris: CNRS,1985. mais problemas do que qualquer outro, uma vez que se corria o risco de reduzir ao terreno
da luta no interior do campo universitário uma análise cuja finalidade era objetivar esse

224 HISTÓRIA HOMO ACADEMICUS 225


embate, dando ao leitor um domínio dessa luta (CD,117).Se o universo social é o lugar de Centrada na posse de capital cultural institucionalizado, os professoresuniversitários
uma luta para saber o que é o mundo social, a universidadetambém é locusde uma batalha se situariam no polo dominado do campo do poder, constituídopelos patrões da indústria
para saber quem,no interior desseespaçosocialmentemandatário para dizer a verdadesobre e do comércio, mas ocupando posição temporalmente dominante no campo de produção
o mundo, está realmente fundamentado para dizer a verdade (CD,116).Assim, de caráter cultural, 0 que os aproxima d9s altos funcionários e os opõem aos escritores e artist~s. _os

l
indubitavelmentepolêmico, funciona como uma pedagogia de pesquisa ao demonstrar o professoresdas distintas faculdadesse distribuem- conside:an~~o polodo ~oder econom=co
rigor na apreensão de um objeto que ultrapassa a experiência comum para chegar à expo- e político e O do prestígio cultural - segundoos mesmospnnc1p10sque as,d1~erentes fraç~es
sição lógica e empírica das condiçõesde realização do discurso científico.É nessa direção da classe dominante, ou seja, há o crescimentode propriedades caractensticas das fraçoes
que a obra se filia aos estudos voltados às condiçõessociais de produção da razão científica preponderantes das classesdominantes partindo das faculdades de Ciênciasàs faculdades
e, em particular, da análise sociológica,e ao entendimento da lógicado campo universitário de Letras e, dessas, às faculdades de Direitoe de Medicina.Demonstra, ainda, que a depen-
em relaçãoaos fundamentos das categoriasali geradas que o estruturam e possibilitamsua dênciaem relaçãoao campo políticoou econômicovaria em razão inversaà hierarquia social
permanência ou mudança. das faculdades,sendo que a sujeiçãoàs normas típicas do campo intelectualpredomina nas
A obra apresenta,de início,um escopoamplo que problematizaquestõesepistemológicas faculdadesde Letras e de CiênciasHumanas,emborade maneira desigual,segundoa posição
presentes na análise do espaço universitário, cuja relação de proximidade pode gerar um no espaço (HA, 57-58).A análise também desvelaque o campo univer~itáriose o~ganizade
efeitode exemplificação,sobretudo ao se tomar como foconomespróprios, incitando o leitor acordocom dois princípios de hierarquizaçãoopostos:a hierarquia social (determmadapelo
a reduzir o indivíduoconstruído "quesomenteexistecomotal no espaçoteóricodas relações capital herdado e pelo capital econômicoe político)se opõe à hierarquia e~pecífica(centra-
de identidade e de diferença entre o conjunto explicitamentedefinido de suas propriedades da no capital de autoridade específicaou de notoriedade intel~ctua_l). ~~slffi,as e~t~utur~s
e os conjuntos singulares de propriedades, definidas segundo os mesmos princípios, carac- do campo universitário estariam sujeitas ao confronto de dms prmc1p10sde l~git1maçao
terizando os outros indivíduos" (HA, 11)- ao indivíduo concreto. concorrentes.O primeiro, de caráter temporal e político,se impõe de modo ma1~dar~ ,d~s
Quantoàs categoriasteóricasem pauta, sobressainão só a noção de campo universitário- faculdades de Letras às faculdades de Direito e Medicina,tornando o campo umversitano
referindo-seao sistemade relaçõesem queum conjuntofinitode propriedades(científicas,eco- dependente de princípiõs vigentes no campo do poder; o segundo, fundado ~a au~o~omia
nômicas,políticas,institucionais)são atuantes e no qual as posiçõesse estabelecemmediadas da ordem científicae intelectual, se aplicade modo mais intenso quando se vai do Direitoou
pelohabitus e pelastomadasde posiçãocorrespondentes,istoé, entreo pontoocupadono espaço Medicina às Ciências(HA,70-71).
e o ponto de vista sobre o próprio espaço,que ageno presentee no futuro dele (HA,31)-, mas Referindo-seàs faculdades de Letras e de CiênciasHumanas, Bourdieu demonstra que
tambéma de uma espécieparticularde poder,o universitário,relacionadoao controleda reprodu- ambas se enquadram no princípio geraldo espaçodas faculdadesem seu conjunto,que opõe
çãoe das relaçõesali perpassadas,possívelde ser demonstradópelacoalizãoentredeterminantes agentes e instituições mais voltados à pesquisa e aos,contencios~scientífic?sou do c~mpo
objetivos,propriedadesque produzem efeitosno campo e determinantes relativosà postura intelectual e seus respectivoscontenciososculturais, aquelesmais voltados_a reproduça~~a
intelectuale científica,que sãomenospercebidos,mas eficazesno interiordo campoe foradele. ordemcultural e do corpodos reprodutorese em direçãoaos interessesassociadosao exerc1c10
Bourdieu expõe em detalhes a construção dos elementospara a distribuição de poderes do poder temporal na ordem cultural (HA,99-100).Assim,estas faculd~des~o~~títuem-seem
no campouniversitário,demonstrando o manuseiode fontesbastante diversificadasrelativas locusprivilegiadopara observar a disputa entre dois tipos de poder umversitano: o centrado
à morfologiadas faculdades e às transformações das disciplinas. A utilização de múltiplas no acúmulo de posições- que permitem controlar outras posiçõese seus ocupantes- e o que
informaçõesvisou abarcar os indicadoresprincipais e gerar as variáveisutilizadas na análise privilegiao prestígiocientífico.O primeiro é aquelepropriamente_~~iversit~r~o,dispo~tono
de correspondência.Os dados são organizados em relação aos diferentestipos de capital ali domínio dos instrumentos de reproduçãodo corpo professoral(3uns, comites),um tipo de
atuantes, tais como:anuários de universidades;Who's Who, da França; dicionáriosbiográ- capital adquirido na universidade,em particular na EscolaNormal_Superiore na Sorbonne,
ficos;perfis docentesrealizadospor instituições de ensino; notícias necrológicas;dossiêsde e detido pelos professoresdas disciplinas canônicas, tais como a Fílosofi~.~ segundo r~fe-
jornal acerca de personalidades marcantes; anuários de ex-alunos de escolasconsagradas; re-se à autoridade científica, ao prestígio e à notoriedade intelectual, cu3aenfase recai no
prêmios em concursos;obtenção de títulos; pertencimento às instituições de pesquisa e de reconhecimentopelo campo científico,sobretudo no exterior. Típicodas novas disciplinas
órgãos de financiamento;bancas de concurso;comitês de revistas científicas;frequênciade científicas,tais como Sociologiae Etnologia,se afirmam em princípios como"ciênciaco~t=a
publicações;obrastraduzidas;coleçõesde livro de grande difusão;índicesde citaçãocientífica; criação,trabalho coletivocontra inspiraçãoindividual,abertura internacionalcontra trad1çao
estágiosprofissionaisno exterior;participaçãoem emissõesde TV;publicaçõesem jornal e em nacional, esquerda contra direita" (HA, 155). _
revistasintelectuais;participaçãoem gabinetesministeriais; comissõesdo governo;apoiosa Ao realizar a classificaçãode seu própriouniversopor meio da materialidadedas relaçoes
abaixo-assinados,apoio à candidatura de presidentesda Repúblicae a causasligadas à uni- entre O habitus, a posiçãoe as tomadas de posiçãono campo universitário,ao mesmo tempo
versidade;frequênciaem colóquiossobre reformas de ensino; opinião sobre a universidade revela O movimento de transformação do estado de relaçõesde força dessas estruturas e o
e suas transformações,além de se recorrer a informantes e a entrevistas. modo de reprodução que ali se opera, contribuindo ora para a análise das condiçõessociais

226 HOMO ACADEM!CUS HOMO ACADEMICUS 227


da produção científica, ora para a autonomia do campo universitário e do papel político Esboçode uma teoria da prática, La noblessed'État, A distinção, O sensoprático). Tal
desses produtores simbólicos. noção,emprestadade um conceitode mesmonome existentena física,cujatradução do grego
husterein significaestar atrasado, é utilizada para explicarque pode haver uma" defasagem
Referência estrutural" entre as ocasiõese as disposições,ou seja, as categoriasde percepçãoe de apre-
WACQUANT, L. For a Socio-Analysesoflntellectuals: on Homo Academicus.Berkeley Journal of ciaçãoficariam mal ajustadas às possibilidadesobjetivasdo funcionamento de um campo
Sociology,Symposiumon the Foundations ofRadical SocialScience,v. 34, p. 1-29,1989. porque o entorno com o qual se confrontam seria demasiadodistante daquelecom o qual se
ajustam. Para Bourdieu (CDp),o habitus torna-se eficiente,operante, quando encontra as
condiçõesde sua eficácia,isto é, condiçõesidênticasou análogasàquelasde que ele é produto.
Torna-segeradorde práticas ajustadasao presentee ao futuro inscritono presente,mas de um
l 13. HONRA(Sentidoda)
······················································································································· universosemelhante.Assim,basta os agentesse deixaremlevar por sua "natureza" e estarão
Enrique Martín Criado corno"peixesdentro d'água", naturalmente ajustadosao mundo histórico com o qual se de-
frontam. Entretanto,para o autor,existiriauma hysteresisdo habitus que, tendencialmente,
Em 1965Bourdieupublicou o artigo "ToeSentiment ofHonour in KabyleSociety",que, perpetuariam as estruturas correspondentesàs suas condiçõesde produção,permanecendo
com modificações,foi incorporado ao livro Esquisse d'une théorie de la pratique, précédé no presente com condicionamentosdo passado e revelandouma desadaptaçãoàs condições
de Traisétudes d'ethnologiekabyle (1972).Esse artigo é crucial na elaboraçãodos conceitos em vigor. O princípio da inadaptação,o desajuste,as "ocasiõesfalhadas",segundo Bourdieu
de habitus, estratégiasde reproduçãoe capital simbólico.Seu objetivoé explicaras condutas (ETPp, 179),poderiam ser explicadas a partir dos condicionamentos primários e do que
de honra na sociedadecabília.Sualógicabásicaé o desafioe a manutençãodo grupo:o homem ocorre ao longo do processo de socialização.As disposiçõesfuncionam a contratempo por
de honra sabe responderaos desafiose guardar a responsabilidadede seu grupo. Isto se aplica sua tendência de serem duráveis, capazes inclusivede sobreviveràs condiçõeseconômicas
tanto aos ataques como aos dons: um dom é um desafioao qual é precisoresponderpor meio e sociais de sua própria produção. Para exemplificara hysteresisdo habitus Bourdieu, em
de um contradom. Para manter essejogo de intercâmbios,o homem de honra há de saber se vários momentos de sua produção, se refere ao efeito de "Dom Quixote". Para o autor, a
controlar e responder no momento adequado com os meios adequados. Bourdieuparte do situação do personagem em questão buscaria colocar em ação, em um espaçoeconômicoe
métodoestrutural de Lévi-Strausspara recomporo complexoespaçode regras e oposiçõesque socialtransformado,um habitus que é produto de um estadoanterior do mundo em que está
regemos intercâmbiosde honra. Porém,realiza duas transformaçõesfundamentais frente ao inserido.Em O sensoprático, Bourdieutambém utiliza o exemplodo efeitode Dom Quixote
método estrutural. Em primeiro lugar, constitui como princípio das condutas de honra um e o efeitode hysteresispara falar do conflitode gerações.
ethosinteriorizadopela socialização,já integrando o conceitode habitus comoessencialpara
entenderas práticas.Em seguida,afirma que as condutas de honra não podem ser entendidas
como simplescontinuaçãodas regras, mas sim como estratégias de reproduçãomediante as
quais os grupos mantêm e acumulam seu capital simbólico:são jogadas práticas, realizadas
na urgência e na incerteza, que só podem ser compreendidasse situadas novamenteno con-
junto das estratégias de reprodução.Essas transformações são básicas para a elaboraçãode
sua teoria da prática - daí Bourdieu integrar esse artigo em Esquisse d'une théorie de la
pratique e utilizar muitas de suas análises em Le sens pratique (1980).

Referência
BOURDIEU,P.ToeSentirnentofHonour in KabyleSociety.In: PERISTIANY,J.G. (Ed.).Honour and
Shame: The Valuesof Mediterranean Society.Londres:Weidenfeldand Nicholson,1965.p. 191-241.

·114. HYSTERESIS
·······················································································································
Cristina Carta Cardosode Medeiros

A noçãode hysteresis(histerese),efeitode hyster.esisou hysteresisdo habitus, é abordada


por Bourdieu em vários textos e livros (verificarem Questões de sociologia,Coisas ditas,

228 HONRA (Sentido da) HYSTERESIS 229


MUEL-DREYFUS, F. Vichy et l' éternelféminin: contribution à une sociologiepolitique de l'ordre
descorps.Paris: Seuil, 1996.
VEYNE,P. Quand notre monde est devenu chrétien. Paris: A. Michel,2007.

í 1&. ILLUS/O
·······················································································································
Andréa Aguiar

É sobretudo em seus últimos trabalhos, em particular aquelespublicadosnos anos 1990


- Réponses (1992),Raísons pratiques (1994)e Meditatíons pascaliennes (1997)-, que
Bourdieupassa a adotar de forma mais regular a noção de íllusio, em substituiçãoàquelade
"interesse".A referênciaao termo - cuja origemvem da raiz ludus (jogo)- ele extrai da obra
de Huizinga,Homo ludens, essaí sur la fonctíon sociale du jeu (1938),onde a illusio surge
11s. IDEOLOGIA
······················································································································· associadaà ideiade estar no jogo,estar envolvidono jogo,levaro jogoa sério.Comessaopção,
Roberto Grün o autor afirma seu propósitode demarcar uma distância clara das interpretaçõesque tomam
o interessecomo universal,atemporale trans-histórico- próprias das visõeseconomicistase
Em diversostextos Bourdieudeixa claro a sua aversãoao conceitomarxista de ideologia utilitaristas -, circunscrevendoseu significadoe sentido a universossociaisdelimitados,os
(MP,205).A ideologiaé um sistema de ideias que pode ser discutido enquanto tal e também campos.Cadacampo- espaçosocialrelativamenteautônomo,caracterizadopor disputasentre
como forma de apreensão, de denegaçãoou, principalmente, de construção da realidade e seusparticipantes,que giram em torno de determinadoscapitais "requere acionauma forma
do mundo. Nessesentido podemos anotar trabalhos importantes do autor e de seu primeiro de interesse,um investimento,uma illusio específicâ'(R,93),que expressao reconhecimento
círculo de colegas,como "Aprodução da ideologiadominante",um dos principais artigos da tácito de seus participantes no valor do que ali está em jogo. SegundoBourdieu,a noção de
fase inicial de ARSS, posteriormentereeditado comolivro (PID).Nessamaneira de entender illusio representade formamais rigorosa,e portanto,mais fiel,o sentidoqueelesempreatribuiu
o conceito, Bourdieu se aproxima e se inspira em historiadores dos Annales, como Duby àquelade interesse:"Quandoeu digo interesse[...] me refirosemprea interesseespecífico,um
(1978)e Veyne(2007). interessesocialmenteconstituídoe que só existe em relaçãoa determinadoespaçosocial,no
Para Bourdieu o conceitode ideologiaé muito problemáticono seu uso mais frequente, qual certas coisassão importantes e outras não" (BouRDIEU, 1989,p. 14).
quando é apresentadocomo o fundamento último da dominaçãosocial.Elefaz deslocarpara De modosimilar,também a ideiade investimentotem sua abrangênciaampliadapara além
o terreno do racional e do lógicouma realidade que deve ser buscada nas formas em que a da perspectivaeconômica,na medida em que a illusío reforçaseu sentidode crença,de envol-
ordem socialse inscreveno corpo e na fisiologiados indivíduos,no habítus que a socialização vimento,de empenho no jogo (LD,94).Investir e atuar nas disputasconcorrenciaisque estão
produz nos indivíduose grupos. Consequentemente,aquelanoção mais comum de ideologia à base da dinâmica de funcionamentode um campo - travadasem torno de capitais:recursos
é um mau instrumento heurístico, pois torna o investigadorincapaz de entender as razões simbólicosou objetivadosinterpretadoscomoatrativos- significareconhecerali alvosdignos
da submissão e as reais possibilidades de revolta diante de situações que podem parecer de serem perseguidos.Pertenceràqueleuniversoe deleparticiparé, portanto,compartilharda
impossíveisde serem vividas quando apreendidas apenas pelo intelecto. mesma íllusio, da crençafundamental em seu interesse. É essaforma de encantamento- que
Buscando inspiração na antropologia da Argélia, a dominação masculina é registrada decorrede um reconhecimentoimediato- que marca a característicaessencialda perspectiva
como o arquétipo, como o fundamento último de todas as dominaçõessociais (DM).O texto de Bourdieusobrea noção de investimento:mais comoproduto e princípiodas açõespráticas
apresenta sistematicamenteas ideias do autor sobre como se faz a inscrição da dominação próprias a um espaçosocialdelimitado,e menos como resultantede um cálculoracionalque
no corpo, a enorme dificuldadede combater os efeitosdesse "assinalamento",bem como os prevêlucros. "Por investimentoeu entendoa propensãoa agir que nasce da relaçãoentre um
limites muito estreitos das estratégias de tratar a dominação como "ideologia"no sentido . campoe um sistemade disposiçõesajustadasa ele,um sentidodojogo,das apostasemjogo,que
marxista. Ao tempo em que Bourdieuescreviaa primeira versão do texto, sua colaboradora, implicam,ao mesmo tempo, uma inclinaçãoe uma atitude a participar do jogo,ambas social
Muel-Dreyfus(1996),desenvolviaos argumentos e mostrava essas circunstâncias para a e historicamenteconstituídas,e não universalmentedadas" (R, 94).
França no governode Vichye na ocupaçãonazista. O que a noção de íllusio reflete,como interesse em um campo, é uma cumplicidadee o
ajustamento entre as estruturas mentais dos sujeitos (seu habitus ou suas disposições)e as
Referências estruturas objetivas(os próprios campos,suas regularidades,os alvosem jogo, as disputas),
DUBY,G. Les trais ordres ou l'imaginaire du féodalisme. Paris: Gallimard, 1978. manifestadosnuma tendênciaà ação,ao investimento,quenascedesseacordo."Aíllusio é essa

230 IDEOLOGIA ILLUSIO 231


relaçãoencantada com um jogo que é o produto de uma relação de cumplicidadeontológica primárias, do quanto podem ser mais ou menos distantes das exigências e regularidades
entre as estruturas mentais e as estruturas objetivasdo espaçosocial" (RP,151).Compartilhar próprias àqueles espaços. É em nome da compreensão dessa "gênese do investimento em
da mesma illusio significater em comum sistemasde expectativas,de esperanças,princípios um campo de relações sociais" que Bourdieu faz apelo a uma necessária união de esforços
de classificação,avaliação,enfim,disposições,quese adequame se ajustamàs regularidadesde entre os campos da sociologiae da psicanálise.
um universosocialespecífico.Sãoessasregularidades- e não regras explícitas- que moldam
o habitus dos sujeitos,na medida em que são incorporadas e resultam em disposiçõesque, Referências
por sua vez, traduzem um sentido e domínio prático daquelejogo e de seu funcionamento. BOURDIEU,P. Intérêt et désintéressement.Cours du Collegede France à la Faculté d'Anthropologie
Essa espéciede saber prático favoreceantecipaçõesjustas sobre as evoluçõesque ali se dão: et de Sociologiede l'UniversitéLumiere Lyon2, les l" et 8 décembre 1988.Cahiersde Recherchedu
as estratégias dos sujeitos, suas maneiras de agir e investir, orientadas por um sentido do GRS(Groupede Rechercesur la Socialisation),Lyon,n. 7, 1989.
jogo, são antecipaçõespráticas das tendências imanentes do campo,jamais enunciadas sob HUIZINGA,J.Homo ludens:essaisur lafonction sacia/edujeu (1938).Paris: Gallimard, 1951.
forma de previsõesexplícitas.
É nesse sentido, de reconhecimento e adesão imediatos, refletidos nas ações práticas,
117. ILUSÃOBIOGRÁFICA
que a illusio não passa pela consciência:"Aillusio não é da ordem dos princípios explícitos, ·······················································································································
de teses que apresentamos ou defendemos,mas da ação, da rotina, de coisas que fazemos
Ver: Trajetória
porque sempre fizemosassim" (MP,147).A imersão na dinâmica do campo é mais próxima
de uma ilusão na qual o sujeito não se vê como é, uma adesão que se dá sem seu consenti-
mento intelectual. Essa ilusão necessária sobre si mesmo e sobre o mundo decorre exata-
112. INCONSCIENTE
mente da adesão ao conjunto de dogmas implícitos, crenças fundamentais, enfim à mesma ·······················································································································
doxa, que veicula os valores daquele universo, determina o que é importante, as apostas Paula Mantera
em jogo, ou o que deve ser negligenciado.Daí as ações, os investimentos e as disputas ali
travadas - que podem parecer desprovidas de senso a agentes externos ao campo - serem Para Bourdieu,o inconscienteresulta,fundamentalmente,de um duplotrabalhoda história:
tomadas como evidentes, naturais, familiares, como "o que se faz", por indivíduos total- a história coletiva,que produz nossas categoriasde pensamento e a história individual,por
mente imersos naquelas práticas e nas lógicas que as sustentam. Esse modo de ser, estar meio da qual essas categoriasnos são inculcadasa despeitode nossa vontade.Nessesentido,
e agir no jogo distingue quem dele participa de outros, que lhe são indiferentes, ou seja, a a noção de inconscientecom a qual trabalha se distancia não apenas da concepçãofreudiana
forma de interesse que funda tal adesão é o estado oposto da indiferença, da não motivação, que o definecomo um lugar no sistemada vida psíquicaonde significaçõespermanecem re-
do não reconhecimento. "A illusio é o oposto da ataraxia" - que significa o estado de não calcadas,comotambém da abordagemuniversalistae lógicaimplicadana noçãode estruturas
turbamento, de não inquietação -, ou seja, é o fato de estar investido (BouRDIEU,1989, inconscientesde Lévi-Strauss.Bourdieurompe com o suposto estruturalista de uma razão
p. 12).Agentes externos à lógica de um campo são indiferentes ao que ali se passa porque humana universal capaz de determinar externamente a ação dos homens no mundo social.
não reconhecem alvos a investir, não se sentem motivados, turbados pelas disputas em Elebusca reintroduzir em sua análise a ideia de agentee propor que, embora determinados,
questão, não atribuem valor às apostas em jogo e tampouco conseguem identificar as elestêm capacidadescriadorase certa latitudepara decidiro curso de suas práticas.Essavolta
hierarquias que tais concorrências acabam por definir. do sujeitoque o estruturalismo havia banido.emseu debatecom a fenomenologiasartriana
Mas o termo "illusio", além de frequentemente acompanhado das noções de interesse e dos anos 1950(LÉVI-STRAUSS, 1962,p. 280) e com o marxismo, não significou,no entanto,
investimento, surge associado ainda à ideia de libido: "a noção de interesse deve ser subs- um retorno ao subjetivismoindividualista ou a um irracionalismo.Para escapar à dicotomia
tituída pela noção de illusio, ou de investimento, ou mesmo de libido" (BOURDIEU, 1989, que dominavao debatefilosóficode sua época,entre o objetivismodas estruturas sem sujeito
~-10).Segundoo autor, a forma originária da illusio é o investimento no espaçodoméstico. e o subjetivismodas filosofiasda consciência,ele sugere que as ciênciashumanas superem
E na esfera familiar que tem início o processo gradual de socializaçãoque transforma pul- o empirismo descritivoprevalecentenesse campo e levemem conta as categoriasimanentes
sões em interessesespecíficos:a transformação da libido originária, indiferenciada,própria· às práticas. No limite, trata-se de propor uma teoria geralda crença (CD):a crença entendida
da organização narcísica, em libido socialmente constituída, específicae orientada para o não como um ato soberano da consciência,mas, ao contrário, como um efeito simbólico
outro. "O trabalho de socialização específicatende a favorecer a transformação da libido socialmenteeficaz(illusio) inscrito no corpo sob a forma de disposiçõespara a ação (habi-
originária, isto é, dos afetos socializados constituídos no campo doméstico, em uma ou tus). Comoa crença, as disposiçõestampouco podem ser reduzidas a um conjunto de fatos
outra fprma de libido específica,graças, sobretudo, à transferência dessa libido em favor privados internos: a maior parte da ação humana não tem por base a intenção ou o cálculo.
de agentes ou instituições pertencentes ao campo..." (MP,237).A aquisição de disposições A forma como percebemoso mundo está situada aquém do plano objetivoe subjetivo.Mais
específicas,ajustáveisa um ou mais campos, depende, entre outras coisas, das disposições do que o inconscienteé a não consciênciaque governaa ação (RP).

232 /LLUS/O INCONSCIENTE 233


1
(

Referência
da Escola que, independentementede qualquer mensagem explícita, dota os indivíduos de
LÉVI-STRAUSS, C. Histoire et dialectique. In: ___ . La pensée sauvage. Paris: Plon, 1962.
pretensões estatutárias que levam a recusar as opiniõespré-fabricadasou a autoridade dos
porta-vozes,alémde "reivindicaruma opiniãopessoal"em matériade política;moral e religião.
119. INCORPORAÇÃO Finalmente, as transformações da estrutura das classessociais e dos modos de reprodução
..................................................................................................................... .
~
atribuíram importância crescenteao capitalescolar.Pode-secompreender,nessaperspectiva,
Ver: Capital cultural; Corpo; Habitus a predominância assumida pelas formas"brandas" de autoridadeque tendem a eufemizaras
relaçõesde força,dissimulando-aspor trás da celebraçãoda cooperação,do intercâmbioe da
criatividade individual. O que está em causa é a aparição de um modo de dominação onde
•i20. INCULCAÇÃO a competênciae a racionalidadesubstituíram a obediência,o conformismo,a autoridade.
·······················································································································
Dito isso, a forçados coletivoscontinuasendo muito importante, mesmo que venha a en-
Ver:Arbitrário cultural; Sistema de ensino veredar por vias menos solenese mais discretas.A modalidadeda adesãopode bem ser feita
mediante formasmais pessoais,comoescolhapuramente individual.Ocorreque a integração
das classesdominantesse efetua atravésdas escolasde prestígio,das instituiçõesde elite (La
121. INDIVÍDUO- SOCIEDADE
noblesse d'État, 1989),dos casamentosno seio de grandes famílias, dos clubesseletos,etc.,
·······················································································································
· Louis Pinto contribuindoassimpara a reproduçãodessasclasses,cujosmembrospodemnutrir o sentimento
de seguir seus sentimentospessoais.Por contraste, a demoliçãodos coletivosassociadosao
A oposiçãoindivíduo-sociedade,oriunda do senso comum, é para Bourdieu,assim como Estadosocial,descritaem La misere du monde (1993),teveo efeitode privar os membrosdas
para Durkheim, superficial,oposta às intenções descritivas e explicativasda sociologiae, classespopularesde referênciassimbólicase de precipitá-losem um isolamento,ao qual seria
portanto, fundamentalmente pré-científica:se o indivíduo é dado com seus talentos e seus inconvenienteatribuir o termo "individualismo".A única força de transformaçãosocialpara
sistemasde preferência,comoé preconizadopelo individualismometodológico,só restaria à os dominadosé a classemobilizada(opostaà classeno papel,para o teórico).
sociologiaconstatar a pluralidadedos indivíduose estudar sua "agregação";mas, esse "dado" A relaçãodo indivíduocomo grupoé uma questãoqueexigeser tratada de maneiraempírica
apresenta-se,então, como um mistério. e não metafísica.Para Bourdieu,assimcomopara Durkheim,cada indivíduoé duplo:por um
Bourdieuconsideravaas teorias individualistascomo uma simplesilustração da postura lado, pessoasingularizadapor um corpolimitado e perecível;por outro, membrode uma vida
"escolástica".Apesar de suas dúvidas em relaçãoà solidezteórica de tais concepções,ele não coletivada qual participa e que lhe proporcionareconhecimento,estima, identidadeoficiale
subestimava seu alcance político. Ao levar a sério o retorno do individualismo na filosofia pública. Os indivíduos singulares "participam da eternidade e da ubiquidadedo grupo, para
e na sociologia,ele o consideravacomo uma "espéciede profecia autorrealizante que tende o qual contribuem a fazer existir como algo permanente, onipresente,transcendente" (MP,
a destruir os fundamentos filosóficosdo welfare state e, em particular, a noção de respon- 287).Oritual regulamentaas relaçõesentre os dois aspectos:"Orito de investiduraexistepara
sabilidadecoletiva(nos acidentesde trabalho, no caso de doença, ou na miséria, que é essa tranquilizar o impetrante sobre sua existênciaenquanto membro de pleno direito do grupo,
conquista fundamental do pensamento social (e sociológico)"(CFl, 14).Com a ascensão do sobre sua legitimidade,mas também para reassegurar o grupo sobre sua própria existência
neoliberalismo,desde o início da década de 1980,o indivíduo foi posicionadona dianteira como um grupo consagrado e capaz de consagrar" (MP,287).Mesmoque tenha aparências
não só contra a sociedade,mas sobretudocontra o Estado,"jacobino"e "totalitário",contra as de transcendência, o grupo existe apenas através das crenças e expectativasdos membros;
"instituições"(partidos,sindicatos...). Elefoi associadoao retorno a uma "filosofiado sujeito" portanto, há diversos graus de integração, assim como de crença. A herança implica a pre-
que rejeitaa ambiçãodesmesuradadas ciênciassociaisno sentidode explicartudo pelosocial. sença do grupo que recorre ao herdeiro, cujo desejo consiste em herdar. Bourdieu designa
Pode-sedizerque toda a obrade Bourdieué uma superação"emato"da oposiçãoindivíduo- por capital simbólicoessa forma de capital acumulada pelo grupo e que proporcionavalor,
sociedadeou, se preferirmos,que tal superação é uma tarefa a ser retomada continuamente, legitimidade,razão de ser a seus membros.A importância desse capitalvaria com o volume
porque a sociologianão cessa de trabalhar contra os efeitosda naturalização do social que é dos capitais possuídos (econômico,cultural; social),reproduzindo à sua maneira a desigual
exercidasobre o indivíduo (ideologiasdo dom, da pessoa, etc.). distribuição dessescapitais:os dominantessão também aquelesque detêm mais valor social,
Comoé que a sociologiade Bourdieuse esforçapara analisar fenômenosmuito díspares, reconhecidosocialmente.É na sociedadeque se encontra o fundamento derradeiro do valor
reunidos sob o termo "individualismo"?A sociologiados gostose dos estilos de vida permite que arranca os indivíduos da insignificânciae da arbitrariedade.
mostrar o quanto as práticas de distinção fazem parte da relação com a cultura dos grupos Como analisar sociologicamenteos agentes concretos?Deve-secomeçarpor se livrar da
privilegiados,assombradospelohorror da "massa"e do "nivelamento".Tergostos"pessoais"é ilusão nominalista que consiste em partir do indivíduo singular consideradocomo o único
algoque está inscritonas posiçõessociaissuperioresque cultivamos valoresde originalidade verdadeiramente real, "indivíduo empírico" percebido na experiência ordinária e dotado
e de requinte. Essetipo de incentivos,associadoao ambiente familiar, é fortalecidopela ação de um número indefinido de características. Em vez de propor uma espécie de decalque
234 INCORPORAÇÃO
INDIVIDUO - SOCIEDADE 235
"empreendimento,aliás, infrutífero", o conhecimentoobjetivoconsiste em promoverprin- dominados (tema dos "intelectuais orgânicos"em Gramsci;dos "cãesde guarda'' em Nizan;
cípiosde inteligibilidade.Para retomar a terminologia de Homoacademicus(1984),pode-se dos intelectuais engajadosou "companheirosde estrada" em Sartre; ou dos intelectuais co-
dizer que "o indivíduoepistêmico"é metodicamenteconstruído pela ciência,graças à seleção munistas "a serviço do Partido"). As pesquisas empreendidaspor ele e seus colegassobre os
e à construção de certo número de variáveisdotadas de uma grande densidade informativa estudantes,aprendizesintelectuais,o convenceramda multiplicidadedos fatoresque entram
e de um elevadovalor explicativo (por exemplo,origem social, sexo).Salvo a limitar-se a emjogonas tomadasde posição,no intere.sseou no desinteresserelativamenteao compromisso
"enumerar os fenômenos",como dizia Kant, o sociólogonão pode evitar a construção de político ou ideológicoentre os jovens (ou menos jovens) intelectuais. As mobilizaçõesdos
classesde indivíduosrelativamentehomogênease baseadas no real. É na obra La distinction estudantes por ocasião da Guerra da Argélia (1954-1962)ou em torno dos acontecimentos
(1979)que se encontram as explicaçõesmais detalhadas sobre esse ponto. Em uma "classe de Maio de 1968demonstraram o quanto as sociologiasanteriores ou as análises políticas
construída'',as variáveisnão são justapostas, mas formam um sistema em que a significação clássicasa priori são insuficientesquando aplicam esquemas classistasou político-ideoló-
de cada uma depende da relação com as outras. Ao perguntar qual é a parte da profissão, gicos,ou recorrem a tipologiaspsicossociológicas.Bourdieupretende também reagir contra
sexo,religiãonesta ou naquela prática, corre-se o risco de formular uma pergunta artificial, a visão "romântica'' ou heroica que ressurge com a temática,na moda durante os anos 1960,
como faz a análise multivariada que pressupõe a independência de cada variável da qual do conflitode geraçõesou da rejeiçãodas instituições,mobilizadanos trabalhos da sociologia
ela pretende isolar a eficácia(grandes patrões e intelectuais ilustres têm frequentementea norte-americana sobre as novas formas de engajamentodos intelectuais,jovens ou menos
característica"nascidoem Paris", "estudante de GrandesÉcoles",etc.).A partir do conjunto jovens,a propósitode 1968.Para sair dessasaporiase simplificações,deve-sereconstituircom
das propriedadespertinentes, trata-se de construir uma "posição'!que só adquire sentido em paciênciaa rede das relaçõesentre os grupos e o espaçoestrutural do campo intelectual que
determinado espaço,já que é precisamente esse espaço que determina a natureza e a força orientam as opiniões preconcebidas.Convém,igualmente, produzir uma microssociologia
das propriedades:o sociólogonão impõe uma grade intemporal, mas planeja um conjunto das trajetórias e do habitus em conflitopara analisar plenamenteos modos de compromisso
de posições diferenciaisque é um produto histórico. A trajetória é a sucessão das posições dos intelectuais em uma dada conjuntura ou em determinado período.A Guerra da Argélia,
ocupadas,posiçõesquepodemreunir trajetóriasascendentes,descendentes,etc.Atravésdessas assim como as manifestações de Maio de 1968,forneceram uma ampla matéria para esse
posições,o que está em causa é o volume e a natureza dos capitais possuídos que permitem tipo de análise que combinacorte estrutural e história genética.Apesar de testemunha e ator
a "persistênciano ser" (social)e a reprodução da posição. dessascrisesque provocaramuma profunda divisãoentre os intelectuaisfranceses,Bourdieu
faz seu balanço apenas posteriormente,em particular no livro Homo academicus (1984)e
em Esquissepour une auto-analyse (2004),no que tange à Guerra da Argélia.
122. INTELECTUAIS Reconciliara abordagemindividualem profundidadecoma perspectivacoletiva;resenhar
ChristopheCharle
os invariantesgeraise as variaçõespeculiaresaos diversosgrupos ou subcampos(professores
universitários,intelectuais"livres",jornalistas,artistas, etc.);reposicioná-losnas conjunturas
A questão do tratamento sociológicodos intelectuais aparece,em Bourdieu,em meados históricas específicas(a crise social e política,na França, em torno de 1848,do ponto de vista
da década de 1960,no momento em que ele efetua várias pesquisas com seus colaboradores de Flaubert;no momentodo CasoDreyfus,1894-1906;ou nas décadasde 1930-40)- (OP;RA;
sobre os estudantes e, em seguida,sobre os professoresuniversitários;mas também quando CHARLE, 1990);Sapiro,1999;reencontrarcorrespondênciastrans-históricasentre determina-
ele começaa trabalhar sobre o campo literário. Essa questão era dominada, na época, pelos das configuraçõeshomólogasde opiniõespreconcebidas,ou de reaçõessociaise ideológicas
debates políticos e pela figura do intelectual engajado,encarnada por Sartre. Nessa mesma de alguns tipos de intelectuais,sem reduzi-losa simplesporta-vozesde "interessesde classe"
época encontravam-seas análises de tipo sociológicoderivadas de K. Mannheim (Ideologia ou de "ideologias"- serão essesos objetivosconstantesdas análisesteóricas,assim comodos
e utopia),J.Schumpeter(Capitalismo,socialismo ou democracia)ou Max Weber (Econo- estudosempíricosempreendidospor Bourdieue por seusdiscípulosa respeitodos intelectuais.
mia e sociedade),conhecidas,sobretudo na França, através de sua vulgarizaçãopelos livros A definição abstrata e sociológica- "fração dominada da classe dominante", proposta
polêmicosde RaymondAron (1955),com quem Bourdieu estabeleceuma relaçãoestreita, já em 1971e desenvolvidaem 1980(BouRDIEU, 1971,1980)-, assim comoos estudos empíricos
que este último dirige o Centro de SociologiaEuropeia, da VI seção da EPHE(EscolaPrática aprofundados sobre intelectuais ilustres, tentam sustentar as duas pontas desse programa
de AltosEstudos),da qual Bourdieufoi o subdiretor até o desmantelamentodessecentro após de pesquisa. Definir os intelectuais como "fração dominada da classe dominante" implica
os acontecimentosde Maio de 1968.A maneira como Bourdieuvai repensar a questão dos situá-los no espaço mais amplo do campo do poder, avaliar seu grau de autonomia e de
intelectuais situa-se no prolongamentoe em reação contra essas duas abordagens,parciais, unidade relativas, determinar as linhas de clivagemvariáveissegundo as relações entre as
unilaterais e marcadas fortementepor a priori ideológicose pelo confrontoentre marxismo diversasespéciesde capital- econômico,cultural, simbólico- em determinadasociedade.Ao
e funciqnalismo,teoricismoe empirismo.Contra a visão marxista ou marxizante, a análise mesmotempo, convémestar atento aos modos de designaçãoe de representaçãodessafração
dos intelectuais proposta por Bourdieu rejeita reduzi-los a sua origem social, a sua função segundo os momentoshistóricos e as sociedades,sob pena de extrapolar indevidamente_de
ideológicaou política de apoio à luta de classes,seja ao lado dos dominantes, seja ao lado dos um caso particular (aqui,o francês)para outros casosda Europaou do mundo.As conotaçoes

INTELECTUAIS 237
23 6 INTELECTUAIS
i
i

diferentesdo termo "intelectual",segundo as culturas políticas,sua aparição diferenciadade de conciliar ciência e compromisso, autonomia do pensamento crítico e vínculo com os
acordo com os países e as épocas, a divergênciade seus equivalentes,constituem importan- movimentos sociais que resistem às investidas das políticas neoliberais e autoritárias,
tes indicadorespara situar os intelectuais em relação ao campo do poder e às outras classes ameaçando liquidar o restante do Estado-Providência(ver Contre-feux, 1998; e Contre-
sociais, assim como para compreender as linhas de corte entre eles, retradução, segundo feux 2, 2001); para a importância da presença das ciências sociais no ensino médio, para
cada caso, de clivagensreligiosas,sociológicas,territoriais, políticas, etc. A experiênciada a defesa de um ideal aberto de ensino superior como mola propulsara de emancipação e
Argéliae da ambiguidadedos intelectuais autóctonesem uma sociedadecoloniale marcada de progresso social, além de espaço de formação dos futuros intelectuais, para a fundação
fortementepela presença do Islã;o conhecimentoindireto da sociedadebrasileira através da com C. Charle, em 1992, da Association de réflexion sur les enseignements supérieurs et
tese de SergioMiceli,elaboradano âmbito do Centrode SociologiaEuropeia(MrcELI,1981);a la recherche (ARESER),assim como a publicação de um livro coletivo (1997). Esse novo
leitura e a interpretaçãoaprofundada dos filósofose sociólogosalemães(Cassirer,Heidegger, combate dos intelectuais trava-se no plano não só nacional, mas também internacional,
Max Weber);a necessidadede se situar perante a sociologiaempírica dominante no mundo comopode ser observadoem seu Interventions, sciencesoeiale et actionpolitique (2002).
universitário,oriunda dos EstadosUnidos e defendidavigorosamentepor alguns sociólogos
concorrentesou adversáriosde Bourdieu- tudo isso acabou por torná-lo,bem cedo,sensível Referências
ao interesse e às dificuldadesdo método comparativopara esse tipo de temática. ARON,R. L'opium des intellectuels.Paris: Calrnann-Levy,1955.
As análises que Bourdieu dedicou a alguns grupos ou personalidades foram felizmente BOSCHETTI,A. Sartre et Les Temps Modernes. Paris: Minuit, 1985.
completadaspelosnumerosostrabalhos que seu método e suas sugestõessuscitaram em seus 'BOSCHETTI,A. (Org.).L'espaceculturel transnational. Paris: NouveauMonde, 2010.
estudantes,diretos ou indiretos, na França e no exterior.Todoesse corpusteórico e empírico BOURDIEU,P. Charnp du pouvoir, champ intellectuel et habitus de classe. Scolies, Cahiers de
permite esboçar uma verdadeira história social e estrutural dos intelectuais,em um período Recherchede l'ÉcoleNormaleSupérieure,v. 1,p. 7-26. 1971.
de média e longa duração, não só no âmbito francês (RA;CHARLE, 1998;BoscHETTI,1985; BOURDIEU,P. Cornment libérer les intellectuels libres? In: ____ .. Questions de sociologie.
SAPIRO, 1999,2011;PINTO,1995),mas também em escalaparcialmenteeuropeia(OP;CHARLE, Paris: Minuit, 1980.
1996; CASANOVA, 1999; SAPIRO, 2009; BoscHETTI,2010) e, até mesmo, internacional. Essa BOURDIEU,P. et al. Quelques diagnosticset remedes urgentspour une université en péril. Paris:
abordagemhistórico-sociológicapermite que Bourdieue aquelesque se inspiram em sua obra Liber-Raisonsd'agir, 1997.
e~c~pemao eterno presentedos ensaiospolêmicossobre os intelectuaisou à sociologiadepre- CASANOVA, P.La république mondiale des lettres. Paris: Seuil, 1999.
ciativae carentede perspicáciaque caracterizaa maior parte dessesescritosde circunstância. CHARLE,C. Naissance des "intellectuels"(1889-1900).Paris: Minuit, 1990.
Na última fase de sua obra, na medida em que sua notoriedade o levava a implicar-se CHARLE,C. Paris,fin de siecle.Paris: Seuil, 1998.
~m novas formas de engajamento,Bourdieu tentou igualmente definir uma nova figura do CHARLE,C.Les intellectuelsen Europeau XXe siecle,essaid'histoire comparée.Paris: Seuil,1996.
r~tel,e~tual, bas:ada nessas análisesteóricase históricas,embora adaptada à nova conjuntura MICELI,S. Les intellectuels et le pouvoir au Brésil (1920-1945).Paris: PUG/MSH,1981.
hrstonca das decadas de 1980 e 1990, marcadas pelo que ele designou como a restauração PINTO,L. Les neveux de Zarathoustra: la réception de Nietzsche en France.Paris: Seuil, 1995.
conservadora e neoliberal. Esta, tanto na França quanto em uma grande parte do mundo, SAPIRO,G. La guerredesécrivains(1940-1953). Paris: Fayard, 1999.
redundouem um novoataqueaos intelectuais,comoa Françatem conhecidoperiodicamente, SAPIRO,G. La responsabilitéde l' écrivain:littérature,droitet moraleen France(XIXIe.-XXe.siecle).
e no adventode figurasque lhes fazemconcorrência,submetidasaos imperativosdo mercado Paris: Seuil, 2011.
e do poder,para defendere ilustrar a ordem estabelecida:intelectuaismidiáticos,jornalistas, SAPIRO,G. (Org.).L'espaceintellectuel en Europe: de laformation des États-nations à la mon-
think tanks, peritos, etc. Diante dessa nova aliança entre poder, dinheiro e saber, Bourdieu dialisatíon XIXe.-XXIe. síecle.Paris: La Découverte,2009.
reafirmou tanto em seus livros e em suas intervençõesquanto em seus escritos militantes a
necessidadede criar um intelectual coletivo,apoiadonos conhecimentosdas ciênciassociais 123. INTERESSE
que estariam a serviçodo ideal universalista das Luzes e da defesados dominados, alicerce, ······································································································•··••············
al_iás,da t~adiçãodo intelectualde esquerdana França. Com efeito,na nova situaçãopolítica Ver:Illusio
e mternac10nal,as formas antigas, pontuais ou partidárias do compromissodeixaram de ser
suficientespela seguinte razão: o que está em jogo é a própria autonomiados intelectuais e a
apropriaçãodo saber pelos diferentesgrupos sociaisem luta. Eis aí a explicaçãopara o texto 124. INTERVENTJONS,
1961-2001:SCIENCE
SOCIALE
ETACTJON
POLJTJQUE
·······················································································································
que encerra o livro Les reglesde l'art, "Pour un corporatisme de l'universel";para a funda- Afrânío Mendes Catani
ção da _associação"Raisons d'agir"; para a publicação de opúsculos militantes na coleção
que exibe esse mesmo nome em particular, Sur la télévision (1996), que tem obtido
uma grande repercussão e suscitado numerosos debates midiáticos; para a necessidade BOURDIEU,P. Interventíons1961-2001:
scíencesocíaleet actíonpolítique.Marseille:Agone,2002.

238 INTELECTUAIS INTERVENTIONS, 1961-2001: SC/ENCE SOCIALE ET ACTION POLITIQUE 239


a antiguidadena condiçãode jogador,são trunfos ao alcancede uma minoria e cujoprivilégio habilidade em compreendere se orientar no jogo implica que os agentes façam uma leitura
lhes tende a dar vantagem considerávelfrente aos demais. tanto de sua posição no espaçosocial quanto dós recursos de que dispõem - captando dessa
Sobeste ângulo,o próprio conceitode habitus é entendidopor Bourdieuao mesmotempo forma as hierarquias e relaçõesde forçaem seu interior-, suas estratégiastendem a obedecer
como sentido do jogo e como o próprio jogo incorporado, funcionando como um operador a uma lógica de maximização dos recursos de que dispõem. Embora não necessariamente
de racionalidadeprática que fornece ao agente um saber agir aprendido ao longo do tempo reflitamum cálculo explícitÓe conscientedos agentes,as estratégiasadotadas no jogo social
por meio de sua inserção no mundo social. O sentido do jogo pode ser então tomado como mobilizamnos jogadoreso sentido do jogo a fim de que operem suas ações (escolhas,lances,
uma forma de conhecimento da posição (de cada agente e do conjunto) no campo e como apostas)voltadas à conservação,melhoramento ou, em alguns casos, à subversãodo jogo e
capacidade de antecipação, isto é, uma forma de ajuste antecipado às exigências de um de suas regras. . _
espaço específicoque indica o encontro ·entre um habitus (uma história e um jogo social Por outro lado,à medidaque os agentesse deslocamdentro do camposegundoa onentaçao
incorporados) e um campo (uma história objetivada).Tal como no esporte, o bom jogador objetivade suas trajetórias - de uma posição dominada para uma intermediária ou d~~i-
é aquele que consegueprever as jogadas dos adversários e organizar as suas, inclusivecom nante, por exemplo-, eles tendem a ajustar suas estratégias em função das novas posiçoes
improvisações,em função disso. ocupadas.Este efeitoexplicapor que ao longo da vida socialum agenteou grupo de agentes
A participaçãoem determinadocampo social- científico,religioso,econômico- depende pode assumir estratégias, sobretudo na forma de tomadas de posição em relação às regras
intrinsecamenteda atribuiçãode sentidopeloagenteàquelejogoespecífico,do reconhecimento do jogo e das questões em jogo, que variam de arriscadas ou desafiadorasa conservadoras
de valor nas questõesem disputa e da aceitaçãode suas regras. Esta adesãoou crençano jogo ou voltadas à preservaçãoda situação atual.
e em todos seus pressupostos,que Bourdieu chama de illusio, é o que garante a existência
do jogo como crença coletiva inteligível e dotada de sentido e razão de ser para todos (e
127.JORNALISMO
apenas para eles)aquelesenvolvidose tomados pelo jogo. Valedizer, para que um campo se ················································································
·······································
constitua e funcionecomo tal, são necessáriasnão somente questõesque lhe sejam próprias,
mas também pessoas dispostas a jogar o jogo e que possuam um habitus que implique o Ver:Mídia
conhecimentoe o reconhecimentodas leis intrínsecas do jogo e do que está em jogo.Assim,
por exemplo,se o investimentono campo da ciência ou no das artes pressupõe que os par-
ticipantes ou candidatos a participantes, antes de mais nada, acreditem no valor em si das 12s.JUVENTUDE ...............................
.
·······················································································
atividadescientíficasou artísticas e de tudo que lhes diga respeito e, em seguida, obedeçam Marilia PontesSposito
às exigênciasimpostas comocondiçãopara atuar legitimamentenaquelesespaços,a ausência
desta crença nos indivíduosalheios àqueleespaçotorna o jogo e as açõesnele realizadas sem Bourdieutrata diretamente do tema juventudeem dois textos, pouco extensos,mas den-
sentido;logo,sem atrativo, desinteressantee, até mesmo, absurdo. sos. o primeiro A "juventude" é apenas uma palavra (1978),é uma entrevistaconcedidaa
Em função da distribuição desigualde recursos sociais entre as classesde agentes,a pro- Anne-MarieMitailié(QSp,143-154). Osegundo,Do quefalamos quandosefala do "problema
babilidadede haverinteressee investimentoem determinados camposvaria de acordocom a da juventude? (1986),é um trabalho apresentadoem Vaucresson,na França.No primeiro,ao
lógicade funcionamentode habitusdiferenciados.A posiçãoocupadano espaçosocialsegundo criticar o caráter abstrato da palavrajuventude,retoma postura já anunciadanos anos ~960,
a dotação de capital (volumee estrutura) tende a definir, portanto, a orientação dos agentes quandorecusavauma definiçãohomogêneada categoriaestudantena análisedos universitá~ios
sociais em relação a possíveisinteresses nos diferentes campos. Desse modo, quanto mais franceses.Para Bourdieuas divisõesentre as idades são arbitrárias,uma vez que as fronteiras
valorizadofor certo tipo de capital (cultural, econômico,simbólico,social) em determinado entre os grupos etáriossão objetode disputanas formaçõessociais.A compreensãos~ci~lógi~a
campo, maior a probabilidadede os agentes mais bem dotados daquelerecurso atribuírem dos grupos de idade exigeo conhecimentodos campossociaisque possuem_suaspropna~leis
sentido e investirem naquelejogo social específico,com maiores chances de rentabifi.dade, de envelhecimento.Propõe que sejam consideradasas diferençasentre os Jovensa partir de
isto é, de acúmulo do tipo de capital específicoao campo (científico,artístico, religioso).Este suas posiçõessociaisem espaçossociaisdesiguais,o que levariaa uma necessáriapluralidade
princípioexplica,por exemplo,por que dificilmente,do ponto de vista probabilístico,um filho no estudo desses segmentos.Apresenta,também, sugestõesimportantes para o ~studo ~as
de operário ou de pequeno comerciantese sentirá atraído e investirá no mundo das artes; e geraçõesao ressaltarque as aspiraçõesdas sucessivasgerações,de pais e de fll!1os,sao tambem
caso aconteça,por que são reduzidas as chances de se manter naquele espaço,alcançar uma produto dos diferentesestados da estrutura da distribuição de bens e de diferente~oportu-
posiçãode destaque ou obter seus principais benefícios. nidades de acessoa esses mesmosbens. Conflitosde geraçõesseriam, então, conflitosentre
Ne~saperspectiva,a noção bourdieusianade estratégiacomoproduto do sentidoprático, sistemasde aspiraçõesconstituídosem épocasdiversas. No segundotexto,insis~;em afirmar
ou mesmocomoo próprio sentidodojogo,ocupalugar central na compreensãodas diferentes que a juventude,bem como a opiniãopública,não existe.O debate em torno ~o .problema~a
condições de entrada e de movimentação dos agentes sociais nos campos. Uma vez que a juventude"(delinquência,violência,drogas,entre outros)revelariaque as propnas categorias

JUVENTUDE 243
242 JOGO (Sentido do)
~einteligibilidadeem torno dosjovenssãotambémproduto do mundo social,sendonecessário
rr ~lém dess~~~rim~ir~s:lassifica ões. O que se anuncia por meio da construção "problema
da Juventude e a eX1stenc1a
7
de conJunturasem que a ordem sociale a ordem das geraçõesnão
estão asseguradas.Em contextosde forte mudança do modo de reproduçãoocorreriamcrises
de sucessão,tanto no sentidocronológicocomono sentidojurídico da herança legítima.

Referências
BOURDIEU,P. De quoi parle-t-on quand on parle du "probleme de la jeunesse"? In: PROUST,F.
(Org.). Lesjeunes et les autres: contributions des sciencesde l'homme à la question desjeunes.
Vaucresson/CRIV,1986.p. 229-235.
MÉTAILIÉ,A. Lesjeunes et lepremieremploi.Paris: Association de Ages, 1978.p. 520-530.

129. LEGITIMIDADE/LEGITIMAÇÃO
·······················································································································
Maria JoséBraga Viana

Bourdieufundamenta em Webera sua teoria da legitimidade, transpondo para a ordem


cultural as teses weberianas acercados efeitosde uma "ordemlegítima"- religiosa,política,
jurídica- sobreo conjuntodos grupossociais.À sua maneira,Bourdieuformulauma economia
dos bens culturais (objetos,saberes,práticas, competênciase habilidades),definindo como
legítimosaquelesque a sociedadeconsiderasuperiores,no quadro de relaçõesde dominação.
As noções de arbitrário cultural e de violência simbólicaassumem centralidade nessa
teoria. Para o sociólogofrancês, nenhuma cultura é intrinsecamentesuperior à outra, sendo
o arbitrário cultural a imposição- e o reconhecimento- de uma cultura, a dominante, como
uma verdade universal. Nesse fenômeno ocorre ao mesmo tempo uma violênciasimbólica
dos grupos dominantes sobre os dominados,violênciaque se exercede diferentesmaneiras
e em âmbitos distintos. Bourdieue Passeron (~R, 38) defendemque "numa formaçãosocial
determinada, a cultura legítima, isto é, a cultura dotada de legitimidade d_ominante,não é
outra coisa que o arbitrário cultural dominante, na medida em que ele é desconhecidoem
sua verdade objetivade arbitrário cultural e de arbitrário cultural dominante".
O reconhecimento da cultura legítima pelos dominados funda-se no exercíciode um
poder que aparece comolegítimo e que teria suporte num conjunto de representaçõessobre
a realidade, compartilhado por dominantes e dominados;ou seja, numa crença coletivana
legitimidadede um bem. Essasrepresentações/crenças justificariama dominaçãoestabelecida,
tornando-a aceitável,e até desejável,em nome de uma definição,supostamenteuniversal,do
Bom,do Bem,do.Justo,do Sagrado,da Verdade,do Normal,doNatural (AccARDO, 1991,p. 42).
No entanto, as diferentes classes sociais se distinguem, sobretudo pelo grau de conhe-
cimento da cultura legítima. Bourdieu (PBS,94) escrevea respeito: "as diferentes classes
sociais se distinguem menos pelo grau em que reconhecema cultura legítima do que pelo
grau em que elas a conhecem".A relaçãoque as camadas populares mantêm com a cultura
legítima,por exemplo,sejana sua dimensãoartística,literáriaou científica,seriamarcadapelo
"desapossamento",que constitui uma forma de desconhecimento(PBS;LDp). Um indicador
dessedesapossamentopode ser encontradona separação"entre as habilidades(savoir-faire)

244 JUVENTUDE LEGITIMIDADE/LEGITIMAÇÃO 245


práticas, parciais e táticas, por um lado, e, por outro, os conhecimentosteóricos,sistemáticos os trabalhos de Pierre Bourdieuno plano teórico e conceituai.Mas ele é igualmenteuma das
e explícitos[...]; entre a ciênciae a técnica, a teoria e a prática, a "concepção"e a "execução",0 principais figuras do campo intelectual francês. Eis o motivo pelo qual Lévi-Straussé um
"intelectual" ou o "criador" [...] e o "braçal",simplesservidor de uma intenção que o supera, objetode estudo privilegiadono âmbito da sociologiacrítica do mundo acadêmicodesenvol-
um executantedesapossadodo pensamento de sua prática" (LDp,361-362). vida por Bourdieu.Aliás,para o sociólogo,a análise da trajetória e das propriedades sociais
Um campoprivilegiadono qualBourdieuanalisao funcionamentoda legitimidadecultural de Lévi-Straussé condiçãopará uma apropriaçãoreflexivados instrumentos propostospela
é constituído pelosgostos e estilos de vida, entendidos como uma propriedade central dos antropologiaestrutural. Portanto, não se deveestabelecernenhuma distinção nos trabalhos
diferentesgrupos sociais (aolado de crenças, opiniões,práticas de consumo desses grupos) de Bourdieu,entre aquelesque tomam por objeto o campo intelectual (Homo academicus,
e definidos como "a propensão e aptidão à apropriação (material e/ou simbólica) de uma Esboço de auto-análise ...) e as obras mais teóricas que discutem a antropologiaestrutural
determinada categoria de objetos ou práticas" (PBS).O autor desenvolveparte importante e seus aportes (Esboço de uma teoria da prática, O senso prático, Razões práticas ...).
de sua análise a respeito desse tema no livro A distinção (2007). Na década de 1960,o trabalho de Lévi-Straussteve participaçãona redefiniçãoda paisa-
O funcionamento da escola contemporânea, por sua vez, é também exemplar para gemintelectualfrancesa, contribuindopara tornar possívela obra de Bourdieu.Lévi-Strauss
ilustrar o fenômeno da legitimidade cultural, na perspectiva de Bourdieu. Por um lado, a empreende, com efeito, uma estratégia ambiciosa de revalorizaçãodas ciênciashumanas,
escolaapresentaa cultura que veiculacomoneutra e universal,embora adote de fato a cultura baseada no acúmulo do prestígioda filosofia(otermo "antropologia"- preferido,à época,ao
da classedominante, cultura que exigede todos, independentementeda origem dos alunos. de etnologia- faz referênciaa Kant)e da ciência(o conceitode estrutura é, por sua vez,tomado
Bourdieuforjouo conceitode capital cultural - entendido como a cultura legítimano campo de empréstimoàs ciênciaschamadas"duras") - (CD,16).Coma antropologiaestrutural, uma
das artes, das letras, das ciências- para explicar as desigualdadesde escolarizaçãoentre os ciênciasocialse impõe,pela primeira vez,comodisciplinadominante,inclusiveaos olhosdos
diferentesgrupos sociais.Por outro, o sistema escolaré consideradocomo locus privilegiado filósofos:ela revalorizaautores,tais comoDurkheimou Mauss,negligenciadosdurante muito
na produção de um determinado tipo de relação com as obras de cultura consideradaslegí- tempo pela tradição filosófica,e que se constituirão em importante fonte de inspiração para
timas - relação expressana frequência a bibliotecas,museus, teatros, concertos, etc. Nesse Bourdieu.Lévi-Straussencarna, então, a figura do "marginalconsagrado",na qual Bourdieu
sentido, o autor afirma que"[ ...] as desigualdadesfrente às obras da cultura erudita não são se reconhecerá mais tarde (HA, 140-141).Efetivamente,sua trajetória desvia-se da ordem
senãoum aspectoe um efeitodas desigualdadesfrenteà escola,que cria a necessidadecultural universitária "normal" (e, portanto do estilo de pensamento e do modo de vida que lhe são
ao mesmo tempo em que dá e define os meios de satisfazê-la"(EE,60). inerentes),a qual não faz senão levar à mera reproduçãoacadêmica.O que não o impede, em
"Poderíamosdizer que a distânciaem relaçãoàs obraslegítimasse medepela distânciaem nada, de ocuparuma posiçãodominanteno espaçodas letras e das ciênciashumanas, ficando
relaçãoao sistemaescolar..." (PBS,94).Dessamaneira, o campo escolarse apresentacomorica a faltarelativade poder universitárioamplamentecompensadapeloreconhecimentocientífico
possibilidadede identificaçãoe visibilidadedo funcionamentodo arbitráriocultural,da violência e pela notoriedadeintelectual.O prestígioda antropologiaestrutural permite a Bourdieu,que
simbólicae da produçãode desigualdadessociais;em suma, da legitimaçãocultural.Cabeassi- efetuavaentão suas primeiras pesquisas na Argélia,deixar de se pensar como filósofo,mas
nalar,ainda, a existênciade aspectosem que a pertinênciae a validadeda teoriada legitimidade sem concretizar uma ruptura definitivacom a "disciplinarainha". Considerando-se,antes
cultural se apres~ntamrelativas,conformepode ser observadoem Grignone Passeron(1989). de mais nada, como um antropólogo,ele inscreveseus trabalhos na tradição estruturalista:
L'Homme, revista dirigida por Lévi-Strauss,exercesobreo sociólogouma forte atração (SSR,
Referências
191-192); e "Lamaison kabyleou le monderenversé",texto em que Bourdieuaplicacomrigor o
ACCARDO,A. La légitirnité.In: ACCARDO,A. Initiation à la sociologie:une lecture de Bourdieu. métodode análisepropostopela antropologiaestrutural,é dedicadoa Lévi-Strauss(BouRDIEU,
Bordeaux:Le Mascaret, 1991.p. 39-70.
1970).No entanto, os trabalhos sobre a aculturação (Le déracinement) e as estratégias fa-
GRIGNON,C.;PASSERON, J.-C.Le savant et lepopulaire:misérabilismeetpopulisme en sociologie miliares (La parenté comme représentatíon et comme volonté) - que suscitam questões
et en litérature.Paris: Gallirnard/LeSeuil, 1989. ignoradaspela tradição estruturalista (principalmenteas do desajusteentre as representações
e as práticas) - romperão com a abordagemlevisstraussiana.
no. LÉVI-STRAUSS,
CLAUDE(1908-2009) Trajetóriassociais e modos de entrada no campo intelectual tão diferentes quanto as de
······················································································································· Lévi-Strausse de Bourdieu só poderiam levar a práticas de pesquisa e abordagens teóricas
Michel Daccache também muito diferentes.Com efeito,segundo Bourdieu,o percurso de Lévi-Strauss,apesar
de não conforme às carreiras modais do mundo universitário, é o produto de disposições
ClaudeLévi-Straussfoi, no século XX, um dos mais importantes pensadores no campo a assumir riscos associados a uma origem social nitidamente favorecida (HA, 143).Nele
não só da ª1?-tropologia,
mas também das ciênciassociaise humanas em sentido amplo.Essa · Bourdieu vê igualmente uma das causas da relação "desrealizante" e estetizante com o
importâ_nciaestá associadaà introdução,no estudo das sociedades,do paradigma estrutura- mundo social (a esse propósito, ele evocauma "denegação"no sentido freudiano do termo).
lista, tomadode empréstimoà linguística.Nessesentido,sua obra alimentouabundantemente Essa distância do mundo social manifesta-se tanto nas escolhas dos terrenos de pesquisa

246 LÉVI-STRAUSS, CLAUDE (1908-2009)


LÉVI-STRAUSS, CLAUDE (1908-2009) 247
(frequentemente "exóticos")quanto na relação com os nativos (o "olhar distanciado") ou, Referência
ainda, no estilo de escrita (com as inflexões românticas de Tristes tropiques ou de My- BOURDIEU,P. La maison kabyle ou le monde renversé.ln:_____ . P. Echangeset commu-
thologiques).No plano teórico, ela se traduz na importância atribuída ao simbólico em nications. Mélangesoffertsà ClaudeLévi-Strausspour son soixantiemeamziversaire.Paris-LaHaye:
detrimento do material (EAA,59-63). Com efeito, ao concentrar-se quase unicamente na Mouton, 1970.
coerência interna dos sistemas simbólicos - por exemplo, as categorias de classificação-,
a antropologia praticada por Lévi-Strauss acaba por fazer abstração das funções que tais
sistemas são chamados a desempenhar nos diferentes modos de dominação. É isso que _1_~::.~~~-?.~~.~~.~~.~.(~.~.V!.':..~l!~.(~.(~~?.~!.
..................................................
.
permite compreender que a antropologia estrutural substitui as práticas efetivas pelo Afrânio Mendes Catani
sistema lógico construído pelo analista. Ao confundir os diferentes sentidos da palavra
"regra" (RP, 219), ela suprime progressivamente a diferença entre a realidade e o modelo BOURDIEU,P. Leçon sur la leçon. Paris: Minuit, 1982.
elaborado para explicá-la,confundindo assim as coisas da lógica com a lógica das coisas.
Ela ignora, por isso mesmo, as variações, as lacunas e as incoerências inerentes às práticas Sexta-feira,23 de abril de 1982,Bourdieuproferesua aula inaugural no Collegede France,
humanas, veiculando uma teoria da ação na qual os indivíduos são reduzidos ao estatuto cadeira de Sociologia,completandoo processo de sua eleiçãoe nomeaçãopara aquelainsti-
de executantes de um programa que lhes é como que imposto de fora. Esse é particular- tuição de pesquisa, criada em 1530pelo rei FranciscoI. Ele se vale de vários pensadoresdas
mente o caso das regras de parentesco, domínio de predileção da antropologia estrutural: áreas de filosofia,psicanálise,letras, ciênciassociaise matemática,além da literatura clássica
de fato, Lévi-Strausssubstitui as práticas observáveisno terreno pelo sistema elaborado a em diversosdesses domínios. Inicia sua exposiçãoconsiderandoque a aula sobre a aula vem
partir das regras oficialmenteaceitas pelos nativos. Ora, o que é considerado como algo de a ser um "discurso que reflete a si mesmo no ato do discurso",lembrando da propriedade
princípio não constitui forçosamente a r:egra:Bourdieu observa, por exemplo,que o casa- básica da sociologiacornoa concebe:todas as proposiçõesque a sociologiaanuncia podem
mento apresentado como legítimo, nas sociedades árabo-berberes, com a prima paralela, e devemaplicar-seao sujeito que faz a ciência.Praticando a sociologiada sociologia,analisa
constitui na realidade apenas uma ínfima minoria das alianças efetivas.Assim, enquanto a o discurso sociológicoa partir da posiçãosocial ocupada na estrutura do campo socialpelo
antropologia estrutural - caracterizada por seu "juridicismo" - enfatiza as regras lógicas, sociólogoque o produz,pois "a críticaepistemológicanão se dá sem um~ críticasocial"(LL,7).
Bourdieu se interessa pelo jogo com a regra. Eis o que o leva a reintroduzir os agentes e No interior de cada campo social existe um movimentoperpétuo dos diferentesagentes
suas capacidadesgenerativas - descartadas pelo estruturalismo puro, tanto na linguística em suas ações e reações constantes, procurando lutar para manter ou melhorar sua posição
quanto na antropologia - mediante noções, tais como as de habitus e de estratégia.É por no campo.Na relaçãoentre "ojogo e o sentido do jogo"é que se engendram os móveisda con-
isso inclusiveque ele reintroduz na análise uma dimensão negligenciadapela antropologia corrênciae se constituemvaloresque, "mesmoque não existamfora dessarelação,impõem-se
estrutural: a do tempo. Em seu estudo relativo à dinâmica do dom e do contradom - um no interior da mesma, com uma necessidadee uma evidênciaabsolutas.Essa forma original
dos temas fundamentais da antropologia -, Bourdieu mostra, por exemplo, que somente de fetichismoestá no princípio de toda ação".Entende os investimentoscorno"ilusõesbem
um distanciamento temporal (ignorado por Lévi-Strauss)pode explicar a coexistênciada fundadas",que "superamos lucrosexplicitamentevisados(salário,preço,recompensa,troféu,
ideologia do dom, vislumbrado como ato de pura gratuidade, e de sua verdade objetiva título, função)" e fazem com que cada agente saia do anonimato e se afirme com~ "atuante,
como simples troca "econômica"(ETP,337-341). envolvidopelo jogo, ocupado [...] e dotado de uma missão social" (LL, 30-31).E apenas a
Não resta dúvida de que a antropologia estrutural constituiu uma importante fonte de sociedade que atribui, em diferentes graus, "as justificaçõese as razões de existir". Assim,
inspiraçãopara Bourdieu,o que não o impede de julgar que ela padece de um viésparticular "sem chegar a dizer, como Durkheim, que 'a sociedade é Deus', eu diria: Deus não é nada
- o epistemocentrismoescolástico-, do qual Lévi-Straussseria a perfeita encarnação.Essa mais do que a sociedade.O que se espera de Deus somente se consegueobter da sociedade,
forma específicade ilusão erudita é, com efeito,o produto de uma relação "altivae distante" da contingência,do absurdo [...]. Ojuízo dos outros é o juízo final; e a exclusãosocial é forma
(CD,31) do cientista com seu objeto, o que conduz a projetar "na prática[ ... ] uma relação concreta do inferno e danação. É também porque o homem é um Deus para o homem que o
social impensada que não é outra senão a relação escolásticacom o mundo" (MP,67). Ora, homem é um lobo para o homem" (LL,33).
foi justamente para romper com essa forma de intelectualismoque Bourdieu,ao dedicar-se Bourdieu experimentou um terrível mal-estar por ocasião da leitura de sua aula. Nesse
essencialmenteao estudo de sua própria sociedade,desenvolveuuma abordagemgenética ritual de consagraçãoquestiona o rito de instituição no próprio rito, gerando grande cons-
e reflexiva.Enfim, se a oposiçãoentre esses dois pensadores se exprime, antes de tudo, no trangimento, dada a violênciada situação,pois questionavaa crença e a colocava"em perigo
terreno científico,ela não deixou de se manifestar sob a forma de relaçõesbastante diferen- exatamente no momento e no lugar em que seria apropriado celebrá-lae reforçá-Ia"(EAAp,
tes ao c9mprornissopolítico:à reserva voluntária de Lévi-Strausse ao conservadorismodas 131).Tem dificuldadepara concluir a leitura, sua voz quase some, verificaque vários colegas
posições que seus trabalhos inspiraram (sobretudo sobre a família) opõe-se a militância estão atônitos. "Depois,sinto um terrível mal-estar, ligado ao sentimento da gafe,mais que
intelectual e crítica desenvolvidapor Bourdieu. da transgressão" (EAAp,p. 132).

248 LÉVI-STRAUSS, CLAUDE (1908-2009) LIÇÕES DA AULA (Leçon sur la leçon) 249
Talpostura reforça,acredito,o exercíciopleno do compromissointelectual do autor, de não síntese, especialmente entre as partes I e II, preferiu-se aqui, em diferentes momentos, recor-
"pregar aos convertidos";talvez fosse esse o sentido, para ele, da "aula de uma aula inaugural rer aos artigos que originaram as partes, a saber: "Le fétichisme de la langue" (1975),que
de sociologiaconsagrada à sociologiada aula inaugural" (LL,34). raramente é citado nos estudos do sociólogosobre a linguagem,e ''L'Économie des échanges
linguistiques" (1977),publicado em número especial da revista Langue França ise sobre o
Referência tema. A escolha se deve a unia inflexão no pensamento bourdieusiano decorrente, acredito,
BOURDIEU,P. Leçon Inaugurale (fait !e Vendredi, 23 avril 1982).Chaire de Sociologie.Collegede da leitura da obra de Bakhtin-Volochinov (2006) - citado no artigo, numa primeira nota,
France. Paris, 1982.(Exemplairehors commerce, n. 370). que desaparece no livro. Avalia-se,aqui, que o procedimento permite acompanhar melhor
o pensamento de Bourdieu.
132. LINGUAGEM Para Bourdieu, o capital linguístico é uma dimensão do capital cultural, talvez uma das
······················································································································· mais dissimuladas, por diferentes razões. Por um lado, o aprendizado de uma língua é fruto
Ver:Linguístico (capital; mercado) de um aprendizado muito precoce no interior da família, não sendo, a partir de certo estágio
da construção do habitus primário (ou do estágio de formação do cérebro, de acordo com
pesquisas neurolinguísticas), facilmentemodificável- como comprovam fenômenoscomo o
í33. LINGUÍSTICO(Capital; Mercado)
·······················································································································
"sotaque"na aprendizagem de línguas estrangeiras ou a manutenção de traços regionaisestig-
Antônio Augusto Gomes Batista matizados, mesmo após uma longa escolarizaçãode sucesso (comoo R retroflexoou "caipira",
por exemplo).Por outro, e mais importante, para Bourdieu, o uso da língua é um fenômeno
De modo geral, o interesse de Bourdieu pela linguagem não se diferencia do movimento semióticototal em que o elementopuramente linguístico por assim dizer (a fonética, o léxico,
que o faz se interessar por fenômenos aparentemente díspares como a fotografia, as estraté- a morfossintaxe), não pode ser isolado do conjunto do corpo e da performance do falante,
gias matrimoniais, o campo acadêmico, o espaço, a literatura. Ao compreender seu trabalho que também funcionam como signos: o que escolhe dizer, o modo como inicia e interrompe
como uma "teoria científica",o sociólogodesejaprogressivamenteconstruir um "programa de. uma interação, como se comporta na troca de turnos, seu tom de voz, o modo de se sentar,
~ercepção e de ação - um habitus científico [...] que se revela somente no trabalho empírico. gesticular, a proximidade que guarda do outro, como se move, sua héxis corporal, em suma.
E um construto temporário que toma forma para e pelo trabalho empírico" realizado, tendo Todos esses signos, do uso de "diminói" em vez de "diminui", de "um tom de voz muito
em vista diferentes objetos e esferas do mundo social (Ri, 161). alto" ou de uma linguagem muito "elevada" ou "fluente" funcionam como indicadores da
De modo específico,porém, a atenção de Bourdieu à linguagem parece ter duas motiva- posição social do agente, desde que haja uma expectativa, garantida objetivamente, sobre
ções principais. Fundamentalmente, essa análise integra, para a construção de sua teoria da o desempenho esperado nas situações, nos distintos campos e esferas do mundo social. A
prática, sua crítica aos pressupostosdo estruturalismo, especialmenteaos daquela ciênciaque definição dessas expectativas é possívelpor meio da unificação de mercado linguístico.
se tornara, a partir de Ferdinand de Saussure e, mais tarde, de Noam Chomsky,o paradigma Primeiramente, em sua argumentação, Bourdieu se apoia em estudos históricos sobre a
das demais ciênciashumanas e sociais, da antropologia à psicanálise. É nessa empreitada que formação das línguas nacionais no espaço europeu. As "línguas", antes de serem associadas à
o sociólogositua, na primeira nota da Parte I de A economia das trocas linguísticas (1996) escrita e de constituírem um corpus literário, bem como antes de um trabalho de descrição,
o objetivo de seu trabalho: "Tentei analisar em outra parte o inconsciente epistemológico elaboraçãoe normatização, feito pelos gramáticos e lexicógrafos,existiriam apenas em estado
do estruturalismo, ou seja, os pressupostos que Saussure empregou com muita lucidez na prático. Existiriam apenas como habitus linguístico, de modo internalizado. É todo esse tra-
construção do objetopróprio da linguística, mas foram esquecidosou recalcadospor aqueles balho de objetivação de um determinado habitus linguístico, do grupo que assume o poder
que utilizaram ulteriormente o modelo saussuriano" (Ver SP,51;PVDp, 23). político na formação do Estado e por sua associação a instituições destinadas a representá-lo
A segunda e não menos importante motivação específicada atenção de Bourdieu à língua e responsabilizadas por transmitir essa língua objetivada e zelar por ela - como a escola e a
reside na própria compreensão do funcionamento do mundo social. Forma mais naturali- própria gramática e os dicionários -, tornando-a língua da nação, língua oficial,ou a língua,
zada, distintiva e, por isso, desconhecida, de capital cultural, a língua e práticas linguísticas língua legítima, que construiria, historicamente, um mercado unificado.
legítimas constituem um capital linguístico capaz de gerar lucros nos diferentes campos e de De modo correlato,todas as outras línguas - ou, mais precisamente,habitus linguísticos-
exercer uma das formas mais sutis e eficazesde violência simbólica. Por essa razão, o capital mais ou menospróximasque conviviamno mesmoespaçoou em espaçoscontíguos,quetambém
linguístico atravessa, com maior ou menor ênfase, praticamente toda sua obra. permitiama comunicaçãoentrediferentesfalantes,e quenão sofreramesseprocessode objetivação
O estudo sistemático desse tipo de çapital, porém, será feito por um conjunto de artigos, e de associaçãocom o Estado,tornaram-senão língua,desvios,erros,dialetos,variações.A língua
em parte posteriormente reunidos, com modificações,em 1982, em Ce que parler veut d ire: legítima ou oficialtorna-se o padrão a partir do qual se pode medir o desempenhode todos no
l 'économie des échanges linguistiques (traduzido no Brasil em 1996 como A economia das mercadodosbens línguísticose elaé garantidaobjetivamentepor um conjuntode instituiçõesque
trocas linguísticas: o que falar quer dizer). Embora na coletânea se note a busca de uma vão da gramáticaà escola,passandopela literatura e por toda a burocraciado Estado.

250 LINGUÍSTICO (Capital; Mercado) LINGUÍSTICO (Capital; Mercado) 251


Dadas as diferenças entre o modo de transmissão familiar e escolar - o primeiro promo- e uniformidade da língua em relação aos falantes em Chomsky.Para o linguista, é necessário
vendo uma aprendizagem precoce, insensível, em contexto de emprego da língua legítima; distinguir dois conceitos:o de competência,que descreveo conhecimentointerno que o falante
o segundo possibilitando uma aprendizagem tardia, sistemática, descontextualizada, que se tem do sistema linguístico e que lhe permite produzir um conjunto infinito de sentenças em
apresenta como aprendizado e em substituiçãoà variante linguística aprendida na socialização sua língua, conhecimento est~ construído com base numa capacidade inata; o de desempe-
primária-, o modo de transmissão escolar tende a possibilitar um reconhecimento da língua nho, que se refere ao comportamento linguístico do falante e que resulta não som~ntede sua
oficial,sem seu domínio ou conhecimento de fato, ao contrário do que se passa com aqueles competência linguística, mas também de fatores não linguísticos de ordem vanada, como
que dominam a língua legítima por familiarização. Trata-se sempre do aprendizado de uma convençõessociais, crenças, atitudes emocionais.
segunda língua que, por mais bem-sucedido, sempre deixa marcas (estruturas morfossintá- Sejadecorrente de uma capacidadeinata, seja de natureza social,p~ra,:'ª~ssure.eChoms~,
ticas, "sotaque",léxico)por se fazer com base nas estruturas do habitus linguístico primário. segundo Bourdieu, a língua é um sistema de regras dado, que tem existe_nciaa~t~nom~e rn-
Mesmoaquelesnão submetidos à ação escolar estão expostos,nas interaçõessociais,a sanções dependente dos indivíduos que a produzem. Ambos entendem que essa llllposiçao da lín~ua
do mercado - quanto mais este for unificado - que "se transmitem sem passar pela lingua- aos indivíduos se faz por sua "força intrínseca" (BouRDIEU; BoLTANSKI, 1975,p. 2), na medida
gem nem pela consciência" (PVDp,38), por meio de olhares, gestos, censuras, insinuações. em que pertencem a uma mesma "comunidade linguística". Ao contrári~, _argumenta~ão
Assim, a unificação do mercado linguístico, correlata à criação da língua legítima, altera, Bourdieue Boltanski(1975,p. 2-3),em função da criaçãodos mercadoslingmstlcospromovida
quanto mais forte for essa unificação, a relação do conjunto dos falantes com suas práticas na criacão dos Estados, "é a política que dá a ela [à língua oficial]suas fronteiras geográficas
linguísticas, pois seus produtos linguísticos passam a ser julgados pelo metro ou pela medida e demo~ráficas [...]. É fácil perceber, a propósito de diferentes casos históricos, como, com a
da língua oficiale pela antecipação- dado o reconhecimentodessa medida - das possiblidades noção de 'comunidade linguística', tradicionalmente definida, desde Bloomfield,'co!11oum
de lucro que esses produtos terão no mercado. Quanto menores as possibilidades de lucro, grupo de pessoas que utilizam um mesmo sistema de signos linguísticos {19~8,p. 29) '.[...] ~s
maiores as chances objetivase independentes dos falantes, de exercícioda violênciasimbólica linguistas nada mais fazem que incorporar à teoria um objeto pré-constrmdo, de cuJasleis
na interação: os que reconhecem sem conhecer a língua legítima tendem a se debater entre o sociais de produção eles se esquecem e cuja gênese social eles mascaram [...]".
constrangimento da hipercorreção (recorrer a estilo excessivamenteformal para uma situação Ainda segundo Bourdieu, essa amnésia da gêneseque resulta da apreensão da ~~u~ fora
distensa; generalizar regras para casos em que elas não se aplicam), a hesitação e todas as de suas condições sociais e políticas de instituição contribui para "fundar a legitimidade
manifestações de dificuldade, o silêncio; os que dominam a língua tendem a desconhecer a da língua oficial e os efeitos sociais que ela produz e dos quais não escapam nem m_es~oos
violênciaque por meio deles se exerce;empregá-lacomo um direito ou um dever educacional linguistas" (BouRDIEU; BoLTANSKI, 1975,p. 3). Essa amnésia contr!buiria par~ a cr:açao do
ou debater-seao ver súas estratégias de hipocorreção transformarem-se em condescendência. fetichismo da língua e, assim, contribuir para reproduzir seus efeitos de domrnaçao: o que
Mas tendem, sempre, a auferir lucros de distinção nas interações, não por sua capacidade de chama de língua é, na verdade, a língua, a língua oficial,a língua legítima. . ..
falar, mas por sua capacidade de falar um bem desigualmente distribuído. Em outros termos, Com a difusão da obra de M. Bakhtin e de seu círculo na França, Bourdieu revisita sua
por sua "capacidade de falar a língua legítima que, por depender do patrimônio social, tra- análise sociológicados usos da linguagem (ANGENOT, 1984),bem como dos estudos linguís-
duz distinções sociais na lógica propriamente simbólica dos desvios diferenciais ou, numa ticos, especialmente dos pressupostos chomskyanos. .
palavra, da distinção" (PVDp,42). Seu primeiro argumento é que a noção de competência ling~ística ,- a capac1d~dede
É apenas na medida em que se forma um mercado linguístico que se pode falar em capital produzir e compreender um número infinito de sentenças a partrr de nu~e~o reduzido de
linguístico, mesmo que certas situações sociais, alerta Bourdieu, como da vida privada, as regras de uma determinada língua - deve ser ampliada em razão de const~turr~ma abstr~-
leis do mercado possam ser suspensas, embora pesem "virtualmente" e sempre se imponham ção. A razão principal é que línguas são feitas para serem faladas, e e~ situaçao. A n.oç~o
tão logo os falantes se afastem "das regiões francas" (PVDp, 58). de competência deveria incluir, desse :modo,primeiramente, saber utilizar a competencia
Dessa análise mais geral decorre a crítica fundamental que Bourdieu dirige à linguística numa dada situação (o que dizer, quando, em que momento se calar, que "estilo" usar); E~
moderna, especialmentea Saussuree, secundariamente, a Chomsky(no caso de seus artigos), segundo lugar, para Bourdieu continua-se no campo da abstração ao se s,e~ararcompetencia
apesar das marcantes diferenças entre um e outro linguista. Tomando o caso do Saussure, ao e situação: como a competência linguística é aprendida em situação, ela e, rnseparavelm~nte,
distinguir a língua (Zangue)da fala (parole),o linguista genebrino define a língua como objeto "conhecimento prático da linguagem e conhecimento prático das situações, que permitem
da linguística em oposição à fala - trata-se de um sistema abstrato de regras, independente produzir o discurso adequado a uma situação determinadà' (BouRDIEU,1977,p. 18).
dos falantes, homogênea, de natureza social, mas depositado na mente de cada falante; a fala Essas situações não podem ser reduzidas às relaçõesconcretas de interação, como te~de~
não se prestaria a ser objeto da linguística, apesar de ser sua atualização; seria heterogênea, a fazer os interacionistas simbólicos: para Pierre Bourdieu, os produtos dessa competencia
variável1 individual, contendo muitos elementos não linguísticos. Embora não discuta a (ampliada) estão sempre situados num mercado ou, em outros termos, no quad~o das con-
complexidade da teoria chomskyana, nem os pressupostos epistemológicosque separam o dições sociais de possibilidade de produção e de circulaçãolinguísticos. Isto se da porque as
linguista norte-americano de Saussure,Bourdieuencontra as mesmas ideias de independência características dos discursos decorrem das relações de produção linguísticas presentes num

252 LINGUISTICO (Capital; Mercado) LINGU(STICO(Capital; Mercado) 253


campo, ele mesmo "uma expressão particular da estrutura das relações de força entre os categoriasde apreciaçãoe de valoração das línguas sem mudar todo o mercado que fixa o
grupos que possuem competênciascorrespondentes (ex.:língua "pura" ou língua "vulgar" preçodas competênciaslinguísticas(em seu sentidoampliado)- é o casoda perda de prestígio
ou, nos casos de multilinguismo, língua dominante e língua dominada)" (BoURDIEU, 1977, do francês a favordo inglês;do quase desaparecimentodo russo nos países da antiga Cortina
p. 19).O sentido de uma palavra, exemplificando,pela relação entre seu núcleo invariante e de Ferro (sobreo caso do inglês no campo intelectual, cf. ÜRTIZ,2008).
o valor assumido em determinado pelo campo: é o caso, exemplificaBourdieu,dos diversos Resumindo o pensamento de Bourdieu sobre o capital e o mercado linguístico: "a
sentidos assumidospela palavra "grupo" no campo escolar,no campo da pintura, da litera- competência dominante só funciona como um capital linguístico, assegurando um lucro
tura, da economia,etc. de distinção, na sua relação com outras competências (BouRDIEU,1975,p. 4), na medida
Inseridas num campo que as determina, as relações de produção linguística têm sua em que os grupos que detêm são capazes de impor como a única legítima nos mercados
estrutura dependente da relação de força simbólica entre os locutores: de seu capital de linguísticos legítimos (mercado escolar,administrativo, mundano...). As chances objetivas
autoridade, que não se reduz a sua capacidadelinguística em seu sentido restrito. Trata-se de lucro linguístico dependem do grau de unificaçãodo mercadolinguístico,isto é, do grau
da capacidadede se fazer ouvir, de poder dizer o que se diz, da forma que se diz, numa de- com que a competênciados dominantes é reconhecidacomolegítima, comopadrão do valor
terminada situação, a quem se diz. dos produtos linguísticos;as chances diferenciaisde acessoaos instrumentos de produção
Bourdieuamplia, assim, a noção de língua legítima: não se trata apenas de um conjunto da competêncialegítima (das chances de incorporar o capital linguístico objetivadoe aos
de for_mase modos de dizer tornados "corretos","melhores";tampouco se trata apenas da lugares de expressãolegítimos") (BouRDIEU, 1977,p. 24).
capacidadede usar essas formas nas situaçõesadequadas;trata-se também de compreender
~ competênciacomo "direito à fala" (BOURDIEU, 1977,p. 20), como uso legítimo da língua, Referências
ANGENOT,M. Bakhtine, sa critique de Saussureet la recherchecontemporaine.Études Françaises,
lmguagem autorizada e de autoridade.Ele chama atenção,portanto, para uma distribuição
V. 20, n.
1,p. 7-19,1984.
desigu_aldo uso da _lín~a le~ítimanas diferentessituaçõessociais,mesmo entre aquelesque
BAKHTIN,M. M. (VOLOCHINOV). Marxismo efilosofia da linguagem:problemasfundamentais
a dommam. Ou se3a,e preciso buscar compreenderas condiçõessociais de instauração das
relaçõesde comunicação,evitando a redução,dastrocas linguísticas a uma relação de mera do método sociológicoda.linguagem. SãoPaulo: Hucitec,2006.
comu_nicação. O que funda, em primeiro lugar, a comunicação é uma relação de crença na BLOOMFIELD, L. Language.London: GeorgeAllen, 1958. ..
BOURDIEUP. L'Êconomiedes échangeslinguistiques. Langue Française,n. 34, p. 17-34,1977.
autondade de quem toma a palavra e na autoridade de tomar a palavra. Essa relação,além de
BOURDIEUP.;BOLTANSKI, L. Le fétichismede la langue. ARSS, n. 4, p. 2-32,juil. 1975.
co~unicar, se destina a fazer obedecer,a admoestar, a interpelar, etc. Assim,uma sociologia
da ~mguagemdeve_buscarcompreender as relações de força que organizam a distribuição ORTIZ,Renato.A diversidade dos sotaques.São Paulo:Brasiliense,2008.
desigualdo poder dizer e do deverescutar presentesnuma situação,num grupo, num campo,
enfim, num mercado de trocas linguísticas. 134. LIVRE-TROCA: DIÁLOGOS ENTRECIÊNCIAEARTE(Libre-échange)
. Para ser ~~cutado- ou, segundo Chomsky,para ter sua aceitabilidadegarantida -, um ·······················································································································
discurso legitimo deve ser proferido por um locutor legítimo, a uma audiência legítima, Ana Paula Simioni
~uma_situaçãolegítima, usando as formas linguísticas e os assuntos legítimos para aquela
BOURDIEU,P.; HAACKE,H. Livre-troca: diálogos entre ciência e arte. Rio de Janeiro, Bertrand
s~tuaçao.~a reflexãobourdieusiana, a noção de língua legítima se amplia: é todo O uso da
hngua - discurso e o processoenunciativolegítimosque passam a ser o foco de sua análise. Brasil, 1995.
. De_ssemodo, tendem a sofrer alterações as noções de capital linguístico e mercado. Em
pnmeiro lugar, Bourdieu assume que o discurso é "um bem simbólico" (BoURDIEU, 1977, Desde a década de 1980, o sociólogo francês Pierre Bourdieu e o artista de origem
p. 22) cujovalor dependedos distintos mercadosnos quais é proferido.Em outros momentos, alemã Hans Haacke se encontraram em diversas ocasiões e perceberam as afinidades que
porém,Bourdieuse refereao capitalcomo"habitus linguístico",considerando,assim,tanto o os uniam. Resultado das trocas entre ambos, especialmente da discussão travada em Pa-
pr~dut~da enunciaçãoquanto o processoenunciativoou discursivocomocapitais.Eleparece, ris em 1991,o livro é escrito na forma de um diálogo livre, por meio do qual as barreiras
alem_d~sso, ao longode todo o artigo,reforçara relativaautonomiados mercadose camposna disciplinares que usualmente dificultam o debate público das ideias são transpostas. Tal
defimçaodos preços dos discursos.De qualquermodo, como capitalincorporadoe não mais opção deliberada por uma forma menos codificadavai ao encontro do objetivoprimordial
rest~~toa u~a competênciameramente gramatical,Bourdieuchama a atençãopara o fato de dos autores: o de suscitar a tomada de consciênciasobre o caráter intrinsecamente político
que uma lmgua vale o que valem aquelesque a falam, quer dizer, o poder e a autoridadenas das práticas artísticas na contemporaneidade.
relaçõe~de forçaeconômicase culturaisda competênciacorrespondente"(BoURDIEU, 1977,p. 22). Hoje, os impactos dos novos tipos de mecenato, no qual empresas subsidiam museus,
Ass!m,~p~sarde concordar com os sociolinguistasque todas as línguas se equivalemno artistas e exposiçõespor meio de mecanismos de isenção fiscal, associam-se ao poder de
plano lmgmstico, elas, no plano social, possuem valor distinto e que não se podem mudar sedução e consagração exercido pela imprensa junto ao público ampliado. Em ambos os

LIVRE-TROCA: DIÁLOGOS ENTRE Cl~NCIA E ARTE (Libre-échange) 255


254 LINGU(STICO(Capital; Mercado)
casos, está-se diante de um momento em que a lógica econômicavolta a impor-se sobre 0
universo artístico, o qual, como bem demonstrou Bourdieu, constituiu-sepor um processo
de autonomizaçãono sentido da constituição de um espaço com lógica e regras próprias,
assentado no "princípio econômicoinvertido", na negação da lógica do lucro, e, assim, do
próprio universo econômicomoderno.
Tal independência conquistada pelo campo artístico ao longo do século XIX, cujo co-
rolário encontra-se no lema da "arte pela arte", trouxe consigo também uma renúncia das
funções políticas da obra. Como,porém, é possívelhoje apregoar tal isenção diante de um
~niversosuje~toa interferênciasconstantes de políticos neoconservadores,os quais logram
impor mecamsmos de censura a obras vistas como "imorais",senão diretamente, ao menos
por meio de cortes às subvençõesoutorgadosàs instituições?As obras de Hans Haacke são
paradigmáticasdas próprias possibilidadesde resistência na contemporaneidade,que passa
~ela n~cessária consciênciacrítica dos mecanismos políticos e econômicosde produção e
mserçaoda arte, e revelam,especialmente,o extraordinário potencial de transformação que 135. MANET.UNERÉVOLUTION SYMBOLIQUE
pode ser provocadopor um único indivíduo.
·······················································································································
PascaleCasanova

BOURDIEU, P.Manet. Unerévolutionsymbolique.Editadopor PascaleCasanova,PatrickChampagne,


ChristopheChade, Franck Poupeau e Marie-ChristineRiviere.Paris: Seuil-Raisonsd'agir, 2013.

Manet (1832-1883),além de Flaubert (1821-1880),é um dos modelos de Bourdieu. Ele


começoua falar sobre Manet em 1987,em seus cursos, quando pretendeu explicaro que era,
para ele,uma "revoluçãosimbólica",ou seja,uma revoluçãoque colocaem questãoas catego-
rias que nós, os espectadoresdas obras simbólicas,adotamospara lê-lasou percebê-las.Era,
portanto, difícil delinear e compreender uma revoluçãosimbólicasem tomar um exemplo
concreto:para isso, ele se serve de Manet.
Para Bourdieu, existe um "Manet" enquanto objeto de estudo histórico e teórico, e um
Manet enquanto objetoautobiográfico(em um de seus cursos, ele confessousua admiração,
desde a adolescência,por este pintor - em particular, por Le balcon).
Como objeto de estudo histórico, ele se debruça em primeiro lugar sobre o campo da
crítica contemporânea a Manet. Tal análise permite-lhe compreender no que consistia a
crítica da época que, com sua índole historicista, visava verificar a conformidadedos fatos
históricos expostos numa pintura, com a realidade supostamenterepresentadapor ela, não
desempenhandode modoalgum o papelquelhe atribuímoshoje.Permite-lhetambém analisar
o surgimento do campo da crítica moderna e, de passagem,censurar não só aquelesque, na
França, atacam a arte chamada "contemporânea",por retomarem Manet dos historiadores
da arte (frequentementemaltratados nesse curso), mas também de forma mais geral todos
aquelesque abordam a história como um afastamento.Ele "mergulha (também)de cabeça",
para retomar uma metáforade Manet, adotada e comentadainicialmentepor Mallarmée, em
seguida,por elemesmo.Bourdieu"mergulha"no "oceano"dos comentárioscontemporâneos
sobre o pintor - em parte, diz ele, por ingenuidade-, indicando assim que, por si só, a visão
formalista de Manet não é suficiente para dar conta plenamente de sua pintura, mas que
se deve também acrescentar os trabalhos de história social, em particular os de história da
educação,que mostram a importância dos efeitosda superproduçãode diplomados. Ele se

256 LIVRE-TROCA:DIÁLOGOS ENTRE Cl~NCIA E ARTE (Libre-écharnge) MANET. UNE RÉVOLUTION SYMBOLIQUE 257
1
i

serve de Manet, sobretudo para fazer um contraponto (comodiz Edward Said) ao Flaubert dás repetidasrecusas do Salon, que constituía,então,a única instância de legitimaçãopara a
de Les regles de l'art (1992),obra que dedicouao campo literário, aproveitandoassim para se pintura. A época,a pintura acadêmicacom seus temas históricosou mitológicostriunfava na
debruçar, de um modo diferente,sobre o campo pictórico,consagrando à pintura um livro- França,emboraa burguesiapreferisse,para seusapartamentosde reduzidasdimensões,premiar
gêmeo, como diria Baudelaire.No entanto, segundo a explicaçãode Christophe Charle em os "paisagistas",tais comoCor<;>t: falsosrevolucionáriosque não chegarama alterar os hábitos.
seu posfácioà ediçãodo curso de Bourdieu,o sociólogonão logrourealizar tal objetivo,tendo Bourdieuenfatiza também as noçõesde "sensoprático",de habitus e de "disposição"ao
abandonadoessa ideia.Enquanto objetoteórico,Manet lhe permite igualmenterefletir sobre propor o conceitoe a teoria do "disposicionalismo",em oposiçãoà teoria intencionalista.Em
o campo pictórico,além de dar a compreender(o que ele fez também em seu artigo "L'Insti- um trecho do Curso no Collegede France, ele refaz Le déjeuner sur l'herbe, imaginando as
tutionnalisation de I'anomie",1987)que se passa do corpo ao campo: do corpo acadêmicoao disposiçõesculturais de Manet cujo conhecimentoe domínio da história da pintura eram
campo da pintura. Bourdieuse interroga igualmente sobre a razão e o modo como o campo muito mais aprofundados do que os de seus contemporâneos. Ele chega à conclusão - de
pictórico é dominado pelo campo literário (e,desseponto de vista, as relaçõesde Manet com maneira "materialista"- de que Manet era um olho,uma mão,uma cultura, um savoir-faire...
Zola e, sobretudo, com Mallarmé são prenhes de ensinamentos);e sobre o motivo pelo qual em síntese, um habitus inimitável. Ao inspirar-se na teoria das disposições,Bourdieu nos
a revoluçãonão ocorreu na Grã-Bretanha.Mas, acima de tudo, o caso Manet lhe permite - é ensina a observar a pintura de um modo totalmente diferente: não como uma obra feita
o que ele afirma nos cursos ministrados no Collegede France, entre 1998e 2000 - refletir (opus operatum), não comoum problemateóricoa ser resolvido,mas comouma obra a fazer
sobre a noção de "campo",como instrumento de análise e de compreensão. (modus operandi), um problemapráticopraticamenteresolvido.Eleacredita,assim,em uma
Uma revoluçãosimbólica,escreveele,sobretudoquando é bem-sucedida,torna difícilsua revoluçãoda crença e o colapsoda crença geral no âmbito daAcadémie.
explicaçãopor afetar as categoriasatravés das quais a pensamos. Quando Manet apresenta Comoobjetoautobiográfico(secreto),Manet enquanto "revolucionáriosimbólico"é uma
seus primeiros quadros (incluindoo famosoLe déjeuner sur l'herbe, que é insistentemente figurade identificaçãoquenos ensinaa conhecerBourdieucommaiorprofundidade.Osociólogo
mencionadopor Bourdieu)no Salon - espaçoem que, anualmente,eram mostradas todas as identifica-se,sem dúvida, com esse revolucionárioelegante,ligadoà família, culto e refinado,
obras francesasque o júri consideravadignas de serem expostase, entre as quais Manet fazia que não apreciamuito os "boêmios"barulhentos e desmazelados,mas que apesar disso abriu
absoluta questão que seus quadros viessem a figurar -, Le déjeuner parece incongruente e a porta para a arte e parã os artistas modernos;que recusouos clichêsda arte acadêmica,que
desencadeiarisadas e reaçõesescandalizadas.Não sabemosmais o motivoque teria levadoos transformouem profundidadea maneira de olhar a pintura, por interméd.iode quem os forma-
espectadoresde Manet a rir ou a se melindrar.E Bourdieuusa esse exemplopara demonstrar tos, os própriostemas,a hierarquiados temas,a maneira de pintar...foramtransformados.Em
o que é uma revoluçãosimbólica.Ele insiste na arte acadêmicacontra a qual Manet inscreve suma, alguém que obtevetamanho sucessoem relaçãoà "revoluçãosimbólicâ' em que esteve
sua obra, e seus desdobramentosrelativosao percurso, à estética, aos cursos, aos ateliês,ao envolvidoque nos fezesqueceros risos da multidãoe o motivodessareação.Essafigurailustre
trabalho árduo,aos temas e ao tratamento acadêmico,dizendoque se trata (por homologia,ou queBourdieutanto admiravaacaboupor ajudá-lo,sem dúvida,a ~anter comfirmezaseu ~o
seja,pela "semelhançana diferença")de uma arte de escola,portanto, de uma arte do Estado, quando, do mesmo modo, foi (e continua sendo) atacadosem treguas e provocouo escarmo
logo,de uma arte de homo academicus. Ele compara os ateliêsda Escolade BelasArtes aos da multidão que também não compreendiaa revoluçãoque ele estavaoperandona sociologia.
khâgnes (cursospreparatóriosàs Grandes Écoles), mostrando que, em ambos os casos,existe
a mesma submissãoà hierarquia, a mesma chantagemnos concursos,o mesmoconformismo Referência
nos temas e em seu tratamento. Há uma doxa, algo como "isso é assim mesmo",certas pre- P.L'institutionnalisation
BOURDIEU, del'anomie.Les Cahiersdu Musée National d'.ArtModerne,
cauçõescaracterísticasdo academicismo.E ele explicaque Manet, apesar de ter recebidosua p. 6-19, 19-29jun. 1987.
formaçãonaAcadémie, transformou-seem um blocoinquebrantávelCONTRAos imperativos
do academicismo,bem como contra a crença na onipotênciada Académie, apesar de conti-
nuar almejandoser expostono Salon. É impossívelcompreendera atitude de Manet, se não ..~•~·~·.<!.~!.~~!.~~~!.
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.
entendermosem que se apoiavao academicismo.Assim,Le déjeuner não satisfazos critérios GérardMauger
de formato,de tema, de "acabado",de modelado- ou seja,de estética-, de luz, de saber-fazer
(principalmente,em matéria de perspectiva),exigidospelaAcadémie. E Manet será recusado A obra de Marx estáinscritana históriada filosofiae no repertóriodos clássicosdas ciências
no Salon em numerosas ocasiõesporque, sem nunca ter feito concessãoà pintura acadêmica sociais.Nesse aspecto, ela mantém uma posiçãoindiscutívelno campo intelectual,não dei-
nem a seus critérios,que elenão reconhecia,o pintor ansioudurante toda a suavida ser exposto xando de ocupar também um lugar indubitavelmentesingular no campo político,no qual foi
no seio de uma instituiçãopara cujodescréditoele contribuiuconsideravelmente. e continuasendo,até certo ponto, a doutrina de referênciada esquerdasocialistae comunista.
Bo,urdieuinsiste no fato de que Manet não só era de origemburguesa,mas que mantinha Esseé o motivopelo qual a compreensãodas relaçõesde um autor com o marxismo tem a ver
muitos relacionamentosna alta sociedadeque o haviam ajudadoem diferentesmomentosde com o confrontode um habitus com um estado,simultaneamente,do campointelectuale do
sua carreira e, sobretudo, tinham-lhe servido de apoio, evitando que "ficasselouco",apesar campopolítico.As ligaçõesiniciaisde Bourdieucom o marxismo,comoestudanteda Khâgne

258 MANET. UNE RÉVOLUTION SYMBOLIQUE MARX, KARL (1818-1883) 259


(cursopreparatório)e, em seguida,da própriaEscolaNormalSuperior(ENS)na décadade 19.50, e estruturalista de Marx, a teoria da prática de Bourdieu visa apreender o mundo sensível
refletemessa ambiguidade.Na época, o marxismo fazia parte do "programa":"eu havia feito "enquanto atividadehumana concreta","enquantoprática".
naquelemomentouma leitura escolarde Marx;eu me interessava,sobretudopelojovemMarx Ao estudar a sociedadecabila,Bourdieuinspira-se explicitamenteem Marx. Mas, para o
e est~vaapaixonadopelas Teses sobre Feuerbach", escreveBourdieu(CD,13).Mas a forçade sociólogo,trata-se também de romper com o economicismoe de compreendera contribuição
atraçao (ou de repulsa)do marxismo,entãoreivindicadopelostalinismo,era política.Bourdieu determirlanteque as representáçõeséticas e míticas podem fornecerà reproduçãoda ordem
faziaparte do grupo daquelesque manifestavamirritação diante do stalinismo.Apesarde sua econômicada qual elas são o produto. Ao proceder desse modo, Bourdieufunda, ao mesmo
separação,durante alguns anos, da "geraçãoestruturalista" (a de Althusser e Foucault,cujos tempo, uma "economia'radicalmente sociológicà"(LEBARON, 2001) e - contra "a dicotomia
:ursos for_amassistidospor ele),Bourdieucompartilhavaum grande número de disposições do econômicoe do não econômico"- uma "ciênciageral da economiadas práticas, capaz d_e
mtelectua1squea caracterizame que,em sua opinião,se explicam"pelavontadede reagircontra tratar todas as práticas, incluiridoaquelas que pretendem ser desinteressadasou gratuitas,
[...] o 'humanismo' frouxoque estavano ar" (CD,14).No entanto - efeitodo habitus e/ouefeito portanto liberadas da economia,como práticas econômicas,orientadas para a obtenção do
de geração-, Bourdieutoma suas distânciasem relaçãoao "estruturalismo"(deLéviStrauss,de maior lucro possível,material ou simbólico"(ETP,375).
Foucault,assim comode Althusser)e ao que eledesignacomo "o efeito-logia"[...] arqueologia, Sínteseoriginal das abordagensmarxista e weberiana,a teoria dos camposaparececomo
gramatologia,semiologia,etc.,expressãovisíveldo esforçodos filósofosno sentidode embara- uma saída para os impassesda reduçãodas estruturas simbólicasàs estruturas econômicase
lhar a fronteiraentre a ciênciae a filosofià'(CD,16).Assim,eleirá se distanciar,em particular, àquelasda "teoria do reflexo",como uma soluçãopara o "curto-circuito"que relacionadire-
dos filósofosalthusserianos aos quais critica, a um só tempo, "o aristocratismo filosófico" tamente os traços pertinentes de tal produção simbólicacom as característicasda fração de
(BoURDIEU, 1975)e a reduçãodos agentesao status de simplesepifenômenosda estrutura. classede seu produtor, e também como uma resposta ao "funcionalismodo pior" associado
~a~ lutassimbólicasquepermearãoposteriormenteo campointelectualna França- em que aos"aparelhosideológicosdo Estado"de LouisAlthusser(1970).Aopressuporuma autonomia
a pos1çaoadotada em relaçãoao marxismoserviu, durante muito tempo,como "marcador"-, relativa da produção de bens simbólicosem relação às condicionantesexternas, essa teoria
a imputação de "marxismo"tornou-se uma tática banalizada de desqualificaçãoacadêmica: rejeitatanto a pretensão das produçõessimbólicasà autonomiaabsolutaquanto sua redução
rudimentar,ela consiste,após a investidados "novosfilósofos",em estabelecera filiaçãoentre direta às condiçõesmais gerais de sua produção.
Marx e o autorvisado,no pressupostode que "Marx==materialismocoletivista== Gulag".Talé, A teoria da violênciasimbólicailustra perfeitamenteo modus operandi de Bourdieuem ·
em substância,o procedimentoque utiliza,por exemplo,JeffreyC.Alexanderem relaçãoà obra relaçãoàs teorias clássicasdos fundamentosdo poder. "Marxse opõe a Durkheim - explicam
de Bour~eu:"Nanossaépoca,marcadapelofim do comunismo,[aobrade PierreBourdieu]pode Bourdieue Passeron - pelo seguinte:naquilo que ele percebe como o produto de uma domi-
serconsideradacomoa encarnaçãomaisimponentede uma tradiçãoneomarxistaque,triunfante nação de classe,Durkheim [...] limita-se a ver o efeitode uma condicionantesocial indivisa.
há apenasuma década,estálutandoatualmentepara sobreviver"(ALEXANDER, 2000, p. 19).De Soboutra perspectiva,Marx e Durkheim se opõem a Weberno fato de que eles contradizem
maneirageral,essetipo de críticaexprimeas acusaçõesda doxa político-midiáticaem relaçãoa [...] a tentação de consideraras relaçõesde poder comorelaçõesinterindividuaisde influência
qualquerempreendimentosociológicoque manifestea mínima pretensãoà cientificidade.Nessa ou de dominação.Enfim,Weberse opõe a Durkheim, como a Marx, por ser o único a adotar
postura,é possívelidentificartrês motivosde acusação,cujoalvoé unicamenteo projetode um expressamentecomo objeto a contribuiçãoespecíficaque as representaçõesde legitimidade
conhecimentocientíficodo mundosocial:protestosubjetivistacontrao materialismo,0 objetivis- fornecemao exercícioe à perpetuação do poder" (LR,18-19).
mo e o determinismo;protestomoral contra o utilitarismoassociadoao conceitode "estratégià'; A visão do espaço social proposta por Bourdieu opera uma dupla ruptura com a teoria
e protestopolíticocontraas representaçõesfundamentalmenteagonísticasdo mundo social. marxista das classessociais.Ruptura como economicismoque conduza definira estrutura do
Se,para além dessetipo de anátemas, nós nos questionarmossobre os usos que Bourdieu espaçosocial através da distribuição das diferentesespéciesde capital - "capitaleconômico",
chegou a fazer da obra de Marx, convém começar, sem dúvida, por lembrar as "relações "capitalcultural" e "capitalsocial"- suscetíveisde serem convertidosem "capitalsimbólico".
bastante pragmáticas"que ele mantinha com os autores canônicos,sejam eles quais forem. E, por outro lado, ruptura com "a ilusão intelectualistaque leva a considerar a classeteórica,
Assim, a maior parte dos usos que Bourdieu chegou a fazer da obra de Marx - para além construída pelo cientista, como uma classereal" e "que conduz a ignorar as lutas simbólicas
de uma afinidade terminológica (capital,reprodução, classes,etc.) - associa o empréstimo que são travadas nos diferentescampos e cujo pretexto é a própria representaçãodo mundo
à crítica. Eis alguns exemplos:a teoria sobre a prática, a sociologiaeconômica,a teoria da social"(BouRDIEU, 1984).Para explicara passagemda "classeprovável"(classe"lógica",classe
produção simbólica,a teoria da dominação ou a visão do espaçosocial. "no papel") para a "classemobilizada",da "classeem si" à "classepara si" na terminologiade
Tendo construído sua teoria sobre a prática contra Lévi-Strausse contra o marxismo Lukács (1960),é necessário analisar o trabalho simbólicoe político que consegueproduzir,
estruturalista dos althusserianos que havia transformado o agenteem um simples"suporte senão a classemobilizada, no mínimo a crença na existênciada classe.
da estrutura", Bourdieunão deixa de inspirar-se em Marx. Contra Feuerbache, de maneira Em suma, com e contra Marx, Bourdieu não é mais "marxista" do que "weberiano"ou
geral, contra o pensamento escolástico- que considera, segundo a expressãode Marx, "as "durkheimiano":elenão é nada disso, ou tudo isso ao mesmotempo. Eleé herdeiro de Marx,
coisasda lógicacomoa lógicadas coisas"- e comMarx, mas rejeitandoas leituras humanista de Weber e de Durkheim. Apropria-sede suas obras e, a partir deles (e de outros autores),

2 60 MARX, KARL (1818- 1883) MARX, KARL (1818-1883) 261


avança na resolução de problemas suscitados, a partir dessa herança, pela confrontação e Comefeito,para Bourdieu,Maussnãovai atéo finalda explicação.É provávelqueesteúltimo
demonstração empírica, assim como na descoberta de novas dificuldades. tenharazãoem decomporanalíticamenteo domem seustrês.momentos- "dar,receber,retribuir"
e, portanto,em reposicionaresseato em um conjunto,senãoinvisível,pelomenos,inconsciente
Referências aosagentes.E é somenteessatotalidadequelhe conferesentido.Mas,por não ter levadoem conta
ALEXANDER, J. C. La réduction: critique de Bourdieu. Paris: CERF, 2000. uma das dimensõesessenciaisda açãosocial- aquelaà qual,desdeseu projetode tese,Bourdieu
ALTHUSSER, L. Idéologie et appareils idéologiques d'État: notes pour une recherche. La há deprestarespecialatenção(ou seja,a dimensãotemporalqueé indispensávelpara compreender
Pensée, n. 151, juin 1970. a práticados agentese suas representaçõesdessaprática)-, Maussse privade apreendera ação
BOURDIEU, P. La lecture de Marx: quelques remarques critiques à propos de "Quelques socialem termosde estratégia.Maussteriaficado,de acordocomBourdieu,no meioda explicação:
remarques critiques de Lire le Capital". ARSS, n. 5-6, p. 65-79, 1975. comose opera o trabalho socialde denegaçãoda verdadeda troca, quais são suas condiçõesde
BOURDIEU, P. Espace social et genese des classes. ARSS, n. 52-53, p. 3-14, juin 1984. possibilidade? A duraçãoda operaçãoé,para Bourdieu,o quepermiteexplicaras formasespecífi-
LEBARON, F. Toward a New Critique of Economic Discourse. Theory, Culture and Society, casda troca - o dom - nessetipo de sociedadeque,conformea frasede Mauss- frequentemente
V.18, Il. 5, p. 123-129, 2001. . retomadapor Bourdieu- "sepaga a si mesmacom a falsamoedade seu sonho".
LUKÁCS, G. Histoire et conscience de classe. Paris: Minuit, 1960. Comefeito,segundoBourdieu,o intervaloentre o dom e o contradomé o quepermitetrans-
formara troca, cuja definiçãoobjetivasó pode ser estabelecidapelo cientista,em uma sucessão
í37. MAUSS, MARCEL (1872-1950) descontínuade atos,tantomaispercebidoscomomaisgenerososquantomaisafastadosestiverem
······················································································································· no tempo.Maussdescreveperfeitamenteo trabalhosocial- a "alquimia",nostermosdeBourdieu-
Remi Lenoir pelo qual o "econômico"se transformaem "simbólico",ou seja,em algode irredutívelao valor
mercantildosbenstrocados,comoé o casodetodas as economiassimbólicasquese constituíram
PierreBourdieuse notabilizouna história do pensamentosociológicopela referênciacons- em objetoprivilegiad0dos trabalhosde Bourdieu(a alta costura,a arte, a literatura,a edição...).
tante não só àquelesque, em seu entender,eram os fundadores da disciplina (Marx,Weber, Talalquimiaé o resultadoda denegaçãoda naturezada trocapelosparceiros.Aliás,elasó é pos-
Durkheim),mas tambémàquelesquehaviamcontribuídopara a magistralobra coletivaquefoi sívelse estesúltimosestiveremtacitamentede acordoem recusara verdadeobjetivadessatroca.
L'AnnéeSociologique(revistafundada em 1898por ÉmileDurkheim):MarcelMauss,Maurice O Essai sur le don está também, e de maneira inseparável,na base da teoria da prática e
Halbwachs,Henri Huber e GeorgesSimiand. À semelhança do que havia feito em relaçãoa da ação que Bourdieunão deixará de elaborar e de aprimorar, ao longo de sua obra, tanto da
Halbwachs- e apesar de ter deixadode praticar tal gênerode atividade-, elepronunciouuma prática nativa quanto da prática científica.Com efeito,segundo Bourdieu, esse ensaio é um
homenagema MarcelMaussexatamentepara insistir sobrea importânciaque atribuía a esses desafio:trata-se de encontrar a razão ao que pretende ser sem razão (gratuito, arbitrário) e
pensadores,ou seja,à disciplinasociológica,tal comoele a concebia,praticavae defendia. sem determinação (de graça), no pressuposto de que nem toda prática tem a racionalidade
Maussconstituiu,para Bourdieu,uma referênciaimportante tanto atravésde sua própria como princípio. A teoria da ação racional - repetia frequentementeBourdíeu - substitui a
obra de antropólogo- prolongadapor Bourdíeuem alguns de seus aspectos- quanto através experiênciado nativo pela experiênciado cientista e, de forma geral, generalizao caso bas-
da interpretação que Léví-Straussfez dela.É em relaçãoa·essa interpretação que Bourdíeuse tante particular da atividadeeconômicaao conjuntodas práticas,tendendo,assim, a conferir
situa, sobretudo em seus textos teóricos - principalmente a propósito de Essai sur le don -, intenções racionais a todas as condutas humanas. Aliás, uma das principais dimensões da
opondo sistematicamenteo "subjetivismo"de Sartre ao "objetivismo"de Léví-Strauss. antropologiade Bourdieuconsiste em reconstituir a lógicaprática nos contextossociaisque
Essai sur le don constituí a obra de Mauss, senão a mais citada, pelo menos, a mais lhe servem de fundamento e lhe conferemsentido. Mauss,de acordo com Bourdieu,lembra
debatida nos livros de Bourdieu,e por duas razões. Em primeiro lugar,porque o autor de Le que a racionalidadeeconômicapressupõea autonomizaçãodo universoeconômicoresultante
senspratique vai situá-lana base de sua teoria da açãosocial,da prática não só indígena,mas de um processo que afeta os sistemas de disposições(poupança,crédito... ) e as instituições
também científica;aliás, duas coisas inseparáveis,em seu entender. Sem dúvida, Bourdieu que o fazemfuncionar (bancos,moeda...) e que, mesmoquando esseuniversoeconômicoestá
não chegaa se apropriar da teoria de Mauss que, em sua opinião, atribui demasiadovalor às constituído, os outros universos sociaisnão têm esse tipo de racionalidadecomo princípio.
representaçõesfeitaspelosatoressociaisa essetipo de troca. Contraa interpretaçãoobjetivista Pode-se igualmente observar essa forma de etnocentrismo dos intelectuais, nomeada-
tanto de Lévi-Straussquanto dos economicistas,Bourdieu mostra que tais representações mente dos filósofos,por não levarem em consideraçãoo corpo, o corpo socializado,como
participam diretamente do objeto a estudar e que, nesse sentido, elas não poderiam ser, na princípio das condutas.
pior das hipóteses, descartadas da análise (como o Lévi-Straussde Les structures élémen- SeBourdieuse refereao artigo fundador de Mauss,"Lestechniques du corps",é pelo fato
taires dç la parenté) ou, no melhor dos casos, analisadas à parte, em si mesmas e por si de reconhecer a novidade que representavaessa comunicaçãoapresentada na Sociedadede
mesmas,como o fazem alguns trabalhos inspirados no estruturalismo (nomeadamenteo de Psicologiaem 1934.No entanto,em sua opinião,Maussnão levoua análisealémda observação
Lévi-Straussem Mythologiqw;s). do que ele designavacomoas "técnicas"- ou seja,os atos corporais -, sem ter problematizado

262 MAUSS, MARCEL (1872-1950) MAUSS, MARCEL (1872-7950) 263


esse aspecto, à semelhança do que havia feito em relação ao dom, à magia ou ao sacrifício. desconfiançaem relação a todas as formas de irracionalismo que pervertem as respectivas
Em Bourdieu, o corpo não se limita a ser uma "técnica",um instrumento, mesmo que seja disciplinas em qualquer época e em todo lugar, mas particularmente na França.
socializado,mas é, antes de mais nada, um meio de conhecimento,graças aos sentidos e ao
cérebro,conhecimentopelo corpo,enfatiza ele, que assegura uma compreensãoprática do
mundo completamente diferente do ato de "decifração consciente que se costuma colocar 138. MEDITAÇÕES PASCALIANAS (Méditations pasca/iennes)
·······················································································································
na ideia de compreensão".Para Bourdieu,as mais fortes injunções sociaisdirigem-senão ao JoséSérgioLeite Lopes
intelecto,mas ao corpo tratado COJJlO um repositório de lembranças.
Com o Essaisur le don - no qual Bourdieuse apoia para fundar a especificidadeda eco- BOURDIEU,P.Meditaçõespascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,2001.
nomia dos bens simbólicose, portanto, da economiados campos de produção e de consumo
desse tipo de bens-, Bourdieuse refere a Esquissed'une théoriegénéralede la magie para Meditaçõespascalianas,escritopor Bourdieuem 1997,é um dos últimosda vastaobra que
elaborare construir a noção de campo,cujoparadigma é, em seu entender,o campo religioso. publicouem vida. Neleo autor lida com seus principais conceitossociológicosretrabalhados
Oqueproduza "magiâ'seriaa totalidadedo espaçosocialem quesãoengendradase exercitadas_ num diálogocríticocom o pensamentoe a práticafilosóficos.O livropode ser entendidocomo
as disposiçõese crençasquetornampossívela eficáciada magia.Bourdieubaseia-seemMaussnão uma sistematizaçãode sua obra no momentomesmo em que ela passa a ter uma repercussão
tantopara explicitaras especificidades
dosinteressesmágicose religiosos- aliás,em sua opinião, mais amplaque os círculosacadêmicos;em que elepode fecharo círculode seu percursodesde
estessó podem ser caracterizadosem referênciaa determinadosgrupossociais(dominantesou a filosofiados seus anos de juventude e dar coerênciaà sua trnjetória inovadora pela antro-
dominados)-,masparalembrarquea magiaé o queMauss,na esteiradeDurkheim,designavacomo pologiae sociologia.É interessante que na contracapada ediçãofrancesa original, Bourdieu,
uma "crençacoletivâ'ou,de preferência,segundosua expressão,um" desconhecimentocoletivo". que não deixapassar nada sem seu controleno processode edição,é apresentadocomoantro-
De maneira geral, é ao conjunto da obra de Mauss e de Durkheim concernente às fun- pólogoe sociólogo.Num momento de balanço na maturidade parece incorporar o conjunto
ções sociais do sagrado que Bourdieuse refere em seus trabalhos sobre a eficáciasimbólica, de sua trajetória e não apenas sua apresentaçãoinsistente como sociólogoque privilegiavao
principalmentea dos ritos de instituição, ou seja, "do poder que elestêm de agir sobre o real, combateno interior deste campo. É como se também, neste momento de sua obra, o retorno
atuando sobre a representaçãodo real". Tratando-seseja do Essai de Henri Hubert e Marcel aos problemascom que se defrontou como antropólogono estudo do campesinatoargelinoe
Mausssobre "a natureza e a função do sacrifício"ou do prefáciode Mélangesd 'histoire des francês dos anos 1950e 1960fizessesentido diante da questãosocialurbana e metropolitana
religions,"Aintrodução à análise de alguns fenômenosreligiosos",ou ainda do texto da pri- candente enfrentada pelos descendentesdaquelescampesinatosanteriormente estudados.
meira parte da tese sobre La priere que Mauss não chegou a terminar (tampoucoBourdieu A publicaçãode Meditaçõespascalianas em português,com preciosatradução de Sergio
conseguiu redigir a sua): todos esses textos incidem sobre o que eles designavam como "a Miceli,dá oportunidadeao leitorbrasileirode atualizar-secomo pensamentode PierreBourdieu
busca do mecanismo e da eficáciade um rito". Os atos de magia social, à semelhança dos numa obraquelida comseusprincipaisconceitosretrabalhadosem suaplenamaturidade,e que,
ritos de instituição - Bourdieuse serve, como exemplo,da circuncisãoe do casamento,mas vista a posteriori,praticamentedelineiaseu testamentointelectual.Colocando-sesob a égide
também dos concursos de ingresso às Grandes Écoles,na França -, só obtêm sucesso se a de Pascal,Bourdieuprocura fazeruma críticasistemáticada razão e da práticaescolásticasem
instituição, no sentido ativo de investidura, for "garantida pelo grupo inteiro ou por uma que estão imersasas atividadesfilosóficas,mas também as científicas,artísticas e intelectuais.
instituição reconhecida, encontrando esta última seu fundamento na crença de um grupo Tal é o conteúdo dos dois primeiros capítulosdo livro, incluindo um esboçode sua própria
inteiro".Tal análise não deixa de ecoar aquelaque Mauss fazia dos ritos - sobretudo os ritos socioanálise("confissõesimpessoais")num apêndicede capítulo,quando temos - atravésde
religiosos,aquelesque são "tradicionais,ou seja,realizadossegundouma forma adotada pela sua experiênciade aluno-bolsistaoriginário das classespopulares, sua transformação pelo
coletividadeou por uma autoridadereconhecida"-,que encontrasua eficácianão em si mesma, internato e pela escolarepublicanade elite,e suas experiênciasposterioresde distanciamento
mas "na maneira comoessa eficáciaé concebida",ou seja, de acordocom as crençasdo grupo. da filosofiae de aproximaçãocom a etnologiae a sociologia- uma ilustraçãode suas análises
No colóquio ''A herança de Mauss",realizado no Collegede France em 1997,Bourdieu reflexivassobre a importância das socializaçõese internalizaçõescorporais. (Esseapêndice
prestou homenagemao estudiosolendo e comentando extratos de sua obra. Dessemodo, ele constituía-senuma versãode trecho de seu livropóstumo,em elaboração,ainda desconhecido
confirmou as afinidadesintelectuais - e políticas - profundas que, em seu entender,vincu- na época,Esboçode auto-análise.)Nessescapítulos,eledá novosargumentose novoformatoa
lavam ambos para além dos efeitosde geração,a saber: o arbitrário (no sentido de Saussure) temasjá tratados em obras sobrea escola,o campointelectual,o homo academicus,a nobreza
de qualquerfenômenosocial,a dupla inscriçãodo socialnos corpos e nas coisase - Bourdieu de Estado,e iniciauma reflexãosobrea gênesedos campose em particular do campofilosófico,
insiste nisso - uma filosofiada prática que distingue lógicaprática e lógicaescolástica.Para que por sua vez é desenvolvidano capitulodos "fundamentoshistóricosda razão" (comuma
além dessas aproximaçõesque não se reduzem a propósitos de autocelebraçãoque "se dis- análise da historicidadedo campo científicoe suas relaçõescom o poder).
simulam sob uma celebraçãoanexionista",segundo sua própria expressão,o que aproxima Mas o livro é também um meio para o autor reafirmar, atravésde novasabordagens,suas
fundamentalmenteessesdois filósofosconvertidosà sociologiae à antropologiaé sua comum teorias e análises da dominação simbólica em diferentes esferas sociais sintetizadas pelos

264 MAUSS, MARCEL (1872-1950) MEDITAÇÕES PASCALIANAS (Méditations pasca/iennes) 265


conceitosnão somentede campocomotambém de habitus, comos quais construiuo conjunto 139. MERCADO LINGUÍSTICO
·······················································································································
de sua obra por meio da comparação sistemática de resultados de pesquisas empíricas em
diferentesáreas de conhecimentodas ciênciashumanas. Relacionadoa este último conceito, Ver:Linguístico (capital;mercado)
o autor desenvolveno capítulo do "conhecimentopelo corpo" toda a dimensão da ação in-
fraconscienteda lógicada prática que é ignorada pelo que ele chama de epistemocentrismo 140. MERCADO SIMBÓLICO
escolástico.Elepode assim compreendera dimensão"subjetiva"da incorporação,interioriza- ·······················································································································
ção,reconhecimentoe legitimaçãoda dominaçãopelospróprios dominados,que se manifesta Ver:Bens simbólicos
para além da verdade de sua exploraçãoobjetiva,estabelecendoassim a dupla verdade de
certosfenômenossociaisrelacionadosà violênciasimbólicae às lutas políticas- comoa dupla
verdadedo dom e a duplaverdade do trabalho. Eleassim adverte os analistas (decerta forma 141. MERLEAU-PONTY, MAURICE(1908-1961)
·······················································································································
ajustando contas também com algumas de suas formulaçõesdo passado que enfatizavama JoséLuís Moreno Pestalia
outra direção) da tentação objetivistaque omite a visão nativa e a sociologiaespontânea dos
grupos sociais,sejam eles os mais dominados e despossuídosde capital econômicoe capital Durante os anos de formaçãode Bourdieu,Merleau-Pontydesempenhouum lugar impor-
cultural. E assim ele retoma analiticamente o elo entre seus estudos de juventude do pouco tante. Primeiro,institucional:Merleau-Pontyfaziaparte do júri que permitia o acessoà École
escolarizadocampesinato francês e argelino e dos trabalhadores e subproletários argelinos Normale Superieure.Segundo, intelectual:Merleau-Pontyocupavaum lugar particular no
dos anos 1960,com os estudos coletivosrecentesdos novossubproletáriosmodernos mais ou espaçoda fenomenologia.Propunha uma discussãoestreitados avançosdas ciênciashumanas
menos escolarizadosda sociedadeglobalizada(e seus aliados da "mão esquerda"do Estado, (discussãoque punha em prática a partir de uma informação de primeira mão dos avanços
devotadose aflitospraticantes de políticassociaisdespriorizadas),em A miséria do mundo. da psicologiae da biologia),separava-sede toda versão da fenomenologia,como a de Sartre,
Tendocomopontode partida o tempo"livre"característicoda práticaescolástica,a skhole, que defendesse a subordinação das ciências do homem e da filosofiae, enfim, embarcava
Bourdieu volta à análise dos usos sociais comparados do tempo, com a oposição entre o na discussão política mediante o uso criativo das ferramentas filosóficas.Em seus textos,
estressesobreagendadodo executivoe o tempo vaziodo desempregadoe a ausênciade futuro Bourdieu recorre com frequência a Merleau-Ponty.Deleresgata uma concepçãodo corpo e
dos velhos e novos subproletários.Aqui encontramos,reforçadaspor mais de trinta anos de uma noção específicada atividade prática.
análises cumulativas,as preocupaçõescom o tempo dos camponesese proletários argelinos Comecemospelo corpo.SegundoBourdieu,o corpoestá organizadopor disposições;estas
dos primeiros artigos de Bourdieu e de seu livro Travail et travailleursem Algérie (1964). procedem do contato reiterado com determinadas condiçõesde existência.Tais disposições
Assim como o tempo, os temas filosóficosdo ser social e do sentido da existênciarecebem são os interstícios que vinculam a natureza e a cultura. Merleau-Ponty,para Bourdieu, foi
um tratamento socioantropológicopor intermédio de uma renovaçãodo conceitode capital sem dúvidaum dos pensadoresque elaboroumelhorsemelhantevínculo.O corpo,assegurava
simbólico,tomado comoefeitosimbólicodas outras espéciesde capital (econômico,cultural, Merleau-Ponty,não é um conjuntode órgãosjustapostos;elese parecemais propriamentecom
social),e como um concentradodo reconhecimentosocial e da razão de viver,fornecendoa um esquemaque articula - temporal e espacialmente- nossa relaçãocom o mundo. O corpo
todo ser social não somente carisma, mas também uma teodiceia de sua existênciae de sua se converte na fonte primogênita de nosso sentido da identidade pessoal, de nossa relação
identidade (e aqui podemos pressentir também, nas entrelinhas, o caráter de testamento com os objetose, em geral, de nossa experiênciado mundo. Essa vinculação íntima entre o
intelectual impresso nesse livro, em vista da aposentadoria institucional por idade que não corpo e o mundo se apoiaem duas teses que servem cada uma de contrapesotanto no que diz
tardava a chegar para ele). respeito à Cila do intelectualismocomo ao Caribdis do naturalismo. Por uma parte, o corpo
E assimas Meditaçõespascalianasvêm enfatizar,em meio à análise críticadas múltiplas não é uma simplescontinuação das leis da natureza. É, antes de tudo, distância temporal da
determinaçõeshistóricas da dominação,uma pequena margem de liberdadee de esperança: natureza; capacidadede se evadir das demandas desta última. Semelhantedistânciatemporal
o poder simbólicodos dominados, que os arranca da insignificância,"pode introduzir um permite ao ser humano sair da espontaneidadedos animais - cuja falta de liberdadeprocede
certo jogo na correspondênciaentre as esperanças e as chances e abrir um espaço de liber- dos condicionamentosde uma natureza demasiadoforte - e definir-se a partir de hábitos
dade pela posição; mais ou menos voluntarista, de possíveis mais ou menos improváveis, próprios. Por outra parte, o corpo não é jamais um território liberado da natureza nem um
utopia, projeto, programa ou plano, que a lógica pura das probabilidades conduziria a ter espaçointeiramente definidopelas relaçõesde significadoque organizam o universohuma-
por praticamente excluídos"(MPp, 286-287).Esse livro é assim uma síntese da vasta obra no. Merleau-Pontyassinala que o corpo é ambíguo:não o domínio da dotação natural, não
de _Bourdieu,desde a reflexãosobre seus resultados científicosanteriores até a reflexãomais o da consciência;tampouco o entenderíamos como a simples adição de natureza e cultura
recente, que sustenta seu engajamentopolítico-intelectual,ocupando uma posição central (o homem seria por uma parte regulaçãoe, por outra, liberdade):"Ohomem concretamente
nos debates dos efeitosdas transformações neoliberais internacionais sobre o conjunto dos consideradonão é um psiquismo unido a um organismo,mas este vaivémda existênciaque
grupos sociais e sobre a sociedade. ora se deixa ser corporal e ora se dirige aos atos pessoais"(MERLEAU-PONTY, 1945,p. 104).

MERLEAU·PONTY, MAURICE (1908-1961) 267


266 MEDITAÇÕES PASCALIANAS (Méditations pasca/iennes)
Essetipo de giros analíticos e retóricos- "o corpo não é nem um nem outro, mas sim as duas
efeitosexercidospelosmodernosmeiosde comunicaçãosobreas diversascategoriasde público,
coisasao mesmotempo"- serão constantesnas descriçõesque Bourdieuvenha a realizar dos
eledenunciaa faltade investigaçãorigorosa,assimcomoas explicaçõesessencialmenteverbaise
cruzamentosentre a dotaçãofisiológicae a dotaçãosocialno corpohumano.
ostrocadilhosem torno da expressão"massmedià':mídiade massaquesedirigiriamaciçamente
E assim entramos na descriçãoda prática, questãopara a qual Bourdieutambém se apoia
a uma massaindistinta.Asp~squisasqueBourdieuefetuana épocasobrea frequênciaaosmuseus
na filosofiade Merleau-Ponty.Seaceitamosque a experiênciahumana é ambígua,não se pode
mostram que existemleisda difusãoculturalquese aplicamtambémà mídia.Elepretendeser o
considerarpertinentes as descriçõesda mesma que se baseiem na diferençaentre liberdadee
portador de um modorigorosoe científicode abordaras ciênciassociaisquedeveriamse apoiar,
necessidade,entre o sujeitolivre ou o autômatocondicionado.Há uma inteligênciado agente
à semelhançado que ocorre com as ciênciasexatas,em pesquisas,além de se valer de dados
que, sem ser a reprodução da mecânica fisiológica,psicológicae social, não está tampouco
fatuais.A mídia deveria,portanto, ser igualmenteobjetode investigaçõesmeticulosas,a partir
baseada na reflexãointelectual: "O agente envoltona prática conhece o mundo por um co-
das quais será possívelempreenderuma reflexãoteórica,o que não era entãorealmenteo caso.
nhecimento que, como mostrou Merleau-Ponty,não se instaura na relação de exterioridade
De fato,a mídia davalugar,quasesempre,a um discursoproféticoe à mobilizaçãoda temática
de uma consciênciaconhecedora.Eleo entendenum sentidobastante razoável,sem distância
das "mutações",discurso epistemologicamenteassociadoa sondagenspuramente empíricas,
objetivante,comosendoalgoevidente,justamenteporqueelese encontraenredadonele,como
sem reflexãoteórica.Em 1970Bourdieuprovidenciou,para a coleçãoque dirigia nas Edições
corpocoladonele,onde elehabitacomose foraum uniformeou um hábitatfamiliar"(MP,170).
de Minuit, a tradução do livro de RichardHoggart,The Useof Literacy(1957)sob o título de
Poisbem, Bourdieurecolhea inspiraçãoteórica de Merleau-Pontyreformulando-asocio-
La culture du pauvre, que constituiuma pesquisaetnográficaminuciosasobreos consumos
logicamente:a experiênciabásica dos sujeitosestá condicionadapor trajetórias de classee de
culturaisem meiospopulares.Esselivro,quesignificaa aberturados culturalstudies,é, de certa
gênero,os diversosmodos de reflexividadedependem da capacidadedos indivíduospara se
forma,erigidopor Bourdieuem exemplode análisedo mundo da mídia.
liberarem da necessidade,a relaçãotemporal se incuba nas experiênciasdesiguaisdo mundo
Alémda necessidadede se realizarempesquisasrigorosasna área, o artigode 1963esboçao
social que os agentesfazem e de sua diversaantecipaçãodo futuro. O agentehumano corpo-
perfildo que deveriaser a novafigurado intelectual:a:ofilósofo;encarnado
por Sartre,quepode
ralizado reproduz e cria a prosa de um mundo, mas não de qualquer mundo, porém de um
falara respeitode tudo sem quesejarealmenteespecialistado assunto,Bourdieupretendepropor
mundo atravessadopor desigualdadese dominação.Assim,a ontologiarenunciaa sua augusta
umanovaimagemdointelectualquesebaseianas ciênciassociais.Ointelectualseria,assim,aquele
generalidadee ganha em pertinência empírica - talvez fossemelhor dizer simplesmenteem
quedeveser capazde se impor no debatepúblicopor suaspesquisase que,por conseguinte,deve
veracidade:"Ã visãodualistaquenão quer conhecersenãoo ato de consciênciatransparentea si
limitar-sea intervirem seudomíniode competência.Ora,no finalda décadade 1970,apareceuma
mesmoou a coisadeterminadacomoexperiência,é preciso,portanto, opor a lógicareal da ação
nova categoriade intelectuaisque vai envolverfortementea açãodos meiosde comunicaçãode
que colocaem presençaduas objetivaçõesda história, a objetivaçãonos corpose a objetivação massa,já que esses"novosintelectuais"devemsua notoriedadenão às suasobras,mas à mídiae,
nas instituições ou, o que dá no mesmo, dois estados do capital, objetivadoe incorporado,
emparticular,à televisão,cujadifusão,desdeo iníciodosanos1970,atingena Françapraticamente
pelos quais se instaura uma distância em relaçãoà necessidadee às suas urgências"(SP,95).
a populaçãointeirae começaa produzirefeitosde legitimaçãoespecíficos(cf.o conhecido"passou
Referência na TV").Essafiguraconcorrentedointelectual-cujoarquétipoé o filósofoBernard-HenriLevy,e
MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologiede.laperception.Paris: Gallimard, 1945.
quesó existe,tendencialmente,por e para a mídia,a tal pontoquesãoconhecidospor "intelectuais
midiáticos"- vai conduzirBourdieua um grandenúmerode observaçõessobreo funcionamento
da esferajornalísticaem suas relaçõescomo campointelectual.
142. METODOLOGIA Os "meios de comunicação de massa" não darão lugar a uma grande pesquisa especí-
······················································································································ fica - eles são demasiado diferenciados -, nem a uma obra comparávela La distinction,
Ver:Epistemologia Le sens pratique ou La noblesse d'État, considerando que seu objeto é demasiadamente
pré-construído. Pelocontrário, é possívelencontrar na obra de Bourdieunão só ferramentas
teóricas para pensar o jornalismo - em particular, sua teoria dos campos -, mas também
143. MÍDIA
······················································································································· numerosasreflexõespontuais dedicadasao campojornalístico,comocasopeculiar de campo.
Patrick Champagne De fato, se há efetivamenteuma sociologiada mídia em Bourdieu,ela está dispersa e como
que fragmentada em sua obra, na medida em que os meios de comunicaçãode massa são
Oprimeirotextode Bourdieuquetrata da mídiaé o artigo"Sociólogos das mitologiase mito-
abordadosprincipalmente a partir de duas entradas: por um lado, como campo de produção
logiasdossociólogos"(1963),publicadoemLes TempsModernes,em coautoriacomJean-Claude
e de consumo de um tipo particular de bens que elechama de "bens simbólicos",ou seja,bens
Passeron,.Ao se debruçarsobreos discursosdos ensaístasa respeitodos meiosde comunicação
que, diferentemente dos bens materiais, supõem um ato de decifração ou, se preferirmos,
de massa, esse trabalho tem grande interessena medida em que traz o germe das evoluções
de apropriação mental; por outro, como campo que tende a exercer de maneira crescente,
ulterioresdas pesquisasempreendidaspor Bourdieunesta área. Tratando-sede apreenderos
conforme o desenvolvimentoda mídia, certo predomínio sobre os outros campos.
268 METODOLOGIA
MÍDIA 269
BOURDIEU,P. Champ intellectuel et projet créateur. Les Temps Modernes, n. 246, p. 865-906,
Emboraseusprimeirostextosse refirammarginalmenteao campojornalístico,elestrazem
nov. 1966.
elementosessenciaispara a construçãodasferramentasteóricasqueposteriormentelhepermitirão
BOURDIEU,P. Le marché des biens symboliques.L'Année Socíologique, v. 22, p. 49-12, 1971.
pensar tal campo.Em 1966Bourdieupublica"Campointelectuale projetocriador",artigo que
BOURDIEU,P. Le hit-parade des intellectuelsfrançais, ou quisera juge de la légitimité des juges?
lança as bases de uma abordagemrelacionale convidaa pensar as instituiçõesculturaisumas
ARSS, n. 52-53,p. 13-14,juin'l984.
em relaçãoàs outraspelofatode formaremum sistemae de apresentaremrelativaautonomiaem
relaçãoàs forçaspolíticase econômicas.Esseartigo é completadoem 1971por um longotexto,
"Omercadode bens simbólicos",no qual, entre outros aspectos,elemostra a existênciade uma 144. MISÉRIADO MUNDO,A (La misere du monde)
homologiaestrutural entre o campo de produçãodas obras culturais e o campo do consumo. ...............................................................................................................................
.
Bourdieucita comoexemplo,em especial,os críticosculturais da imprensae procedeà análise Patrick Champagne
das relaçõessutis entre eles e seu público.No capítulo8 de La distinction, dedicadoà lógica
que regea produçãodas opiniõesna esferapolítica,analisa a contribuiçãoda mídia a partir da BOURDIEU,P.A miséria do mundo. Petrópolis,RJ:Vozes,1997.
construçãodo campodosjornais,de suasdivisões,dosprincípiosde legitimidadeespecíficaque
se exercenessecampo.Em 1992,elepublicaLesreglesde l'art, uma obrade síntesefundamental Em março de 1993, algumas semanas antes das eleiçõeslegislativasna França, foi pu-
em que,principalmentea partir da análisedo campode produçãodas obras estéticas(edições, blicado La misere du monde, obra coletivaconcebidapor Bourdieu explicitamentecomo
galerias,etc.),desenvolveuma teoria dos camposbastante genéricacom base na qual se pode intervençãono campo político.Esselivro - de quasemil páginas e contendocercade sessenta
fazeruma análisedo campojornalístico.Em 1996,em seu livro Sur la télévision, esboçaesse entrevistas realizadas em ambientesonde impera o sofrimento- se propõe a dar voz àqueles
tipo de análise:lembra que o mundo do jornalismo é também um microcosmoque tem suas que não são ouvidos no espaço público, àqueles que só são ouvidos através do filtro defor-
leispróprias e é definidopor sua posiçãono mundo global.No entanto,contra o reducionismo mador da mídia ou dos levantamentos estatísticos.Trata:se de entrevistas comentadas que
econômico,eleesclarece:a afirmaçãode que essecampo é (relativamente)autônomoequivale descortinam os sofrimentos socialmente engendrados pelo neoliberalismo, sofrimentos
a dizer que não se pode compreendê-lode maneira direta a partir de fatoresexternos- o que
muitas vezes inaudíveis e invisíveispara os dirigentes políticos.
não significaque se possa prescindir de levar em consideraçãoos fatoreseconômicos.
O livro, relativamente inclassificável,baseia-se em um conjunto de pesquisas empreen-
Bourdieuinsiste no fato de que uma das questõesque deve ser formulada a um campo -
didas, havia vários anos, por cerca de quinze pesquisadores, mesclando depoimentos e
questão especialmente importante quando se trata do campo jornalístico é aquela que
histórias de vida com análises científicas, mas sem os jargões habituais da sociologia,no
se refere a seu grau de autonomia. A este respeito, o campo jornalístico caracteriza-sepor
intuito de se tornar acessívelao leitor não especialista. A diagramação, os títulos com base
um elevadograu de heteronomia: é um campo muito precariamente autônomo. Ocorreque
em conceitos, os textos de apresentação das entrevistas constituem outros tantos procedi-
tal autonomia, por mais frágil que seja, faz com que não se possa compreendertudo o que
mentos que permitem compreender aquilo que, para além das falas singulares, pode ser
acontecena esfera do jornalismo a partir unicamente do conhecimentodo mundo circun-
dante: quem financia, quem são os anunciantes, quem paga a publicidade,de onde vêm as lido de maneira geral sobre o mundo social. Em suma, trata-se de uma obra destinada a
subvenções,etc. Uma parte do que se produz no mundo do jornalismo só é compreensívelse introduzir a sociologia no debate político, trazendo a perspectiva e as análises da ciência
esse microcosmofor pensado como tal, e se houver um esforçode compreensãodos efeitos social sobre um mundo que os políticos contribuem - de forma mais inconsciente que
que as pessoas envolvidasnesse microcosmoexercemumas sobre as outras. conscientemente - para produzir.
Em 1984,ARSS publicaum textocurto intitulado"Ohit-parade dos intelectuaisfranceses, A obra foi bem recebida de imediato,tanto pela maioria da imprensa que publicouvárias
ou quem será o juiz da legitimidadedosjuízes?".Esseimportante comentárioinaugura, de al- entrevistas com Bourdieu quanto pelo público em geral, e obteve rapidamente importante
guma forma,o segundoeixoda análiseda mídia empreendidapor Bourdieu.Nessaexplicação divulgação. Além disso, alguns diretores de teatro serviram-se dos textos das entrevistas
sumária ele procedeà análise - práticajornalística frequente- de um hit parade dos "mais para realizar montagens teatrais, fazendo com que as representações propiciassem uma
importantesintelectuaisvivos"na França,e mostra que essa operaçãooculta a composiçãodo oportunidade de reflexão, de caráter estético-político, sobre o lugar do teatro nas lutas
júri que produz a classificaçãoe que, no essencial,é compostopor jornalistas.Elerevelacomo sociais. Nos bairros desfavorecidos, essas representações teatrais foram, muitas vezes,
essa.simplesoperaçãode classificaçãotende a submetero mundo intelectualaosveredictosdo seguidas de debates que incidiram não tanto sobre o teatro, mas sobre a crise social, a
círculojornalístico.Bourdieuirá prosseguir esse combateem prol da autonomiados intelec- precariedade e o desemprego.
tuais com a publicaçãode Sur la télévision (1996)e sua denúnciados intelectuaismidiáticos.
í45. MOBILIDADE SOCIAL
Referências .......................................................................................................................
BOURDIEU, P.;PASSERON, J.-C.Sociologiedes mythologieset mythologiesde sociologues.Les Temps
Ver: Classe social
Modernes, n. 211,p. 998-1021,déc. 1963.
MOBILIDADE SOCIAL 271
270 MIDIA
_1_~-~:.~~-~~-l.'~~~~~~~O/INTERNACIONALIZAÇÃO mais antiga sobre os desafiose as condiçõessociaisdos processosde internacionalização.Em
·······················································································
seus trabalhos sobre a estrutura sociale sobre o campo do poder, ele analisou, com efeito,os
Anne-Catherine Wagner
usossociais,no seiodas classesdominantes,da internacionalizaçãodas atividadeseconômicas.
O tema da mundialização aparece em Pierre Bourdieu no final da década de 1990,em Sua obra, La distinction, demonstra como a internacionalizaçãoredistribui as oportuni-
conferênciasproferidasem eventosde caráterpolítico,publicadasnos doisvolumesde Contre- dades no seio da burguesia, a-favorde uma nova burguesia que se opõe à antiga burguesia de
feux (artigos"Lemythe de la 'mondialisation'et l'État socialEuropéen",Contre-feux 1, 1998, negóciospor um estilode vida "rnodernistà'e voltadopara o estrangeiro.A internacionalização
P· 34-50,e "Unifierpour mieux dominer", Contre-feux 2, 2001,p. 93-108),aos quais convém das atividades econômicas alimenta lutas de classificação,desencadeadas pelos membros
acrescentaro post-scriptum do livro Les structures sociales de l' économie, intitulado "Du das frações das classes dominantes que operaram a reconversãonecessáriapara adaptar-se
champ national au champ mondial". à transformação do campo das empresas.É essa vanguarda, executivosdas empresasmulti-
A mundializaçãoé consideradanessestextoscomoum "pseudoconceito,simultaneamente, nacionais dotados frequentementede certificadosescolaresinternacionais, que importa dos
desc_ritivo
e P:~scritivo"que deveser objetode um trabalho de desconstruçãoe de ruptura. No EUAo novo modo de dominação,baseado na maneira alternativa de viver e em um estilo de
sentidodescntivo,a mundializaçãodesignaa unificaçãodo campoeconômico,nomeadamente vida despojado (LD,338 e segs.).A internacionalizaçãocontribui para novas estratégias de
na área financeira, sob o efeito das políticas estatais de liberalizaçãoe desregulamentação. distinção e de legitimaçãoda dominação.Ela transforma também as estratégiasde reprodu-
Ma~ a palavra tem igualmente, quase sempre, um sentido normativo ou prescritivo que ção. Por sua vez, La noblesse d'État (p. 305-328)procede à análise do desenvolvimentodas
designauma política econômicaorquestrada e imposta pelas grandes organizaçõesmultila- escolasde gestãointernacionais, "escolasrefúgio"que oferecemuma segunda oportunidade
terais (OMC,FMI,ComissãoEuropeia)visando à eliminaçãode obstáculos- em sua maioria aos filhos da burguesia de negócios,descartados da concorrêncianacional,garantindo-lhes
relacionadosao Estado-Naçãoe, em particular, ao Estado-Providência- a essa empreitada. saídasprofissionaisincessantementeampliadaspelainternacionalizaçãodo campoeconômico.
Esse duplo sentido é que faz a ambiguidadeda noção, conferindo-lhesua força simbólica.O Bourdieu prosseguiu a análise da internacionalizaçãodas classes dirigentes no âmbito
termo permite transformar o processo de unificaçãodo campo mundial da economiae das de um trabalho coletivode comparação internacional da formação das elites, coordenado
finanças em um destino inevitávele em um projeto político. por Moniquede Saint Martin, na década de 1990.Nesseestudo, ele mostra que as novas no-
. .A mundializ~çãoé, portanto, antes de mais nada, urna doxa, um conjunto de crenças e brezas nacionais tendem cada vez mais a se internacionalizar,tanto em seu funcionamento
ideiaspreconcebidas.Elementoda filosofiasocialda classedominante,o termo substituiuO de quanto em sua formação e reprodução. Assiste-sea urna unificação do campo mundial da
"modernização"e desempenha,comoeste,funçõesde legitimaçãoda ordemexistente.Para exe- formação dos dirigentes que produz seus efeitos sobre os campos nacionais, introduzindo
cutar sua tarefaperformativa,a noçãode mundializaçãose integraem urnaretóricaqueinfringe novos princípios de legitimidade em cada uma das estruturas sociais no plano nacional
todas as regras do discurso sociológico.Os "teóricosda mundialização"- que, à semelhança (BOURDIEU, 1992,p. 281-283).
de AnthonyGiddens,UlrichBeckou ZygmuntBauman,retomampor sua conta essevocábulo A comparaçãointernacionalconstruídarigorosamenteé, de acordocomPierre Bourdieu,
sem questionarsua construção,nem sua função social- estão fadadosa se limitar a discursos a melhor - para não dizer, a única - maneira de enfrentar o processode internacionalização.
geraissem fundamentoempírico,contribuindo,com seus ensaios,para reforçaressa doxa. A mundialização não plana no vazio e não pode ser estudada sem um ponto de sustentação
Para combatero mito da mundialização,Bourdieurecomendaurna ida aosfatos.OsEstados nacional bem sólido. Somenteum trabalho coletivointernacional sobre os efeitosnos dife-
estiveramna origemdasmedidaseconômicasde desregulamentação e continuamdesempenhando rentes países desse processo de internacionalização- na medida em que estabelecerelações
um papelao dar sua cauçãoà políticaquelhes retira o poder.Tudoo quese descrevesob o termo entre pesquisas empíricas situadas do ponto de vista histórico e geográfico- torna possível
"~~dialização" é o efeitonão de urna fatalidadeeconômica,mas de urna políticade despoli- a construção de um modelo de conjunto.
tizaçao.Enquantoo termo "mundialização"oculta os Estados-Nação,assiste-sena realidadea Essasoperaçõesde comparaçãointernacionalforamtambém a ocasião,para Bourdieu,de
uma redefiniçãoparcialda divisãodo trabalhointernacionalem favordospaísesdominantes.A pensar as condiçõessociaisde possibilidadede outras formas de internacionalização,nomea-
mundi~ação encarna,assim,"aformamaisbem-acabadado imperialismodo universal",aquela damente no campo intelectual. Ainda que exista urna internacionalizaçãodos dominantes
qu~consiste,em uma dadasociedade,em universalizarsuaprópriaparticularidade,instituindo-a - ou, no campo acadêmico,uma internacional do establishment -, a vida intelectual não é
tacitamentecomomodelouniversal.Comefeito,as políticasde globalizaçãosão bastantetribu- espontaneamente internacional. A diversidadedas tradições intelectuais no plano nacional
tárias da~~adiç~essociaisde um Estadoparticular,os EstadosUnidos(EUA),em que O Estado está na origem das numerosas deformaçõessofridas pelas ideias que circulam de um espaço
Federal e histoncarnentefraco, modeloque se universaliza,graças aos think tank e às redes nacional a outro, e de mal-entendidos em torno de textos reinterpretados em função de
int~rnaci~naisde experts. Contra essamundializaçãoliberal,Bourdieuconvocapara um novo interessesnacionais dos receptores.O conhecimentodas categoriasde percepçãonacionais,
universalismoquetrabalhariaem prol da universalizaçãodas condiçõesde acessoao universal. herdadas da história e inscritas em formas escolaresde classificação,é que permite superar
Se o termo "mundialização" aparece apenas tardiamente, e de maneira relativamente tais obstáculos.A internacionalizaçãoou a desnacionalizaçãodas categoriasde pensamento
periférica,na obra científicade Bourdieu,essas análises baseiam-seem urna reflexãoteórica é a condiçãoprimordial de um verdadeirouniversalismointelectual (BouRDIEU, 2002).
272 MUNDIALIZAÇÃO/1NTERNACIONALIZAÇÃO
MUNDIALIZAÇÃO/1NTERNACIONALIZAÇÃO 273
Assim,o conhecimentodosmecanismosda mundialização- se apoiadono trabalhocoletivo
de pesquisadores de diferentespaíses - pode ser uma das armas de um internacionalismo
crítico, capaz de resistir à nova internacional cultural dos dominantes.

Referências
BOURDIEU,P. Quelquesremarques sur les conditions et les résultats d'une entreprise collectiveet
international de recherche comparative. ln: SAINTMARTIN,M.; GHEORGHIU,M. D. (Eds.).Les
institutions de formation des cadres dirigeants: étude comparée. Paris: MSH/CSE,1992.
BOURDIEU,P. Les conditions sociales de la circulation international des biens culturels. ARSS, n.
5, p. 3-8, 2002.

147. MUNDOSOCIAL

· · · · · ·NEOLIBERALISMO
...... · · · . . . . . .. .. .. .. .. .. .. . . . .. . .. .. . . . .. . ····································································
Michel Daccache
·148. Roberto Grün

A noçãode mundo socialdeveser distinguidatanto das prenoçõesdo sensocomum(fala-se


de "esferassociais")quanto de determinadasconceitualizaçõeseruditas. Sobretudoa corrente Esse termo apareceexplícitomais frequentementeem escritosde Bourdieuconsiderad~s
interacionista,comA. Strausse H. Becker,serviu-sedo plural "mundossociais"para designar militantesou de circunstância.Ressalvafeita,em seusúltimosanosde atividadeo autorproduzm
universosdotados de propriedadesespecíficas(os mundos da arte, da música...). Na obra de um extensoferramentalpara lidar como enfraquecimentodosEstadosdo Bem-Esta~Soei~que
Bourdieu,à semelhançado queocorrecom a fenomenologiade A. Schütz,o mundo socialpode permiteanalisardiversasfacetasdosaspectosquenormalmentesãoassociadosaoneolibe~~smo.
ser definido,antes de mais nada, como aquilo de que temos a experiênciasob o modo da evi- De inícioa grande obra coletivafocadanas consequênciasdo enfraquec~~nto das po~ticasde
dência(o "é assim").É a realidadetal qual ela é apreendidasubjetivamente- o Lebensweltde ação do Estado para diminuir as consequênciasdas desi~aldades ~ocra1se culturar~(~)-
E. Husserl- e que se retraduz objetivamentena forma de comportamentostípicos,associados Em seguida,podemosanotar diversostextosde intervençaonos quais ele desvendaa lo_grca da
a algumaspossibilidadesde êxito.Assim,o mundo socialé, de certa maneira, a representação construçãointelectualneoliberalismo,em especial"O neoliberalismocom~ rev~~u~ao con-
que a pessoa faz dele.É, portanto, um assunto que interessa a todos na medida em que cada servadora"(CFl),além de trechosdas aulas de seu livropóstumo (SE),tambem dingrdospara
um tem interessequevenha a impor-seuma visão de mundo conformea seus interesses(oque públicosnão especialistas. _
explicaque se negafrequentementequalquercarátercientíficoa tal objeto).Aoafastar-se,nesse A forçado neoliberalismopode ser explicadaa partir da sua apresentaçaocomomensagem
ponto, da tradição fenomenológica,Bourdieulembra assim que o "ser-no-mundo"resulta de revestidade linguagemcientífica,aparentementeneutra e isentade críticas:"Foise armand~d~s
esquemasde percepçãoe de açãoque,por sua vez,são produtosde uma história.Mas o mundo matemáticas(e do poder da mídia)que o neoliberalismose tornou a formasupremada socrodi-
social é igualmente, em um nível mais geral, uma ordem particular de coisas.De fato, essa ceiaconservadoraque começoua aparecerno final dos anos 1960atravésda expres~ão'fim ~as
noção não remete a uma série de objetos(arte, religião,economia...), nem mesmo a domínios ideologias'ou, mais recentemente,'fim da história'"(INT,350).Aplicandoseu concertode efer:o-
precisosde atividade,mas a um reino específicoque obedecea "leis"próprias:o mundo social teoria,Bourdieudiz que"O neoliberalismoé uma teoriaeconômicapoderosa,queaumentammto
é, para o sociólogo,o que o mundo físico é para o físico.Vê-se,pois, que a noção de mundo atravésda suaforçasimbólicaa forçajá existentedas realidadeseconômicasqueele~parentemente
socialnão pode ser reduzidaà noção de sociedadeno sentidode Durkheim,pois esta segunda apenasexprime"(INT,350).A teoriapoderosaé apresentadacomouma crençaracionalquedeve
noçãoveiculauma metafísicaque a primeiraignora.Elatambémnão se sobrepõeao conceitode ser abraçada globalmente:"Esseevangelho,ou melhor,a vulgata mole que nos é pr~posta de
espaçosocial,igualmentepresentena obra de Bourdieu,mas quese refereà estrutura relacional todosos ladossob o nome de liberalismoé feitade um conjuntode palavrasmal definidascomo
constituídapelo conjuntodas posiçõesocupadaspelos agentessociais. 'globalização','flexibilidade','desregulação',etc.as quais,pelassuas conotaçõ:slibe~aise mesmo
libertáriaspodem conferiruma aparênciade mensagemde liberdadee de liberaçaopara uma
Referências ideologiaconservadoraque se pensa comoopostaa todas as ideologias"(INT,351).
LENOIR,R. Espace social et classessociales chez Pierre Bourdieu. Sociétés & Représentations, v. 1, No contextopolêmicoem que os textos foram apresentados,Bourdieutambém destaca
n. 17,p. 385-396,2004. efeitosperversos do neoliberalismo,na esfera da arte e da cultura e avan7asugestõesso~~e
PINTü,'L. Pierre Bourdieu et la théorie du monde social. Paris: Albin Michel,2002. como ele poderia ser combatido.A arte e a cultura, depoisde terem ~on~msta~oa necessana
autonomiano decorrer do séculoXX,começama perder a independencrarelativaque gozam

274 MUNDO SOCIAL NEOLIBERALISMO 275


}

num contextoem queo Estadoe ospatrocinadoresprivadosvãoprogressivamenteretomandoas conta dos espaçosdecisóriosda economia,como os bancos centrais (LEBARON, 2000, 2008).
rédeasdosprocessosde criaçãoatravésdo controledos recursosmateriaispara ela.Essasituação No interior da equipe de Bourdieu a atenção sobre esse grupo não diminui a necessidadede
representanada menos do que um retrocessocivilizatórioque deveser combatidocom todas observar outras comunidadesprofissionais,em especialaquelasligadas à esferajudiciária. É
as for~aspelosintele_ctuais e artistas que prezam o seu ofício(LE).É justamente a mobilização assim que YvesDezalayempreendeuma extensaanálise dos subgruposdas diversaselitesna-
das diversascategonasprofissionaiscujofazer está sendo afetadode forma negativapela nova cionais"produtorasde direito";vinculadosà internacionalizaçãoao mesmotempo da profissão
onda de "tecnocratização"que poderia combatereficientementea nova ideologialiberal.Para e do arcabouçojurídico. É no interior dessabatalha entre setorestradicionais mais ligadosàs
issoBourdieupreconizaa criaçãode associaçõesinternacionaisde artistas,intelectuaise demais tradições nacionais do direito e os grupos mais jovens, dotados de formaçãointernacional,
profissionaisqueapontem,comautoridademorale profissional,as deficiênciasdas intervenções que se produz o novo direito internacional e que por reflexotambém renova o nacional, que
neoliberaisnas suas respectivasáreasde atuação.A partir dessaconstruçãointernacionalalter- consagra o neoliberalismo. A prevalência do grupo mais jovem significapassar por cima
nativaBourdieuconsideravaserpossívelcontrabalançaro poder políticoe culturaldas agências das tradições e mecanismos de defesaqriecada comunidadenacional construiu no passado
internacionaisdominadaspeloseconomistase altosfuncionáriospartidáriosdo neoliberalismo. para se defender do império absoluto do mercado capitalista e essa institucionalizaçãodo
.Em termos heurísticos,Bourdieuvai, a partir de A miséria do mundo, progressivamente neoliberalismosó pode adquirir inteligibilidadesociológicaselevarmosem contaa dinâmica
lapidara partiçãoentre mão direita e mão esquerda do Estado.Essadivisãolança luz sobreas de atores que ela deflagra e consagra (DEZALAY; GARTH, 1996,2002a, 2002b,2010,2011).
diferençasdeperspectivae de açãoentreosagentesdo Estadoencarregadosda políticaeconômica,
próximosda lógicae dosagentesdo capital,queelechamade mão direitado Estado;e aquelesque Referências
seocupamdas diversasfunçõesde políticasocial,educacional,cultural,de segurança,ambientale BOURDIEU,P. La lecture de Marx. ARSS, v. 1, n. 5-6, p. 65-79,1975.
outras.A essesúltimosdenomina"mãoesquerdado Estado",sendoa divisãopropostaa partir da DEZALAY, Y.;GARTH,B. G. Dealing in Virtue: International Commercial Arbitration and the
observaçãodasdificuldades emesmododesesperodelesdianteda quaseimpossibilidade decumprir Construction of a Transnational Legal Order. Chicago: Universityof ChicagoPress, 1996.
suastarefasno contextoem quea "mãodireita"cerceiacadavezmais suasatividades(MM,222). DEZALAY, Y.;GARTH,B.G. Global Prescriptions: the Production, Exportation, and Importation
Na sua teoria geral do Estado,-Bourdieuchama a atenção para o papel fundamental des- of a New Legal Orthodoxy. Ann Arbor: Universityof MichiganPress, 2002a.
ses agentes do interesse geral na geraçãodos bens coletivosque tornam possívelo convívio DEZALAY, Y.;GARTH,B.G. The Internationalization of Palace Wars: Lawyers, Economists, and
civilizado.E é na corrosão dos fundamentos da atuação e da autoestima desses agentes que the Contest to Transform Latin American States. Chicago:Universityof ChicagoPress, 2002b.
poderia ser localizadauma das principaiscríticasqueBourdieufaz ao neoliberalismo.Imbuí- DEZALAY, Y.;GARTH,B. G. Asian Legal Revivals: Lawyers in the Shadow of Empire. Chicago:
dos da ideologianeoliberal,os agentesda mão direita do Estadoacabam criando mecanismos ToeUniversityof ChicagoPress, 2010.
cognitivosque obliteram a sua percepção dos problemas encontrados pela mão esqúerda e DEZALAY, Y.;GARTH,B. G. Lawyers and the Construction of Transnational Justice. NewYork:
acabam dessensibilizadospara os problemas que a omissão do Estado provocanas parcelas Routledge,2011.
da população menos bem providas de capitais econômicoe cultural. Essa ênfase na teoria LEBARON, F.La croyance économique: les économistes entre science et politique. Paris:Seuil,2000.
e~onômicacomomecanismoprodutor de cegueirainstitucional é próxima daqueladesenvol- LEBARON, F.CentralBankersin the ContemporaryGlobalFieldof Power:a "Social Space"Approach.
vida nos trabalhos históricos de E. P.Thompson(1993)sobre a economiamoral e sua relação The Sociological Review, v. 56, p. 121-144,2008.
coma teoria econômicanascente.Essaproximidadeé digna de nota,já que Bourdieupublicou THOMPSON,E. Modes de do.minationet révolutions en Angleterre. ARSS, v. 2, n. 2-3, p. 133-151,
esse autor marxista nos primeiros volumesde ARSS, quando ele era ainda pouco conhecido 1976.
fora da Inglaterra, no volumesobre a produção da ideologiadominante (THOMPSON, 1976). THOMPSON,E. P. Customs in Common. NewYork:New Press, 1993.
O espaçoempíricoqueBourdieuobservoufoiprincipalmenteo da construçãodas estruturas
da UniãoEuropeiadofinaldo séculoXX.A lógicada construçãodessasentidadessupranacionais 149. NOBLESSE D'ÉTAT(LA):GRANDES ÉCOLES ETESPRITDE CORPS
num período de predominânciacultural do neoliberalismoprivilegioua construçãodo espaço ·······················································································································
econômicocomume foio alvoespecíficodas principaisintervençõescríticasde Bourdieusobre Ana Paula Hey
º.tema. Ele observouque nesseprocessoas duas mãos do Estadovão se distanciandoprogres- Elisa Klüger
sivamentee o poder efetivovai se concentrandonaquelalocalizadana direita.Essaconstrução
supranacionalse torna uma oportunidadepara a experimentaçãoneoliberal. BOURDIEU,P. La noblesse d'État: Grandes Écoles et esprit de corps. Paris: Minuit, 1989.
Na lógica analítica de Bourdieu é impossívelpensar em construção institucional sem
especificarquem são os construtorese quais são os motivose as crençasque os impulsionam. O livro resulta de um conjuntode pesquisasdesenvolvidascom Moniquede Saint Martin
No caso do neoliberalismo,é ressaltado o papel dos economistasortodoxosna construçãoda sobre a estrutura do espaçode educaçãodas elitesna Françaa partir da segunda metade dos
doxa sobre como a economiadeve ser'gerida e de suas estratégias mais diretas para tomar anos 1960,estendendo-seà década de 1980,sendo parte dos textos já publicadosem ARSS

276 NEOLIBERALISMO NOBLESSE D'ÉTAT (LA}: GRANDES ÉCOLES ET ESPRIT DE CORPS 277
entre 1981-1987. No sistemade ensinosuperiorfrancêshá uma distinçãoentre grandes escolas A socializaçãoexperimentadapelos dominantes na instituição escolaré essencialpara a
(estabelecimentosseletivose competitivos,comvagaslimitadas e com classespreparatórias)e criaçãode uma cultura, de valorese de estilosde vida comunsque, fundados na coerênciado
as universidades(instituiçõesde massa,comingressoapós a conclusãodo ensinomédioa partir habitus, configuramos atributos sociaisnecessáriospara o exercíciodo poder.Ademais,esse
da classificaçãono exame nacional,o baccalauréat), que ensejam diferençasno processode espaçoconstituivínculossociaisduráveisque perfazemo "espíritode corpo",o sentimentode
recrutamentoformal(osexames)e social(aorigemsocial).Dedicando-seà análisedo campodas solidariedadee fraternidade que é condiçãode constituiçãodo capitalsocialpartilhado pelos
grandes escolase à produçãoe reproduçãodos grupos dirigentes,procedeao mapeamentoda grupos dominantes e base para a cooptaçãosucessivade pares para as posiçõesdirigentes.O
divisãoentre as grandes e as pequenasescolas,bem como à cisãoentre as instituiçõesvoltadas cultivodas disposiçõesrequeridaspara ocuparos postosde podercompõeum rito de instituição
ao cultivodos valoresintelectuaise aquelasdirecionadasà ocupaçãode posiçõeseconômicase do grau de elite, no qual os eleitossão submetidosa rigorososconstrangimentos,exercícios
políticas.Taishomologiaspermitema análisedas oposiçõese,aomesmotempo,das interconexões ascéticose formais, introjetando a capacidadede dominaçãoem sua natureza e adquirindo
que estruturam o espaçosocial,o sistemade educaçãoe o campo do poder (WACQUANT, 2007). a conduta que comprovaa sua distinção, expressano estilo,nas maneiras e na certeza de si.
A obra é organizadaa partir da análisede fontesdiversificadas,compreendendorelatóriosde A terceira parte dedica-se ao campo das grandes escolas,visando construir uma rede
professoressobreo desempenhode seusalunos,questionáriosaplicadosàs propriedadessociais de relaçõesobjetivasentre os estabelecimentosde educaçãosuperior: grandes ou pequenas
e dotaçãode capitaisdos estudantesde cada instituição,entrevistas,obituáriosde ex-alunosdas escolas,faculdades,classespreparatórias,etc. Para delinearo campo,procedeà coletae com-
grandesescolas,o relato da rotina de um grande empresário,etc.,valendo-seda etnografia,da paração de informaçõessobre o conjuntodas propriedadespertinentes, ou seja,aqu~lasque,
análisedocumental,da construçãode dados estatísticose da análisede correspondênciaspara analisadas de modo relacional,delimitamvariaçõessignificativasentre os estabelecimentos
elaborarempiricamenteo universodo ápicedo sistemade educaçãosuperior.Nessaedificação escolarese seus estudantes. A demonstraçãodessa estrutura de relaçõespor meio da análise
fornecegrandeparte doselementosepistêmicosquecaracterizamsuateoriasociológica: asnoções de correspondênciasobjetivaa distribuição das propriedadesou poderes ali atuantes.
de campo,habitus, estruturasociale estrutura mental,modosde dominação,reproduçãosocial Ao interpretar as clivagensobservadasno campo, Bourdieuafirma existir uma primeira
e escolar,violênciasimbólica,classessociaise cultura,Estadoe poder estãopresentesem sentido oposiçãoqueseparaas instituiçõesprestigiosase reconhecidasdasinstituiçõesmenos_ des:ac_a~as
prático,permitindorealizarum verdadeirodesenhode investigaçãoglobalcentradoem clivagens (asgrandesescolase aspequenasescolas)e uma segundaoposiçãoentre,de um lado,mstituíçoes
sociais,Estadoe educação.Apesardo âmbitoe do recheioempíricoreferirem-seà França,o caráter commaior autonomiaescolare científicaque configuramum polointelectuale científicamente
analíticoda obraé essencialmenteuniversalizante,fornecendo"um poderosoprojetoteóricoquea dominantedo campo,mas sociale economicamentedominado(escolasintelectuais);e, de outro,
situano epicentrode debatessobrepoder,culturae razãono fim doséculo"(WACQUANT, 2007,p. 38). instituiçõescom menor autonomiaintelectual,situadasno polo escolarmentedominado,mas
Divididoem cinco.partes,cadauma comportarecortesempíricosespecíficos, mas queseentre- sociale economicamentedominantedo campo(escolasdo podertemporal).A polarizaçãoentre
laçamdopontodevistaanalítico.Naprimeira,a partir das característicassociaise escolarese das osdetentoresdopodertemporale osdetentoresdopoderintelectualnãobloqueiaa gênesedeuma
redaçõesdos aprovadosno concursogeral- competiçãonacionalquepremiaos melhoresalunos solidariedadeorgânicaque os aproxima,sobretudoquandoos sustentáculosda estrutura social
do últimoano do ensinomédio,por disciplinae restritoa 8%do contingentede cadaescola-, em encontram-seameaçados.Essasolidariedadepermitequeprevaleçamos interessescoletivosdos
1966-1968e depoisem 1986,bem comodosjulgamentosdos professores,analisa-seo sistemade dominantesemdetrimentodosinteressesparticularesdasfraçõesquecompõemo campodopoder.
classificaçãosocialimplícitonas formasescolaresde classificação,
nas categoriasde entendimento Na quarta parte a análise se deslocada formação das disposiçõese oposiçõesnos esta-
professorale o efeitodeimposiçãosimbólicadessesesquemaspráticosdepercepçãoe de apreciação. belecimentospara o estudo da estrutura do próprio campo do poder para o qual as grandes
Ojulgamentoescolar,procura demonstrarBourdieuao analisaros veredictosqueos professores escolasdirecionamseusegressos.O autorrelacionaos padrõesde inserçãodos grandespatrões,
emitemsobreos alunos,estabelececlassificações escolaresquenão sãoapenastécnicase,portanto, dirigentes dos setores público e privado, às trajetórias por eles percorridas e à composição
indiferentesàs propriedadessociaisdosalunos.Aocontrário:elascorrespondemestreitamenteàs dos capitaispor elesacumulados,procurando desvendaros mecanismospráticosde c~st~ra
estruturassociaisque os estudantesincorporama partir de sua posiçãosocialde origem.Nesse da solidariedade entre os grupos dirigentes:os casamentos,as passagens do setor publico
sentidoé possívelpensarna educaçãocomoum sistemade reproduçãodosgruposdominantesque ao setor privado, os conselhos e domínios societários cruzados. Páginas densas expõem o
passarama transmitir sua posiçãosociale capitalsimbólico,tendo a escolacomointermediário. campo do poder comouma "rede cruzada de ligaçõesestruturais e funcionaisque entrelaçam
A segunda comporta o estudo das classespreparatórias às grandes escolas,utilizando- os espaçosdas escolasde elite com o das classesdirigentes"(WACQUANT, 2007,p. 40),sendo
se questionáriose entrevistas com alunos dessas classes,resultados de pesquisas anteriores que sua estrutura é definida pelo estado da relação de força entre as formas d~ po~er, pela
com estudantes de ciênciase de letras, entrevistas e depoimentosde professoresdas classes dependênciadas diferentesespéciesde capital mobilizadasnas lutas pela dommaçao e pelo
preparatórias e de faculdadesde Paris e do interior. A discussão focaessas classescomo caso peso relativoque esses capitais assumem na referida estrutura.
particular do universodas escolasde elite e como instituições encarregadasde conferir uma A quinta parte preocupa-seem examinarcomoo título escolaré ligadoao Estadoou como
formaçãoe uma consagraçãoàquelesque são chamados a participar do campo do poder, de manifestaçãoda magia do Estado, a outorgade um diplomacomo ato de certificação~u de
onde são, em sua maioria,já provenientes(NE, 102). validaçãopor meio da qual uma autoridadeoficialgarantee consagracerto estado de cmsase

278 NOBLESSE D'ÉTAT (LA): GRANDES ÉCOLES ET ESPRIT DE CORPS NOBLESSE D'ÉTAT (LA): GRANDES ÉCOLES ET ESPRIT DE CORPS 279
comoatestaçãopúblicade uma competência.As demonstraçõesdesenvolvidasdurante o livro eliteapresentadae reconhecidacoletivamentecomolegítima;A possedos títulos,juridicamente
culminamna análisedopodercomoconstituintede relaçõescomplexasentrecampos,nessecaso, garantidospeloEstadoe representativosdo exercíciode suaviolênciasimbólicalegítima,autentica
o universitárioe o burocrático,ou entre essescampose o econômicoe o político.Opoderpassa a competênciatécnicadosseusdetentorespara monopolizaremdeterminadasposiçõesde poder.
a ser coextensivoda estrutura do campo do poder,deixandode se encarnar nas pessoasou em Porém,em tal competênciaresideum conjuntode disposiçõessociaispolivalentes,materiaise
instituiçõesespecíficas,manifestando-see se realizandopor meiode um conjuntode campose simbólicas,do qual devemdisporaquelesquelogramobteros signosraros de distinção,que são
de espéciesde capitalunidospor uma solidariedadeorgânica,exercendo-sede maneirainvisível os diplomasde elite.Assim,a obra respondeao examedos modosde dominaçãonas sociedades
e anônima por mecanismosque asseguram a reproduçãodo capitaleconômicoe do cultural, complexasao demonstrarcomoas instituiçõesescolaresencarregam-seda tarefade consagração
de ações estruturadas de redes de agentese de instituiçõesconcorrentese complementares,e dasdivisõessociais,articulandoo sistemade relaçõesentreas estruturascognitivase as estruturas
engajadosnos circuitosde trocas legitimadorascada vez mais longase complexas(NE,554). sociais,o habitus e os campos,e a dinâmicaquelhe é imanente(R, 115).
A perspectiva adotada no livro é a de uma história estrutural, que não busca apenas
descrever as práticas existentes em um determinado momento e em um ponto do espaço, Referência
mas detectar qual a estrutura social existente e quais são as lutas travadas para assegurar WACQUANT, L. Lendoo "capital"de Bourdieu.Educação & Linguagem, SãoBernardodo Campo,SP,

a permanência ou provocar a transformação dessa estrutura. As escolhas e estratégias dos n. 16,p. 37-62,jul./dez. 2007.
agentessão constrangidaspela estrutura que, incorporada pelos indivíduos,se transformam
em esquemas geradores de práticas, percepções e preferências. Os capítulos costuram a
hipótese de que às estruturas mentais - princípios incorporados, e portanto inconscientes, 1so.NOBREZA
·······················································································································
de visão e divisão do mundo social que geram e unificam as tomadas de posiçãodos agentes
nos diversos domínios da prática - corresponderiam estruturas sociais. As preferências Ver: Classe social
estéticas,políticas,afetivas,escolares,profissionaise as ações que delas resultam tenderiam
a ser homólogasà posição ocupadapelo indivíduo na estrutura social.
O estudo do campo das instituições de ensino superior objetivaexplicar como as estru-
1s1.NOMOS ,
···························································································;···························
turas sociais e mentais são produzidas e reproduzidas em uma sociedadena qual a escolaé Cristina Cart~ Cardoso de Medeiros
reconhecidacomoo espaçolegítimoda transmissão de conhecimentose do credenciamento
dos indivíduosmais destacadospara ocupar as posiçõessociaisde maior prestígio.De acordo A noção de nomos, palavra que etimologicamentevem do verbo partilhar (em grego,
comBourdieu,sem compreendera funçãodesempenhadapor estas instituiçõesnão é possível némo ), aparece na abordagem sociológica de Pierre Bourdieu quando o autor explicita
entender comoo poder se estrutura, uma vez que operam uma alquimia socialao reproduzir o conceito de campo. Apontado como princípio de visão e de divisão constitutivo de um
uma hierarquia socialdissimuladana crençada inteligência,cujofundamento legitimaa do- campo, tal princípio atuaria como uma "lei fundamental" (RAp,78; MPp, 117),uma ordem
minação dos mais bem dotados em capital cultural atribuído pelo sistema escolare daqueles instituída nas estruturas objetivas de um universo socialmente regulado e nas estruturas
que têm maiores chances de acumular esse tipo de capital. mentais daqueles que nele se inserem e que tendem, por isso, a aceitar como evidentes as
A ilusão de democratizaçãoda possibilidadede ascensão social, gerada pela ampliação injunções inscritas na lógica imanente de seu funcionamento. Para o autor, o nomos não
do acesso ao sistema educacional,levaria os dominados a reconhecereme investirem-seno tem antítese por suas características de princípio legitimado e aplicávela todos os aspectos
jogoeducacional.Simultaneamente,desconhecemo caráter arbitrário da seleçãoque se opera fundamentaisda existência:"definindoo pensávele o impensável,o prescritoe o proscrito,ele
na escola que, em sua maioria, consagra - considerando talentosos,vocacionados,geniais, acabapermanecendoimpensado"(MPp,117),constituindo-seem matriz de todas as questões
excelentes- aquelesque são capazesde convertero capital cultural herdado no meio familiar pertinentes e incapaz de produzir as questõesaptas a questioná-lo.SegundoBourdieu(SPp),
em capital escolar.Se a reproduçãopela via escolar é mais permissívelà entrada de pessoas a necessidadearbitrária (nomô) pela qual o grupo se constitui e institui aquilo que o une e o
que não pertencem ao meio dominante do que a transmissão direta da posição social, seus separa, uma vez que a identidade socialse definee se afirma na diferença,é imposta por uma
mecanismos de transmissão são duplamente ocultos, uma dissimulaçãoda agregaçãoesta- adesãotácita. Para ele, o arbitrário se situa no princípio de todos os campos,mas os nomos,
tística e uma dissimulaçãoda transmissão direta do capital cultural, o que reforça a crença as leis fundamentais, diferem de um campo para outro, ou seja, "... cada campo confina os
na legitimidadedo mecanismo de seleçãooperado pela escola. agentesa seus próprios móveisde interesse os quais, a partir de outro ponto de vista, ou seja,
A tarefaà qualse entregao sociólogoé demonstraros processosde produçãode uma nobreza do ponto de vista de outro jogo, tornam-se invisíveisou pelo menos insignificantesou até
escolar,quetem o diplomacomopatentede culturae cujomonopóliogarantesuamobilizaçãonos ilusórios" (MPp, 117-118).A identificaçãodos ganhos propostospor cada um dos diferentes
espaçosdominantes.Namedidaem queatribuinomese títulosdistintivosaosmaisbem adapta- campose seus princípiosde visão e divisãoseriam, para o sociólogo,uma forma de identificar
dos,a seleçãoescolarinstitui fronteirasque apartam,de maneira duradoura,os comunsde uma os limites do campo que se situariam ao ponto onde cessariam seus efeitos(R).

NOMOS 281
280 NOBLESSE D'ÉTAT (LA): GRANDES ÉCOLES ET ESPRIT DE CORPS
Em terceiro lugar,explicacomo a experiênciasocialse filtra no sistema de categoriasque
organizama filosofiade Heidegger.O discursode Heideggerestárepletode oposiçõesprimi~vas,
mas destiladasaté o virtuosismoem um discursofilosófico.Portanto,as regrasda arte filosofica
semanifestamde modomagistralem Heideggersem quepor issoeledeixede ser um ideólogo.E
o fatoé queos duplossentidosda linguagemheideggerianacontinuamfuncionandoe a ideologia
reacionáriase aloja atrás das locuçõese polifoniasque estruturam um erudito comentáriode
Aristóteles.Assim,Bourdieuconseguemostrar que é o que torna políticauma grande filosofia,
ao mesmotempo em que expõetudo o que a separado ensaísmopanfletário.Entrea simplesex-
posiçãoensaísticade fantasmassociaise a formalizaçãofilosóficade um pensamentoexisteuma
grandedistânciaquea sociologianãopodedesconhecer.Otrabalhode formalizaçãofilosóficadas
pulsõesexpressivasaprimoraas produçõesculturais;a sociologiase equivocaassociando-seao
negóciodas reduçõesbrutaisdo filósofoà simplesideologia.Assimé:a censurareprimeaspulsões
s2. ONTOLOGIA POLÍTICADE MARTINHEIDEGGER (A) do autor,mas não as elimina.Continuamse instalandonosjogosde palavrase nas classificações
quesubjazemos mesmos.Por exemplo,a oposiçãoheideggerianaentre a existênciaautênticae a
(L'ONTOLOG!E POL!T!QUEDE MARTIN HEIDEGGER)
existênciainautênticase nutre do velhotópicoelitistada distânciaentreelitese massas,mas o faz
··························································•················································································•········•·········•···················
de um modo que proíbea leitura direta sem deixarde aludirsub-repticiamenteaosfantasmas-
JoséLuís Moreno Pestana
brutalmentesociológicos - queseencontramna suabase.Somenteuma duplaleitura,capazde dar
BOURDIEU,P.A ontologiapolítica de Martin Heidegger.Campinas, SP:Papirus, 1989. contado grau de censurado textotanto quantoda permanênciados significadosnegados,ainda
quenão eliminados,pode fazerjustiçaàs conquistasautônomasdo pensamentosem se inclinar
Heidegger foi uma das inspirações fenomenológicasda sociologiade Bourdieu. Além à mera celebraçãodos idioletosfilosóficos.
disso, foi um de seus objetosde análise sociológica.Ao filósofodedicouuma obra de enorme Em quarto lugar,delimitacomoHeideggerse situa no espaçode possi~ilidadesda tradição
repercussão (L'Ontologiepolitique de Martin Heidegger,1988).Nela, Bourdieu expôs as de discursos filosóficose de que modo defineuma posiçãoque terá êxitona filosofiadepoisdele.
linhas mestras de sua sociologiada filosofiaao mesmo tempo em que as aplicavaa um dos Heidegger é o filósofoilustrede uma posiçãodiscursivaque outorgaao filósofoo estatutodo ad-
maiores pensadores do século XX.Pode-se resumir em quatro movimentos a reconstrução ministradorde uma tradiçãode textosfilosóficos,suscetíveisde eternocomentárioe, ao mesmo
sociológicade Heideggerrealizadapor Bourdieu. tempo,emissorinspiradodo autênticosentidoda mesma.Dessemodo, Heidegger"conferesua
justificaçãomais elevadaa uma das mais prestigiosasformasda práticatipicamenteprofessoral
Em primeiro lugar, situa a produção filosóficade Heidegger em seu entorno especifi-
do comentário:tal teoriaautorizae encorajao lectora sepensarcomoum autênticoauctor"(MP,
camente filosófico.Desse modo, Bourdieu exigeda sociologiada filosofiauma análise não
58).Assim,graçasa Heidegger,muitosfilósofossentirãomais urgênciaem dissertarsobreuma
reducionista dos espaços culturais. Segundo Bourdieu, Heideggerproduziu uma revolução
traduçãodo gregoou do alemãodo que em saberalgode economia,sociologiaou física.E, para-
conservadora na filosofiaao colocar no centro do sistema kantiano a temporalidade exis-
doxalmente,issonãolhesimplicaránenhumobstáculoparasepermitiremdizerosdisparatesmais
tencial, convertendoo filósofode referênciado neokantismo positivista de seu tempo - para
peremptóriosacercade comoas ciênciasdeterminamnossomundosubordinadoà "erada técnicà'.
quem a filosofiadevia tirar as conclusõesde uma ciência que funcionava sem discussão -
em referente de uma filosofiaque recuperava sua posição de preeminência a respeito das
disciplinas positivas. 153. OPINIÃOPÚBLICA/SONDAGEM
Em segundo lugar, mostra como o talento de Heideggertem, entre suas condições de ·······················································································································
Patrick Champagne
possibilidade, uma trajetória socialmente rara. Heidegger foi um intelectual de primeira
geração,portanto resultado de um trajeto ascendente por mundos sociais variados, o que A posição de Bourdieu sobre a questão das sondagens chamadas "de opinião pública"
ajuda a compreendera capacidadepolifônicade sua mensagem, cheia de referênciaserudi- revela-seplenamente em uma breve conferênciaintitulada, de modo provocativo,"Aopinião
tas e de alusõespolíticas ocultas, de evocaçõespoéticas e de termos de ressonância rural. A públicanão existe",pronunciadaemjaneiro de 1971na cidadede Arras,na AssociaçãoCultural
linguagemacadêmicafuncionavaem Heideggercomo uma linguagemcom a qual mantinha Noroit. Essa conferênciaserá publicada na revista Les Temps Modernes (janeiro de 1973)
uma rel,açãodistante, como se ela se tratasse de uma segunda língua diferente da original: · e republicada no livro Questões de sociologia(1980).Tal conferência,que obteve grande
essadistância socialem relaçãoao mundo acadêmicoajudouseu autor a não ficar aprisionado . repercussão,ilustra perfeitamenteo papel que,segundoBourdieu,deveriaser desempenha~o
nas oposiçõesque organizavamo campo intelectual de sua época. pela sociologia:disciplina científica cujo objeto é o mundo social, a sociologianão devena

282 ONTOLOGIA POLITICA DE MARTIN HEIDEGGER (A) OPINIÃO PÚBLICA/SONDAGEM 283


(L'ONTOLOG/E POL/T/QUE DE MARTIN HEIDEGGER)
permanecer distante dos debates e problemas que agitam a sociedade. Essa conferência levadoem contanas sondagens,que eledenominacomoas opiniõesdelegadas,ou seja,opiniões
inscreve-se,portanto, no que poderia ser designadocomo uma "intervençãosociológica". não sobreas questõescolocadas,mas sobreos grupós,partidos,sindicatose instituiçõesaosquais
Comefeito,a Françaexperimentou,desde 1965- data da primeira eleiçãopresidencialpor os indivíduos_ confiama produçãode opiniõesem seu lugar. _
sufrágiouniversal,uma verdadeiramania político-jornalísticapela técnica das sondagensna o segundo pressupostoda_ssondagensde opinião - pelo menos da forma como e~assao
política.O atrativopor elas exercidodeve-seao fato de que os pesquisadoreshaviam previsto, realizadaspelosinstitutosde sondagem- resideno fatode que,supostamente,os entrevistados
contra a opinião dos comentaristas tarimbados que confiavamna própria intuição, que o se colocama mesma pergunta que os institutos lhes formulam (na realidade,a pergunta que
general De Gaulleseria obrigado a disputar o segundo turno nessa eleiçãopresidencial.Tal deveser formuladapor exigênciade quem encomendoua sondagem)e, portanto, de que todos
sucessode previsão eleitoralacarretou, a curto prazo, uma multiplicaçãode sondagens,não os entrevistadosseriam capazesde produzirtais perguntas,de compreenderas motivaçõese os
apenaseleitorais,mas tambémde opiniãopropriamenteditas (ouseja,sondagensque começam significadosque lhes são subjacentes,muitas vezesde naturezapolítica.Ora, é im~ossível_que
por "Pessoalmente,o que vocêacha de... "), a respeito de todos os assuntos possíveis- temas a mesma pergunta formuladaa uma populaçãomuito diversificadado ponto ~e vista sociale
frívolos,bem como debates de sociedade- cujos resultados eram publicadose comentados cultural sejacompreendidade maneira idênticae, portanto,quetodosos entrevistadosvenham
nos editoriais dos jornais e, sobretudo, por especialistasda ciência política. Graças a essa a responderrealmenteà mesma pergunta.Ao fazer de conta que as perguntas colocadaspelos
tecnologia,os pesquisadorespretendem conhecer,de modo pretensamentecientífico- logo, pesquisadoressão formuladasefetivamentea todos os entrevistados,procede-sede fato a_uma
indiscutível-, "o estadoda opiniãopública",tendendoassim a se tornarem a única autoridade verdadeiraimposiçãode problemáticaque torna possíveluma distorção,pelos comentanstas,
legítimapara revelar "a opinião pública",ou seja, "o que pensam os franceses"a respeito de do sentidodas respostasfornecidaspelosindivíduosentrevistadosno momentoda sondagem.
todos os assuntos, incluindo aquelesque alimentam a luta política. Bourdieuvai criticar tais Em outros termos, os entrevistadosemitem suas respostassem suspeitar do sentido que lhes
pesquisas de um ponto de vista puramente científico,ao lembrar as precauçõeselementares será atribuído por comentaristas,editorialistasou analistaspolíticos. . .
que devem ser postas em prática, considerando o artificialismo que caracteriza uma situa- Finalmente,0 terceiropressupostoapontadopor Bourdieuemtais sondagensresidenos efei~os
ção de pesquisa como essa. Sua reflexão apoia-se num trabalho específicode investigação induzidospela adiçãode respostasformalmenteidênticas,mas cujosignifica~oé, de fato,rnmto
e na coleta sistemática de materiais empíricos.A investigaçãoconsiste na aplicaçãode um variável.Na verdade,os entrevistadoscompreendem,de acordocom a capacidadede cada um,
questionáriopor meio da imprensa incidindo sobre a apreciaçãodo sistema escolar após os e reinterpretamas questõesem funçãode suas propriedadessociaise cul\llfais,assim co~o ~e
acontecimentosde Maio de 1968,enquanto os materiais empíricos dizem respeito a uma seussistemasde interesses.Daí que as respostasdadasaospesquisadores,apesarde teremsigm-
coleta exaustivade perguntas formuladas pelos institutos de sondagem,entre 1965e 1970. ficaçõesmuitoheterogêneas,são de algumaformaneutralizadaspela consideraçãoexclusivadas
Em sua conferênciaBourdieuenfatizaos três pressupostosinerentesa essaspesquisas,pres- respostasmais ou menosextorquidasaosindivíduos.A apresentaçãodos resultadossob a forma
supostosquese devemao simplesfatode formularemuma mesmaquestãoa uma amostrapopu- depercentagensqueadicionamrespostasformalmenteidênticasoculta~fatode q~e_nem todasas
lacionalque é, supostamente,"científica"por ser "representativa"de toda a população(emgeral, opiniõespossuemsocialmenteo mesmovalore que,portanto,nãopoderiamseradicion~das.Com
a populaçãocomidadepara votar).Taissondagenscuidam,segundournalógicamaispolíticado basenas sondagensefetuadaspor intermédioda imprensa,Bourdieumostraque o ensmamento
que científica,de entrevistar"democraticamente"todo mundo, até mesmoaquelesque se recu- mais irlteressantea reter seria,ao invésda distribuiçãodas respostas,o fatode que s~menteuma
sam a responderou não se sentemenvolvidospela questão.Essedispositivode pesquisapostula, fraçãoda populaçãose mobilizoupara dar sua opiniãosobreo assuntoem questão.As re~postas
portanto,quetodo mundo tem uma opinião,pode e, inclusive,devefornecê-la.Eisaí o primeiro extorquidaspela situaçãode sondagemjunto a urna populaçãoformalmenterepresent~tiva,ele
pressupostodessassondagens:todo mundo é capazde produzir uma opiniãopessoala respeito opõea amostrade entrevistadosrepresentativadas forçassociaismobilizadas'.oupoten~ialm~~te
de tudo.Ora,a análise,feitaem muitassondagens,da "nãoresposta"às perguntasformuladasem mobilizáveis,a respeitode detenrrinadotema- e,às opiniõesaparentespr~~uzi~~~ pelodis~~s~ti~o
amostrasrepresentativasda populaçãonacional- o que é frequentementeesquecido-, embora de pesquisa(um simplesartefato),opõe as opiniõesde tipo "i~ei~-força,o~~oes mobilizaveis
constituídasde entrevistadosqueaceitaramresponderaoquestionário(aliás,asrecusasà entrevista, e realmenteatuantes que pretendemirlfluenciaros debatespublicas.Esseúltlillo~r~~sup~sto,
que são numericamentesignificativas,constituemnão respostasinvisíveis,mas não levadasem que constituiuma mera constataçãoe não um julgamentode valor ~nemto~~sas oplilloestem 0
conta)mostra que, apesardos esforçosdos pesquisadorespara minimizar as não respostas(seja mesmopeso social),provocouataquesviolentospor parte dos analistaspolíticos,a ponto de ~e-
por meioda técnicadasperguntasfechadasquecoletamum númeromenorde opiniõesde quede nunciaremBourdieucomo"nãodemocratà',uma vezquesuascríticasseriamaplicáveistambem
respostaspré-fabricadasa questõesde opinião,sejaatravésde instruçõesdadas aosaplicadores), aosufrágiouniversal...Bourdieurespondeuantecipadamenteaosataquesda~uelesq~ee~e~hama
existeuma desigualdistribuiçãoda "não resposta"em função do tipo de pergunta formulada, de doxósofos,ou seja,sábiosaparentesdas aparências(1972),opondosualeitura soc10logica das
do nívelde instrução do entrevistado,de seu sexo,de sua posiçãosocial,etc. A sondagempor sondagensde opirliãoàquelaoriundada ciênciapolítica.
question~rio,aplicadapor intermédioda imprensa,que convidavaos leitoresque o desejassema
retornaros questionáriospreenchidos,confirmao fatode quesomenteuma fraçãoda populaçãoé Referência
capazdeproduziruma opiniãopessoal.Bourdieulembraquehá tambémoutrotipode opiniãonão BOURDIEU,P. Les doxosophes.Minuit, n. 1, 1972.

OPINIÃO PÚBLICA/SONDAGEM 285


284 OPINIÃO PÚBLICA/SONDAGEM
científico deve explicar completamente as suposições em que ele se apoia. Além disso, a
realidade deve ser compreendida como o produto de relações históricas e não como essên-
cias antropológicas ou psicológicas.
O empirismo não pode afetar uma suposta fidelidade aos dados: estes são sempre anali-
sados no âmbito de uma teoriá. Os enunciados resultantes das observaçõescontêm uma base
teórica. Os fatos não falam, mesmo que as ciênciashumanas se apoiem em informadores que
tomam a palavra. Os ensinamentosde Koyré,de Duhem e de Popper mostram que o empirismo
tem uma visão errônea das ciências naturais: em vez de terem começado pela coleta de fatos,
baseiam-se sempre em conjeturas que dialogam com a realidade empírica. Qualquer trabalho
técnico pressupõe uma reflexãoepistemológicaprévia e uma opção intelectual a propósito das
características do objeto estudado. O apego aos modelos e aos tipos ideais procede dessavisão
construtivista do trabalho científico.Ao se apoiar na epistemologiapós~émpiristada ciência,A
profissão·desociólogoconcluía que a sociologiaé uma ciência como as outras, mas que para
!54. PASSERON, JEAN-CLAUDE (1930)
······································································· sê-lo enfrenta mais problemas do que as outras ciências.As pressões do discurso dominante,
················································
os atrativos do jornalismo, o convite ao profetismo, a oferta de ministérios, a força dos pre-
JoséLuís Moreno Pestana
conceitos que se aninham em qualquer experiência afetiva do mundo convidam o sociólogo
Os prir~órdios da trajetória intelectual de Pierre Bourdieu certamente não poderão ser a extraviar-se de seu caminho. A reflexãoepistemológicanão tem de se preocupar com uma
co~preendi~ossem fazerreferênciaa Jean-ClaudePasseron,coautorde alguns de seustrabalhos suposta natureza específica da sociologia. Quando se abandonam os mitos empiristas em
mais conhe~idodes~e_período (OsherdeiroseA reprodução).Nesteverbete,procedo à análise relação à ciência real, as diferenças entre ciências sociais e naturais perdem sua pertinência.
do texto epistemologico,A profissão de sociólogo,assinado por Bourdieu, Chamboredon e Fundamentalmente, a vigilância epistemológica é um controle das pressões sociais que se
Passeron, tenta~~º mostrar, por um lado, como a epistemologia de Passeron (representada exercem para desviar da verdadeira sociologia. O cruzamento de co11trolesefetuados pela
em sua obra maxima, O raciocínio sociológico,1991)já estava envolvida nas alternativas comunidade científica e a autoanálise permanente do sociólogotêm condições de garanti-la:
que seu tr~balh~ em parceira com Bourdieu abria e, por outro, como eles reproduzem, com Bourdieu manteve-se fiel a esse programa com o assentimento de Passeron. Mas o acordo
as respectivas diferenças, as alternativas teóricas de que são herdeiros. epistemológicocom Bourdieuera precário,a colaboraçãocientíficairá interromper-seem 1972,
A p~ofissão_des_ociólogo constituiu o manifesto epistemológicodo Centro de Sociologia e vai se verificar a bifurcação dos percursos institucionais de cada um deles.Entre 1968e 1977,
Europeia.~ pnmeira edição do livro contém uma apresentação de 113páginas seguida de Passeron trabalhou com Foucault, no âmbito da universidade experimental de Vincennes.
vasta s_eleçaode textos para ilustrá-lo (BARANGER, 2004): entre 1966 e 1968, ao sabor das Após um período no Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS),entre 1977 e 1981,irá
necessidades pedagógicas, Bourdieu e Passeron redigiram o texto teórico de introdução, integrar, em 1982,a Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, como diretor de estudos,
enquanto Jean-C~aud~~hamboredon ocupava-se de encontrar os textos de ilustração. A es- tendo se mudado para Marselha a fim de promover aí as atividades desta escola.Durante esse
colha dos textos e eclet1eae confirma a vontade de se distanciar tanto do modelo de "escola" período, desenvolveuuma reflexão sobre as culturas populares (GRIGNON; PASSERON, 1989)
cie~t!fico-~t~ráriaquanto de seu prolongamentoe de sua transformação em uma série de seitas que enfatizava a amplitude de seu desacordo intelectual e político em relação a Bourdieu.
pohtico-teon~a~q~e, n~s lu;as que os opunham, tentam ampliar o mercado de suas profecias. Parece que Passeron havia sido atraído pela lição weberiana, enquanto Bourdieu tinha
_M~s~s exige~ci~scientificas eram insuficientes para impedir o descaminho da pesquisa seguido a tendência durkheimiana para construir um paradigma na sociologia capaz de
socwlogica.O fetichismo metodológicodissimulava, frequentemente, uma posição filosófica se impor diante de modelos teóricos opostos. Além disso, o tipo ideal, construção sempre
a~surda. P,a~seronevoca suas ~on_versações com o matemático Jean-Paul Benzécri, a propó- precária, tende em Bourdieu para a categoria genérica, enquanto em Passeron, ao contrá-
s~toda analise de correspondenc1ase de sua convicção de que a análise fatorial conseguia rio, observa-se o carácter provisório de qualquer conhecimento de realidades captadas sob
~ituar as forças reais que atuam no mundo. De acordo com Passeron, Benzécri era tomista e, certos aspectos com a exclusão de outros. Em sua obra epistemológicade referência (1901),
a semelhança de um grande número de cientistas, aliava a competência técnica com uma fé traduzida na França em 1965(Essaissur la théorie de la Science),Weber defendia algumas
filo~ófic~que não e:ta~a à,al~ra de seu tempo, nem de suas qualidades de pesquisador. Na teses indigestas para qualquer partidário de um paradigma sociológicounificado.As ciências
socw~ogiaa competenciatecmca sem uma consciênciafilosóficaaprofundada pode engendrar sociais,explicavaWeber,trabalham a partir dos indivíduos históricosou dos conglomerados
perfeitamente uma competência metodológica, mas não científica. de acontecimentos, cuja origem resulta sempre de um encadeamento particular: nenhuma
A l~;ª contra o empirismo e o fetichismo das técnicas é uma chave do livro A profissão teoria pode deduzi-losdo conjunto anterior de fatos,já que as vias da causalidadehistórica são
de soczologo.Para romper com o senso comum (a ciência descobre o oculto), o vocabulário imprevisíveis. As variáveis econômicas, lembrava Weber aos marxistal½atuam sempre em

286 PASSERON, JEAN-CLAUDE (1930) PASSERON, JEAN-CLAUDE (!930) 287


-~-·)

~onjunçõeshistóricas e adquirem aí um sentido que é desconhecido de antemão. Nenhum tese segundo a qual o desenvolvimentoda ciênciapode ser descrito a partir da transição dos
mstrumento analítico tem condições de fornecer uma visão exaustiva dessas realidade conceitossubstancialistas,típicosdo Mitoe, também,da filosofiaaristotélica,para os conceitos
históricas. Qualquer categoria enfatiza uma faceta da realidade e oculta as outras: ora, a: operativosou relacionaiscaracterísticosda ciênciamoderna.Osconceitossubstancialistas,diz
facetasde qualquerfe~ôme~osão inumeráveis.Dessemodo, é apenasmediante o autoengano Cassirer(1994,p. 339),são complicadose respondempelo "estadoconvoluto"dos primórdios
que so~os capazesde llllagmar que nossas categoriassão um reflexofidedignoda realidade. da experiênciahumana. A ciênciamoderna só foi capaz de constituir-se como tal a partir do
~XIste_ e continuaráexistindo,na opiniãode Passeron,uma tarefa epistemológicaque não Renascimento,quando introduziu um novo esquema de verdade:a simplicidadedecorrente
se deixa_d1ssolv~r ~asp~ecauçõe~,da ~ociologiado conhecimento:a de explicara razãopelaqual da abstração.A ciência,então, criou "uma novaforma de interpretaçãointelectual"do mundo
a pluralidadeteonca rema nas c1enc1as sociais,motivopelo qual as avaliaçõescientíficasnessa e isso não pode ser obtido a partir do "alargamento e enriquecimentode nossa experiência
~r~asó_~o~emser unificadasmediante a violênciaadministrativa.Em suma, a razão pela qual ordinária" (CASSIRER, 1994,p. 340). Essa nova forma de interpretar o mundo, conquistadaa
e tao difícilcomparar teorias diferentes.O problemadas ciênciassociaisnão tem a ver com partir de uma ruptura com a percepçãocomum, é o pensamento relacional.Como observa
0
fatode que os acontecimentosanalisadospor elasnão sejamcompletamenterepetíveis:a mesma Cassirer,a ciência avançou quando renunciou à busca por essênciase conquistou um novo
situação se verificacom as ciênciasnaturais. Mas, para comparar tais contextos,as ciências princípio de inteligibilidade,a saber, as relaçõesfuncionais entre as coisas.
sociaisnão dispõemde um paradigma transcontextuale trans-históricocapaz,sejade dizer 0 Na sociologia, o pensamento relacional, por vezes chamado funcional ou estrutural,
que deveser pesquisadoe de quemaneira,sejade enunciar os pontos de vista a partir dos quais considera que os fatos sociais não são explicáveisem si mesmos e por si mesmos, como se
eles devem ser comparados (PASSERON, 1994).Dessa consciência,oriunda de uma das redes fossem substâncias trans-históricas, mas são trazidos à luz por meio da apreensão das rela-
mais intensas de criatividadesociológicado séculoXX,surgiu um grandelivro de filosofiadas ções objetivas,o mais das vezes invisíveis,inscritas nas práticas e nas obras. Tais relações,
ciênciassociais,O raciocíniosociológico,uma obra escrita com Bourdieue contra Bourdieu. inacessíveisao senso comum,precisamser construídas,conquistadase validadaspela ciência
para se tornarem compreensíveis.É na estrutura das relaçõesobjetivas,portanto, que reside
Referências
o princípio de inteligibilidadecausal dos fatos sociais.
BARANGER, D. DeEl oficiode sociólogoa El razonamiento sociológico.Denis Baranger entrevista Além disso, o modq de pensar relacionaltrabalha por homologia,ou seja, pela compa-
Jean-ClaudePasseron. Revista Mexicana de Sociología,n. 2, abr./jun. 2004. ração e identificaçãodas semelhanças entre estruturas de espaços sociais diferentes e até,
GRIGNON,C.;PASSERON, J.-C.Le savant et lepopulaire:misérabilismeetpopulisme en sociologie aparentemente, muito distantes. Esta relação de relações "deve ser conquistada contra as
et en littérature. Paris: Gallirnard-Seuil,1989.
aparênciase construída por um verdadeirotrabalho de abstração e por meio da comparação
PASSERON, J.-C. De la pluralité théorique en sociologie:théorie de la connaissance sociologiqueet conscientementeoperada" (MSp,69). Consequentemente,é a comparação,preconizada por
théories sociologiques.Revue Européenne des SciencesSociales,v. 32, n. 99, p. 71-116,1994. Durkheim (1983) como método da prova na sociologia,que dá caução aos procedimentos
PASSERON, J.-C.Le raisonnementsociologique.Paris:Nathan, 1991[2.ed. Paris:AlbinMichel,2006]. técnicos e aos programas de investigaçãobaseados no pensamento relacional.
WEBER,M. Essaissur la théoriede la Science.Paris: LibrairiePlon, 1965. Bourdieuadota,desdemuitocedo,essalinhagemteórica,identificadatambémcomos traba-
lhosde ErwinPanofsky,de KurtLewin,dosformalistasrussos,de NorbertEliase,igualmente,de
1 ss.PATRONATO FerdinandSaussuree dosestruturalistas(OPS,65).Estaatitudemental,conformerevelao próprio
.......................................................................................................................
Bourdieu,estevena origemda criaçãoe empregosistemáticodo conceitode campode produção
Ver:Elites; Campo do poder material e simbólicacomo espaçoestruturado de relaçõesobjetivas.Bourdieucomeçacom a
análisedo processode autonomizaçãodo campointelectual,passa,em seguida,por homologia,
156. PEDAGOGIA RACIONAL ao estudo da gênesee estrutura do campo religioso(ETS),no qual, em oposiçãoà abordagem
······················································································································· interacionalistade MaxWeber,constróio camporeligiosocomoestrutura.de relaçõesobjetivas
Ver:Sistema de ensino capazde explicaras interaçõesqueWeberexplicavaa partir de tiposideais,e terminapor estender
essaatitudementale esseconceitoa diversosuniversosda produçãosimbólica,a saber,altacostura
1s1. PENSAMENTO
RELACIONAL (PC),literatura(RAp),filosofia(OPp),política(PCP),ciência(PBS),entreoutros,culminandocom
······················································································································· a construçãodo campomateriale simbólicodo mercadoimobiliário(SSE).Seao autorfoipossível
GilsonRicardode MedeirosPereira passar do campointelectualao mercadoimobiliário,foiporquea perspectivarelacionalpennite,
comoobservaBourdieu(OPS,67),"astransferênciasmetódicasde modelosbaseadosna hipótese
O modo de pensar relacional,ou pensamento relacional,defineuma atitude mental em de que existemhomologiasestruturaise funcionaisentretodosos campos".
ciência,marcada pela importância que concede às relações.A mais antiga referênciaa 'este Ao construir, a partir do modo de pensar relacional,os diferentes espaços de produção
modo de pensar é a de Ernst Cassirer,que em Substância eJunção, obra de 1910,defendea anteriormente mencionados, Bourdieu também construiu outro conceito, solidário ao de
288 PATRONATO
PENSAMENTO RELACIONAL 289
cam~o e a ele indissociável,qual seja, o conceitode habitus. Aproximando-seda gramática
gerativade Noam Chomsky,Bourdieufoi conduzidoa evidenciaras capacidadescriativasdos A versão norte-americana do livro de Bourdieuconstitui-seem edição ampliada da ori-
~gen:essociais,porém interpretando-as não como manifestaçõesde uma natureza humana ginal, Images d'Algérie (2003),contendo prefácio de Craig Calhoun, introdução de Franz
Imuta~el,ID_ª~como dis~osiçõesincorporadasde agentespráticos.Ao tomar para si o primado Schultheis (também incluindo entrevista realizada com o sociólogo em junho de 2001),
da razaopratica,produz_m tant~ uma teoria constructo-relacionalda prática (SP),aperfeiçoada comentário sobre as fotos de a~toria de Christine Frisinghellie relaçãodos 35 textos (livros,
ao longode t~~ª-a sua vida, assim comouma epistemologiacorrespondente(MPp). Uma das artigos acadêmicos,prefáciose intervençõesjornalísticas) que ele escreveusobre a Argélia.
grande_saqmsiçoesresult~nte da mobilizaçãopor Bourdieu dessa teoria é a explicitaçãodos Bourdieu chegou à Argélia em outubro de 1955,com 25 anos, para completar o serviço
mecamsmos ~e reproduçao das estruturas sociais e mentais em sociedades diferenciadas, militar. O envioao país africano foi,na realidade,uma puniçãopela sua oposiçãoà repressão
tal como realizada no estudo sobre o campo das "Grandes Écoles" (NE). que a França desencadeou contra sua então colônia, que lutava pela independência, numa
? ~odo de_pensar relacional conduziu Bourdieu, além disso, a descreveruma das mais sangrenta guerra revolucionária (1954-1962).Até meses antes de ser mobilizado ele se en-
notavei~~ropnedades ~os universos sociais, isto é, a relação de homologiaentre a estrutura contravalotado em Versalhes.Em 1956e 1957leu tudo o que pôde encontrar sobre a Argélia,
d~s.posiçoes,que constitui o espaçosocial,e a estrutura das atividadese bens, 0 espaçosim- terminou suas obrigaçõesmilitares, voltouà França, publicouSociologie de l'Algérie (1958)
b,oh~o.Nesseestu~o(~Dp),dotado de um enormeprotocoloempírico,além das mais variadas e voluntariamente retornou como professoruniversitário em Argel.
tecmcas de orgamzaçaode dados, uma preferênciasocial qualquer, a exemploda prática de A obra apresenta mais de 160fotostiradas por Bourdieuna Argéliaentre o fim dos anos
u~ esporte, da escolhade uma bebida ou do gostopela leitura, que parece intrínseca a deter- 1950e o início dos 1960,em plena agitaçãobélica e em momentoparticular de sua trajetória
m_madascla~~es_sociais, é apreendida como uma opção num universo de opçõesdisponíveis intelectual:sem se dar contaplenamente,estavase convertendoem cientistasocial,distancian-
e mterca~biaveis que c~nfiguram uma dada situação da oferta de bens e práticas possíveis do-sea passos largos de sua formaçãofilosóficarefinada.Na excelenteintrodução,Schultheis
nu~~ sociedadedeter_mmadae numa época determinada. Essa opção é feita a partir de uma fala que as fotografias - quase duas mil, muitas perdidas, outras sem negativos - ficaram
pos~çaono espaçoSOCial. T:~-se, portanto, um conjunto de posiçõessociaishomólogoa um guardadas em caixas empoeiradas durante 40 anos. Apenas algumas foram utilizadas por
co1:1unto d~tomadasde posiçao.A comparaçãosó é possívelentre sistemascujoscomponentes Bourdieu em seus livros - casos de Travai! et travailleurs en Algérie (com Alain Darbel
e_sta~ relacwnalmentedefinidos e, por sua vez, essas definiçõesrelacionaisconstituem dis- et al., 1963);Le déracinement: la crise de l'agriculture traditionnelle en Algérie (com
tmçoes e se~ar~çõesentre os componentes(indivíduos,instituições, gostos,classessociais, AbdelmalekSayad, 1964);Algérie 60: structures économiques et structures temporelles
etc.).A med~açaoentre ~ espaçosocial e o espaçosimbólicoé feita pelo habitus dos agentes, (1977)- e em artigos. As demais eram inéditas até a publicaçãode Images d'Algérie e das
que p~oporc10nama umdade entre as práticas e os bens - o estilo de vida dos indivíduos e exibiçõesque ocorreram no Institut du MondeArabe, em Paris (janeiro e novembrode 2003).
tambem, ~as class:s sociais.A habilidade de ver a diferençainscrita na própria estrutura d~ As fotografiasde Bourdieuforam tiradas, não raro, em várias situaçõesdramáticas, como
~spaçosocial,func10nandode modo dissimuladoe quase irreconhecívelcomo estilo de vida na região de Collo.Fotografaras pessoas era, entendia o pesquisador,uma maneira de dizer
ilustra a fertilidade heurística do modo de pensar relacional. ' a elas: "eu estou interessado em você, estou do seu lado. Irei ouvi-lo e testemunharei o que
você está vivenciando"(IA, 13).Taisfotos nos ajudam a entender melhor,para o caso argeli-
Referências no, as dimensões e consequênciasda situação econômicae da agitaçãosocial que afetavam
CASSIRER,E. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: crescentementesetoresinteiros da população do país, que se deparava com uma nova lógica,
Martins Fontes, 1994. com demandas totalmente flexíveis,que rompiam com a história e com os laços tradicionais
DURKHEIM,E. As regrasdo métodosociológico(1895).2. ed. São Paulo:Abril, 1983. que até então experimentavam (IA,4-5).Bourdieu explorae documenta a interdependência
entre as estruturas econômicase as estruturas temporais,interessando-sepela fenomenologia
158. PEQUENA BURGUESIA das estruturas emocionais,manifestas na análise das formas de sofrimento que resulta do
·············································································
·········································· conflitoentre as disposiçõesmentais e emocionais(ohabitus dos atoressociais)e as estruturas
Ver:Classesocial econômicase sociais da sociedadecolonial(IA, 3).
Olhando as fotosque documentam as abjetas condiçõese o sofrimentodo povo argelino,
bem como sua dignidade, graça e determinação, e lendo os excertosfundamentais da obra
159. P/CTURING ALGER/A
······································································ de Bourdieu que acompanham tais imagens, é possívelestabelecerum paralelo entre o fa-
·········································-······· zendeiro "desenraizado" da Cabila e o empregado desregulado e destruído dos dias atuais
Afrânio Mendes Catani
nas sociedades capitalistas. Basta comparar os testemunhos apresentados na obra coletiva
BOURDIEU;P. Picturing Algeria. Editado por Franz Schultheis e Christine Frisinghelli.NewYork: que ele organizou,A miséria do mundo, com aquelestranscritos nos livros sobre a Argélia,
ColumbiaUniversityPress, 2012. quarenta anos antes. É por esta razão que Bourdieu falou, sobre suas pesquisas argelinas, o
seguinte: "este é meu trabalho mais antigo e ao mesmo tempo o mais atual".
290 PEQUENA BURGUESIA

PICTUR/NG ALGERIA 291


?~-~:-~_l_~~RE
BOURDIEU. SOCIOLOGIA apreciar e agir no mundo social. Para ser eficaz,o poder precisa adquirir a forma de desco-
···················································
········································· ············· nhecimento e de reconhecimento, de enraizamento no corpo de estruturas de dominação,
Sylvia GemignaniGarcia
social e historicamente forjadas, atuantes para gerarem uma ordem social. Tal ordem se
BOURDIEU,P. Sociologia.Organizadopor Renato Ortiz. São Paulo: Ática, 1983. inscreve nas relações de força, sendo tomada como ordem "natural" das coisas. Assim, "é
necessáriosaber descobri-loónde ele se deixaver menos, onde ele é mais reconhecido[...]. O
Uma concisa e precisa coletâneaem língua portuguesa que, em cinco textos sintetiza poder simbólicoé, com efeito,essepoder invisívelo qual só pode ser exercidocom a cumpli-
criaç~~sociológicade Bourdieuao longoda década de 1970,programaticamente,expostan: cidadedaquelesque não querem saber que lhe estão sujeitosou mesmo que o exercem"(OPS,
relatono de 1980, q~e abre o conjunto,e aprofundada no texto seguinte, de 1972,que expõe 7-8), demandando sua inserção no ajustamento entre as estruturas objetivase as estruturas
a_sb:ses de sua teona das práticas sociais.A análise da produção social das distâncias e dis- incorporadas, tal qual força social exercidana aparênciatácita de sempre ter existido.
tmçoes de classenos padrões de gosto estético e estilos de vida e a constituiçãohistórica de Nessadireção,Bourdieuindagade quemaneirasetornapossívelqueos dominadosobedeçam
um campo relativamente autônomo de produção científica,ambos de 1976,figuram como e que uma ordem socialsejamantida. Se as relaçõesfossemsomentede forçafísica,militar ou
est~d~s~xemplares~a a~l~caçãoda abordagemsacrílega,que toma por objetoda explicação econômica,seria"provávelquefosseminfinitamentemaisfrágeise facíliniasde inverter".Todavia,
soc1olog1:aos bens s1mbohcosde valor i:µaispuro nos domínios da criaçãoe do intelecto.Por aoinscreveras relaçõesdeforçacomoconstituintesde relaçõesde sentidoe de comunicação,sendo
~m, o art1~0de_1977esboçaa construção do mercadodas trocas discursivas,no contraponto que"odominadotambémé alguémqueconhecee reconhece", tornao atodesesubmetere obedecer
a autonom1zaçaod_acompetêncialinguística realizada pelo estruturalismo objetivista. dependentede uma ação cognitiva.Tal ato cognitivoé realizadopelo empregode categoriasde
, Ostextossumanzamosresultadosdasprincipaispesquisasrealizadasatéentão,envolvendoas percepção,princípiosde visãoe divisãodo mundo produzidassocialmentee queconstituemum
areasda etnologia,da linguística,da teoriasociológica,dos estudosde estratificação,da sociologia objetode lutassociaisacirradaspara a imposiçãodessesprincípiosclassificatórios(SEp,224-226).
da cultura, d~ a~te,~a educaçãoe da ciência,que a perspectivasociológicado autor resgatada Taislutas são sobretudoconflitosentregrupospela detençãodos princípiosde classificaçãoe, ao
extremaespeaalizaçao.Ocampoe o habitussãoosinstrumentosrelacionaisde um conhecimento final,da legitimidadesimbólicapara instituir comoo mundodeveser (DUBOIS et al.,2005,p. 27).
praxiológicoque_buscaexplicara dialéticaentre relaçõesestruturadas e disposiçõespráticase O simbólico transfigura o uso de vários tipos de capital (econômico,social, cultural),
revelaros mecarusmosde classeda inculcaçãodo arbitrário - mecanismosinstitucionalizados constituídos como poderes que se exercemem espaçossocialmented~finidose por pessoas
pelodes:nvolvimentode um modode dominaçãocujaforça(violência)simbólicapermitedefinir posicionadas distintamente, poderes que atraem e que repelem outros sujeitos,que atuam
o belo,oJustoe o verdadeirouniversais,ocultandoseuprópriocondicionamento históricoe social. mais fortemente em uns agentes do que em outros, mas que atingem a todos envolvidosna
Explorando em especial o diálogo entre a sociologiade Bourdieu e a filosofiade Sartre produção de sentido do próprio mundo social. Como forma transmutada de outras formas
a ~~troduçãode Renato Ortiz formula, na vertente aberta pelas ideias de Gramsci,a questã~ de poder, o poder simbólicotende a encobrir a violênciaignorada - reconhecidacomo ne-
b~sicaacerca da transformação social, caracteristicamentesuscitada pela ênfase bourdieu- cessária para garantir uma relação de força.Ele continua sendo poder e, como tal, age, atua
siana nos mecanismos de reprodução da dominação e das classesdominantes. nos corpos e submete os atos cognitivos.Portanto, não pode ser visto comoalgoque opera no
plano individual, nas subjetividades,mas influente na corporificaçãoda estrutura objetiva
161. PODERSIMBÓLICO em estado prático, na mediação do habitus com a estrutura de relaçõesque o legitima como
······················································································································· poder simbólico,permitindo que funcione no sistema de reprodução da dominação.
Ana Paula Hey Opodersimbólicose diferenciae sedispersa,deixandode seencarnarem pessoasou institui-
çõesespecializadas,se exercendo,"de maneirainvisívele anônima,atravésde açõese reações,à
Opoder simbólicose inscrevena perspectivade análise da dimensão simbólicacomo es- primeiravistaanárquicas,masde fatoestruturalmentecoagidas,de agentese instituiçõesinseridos
trut~ran~ed~ ord,e~social,relacionando-sediretamente com as noçõesde capital,violênciae em camposconcorrentese complementares[...] e envolvidosem circuitoslegitimadoresde trocas
domrnaçaoS!illbohcos.Para Bourdieu,esseconstructoconstitui uma teoria do conhecimento cada vez mais distendidose complexos,por conseguintemais eficazessimbolicamente,dando
d~ ~undo ~ocial_ comoparte da teoria política,uma vez que o ajustamentoa uma ordem sim- cadavezmaislugar,ao menospotencialmente,aosconflitosdepodere de autoridade"(MPp,124).
bohca se da pe~alillp_osiç~o
de estruturas estruturantes que se ajustam às estruturas objetivas Comonúcleo de sua teoria sociológica,o poder simbóliconão é objeto de uma definição
do mundo social.A Implicaçãono político refere-seao poder simbólicoenquanto "poder de genérica,havendoa referênciaà especificidadede um tipo de poder que se constitui e atua em
con_st~~çãoda realidade que tende a estabeleceruma ordem, um sentido imediato do mundo
sociedadeshistoricamentesingularese produtoras de categoriasque informam os princípios
social (OPS,9), mas também de como ele atua em um sistema de dominação contribuindo de diferenciaçãosocialpertinentes, sendo,pois, sociedadescapitalistas,muito diversificadas,
para ord\!naras estruturas cognitivasde entendimento desta ordem. centradas em um sistema de classes,com complexadivisão do trabalho e com distribuição
O_si~bólicopode ser visto comoaquiloque nãoprecisaser ou não está explícito,porém que desigual do capital econômicoe cultural que engendram mecanismos contemporâneosde
constitmuma estrutura operantena formaçãodas disposiçõesdos indivíduos para perceber, reprodução social. O caráter sociopolítico do termo remete ao trabalho constantemente

292 PIERRE BOURDIEU. SOCIOLOGIA


PODER SIMBÓLICO 293
engendrado no mundo social de naturalização das divisões sociais a ponto de torná-las Várias manifestações desse poder "quase mágico" podem ser apreendidas na obra de
evidentes e, ao mesmo tempo, de desconhecersuas reais determinações, mas que também Bourdieu, o que permite afirmar que tal noção contribui de forma singular para a análise
assume formas diferentes associadasaos distintos campos sociais. das relaçõessociais como determinadas por uma força de alguma forma dissimulada e con-
_. O desenvolvimentoda análise do papel do Estadona construção dos princípios de produ- sentida, porém tão eficienteque passa a ser negada pelos dispositivosideológicose políticos
ç_aod~ ~struturas cognitivasque permitem concebê-loe pensá-lo permite explicitaro poder aparentes (DUBOIS et al., 2005,p. 28).
simbohcocomopertencenteao corpo socialem sua totalidade. O Estado existeenquantoins-
titui_ç~ocapaz~e impor de modo "universal,na escalade certa instância territorial,princípios Referência
de visao e de divisão,formas simbólicas,princípiosde classificação",sendo o poder simbólico DUBOIS,J.; DURAND,P.; WINKIN, Y. Introduction. ln: DUBOIS,J.; DURAND,P.; WINKIN, Y.
pautado na capacidadede "produzir um mundo social ordenado sem necessariamentedar (Orgs.).Le symbolique et le social: la réception internationale de la pensée de Pierre Bourdieu.
ordens, sem exercer coerção permanente". Para o autor, a forma primária de acumulação Liege:EULg,2005.p. 13-28.
do capital estatal se realiza no plano simbólico:há pessoas que se fazem obedecer,respeitar,
porque são letradas, religiosas,sagradas, por uma profusão de coisascom as quais a análise 162. PODERSIMBÓLICO,
O
materialista não sabe o que fazer (SEp,228-229).A dimensão simbólicado efeitode Estado
~ e~tendida na lógica de funcionamento do universo de agentes do Estado (legisladores, Ana Paula Hey
JUnstas)que fizeram o discurso de Estado imbuídos de interessesgerais que tinham uns em BOURDIEU,Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil;Lisboa:Difel, 1989.
relaçãoaos outros, mas também pelos interessesespecíficosdados por sua posiçãono espaço
de suas lutas - "por exemplo,a nobreza de toga em relação à nobreza de espada" (SEp,239). O livro reúne dez artigos de Bourdieupublicadosem periódicosfranceses e norte-ame-
Engendrandorelaçõesde força e de sentido e exercendoo poder consentido,o Estado é visto ricanos no período de 1977a 1987.O interessedo volumeé apresentar uma recolha de textos
como principal produtor de instrumentos de construção da realidade social, percebidosna que dialogamem torno do poder justamente na forma em qtJ.eeleé menosreconhecido,como
forma de "isso-é-óbviocoletivo"na escala de um país (SEp,231). poder invisível,simbólico,que "só pode ser exercidocom a cumplicidadedaquelesque não
O domínio da linguagem constitui uma espécieaguda de verificaçãodo poder simbólico querem saber que lhe estão sujeitosou mesmo que o exercem"(OPS,8).
agindo no corpo social pelo reconhecimento e desconhecimento,na medida em que o uso A obra é divididaem dois momentos,que procuram construir o entendimentodo título. O
da linguagemé para todos, embora a forma "correta"pertença a frações sociaisdominantes inicialapresentacapítulosdensos,voltadosàs noçõesquepermeiam a difíciltarefa de decifrar
e funcione enquanto moeda de distinção tanto no circuito destes grupos dominantes (a em que medida o poder simbólicoatua nos espaçossociaiscomouma forma transfiguradade
ausência de sotaques, o uso adequado do tom e dos maneirismos linguísticos, a facilidade outros poderes ou propriedadesque se constituempor meio do jogo social.Assim,o primeiro
consideradanatural do bom falante)quanto no afastamento das classesdetentoras de outras artigo é emblemáticode um dos chavõesmais associadosao autor, "estruturas estruturantes"
formas de linguagem consideradasmenos eruditas (sotaquesmarcados, uso de gírias, erros e "estruturas estruturadas",referindo-seaos sistemassimbólicoscomo produtorese produto
linguísticos,uso coloquialde termos).O rechaço à pronúncia nordestina em SãoPaulo não é da realidade.Em seguida,ofereceuma aula metodológicaensinandoa pensar o mundo social
simplesmentepela origemgeográfica,mas pela hierarquia socialinstituída que posicionaseu e a construir o objetosociológico,utilizando ferramentasque colocamo próprio pesquisador
detentor comomenos dotado de recursos sociais,culturais e econômicosdominantes, sendo em exame.Osulterioresabordarãoa discussãode conceitose noçõesque compõemo entendi-
que o poder simbólicoage classificandoe rotulando de forma não conscientede onde se está mento de campo social.Parte da gênesede habítus e de campo passa pela ideia de região(em
falando e a partir de quais propriedades sociaisválidas no mercado dos bens simbólicos. que aborda como a posiçãoocupadano espaçodo jogo,central ou local,pesa sobre a visão do
O poder simbólicoassociadoa um campo socialpode ser verificadoem relaçãoao sistema jogoem si) e pela discussãoda história reificadae incorporada,trazendo à tona a relaçãoentre .
e~cola~e ao papel desempenhadode distribuição desigual do capital cultural, em que a apro- a história objetivadanas coisas e a encarnada nos corpos, em que o habítus funciona como
ximaçao do aluno com a cultura oficialescolar age na qualidade de poder "quasemágico"de formade entendera maneira pela qual a sociedadese introjetano indivíduo.Culminaversando
sucesso,devido à adequaçãoda estrutura escolar com as estruturas cognitivasdesejadasde sobreespaçosociale gênesedas classes,por meio da abordagemda multidimensionalidadede
grupossociaisdominantes.Podeser visto também em relaçãoao campocientíficoe ao estabe- posiçõesconstitutivasdo mundo social,em que os agentesse distribuemhierarquicamenteem
lecimentodos objetoslegítimosa serem pesquisadosem um dado momento de sua estrutura função do volumeglobale da composiçãodo capitalatuante nos distintos campos.
que, resultandode lutas de determinado campo disciplinar,funcionacomopoder de instituir No segundomomentoencontram-setextosoperacionais,deixandoextravasarsua sociologia
um_aagend~~ ser perseguida, sendo que quem possui os tipos de capital ali atuantes goza de da construçãodos campossociaise das noçõesque a acompanham,tratando respectivamente
maior P;restig10 na escolha e imposiçãodestes objetos.Todavia,essa agenda é seguidamente da política,do direitoe da arte. Capítulosque,bem lidos,oferecemoportunidadede apreender
desenvolvidapor todos que queiram gozar de ou se aproximar do tipo de prestígio que se em que medida "a teoria científicaapresenta-secomo um programa de percepçãoe de ação
configura como poder simbóliconeste espaço de práticas e relações. só reveladono trabalho empírico em que se realiza" (OPS,59).

294 PODER SIMBÓLICO


PODER SIMBÓLICO, O 295
163. POLÍTICA
métodoestrutural, devidoà significaçãoambíguade alguns elementosque pode variar segun-
···············································································································
do os princípios de oposiçãoaos quais elesse referem e que faz com que não haja homologia
Ver:Campo político estrutural perfeita entre esses diferentes princípios, como foi constatado por Bourdieu em
relaçãoà prática ritual na Cabilia (cf. o capítulo de O sensoprático, dedicado ao "demônio
164. POSIÇÃO DE CLASSE da analogia").Essalógicavagapõe em relaçãoelementossegundoo princípioda "semelhança
·······················································································································
global",de acordocom a expressãode JeanNicod,quelevaem contaapenascertosaspectosem
Ver:Classesocial detrimentodos outros (osquais nem por isso desaparecem).Elase caracterizapelapolissemia
e pela "politetia",que Bourdieu opõe à definiçãohusserliana da apreensão "monotética".
165. PRÁTICA (Teoriada) O "sensoprático",sensode orientaçãoe sensodojogo,simultaneamente,é o quepermiteaos
························································································································ agentesse adaptarema um númeroinfinitode situaçõessemseguirexplicitamenteuma norma,
GiseleSapiro uma regra ou um códigotransmitido (postura que a abordagemestruturalista mecanicistaé
incapazde explicar),mas sem que por isso elesobedeçamao livre decretode seu pensamento,
Bourdieu começa a elaborar sua teoria da prática na década de 1960,após retornar da comopretendemas teorias subjetivistasou racionalistas.O que torna possívelesseajuste?
Argélia.O primeiro desenvolvimentocompletodessa teoria encontra-seem Esquisse d'une Doisconceitos-chaveda teoria da práticade Bourdieupermitemrespondera essapergunta:
théoriede lapratique (1972),seguidode uma reformulaçãosistemáticaem Le senspratique o de habitus e o de estratégia. O habitus é o princípio gerador dos esquemasde percepção,
(1980).Surgidado confrontocom a antropologiaestrutural de Lévi-Strauss,essateorianutriu- de avaliaçãoe de ação.Resultadode um processode interiorizaçãodas estruturas sociaissob
se das leituras de Merleau-Ponty,Husserl,Heideggere Wittgenstein,mas está enraizada,antes a forma de disposiçõesno decorrer da socializaçãoprimária e secundária, ele está na origem
de mais nada, nas pesquisas etnológicaspor ele empreendidasna Cabiliaentre 1958e 1961. da capacidadedos agentes de desenvolverestratégias,mais ou menos ajustadas às situações
A reflexãosobrea práticaancora-seem uma duplacrítica:do subjetivismoe do objetivismo. vividas,enquanto a noção de estratégia remete à margem de improvisaçãodos agentes em
Por um lado, as abordagenssubjetivistas,desde a teoria de Sartre até a teoria do ator racional, funçãode suas disposições.Mas a adequaçãoperfeitaentre as situaçõesvividase as estratégias
pressupõemque a ação é o produto da vontadede um sujeitoconscientee capaz de se projetar nãopassa, no entanto, de um casoparticular do possível.Comefeito,em seus estudossobre a
no futuro, antecipandoas consequênciasde suas ações.Ora, Bourdieucontestatanto a ideiada sociedadecabilae sobrea sociedadecamponesade sua terra natal, o Béarn,Bourdieuobservou
liberdadetotalde escolhaquantoda livreprojeçãono futuro.Aoapoiar-sena noçãode "protensão" a dificuldadeexperimentada pelos indivíduos de se ajustarem a novas situaçõesem período
desenvolvida por Husserl,estabeleceuma distinçãoentrea previsãoracionaldelongoprazovoltada de transformação social, quando as estruturas sociaisjá não correspondemàquelasque eles
a um "futuro"construídoem torno de um projeto(porexemplo,a escolarizaçãodosfilhos),carac- haviam interiorizado no passado, e quando o sistema de valoresjá não é mais o mesmo.
terísticadas sociedadescapitalistas,e a previdênciacomo"aspiraçãopráticade um porvirinscrito A inérciadopassadofaz-sesentir atravésdoshábitosfeitoscorpo.Otermo"habitus"aparece
no presente,logoapreendidocomojá estandoaqui e dotadoda modalidadedóxícado presente", pelaprimeira vez na obra de Bourdieuem referênciaa Mausse à sua análise das "técnicasdo
prevalecentenas sociedadestradicionaisorganizadasem torno de um calendáriocíclico(CD,22). corpo".SegundoMauss, o termo "habitus" - tomado de empréstimoà tradição aristotélico-
Por outro lado, o objetivismo estruturalista transforma os agentes em suportes quase tomistae empregadode maneira ocasionalpor Hegel,Husserl,Webere Durkheim,traduz "me-
mecânicos das estruturas. O uso polissêmicoda noção de regra na antropologiaestrutural, lhor do que 'hábito',o 'exís',o 'adquirido'e a 'faculdade'de Aristóteles"(MAuss,1950,p. 368):
entre o sentido de norma que os agentesseguiriam conscientementee o sentido de princípio eleremeteaos "hábitos"coletivos,quevariam de uma sociedadepara outra. Diferentementede
reconstruído pelopesquisadorpara dar conta da regularidade das práticas, alertou Bourdieu Tarde,que na comunidadedas práticasvê o resultadoda imitação,Mausspreconizaque,através
para as lacunas e os vieses dessa abordagem, criticando-a por seu intelectualismo (o que, da educação- e, sobretudo,pelo adestramentodos corpos- é que são interiorizadas,incorpo-
mais tarde, ele irá definir como o "viésescolástico").Aliás, a inscriçãonos tempos de trocas, radas, não apenas as representaçõessociais,mas também as regras de conduta e as práticas.
como o dom e o contradom ou o desafio e a réplica, torna insuficientequalquer explicação O corpo socializado"pensa",é um corpo "habituado",explicaBourdieuem Esquisse d'une
mecanicista das lógicasque presidem essas interações. théoriede la pratique;"as estruturas temporais [...] introduzemo habitus na lógicado prazo
A teoria da prática refuta tanto a concepçãoracionalistada ação quanto a ideia de agentes e do desvio,logo,do cálculo"([1972],2002,p. 297);o corpo é temporalmenteestruturado pelo
movidospelas estruturas de maneira inconsciente.Ela enfatiza a especificidadedas lógicas trabalhopedagógicoque consisteem lhe ensinar principalmentea adiar os prazeres,a domes-
da prática, que se desdobram na situação concreta e na urgência, diferentementedo tempo e ticar as pulsões(transformara fomeem apetite,etc.).Mas o corpoé também o lugar da prática,
da reflexívidadeque caracterizama atividadede produção do conhecimento.A razão erudita da invençãoe da improvisaçãodas condutasmais ou menos ajustadasàs situações.Faculdade
fracassaem dar contada práticaporque,de acordocom a frase de Marx,elaconsideraas coisas de improvisaçãoque, no entanto, permanecelimitada pelas condiçõesde sua socializaçãona
da lógicacomo se fossema lógica das coisas. Ora, a lógica da prática difere radicalmente da medidaem que os hábitosincorporadosoferecemfrequentementeresistência(expressãode sua
lógica:trata-se de uma lógicavaga que escapa às tentativas de sistematizaçãoavançada do inércia)às tentativasmais conscientesde controledos indivíduossobre seu corpo.Na medida
296 POLITICA
PRÁTICA (Teoria da) 297
}

em que leva em conta essa faculdade de improvisação que não necessita ser recuperada pela uma das.vertentes críticas que derrubaram o predomínio da sociologia funcionalista norte-a-
consciência tética para operar eficazmente, o conceito de habitus traça os limites da liberdade mericana, a partir da década de 1960,tornando-se desde então referência para o entendimento
de ação e de controle simbólico da prática. da prática sociológica. . .
O conceito de habitus permite também passar da prática para as práticas e para seus Contra O empirismo e O convencionalismo- contra a dissociaçãoentre teona e pesqwsa, sua
prine:ípios de diferenciação. Nas sociedades de classe, os grupos de indivíduos diferem por representaçãocomo etapas sucessivaspredeterminadas e a limitação da epistemologiaclássicaà
suas práticas: hábitos alimentares, práticas de consumo, práticas culturais, eleitorais, etc. lógicada prova-, os autores querem transmitir "um sistema de hábitos intelectuais" q~e ~da-
Essas práticas estão fortemente ligadas entre si e constituem a manifestação do habitus de menta a ciênciasociológica,operando como princípios racionais de todo o processo de rnvestiga-
classe, como Bourdieu mostra em La distinction (1979). ção,ampliando, desse modo, a razão até a lógica da invenção. A ~oncepç~~supõe ~a ~dade
Enquanto sentido do jogo, o "senso prático" é também o que está em ação no encontro entre epistemológicaentre as ciências,que permite transferir o saber ep1stemologicoda~c1enc~as ,n~tu-
um habitus e um campo (cf. Le sens pratique). Com efeito, longe de se limitar unicamente rais para as ciênciashumanas, e a convergênciaepistemológicadas grandes te~nas so~1olog1cas
às práticas ritualizadas, a lógica da prática prevalece também nas atividades intelectuais e clássicas,em torno de uma teoriado conhecimentosociológico. Nessaperspectiva,mwtos textos
de criação. A aprendizagem prática desempenha um papel importante na preparação para epistemológicose teóricos, de filósofose de cientistas de diferentes áreas, compõe~ o :ºl~~ e
os ofícios artísticos (arte, música, dança), paralelamente à formação teórica que, aliás, nem devemser lidos junto com a exposiçãoprincipal, segirndo suas indicações,para a rntenonzaçao
sempre fornece os meios do controle simbólico da prática. Eis a razão pela qual o "projeto dessemodo de ver a lógica da produção de conhecimento racional do social.
criador", expressão extrema das teorias intencionalistas, é insuficiente para dar conta de uma Seguindo Canguilhem e Bachelard, a lógica da descoberta científica define-se como
obra como pretendia Sartre. O encontro entre o habitus do autor e o espaço dos possíveis que "polêmica incessante da razão" contra O erro, envolvendo a "vigilância epistemológica'', pela
o campo lhe oferece é um princípio explicativo muito mais poderoso que permite articular qual O pesquisador submete seus achados e instrumentos a "uma retificação metó~i~a per~~-
análise externa e interna das obras, com base em uma teoria da prática que enfatiza o modus -~~--~--i--=--• nente",e a sociologia do conhecimento, recurso essencial para esclarecer as cond1çoessoc1~1s
operandi ao invés do opus operatum, inclusive no caso de uma arte tão pouco ensinada de possibilidade do erro e do acerto. A definição de fato científico formulada na perspectiva
como a literatura (RP, 59-99). do racionalismo aplicado de Bachelard orienta O desenvolvimento da exposição dos autor_es.
Essa teoria da prática serve, assim, de fundamento a uma teoria geral da ação que vai Oprincipal obstáculo ao conhecimento sociológico é a familiarida~e com.º m~n~o so,CI_al,
desde a ação mais ritualizada até a mais inventiva, sem solução de continuidade. Teórico quegera tanto a sociologiaespontânea do senso comum, produtora de s1stemat1zaçoesiluso~ias
da prática, Bourdieu também empregou tais concepções na formação de seus alunos para a sobre O social e as próprias condições de sua credib_ilidade,quanto o senso comum erudito,
pesquisa, privilegiando a aprendizagem prática em relação ao ensino teórico (SAPIRO, 2004). que cede à tranquilizadora "explicação pelo simples", em uma relação ambígua com o grande
públicointelectual, alimentando o sentimentalismo do humanismo ingênuo (Nietzsche,~a~x).
Referências As técnicas de ruptura pela crítica das pré-noções (Durkheim) envolvem as defimç,o~s
BOURDIEU, P.Esquissed'une théorie de la pratique, précédé de Traisétudes d'ethnologiekabyle: provisórias, a estatística e a explicitação da filosofia do social incrustada no vocabulano
Le sens de l'honneur; La maison ou !e monde renversé;La parenté comme représentation et comme e na sintaxe da linguagem comum. A objetividade do conhecimento sociológico deve ser
volonté.Genebra:Droz, 1972.[Novaed. aum., Paris: Le Seuil,2000. (ColeçãoPoints Essais)]. conquistada contra a filosofia ingênua da ação. Sua condição primeira é o princípio da não
MAUSS,M. Les techniques du corps. ln: __ . Sociologieet anthropologie.Paris: PUF,1950. consciência:o sentido das ações pertence ao sistema completo de relações nas quais e pelas
SAPlRO,G.Laformationde l' habitus scientifique.ln: BOUVERESSE, J.;ROCHE,D. (Org.).La Liberté quais elas se realizam. Não são as representações dos sujeitos que conduzem ao princípio
par la connaissance.Paris: OdileJacob,2004. p. 317-325. explicativo da lógica das relações sociais; é, antes, a lógica objetiva de uma organização que
revela o princípio explicativo de seú funcionamento e das atitudes, opiniões e aspirações
166. PROFISSÃO DESOCIÓLOGO (A):PRELIMINARES EPISTEMOLÓGICAS de seus membros. É a crítica ao subjetivismo das filosofias da escolha que situa a ênfase
(Le métier de socio!ogue: Préa/ab!esépistémologiques) dos autores na necessidade de objetivação, pois certamente a construção do sistema de
················································--········································--·················--························
..--·•··.
..----·--··············----··--· relações visa explicar tanto a objetivação das subjetividades quanto a interiorização da
Sylvia GemignaniGarcia objetividade, articulando estrutura e ação. A ruptura, que põe em questão os fundamentos
das tradições teóricas consagradas segundo um desenvolvimento histórico descon_tínu~da
BOURDIEU,P; CHAMBOREDON, J.-C.A profissão de sociólogo:preliminares epistemológicas, razão, permite revelar a inconsistência da perspectiva de Parsons, que buscou sm~~t~zar
Petrópolis,RJ:Vozes,1999. ~s tradições em uma teoria universal dos sistemas sociais. Por outro lado, contra o h1p~-
rempirismo pontilhista", as grandes teorias clássicas fornecem os fundamentos da teo_na
Publicado no Brasil em 1999e tendo o título corrigido em edições posteriores para Ofício do conhecimento do social que rege as l'eorias parciais (limitadas a uma ordem defimda
de sociólogo:metodologiada pesquisa na sociologia,este livro representa exemplarmente de fatos), funcionando como princípio unificador do discurso sociológico.

298 PROFISSÃO DE SOCIÓLOGO (A): PRELIMINARES EPISTEMOLÓGICAS PROFISSÃO DE SOCIÓLOGO (A): PRELIM_INARES~PI_ST~MOLÓ~ICAS 299
(Le métier de sociologue: Préalab/es épistémologiques) (Le métier de sociologue: Prealables ep1stemolog1ques)
O "dogma da imaculada percepção" (Nietzsche) do hiperempirismo, favorecidopela Situandoas oposiçõesepistemológicasno sistema de posiçõesque relacionaminstituições e
aparência de rigor da codificaçãodas regras técnicas de utilização das técnicas, deturpa a gruposem um campo disciplinar,é possívelidentificaro horizonte de possibilidadesde cada
reflexãometodológicaem doutrina dos preceitos tecnológicos,enfatizando a manipulação pesquisador,segundo suas posiçõesobjetivasno campo e seus enraizamentos sociais, para
de categorias constituídas e ignorando as operações pelas quais elas foram constituídas. avancarna superação das várias formas de etnocentrismo,em direção à institucionalização
Essa renúncia ao objeto científico produz "meros artefatos" - gravações, questionários, davi~ância na sociologia,ou sej~,da "redecontínua de crítica"(Polanyi)capazde alimentar
entrevistas, medidas - que ora impõem aos informantes as categorias impensadas do a autonomizaçãoda razão sociológica.
pesquisador, ora consagram as categorias dos informantes como explicação do real, ora
confundem formalização (de resto, recurso profícuo de controle, contanto que utilizado
167. PROJETO
controladamente) com valor explicativo. ·······················································································································
Esses erros são retificados quando se define uma ciência por meio das relações concei-
Ver: Conatus
tuais entre os problemas que formula (Weber).Diversamente da aparência pré-construída
pela percepção, o objeto científico é construído em função de uma problemática teórica
que relaciona aspectos conscientementeselecionadosda realidade - como nos tipos ideais 168. PROPOS
SURLECHAMPPOLITIQUE
·······················································································································
weberianos,"ficçõescoerentes"que guiam a construção de hipóteses,enquanto construções Igor Gastal Grill
próximas do real (diversamente dos modelos miméticos, que reproduzem fenômenosde
modo aproximativo,limitando-se às semelhançasexteriores).Assim, a pesquisa consistede BOURDIEU,P.Propos sur le champ politique. Lyon:Presses Universitairesde Lyon,2000.
uma abstração que constrói as relações que definem um objeto,rompendo com afinidades
aparentes para propor analogias desconhecidas (modelosanalógicos),das quais depende, "Comopensar a política sem pensar politicamente?"Indagaçãodesafiadoraproposta por
em geral, toda invenção científica e, especificamente,a comparação sociológica,para for- PierreBourdieu e que pode orientar a leitura deste livro compostopor discussõese nuances
mular os princípios ocultos que permitem descrever, explicar e prever o funcionamento instigantes em torno de uma temática que parece sempre fadada a produzir obstáculos de
das realidades que investigam. diferentes ordens. Além de artigos sobre a "política", ganham destaque,a conferência de
Nada do que foi dito supõe uma ordem cronológicade um cicloexperimental composto Bourdieusobre "O campo político" e a entrevista que concedeu(datam de 11de fevereirode
de fasessucessivas.A hierarquia dos atos epistemológicosé de ordem lógica,pois o processo 1999),ambas conduzidaspor PhilippeFritsch,que assina o texto introdutório e ainda propõe,
todo de investigaçãoconstitui um "procedimentounitário". O racionalismoaplicadorompe nas páginas finais,uma bibliografiacom os "principaistrabalhos de Bourdieusobre as ques-
com a epistemologiaespontânea ao inverter a relação entre teoria e experiência,tornando tões de política".Sublinhada a intervenção de Fritsch, cabe ressaltar que a efetivaçãodesse
inteligívelque, na observaçãoou na experimentação,o procedimentoé tanto mais científico projetoparece ter sido tributária de aspectospróprios a uma etapa do itinerário de Bourdieu,
quantomais sistemáticosos princípiosteóricosque o guiam.A experimentaçãobem-sucedida da sua produção e dos "combates"que travou em um contexto histórico específico.Neste
confirma ou desmente um sistema de hipóteses que confere significaçãoaos fatos como"os casoevidenciam-se,notadamente, as ênfasesatinentes às relaçõesentre os campos político,
termos organizados de uma série" (Panofsky).É pela sistematicidadedo conjunto que tudo jornalístico e das ciências sociais, bem como à função política dos intelectuais. Conjuga-se
ganha sentido:fora dele, cada hipótese, dado ou fato isolado é insignificante(Duhem).Para a isso a possibilidadede atentar para o trabalho de formulaçãode um referencialanalítico
isso,o conjuntoprecisaser continuamentecorrigido,já queum dos méritosda provaé provocar a partir da problematizaçãodas condiçõesde apreensão do domínio especializadoda vida
certa dúvida acercade seu resultado (Russell).Assim,os resultadospositivosou negativosda socialem pauta. Ou seja, encontram-se aqui as bases do programa de pesquisaspara ponde-
pesquisa são, principalmente,um "ponto de reflexão"(Brunschvicg). rar sobre os condicionantessociais que configuram o microcosmoda política, os processos
Essa dialética de ajuste entre dados (fidelidadeao real) e categorias de apreensão dos de profissionalizaçãointervenientes,a constituiçãode regras específicasde funcionamento,
dados (coerênciateórica) torna-se visível a partir do ponto central da encruzilhada entre as condições de afirmação de determinadas competênciaspara o trabalho de mobilização
o realismo e o idealismo, perspectiva do racionalismo aplicado que desvela a comple- políticae as múltiplasestratégiasconcorrenciaisde imposiçãode princípiosde visão e divisão
mentaridade sistêmica dos opostos aparentes (tal como mostra a análise das afinidades do mundo social. Não por acaso, a essa elucidaçãodos entraves decorrentes das ilusões de
entre positivismo e intuicionismo), lugar da prática científica capaz de "superar em ato" uma "compreensãoimediata" da política corresponderam adesões e reações em universos
as oposiçõesentre as quais oscila uma sociologiasubmetida a uma imagem distorcida das acadêmicos,midiáticos, militantes e intelectuais.
ciências naturais.
Sem ser uma ciência de exceção,a sociologiaexige particularmente a ruptura, dada a
interpenetração entre "a cidadelaerudita" e a sociedademundana. Por isso a crítica episte-
mológica.depende também da análise das condiçõeshistóricas e sociais do erro e do acerto.
PROPOS SUR LE CHAMP POL/TIQUE 301
300 PROFISSÃO DE SOCIÓLOGO (A): PRELIMINARES EPISTEMOLÓGICAS
(Le métier de sociologue: Préa/ables épistémologiques)
110. RAZÕESPRÁTICAS:
SOBRE
A TEORIADAAÇÃO
169. QUESTÕES
DESOCIOLOGIA (Raisons pratiques: sur la théorie de /'action)
(Questions de socio!ogie)
. ··································································································································· Zaia Brandão
Cristina Carta Cardosode Medeiros
BOURDIEU,P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP:Papirus, 1996.
BOURDIEU,P. Questões de sociologia.Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.
Noprefácioà ediçãobrasileirade 1996(olivrofoipublicadooriginalmenteem 1994),Bourdieu
Comoconfirmadopelo autor no "Prólogo",Questõesde sociologiatraz a compilaçãode assinalaque o conjuntode textos apresentadosno livro tem o sentidode um.retornoreflexivo
transcrições orais a partir de entrevistas, intervenções em colóquios,conferênciase comu- sobreo conhecimentoacumuladoa partir das inúmeraspesquisasque desenvolveu.Trata-se,
nicaçõesem congressos,além de palestras em universidadese em instituições de pesquisa. portanto,de uma tentativade síntesedas questõesque o ajudarama elaborarconceitoscentrais
Destinadosa públicosnão especializados,essesdiscursos,em formamais simplificada,teriam da teoria da ação que atravessa boa parte de sua obra. Bourdieu adverte aos pesquisadores
a intenção de esclarecertemas, noçõese conceitosque já haviam sido tratados de forma mais sobreo equívocoque seria desenvolveruma leitura puramenteteórica do conjuntodos textos.
rigorosa e completaem outros trabalhos (artigos e obras) de Bourdieu.Tal preocupaçãoem Esclareceque os conceitospresentesna obra, na maioria das vezes,foram desenvolvidospara
decifrar e desvelarsempre esteveclara ao longoda trajetória desse sociólogo,convencidode resolverproblemas inseparavelmenteempíricose teóricos.Enfatizaainda a centralidadeda
que a sociologia,ciênciade acessibilidadeexigida,"não valeria uma hora de esforçose fosse perspectivarelacionalno âmbitoda sociologia,questionaastendênciassubstancialistas,comuns
um saber de especialistasreservado aos especialistas"(QS,7). Auxiliado pelo formato oral nas ciênciassociais,quando tratam como "fatos"- situações,posições,processos,etc. - aos
que aproxima autor e espectador e que, pela urgência e linearidade, poderia imprimir um quaissó se chegapela percepçãodas relaçõesque mantêm comoutros fenômenossociais.Para
ritmo de exposiçãomais dinâmico em que se acompanharia a construçãode seu pensamento o autor,as relaçõesobjetivasnão são percebidasdiretamente,mas precisamser (re)construídas
e suas argumentações,adaptadasao públicoao qual se dirige,Bourdieutrabalha váriostemas: por um rigorosotrabalho científicode articulaçãoentre os fenômenos.
da alta costura ao esporte, da sociologiada arte às pesquisas de opinião pública e defendeo Razõespráticasofereceaos leitorespalestras/textosque Bourdieurealizouno estrangeiroe
formatocrítico da sociologiapor sua função de desvelamentodas formas de dominaçãoe das no Collegede France. Entendoque o conjuntorepresentao aspectomais originalda construção
lógicas da ordem social. Apresenta ainda, em uma configuraçãoque se poderia classificar sociológicaempreendidapelo autor - ou seja,a hipótesede que a maioriadas açõesdos agentes
como didática, algumas propriedades dos campos, por considerar tal noção como dotada sociaistem por fundamentorazõespráticas.Paraele,asrazõespráticassãoderivadasdo habitus-
de grande força operacional.Os textos trazem também referênciasàs noções de habitus e disposiçõespara ação,fortementeincorporadaspelosagentesem suastrajetóriassociais- e resul-
de algumas modalidades de capitais.Em vários extratos Bourdieu aproveitapara esclarecer tam da posiçãosocial·dosagentese de suaspráticasusuais.No processode socialização(familiar,
algunspressupostosde sua abordagemsociológicaque foram criticadosou mal interpretados, escolar,profissional,etc.)osagentes/atores
adquiremformasdeagirajustadasàs exigências(regras)
podendoser mais bem exploradose esclarecidosa partir do estímuloprovocadopelasquestões doscampossociaisquecostumamfrequentare,por isso,fazemo queé esperadoem determinadas
dos entrevistadoresou do públicocom o qual dialoga.A maioria dos textos selecionadospara situações(circunstâncias/contexto),sem queprecisemrecorrerà razão(raciocínio)para agir con-
o livro apresenta,ao final, nota explicativa,onde podem ser obtidas, em outros trabalhos de formeas regras.Osconceitos"jogo","regrà',"costume","hábito","aprendizagem"(Wittgenstein)
Bourdieu,explicaçõescomplementaresdos temas tratados nas comunicaçõesorais. foramimportantesreferênciaspara o autorna elaboraçãodo núcleoconceitua!de sua obra.

302 QUESTÕES DE SOCIOLOGIA RAZÕES PRÁTICAS: SOBREA TEORIA DA AÇÃO 303


(Questíons de socíologíe) (Raísons pratiques: sur la théoríe de /'actíon)
Bourdieunão trata os sujeitos(agentes)comomeros epifenômenosdas estruturas sociais, 1n. REFLEXIVIDADE
como supõem muitos críticos das raízes estruturalistas do autor. Ao se debruçar preferen- ·······················································································································
GérardMauger
cialmente sobre as "razões práticas", que dominam no mundo da prática, destaca a forte
interiorizaçãoda racionalidadedas ações sociais cotidianas. Fundamentadas em processos Se é verdade que "Bourdieunão apreciavaa linguagem da 'consciência'e da 'tomada de
de socializaçãopermanente e práticas rotineiras, não exigem a cada momento o recursoà consciência))) (BoUVERESSE, 2004,p. 36),é evidentequenempor issoo homemem sociedadeera,
"razão racional",uma vez que incorporaram formas rotineiras e razoáveisde agir no espaço para o sociólogo,um "idiotacultural".No entenderdeHaroldGarfi.nkel(2007),"oatorsocialdos
social em que circulam normalmente (campos,contextos,conjunturas temporais). sociólogosé um 'idiota cultural' queproduza estabilidadeà socieda_de ao agir em conformidade
Para o autor,as estruturas sociaissão produto dos esquemasde percepção,de pensamento com alternativaspreestabelecidase legítimasquelhe são fornecidaspela cultura".Suateoriada
e de ação dos homens. Ele questiona tanto o subjetivismo,que não leva em conta a gênese práticatraça uma via entre a reduçãodo agentea um "simplesepifenômenoda estrutura" (CD,
social das condutas individuais, como o estruturalismo, que desconsidera a história e as 19) e o sujeito da tradição humanista que, "segundose presume, age unicamente em função
determinaçõesdos indivíduos.É neste sentido que afirmou que se tivesseque dar um rótulo de intençõesque conhecee controla,e não de causasdeterminantes,ignoradastotalmentepor
à sociologiaque desenvolveu,este seria estruturalismo construtivista. ele,e sobreas quais não exercenenhuma influênciareal" (BoUVERESSE, 1995,p. 580).Segundo
Cabedestacarque estelivronão deveser utilizadocomoobraintrodutóriaao pensamentode Bourdieu,"o senso prático é o que permite agir de maneira adequada [...] sem interpor nem
Bourdieu,e simcomoum instrumentopara a revisãode algunsdosseusconceitose de suasformas executar um 'é preciso',uma regra de condutà' (MP,166).Ele é indissociáveldo conceitode
de elaboraçãodesenvolvidos atravésde um densotrabalhode ordemempírico-teórico peloautor. habitus, que "tem por função primordiallembrar com ênfaseque nossas açõespossuemmais
frequentementepor princípioo sensoprático do que o cálculoracional"."O princípioda com-
preensãopráticanão é uma consciênciacognoscente"(MP,78),mas sim uma comp~eensãosem
171. RECONVERSÃO DECAPITAIS distância objetivantedo mundo, sem relaçãode exterioridade;o habitus como senso prático
·······················································································································
Enrique Martín Criado compreendeo mundo "comoalgoevidente".Seissoé assimé porqueo agente"sesenteem casa
no mundo porque o mundo também está nele sob a forma do habitus" (MP,174).Ele "'aí se
As estratégias de reconversão de capitais fazem parte das estratégias de reprodução. reencontrà imediatamente,sem ter necessidadede deliberar,e faz surgir,sem mesmopensar
Cadaindivíduo ou grupo socialse definepor uma estrutura e volume de capital.A estrutura nisso, 'coisasa fazer' [... ] e a fazer'<::orno
convém)))
(MP,174).Em outros termos, o caráterpré-
de capital remete ao peso relativo das diferentes espécies de capital (econômico,cultural, reflexivodo sensopráticoresulta do ajuste,mais ou menosaproximado,do habitus à situação.
simbólico, social) que possui. O volume designa a quantidade de cada espécie de capital. Ora, esse ajuste é, por sua vez, o produto da "incorporaçãodas estruturas e das tendênciasdo
Um indivíduo ou grupo, em suas estratégias de reprodução,tende a continuar acumulando mundo" (MP,166).Bourdieusublinha,todavia,que as improvisaçõesdo sensoprático"nunca
as mesmas espécies de capital que já possuía. Porém, quando se produzem mudanças no acontecemsem uma certa presençade espírito[...],uma certa formade pensamentoou mesmo
sistema dos instrumentos de reprodução - por exemplo, transformações no valor de um de reflexãoprática, reflexãoem situaçãoe em ação"(MP,192),admitindo que "o habitus tem
tipo de capital econômicoou cultural que diminuem o rendimento das espéciesde capital seusfracassados,seusmomentoscríticosde desconcertoe de defasagem:a relaçãode adaptação
que se possui -, a estratégia de reprodução que se impõe é a reconversãodos capitais:a uti- imediata fica suspensa,num instante de hesitaçãoem que pode se insinuar uma forma de re-
lização de uma espéciede capital para acumular outras espéciesde capital mais rentáveis, flexãoque não tem nada a ver com a do pensadorescolástico"(MP,191-192). De maneira geral,
acessíveisou legítimas. Assim, quando o acesso às posiçõesdominantes da hierarquia das escreveele, "o grau com que podemosnos entregar aos automatismosdo senso práticovaria
empresasrequer cada vez mais títulos escolares,os segmentosda burguesia ricos em capital conformeas situaçõese os domíniosde atividade,mas também segundoa posiçãoocupadano
econômicoo utilizam para que seus descendentesadquiram capital cultural objetivadosob espaçosocial [...]" (MP,192).
a forma de títulos escolaressuperiores - comparecendoa escolasprivadas caras mas pouco Quanto à reflexividade,ela está subordinada, de acordo com Bourdieu,à skhole, "tempo
exigentesescolarmente. livre e liberado das urgências do mundo que torna possíveluma relaçãolivre e liberada com
A reconversãode capitais se dá também em estratégias de acesso social, por exemplo, tais urgênciase com o mundo":ela é "a primeira e a mais determinante de todas as condiç~es
quandoum acadêmico,ricoem capitalculturale simbólico,o colocaà disposiçãode empresas- sociais de possibilidadedo pensamento 'puro)))(comos obstáculosepistêmicosa que ela m-
defendendoou legitimando seus interesses - para acumular capital econômico. duz). Deve-sededuzir daí que não há nenhum "pensamento"possívelfora da skhole?Seria
O conceitode leis de reconversãode capitais designa transformaçõesgerais no estado necessáriopoder se retirar do mundo para pensá-lo?A condiçãoescolásticaseria a condição
dos instrumentos de reprodução que revalorizam (ou desvalorizam)uma espéciede capital, sine qua non de qualquer pensamento e, em particular, de qualquer interrogação sobre o
pressionando a sua acumulação (ou abandono a favor de outras espécies de capital) por mundo social?A "competênciareflexivà'(BoLTANSKI; THÉVENOT, 1991)dos agentesserianula
diferentes segmentosde classe.Um exemploé o peso crescente dos títulos escolarespara o fora da condiçãoescolástica?Seé verdade,de acordocom a expressãode Leibniz,que "somos
acessoa posiçõesprofissionaissuperiores. autômatos em três quartos de nossas ações",é possível,ao menos, nos interrogarmos sobre

REFLEXIVIDADE 305
304 RECONVERSÃO DE CAPITAIS
o quarto restante. Quais seriam então as condiçõessociais que levam a que nos detenhamos deliberadas ou impostas, ou ainda pelas inÍciativasdeliberadasde conversãodo habitus no
sobre nossas práticas? (MAUGER, 2009, p. 61-77). interior de "instituições totais" (asilos,prisões, seitas religiosas,etc.).
Para começar,podemossupor que a experiênciado mundo "comoalgoevidente",associada De maneira geral, quais são as condiçõessociaissuscetíveisde produzir_"frac~ssados".d~
ao senso prático que funciona sem obstáculos,é desigualmentedistribuída no espaçosocial. habitus? "O problema est~ no fato de que, no essencial,a ordem estabel~cidan~o constitm
Assim, segundo Bourdieu, "é provávelque os que se encontram 'em seu lugar' no mundo problema",diziaBourdieu(MP,217)."Nuncadeixeide me espantar,escreVIaele,diante do qu~
socialpossam mais e mais completamentese entregar ou confiar em suas disposições[...] do poderiaser designadocomoo paradoxoda doxa: o fatode quea ordemdo mundotal co~o :la e,
que os que ocupam posições em falso, tais como os arrivistas ou os desclassificados"(MP, com suas permissõese suas proibições,no sentidoprópriocomono figurado,suas obnga?oese
198).De maneira geral,pode-se aventar a hipótese de que o ajuste das disposiçõesàs posições suas sanções,sejagrosso modo respeitada,que não haja um maior número de transgres~oesou
óu do habitus interiorizados às situações defrontadas seja provávelnos dois polos opostos de subversões,de delitose "loucuras"(bastapensar na extraordináriacoordenaçãode milh~res
do espaço social - nas classes dominantes e nas classes dominadas - e que o desajuste e a de disposições_ ou de vontades- que se instala na circulaçãoauto1,11~bilístic~, durante cmco
substituição da reflexividadeao senso prático sejam muito mais prováveisnas regiõesinter- minutos,na Praça da Bastilhaou da Concorde,em Paris).Ou,o que e amda mais surpreenden-
mediárias desse espaço (as profissões"intermediárias" da pequena burguesia).Parece, com
efeito,que habitus burgueses e habitus populares confirmam duas propriedades genéricas
te, que a ordem estabelecida,com seus privilégiose suas injustiças,_ s: perpe:11e.
facilidade,com exceçãode alguns acidenteshistóricos,e que as mais mtole:aveiscondiçoes
existênciapossam ser tidas, com tanta frequência,como aceitáveisou, ate :11esmo,na~ra_is
~=
com t~~anha

do habitus, segundo Bourdieu:por um lado, sua homogeneidadeprocede da coerência,da


estabilidadedas condiçõesmateriais e culturais de existência;por outro, o habitus burguês (BoURDIEU, 1998,p. 24) . Os dois exemploscitadospor Bourdieu a circulaçaode auto~oveise
ou popular tendem a se proteger das crises e dos questionamentoscríticos, garantindo sua 0
respeito pela ordemestabelecida- colocamum duploproblema:de um lad~'.~ do ha~it~s ~ d:
segurança em um meio ao qual se está tão pré-adaptado quanto possível(o estar "entre si") regra; de outro, 0 da doxa e da ideologia.No caso da circulaçãode veículos, c~c~ar a d~:ita
(SP,102).Ao contrário, a ocupação de posições "intermediárias" implica em frequentar lu- é, para um motorista francês, uma prática incorporada que dispen_saa referenci~explicita:
gares, acontecimentosou pessoas situados "mais alto",assim como lugares, acontecimentos uma regra que ele se esforçassepor cumprir. Se, no =~tanto,~le~~~a Pª:ª a ~ra-Bret~ '
ou pessoas situados "mais baixo", expondo constantemente o habitus pequeno burguês a deveránão só controlare reprimir sua disposiçãode crrculara direita (a situaçaopode'.al;a~,
questionamentos,a crises e, por isso mesmo, a uma suspensão do senso prático. De acordo tornar uma oportunidade de "tomar consciência"da regra interio.rizadae de seu arbitrano
se d. " . 1 , erda"
com Bourdieu,os ocupantes de posiçõesem falso "têm mais chances de tomarem consciên- definidodo ponto de vista nacionale histórico),mas também apren er a crrcu ar a esJ~
cia do que para os outros lhes parece evidente,pelo fato de se verem obrigadosa se vigiar e e ao menosno iníciode sua aprendizagem,ter constantementeem mente a regra explícitaque
a corrigir conscientementeos 'primeiros movimentos' de um habitus gerador de condutas deveaprendera seguir.Dessepontode vista,parecenecessárioadnütir a coexistên~iade habitus
pouco adaptadas ou deslocadas"(MP,193). e de regras na vida social,além de "considerara regra explícita,cumprida conscie~temente,e
A reflexividadepode ser igualmente uma consequênciada conjuntura. Bourdieu evoca, o habitus como dois polos entre os quais existe,na realidadesocial,uma verdadeiragama de
assim, "situaçõesmais críticas" suscetíveisde provocar uma "suspensãototal da submissão casos ·mtermed''iano
· s" (CHAUVIRE' , 1995, p. 553)• O milagreda circulaçãode veículosna Place
.
dóxica à ordem estabelecida"(MP,220),ou seja,ao mundo "taken for granted": "Osperíodos de la Concordesupõe que cada um tenha interiorizadoas regras de trânsito. No entanto,t~is
de crise nos quais os ajustes rotineiros das estruturas subjetivasàs estruturas objetivassão regras (o Códigode Trânsito)são, neste caso, as mesmaspara todos: e~unciadasco~-º,t~is,
bruscamenterompidosconstituemum tipo de circunstânciasem que a escolharacionalpode isso quando chegama ser enunciadas.No que diz respeitoà ordem s~cial com seuspnvilegios
preponderar, ao menos entre os agentes que dispõem, se é que se pode dizer, dos meios de e suas injustiças"- defacto, desigualitárias-, as re~r~s,q~ea or~a~z~ d,~v~r_n, ~o moment,?
serem racionais" (R, 107).Pode-sesupor que essetipo de situaçãolibera uma forma reprimi- de sua enunciação,justificar as desigualdades,os pnvilegios,as m3ustiças VIsiveisa olho~~ .
da de consciênciada dominação, autoriza um questionamentodas crenças mais ou menos Esses dois exemplosilustram a partilha entre a "doxa" e a :?deolo~ià'.A,~ox_a,repe:tono
assumidas. Considerandoque a expressãodessa forma de reflexividadepressupõe "palavras de regras idênticas para todos, pode ser interiorizada como algo evidente . A ideologiado-
para exprimi-la",i.e., a possibilidade de dar o "salto ontológicoprovocado pela passagem minante, por sua vez, deve racionalizar regras que, de facto, est~belec,~n_i ª,de~ig~ald~d_e.~
da práxis ao logos, do senso prático ao discurso, da visão prática à representação,a saber, o inculcação e a interiorização dessas regras são solidá~ias~a ~oç~ode, _vi~;encia simbolica ,
acessoà ordem da opinião propriamente política" (MP,221). mas podem-se enfatizar duas versões do conceitode violenciaslillb~hca ~a obra_de_Bour-
Os deslocamentosde grande amplitudeno espaçosociale/ou as rupturas biográficasper- dieu (MAUGER, 2006): a primeira associada aos trabalhos de etnologia cabila que msiste na
mitem igualmente dar conta da époche do senso prático. A mobilidadesocial ascendenteou incorporaçãodos esquemasde percepção,levando-osassim a escaparao :ontrole ~onsciente;
descendente,e a mudança de universosocial quelhes é inerente, engendram "a inadaptação" a outra vinculada aos estudos sobre a escola,mais próxima das concepçoesmarxi~ta,webe-
do habitus - interiorizadono âmbito da classesocial de origem - às situações característi- riana ou durkheimiana da "ideologià', que insiste no sentido atribuído pelos dommados ao
cas da classe social de destino. As rupturas biográficas,por sua vez, podem ser produzidas mundo social e em seu lugar nesse mundo. Não é demais ressaltar, entretanto, que em N:-e-
pelas situações de imigração e de "transplantação" individual ou coletiva,mais ou menos ditações pascalianas Bourdieurompe explicitamentecom a concepçãoweberiana antenor:

REFLEXIVIDADE 30 7
306 REFLEXIVIDADE
"O reconhecimentoda legitimidadenão é, como acreditaWeber,um ato livre da consciência ações (no caso,de reproduçãosocial)cujaslógicasnão se ajustam necessariamentea normas
clara" (MP,215).A ideologiadominante concebidacomo empreendimentode racionalização explícitasou implícitas.Em muitos casos,inclusive,as práticas sociaisraramente condizem
(ou de "justificação")dos privilégios,das injustiças, das desigualdadessociais, situa-se na com as regras concebidas como norma geral ou mesmo como conduta exemplar. O casa-
ordem das representações,portanto, da "consciência".Da doxa à ideologiadominante, há mento com a prima paralela patrilinear na sociedade béarnaise fornece bom exemplo de
lugar para a reflexividade. uma estratégia matrimo~ial corrente em desacordocom as regras oficiaisde parentesco.A
Finalmente,a prolongaçãogeneralizadadas escolaridadesé outra razãopara universalizar noção bourdieusianade estratégia aparece assim como forma de objetivar cientificamente
o privilégioda reflexividade.Alémda quebra- ao menosrelativa- das divisõessociaisque ela as recorrências nas formas de ação que, independentemente de seu acordo com as regras,
. implica e, por isso mesmo, a percepçãoinevitáveldas desigualdadeseconômicase culturais, somente são inteligíveisà luz dos diferentesinteressesdos agentes,tais como a manutenção
além do acúmulo de instrumentos de expressãoe da aprendizagemda transcrição do ethos biológicada linhagem ou a garantia de transmissão do patrimônio.
em logos,a escolarizaçãoprolongadaimplicanuma aprendizagemda condiçãoescolásticae
na interiorização de disposiçõesreflexivasque facilitam a passagemdo distanciamento aci-
·174. REGRAS
DAARTE(AS):GÊNESE
E ESTRUTURA
DO CAMPOLITERÁRIO
dental a uma disposiçãopermanente: "Estandolivre da sanção direta do real, o aprendizado
(Les rêgles de /'art: genêse et structure du champ littéraire)
escolar [... ], escreveBourdieu, é a ocasião de adquirir, de lambujem, por força do hábito, a
..--·---·
····································································--··--····--········----········--···--·······----·····----··---
disposiçãopermanentepara operar o distanciamentodo real diretamentepercebido,condição GiseleSapiro
da maioria das construçõessimbólicas"(MP,28).
BOURDIEU,P. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário.São Paulo: Companhia
Referências
das Letras, 1996.
BOLTANSKI, L.;THÉVENO, L. De lajusti.fication:leséconomiesde lagrandeur.Paris:Gallirnard,1991.
BOURDIEU,P. De la dornination rnasculine.Le Monde Diplomatique, p. 24, aout 1998. Esse livro, publicado em 1992,analisa o modo de funcionamento do campo literário. A
BOUVERESSE, J.Bourdieu, savant et politique. Marseille:Agone,2004. primeira parte traça o processohistóricode autonomizaçãodo campoliterário no séculoXIX
BOUVERESSE, J.Regles,dispositions et habitus. Critique, n. 579/580,aout-sept. 1995. e, mais especificamente,sob o Segundo Império francês (1852-1870),na época de Flaubert
CHAUVIRÉ,C.Desphilosopheslisent Bourdieu.Bourdieu/Wittgenstein:la forcede l' habitus. Critique, e de Baudelaire.A segunda parte propõe os alicercesde uma ciência das obras, enquanto a
n. 579/580,aout-sept. 1995. terceira se concentra nas condiçõessociais da recepçãoestética.
GARFINKEL,H. Recherchesen ethnométhodologie (1967).Paris: PUF,2007. Bourdieu começoua trabalhar sobre o campo literário desde a década de 1960,com seu
MAUGER,G. Sens pratique et conditions sociales de possibilité de la pensée "pensante". Cités, artigo "Lemarché des biens symboliques"(1971).A pesquisasobreFlauberttoma forma com
Philosophie,Politique, Histoire, n. 38, p. 61-77,2009. ''L'Inventionde la vie d'artiste" (1975),enquanto ele desenvolvesua teoria do campo literário
MAUGER,G.Sur la violencesyrnbolique.ln: MÜLLER,H.-P.;SINTOMER,Y.(Org.).PierreBourdieu, em vários textos que figuram na obra Questions de sociologie(1980).O livro reúne textos
théorie et pratique. Paris: La Découverte,2006. p. 84-100. de diferentesperíodos (dos anos 1960ao início da década de 1990)em versões amplamente
retrabalhadas e sob títulos, às vezes,diferentes(por exemplo,o capítulointitulado "Lemarché
des biens symboliques"não retoma o artigo anteriormente publicado com esse título, mas
173. REGRA
·······················································································································
sim aqueleoriginalmente intitulado "Laproduction de la croyance":de 1977).
ErnestoSeidl
As regrasda arteapresenta,à guisa de prólogo,uma análisede L'Educationsentimentale
em que Bourdieu mostra que essa obra pode ser lida como uma autosocioanáliseelaborada
Em boa medida o esquemaconceituaide Pierre Bourdieudesenvolveu-secom base numa por Flaubert.Esse estudo aprofundadotraz à luz a estrutura oculta do livro que opõe os dois
percepçãodo mundosociale das práticasquerejeitaa noçãode regra,entendidacomo"princípio polos do campo do poder, ou seja, o polo da arte e o da política (simbolizadopelo Sr.Arnoux,
de tipojurídicoou quasejurídicomais ou menosconscientementeproduzidoe controladopelos 0 marchand de arte), por um lado e, por outro, o polo da política e dos negócios(encarnado
agentes".Ateoriada práticade Bourdieuopõe-seem especialaoformalismooujuridismode teorias pelos Dambreuse). O protagonista do romance, Frédéric Moreau, herdeiro que se recusa a
segundoas quaisa açãosocialé fruto da obediênciaexclusivaa regras,codificadasem leisou não. herdar a herança familiar sem romper n:almente com seu meio, encontra-se dividido entre
Nessesentido,propõequemesmoem sociedadesaltamentecodificadas,reguladasoficialmente por esses universos. Incapaz de fazer escolhas,como é ilustrado por suas relaçõesamorosas, ele
normase leis,a açãosocialé principalmenteresultadodo habitus,princípiogeradorque orienta exemplificaa indeterminaçãosocial- uma das possibilidadesque ameaçavaFlaubert em sua
a relaçãodos agentescom o mundo socialpor meiode um sentidopráticoirredutívelàs regras. juventude, se ele não tivesse optado de corpo e alma pela literatura. Com seu personagem,o
Assim, a observação de regularidades em determinadas práticas, como nas alianças escritorcompartilhauma ambivalênciaem relaçãoa todos aquelesque gravitamno campo do
matrimoniais do campesinato do Béarn na França, não significa obediência a regras, mas poder. Para Bourdieu,a tentativade controlar os efeitosincontroláveisdessaambivalênciae a

308 REGRA REGRAS DAARTE(AS):GÊNESE E ESTRUTURADOCAMPO_LIT~RÁ_RIO309


(Les régles de /'art: genése et structure du champ /1ttera1re)
É, aliás,à percepçãodas obrasde artes plásticasqueé dedicadoum dos capítulosda terceira
preocu~açãocorrelata de .ª?r~ar a distância para com seus personagensestão na origem de parte. Interrogando-sesobre a gênesehistóricada estéticapura segundoKant, e sua teoria do
um conJuntode traços estihsticosde Flaubert,comoa discriçãodo narrador, o encadeamento prazer estéticodesinteressado,e sobre a materializaçãodessa relaçãoestéticaem instituições
dos est~os direto, indireto e indireto livre, além do ~so ambíguo da citação. comoos museus,Bourdieulembrao anacronismoque consisteem fazercomose essemodo de
. ~º.amago ~o romance, a questão da arte e do dinheiro é aquela que permeia o campo recepçãotivesseexistidodesde sempre.Ao contrário da maioria dos trabalhos de história da
hterano nessa epoca, momento de desenvolvimentoespetacular do capitalismo da edição arte que cometemesse erro, a obra de MichaelBaxandallsobreL'CEildu quattrocentoofere-
c_omoresultado da industrialização da imprensa e do texto impresso. A primeira parte do ce, de acordocom Bourdieu,um modeloalternativo,mostrando como esse olhar é modelado
hvro mostra como se ~ormou,em meados do século XIX,um circuito de produção restrito, pela religião,pela educaçãoe pelos negócios,ou seja, pelas disposiçõese pelos esquemasde
b,as_eado no reconhecimento dos pares, contra o circuito da grande produção regido pela percepçãopróprios ao habitus mercantil dessa época.No último capítulo,Bourdieupropõe
logicade mercado e pelo volume de vendas. Ao impor o primado do valor simbólicosobre o "uma teoria em ato da leitura" atravésda análise do contode Faulkner,"Arose for Emily".Ao
val~r mercantil, esse circuito restrito conseguirá derrubar os princípios que regem o espaço ludibriar as expectativasdo leitor,ao embaralharas referênciastemporais,Faulknerconvida-o
social e o mundo econômico.A esse propósito,Bourdieufala de uma "economiaàs avessas" a empreenderum procedimentoreflexivosobre a leitura e sobre a diferençaentre uma leitura
que serv_ede suporte à autonomia relativa do campo literário em relação às condicionante~ ingênua,crédula,e uma leitura erudita,retrospectiva,capazde reconstituiras pistas quelevam
sociais.A rentabilidadede curto prazo dos best-sellers,o circuitorestrito opõe a consagração à reviravoltafinal, a saber,a descobertado assassinatoperpetrado por Miss EmilyGrierson.
no longoprazo e a "canonização",ou seja,a integraçãodas obras que se tornaram "clássicas"no Bourdieu conclui o livro pela abordagem do conceito de illusio, que designa a adesão,
patrimônio cultural nacionale universal,principalmente,por intermédio do sistemaescolar. a crença nó jogo característica dos universos artísticos, ou seja, a propensão a levar a sério
Essa ~eviravoltafoi operada sob o SegundoImpério (1852-1870)pelos defensoresda "arte as ilusões da arte que foram personificadasnas figuras de Dom Quixote,Emma e Frédéric.
~ela arte , q~e se opunham tanto à "arte social",ou seja, à arte engajada,quanto à escolado Nopost-scriptum da obra, Bourdieudeixouseu apelo"Pour un corporatismedeJ'univer-
bo1:1senso .' a qual reunia os autores do polo mundano do campo literário, próximos das sel",que visava reunir os intelectuaisdo mundo inteiro para formar uma "internacional dos
fraçoes d~mman~esda classedominante. Bourdieuanalisa as modalidades da conquista da intelectuais" (conformeo título original da conferênciaque pronunciou em Turim, em maio
autonomia atraves dessa dupla ruptura efetuada, em particular, por Flaubert e Baudelaire. de 1989,publicada na revjsta Politis,em 1992) ou um "intelectual.coletivo",comprometido
A este último, ele atribui o qualificativode "nomóteta"no sentido em que ele instaura um com a defesada autonomiada produçãocultural e do espíritocrítico'faceàs ameaçasexercidas
novo nomos n~ c~mpoliterá~i.o,caracterizadopela L11dependência em relação às potências pelos novos imperativos econômicose tecnocráticos.
externas, econom_1cas ~u políti:as, e pela anomia. Ao se libertarem da demanda burguesa
para afirm~r a pnm~zia da estetica pura, associada a um ethos que combina rigor do tra-
Referências
balho e :nti_conform1smo, Flaubert e Baudelaireoperam uma revoluçãosimbólicaque terá BOURDIEU,P. Champ intellectuel et projet créateur. Les Temps Modernes, n. 246, p. 865-906,
consequenciasduradouras no campo literário.
nov. 1966.
Na segunda.parte, Bourdieu mostra como o recurso ao conceito de campo permite su- BOURDIEU,P. Le marché des biens symboliques.L'.AnnéeSociologique,v. 22, p. 49-126, 1971.
perar a alternativa entre análise interna e análise externa das obras. Ele discute de maneira BOURDIEU,P. rinvention de la vie d'artiste. ARSS, v. 1, n. 2, p. 67-93,1975.
aprofundada as teorias literárias que, desde os formalistas russos até os estruturalistas BOURDIEU,P. La production de la croyance: contribution à une économie des biens symboliques.
estão ~entradas~a a~áliseformal sem exploraras condiçõessociaisde sua produção. Critic;
ARSS, v. 13,p. 3-43, 1977.
tambem o reduc10msmoda tradição marxista que transforma as obras em meros reflexos BOURDIEU,P. Toe Field of Cultural Production, or: Toe Economic World Reversed. Poetics,v. 12,
do mun~o ~o~ial,sem _questionaro efeito de refração exercido pelas lógicas próprias do
n. 4-5, p. 311-356,1983.
ca~p~ hterano. A teona do campo baseia-se na ideia de uma homologiaentre o espaço das BOURDIEU,Pierre.Pour une internationaledes intellectuels(Turin,mai, 1989).Politics,1, 1992.p. 9-15.
pos1çoesocupadas no campo e o das tomadas de posição, ou seja, das opiniões preconcebi-
das de ~rdem esté~i~a(e, muitas vezes, política). A ciência das obras requer, portanto, três
operaçoes: 1~a analise da posição do campo literário no seio do campo do poder (seu grau í 75. RÉPONSES:
POURUNEANTHROPOLOGIE
RÉFLEXIVE
·······················································································································
de autonomia) e sua evoluçãoem diferentes conjunturas sócio-históricas; 2) a análise da Maria Amália de Almeida Cunha
estrutura do campo literário segundo as relações objetivas entre os indivíduos e os grupos
~ue_n~le concorrem para a aquisição do capital específico;3) a análise do habitus desses BOURDIEU,P.;WACQUANT,L. Réponses:pour une anthropologieréjlexive.Paris: Seuil, 1992.
md1v1duose de suas trajetórias sociais, em que o efeitode campo não se exercede maneira
mecânic~,ma,sé me~iado_p~loespaço dos possíveis,tal como ele se apresenta aos agentes Obra publicada originalmente em 1992, escrita por Pierre Bourdieu e Loi:cWacquant,o
em funçao de suas d1spos1çoes.Esse procedimento se aplica também aos outros campos livro teve ampla repercussãona cena intelectual,recebendotradução para diversaslínguas e
de produção cultural.
RÉPONSES: POUR UNE ANTHROPOLOGIE RÉFLEXIVE 311
310 REG~ DAARTE(AS):G~NESEE ESTRUTURA
DOCAMPOLITERÁRIO
(Les regles de l'art: genêse et structure du champ Jíttêraire)
sendo editado em váriospaíses:EstadosUnidos(1992),Itália (1992),Holanda (1992),Noruega incorporadasno corpo dos agentessociaisem forma de disposiçõese conhecimentospráticos
(1993),Bulgária(1993),Espanha (1994),Catalunha (1994),Alemanha (1996),Polônia (2001), do mundo (AcEVEDO, 1998), superando o risco das falsas antinomias presentes no campo
Turquia (2003),Japão(2004) e Lituânia (2004).A apresentaçãoe a introdução foram escritas científico.Para Bourdieu,quanto mais os indivíduostomam consciênciado socialno interior
por Wacquant,sendo que a obra se compõede duas partes distintas, mas complementares.A de si mesmos, assegurando uma matriz reflexivade suas categoriasde pensamento e ação,
primeira - que toma a forma de perguntas e respostas- tem seu eixono célebreSemináriode menos chances eles têm de agir de acordocom a exterioridadeque os habita. Essa espéciede
Chicago,ocorridono invernode 1987-1988,ondeBourdieudialogoucom estudantese pesqui- vigilânciareflexivase impõe como preâmbulo imprescindívelda prática científica.Segundo
sadores daquelauniversidade.Foram,aliás, suas "respostas"aos participantes do "Graduate Corcuff(1993,p. 295), este talvez seja um dos pontos altos da obra de Bourdieu, a saber, a
Workshop on Pierre Bourdieu" quederamnomeao livro.Essaprimeiraparte ofereceao leitor tomada de posiçãoem favorda reflexividade sociológica,"objetivaçãodo sujeitoobjetivante",
a ocasiãode voltar,de maneira sintética,aos trabalhos do sociólogopublicadosna década de neutralizando os efeitos das determinações sociais e da posição ocupada pelo cientista no
1980,comoHomo academicus, (1984)e La noblesse d'État (1989).O conjuntode perguntas espaçosocial sobre a construção de seus objetosde investigação.O conceitode reflexividade
e respostasque estruturam essaparte permite compreenderos princípiosque governama prá- explicitaria,assim, a relação dialética entre as estruturas objetivadase as disposiçõespelas
tica científicado autor,entre eles;a missãoimputada ao sociólogode desnaturalizar o mundo quais estas estruturas se atualizam reflexivamente(CouTURIER, 2002). Bourdieu defende
social,isto é, de tentar combateros mitos que alimentam o exercíciodo poder e perpetuam a de maneira intransigente a autonomia da prática sociológica,uma vez que a disciplina deve
dominação.Além disso, explicitaa maneira como o autor produz, organizae colocaem obra prezar por sua independência,sem servir a nenhum grupo ou instituição, pois sua função é
sua teoria. Por isso Wacquant(R, 7) afirma, na apresentação,que o livro pretende oferecerao compreendero mundo social, a começar pelas relaçõesde poder nele existentes (MARTINS,
leitor um espírito em ação, ou seja,a intençãoé revelaro modus operandi da sua sociologia 1994).Acrescente-se,por fim, que o livro contém ainda, como aparato final, uma lista, em
e não o seu opus operatum. Nessediálogo,Bourdieufaz a revisãode alguns de seus trabalhos, ordem cronológica,dos escritos de Bourdieu e colaboradores,evidenciandoo percurso de
explicitandosua prática de pesquisa e refletindoteoricamentesobre essa prática, em termos uma trajetória intelectual extensa, rica e prolífica,compreendidaentre os anos 1958 e 1990.
claros e acessíveisao leitor.A necessidadeda lógicareflexivasobre as categoriasque ordenam
nossopensamentojustifica-se,segundoele,porqueé a reflexividadequenos permitedescobriro Referências _
socialno interiordo individual,o universalescondidono mais profundodo particular.A lógica ACEVEDO,S. A. Habitus científico: el oficio incorporado. Época II, Estudfos sobre las Culturas
da prática e da reflexãoteóricasobre a prática faz da sociologiauma tentativa de transformar Contemporáneas,n. 7,p. 165-168,jun. 1998.(Resenha).
o olhar através do qual nós construímos o mundo social (R, 42). CORCUFF,P.Revue Françaisede Sociologie,v. 34, n. 2, p. 293-296,1993.(Resenha).
A segunda parte da obra consistena transcrição de um seminário de pesquisa realizado COUTURIER,Y. Les réflexivitésde l'oeuvre théorique de Bourdieu: entre méthode et théorie de la
em outubro de 1987 na École des Hautes Études en SciencesSociales(Paris), centrado em pratique. Esprit Critique, v. 4, n. 3, mars 2002.
questões metodológicase epistemológicasda obra do autor (CORCUFF, 1993,p. 293). Nesse MARTINS,C. B. Réponses.Pour une anthropologieréflexive.Revista Brasileirade CiênciasSociais,
seminário, segundo Wacquant, o exercício de Bourdieu não foi o de propor uma teoria v.26, n. 9, p. 179-181,1994.Disponívelem: <http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_26/
precisamente definida ou um conjunto finito de conceitos,mas o de refletir acerca de uma rbcs26_resenhas.htm>. Acessoem: 14set. 2011.
disposiçãogeneralizadaà criatividadesociológica.Para tanto, o autor invertea lógicapedagó-
gica:seu ensinamentovai da aplicaçãoprática aos princípios,segundo o seu modo de pensar
gerativo e (anti) intelectualista, expresso em sua crítica à filosofiameramente especulativa. .176. REPRODUÇÃO ........_.................................
........................................................................... .
A busca incessante do autor, explicitada no modo como organiza o seu pensamento no li- Ana Maria Fonsecade Almeida
vro, é a de exercitar a reflexividade, procurando transcender as diversas antinomias que,
segundo ele,minam as ciênciassociais:o antagonismoaparentementeintransponível entre Na obra de Pierre Bourdieu, reprodução é uma noção que permite indagar sobre aquilo
os modos de conhecimento subjetivista e objetivista, a separação analítica do simbólico e que permite que "a ordem estabelecida, com suas relações de dominação, seus direitos e
do material, enfim, o divórciopersistente entre teoria e empiria (R, 14).SegundoBourdieu, suas imunidades, seus privilégios e suas injustiças, salvo uns poucos acidentes históri-
essas oposiçõesartificiais não derivam de operaçõeslógicas e/ou epistemológicasconstitu- cos, perpetue-se apesar de tudo tão facilmente, e que condições de existência das mais
tivas da prática científica,mas sim de disputas no interior do próprio campo científicopara intoleráveis possam ser permanentemente vistas como aceitáveis e até como naturais"
erigir concepçõesparticulares em "verdadeiras"práticas científicasuniversais (MARTINS, (DMp,7). A questão foi trabalhada cumulativamente desde os estudos sobre a Argélia e o
1994).É pensando em uma sociologiarelacionalque Bourdieuanalisa o papel e o alcanceda Béarn até os últimos escritos sobre a sociedade francesa, dando origem a um sofisticado
ciênciado social,ciênciaesta que deveter a reflexividade como fonte de diferençacognitiva argumento, cujos pontos principais podem ser encontrados nos livros A reprodução, La
e também significativana conduçãode qualquer pesquisa. Pensar relacionalmenteé pensar noblesse d'État, Meditações pascalianas e nos cursos do Collegede France publicados
dialeticamenteentre as estruturas objetivasque conformam o espaçosocial e as estruturas postumamente sob o título Sur l'État.

312 RÉPONSES: POUR UNE ANTHROPOLOG/E RÉFLEXIVE REPRODUÇÃO 313


--.---
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O argumentodialogacomas teoriasclássicassobreo poderpropostaspor Marx,Durkheim de propriedade; a instituição escolar,notadamente a organizaçãodo sistema de ensino e as
e Weber.Do primeiro,Bourdieuretém a ideia de que reproduçãosocialrefere-seà reprodução formas de obtençãoe valorizaçãodo diploma,etc. A importância desses mecanismosreside
das relaçõesentre as classes.Por reproduçãosocial, entende-sea reprodução das relaçõesde no fato de que são eles que definirão tanto os custos do investimentofamiliar quanto o lucro
força que estruturam as relaçõesentre os grupos sociais. A partir de Durkheim, acrescenta obtidopelo grupo em retorno.
que a reprodução se dá também pela reprodução do sentido, que, contra Durkheim, é vista Essa análise comparadaforo que permitiu a Bourdieurevelara importânciaque o sistema
como o resultado de uma luta entre as classespara imposição do sentido legítimo.Por fim, de ensino e, logo,o capitalcultural, havia assumidonas estratégiasde reproduçãodos grupos
propõe que a eficáciado reforço simbólicoàs relações de dominação reside, por um lado, a dominantes nas sociedades altamente diferenciadas onde se desenvolveuessa instituição
partir de Weber,no reconhecimento,pelos dominados, da legitimidade da dominação,um particular, o Estado burocratizado. Tal importância deriva diretamente do longo processo
dos resultados da luta pela imposiçãodo sentido e, por outro, para além de Webere de novo quedeu origemà emergênciado estado,caracterizado~ornoum "pr~~essode c~ncentra~ão_de
com Marx, no desconhecimentodas relaçõesde força que fundam tal legitimidade. diferentesespéciesde capital",particularmente o capital de forçafIS1ca,o capital economico
Para além disso, o argumento recusa a alternativa entre estruturalismo e interacionismo e, por fim, 0 capital cultural (BouRDIEU, 1993,p. 51).Trata-seaí de dinâmicas estreitamente
ou, mais precisamente,entre "saberse os sinais de submissãoque os subordinadosoferecem relacionadas.A concentraçãodo capital de força física, que correspondeao surgimento pro-
continuamente a seus superiores fazem e refazem continuamente, sem cessar, a relaçãode gressivodo exércitoe da polícia,dependeda concentraçãode capitalec_onô:11ico, co~cretizada
dominação ou se, ao inverso,a relaçãoobjetivade dominação impõe os sinais de submissão" numa estrutura fiscalcomplexa,que, por sua vez, dependede um capital mformacional- de
(BoURDIEU, 1994,p. 3).Supõe,então, que toda sociedadeexisteno tempo porque está apoiada que O capital cultural é um tipo particular - para ser gerida. A c~ndição de_sucesso de~sa
sobre "a relaçãoentre dois princípios dinâmicos, desigualmenteimportantes segundo a so- monopolizaçãoprogressivareside na concentração de um outro tipo de capital - o capital
ciedadeem questão.Um delesé inscrito nas estruturas objetivas[...] e outro, nas disposições simbólico objetivado, presente, por exemplo na prerrogativa, apropriada pelo Estado, da
[queos agentesapresentamcom relação]à reprodução"(BouRDIEU, 1994,p. 3).A reprodução nomeaçãoe da certificação. . · _ .
social é, nessa lógica, o resultado das estratégiasde reproduçãoque os indivíduos imple- Essas mudanças provocam uma transformação nas estratégias de reproduçao.O cresci-
mentam a partir do encontro entre essas duas dimensões. mentoem importânciado capitalcultural,por exemplo,correspondeà passagemde uma lógica
Asfamiliassãoas autorasdessasestratégias,quepodemse dar em domíniosmuitodistintos. dinástica, fundada num modo de reprodução familiar, a uma lógica burocrática, fundada
Elaspodemganhar a forma de um "investimentobiológico",comoé o casodaquelasque dizem sobreum modo de reprodução"comcomponenteescolar"(BoURDIEU, 1994,p.10).O processo
respeitoà fecundidadee que guiam as decisõesde se ter um maior ou menor número de filhos. de construção do Estado é, ao mesmo tempo, um processode desnaturalizaçãoassociadoao
Podemtambémestar associadasa estratégiassucessórias,queorientam,por exemplo,a definição rompimento progressivocom as lealdadesde base familiar. Com a desvalorização~os laços
do herdeiro,cujo objetivoé evitar grandes perdas no processode transmissão do patrimônio. familiares, o diploma deixa de ser "um atributo estatutário" para se tornar um bilhete de
Podemse apresentartambémcomoestratégiaseducativase/oucomoestratégiasde investimento entrada (BouRDIEU, 1994,p. 10).Estão reunidas, assim, as condiçõespara que o sistema de
econômico.Podem,igualmente,assumira formade investimentossociais- para estabelecere/ou ensino possa se tornar um elementofundamental dos processosde reprodução social.
cultivarrelaçõesquepossamsermobilizadasem algummomento.Podemser,por fim,estratégias O modo de reprodução com componenteescolar opera a partir de uma lógicaestatística:
de investimentosimbólico,que visam conservarou aumentar o capitalde reconhecimento.As "a escola só pode contribuir para a reprodução de uma classe (no sentido lógico do termo)
estratégiassãopensadascomoum sistema.Issosignificaquea maiorou menorênfaseatribuídaa se sacrifica alguns dos seus membros que poderiam ser poupados se estivesseem vigor um
uma pode ser efeitode operaçõesde compensaçãocomrelaçãoa outra.Estratégiasmatrimoniais modo de reproduçãomais controladopela família" (BouRDIEU, P:
1994, 10).Além disso.'ela
podemcompensarestratégiasde fecundidademalsucedidas,assimcomoestratégiasde investi- só pode desempenhar essa função se as crianças menos providas de capital cultural esteJam,
mentoeconômicopodem compensarestratégiaseducativasquenão deram certo. e não por acaso, mais inclinadas à autosseleção.Por conseguinte,o sistema escolar só pode
Apenasuma "análise histórica das estratégias que, em contextosmuito diferentes,agen- desempenhar suas funções de reprodução enquanto essa função for dissimulada.
tes [sociais]muito diferentes implementam" para garantir a continuidade que sua posição Vê-se, dessa maneira, como afirma mais explicitamente Passeron (1986),que o modo
dominante oferece;portanto, condiçõespara se compreendercomose dá a reproduçãosocial de reprodução com componenteescolar só pode funcionar enquanto a ilusão meritocrática
(BouRDIEU, 1994,p. 5). Analisar um sistema de estratégias exige,por um lado, examinar a estiver produzindo plenamente seus efeitossociais e simbólicos.
composiçãodo patrimônio que está sendo transmitido, descrevendomuito precisamenteo
peso relativo nesse patrimônio das diferentes espéciesde capital - cultural ou econômico, Referências
sociale simbólico,por exemplo.Por outro, é precisolevar em conta a dimensão institucional BOURDIEU,P. Esprits d'État. ARSS, v. 96-97,p. 49-62, 1993.
que enquadra tais estratégias.Bourdieurefere-sea essa dimensão como o "estadodos meca- BOURDIEU,P. Stratégies de reproduction et modes de domination. ARSS, v. 105,p. 3-12, 1994.
nismos de reprodução"num momento dado. Tais mecanismossão, entre outros, o mercado, J.-C.Hegelou le passager clandestin.La reproduction social et l'Histoire. Esprit, p. 63-81,
PASSERON,
em especial,o mercado de trabalho; o direito, principalmente o direito de herança e as leis juin 1986.

REPRODUÇÃO 315
314 REPRODUÇÃO
177. REPRODUÇÃO
(A):ELEMENTOS
PARAUMATEORIA
DOSISTEMA
DEENSINO faculdadesrealizadano Centre de Sociologie Européenne sob a direçãode Bourdieue publi-
cada em Les héritiersem 1964.A demonstraçãohavia sido feitatambém em outros países:nos
(La reproduction: éléments pour une théorie du systeme d'enseignement)
EstadosUnidos,peloRelatórioColernan,encomendadopeloU.S.OfficeofEducationem obediên-
cia ao CivilRightsAct de 1964e publicadoem 1966;na Grã-Bretanha,uma série de relatórios
Ana Maria Fonsecade Almeida
J encomendadospor órgãosdo governo- EarlyLeaving(1954),Crowther(1959),Robbins(1963).
BOURDIEU,P; PASSERON, J.-C.A reprodução:elementospara uma teoria do sistema de ensino. A contribuição particular do livro encontra-se na ambição em "tratar corno um objeto
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975. sociológicoaquilo que se apresentavano debatepúblico cornoum nó inextrincável de proble-
mas de política pedagógica" (PASSERON, 2007).Além disso, ele marca a posição singular do
Livroescrito por Pierre Bourdieue Jean-ClaudePasseron,A reproduçãoapresentaexten- grupo de pesquisadores reunidos no Centre de Sociologie Européenne frente aos debates
sivamente a teoria da violência simbólica, hipótese construída para explicar a contribuição sobre a reprodução social que mobilizavamautores de inspiração marxista. O livro apre~enta
da escola para a reprodução social. Publicado na França em 1970e traduzido no Brasil pela urna hipótese alternativa à que Althusser vinha desenvolvendoem seu seminário na ~cole
primeira vez em 1975,apresenta as conclusõesparciais de um percurso coletivode pesquisa Normale Supérieure, condensada no artigo "Idéologie et appareils idéologiques d'E:a~',
sobre o sistema de ensino que, desenvolvidodesde o início da década de 1960no Centre de também publicadoem 1970.Por fim, o livro se alimenta da decepçãodos autores com a eleiçao
Sociologie Européenne, havia dado origem a vários artigos e livros, entre os quais, Les do Plano Langevin-Walloncorno orientador do projeto de reforma educacionalda esquerda.
héritiers (1964). Essas rupturas são expressas no livro em diferentes níveis.'Em termos formais, elas
A reproduçãoé fruto de um contextoparticular que colocoua educaçãoescolarna linha de aparecem na concisão brutal do título, na ambiguidade da epígrafe, cuja reprodução do
frentedos debatesacadêmicose políticos.Por um lado,a derrota na SegundaGuerraMundiale o poema "Le pélican", de Robert Desnos, parece propor a revolução ("o pelicano de Jo~athan
lançamentodo SputnikpelaUniãoSoviéticaem 1957,em plenaguerra fria, alimentavana França õe um ovo de onde sai um outro pelicano que, por sua vez, põe um ovo de onde sai outro
P ' ")
um discursotecnocráticosobreo rendimentoescolar.Por outro, crescia,desdeo iníciodo século pelicano e isso pode continuar por muito tempo se não se fizer a~tes urna omelete '.mas a
XX,a percepçãodas desigualdadeseducacionaiscornoum graveproblema social.Decorrente, partir de um poeta cuja notoriedade deriva também do seu rompimento com o movimento
pelo menos em parte, das transformaçõesna concepçãode justiça socialadvindas da revolução surrealista no momento em que este se aproxima do partido comunista, no final dos anos
russa, essapercepçãoera aguçadapelaspressõesoriginadasdas mudançasdemográficaspor que 1920.Finalmente, mas não menos importante, elas aparecem também n'o formato do livro,
passavaa sociedadefrancesano pós-guerra,em especiala chegadada geraçãodo baby boomaos composto por duas partes muito desiguais. A primeira reúne urna série ~e "proposiç?_es"a
anos finais do ensino primário, ao longoda década de 1950,forçandoo aumento de matrículas que se seguem observações complementares, "escólios",convidando o leitor a associa-lo a
no ensinosecundário.Elaera alimentadatambém por pressõesdas familiasdos grupos médios certos tratados filosóficos,apenas para desfazer essa impressão na segunda parte, quando
pelo alongamentoda escolarizaçãodos seus filhos, num contexto em que o desenvolvimento resultados substantivos de pesquisa empírica são apresentados como apoio e condição das
do setor terciário e o avanço da tecnologiapermitiam que as credenciaisescolarespudessem afirmações adiantadas anteriormente. .
ser vistas cornobilhetes de entrada para ocupaçõesmais rentáveis. Em termos substantivos,o livro desenvolvea teoria da violênciasimbólicacomo teona da
Tudo isso ajuda a explicar a difusão de um sentimento de "crise da educação" que a am- açãopedagógica,marcandourna ruptura substantivacom"todasas representaçõesespontâne~ e
biguidade das reformas emanadas do gaullisrno não ajudava a superar, na medida em que todasas concepçõesespontaneístasda açãopedagógicacomoaçãonãoviolenta''(LR,11).Focaliza
buscava ampliar simultaneamente a formação de elites técnicas e científicas e o acesso ao fundamentalmenteo exercícioda açãopedagógicae os arranjosinstitucionaisque permitem tal
ensino secundário e superior aos grupos médios até então excluídosdas trajetórias escolares exercícioem contraste,por exemplo,comLa noblessed 'État,queexaminaaquelesque a sofrem.
) fi
(C

de longa duração. Tais reformas deparavam-se com a oposição dos professores,sindicatos e A primeira parte do livro apresenta,ainda segundo os autores,o resultado de um es orço
partidos de esquerda. Esses últimos, na ausência de um projeto próprio, apoiavam-sesobre para constituir, num sistema passívelde controlelógico,por um lado, proposiçõesq~e foram
o plano de reforma elaborado por dois eminentes intelectuais ligados ao Partido Comunista construídas para e pelas próprias operaçõesde pesquisaou que a~a~ecer~~comologica~ente
Francês, Paul Langevin e Henri Wallon, ao final da ocupação nazista, segundo o qual a "de- necessáriaspara fundamentar seus resultadose, por outro,proposiçoesteoncas que permitiram
mocratização do ensino" necessária à implementaçãoda "justiça na escola""deveser coman- construir, por dedução ou por especificação,as proposiçõesdiretamente passíveisde cont:ole
dada" não mais pela classe social,mas pela "capacidade"individual de "preencher a função". empírico"(LR,9).A segundaparte, por suavez,reúneum conjuntode quatro artigos:onstrmdos
Concretamente,A reproduçãopoucoacrescentouà demonstraçãojá amplamenteconhecida em torno de análises empíricas que devem ser consideradas,segundo os autores, como urna
e debatida da desvantagemdas crianças oriundas dos grupos mais desfavorecidosno sistema aplicação, a um caso historicamente determinado, de princípios que, por sua generalida~e,
de ensino.,NaFrança, por exemplo,isso havia sido objeto dos estudos coordenadospor Alain autorizariam outras aplicações,ainda que essas análises tenham servido de ponto de par~da
Girard no Institut National d'Études Démographiques (INED),cujos resultados estavam à construção" dos próprios (LR,9). Cada artigo aborda uma dimensão do sistema de e~~mo,
sendo publicadosdesde o final dos anos 1950,e da pesquisa coletivasobre os estudantes das tratando sucessivamentesuas funçõesde comunicação,de inculcaçãode uma cultura legitima,

317
REPRODUÇÃO(A): ELEMENTOSPARA UMA TEORIA DO SISTEMA D_EENSINO.
316 REPRODUÇÃO(A): ELEMENTOSPARA UMA TEORIA DO SISTEMA DE ENSINO. (La reproduction: éléments pour une théorie du systéme d'ense1gnement)
(La reproduction: éléments pour une théorie du systéme d'enseignement)
~e seleçãoe, p~r fim, de legitimação.Elespermitem explicitaro sistemade relaçõesque une "o as classificações,semprevisam à produçãode efeitossociaise, consequentemente,contribuem
sistemade en:~º e a estruturadas relaçõesentreas classessociais"(LR,9),pontocentralda obra para designar aquilo que descrevem.A linguagemtem o poder de instituir o mundo porque,
Sua amb1çao,como explicam os autores logo no preâmbulo é indicar por um lad " · ao nomeá-lo,contribuipara a estruturação da percepçãodo mundo.
"d d ' · d ' ' o, a
U~I a e teon~~ ~ todas as açõesde imposiçãosimbólica(LR,9), sejaela exercidapelo curan- Essa capacidadeque as práticas de categorizaçãotêm de produzir efeitossociais está no
deiro, pelo feitice~;º•pelo p~dre, profeta, propagandista, professor,psiquiatra, psicanalista cerne da teoria da magia de Bourdieu: "fazer coisas com palavras" na versão sintética que
e, por outro lado, o pertenc1mentodessa teoria das ações de violênciasimbóli·ca[ J o autor propõe da teoria linguística de John L. Austin sobre os efeitos performáticos dos
teona· gera1da v10
• l'encia e da violêncialegítima" (LR,9). ... a uma
enunciados (PC, 159).No entanto, se a análise do tipo austíníano tem para Bourdieuo mé-
Objetode recepçãocontroversana França e em outros países inclusiveno Bras1·1 a t · rito de subordinar a questão das propriedades retóricas do discurso à tese de sua eficácia,a
r .
con mua a ser mtensamente mobilizada nos estudos sobre a escola.
) ) eona investigaçãodessesefeitosnão pode encerrar-se,segundo ele,nos limites da linguística. Isto
porque a eficácianão está nem no formalismodo rito, nem na metalinguagemdo analista que
Referências reproduz,sob a forma de paráfrases, as representaçõesnativas;ela está fundada, ao contrário,
PASSERON, J.-C.Que reste-t-ildes Héritierset de la Reproduction(1964-1971)auJ·ourd. 'h ·, Q t· nas condiçõessociaisquedão poder à palavra"ritual".Opodersimbólicoda palavra- qualidade
,h d u1. ues 10ns,
met o es, conceptset réception d'une sociologiede]' éducation. SacialogicalResearchOnline que a torna apta a constituir o dado pela sua simples enunciação- reside em sua habilidade
Il. 6, p. 13, 2007. 'V. 12'
em "fazer crer".Para obter a persuasão implicadaem toda forma de crença, é necessário,no
entanto, respeitar certas regras de verossimilhança ou de aceitabilidade dos discursos. A
mais importante delas é deixar na obscuridade o arbitrário de toda classificação.A crença
178. RITO(de instituição)
depende da confiançana autenticidade do sistema de categorizaçãoposto em operação em
.. . ····················································································································
diferentescampossociais.Todaexibiçãodo artificialismodessaconstruçãoafetaseu poder de
Paula Mantera convencimentoe, consequentemente,sua eficáciasimbólica,arriscando-se o oficiantede ser
acusado de manipulador ou charlatão.A segunda, não menosimportante, é aceitar as regras
Na antropolog_ia po~í~ic~ de Pierre Bourdieuos ritos são tratados como práticas simbóli- tácitas do jogo do reconh~cimentoe da autoridade.A capacidadeperformativa das palavras
cas aptas ª confenr legitimidade social a coisas e pessoas. Nesse sentido, os ritos religiosos e dos ritos depende da autoridade de quem os profere. E esta não pode ser usurpada; deve,
repres~nta~ ap~n~sum caso particular de todo rito social. Retirando o conceitodo campo
!ª socwlogiar~hg10saonde ele foi tradicionalmenteelaboradoe aplicado,o rito se torna, na
bra de Bourdieu, um operador analítico-chavepara a compreensãodo funcionamento de
necessariamente,ser delegada.O simbolismoritual não agepor si mesmo,observaBourdieu;
a observância rigorosa do código litúrgico que rege os gestos e as palavras sacramentais
apenas representa esse contrato de delegaçãoque une o oficiantea seu público (PVD,115).
certas formas de poder em nossa sociedade.
Na teoria do poder simbólicode Bourdieu,o reconhecimentoconstitui, pois, uma condi-
. Lévi-St~auss (1971,P· 600-602)já haviadefinidoos ritos comoatosrepetitivosvinculadosaos
ção fundamental da eficáciados ritos. Para que a palavra, ou o rito, possa ser eficaz,aquele
mitos que tem por função condensarde maneira concretae unitária um sistemade ideiase de que o professadeve ser reconhecidocomo autorizado a falar, pois os enunciadosnão podem
r_epresentações. Aosubtrairgestose objetosde sua manipulaçãorotineira,0 ritual promoveuma
pretender impor-se apenas pela força.É preciso,sobretud~,que certas formas coletivamente
linguagem~~m forte eficáciasimbólica,isto é, dotada de capacidadede promovera convicção reconhecidasde autoridadetenham sido aceitascomolegítimas:"qualquerum não pode dizer
em sua habilidadepara produzir efeitosesperadossobre o mundo. A eficáciasimbólicareside qualquercoisa",observaBourdieu(PVD,68). Seesta condiçãoestá na base da eficáciamágica,
~enos no q~edize~ e~sesgestosdo queno modo comoelesdizem.SegundoLévi-Strauss,todo a análise de sua dinâmica não pode separar o poder simbólicoincorporado nas palavras das
1
: to lançamao de dmstiposde procedimento:o de divisão- atribuiçãode valoresdiscriminativos condiçõessociais que lhe conferiram sua razão de ser. Mas como opera o poder simbólico
as menoresnuances no interior de uma classede objetosou tipos de gestos- e o de repetição
nas práticas rituais? Sua dinâmica está fundada em duas operações básicas: s.eupoder de
de mesm~fórmulainfinitasvezes.Para Lévi-Strauss,o recurso sistemáticodo rito a essestipos instituição do social e seu poder de consagraçãoda autoridade.
de ~rocednnentoscomplementaresexplica-sepela oposiçãoentre as formasde pensar do mito,
A faculdadede instituição do socialinerente às práticas rituais deriva do fato de que elas
ma~sabstrat~s,e do rito, mais voltadaspara a fluidezdo vivido.Bourdieuinverteesta oposição estão investidas do poder que o grupo lhes conferiupor delegação.Apoiadoem um acordo
lev1sstr~uss1anaentre vida e pensamentona qual o rito representaapenaso "abastardamento
tácito entre oficiantee oficiadoa respeitodos esquemasde percepção,o ritual naturaliza a in-
c~nsentidod~~ensamento_quando submetidoà servidãoda vida" (LÉVI-STRAUSS, 1971,p. 603) corporaçãode certas maneiras de ver,de falar,de apreciar,porque o faz não sobreas ideiasou
e mve:~epos~tiv~mente a logicadas práticas das mesmas operaçõesmentais inerentesao rito. sobrea consciência,mas sobreo própriocorpo.Quantomais dolorosaessaformade instituição,
~s pra~cas rituais_passa~a ser compreendidascomo o produto do sensoprático e não de um observaBourdieu,quantomaior o sofrimentocorporal,a asceseou a exigênciade treinamento,
sistemaabstrato e mconsc1ente.Em seu livro Ce queparler veut díre (1982) Bo d' fir
di ·d· , ur 1eua ma mais fortementeo instituídose enraízano habitus. E ainda, quantomais enraizadonas formas
que VI Ir ou c1assificaré prática inerente ao senso comum e, por mais arbitrárias que sejam

3l 8 RITO (de instituição) RITO (de instituição) 319


corporificadasdo habitus, maioro poder de convencimentoda autoridadedas palavrase gestos:
desseenraizamentodependea persuasãode autenticidadedaqueleque oficia.
Os ritos de consagraçãotêm, por sua vez, o poder de promoveruma mudança no estatuto
ontológicode coisase pessoas. Eleso fazem por meio da atribuição de valor. Para Bourdieu,
o valor está diretamente associadoàs formas de circulação das pessoas e das coisas.Quanto
mais longo o fluxo de consagração,maior será a energia social consumida na circulaçãoe,
consequentemente,maior a capacidadede um ciclo ritual de conferir autoridade (PC, 170).
Essadinâmica se torna perfeitamentevisívelnos campossociaismais distantes dos interesses
diretamente econômicos.Nas artes, no jornalismo, na academia e até mesmo na política, a
complexidadedos ritos de consagraçãodemonstracomo os processosde legitimação,isto é, as 1
formas de dominaçãoque se desconhecemcomotais, só se efetivampor meio da procuração i
i,

e do consentimentodos dominados.
A antropologiapolíticade Bourdieupode ser decifradanessaleitura dosjogosde produção
de legitimidade,nas quais os ritos são instrumentos essenciais,como forma de desconheci- ·:19. SARTRE, JEAN-PAUL (1905-1980)
mento. Em sua crítica ao conceitode ritos de passagemde Van Gennep,o autor sublinha que 1 ·······················································································································
Gisele Sapiro
o maior efeitosocial do rito não é celebrar a passagem,mas sim consagrar uma diferençade
modo a fazê-la existir como distinção social ou como exclusão.Na verdade, o efeitosocial
i
A figurae a obra de Sartre constituírampara Bourdieu,ao mesmotempo,um modeloe um

i'
do rito não é separar os que passaram por ele daqueles que ainda passarão, mas, sobretudo, repúdio (BoURDIEU, 1993)."Aspirantea filósofo"em uma épocaem que o existencialismoera
diferenciaraquelesquepodempassar daquelesque nunca o farão.Os ritos instituemfronteiras a corrente dominante no campo intelectual,o futuro sociólogoficoumarcado intensamente
e identidades;ao fazê-lo,consagram direitos,limites, competências.A ação política começa, por um pensamento que estava em contato com as coisas da vida corrente e com o mundo
pois, com a denúncia dessa adesãoimpensada ao arbitrário das classificações. contemporâneo.Apesar de nunca ter encontrado Sartre, Bourdieucolaborouem sua revista,
1
1
Les Temps Modernes, na qual publicouquatro artigos, entre 1962e 1971.A partir dessa data
Referências J é que, abertamente, ele toma suas distâncias com o filósofo.
AUSTIN,J.-L.How To Do Things With Words. Oxford: Clarendon, 1962.
LÉVI-STRAUSS, C. L'Homme nu. Paris: Plon, 1971.
j
i
O confrontocom a antropologiade Sartre,transformadapor eleno tipo idealdo subjetivis-
mo, teveuma incidênciaconsiderávelsobrea gêneseda teoria do habitus (SAPIRO, 2001;2004).
Ao mecanicismodas teorias behavioristasque explicamas emoçõespor suas causas, Sartre
t substitui,em Esquisse d'une théoríe des émotions (1938),uma abordagemde fenomenologia

l
psicológicaque privilegia uma explicaçãode tipo finalista, considerandoas emoçõescomo
condutasinferiores,mágicas,irracionais.Sartre rejeitatambém a abordagempsicanalíticaque
explicaa emoçãopor meio dos vínculos,simultaneamente,de causalidadee de compreensão
1 (a simbolização).Do mesmo modo, em L'Être et le néant, descarta a explicaçãofreudiana
do comportamento pelo inconsciente,substituindo-a pela noção de "má fé" para preservar
·J a transparência da consciênciaa si mesma e, portanto, sua liberdade.A partir de semelhante
J

l
abordagemfinalistae antideterministadas condutas (mesmoirracionais),é que Bourdieuirá
desenvolvero conceitode estratégia, e encontramos em sua sociologiada adesão a ideia da
crençano jogodefendidapor Sartre.Em compensação,elerejeitao princípioda não sinceridade
da emoçãoe a radicalização,em L'Être et le néant, da tese sobre a liberdadede escolhaentre
a interpretaçãorriágicaou técnica do mundo, além de se insurgir contra a análise da má fé.A
indignaçãocontra o que Bourdieuirá definir,mais tarde, comoum erro intelectualistaé uma
das molas propulsarasde sua elaboraçãode uma teoria da prática e do conceitode habitus.
Tendoem vista superara oposiçãoentre subjetivismoe objetivismoque, nessemomento,se
apresentavasob as aparências,por um lado,da fenomenologiae, por outro,do estruturalismo.(e
do marxismo),o conceitode habitus, comoprincípiogeradordaspráticasindividuaisquepermite

320 RITO (de instituição) SARTRE, JEAN-PAUL (1905-1980) 321


explicara capacidadedosagentesde seorientaremno mundosociale de adotaremcondutasadap- se questiona sobre as condiçõesde possibilidadeda tomada de consciênciae, menos ª,inda,
tadasàs condiçõesobjetivassemobedeceremexplicitamentea uma regra,operauma rupturacom sobre as condiçõesde atribuição de sentido a um porvir que é suficiente,segundo o ~os~fo,
o dualismosartreano. Para Sartre,a consciênciaé liberdadecom a condiçãode negaro peso da para alicerçara ação revolucionária.Ora,no entenderde Bourdieu,a recusa das pote~cialida-
inérciadopassadoe do corpo.Ocorpoé facticidade,estádoladodas coisas,dosobjetos,doviscoso, des objetivase do sentido obje~ivo"conduzSartre a confiar à iniciativaabsolutados agentes
do gosmento;eleé "corpo-para-os-outros", e esseolhar dos outros,ao objetivá-lo,transforma-o, históricos',indivíduos ou coletivos,como'o Partido', hipóstase do sujeitosartreano, a tarefa
em um "corpoalienado".Se Bourdieunão admite a "nadificação"[néantisation]sartreanà da indefinida de arrancar o todo social, ou a classe,da inércia do 'prático-inerte"'.
consciência,queestána origemda transcendênciado sujeitoe do dualismo,do mesmomodoque Crítico severotambém da figura do "intelectual total", "engajadoem todas as frentes de
tambémnão aceitaa refutaçãodo inconsciente,Bourdieuestariapronto,sem dúvida,a concordar combatedo pensamento",encarnado por Sartre, Bourdieuprestou ao filósofo,por ocasiãode
comSartreem sua concepçãodo corpocomolugardas inérciase da alienação,se o filósofonão o sua morte, uma homenagem discreta na London Review of Books (1980b),_numtexto em
tivessetransformadona própriaessênciado corpo.Pois,comoeleexplicaem um artigode 1977 que analisa a emergênciade um campo intelectual. No entanto, se, como M1chelFoucault,
intitulado"Remarquesprovisoiressur la perceptionsocialedu corps",a alie_nação pelo corpo é ele se desvincula desse modelo para adotar uma postura mais modesta que leva em conta a
um sentimentodistribuídode formadesigual,segundoas condiçõessociais:assim,o constrangi- divisãodo trabalho de perícianas ciênciashumanas e sociais,Bourdieunão deixa de esp~sar
mento- que é "a experiênciapor excelênciado 'corpoalienado"'(1977,p. 52)- é encontradocom a dimensão crítica do compromissoque eleteorizará atravésda noção de intelectualcoletivo.
maiorprobabilidadenas classesdesfavorecidas, aopassoquea experiênciaoposta,a desenvoltura
(corporal),é maisfrequenteentreosmembrosda classedominantequedetêmo poderde definição Referências
e de imposiçãodasnormasestéticaslegítimas(usose regrasde cortesia,maneirade se comportar, BOURDIEU,P. Remarques provisoires sur la perception sociale du corps. ARSS, n. 14, avr. 1977·
de sevestir,oposiçãoentre o elegantee o vulgar,etc.). BOURDIEU,P. Le mort saisit le vif: les relations entre l'histoire réifiée et I'histoire incorporée. ARSS,
Mas o corpo não é simplesmenteuma coisa,ele não é "em si",já que é também o lugar da n. 32-33,avr./juin 1980a.
invençãoe da improvisaçãodas condutas ajustadas às situações. Ora, esse corpo que é tão BOURDIEU,P. Sartre. London Review ofBooks, v. 2, n. 22, p.11-12, 20 nov./3 dez.1980b.
grudado em seu ser,não o é suficientemente,segundo Sartre, a ponto de não poder ser mani- BOURDIEU,P. À propos àe Sartre ... French Cultural Studies, v. IV,p. 209-211,1993. . .
pulado livrementeem função da representaçãoimaginária de um cargo ou de um papel a ser BOURDIEU,P. Entretien avec Franz Schultheis Der totale lntellektuelle. Ein Gesprãch_mit :ierre
desempenhado,como é ilustrado pelo exemplodo garçom de bar. Este, escreveSartre (1987, Bourdieu über Jean-Paul Sartre. Süddeutsche Zeitung, v. 99, 15 apr. 2000 (trad. françaISe:L l~t~l-
p. 95-96),representao papel de garçom de bar de maneira a realizar sua condição,em função lectuel total. Dialogue avec Pierre Bourdieu sur Jean-Paul Sartre. L'Année Sartrienne, v. 15, JUlil
da representação que ele tem do cargo, e descartando os possíveis que não estão inscritos 2001, p. 194). . IDT
nessa condição (comoo fato de não se levantar às cinco horas da manhã e de ficar na cama, SAPIRO,G. Pourquoi le monde va-t-il de soi? De la phénoménologie à la théorie de l'habitus. ln: , . '
correndo o risco de ser despedido).Bourdieu volta ao tema com um olhar crítico, em um G. (Org.).Sartre, une écriture en actes. CahiersRITM 24 (Publidix, Université de Nanterre), Sene
artigo intitulado "Lemort saisit le vif" (1980a,p. 8):"O garçom de bar não representa o papel Études Sartriennes, v. VIII, p. 165-186,2001. .
de garçom de bar, como pretende Sartre.[ ... ] Seu corpo, no qual está inscrita uma história, · . d h , • d I' habitus suivi d'un entretien avec
SAPlRO,G. Une liberté contrainte. La format1on e 1a t eone e , . .
molda-se à sua função, ou seja, uma história, uma tradição que ele nunca tinha visto senão Pierre Bourdieu. ln: PINTO,L.; SAPIRO,G.; CHAMPAGNE,P. (Orgs.).PierreBourdzeu,socwlogue.
encarnada em corpos, ou melhor, nos hábitos 'habitados' por determinado habitus a que se Paris: Fayard, 2004. p. 49-92. . d
atribui o nome de garçom de bar".Assim,segundo Bourdieu,o corpo não é um autômatoque • et le néant. Essaz
SARTRE,J.-P.L'Etre · · d'ontozog1e
· phenomeno
' ' log1
·que(1943)· Paris: Gallimar ,
obedeceaos ditames da consciência,mas tem seus próprios princípiosde inércia.Alémdisso, 1987.(ColeçãoTel.).
os possíveisnão estão distribuídos de forma igual, segundo as condiçõesde existênciaou a
posiçãoocupadano espaçosocial.O senso prático é aqueleque tende a ajustar as expectativas
1so.SC/ENCE
DE LASC/ENCE
ETRÉFLEXIVITÉ.
COURSDU COLLEGE
DE
subjetivasàs oportunidades objetivase, portanto, o possívelao provável.Ao projetar sobre o
garçomde bar suasprópriaspossibilidades,Sartre cometeo erro intelectualistapor excelência. FRANCE(2000-2001)
························--·····
...-..........................................
.
Bourdieu (1993,p. 209) rejeita a concepçãosartreana da má fé ou da alienaçãocomo "a ··································································· Sylvia GemignaniGarcia
abdicaçãolivre da liberdade em benefíciodas exigênciasda 'matéria trabalhada"'. De acordo
com Sartre, o operário do século XIX"faz-se o que ele é" livremente,em sua livre práxis. O lfl · · ' C d C li' de France (2000-2001).Paris:
BOURDIEU,P. Sciencede la scienceet re1 ,ex1v1te. ours u o ege
objetode contestaçãopor parte do sociólogoé essaliberdadede se desembaraçarde seupassado
Raisons d'agir, 2001.
para se projetar em um porvir, essa faculdade de conferir um sentido ao futuro, segundo a
palavra de ordem revolucionária,de vislumbrar outro estado de coisaspossível,de maneira a Publicadono final de 2001,o curso ministrado no Collegede Franceparte da conStataç~o
tomar consciênciada rigidezda situaçãopresente.Com efeito,segundoBourdieu,Sartre não de que a ciência,e especialmentea ciênciasocial, encontra-seameaçada em sua autonomia.
323
322 SARTRE, JEAN-PAUL (1905-7 980) SCIENCE DE LA SCIENCE ET RÉFLEXIVITÉ. COURS DU COLLEGE DE FRANCE (2000-200/)
1
i

Na perspectiva realista da sociologia como ciência da ciência, Bourdieu reconstrói a Essa é, sem dúvida, a razão pela qual invertendo a ordem de exposição de Esquisse,
problemáticada sociologiada ciência,que oscila entre o logicismoe o relativismoem torno que colocavaos estudos empíricosantes da discussãoteórica, Le sens pratique começapor
da questão da gênesecontingente de verdades universais. Entre "a visão encantada" de Ro- apresentar uma primeira parte epistemológicaque visa apontar tais vieses. Ao contestar
bert Merton e "o segredo de polichinelo" de Bruno Latour, destaca-se o lugar concedidoa no preâmbulo a oposição binária entre subjetivismo e objetivismoque serve de estrutura
ThomasKuhn, que aponta para uma soluçãosociotranscendentalda antiga oscilaçãoentre ao debate sobre a abordagem.adequadanas ciênciassociais,Bourdieu dedica um capítulo a
dogmatismo e ceticismo. cada uma dessas opçõespara mostrar seus respectivospontos fortes e limitações (cf.verbete
Interpretara ciênciacomoum campoé considerá-laum aparelhode construçãocoletivaque, "Conhecimentopraxiológico").
pelocontroledos mecanismosde admissão,fecha-sesobresi mesmo,impondo,internamente,a Se o _objetivismo tem o mérito de romper com a experiênciaprimeira do mundo social,ao
arbitragemdo "real".Analisaro campocientíficoé observarempiricamenteesseespaçosociocog- estudar as relaçõesobjetivasque a sustentam,issose dá ao preçoda ocultaçãodessaexperiência
nitivoextraordinário,estruturadopor uma espécieparticular de capitalsimbólicoque operana e de seu caráter pré-reflexivo.Tal ocultação acarreta um viés intelectualista ná medida em
comunicaçãoe na circulação,fundado,ao mesmotempo,no conhecimentoe no reconhecimento. que leva a aplicar ao real as categoriasconstruídas pela análise, colocandoentre parênteses
A lógicada concorrênciaentre pares impõe aos cientistas(unidospelosconflitosque os opõem as condições próprias à prática corrente, como a urgência, e as situações particulares em
entre si) a troca racionale o uso de todos os mecanismosacumuladosde universalização.O re- que ela se desenrola. As opções, os possíveis,nunca se representam aos agentes segundo a
conhecimentoda verdadeassentana experiênciacoletivareguladapor normas de comunicação, sistematicidadeque caracteriza a análise erudita. Para ilustrar seu ponto de vista, Bourdieu
argumentaçãoe verificação,de modo que a objetividadeé o produto intersubjetivodo campo, retorna aos exemplosdesenvolvidosem Esquisse:a linguística estrutural, que transforma
sendoo campocientíficoum lugarhistóricoqueproduzverdadestrans-históricas. a língua em seu objeto em detrimento da fala, e a antropologia estrutural, que passa das
Faceaos obstáculossociais à autonomizaçãoda ciência social,a socioanálisedo espírito regularidades à regra sem se questionar sobre as lógicas da ação, reduzida à execução.A
científicorevela as condiçõessociais de possibilidadeda construção sociológicado "real" e antropologia imaginária do subjetivismo,abordada no capítulo 2, é apreendida através da
do sujeito dessa construção.Assim, a reflexividade(comolei comum do campo sociológico) filosofiasartreana, que constitui sua forma mais extrema, com alusões ao interacionismo
é proposta comoprincípio de liberdade, de controle do erro. Aplicadaao exercíciode autoa- e à teoria do ator racional, que têm em comum uma propensão a conceberas práticas como
nálise, a reflexividadeexpõe o "habitus científicoclivado"do autor, produto do estado dos estratégias orientadas explicitamentepara fins definidospelo sujeitode maneira consciente.
campos da filosofiae das ciênciassociais na França e de uma trajetória pessoal de origem No capítulo 3, intitulado "Estruturas, habitus, práticas",Bourdieufornecea versãomais
provinciana, marcada pela experiência do internato, que situa seu enraizamento na visão elaborada da teoria do habitus. Contra a tendência do objetivismoa hipostasiar as relações
racionalistae também sua ambivalênciaem relaçãoao mundo intelectual. objetivasque ele reconstrói, e contra o subjetivismoque nega qualquer forma de determina-
ção exterior da ação, Bourdieupropõe pensar as práticas e as representaçõescomo produto
de um processo de interiorização das estruturas pelos indivíduos,na forma de disposições.
1s·1. SENSOPRÁTICO,
O (Le sens pratique)
······················································································································· Essessistemas de disposiçõesque compõemo habitus são "princípiosgeradorese organiza-
GiseleSapiro dores de práticas e de representaçõesque podem ser objetivamenteadaptadas a seu objetivo
sem supor a visada conscientede fins e o controle expressodas operaçõesnecessárias para
B0URDIEU,P. O sensoprático. Petrópolis,RJ:Vozes,2009. alcançá-los,objetivamente'reguladas' e 'regulares' sem em nada ser o produto da obediência
a regras, sendo por isso orquestradas coletivamentesem ser o produto da ação organizadora
Publicadoem 1980pelas Éditions de Minuit, essa volumosa obra retoma e sistematizaa de um maestro" (SP,88-89).Essa teoria permite explicar a correlação que se observa entre
teoria da prática que Bourdieuhavia começadoa desenvolverem Esquisse d'une théorie de as probabilidadesobjetivase as expectativassubjetivas,mas também as defasagensem caso
la pratique, publicadoem 1972pela Editora Droz. Ela é compostapor dois livros, Críticada de desajuste das disposiçõese das estruturas (em período de crise, de mudança social ou de
razão teóricae Lógicaspráticas,precedidospor um prefáciono qual Bourdieuretorna às con- confronto com outra cultura): é o efeitoda histeresedo habitus que resiste às mudanças, o
diçõesde produçãodessateorianumaArgéliaemguerra,às referênciasmarcantes- Lévi-Strauss, que implicamuitas vezessanções,comoé ilustrado pela figura emblemáticade Dom Quixote.
JacquesBerque,AndréNouschi,ÉmileDermengheme Charles-AndréJulien- querompiamcom O capítulo4 é dedicadoà crençaprática que Bourdieudefinecomoum" état de corps"(SP,
o etnocentrismopredominantena etnologia,mastambémàs limitaçõesencontradasna aplicação 115).A adesãoa um campo e o senso dojogoque elaimplicaconstituemsua melhorilustrç.ção.
dométodoestruturalaouniversocabila.A inadequaçãodas abordagensexistentespara dar conta Produto do encontroentre um habitus e um campo,essesenso do jogoé uma forma exemplar
da realidade observadalevou-oa analisar os vieses induzidos pela razão teórica quando ela do senso prático.Diferentementedos jogos,em que as regras são explícitas,o funcionamento
tenta pensar a prática: a distância em relação ao objeto reside menos na diferença entre as dos campos sociaisbaseia-se, com efeito,na crença, a illusio, que está na origem de um in-
tradiçõesculturais do que "na diferençaentre duas relaçõescom o mundo, teórico e prático" vestimento às vezes descrito como vocação.Realizaçãoda teoria dos jogos, o senso do jogo
(SP,30),e ela não é específicados objetosda etnologia. é também sua "negaçãoenquanto teoria" (SP,136),como explicaBourdieuno capítulo 5, "A

324 SENSO PRÁTICO, O (Le sens pratique) SENSO PRÁTICO, O (Le sens pratique) 325
i
i

lógicada prática".Ao ter uma visão sinóptica e sincrônica (por meio de esquemas,gráficos, Referências
mapas) sobre uma realidade imanente à duração, a razão erudita dissimula a especificidade BOURDIEU,P. La maison kabyle ou le monde renversé. ln: POUILLON,J.;MARANDA,P. (Orgs.).
da prática, caracterizadapor sua estrutura temporal (irreversibilidade,ritmo, tempo)e pelas Échangeset communications. Mélangesoffertsà Cl.Lévi-Strausspour son601m'anniversaire. Paris-La
possibilidadesque ela oferecede jogo estratégicono decorrer do tempo, assim comopor uma Haye:Mouton, 1970.p. 739-758.
lógica da imprecisão que embaralha qualquer tentativa de reconstrução lógica perfeita. A BOURDIEU,P.Les stratégies matrimoniales dans le systemedes stratégies de reproduction.Annales
ação do tempo é o objeto e igualmente o título do capítulo 6: ela está estreitamente ligada à ESC,v. 4-5, p. 1105-1127,
jul./out. 1972.
incerteza que rege a prática em um mundo que obedece a leis de probabilidade e dá lugar a
diversostipos de estratégias,como é ilustrado pelos exemplosdo desafioe da réplica, ou do
dom e do contradom. É ela que, neste último caso, torna irreconhecívela relação de troca, 122. SISTEMADE ENSINO
dando-lheas aparênciasdo desinteresse.Essetrabalho de substanciaçãoservede fundamento Tânia de FreitasResende
à economiados bens simbólicos,que Bourdieudesenvolveno capítulo 7.Ao refutar o econo-
micismo, que reduz as trocas ao interesse material, ele reintroduz aí a dimensão simbólica, Pierre Bourdieuconstruiu, em grande parte com a colaboraçãode Jean-ClaudePasseron,
inseparávelem sua opinião, da lógicaeconômica."O capital simbólico",título dessecapítulo, uma teoriainovadorae potentesobreo sistemade ensinoe seupapelna sociedade.É verdadeque
constitui, de fato,um crédito,em sentidolato, que se baseia na crençado grupo. Na economia essenão foio objetocentralda obra de Bourdieu,já quesuasformulaçõesa tal respeitosurgema
pré-capitalista,na qual a reproduçãodo modo de dominaçãonão está assegurada,a autoridade partir do enfrentamentode preocupaçõesteóricasmais amplas,referentes,por exemplo,ao des-
política surge da dissimetria das trocas, ou seja, da redistribuição ostentatória,mas também velarnentodos mecanismosde dominaçãosociale à constituiçãode uma abordagemsociológica
de um conjunto de estratégias orientadas para a dominação das pessoas,pelos mecanismos que escapassesimultaneamentedo subjetivismoe do objetivismonas explicaçõesda realidade
próprios da violênciasimbólica,como Bourdieu explicano capítulo 8 ("Osmodos de domi- social(NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004).Entretanto,também é fatoque essateoria ocupapapelde
nação"). No capítulo seguinte retoma o problema do objetivismoe convida a reintegrar ao destaqueentre suas produções,tendo-setornado amplamenteconhecidae debatida,tanto no
estudo da realidade a relaçãosubjetivacom o mundo. A verdade objetivadas relaçõessociais âmbito da sociologiada educaçãoquanto nos camposcientíficoe educacionalde modo geral.
deve-setanto à relaçãode força objetivaquanto à forma denegadaque tal relaçãorevestesob As teses centrais de Bourdieu a respeito do papel da escolana sociedadeforam enuncia-
as aparênciasda legitimidade.Nessecapítulo,"Aobjetividadedo subjetivo",Bourdieudiscute das já em seus primeiros trabalhos, a saber: Les héritiers (1964)e La reproduction(1970),
o conceitoweberiano de "grupos de status" que, segundo ele, "em vez de serem uma forma ambos publicadosem coautoria com Passeron.No prefáciodo livro A reprodução, os autores
diferentede agrupamentodas classes",assemelham-se"a classesdominantes denegadasou, apresentam o princípio que constitui o eixo central da teoria do sistema de ensino por eles
se preferirmos, sublimadas e, por conseguinte,legitimadas" (SP,241). construída: a análise desse sistema considerandosuas relaçõescom a estrutura das relações
O segundo livro inclui três estudos dotados de um valor exemplar para ilustrar a lógica entre as classes(LRp). Assim,combatema ideiada escolacomoinstituiçãoneutra, responsável
própria da prática. Versãorevisada de um artigo publicado nos Annales (1972),o primeiro pela transmissão de um patrimônio cultural pertencentea toda a s·ociedadede modo indiviso.
mostra que as regularidadesdas condutas matrimoniais dos camponesesda região do Béarn Para eles, a tarefa de reprodução cultural precípua à escolanão pode ser dissociada de sua
não devemser analisadascomoo resultadoda obediênciamecânicaà regra sucessora!,segundo funçãode reproduçãoda estrutura social.Nas sociedadesde classes,não se tem "urna"cultura,
a qual o filho mais velho é o herdeiro, mas sim cornoestratégias de reprodução que, à seme- mas diferentes.variantesculturais (arbitrários)em disputa. A cultura consideradalegítimae
lhança do legado da terra ao mais velho,visam salvaguardar a integridade do patrimônio. O transmitida pelo sistema de ensino é, na verdade, o arbitrário cultural dominante, ou seja, a
segundo estudo apoia-sena inadequação da linguagem da prescriçãoe da regra para pensar cultura dos grupos dominantes, sem superioridadeobjetivaem relaçãoàs demais. Os alunos
o caso do casamentocom a prima paralela, que desafiaa regra de exogamiaestabelecidapela chegamà escolaem condiçõesdesiguaisquanto à posse de elementosdessa cultura (na forma
antropologiaestrutural, para se interrogar sobre "os usos sociais do parentesco",de acordo de conhecimentos,habilidades, gostos, disposições,etc. - nos termos de Bourdieu, capital
com os interesseseconômicose simbólicosemjogo.O último capítulo,intitulado "O demônio cultural) e o sistema de ensino, ao tratá-los cornoiguais do ponto de vista formal, acaba por
da analogia",revelaos limites do método estrutural ao ser aplicadoa esquemaspráticos, que reproduzir as desigualdadesiniciais.Mais do que isso,contribuipara legitimá-las,na medida
não têm nem a sisternaticidadenem a coerênciaque a teoria pretende lhes conferir. em que as diferençasnos desempenhosescolares,sob a aparência de neutralidade da escola
,Noapêndiceda obra Bourdieuretomouseu estudosobrea casa cabila(''A casaou o mundo e de suas formas de avaliação,são atribuídas ao mérito individual.
invertido"), escrito para Mélanges, em homenagem à Claude Lévi-Strausse reeditado em Nessaperspectiva,a escolaexercetambém uma funçãomistificadora,em pelo menos dois
Esquisse d'une théorie de la pratique, dando-lhe um estatuto particular corno ilustração sentidos:na medidaem queocultao caráterarbitrárioe socialmenteimpostoda culturaqueveicula
do estado <).nterior de sua reflexãosobre o método estrutural, cuja aplicaçãoé feita aqui com comoneutra e legítima;e na proporçãoem que transformadiferençassociaisem desigualdades
brilhantismo, e como introdução aos estudos mais complexos apresentados em Le sens socialmentelegitimadas,naturalizadascornodecorrentesde aptidõese/oudo esforçoindividuais,
pratique, onde ele mostra os limites desse método. negandoe camuflando,assim,o privilégioculturaldos alunosoriundo~das classesdominantes.

326 SENSO PRÁTICO, O (Le sens pratique)


SISTEMA DE ENSINO 327
A educaçãoescolaré vista, nessa teoria,comoum "trabalhoprolongadode inculcaçãoque Trata-se,porém, de uma ideia que não prosperou nos trabalhos subsequentes,nos quais
produzum habitus durávele transponível",sendoo habitus entendidocomoum "conjuntode o que se mantém, mesmo nos contextosmais recentesde democratizaçãodo ensino em seus
esquemasde percepção,de pensamento,de apreciaçãoe de ação"(LRp,57)que guiaráas respos- diferentes níveis, é o eixo central de análise do sistema escolar como fator de conservação
tas dos sujeitosnas diferentessituaçõessociais.Por meio dessetrabalho realizadopelo sistema das relações entre as classes sociais. No texto "Os excluídos do interior", por exemplo,de
escolar,o Estadoexerceuma açãounificadorasobreas formase categoriasde pensamento,sobo Bourdieu e Champagne, publicado originalmente em 1992, os autores reafirmam a tese
signode uma culturanacionallegítima,baseda ideiade sociedadenacional,culturaessaquenão da reprodução ao defender que o sistema de ensino, formalmente aberto a todos a partir
é, entretanto,nada mais que a cultura dominante,diante da qual os alunosestãodesigualmente do processo de massificação,continua reservando as melhores posiçõesa alguns. Assim, a
posicionados.Assim,o sistemade ensinoune a funçãode inculcação,isto é, de integraçãointe- exclusãocontinua a acontecer,agora "por dentro", de modo mais dissimulado e com maior
lectuale moral,à funçãode conservaçãoda estrutura de relaçõesentreas classessociais(LRp). potencial de legitimação social.
Essa inculcação,a todos os alunos, de um arbitrário cultural que representa a cultura de
origemde apenasuma parte delesconstitui,para Bourdieu,uma forma de violênciasimbólica Referências
que caracteriza a educação escolar.Outra dimensão em que se revela a violênciasimbólica BOURDIEU,P.;CHAMPAGNE,P.Lesexclusde l'intérieur. ARSS, Paris, n. 91/92,mars, 1992.p.71-75.
da ação escolar é a própria forma da comunicaçãopedagógica(do ensino),que constitui, em NOGUEIRA,M. A.;NOGUEIRA,C. M. M. Bourdieu & a educação.BeloHorizonte:Autêntica,2004.
si, um modo arbitrário de educação,exercidopor um poder também arbitrário, o qual reú-
ne, entretanto, todas as condiçõespara dissimular essa arbitrariedade, apresentar-se como 183. SOBRE
A TELEVISÃO
legítimo e ser reconhecidocomo tal. (Sur la té/évision,suivi de L'emprisedu journalisme)
Os exames escolarese seus veredictos,isto é, as classificaçõesescolaresdelesdecorrentes .....................................................................................................................................................
constituem,para Bourdieu,uma ocasiãoprivilegiadapara se observar,por um lado, a arbitra- Patrick Champagne
riedadeda autoridadepedagógicae, por outro, a ocultaçãodessaarbitrariedade,desvelando-se
a lógicade funcionamentodo sistemade ensino.Em diversostrabalhos,e de modo especialno BOURDIEU,P. Sobre a televisão,seguidode A influênciadojornalismoe osJogosOlímpicos.Rio de
texto"Ascategoriasdojuízoprofessoral",o sociólogodemonstraqueestãoemjogo,nas avaliações Janeiro: JorgeZahar, 1997.
escolares,não somente os conhecimentose habilidades efetivamenteensinadospela própria
escola,mas também um conjuntode normas implícitas,de critériosdifusose inconscientesda Em dezembro de 1996, Bourdieu publicou um pequeno livro de capa vermelha com
percepçãosocial,que configuramum verdadeirojulgamentode classe;muitomais do quea cul- uma centena de.páginas, intitulado Sur la télévision, que inaugurava uma nova cole-
tura, uma determinadarelaçãocoma cultura,a qualtem por parâmetroos padrõesdas classes ção, destinada a um público mais amplo, de obras militantes que apresentam, de modo
dominantes (EE).Não obstante,os exames escolaresrealizam-sesob a égideda objetividade, acessível, trabalhos de especialistas em ciências sociais. Esse livro reproduz duas aulas
da racionalidade,da equidade,ocultando a origemsocialdas hierarquias escolarese fazendo, televisionadas proferidas no Collegede France. A primeira delas analisa os programas de
dessas,instrumentos de legitimaçãodas hierarquiassociaisque lhes servemde fundamentoe debates na televisão, enfatizando principalmente os mecanismos de seleção e de censura
que elascontribuempara reproduzir.Dianteda supostaneutralidadedos veredictosescolares, invisíveis, dos quais os jornalistas são os agentes, na maior parte das vezes, inconscientes.
tanto aquelesque fracassamquanto os que têm sucessosão levadosa atribuir seu desempenho A segunda conferência desenvolveuma análise da produção da informação na televisão
ao mérito individual (ou à ausênciadele)e, mais do que isso, são conduzidosa reconhecera a partir do conceito de "campo", além de estudar particularmente os efeitos - sobre
legitimidadedo jogo escolare da cultura que ele reproduz. a produção da informação - da lógica da audiência máxima que exerce uma pressão
A divulgaçãodessavisão críticade Bourdieue de seus colaboradoresa respeitodo sistema particular sobre a televisão. Embora a tonalidade da obra seja mais pedagógica do que
de ensinoproduziu - apesar de todas as críticas recebidase polêmicassuscitadas- um abalo polêmica, e embora o sociólogo não tivesse relatado em seu livro um décimo do que se
definitivoda crença na escolacomo instrumento neutro de justiça social.A equidadeformal ouve habitualmente nas salas de redação e mesmo do que se escreve nos panfletos que os
da prática pedagógica,significandoexigir, de todos, conteúdos culturais que as diferentes jornalistas publicam regularmente sobre si mesmos, Sur la télévision desencadeou uma
classes sociais transmitem de forma desigual e que a escola nem sempre ensina explicita- reação violenta na imprensa.
mente, seria de fato injusta e transmissora de privilégios(EE).Em seus primeiros trabalhos, As reações negativas a esse livro vieram essencialmentedos grandes editorialistas, dos
Bourdieuchegoua esboçar uma forma de escapar desse cicloperverso, a qual consistiria em comentaristas, dos diretores de redação dos jornais de divulgação nacional e dos news
uma "pedagogiaracional e universal que, partindo do zero e não considerandocomo dado o magazines;em suma, do "alto cleromidiático",que ocupa as mais elevadase influentespo-
que apen~salguns herdaram" (EE,53),organizar-se-iametodicamenteno sentido de ensinar siçõesno mundo da mídia e dispõe do poder de influenciara maneira como são construídos
a todos, explicitamente,a integralidade dos conteúdosculturais que constam das avaliações os grandes debates de sociedade e os quadros simbólicosatravés dos quais a vida política
escolares,muitos dos quais implicitamente. é organizada. Mas as reações mais virulentas incidiram sobre os trechos - em número re-

so B RE A TELEVISÃO 329
328 SISTEMA DE ENSINO (Sur la télévision, suivi de L'emprise du journa/isme)
<luzido,mas que não poderiam passar despercebidos- dedicados àquelesa quem Bourdieu do Estado se faz acompanhar pela acumulação maciça de informação - serviços secretos,
atribui o qualificativodefast thinkers,ou seja, os "intelectuais midiáticos",os produtores de pesquisas, recenseamentos,orçamentos,mapas, planos, genealogias,estatísticas -, conver-
fast food cultural, a quem, pela primeira vez, ele iria designar pelo nome justo, negando-se tendo o meta-poder em unificador teórico,um totalizador cujo instrumento por excelência
a atribuir-lhes o título de intelectual. é a escrita, a começar pelos registros de contabilidade.
Busca qualificar a ascensão da nobreza togada, na transição entre a nobreza feudal e a
184. SOBRE
O ESTADO.
CURSOS
NO COLLEGE
DE FRANCE(1989-92) nobrezamoderna, aquelaformada nas escolasde elitedo capitalismocontemporâneo.Subjaz
a esse escrutínio um dos mantras do autor, "a verdade de todo mecanismo políticoreside na
(Sur l'État. Cours au College de France [1989-1992])
••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••o•••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••
lógica de sucessão".Os juristas elaboraram as doutrinas da transição entre a razão monár-
quica e a de Estado, tendo de se haver,desde o início, com os riscos de estorno do patrimônio
SergioMiceli
público - corrupção, nepotismo, favoritismo -:-por parte daqueles grupos, inclusive eles,
BOURDIEU,P. Sobre o Estado. Cursosno Collegede France(1989-92).São Paulo: Companhia das propensos a fazer do Estado sua "casa".
Letras, 2014. Emvezda sucessãode tipodoméstico(o reie a famíliareal),no qualo patrimôniosetransmite
de pai para filho,a reproduçãodosjuristas,dos funcionários,dos intelectuais,passapelosistema
Em vez de cravar no primado do monopóliofiscal,militar e policial,Bourdieumobiliza escolar,pelomérito,pela competência,'pelo diploma.O Estadose opõeà famíliae condenao ne-
as evidênciase as razões capazesde deslindar o caráter e a eficáciados poderes de violência potismo,ao substituiroslaçosprimáriospor lealdadesformais,a sucessãodiretapelareprodução
simbólica exercidospelo Estado, espécie de meta-poder por cujo controle e apropriação se escolar,a designaçãopor instânciaslocaispelanomeaçãodeterminadapelopodercentral.
defrontam os grupos de interesse aptos a atuar no campo político. O Estadoé perpassadopela tensãoentre os herdeirose os arrivistas,entre os que dependem
Reiteraa dimensão simbólicado Estado, espaço de relações de força e de sentido, como dos laços de sangue e a nobreza togada, prensada por-sua vez entre os interesses coletivos
produtor de princípios de classificaçãosuscetíveisde serem aplicadosao mundo social.Tais da corporação em colisão com os apanágios da antiga nobreza e os interessesprivados que
categoriassão formasentranhadasem condiçõeshistóricasde produção,ou melhor,estruturas empurram os togados-ase aliar aos setores do antigo regime. Sendo a um só tempo árbitros
mentais em conexãocom estruturas sociais,comoque retraduzindoas tensõesentre os grupos e partes interessadas, os juristas exercemo papel decisivode legitimar o monarca sem abrir
em oposiçõeslógicas.O desígnio de formular uma teoria materialista do simbólicotem que mão da competênciatécnica em prol da universalizaçãode seus interessescomo detentores
dar conta dessa obediênciageneralizadade que se beneficiao Estado sem apelar à coerção. do capital particular de jurista.
A contundênciadessapegadaseevidenciana passagem,em finsda IdadeMédia,do momento Na condição de mestres do discurso, eles dispõem de um trunfo formidávelde poder:
em que coexisteminúmerasmodalidadesexclusivasde direito- a justiçado rei,a das comunas, fazer crer naquilo que dizem. Sua autoridade lhes permite dizer e fazer como verdadeiro
a das corporações,a da Igreja- à extensãoprogressivada jurisdiçãoreal com o surgimentodos aquilo que lhes interessa.Ao fazer crer que é verdadepara os que têm o poder de fazer existir
prepostos,dos magistradose do Parlamento.A Françae a Inglaterrado séculoXVIIjá exibemo o verdadeiro (os poderosos),os juristas podem tornar real aquilo que dizem. Contam com o
talhe característicodo Estadomoderno:um corpopolíticoseparadoda pessoado príncipe,bem direito como discurso de hálito universal e dispõem da capacidadeprofissionalde fornecer
como dos demais grupamentosatuantes no território da nação,inclusivea nobrezafeudale a razões, ou melhor, de converter evidênciasem arrazoados, pelo apelo a princípios univer-
Igreja.A diferenciaçãodo campojurídico,universosujeitoa leispróprias,sucedeem paraleloà sais, pelo recurso à história, aos precedentes,aos arquivos,à casuísticae às demais fontesda
concentraçãode poder na base do monopólioreal do poderjudiciárioperante as pretensõesdos jurisprudência. A construção do Estado se revela,portanto, indissociávelda emergênciade
senhores.Ajustiçarealarrebanhaas causascriminaisantessujeitasao arbítriodo proprietáriode corporaçõesque nele se enraízam.
terrasou da Igreja,emnomede argumentosad hoccomoa teoriadosrecursos.Em síntese,o cerne O processo de delegação,o qual consiste em parcelamento e multiplicaçãode poderes,
de sua concepçãoesquadrinhaa transiçãoentreo Estadodinástico-absolutista e o nascimentodo está na raiz da corrupção como elementoconstituinte na divisãodo trabalho de dominação.
modernoEstadodo bem-estar,pontuadopeloprotagonismoestratégicodosjuristas,dando a ver Assim como o rei se apropria da parte do leão, expedienteidêntico se reproduz em escalões
os rumosda diferenciaçãodepoderese da concorrênciaentreos corposde especialistasindispen- inferiores, cujos ocupantes se valem da autoridade concedidapara extrair lucros proporcio-
sáveisao exercíciodo mando na emergentedivisãodo trabalhode dominação. nais ao seu cacife. O caráter estrutural da corrupção deriva do fato de que as corporações
Os juristas se aferram à elaboraçãode justificativas em favor de uma única jurisdição, têm a ambição de se tornar dinásticas, pela aliança com os mandantes do antigo regime,
operando como advogadosdessa junção que lhes toca de perto como arautos do "desinte- pela aquisiçãovenal de cargosou pela transmissão hereditária dissimulada.A redistribuição
resse" e da universalização. A realeza se alia aos pleitos dos juristas cujo serviço-mor é a de poderes enseja inúmeros escapesnos circuitos de delegaçãoe, por conseguinte,propicia
formulação,de teorias legitimadorassegundo as quais o rei representa o interesse comum e espaçosde arreglo e de cobrança de pedágio.
deve segurança e justiça a todos. Restringem-seas esferas de competênciadas jurisdições A montagemdessedispositivoinstitucionalizadose apoia,tanto no antigo império chinês
feudal e eclesiástica:,doravante sujeitas ao comando da justiça a soldo do rei. O nascimento como em formações sociais da atualidade, no fluxo de fundos ilícitos que irriga o sistema

330 SOBRE_OESTADO. CURSOS NO COLLEGE DE FRANCE (1989-92) SOBRE O ESTADO. CURSOS NO COLLEGE DE FRANCE (1989-92) 331
(Sur l'Etat. Cours au Collége de France [1989-1992]) (Sur l'État. Cours au Col/ége de France {1989-1992))
1
?

de baixo para cima. O caixa dois vem a ser a extorsão legal de fundos destinados a cobrir como qualquer outro. Trata-se de "fazer sua própria sociologia"(SSR,184),reconstituindo o
as despesas pessoais e profissionaisdos funcionários, somados aos rendimentos auferidos espaçodos possíveisde cada campo e dos indivíduosque nele estão inseridos.Nesses~ntido,
pelos escalõesinferiores de que os primeiros dependem para exercersuas tarefas. Na lógica a Leçon sur la leçon (1982)é um exemploparadigmático de "distância ao papel social no
da corrupção institucionalizada, os mandachuvas têm meios de extrair lucros de grandeza exercíciomesmo desse papel social" (EAA,138).
incomensurávelàquela acessívelaos supervisoresde baixo escalão. A "relaçãodialética entré a autoanálisee a (sócio)análisese encontra no centro do traba-
A burocracia envergadupla armadura: a ambiguidade institucional como contrafaceda lho de objetivação"(SSR,181),permitindo não só ao sociólogoa objetivaçãode sua própria
fachada racional e transparente. Os burocratas efetuam a apropriaçãoprivada do universal posição,que o liberta dos determinismossociaisque pesam sobresi, mas também conferindo
("bem comum"), com frequência tida como abuso de poder e, não obstante, contribuem lucidezao agente, ao "colocara análise mais objetivaao serviçodo mais subjetivo"(EAA,8),
mesmo assim a fazer progredir o "interesse coletivo".As transações entre os notáveis e os dando aos dominados os meios de controlar ao menos a representaçãodo que lhes acontece.
burocratas, que azeitam o funcionamento do serviço público, exemplificamintercâmbios Socioanálisee autoanálisesão projetosdistintos, mas complementares.Enquanto a primeira
movidos por coerção estrutural, que pouco tem a ver com interações pessoais tão a gosto analisa as condiçõesde emergênciadas produçõescientíficas,objetivandosimultaneamenteo
dos sabichõesarredios às razões da história social. Os juristas são corretores que também campo acadêmicoe o sujeitodo conhecimento,a segundavisa objetivara trajetór_ia~~ agente
jogam na posiçãode terceiros,a meio caminho entre as demandas da monarquia e dos demais através da aplicaçãoefetivada reflexividadecrítica sobre si mesmo, sobre sua historia e sua
grupos, cobrandoproventospelo trabalho de mediação,comoresponsáveispela alquimiaque prática cotidiana, através de "todos os traços pertinentes [... ] necessários à explicaçãoe à
transmuta o dote privado em bem público. compreensãosociológicas"(EAA,11-12).
Bourdieusustenta a tese da constituiçãoprogressivade um conjuntode campos- jurídico, Os conceitos de socioanálise/autoanálise atravessam a obra bourdieusiana desde o
administrativo, intelectual,parlamentar -, cada um deles como espaço de lutas específicas, Esquisse d'une théorie de la pratique (1972).A primeira ,s~traduz partic~l_a~mentenos
uns competindo com os outros, enfrentamento em cujo transcurso se inventa esse poder livros que analisam o campo acadêmico onde o autor esta imerso: Les hentiers (1964),
"meta-campo"consolidadono Estado moderno. A inteligibilidadedesses campos foi objeto Homo academicus (1984),Leçon sur la leçon (1982),La noblessed'État (1989),Science
de investigaçãoem estudos seminais do autor - A nobrezade Estado,sobre a elite adminis- de la science et réflexivité (2001).A segunda, nas Méditations pascaliennes (1997) e no
trativa egressa das grandes escolas;Homo academicus, sobre a elite universitária -, cujo Esquissepour une auto-analyse (2004). . _ ,
fecho reflexivoimanta os cursos no Collegede France (1989-1992)enfeixados no volume O autor lembra que, "em uma sociedade dividida em classes, [...] a defimçao do real _e
Sobre o Estado. objeto de uma luta aberta ou latente entre as classes [...] pela imposiçãodos sistemas domi~
É dessa história de lutas que tratam os cursos de Bourdieu,ao reconstruir as circunstân- nantes de classificação".É a ruptura epistemológicacom relação ao senso comum que vai
cias em que sucedeu a transição do poder dinástico,voltado à preservaçãodas prerrogativas contribuir para assentar os "mecanismos gnoseológicosque contribuem à manutenção da
e dos interesses da casa real, ao poder do Estado, entendido como um espaço de confrontos ordem estabelecida"(ETP,239-241),contribuindo à produção de uma ciênciamais acurada
ancorado em instituições e corporaçõesàs quais foram delegadosmandatos de justificação e fornecendo uni potencial de resistência e emancipaçãopolíticas. A objetivaçãodeve ser
doutrinária e intelectual, no caso capital da configuraçãoda esferajudiciária, ou então, as conduzida em função dos três tipos de vieses que afetam a visão analítica do sociólogo:suas
demandas de se fazer ouvir e representar por meio da instância parlamentar. características pessoais (posiçãode origem, trajetória, pertencimentos de gênero ou etnia,
adesão social ou religiosa);a posição ocupada pelo agente,o status de sua disciplina dentro
185. SOCIEDADE dos diferentes estados do campo acadêmicoe sua relaçãocom o campo do poder; e os pres-
······················································································································· supostos inscritos nas operaçõesou práticas de pesquisa. . "
Ver:Mundo social Ele retoma esse conceito no prefácio de Le sens pratique (SP,40), ao dizer que todo
verdadeiro empreendimento sociológicoé inseparável de uma socioanálise e deve contri-
buir para que seu produto se torne também instrumento de uma socioanálise.Ao contribuir
186. SOCIOANÁLISE
······················································································································· à consciência das determinações, ao revelar "a verdadeira relação entre o observador e o
Angela Xavier de Brito observado e, sobretudo, as consequênciascríticas que incidem na prática científica",a so-
cioanálise "ofereceum meio, talvez o único [...] para a construção de algo que se assemelhe
Para Bourdieu,a socioanáliseé "o trabalho através do qual a ciênciasocial, ao se tomar a um sujeito"(SP,41, 57). Em Sciencede la scienceet réflexivité (p. 168-169),elevai evocar
por objeto,utiliza suas próprias armas para compreendere controlar a si mesma" (SSR,174), a necessidade de objetivação do "inconsciente transcendental", "condição do acesso da
num duploni,ovimentode crítica metodológicae de vigilânciaepistemológicaque visa tornar ciência à consciência de si, ou seja, ao conhecimento de seus pressupostos históricos [...] e
explícitoo que ordinariamente permanece em estado implícitona prática científica.Já a au- das determinações inconscientes inscritas no cérebro do cientista e nas condições sociais
toanálise é uma socioanáliseem que o indivíduo trata a si mesmo como se fosse um objeto dentro das quais ele produz".

332 SOCIEDADE SOCIOANÁLISE 333


Por sua vez,a autoanálisedevepermitir um modo de conhecimentobaseadonuma relação 187. SOCIODICEIA
dialética entre as estruturas estruturadas e objetivase as disposiçõesestruturantes inscritas ·····························································:·························································
no corpo do agentee expressasem sua prática, criando condiçõesque lhe permitam estabe- Ernesto Seidl
lecer uma distância crítica para com esta última. Dessaforma, ela fornecetanto ao sociólogo
Pierre Bourdieuforjoua expressão"sociodiceia"combase no termo "teodiceia",criadopor
quanto ao agentecomum a possibilidadede se reconhecerplenamentecomoum sujeitosocial
Leibnize empregadoposteriormente por Max Weber com o sentido de justificaçãode Deus.
socialmentesituado,concebidocomo"representantede uma categoria"ou de um grupo social
Sociodiceia,portanto, refere-sea uma narrativa que procura justificar a sociedadetal como
(R, 175).As escolhase as estratégiasdo indivíduo não são mais consideradascomo produtos
ela é, nesse sentido servindo como alternativaao uso da palavra ideologia.Apesar de não ter
de um projeto consciente,mas são adotadas em função de um campo social determinado.
sido objetode reflexõessistemáticasna obra de Bourdieu,a noção ocupalugar central em seu
Bourdieu(EAA,15)observaque "compreenderé, em primeiro lugar,compreendero campono
esquemaanalíticoao se conectarcomuma das grandes questõesda sociologiabourdieusiana,
qual e contra o qual nos construímos",o estado do campo no momento em que ingressamos
que é a compreensãodos princípios e mecanismosde legitimaçãoda ordem social.A atenção
nele e o espaçode possíveisque elenos abre. Essapreocupaçãoconstante com a reflexividade
dada às formas como os dominantes elaboram e utilizam discursos destinados a explicar
está presente até mesmo em suas aulas, como testemunham seus antigos alunos, a quem ele
sua posição como tais, naturalizando assim diferençase arbitrariedades e, por essa via, jus-
costumavapedir "uma análise sociológicade si mesmos" (FRITSCH, 2005,p. 82).
tificando seus privilégiose garantindo sua manutenção,encontra na noção de estratégiasde
Originado na psicologiasocial, o termo "socioanálise"foi adotado por Jacques e Maria
sociodiceiauma ferramenta-chavepara a objetivaçãodas formas de legitimaçãodo poder.
Van Bockstaele (1959),que o definem como uma tentativa de interpretação da dinâmica
As sociodiceiasassumem diferentesformas segundo as configuraçõessociais,variando
da ação social através da interação dialética entre o observador e o observado, na qual o
de acordo com a construçãohistórica de princípios de hierarquizaçãosocial que conferema
analista deve questionar seus laços institucionais, afetivos ou econômicos com o objeto.
algunsgrupos (nobres,ricos,sábios,diplomados)acessoprivilegiadoa tipos variadosde poder
Ele foi retomado por GeorgesLapassade (1975),cuja ideia de inconsciente coletivo apre-
(econômico,religioso,político,burocrático).Em toda configuração,a narrativa sobrea origem
senta semelhanças com o "inconscientetranscendental" de Bourdieu. No entanto, a tensão
e a necessidadedo privilégioencobreo arbitrário que fundamentaa ordem sociale cujodesco-
original entre os campos da sociologiae da psicologiana França e a posição dominada que
nhecimentoé condiçãôpara a eficáciade sua legitimidade.Para Bourdieu,a nova sociodiceia
ocupava esse sociólogono campo acadêmico impedem a afirmação do conceito. Vincent
contemporânearepousa na crença do mérito escolarassociadoao dom.eem oposiçãoao nas-
de Gaulejacvai retomar o conceito de socioanálise, associando sociologia e psicanálise.
cimento,na fé na ciênciae, sobretudo,"na exaltaçãodo desinteressee da devoçãoao público".
Para ele, o "trabalho constante e metódico de explicitação" sugerido por Bourdieu não
basta para eliminar "os conflitos entre o sujeito e o desejo" (GAULEJAC, 2003, p. 80). Nos
Estados Unidos, Margaret LeCompte (1987)propõe algo bastante similar à autoanálise 188. SOCIOLOGIA
bourdieusiana em seu artigo Bias in the biography. ·······················································································································
CarlosBenedito Martins
No entanto,a socioanálisesó pode serplenamenteexercidaquandoela"seáplicaao conjunto
dos agentesengajadosnos campos",onde a reflexividade"foi instituída em lei comum" (SSR, Ao longo de sua carreira acadêmica, Pierre Bourdieu desenvolveuum projeto para a
178).Não se trata apenasde introduzir sua prática na pesquisa,mas sim de convertê-la"numa sociologiano qual delineou sua concepção de trabalho intelectual tendo como horizonte
disposiçãoconstitutiva do habitus científico" "que possa garantir-lhe um grau superior de conquistar uma posição proeminente para a disciplina no contexto das ciências humanas
liberdade com relação às restrições e às necessidadessociais que pesam sobre ela ou sobre francesas. Segundo sua avaliação,nos anos 1950elas se encontravam dominadas pela feno-
qualquer atividadehumana" (SSR,174,176). menologia,especialmenteem sua vertenteexistencialista,e a sociologiaocupavauma posição
subalternana hierarquiado campo (BouRDIEU, 1976)das ciênciashumanas (DROUARD, 1982).
Referências
A construção do seu projeto sociológicoo conduziu a travar uma série de lutas internas no
FRITSCH,P. Contre le totémisme intellectuel ln: MAUGERG. (Org.).Rencontres avec PierreBour- campo da sociologiacontra a forma pela qual era ensinada e praticada no contexto francês
dieu. Paris: Croquant, 2005. p. 81-100. nessa época. Concomitantemente, seu empreendimento intelectual impeliu-o a dialogar
GAULEJAC, V.de. Del'inconscient chezFreud à l'inconscientchezBourdieuln: BPI.PierreBourdieu: criticamente com várias posturas teóricas e metodológicasexistentesno interior do campo
les champs de la critique. Paris: Centre Pompidou,2003.p. 75-86. internacional da sociologia.
LAPASSADE,G. Socianalyseet potentiel humain. Paris: Dunod, 1975. Entre as várias dimensões que integram a concepçãode sociologiapresentes na obra de
LECOMPTE,M. Biasin the Biography.Anthropology and Education Quarterly,v. 18,n. 1,p. 43-52, Bourdieu,serão salientadas apenas algumas delas,tais comosua disposiçãode imprimir um
march 1987. , rigor científicoaos procedimentos de investigaçãona disciplina, sua heterodoxia teórica, a
VANBOCKSTAELE, J.; VANBOCKSTAELE, M. Note préliminaire sur la socianalyse. Bulletin de ambição de superar oposiçõescanônicasexistentesno seu interior, a aspiraçãode superar as
Psychologie,v. XII, n. 6-9, p. 277-290,1959. subespecializaçõesde áreas de pesquisa, etc.

334 SOCIOANÁLISE
SOCIOLOGIA 335
Ao mesmo tempo que beneficiou-se da formação intelectual obtida na École Normale acadêmica homogênea,já que a universidade francesa não oferecia,nesse.momento,cursos
Supérieure na década de 1950, simultaneamente investiu contra uma postura intelectual de graduação nesta área (VALADE, 2000, p. 25). Em função disto, persistiu a ausência de um
subjacenteà sua formaçãoacadêmica,ou seja, combateu um ethos filosóficoque ambicionava sentimento de unidade disciplinar. Ao mesmo tempo, ocorreu uma enorme dispersão de
explicar uma pluralidade de fenômenoshumanos e sociais, calcados,segundo ele, em proce- pesquisas empíricas sem uma consistentefundamentação teórica. Para ele, construiu-se uma
dimentos retóricos. Em sua percepção,a figura de Jean-Paul Sartre expressavaas disposições sociologiafragmentada, alicérçada numa nítida divisão de trabalho, estruturada a partir de
intelectuais peculiares a umfüósofo normalien (BoURDIEU, 1993;SSR;EAA). subespecializações, como sociologia do trabalho, da educação, da religião, rural, urbana,
Seuingressono campoda sociologiaocorreugradualmente.O distanciamentocom o espírito do lazer, etc. Como o meio universitário estava em larga medida preocupado pelas questões
filosóficofoi o resultado dos "acasosda existência"que o conduziram à Argélia,para servir na políticas da época, os engajamentospolíticosde pesquisadorescomprometeram a autonomia
missão de "pacificação"dessa colôniafrancesa (1993).Esta experiênciaestimulouseu interesse científica da sociologiae reforçaram sua posição marginal no campo. (SSR,192;EEA,52).
pelastransformaçõesda sociedadeargelinaa partir de uma perspectivacientíficae política.Nesse Seu projeto para a sociologia mantém certa continuidade com a fase inicial da "escola
contexto,produziu seus primeiros trabalhos de campo (SA;TTA;DR;ETP;WACQUANT, 2002). francesade sociologià',destacadamentecom a tradição durkheimianade imprimir um estatuto
O advento da abordagem estrutural de Lévi-Strauss foi saudado por Bourdieu como científicoao contextouniversitário (BERTHELOT, 2000,p. 30;KARADY, 1979),ao mesmo tempo
um acontecimento significativopara as ciências sociais francesas, uma vez que propiciou que renova e amplia intelectualmente este objetivo.A determinação intelectual de imprimir
respeitabilidade científica à antropologia. Seus dois primeiros ensaios etnológicos,Le sens uma dimensão científica à sociologiaperpassou sua trajetória acadêmica. A publicação da
de l'honneur e La maison kabyle ou le monde renversé, exploraram os esquemas inter- obra conjunta com Passeron e Chamboredon,Le métier de sociologue(1968),é emblemática
pretativos da análise estrutural elaborados por Lévi-Strauss, sendo que o derradeiro deles nesse contexto.Em um trabalho bastante posterior,Sciencede la scienceet réflexivité(2001),
constituiu o que Bourdieu denominou seu "último trabalho de estruturalista feliz".Longede ao mesmo tempo que reafirmou o caráter científicoda sociologia,assinalou a necessidadedo
negar a relevância do processo de objetivaçãodos fenômenos sociais, Bourdieu reconhecia processo de objetivação dos sociólogoscomo uma condição necessária para imprimir uma
nesse procedimento metodológicouma das contribuições fundamentais do estruturalismo autonomia científicaà disciplina. Para Bourdieu, o trabalho sociológicopressupõe uma série
ao processo de ruptura com o saber imediato. Concordava com a primazia das estruturas de rupturas com o saber espontâneo, cuja influência se manifesta insidiosamente no seio da
objetivasna explicaçãoda vida social. No entanto, distanciou-se da postura estruturalista à disciplina através de pré-noções do senso comum, da ilusão da transparência da realidade, da
medida que procurou reintroduzir em suas análises o agente, cujos sistemas de percepção, utilização da linguagem cotidiana, fato este que implicaa necessidadede criar uma linguagem.
apreciaçãoe ação são perpassados por injunções sociais. artificial, capaz de romper com os automatismos do saber familiar.
Ao realizar suas primeiras investigaçõesempíricas,Bourdieupercebia-secomoum filósofo A familiaridade do sociólogocom o universo socialconstitui um dos principais obstáculos
realizandotrabalho de campo. No entanto, surpreendeu-seao constatar que se tornara etnólo- epistemológicos da prática científica, uma vez que (re)produz continuamente percepções
go. A partir da metade dos anos 1960,quando retornou à França, em colaboraçãocom outros provenientes do saber imediato. Para ele, uma das principais fontes de erros na produção do
pesquisadores,produziuuma série de obras que, em sua apreciação,poderiam ser consideradas conhecimentosociológicoderiva da relaçãoincontrolada que o pesquisador mantém com seu
de natureza sociológicacomo Les héritiers (1964),Un art moyen (1965),L'Amour de l'art objeto de estudo, ignorando que a visão e a construção do objeto devem à posição ocupada
(1966).Procurou incorporar em seu projeto sociológicoo que havia assimilado da filosofiae pelo investigador no espaço social e no interior do próprio campo científico(MS,35-44).
da etnologia,a exemplode determinadas técnicas de investigação,como o uso da fotografia,a Quando os sociólogosanalisam certos objetos com os quais mantêm relação de proximi-
observaçãoetnográfica,o politeísmometodológico,ou seja,a combinaçãoda análiseestatística dade, tais como a cultura, a ciência,o mundo artístico ou o campo universitário, a vigilância
coma observaçãodireta de grupossociais,etc.Suaentrada no campoda sociologiae a disposição reflexivadeve se exercer com maior intensidade, buscando operar uma ruptura não apenas
de redefinir a posição da disciplina,visando enobrecê-la(SSR,196),induziu-o a criticar tanto com as representações espontâneas, mas também com as crenças íntimas, conscientes ou
as atividadesde ensino quanto as de pesquisa que predominavam na sociedadefrancesa entre inconscientes, dos profissionais do pensamento, com a doxa específica que estrutura as
os anos 1950e metade da década seguinte. tomadas de posição no campo das ciências sociais (HA, 11-33).
Para ele, a Sorbonne - que constituía o espaço central na disseminação da sociologia, Para Bourdieu, a história social da sociologia,ao possibilitar a explicitaçãoda gênese dos
uma vez que era ensinada nas Faculdadesde Letras - não conseguiuimpulsionar a disciplina, problemase dos objetos,das categoriasde pensamentoe dos instrumentos teóricose empíricos
uma vez que não introduziu a atividade de pesquisa no seu interior. Os três professores que de análise mobilizados pelo investigador, constitui um dos instrumentos fundamentais da
ocupavam a cátedra de sociologia, Georges Gurvitch, Jean Stoetzele Raymond Aron - de prática científica.Para realizar-se como ciência,a sociologianecessitaassumir-se a si própria
quem Bourdieu foi assistente nesta instituição - exploravam autores clássicosda sociologia como objeto passívelde ser analisado sociologicamente.Em sua visão, a sociologiada socio-
e/ou apresi;ntavamsuas próprias concepçõesteóricas (SSR,190;ARON,1983,p. 343). logia - concebidapor ele como uma das dimensões fundamentais de epistemologia- longe
Em sua avaliação, a nova geração de sociólogosque emergiu em meados da década de de ensejar um retorno intimista e um culto narcisista sobre a pessoa do sociólogo,deve propi-
1950modificou a posição dominada da disciplina, uma vez que não recebera uma formação ciar-lhe a elucidaçãode tudo que sua prática intelectual deve à sua inserção no mundo social

336 SOCIOLOGIA SOCIOLOGIA 337


e no campo da sociologia,possibilitando a objetivaçãodo investigador e o esclarecimento entre a análise do simbólicoe do material, a oposiçãoentre indivíduo e sociedade,o embate
tanto da escolha do seu objeto de estudo quanto da forma de abordá-loe das determinações entre métodos quantitativos e qualitativos.Essas oposiçõesexpressamfalsosdualismos que
sociais às quais ele se encontra exposto (LL,8-14;SSR,173-180). comprometemuma adequadaanálisesociológica.A existênciadessesdualismosnão derivava,
Na etapa final de sua carreira, quando intensificousua relação com distintos movimen- segundo ele, de operaçõeslógicasou epistemológicasconstitutivasda prática científica,mas
tos sociais e articulou mais claramente a relação entre pesquisa científica e intervenção de disputas entre distintas linhagens de pensamento existentesno campo da sociologia,que
política (OP;CF2;INT). Ele jamais deixou de assinalar que possuía pouca inclinação para buscavam erigir suas concepçõesparticulares em verdade científicaunívoca. Essas divisões
intervenções proféticas, defendendo de maneira intransigente a autonomia da sociologia. dualistas acabavam por produzir profissões de fé e emblemas totêmicos, dilacerando as
Enfatizou diversas vezes que a sociologiadeveria ser vigilante quanto à sua independência explicaçõesfornecidaspelas ciênciassociais (R, 156-157).
intelectual, recusando-se a servir a grupos e/ou instituições. Em sua percepção, a eficácia Sua concepção de sociologiainvestiu contra a divisão artificial entre teoria e pesquisa
políticada sociologiaconsistiriaem desvendaras estruturas de dominaçãoque se encontram empírica, mediante a qual certos pesquisadores tendem a cultivar a teoria por si mesma
profundamente imersas nos diversoscampos sociais e elucidar os mecanismos que tendem sem manter uma relação com objetos empíricos precisos; enquanto outros, inversamente,
a assegurar a reprodução ou a transformação desses espaços Nesse empreendimento,cuja desenvolvemuma pesquisa empírica sem referênciaàs questõesteóricas (R, 136-137).Res-
eficáciase deve tão somente à autoridade de sua conduta científica,a sociologiatorna-se um saltou que, no trabalho sociológico,a pesquisa sem teoria é cega e a teoria sem pesquisa é
vigorosoinstrumento de libertação,uma vez que permite explicitaro jogo no qual os agentes vazia. Posicionou-seassim contra a postura que leva determinados pesquisadoresa colocar
estão envolvidos,a posição que ocupam nos distintos campos sociais e o poder de atração a teoria em primeiro plano, considerando-acomo o trabalho nobre da prática científica.Para
que esses diversosespaçosexercemsobre eles (SP,209-231). Bourdieu,a teoria deveriaconstituir um programa de percepçãoe ação,um habitus científico
Seuprojetointelectualconduziu-oa uma atitude "contra-tudo"e "agarra-tudo"em termos intimamente ligado à construção de casos empíricos bem delimitados. Durante toda sua
de contribuiçõesteóricas,o que lhe permitiu construir uma obra sob o signo da heterodoxia trajetória, sempre se recusou a produzir um discurso teóricogeral, especulativo,profétic~ou
teórica(SSR,-197). Nessesentido,elese contrapôsà sociologiaamericanaelaboradasob a égide programáticosobre o mundo social (BouRDIEU, 1986,p. 2-3).Sua obra procurou desr~speit_ar
de Parsons,Mertone Lazarsfeld,quedominavaa disciplinaem váriospaíses,inclusivea França, deliberadamente as fronteiras disciplinares e as especializaçõesno interior da soc10logia.
desdea décadade 1950(POLLAK, 1979).Bourdieucriticavaa separaçãoentre theory e metho- Nessadireção,procurou articular diferentesprocedimentosde pesquisa,tais como descrição
dology,representadapela oposiçãoentre Parsons e Lazarsfeld.Investiucriticamentecontra a etnográfica,modelos estatísticose entrevistasem profundidade (LD;BouRDIEU, 1988;MM)
sínteseteóricapropostapor Parsonsem sua obra TheStructure of SocialAction, elaboradaem para tratar empiricamenteuma diversidadede temas como moda, arte, desemprego'.escola,
1937,pois consideravaque havia mutilado a complexidadeda obra de Durkheim e Weber.Em direito, ciência,literatura, religião,gosto,classessociais,política, esporte, intelectuais,cam-
contrapartida,retomoua relevânciadascontribuiçõesdessesdoisautoreseuropeusquefertilizaram poneses, televisão,dominação masculina, etc. , .
teoricamenteseustrabalhos.Por outro lado,seu projetolevou-oa se opor à filosofiade "espírito Essa diversidade de temas se explica pelo seu empenho em compreender a pratica
aristocrático".Em sua visão,elarepresentavaum obstáculoao progressoda sociologia,uma vez humana, que constitui um eixo central do seu extenso trabalho de investigação. Esse
que os filósofosagregés,ao se consideraremmembros de uma casta superior,manifestavam empreendimento o distanciou de um ethos filosófico que tenderia a analisar a prática
um desprezopelasciênciashumanas, situando a sociologianuma escalainferiorna hierarquia humana a partir de considerações gerais sobre a natureza e a condição do ser humano.
do conhecimento(BOURDIEU, 1983,p. 49-50).Eleprocurou integrar contribuiçõesteóricasde Afastando-se dessa posição, sua estratégia de investigação concentrou-se num conjunto
cientistassociais clássicose contemporâneosque, de um modo geral, eram consideradosaté de objetos empíricos, considerados até então como destituídos de interesse científico, tais
então, como inconciliáveis.Seu arcabouçoteóricoincorporou de forma criativaautorescomo como a frequência aos museus, a prática fotográfica,as trocas linguísticas, a formação dos
Marx, Durkheim,Weber,BlaisePascale dialogoutambém,de maneiraheterodoxa,com diver- gostos etc. Buscou compreender, a partir de procedimentos empíricos, não a essência da
sos autorescontemporâneos,comoMartial Gueroult,GeorgeCanguilhem,GastonBachelard, ação humana, mas a complexa relação entre a existência de uma diversidade de espaços
ThorsteinVeblen,ClaudeLévi-Strauss,Norbert Elias,Erving Goffman,LudwigWittgenstein, sociais e a inserção dos agentes envolvidos na produção, reprodução e transformação
entre outros (BOURDIEU, 1988,p. 778-783).Suasociologiafoiconstruídanum densodebatecom desses espaços, vale dizer, as condições de efetivação da produção da diversidade de
as heranças do marxismo,do funcionalismo,do estruturalismo,da fenomenologia,do intera- práticas que constitui o mundo social (MARTINS, 2002).
cionismosimbólico,do individualismometodológico,da teoria da escolharacional,etc. Para O projeto de compreendersociologicamentea prática humana serviu-lhe de fulcro para
ele,o obstáculoqueimpedea comunicaçãoentre teorias,conceitose métodosnão é oriundo de estabelecera unidade teórica de uma obra edificada a partir da construção de um sistema
problemaslógico-científicos intrínsecos,mas deve-se,antes,às lutas de concorrênciaentreseus relativamenteparcimoniosode conceitosderivadosde um incessanteconfrontoentre atividade
respectivo~adeptospara conquistarposiçõesde legitimaçãoe prestígiono seioda sociologia. teórica e pesquisa empírica,tais como habitus, illusio, campo, violência simbólica, doxa,
Ao longo de sua obra, Bourdieuprocurou superar determinadas oposiçõescanônicasno hexis corporal, capital cultural, que representaram contribuiçõesvaliosas para a renova-
interior da sociologiaque, em sua percepção,a minavam por dentro, tais como a separação ção da análise sociológicade um modo geral e, particularmente, instrumentos relevantes

338 SOCIOLOGIA
SOCIOLOGIA
339
para enfrentar as complexase intrincadas mediações que permeiam as relações entre ator SWARZT,D. Culture and Power: the Sociologyof Bourdieu.Chicago: The University of Chicago
e estrutura social. Press, 1977.
O grupo de pesquisaque Bourdieuconstruiu expressousua disposiçãode criar um projeto WACQUANT,L. The Sociological Life of Pierre Bourdieu. International Sociology, v. 17,n. 4,
científicocoletivocapazdeintegraras aquisiçõesteóricase metodológicasda sociologia(ENCREVÉ; p. 549-556,2002.
LAGRAVE, 2003).O Centre de Sociologie Européenne, criado por ele em 1968,tornou-se WEBB,J.;SCHIRATO,T.;DANAHER,G. UnderstandingBourdieu.Londres:SagePublication,2002.
um espaço intelectualmente cosmopolitaao qual afluíam pesquisadores de diversas partes
do mundo. Ao mesmo tempo, criou em 1975,a revista Actes de la Rechercheen Sciences
Sociales, um periódico marcadamente interdisciplinar que expressava sua disposição de 189. SOCIOLOGIA
DA SOCIOLOGIA
restaurar a unidade das ciênciassociais,acolhendoa produçãode vasta rede de pesquisadores GiseleSapiro
franceses e internacionais.
Foi eleitoem 1981para o College de France, sendo que sua obra ultrapassouas fronteiras Para Bourdieu,a ciência,como a arte e a literatura, não escapaà análise sociológica.É um
de seu país, transformando-o em um dos sociólogosmais eminentes do século XX. Objeto universo socialsemelhante aos outros, do qual é preciso,no entanto, compreenderas lógicas
de avaliaçõescríticas e positivas, sua influência intelectual se estendeu internacionalmen- específicas.O conceito de campo permite apreender as implicações,os valores e as regras
te em várias disciplinas nas ciênciashumanas (ADKINs;SKEGGS, 2005;WEBB;SCHIRATO; que orientam as práticas nesses universos, e que são irredutíveis aos fatores econômicose
DANAHER, 2002;KING,2000;CALHOUN; LIPUMA; PoSTONE, 1993;DrMAGGIO, 1979;SWARTZ, 1997). políticos,mesmo que estesnão deixemde estar presentes.Para o autor de Homo academicus
(1984),que exibia uma visão desencantadados mecanismossociais em ação no mundo uni~
Referências versitário,o fato de produzir a sociologiadas atividadescientíficasnão leva necessariamente
ADKINS,L.; SKEGGS,B.Feminism after Bourdieu. Blackwell:Oxford,2005. ao relativismo:pelo contrário, ela deveser concebidacomoum instrumento de reflexividade
ARON,R. Mémoires. Paris: Julliard, 1983. e de vigilância epistemológica.Tal é a posição que Bourdieu irá desenvolverem seu último
BERTHELOT, J. M. La constitution épistémologiquede la sociologiefrançaise. In: __ . (Org.).La curso no Collegede France,publicadosob o título Sciencede la scienceet réflexivité(2001).
sociologiefrançaise contemporaine.Paris: PUF,2000. Comoexplicana sessãointrodutória de seu seminário de 1997sobrea história das ciências
KING,A. Thinking with Bourdieu against Bourdieu: a Practical Critique of Habitus. Sociological sociais (BouRDIEU, 2004),para ele a sociologiada sociologia(e das outras ciênciassociais)
Theory,v. 18,n. 3, p. 417-433,2000. não é uma ciênciacomo outra qualquer."Aobjetivaçãodo sujeitoda objetivação",de acordo
BOURDIEU,P. Le champ scientifique.ARSS, v. 2, n. 2-3,p. 88-104,1976. com o título dessa introdução, é um meio de controle simbólico da prática da pesquisa no
BOURDIEU,P. Les sciencessociales et la philosophie.ARSS, v. 47-48,p. 45-42, 1983. sentido em que ela desvelao inconscienteacadêmicoque está subjacentea essaprática. Longe
BOURDIEU,P. La scienceet l'actualité. ARSS, p. 2-3, 1986. de qualquer "complacêncianarcisistâ', a reflexividadeconsisteem revelaros determinismos
BOURDIEU,P. Esquisse d'un projet intellectuel:un entretien avec Pierre Bourdieu.French Review, sociais que pesam sobre a prática dos pesquisadores,com o fim de superá-los.
2, p. 194-205,1987.
V. 61,Il.
A sociologiada sociologiae das outras ciênciassociais compreendetrês momentos. Em
P.Vivela crise:forHeterodoxyinSocialScience.Theoryand Society,n. 17,p. 773-787,1988.
BOURDIEU, primeiro lugar, ela reinstala os sociólogosno mundo social em seu conjunto,reconstituindo
BOURDIEU,P. À propos de Sartre. French Cultural Studies, n. 4, 1993. suas trajetórias sociais, suas condiçõesde acesso à disciplina, suas escolhas de objetos e de
DiMAGGIO,P. On Bourdieu.American Journal of Sociology,v. 84, n. 96, p. 1460-1474,1979. métodosem função de suas disposições.Por exemplo,a oposiçãoentre a teoria e a empiria que
CALHOUN,G.;LIPUMA,E.; POSTONE,M. Bourdieu:CriticaiPerspectives.Chicago:TheUniversity servede estrutura à disciplinaé intensamentesexuada:os homens mostram maior propensão
of ChicagoPress, 1993. • à generalização,o que garante maiores lucros simbólicoscom menos esforços,enquanto as
DROUARD,A. Réflexionssur une chronologiedu développementdes sciencessociales en France de mulheres se dedicam ao laboriosotrabalho de coletae de análisedos dados.A divisãosexuada
1945à la findes années soixante. Revue Françaisede Sociologie,v. 23, n. 1, 1982. do trabalho intelectual se observa também entre disciplinas (ciênciasversushumanidades,
ENCREVÉ,P.;LAGRAVE, R. M. Travailleravec Bourdieu. Paris: Flammarion, 2003. filosofia versus literatura) e especialidades (sociologiadas ciências versus sociologia da
KARADY,V. Durkheim, les sciences sociales et l'université. Revue Françaisede Sociologie,v. 25, arte). O que leva ao segundo nível de análise, o do campo disciplinar, onde os sociólogosse
p. 267-311,jan./mars 1979. diferenciam dependendo da posição que ocupam (por exemplo,novato versus pesquisador
MARTINS,C. B. Notas sobre a teoria da prática em Pierre Bourdieu. Novos Estudos Cebrap,n. 62, reconhecido),de suas especialidadese de suas escolhas intelectuais, que são determinadas
p. 163-181,2002. não só por suas propriedades sociais, mas também pelo espaço dos possíveis.Esse espaço
POLLAK,M.,PaulLazarsfeld,fondateur d'une multinationale scientifique.ARSS, n. 25, p. 45-59,1979. dos possíveisé historicamente constituído e estruturado de acordo com as hierarquias entre
VALADE, B.Del' écolefrançaisede sociologieà la sociologiecontemporaineen France.In: BERTHELOT, disciplinas(por exemplo,entre filosofiae sociologia),especialidades,abordagens(teoriaversus
J-M (Org.).La sociologiefrançaise contemporaine.Paris: PUF,2000. empiria), métodos, escolase tradições intelectuais,marcadas muitas vezespor suas origens

340 SOCIOLOGIA
SOCIOLOGIA DA SOCIOLOGIA 341
"impuras" (por exemplo,o passado colonialno caso da etnologia- QS).Finalmente,em um esboçado por Bourdieu em pelo menos três oportunidades: "Confissõesimpessoais", em
terceiro nível, a sociologiada sociologiareinstala as práticas dos pesquisadores na lógica MP; "Esquisse pour une auto-analyse", em SSR (184-220);e em EAA. Rompendo com a
escolásticaque caracteriza os universos científicose que constitui uma fonte de erro intelec- ilusão do ponto de vista absoluto,a objetivaçãodo ponto de vista do pesquisador esforça-se,
tualista (o "viésescolástico"):essa lógicaacabapor conduzi-losfrequentementea projetar os assim, por contribuir para a construção "desse ponto de vista sem ponto de vista que é o
modelos que eles constroem na mente dos agentes que eles observam, sem se questionarem ponto de vista da ciência" (SSR,222). Identificar a posição ocupada no campo supõe uma
sobre a distância entre um modeloabstrato e a realidadeda prática. A sociologiada sociologia planta do campo que indique precisamente a posição relativa das diferentes disciplinas
é, portanto, inseparavelmenteuma sociologiado conhecimento. no campo das ciências sociais e, no campo da sociologia,as divisões em "especialidades",
em "escolas"etc. Caracterizar um habitus, tentar definir sua "fórmula genérica",supõe a
Referência reconstituição da sociogênese do sistema de disposições constitutivas de um habitus no
BOURDIEU,P. rObjectivation du sujet de I'objectivation (1997).ln: HEILBRON,J.;LENOIR,R.; decorrer de uma trajetória biográfica.
SAPIRO,G.(Org.).Pour une histoire des sciences sociales. Paris: Fayard, 2004. p. 19-23. O pertencimento a um campo - no caso concreto, o da sociologia - implica não só a
crença no interesse do jogo e no valor daquilo que está em jogo, ou seja, a participação na
190. SOCIOLOGIA E REFLEXIVIDADE "illusio específica" do campo e a interiorização do "habitus específico"do campo, mas
······················································································································· também a interiorização mais ou menos bem-sucedida da herança científica coletiva da
GérardMauger disciplina (problemas, conceitos, métodos). Uma prática reflexiva de pesquisa supõe a
compreensãodas opçõesteóricas e metodológicasadotadas:"o espaçodos possíveis,escreve
Se "a sociologiaé uma ciência como as outras, que encontra somente uma dificuldade Bourdieu,se realiza em indivíduos que exercemuma 'atração' ou uma 'repulsa' dependendo
particular em ser uma ciência como as outras" (MS,36), tal constatação se deve, segundo de seu peso no campo, ou seja, de sua visibilidade, e também do maior ou menor grau de
Bourdieu, a razões políticas e, simultaneamente, epistemológicas.Pelo fato de que, no seio afinidade dos habitus que leva a achar que seu pensamento e sua ação são 'simpáticos' ou
do mundo social, diferentes categoriasde agentesprocuram impor seu "ponto de vista" so- 'antipáticos"' (SSR,36).-
bre a realidade, a sociologia,queira ou não, é, com efeito,parte integrante das lutas que ela O campo científico,de acordo com a análise de Bourdieu, é um "m.undosocial como os
descreve.Pelo fato de que seu objeto - a representação do mundo social - é politicamente outros", parcialmente autônomo, com suas relaçõesde força e suas lutas de interesses, suas
estratégico,ela está constantementeexpostaà regressãopara a heteronomia e depara-se com coalizõese seus monopólios (o que é estudado pelo "programa forte"), e, ao mesmo tempo,
a contestação de sua pretensão à cientificidade.Finalmente, pelo fato de que a sociologiaé um "mundo à parte" dotado de suas própriasleis de funcionamentoem que a competiçãoestá
determinada simultaneamentepelas condiçõesde sua produção - mais ou menos autônoma/ submetidaa regulaçõesautomáticas(garantidaspelocontrolecruzado entre os concorrentes),
heterônoma- e pelasdeterminaçõesinscritasnas disposiçõesdo pesquisador,elaencontra-se, em que a libido dominandi (apetitede reconhecimento)devese converterem libido sciendi
a cada momento, exposta à "relativização". (apetite de conhecimento),em que a censura está na origem da sublimação.
O imperativode reflexividadeimpõe-seprecisamentecomotentativade livrar a sociologia A situação de skhole, "tempo livre e liberado das urgências do mundo que torna pos-
da relativização:ela deve assumir-se a si mesma como objeto,servindo-se de seus próprios sível uma relação livre e liberada com tais urgências e com o mundo", situação de "lazer
recursos (teóricose metodológicos)para se compreendere se controlar.Fazerda reflexividade estudioso",de levezasocial,neutralizando as urgências e os fins práticos (MP,26),condição
uma disposição constitutiva do habitus científico significa controlar, ao mesmo tempo, a social do "pensamento puro", está na origem da "disposiçãoe_scolástica" (MP,24). Ela leva
relação subjetivacom o objeto,os efeitosdas condicionantesexternas que se exercemsobre a que se coloque em suspenso as exigênciasda situação, as condicionantesda necessidade
a produção científica e a antropologia social inconsciente envolvidana prática científica. econômicae social,as urgências que ela impõe e os fins que ela propõe, e a entrar no mundo
Podem-se distinguir três ordens de pressupostos:aqueles que estão associadosà ocupação lúdico da conjetura teórica e da experimentaçãomental, que é a condiçãode todas as formas
de uma posição no espaço social e à trajetória particular percorrida para atingi-la; aqueles de especulação gratuita, sem outra finalidade a não ser elas mesmas. De maneira geral,
que estão ligados à posição ocupada no campo da pesquisa e ao "inconscienteacadêmico" os mundos escolásticos oferecem posições em que se podem encontrar boas razões para
da disciplina; aqueles que estão associadosao pertencimento ao universo escolásticoe, em apreender o mundo como uma representação,um espetáculo,para observá-lode longe e do
particular, "a ilusão da ausência de ilusão","a ilusão do ponto de vista absoluto"próprio de alto, para organizá-locomo um conjunto destinado unicamente ao conhecimento(MP,33).
qualquer ponto de vista que se ignora como tal. De forma mais concreta, a aprendizagemescolar aparece como a modalidade privilegiada
A autossocioanálise é, em primeiro lugar, uma tentativa de objetivaçãode seu próprio da interiorização de disposiçõesmais ou menos permanentes para operar o distanciamento
"ponto d<;! vista": trata-se de situar socialmente "o ponto" de onde "a vista" é tomada para do real diretamente percebido. Ao objetivar a disposição escolástica (e seus esquemas de
tentar discernir o que "a vista" deve ao "ponto de vista" e controlar os efeitospróprios de pensamento impensados),trata-se de explorar metodicamenteos limites que o pensamento
uma posição e das disposições que são importadas nessa operação - tal procedimento foi escolásticodeveàs condiçõesde sua emergência,tentandolivrar-sedeles.Em que a disposição

342 SOCIOLOGIA E REFLEXIVIDADE


SOCIOLOGIA E REFLEXIVIDADE 343
escolásticaafeta o pensamento que ela torna possível?Quais são os pressupostos inscritos no desinteressada, "disposiçãopura" que condiciona o acessoao "prazer puro". Em particular, a
fato de estar em condiçõesde se retirar do mundo para pensá-lo?Bourdieu indica três formas reflexividadeadverte contra o estetismo populista cuja preocupação de reabilitação converte
de erro escolástico,três modalidades de etnocentrismo escolástico:o epistemocentrismo,0 a privação em pleno ato eletivo e que, atribuindo ao povo uma "estética" ou uma "cultura
moralismo e o universalismo estético. popular", ignora que "o mundo social, com suas hierarquias que não se deixam facilmente
O princípio do epistemocentrismoescolásticoreside na confusão entre sujeitoreflexivoe relativizar, não é relativistà' (MP,91).
agenteatuante, entre conhecimentoerudito ("razãorefletida",escolástica,teórica) e conheci- Eis o motivopelo qual uma "Realpolitik do universal"passa pela "luta políticapermanente
mento prático (compreensãoprimeira do mundo associada à experiência da inclusão nesse em prol da universalização das condições de acesso ao universal" (MP,100).
mundo), na imputação ao agente atuante de um interesse de puro conhecimento e de pura
compreensão:"O pesquisador ofereceo mundo tal como ele o pensa (isto é, como objeto de
contemplação,representação, espetáculo) como se fosse o mundo tal como ele se apresenta ·1s1.SOCIOLOGIE DE L'ALGÉRIE
·······················································································································
~quelesque não têm a disponibilidade (ou o desejo)de se retirar delepara pensá-lo" (MP,65). EnriqueMartín Criado
E por isso que o epistemocentrismoescolásticoengendrado pela condição escolásticaestá na
origemde uma compreensãoquasesempreerrônea e deformadada compreensãoprática:nessa BOURDIEU,P. Sociologiede l'Algérie.Paris: Presses Universitairesde France, 1958.
perspectiva, a rational action theory é um efeitoda relação escolásticacom o mundo. Desse
ponto de vista, a reflexividade(queconvidaa assumir um ponto de vista teórico sobre o ponto Primeiro livro de Bourdieu, publicado em 1958 (coleçãoQue sais-je? da editora PUF), é
de vista teórico) é um meio escolásticode luta contra as disposiçõesescolásticas:trata-se de a sua imersão inaugural na sociologia,depois de seus estudos de filosofia.O livro é, basica-
"se co1ocar em pensamento, mediante um trabalho teórico e empírico [... ], do ponto de vista mente, um trabalho de biblioteca, onde Bourdieu utiliza a literatura colonial sobre a Argélia,
do agente praticamente envolvido",de reconstruir teoricamente a lógica prática ao incluir a interpretando-a a partir dos autores que começaa tr~balhar nessa época, fundamentalmente
distância entre "lógicateórica" e "lógicaprática". Lévi-Strauss,Margaret Mead, Durkheim e Max Weber.
A segunda forma do etnocentrismo escolástico reside, de acordo com Bourdieu, na ge- Os três primeiros capítulos apresentam três grupos berberes - cabilios, chaouias e mo-
nerosidade democrática virtuosa do "universalismo intelectualista" que conduz a projetar zabitas -, destacando sua perfeita coesão social que lhes permitia sobreviver em um meio
no campo político as formas (idealizadas) da discussão racional entre intelectuais em um físico hostil. No quarto capítulo analisa a população arabófona - a que divide em urbanos,
seminário de pesquisa (projeçãoilustrada de modo típico-ideal pelo "espaçopúblico" e pelo nômades e seminômades, semissedentários -, destacando também seu equilíbrio e coesão
"agir comunicacional"de JürgenHabermas).Assim,ela atribui a todos uma "opiniãopessoal" social. O quinto capítulo analisa ofundo comum dessaspopulações:estruturação social - em
ou uma "escolhaeconômica"esclarecida (com total desconhecimento das condições econô- linhagens, tribos, povos, ligas - a partir das relações familiares; tradicionalismo e primazia
micas e sociais de possibilidade). O esforço de reflexividade visa, então, ao universalismo do grupo sobre o indivíduo; relações econômicas pré-capitalistas, em que primam os ciclos
abstrato que ignora as condições econômicas e sociais de acesso ao universal. Ele enfatiza de reciprocidade associados à busca da honra e prestígio. O último capítulo analisa a de-
essa espécie de etnocentrismo que reduz as relações de força a relações de comunicação, sestruturação dessas sociedades, devido ao colonialismo francês, que destrói as sociedades
ignorando que "a força dos argumentos não é eficaz contra os argumentos da força" (MP, originais ao perseguir exclusivamenteos interesses dos colonizadores.A ênfase de Bourdieu
80), e que "a dominação nunca está ausente das relações sociais de comunicação" (MP,80). na coerência das sociedades argelinas originais se deve em parte à influência de Durkheim,
Do mesmo modo, ele interpe~aa boa consciênciademocrática, outra forma de universalismo Mead e Lévi-Strauss,que descreviam as sociedadesprimitivas como perfeitamente integra-
fictício que supõe um controle igualitário dos instrumentos de produção política e ignora das. Mas, também, a seu objetivopolítico: ele escreveolivro em plena guerra da Argélia, e a
(recalca)as condiçõesde acessoà esferapolítica e, em particular, à opinião política articulada facçãofrancesajustifica a guerra comoum combateda civilizaçãocontra a barbárie. Bourdieu
(que depende do "pedágioinvisível"do capital escolar)(MP,89).Uma "Realpolitik da razão" denuncia o colonialismo defendendo a perfeição da organização social argelina tradicional,
propõe, contra o universalismo abstrato que, ao imputar as "carências" a uma "natureza", tendo procedido a revisões no texto nas edições de 1961,1963e 1985.
justifica a distribuição em vigor dos poderes e dos privilégios, e contra o relativismo cínico
e desencantado que, sob pretexto de subversão niilista, aceita a ordem estabelecida, meios
reais de realizar esse direito formalmente universal. 192. SOCIOLOGIE ESTUN SPORTDE COMBAT(LA)
························
·······························································································
A terceira forma do etnocentrismo escolásticoconsiste em universalizar abstratamente Afrânio Mendes Catani
o "prazer estético",ou seja, "o prazer suscetívelde ser experimentado por qualquer homem"
(Kant).A,objetivaçãosociológicacoloca em evidência a dupla condição desse "prazer puro": O filmede PierreCarles(2001)acompanha,em seus 146minutos,parte da trajetóriade Pierre
de um lado, a emergênciade um campo artístico e, de outro, uma educaçãofamiliar e escolar Bourdieu,em especialsuas atividadesde sociólogoengajadoem alguns movimentossociaisde
capaz de colocar em suspenso os interesses práticos e de inculcar uma postura gratuita e seu tempo.Otítulo, emblemático,refere-sea uma consideraçãorealizadapor elelogono início,ao

344 SOCIOLOGIA E REFLEXIVIDADE SOC/OLOGIE EST UN SPORT DE COMBAT {LA) 345


afirmarque "a sociologiaservecornoum esportede combatee, cornotal, servepara se defender, urna análise setorial do ramo imobiliário da economiafrancesa. Mas não é difícil dizer que
não deveservir para atacar".Mas, defenderquem, do quê?Defenderaquelesindivíduosque se o livro é exatamenteo contrário disso. O espaçoda políticaimobiliária, construção,compra,
encontramem situaçãode perigosocialrealou iminentediantedos poderesque os oprimem- os venda e financiamento de imóveisé aqui utilizado para dar substância a uma sociologiada
governosde direita e/ou de esquerda,que na práticaoperam de forma semelhante;a mídia, ao economia.Nela a lógicasocial que impele os atores e fixainstituições e atos é estudada indu-
elaborarum discursoque ilumina determinadasdimensõessociaise obscureceoutras;as asso- tivamente, num exemploalentado de conclusõesbaseadas na metodologiasociológicadas
ciaçõesinternacionaistrilateraisde créditoe fomento;os organismospatronais,etc.A sociologia "mãos sujas" explicitadapor Hirsch (1990).A análise se realiza a partir do comportamento
pode ajudar a explicar-lhesmelhora situaçãoquevivenciam,as causassociaisque conduziram empírico dos envolvidose da construção das instituições,sem pressupostosextraídos de al-
seusdestinosa essacondiçãode desfavorabilidade. Entretanto,explicar,descrever,mostrarnão é guma antropologiafilosóficaque confereracionalidadeao ator e às instituições.Ao contrário,
solucionarnem transformar- daí a necessidadedos movimentossociaisorganizados. a pesquisa mostra a especificaçãoprogressivade novoshabítus econômicossendo lapidados
A fita é repleta de entrevistas concedidas por Bourdieu a pesquisadores, a programas a partir da socializaçãomais ampla daquelesque se envolvemcom o ramo imobiliário,sejam
radiofônicose televisivos,além de registrar várias de suas participaçõesem debatespúblicos eles consumidores ou membros dos diversoselos da cadeia produtiva do setor, incluindo os
em instituiçõesacadêmicase associaçõesculturaisvinculadasa outras entidadesda sociedade agentes governamentais.
civil. Não se excluem,ainda, reuniões de trabalho com sua equipe de pesquisadorese com Nessaprimeira versào,na ARSS, cada artigo que depoisserá consolidadoem capítulono
seus auxiliares administrativos; aulas e exposiçõesque integram seu métíer de professor e livro,tem coautoriade colaboradoresconstantesde Bourdieudaqueleperíodo:Moniquede Saint
rápidosflashes que o mostram em momentosde tensão e de relaxamento.Cariesnão parece Martin, RosineChristin,ClaireGivrye o estatísticoSalahBouhedja.O prefáciode Bourdieuna
tão preocupadocom a duraçãodo filme,pois tudo o que considerourelevantenas andançasde publicaçãoemrevista,portantovoltadaa um públicoespecializado, indicaurnapreocupaçãocentral
Bourdieuacaboupreservandona montagem:a longa explicaçãodo sociólogosobresua noção comos resultadosda políticahabitacionalfrancesada décadaprecedentesobrea formataçãodas
de capital cultural; as consideraçõesacerca de suas origens sociaise formaçãoacadêmica;as classesmédiase a estruturaçãodas famíliasdaquelepaís (BOURDIEU, 1990).Naversãopublicada
conversascom outros intelectuaisem que vai delineando seu método de trabalho, a "cozinha em livro dez anos depois,os objetivossão mais amplose indicamurna tentativade diálogocom
da pesquisa"e formas de artesanato intelectual;sua interpretação da dominaçãomasculina, economistase coma florescente"novasociologiaeconôrnicà',praticadanos paísesanglo-saxões.
do papel do estado e das reformas neoliberais,baseadas na dissociaçãodo econômicoe do É assim que, além da consolidaçãoe ediçãodos "findings",o livro apresentaprefácioe posfácio
social;o combate à tendência anti-intelectualista,que dá o tom em boa parte dos movimen- reescritos,indicandoos novosinterlocutorese a abrangênciapretendida.
tos sociais e seu orgulho em se reafirmar um "agitprop" ("agitadorprofissional"),que tanto Os diversoscomponentesda política imobiliária são expostoscomo a construção de um
horror causou a intelectuais ligados ao governo socialista francês no início dos anos 2000. mercado q1,1e, não por acaso, é aqueleque alavancaa economia.Um dos índices mais aguar-
Nãose perde de vista, igualmente,extensasessãode debatesem um auditóriode um banlíeue dados pelos analistas econômicosé o da evoluçãoda construção civil, pois, quando cresce
parisiense,em que Bourdieupassa por maus momentos,recebendocríticase reagindo,quan- o número de unidades ou a metragem em obras, toda uma série de indústrias (materiais de
do um dos participantes sai em sua defesa: "C'estBourdieu, pas Dieu!".E acrescenta bem- construção, eletrodomésticos,móveis e transportes) também é estimulada, aumentando a
humorado que em seu duro cotidiano eles também "tentam ser sociólogos,mas vira-latas". atividade no setor de indústrias de matérias-primas e componentesque as alimentam.
Reafirmandoque a única maneira de enfrentar tal situação adversa seria à organização Naanálisede Bourdieu,o "produto"residênciaseconstróie sedefinea partirdedados"objetivos",
de movimentos sociais com objetivosbem definidos, defende a necessidadedos sociólogos normalmentetrabalhadospelosengenheiroscivise economistase de dadosditos"subjetivos", que
fazeremsua própria sociologia,fazerem autossocioanálise."É fazendo a socioanáliseda sua costumamsera zonade diferenciação profissionaldosarquitetose especialistasemmercadologia.É
própria experiênciaque se pode servir sociologicamente.Aliás, o próprio trabalho da pes- justamentena novaconformaçãoqueo habítusprimárioadquirequandotemdeservirdereferência
quisa é uma socioanálise (...] Aprende-semuito sobre si mesmo [...] Um professor aprende às estratégiasdos indivíduose gruposno novoespaçoda políticahabitacionale do territórioque
mais sobre seu inconscienteestudando o sistema escolar que estudando a obra de Freud". estavase formandoquese faza junçãoentreas duasesferasnormalmenteapartadasda análisede
um setor que é da economia,mas também configuraurna esferacentralda sociabilidade.O caso
da políticahabitacionalfrancesados anos 1960até 1980é exploradocomoexemplodas diversas
193. STRUCTURES SOCIALES DEL'ÉCONOMIE (LES) transformaçõessociaise cognitivasquevãoprogressivamente configurara contemporaneidade de
·······················································································································
Roberto Grün urna sociedadecapitalista,comoa interaçãoentrediversasagênciasgovernamentaiscentralizadas,
governoslocaise váriossetoresda iniciativadita "privada",que se frequentame acabampor se
BOURDIEU,P. Les structures socialesde l' économie.Paris: Seuil,2000. constituirem espaçosde diálogoe de interpenetraçãoque irão reconfiguraro espaçosocialna
múltiplaacepçãode novasregulamentações, novashabitualidadese novospadrõesdesociabilidade.
Bourdieupublicouesselivro a partir de pesquisacoletivado Centrode SociologiaEuropeia Assim,estamosdiantede urna apresentaçãodetalhadae consistenteda criaçãosocialde um novo
que, inicialmente, saiu na ARSS (1990).Numa primeira aproximação, estamos diante de mercado,justamentea ambiçãomaior da "novasociologiaeconômicà'.

STRUCTURES SOCIALES DE L'ÉCONOM/E (LES) 347


346 STRUCTURES SOC/ALES DE L'ÉCONOM/E (LES)
No terceiro capítulo é analisada a questão do crédito necessário ao financiamento e, por-
tanto, à expansão do setor imobiliário.Nessetópicotemos também uma análise das interações
entre os corretores, agentes bancários e os clientes que se candidatam ao crédito, além da
explicitaçãodo conjunto de tecnologias sociais e cognitivas que ajustam as expectativas dos
consumidores, em geral superdimensionadas, às suas "reais" condições de pagamento e, por-
tanto, do padrão de residência que está ao seu alcance. A análise das démarches termina por
conformar as expectativasdos clientesà realidade do momento financeiro- seu e da economia.
Os textos iniciais e finais trazem o livro para as preocupaçõese debates em torno da nova
sociologiaeconômica e da evoluçãoda doutrina econômica contemporânea e do capitalismo
propriamentedito rumo ao neoliberalismo.Temosuma discussãocurta e densasobrea diferença
entre sociologiae economia.A primeira é normalmentedesprezadapelas elitesdominantese por
isso,paradoxalmente,deixadalivrepara perseguirsua lógicapuramente intelectual.A economia,
por sua vez, é vigiadade perto e cobradasistematicamente,a ponto de s·etornar uma "ciênciade
Estado",normativa,quenão diz comoas coisassão,mas comodeveriamser se quisermosser racio- 195. TAXIONOMIA ···················
nais.Nessaapresentaçãoé expostade maneira contundentea visãode Bourdieusobreo papelmais ····································································································
Maria Alice Nogueira
frequenteda teoriaeconômicana sociedadecontemporânea,bastante próximodaqueleconferido
ao Direito.Essa tendênciaaparececom o próprio adventodo capitalismo,sendo exacerbadanos "Taxionomia"é um termo de uso correntena obra de Bourdieu.E- empregado para de~rgn_
· ar
anos 1990com o inícioda construçãodas instituiçõesda UniãoEuropeia(SSE,22-23). as operações mentais - cotidianamente efetuadas pelos agentes sociais - de cate_gonzaç::
Os dados coligidospela equipede Bourdieupermitem uma série de questionamentossobreo da realidade social e de etiquetagem das pessoas e das coisas. Mas adverte que nao se tra_
fundamento científicoda teoria econômicaortodoxa.Ainda que sua própria análise mostre seu de "uma pura construção intelectual" (EE, 187),pois essas categorias de pensamento sao
caráter normativo,lembra que ela se impõe, ao menos em parte, pela aura de científicidadeque
socialmente constituídas. · .
gozajunto à população e especialmentejunto às elites.Nos textos finais do livro encontramos Na própria definição do autor, são "sistemas de classificação(taxionomi:s) que orgam-
uma crítica dos fundamentos analíticosdaquelateoria econômicae uma exposiçãosobre como zam a percepção e a apreciação, e estruturam a prática" (EE, 187) e_que estao gravad~s_na
e por que eles se opõem a uma economiadas práticas do mercado imobiliário.A te.oriaeconô-
linguagem corrente. Esses sistemas classificatóriosfuncionam por mero de pares de oposrçoes
mica se definejustamente contra as práticas efetivasencontradas no trabalho de campo e, por • • e o vulgar, etc.) que, sub"Jefrvamente
(a esquerda e a direita, o grosseiro e o fino, o d1stmto
esse caminho, Bourdieumostra como ela se constitui numa abordagemnormativa (SSE,241). interiorizados, tornam-se princípios de visão e de divisão social. Ao mesmo tempo em que
Por fim, deve-se consultar o balanço que o economista Robert Boyer,fundador da Escola são estruturados (a partir das condições objetivas de existência),têm poderes estruturantes
da Regulação,faz da relação entre a sociologiade Bourdieu e sua própria corrente na econo-
de instituir formas de clivagemsocial. _
mia, na qual reconhece a contribuição específicado sociólogoe a convergênciapossível,e em Trata-se, com efeito, de um conhecimento prático do mundo, sem o qual nao se co~~e-
alguns casos efetiva, entre as duas abordagens (BOYER, 2003). guiria viver e agir na realidade social. Segundo Bourdieu, "nossa perce~ção e nossa ?ratrca
[...] são guiadas por taxionomias práticas, oposições ent_reo al~oe o ~~rxo, o masculmo ~:
Referências
0
viril) e O feminino etc. e as classificaçõesque essas taxionomias p~a~1caspr~du:em dev
BOURDIEU,P. Un signe des temps. ARSS, p. 2-5, 1990.
sua virtude ao fato de serem 'práticas', sem as quais a vida se tornana 1mposs1v~~(CD_p, 92).
BOYER,R. L'Anthropologieéconomiquede Pierre Bourdieu.ARSS, v. 150,p. 65-78,2003.
Talvez se possa dizer que foi no artigo "As categorias do juízo professoral , escnto em
HIRSCH,P.;MICHAELS,S.;FRIEDMAN,R. CleanModelsvs Dirty Hands: Why Economicsis Differ-
coautoria com Monique de Saint Martin e publicado em 1975 em Actes de la R:cherche
ent from Sociology.ln: ZUKIN,S.;DIMAGGIO,P. Structures of Capital: The Social Organization
en Sciences Sociales, que Bourdieu ilustrou melhor suas ~~eiassobre ~,qu_estao,ao se
of the Econorny.NewYork:CambridgeUniversityPress, 1990.p. 39-56.
debruçar sobre o caso da produção da "taxionomia escolar (exemplos: bnlhante/sem
brilho; leve/pesado", etc.).
i 94. SUJEITO
1%. TELEVISÃO ······················
Ver:Agente ·································································································
Ver:Mídia
TELEVISÃO 349
348 SUJEITO
197. TEMPO a tradições que trabalhavam contra a transmissibilidadeda terra; ou mesmopodem apostar
-A~~ ·r;;~;~
............................................................................................
M~-;i;~~; quaseno vazio,acreditandoque tudo se tornou possível,comoos assistentesdas universidades
na crise de 1968,exploradaem Homo academicus. A illusio é constituídapela relaçãoentre
A noção de tempo tem na sociologiaantropológicade Pierre Bourdieuuma centralidade as expectativas incorporadas e as possibilidades reais que se oferecem no campo. Porém,
que foi pouco destacada.É, por outro lado, um dos conceitosque permite ver melhor a vin- quando a illusio não se concretiza neste campo, as lusiones perdem a coerência.
culaçãode sua obra com a fenomenologiahusserliana, assim como suas rupturas. Deixadasde lado, tanto uma metafísicado tempo objetivocomouma filosofiasubjetivista
Em su_aideiado eu comosubstratode habitualidades,Husserldistingueentre a constituição da temporalidade, o agenteé, enquanto corpo socializado,tempo finito desenvolvendo-sena
do tempounanente,objetivo,e a experiênciaantepredicativado fluxoda consciência,constituído sucessãode suas práticas, produzindo e reproduzindo o mundo social em que habita e que
por um agoraquecontémem si o instante imediatamenteanterior,enquanto"haversido"ainda o habita. A prática não está no tempo, mas simfaz o tempo. Deste modo, a experiênciado
presente,que vai se desvanecendoprogressivamente"comoa cauda de um cometa".É O que tempo não é universal nem homogênea.Desde a fixaçãonas coisas que duram e no uso do
chamade retenção. Porém,no mesmo"agora"em movimento,se antecipatambém O porvir,ao tempo gratuito e despreocupado da aristocracia, aos apuros de um tempo sempre escasso
modo em que pressentimosa continuaçãode uma melodia,comosendotransportadospor sua na pequena burguesia (LD,241),ou ao tempo superabundante,mas inútil e sem valor social
estrutura. Husserlchama a esta antecipaçãode protensão. O tempo objetivo,por outro lado, é dos desocupados (LD,264), a possibilidadede herdar dos ancestrais ou acumular capitais
produtode um ato segundo,atencionale reflexivo,no qual é possívelvoltar-sesobrea retenção diversosao longo da vida está desigualmentedistribuída. A experiênciadesigual do tempo,
e a ?rotensão para produzir recordações e expectativas que se diferenciamdaquelasem seu das chances efetivas e das expectativasvinculadas a trajetórias se corresponde com distri-
carater de representaçãoconsciente,tematizada(HussERL,1959,1962). buições desiguais de capital, que em suas diferentesespéciespodem ser consideradascomo
Essa ideia husserliana é retomada por Bourdieu desde os seus primeiros textos sobre "um conjunto de direitos de compreensãosobre o futuro" (MP,255, 267).
ª.~r~élia para explicar a diferença entre a experiênciado tempo dos camponesese a expe- Desde a análise do baile que excluios camponesessolteiros de Béarn, Bourdieuprestou
nencia suposta nas práticas próprias do sistema capitalista - centrado no espírito do cálculo atenção ao ritmo (ao qual alude com frequênciautilizando o termo musical "tempo") como
(BoURDIEU, 1963;MP,66) e continuará implícita em sua teorização até seus últimos livros e um indicador do habitus. É o ritmo o que se grava no corpo uma relação com a duração por
artigossobrea sociedadefrancesa(SSE).Sóque para Bourdieunão é a subjetividadetranscen- meio da qual se incorpora a ordem social:o tempo das atividades coletivasse impõe como
de~ta~~ substrato d~ssasfasestemporais,mas sim o habitus talcomo ele o entende,ou seja,o imperativo de honra aos cabilas, convocadosa não se singularizarem (SP,127). Por outro
prmcip10de operaçoesde um corpo socializado.Desta maneira, as Meditações cartesianas lado, os estudantes francesesestãohabilitadosa romper os quadros temporais da vida social,
de Husserldão lugar a suasMeditações pascalianas. A cumplicidadeontológicaentreDasein invertendo inclusive os horários do dia e da noite (LH,48; MP, 266). Porém, se o tempo é
e Welt de Heidegger,o discípulo de Husserl,se converteu em cumplicidadeentre habitus e uma chave para os processos de incorporação da hexis, a hora de analisar a dominação e
campo como cumplicidadehistórica (RP,172;MP, 37, 170). as estratégias políticas de dominantes e dominados também o é. Quanto mais pessoal é a
_Aol~ngo d~s anos fará sujeitar essa transposição conceitual e crítica da filosofiapara a dominação e mais pesa o capital simbólico enquanto percepi de capital, mais inversão de
soc10log1a analisandoa herança,os tipos de capitale a reproduçãosocial;o significadodo lapso tempo é requerida ao dominante para sustentar sua posição:isso ocorre na sociedadecabila
entre dom e _contradome a manipulação do tempo para a dominação nos diversoscampos; e na universidade francesa. No intercâmbio de dons, o lapso que transcorre entre o dom e
0 v~o_rclassificadordos usos do tempo nos estilos de vida; a incidênciadas trajetórias sobre o contradom é o que estabelece uma proteção que possibilita a denegação de seu caráter
posiçoes e :ºm,adas de posição; a temporalidade específica da posição de observador que obrigatório e interessado.Por isso, no manejo do ritmo dos intercâmbios estão baseadas as
assume o cientificoe suas consequênciasepistemológicase ético-políticas. estratégias para tirar o maior proveito,seja no caso do cabila que dilata a resposta diante de
. O habit~s é o,lugardas retenções,como um fundo de experiênciaque se mantém poten- um pedido de casamento para usufruir mais amplamente as vantagens dessa posição (SP,
cialmented~spomvele que, em uma configuraçãoespecíficado espaçosocial,antecipando-se 181),seja no caso do professor de universidade que, sob o discurso da imaturidade de uma
aos a~ontecimentosrazoavelmenteesperáveis,se desdobra em estratégias pré-reflexivas.A tese, dilata o prazo da defesa para manter o autor da mesma sob tutela e resguardar, assim,
capacidadede antecipação- que não é, então, o mesmo que a previsibilidade- do cenário se a ordem de sucessão esperada (HA).Neste âmbito do pré-reflexivo,em que a crença é um
torna, ass~m,fundamental para a reprodução social, que é sempre também produção, dado solo implícitosobre o qual se apoia o laço social, quanto mais ritualizadas são as interações,
º. fundo disponívelda potencialidade do habitus - marcado por uma trajetória social par- mais eficáciasocial tem o manejo do tempo. Porém, também ocorre o contrário, em situa-
ticular_- e a~ modificaçõesque se produzem no campo. Quando neste se geram mudanças ções com alto grau de indeterminação - como acontecenos momentos de crise ou quando
demasiadov10lentas,ou por alguma razão o habitus do agentenão encontra maneira de nele se diversificamos agentesem um campo-, quando há mais possibilidadesde manipulação
se apoi~rpara a ,ant~cipação,o agente se vê jogado ao desconhecido,e pode repetir práticas das expectativasdesconcertadas,mas também quando é possívelintroduzir uma novidade
conhecidas,porem meficazes,como os camponesesdesenraizados da Argélia,que vendiam que modifica as posições, em termos de utopias, projeto, programa ou plano não aceitável
a perda em um mercado cujasregras ignoravam,ou os berneses, que continuavamaferrados em situações de estabilidade (MP,277-278).

350 TEMPO TEMPO 351


série um conjunto de trabalhos que estavam pouco acessíveis(EA).Temos então material
Finalmente, é fundamental na sociologiade Bourdieu não confundir esta experiência
sistematizadopara refletir sobre os diversossignificadosdo termo "trabalho" nessa fase em
pré-reflexivado tempo,que estrutura as práticascotidianas,urgidaspelo"o queé precisofazer",
com o tempo específicoda prática científica,tempo objetivoe totalizadordaqueleque assume que a antropologia do desenraizamento é a sua preocupaçãofundamental.
A categoriatrabalho,num sentidoquepoderíamoschamaraproximativamentede sociologia
a posiçãode observador;e, na atitude analítica,o descontínuovolta a ser contínuo,convertea
do contemporâneo,aparece em diversostextos posteriores,sendo digno de nota o prefácio
experiênciade tempocircularem calendáriolinear,a experiênciado espaçopraticadoem mapa
de Bourdieu ao livro de Lazarsfeld;Jahoda et al. (1981)sobre os desempregadosaustríacos
abstrato,os intercâmbiosmatrimoniaisocorridosdurante geraçõesem incertezae a negociação
durante a grande depressão de 1929,que Bourdieupublica na coleçãoque edita. É por esse
em esquemasde genealogiasque permitem observá-lostota simul. A skhole, enquantotempo
caminho da vivência do desempregoque Bourdieu faz a ligação entre a categoria trabalho
livre e liberadodas urgênciasdo mundo, imprescindívelpara a prática dentífica, tende a fazer
na antropologia e na sociologia.Os marxismos então prevalecentesenfatizavama q~:st~o
esquecero caráter específicoda temporalidadedas práticas sociaise dificultaa compreensão
da alienaçãono trabalho como parte da exploraçãocapitalistae, a partir de sua expenencia
de seu significado,em uma teoria da ação que confunde razoabilidadecom racionalidadee a
argelina, Bourdieu enfoca o trabalho como forma de inscrição dos indivíduos e grupo na
lógicaanalógicado sentidopráticocoma lógicaunívocada lógicacomodisciplina(MP,247-249).
sociedade.É assim que se forma a chamada "socioantropologiado trabalho".
Sem ignorar a abordagemmarxista, Bourdieuvai insistir a partir daí no que chamou de
Referências
BOURDIEU,P. La société traditionnelle. Sociologiedu Travai!,v. 1, 1963.
"duplaverdade do trabalho",unindo a ponta da exploraçãoeconômicaà da ques:ãoidentit~-
ria. E a grande inovaçãosociológicaestavajustamente na ligaçãoda identidadea exploraçao
HUSSERL,E. Fenomenologíade la concienciadei tíempoinmanente(1928).Buenos Aires: Nova, 1959.
como fundamento possante dos constrangimentosproduzidospela situação de trabalho em
HUSSERL,E. IdeasI (1913).México:Fondo de Cultura Económica, 1962.
regime capitalista.O exemplodo jovemaldeãofilhode mineiro de carvão quevia a ~esci~aao
poço como prova de masculinidade, abandonando qualquerpossibilidad~de carr~iralig_ada
198. TEORIA a uma escolarizaçãomais prolongada e abraçando um destino que mmtos cons1deranam
inaceitável,mostrava historicamente essa questão.
Ver:Epistemologia A dupla verdade consiste teoricamente na necessidadeprimeira, associada à sociologia
marxista, de mostrar a realidade objetivado trabalho, que é aquelareferidaao trabalho como
199. TRABALHO exploração econômica. Para aceder a essa percepção, o trabalho deve ser visto_como pura
relação comercial,destituída de qualquer "perturbação" que impeça a percepçao de que se
Roberto Grün
trata de um contrato aparentementeentre iguais que encobrea desigualdadeentre a forçado
empregador e a fraqueza do empregado.Para que essa visão prevaleça,quaisquer atrativos
Bourdieuse ocupa com a categoria"trabalho" no início de sua carreira como antropólogo
ligados à condição do trabalho ou a de trabalhador devem ser desconsiderados. Es~aé a
na Argélia,que entãoluta para romper os laçosde dependênciacom a França.Nessecontexto,
"primeira verdade".Bourdieuse escora em textos menos conhecidosde Marx para assmalar
o termo tem dois enfoques,apenasparcialmentedivergentes.De um lado, o trabalho do cam-
ponês nas comunidades rurais ainda não totalmente incorporadas ao universo capitalista, que a percepçãode tal verdade é um caso raro e mesmo limite. ,
A "segundaverdade" é a vivênciasubjetivada situação de trabalho. E ela que corre~pon-
mas praticando ainda em grande parte um modo de vida ditado ou pensado pelos ciclosda
de à experiência cotidiana, na qual todos investem diversas libidos nas esferas relac10nal,
natureza. De outro, a experiênciade vida dos camponeses desenraizados e transformados
cultural e identitárias. Como o local ou a situação de trabalho é eixo fundamental para a
em subproletáriosque tentam escavar a vida nas cidades coloniais,nas quais as referências
constituição das redes sociais, há uma satisfação intrínseca ligada a "ir trabalhar" e um
formadas na socializaçãoprimária original estão longe de dar conta das circunstâncias efe-
incremento em capital simbólicono "crescimentoprofissional"que tornam cada vez menos
tivas do cotidiano. Nessaprimeira fase, o termo "trabalho" tem o significadopreponderante
provávela preponderância da "primeira verdade".Nas palavras de Bourdieu,"a experi_ência
de "labuta",da relação que o homem tem de estabelecercom a natureza e os outros homens
do trabalho se situa entre dois limites, o trabalho forçadoque é integralmente determmado
para ganhar, no sentido de ter e merecer,uma vida digna. É importante termos em conta as
pelo constrangimento externo e o trabalho escolásticodo qual o limite é a atividade quase
ressalvasnecessárias introduzidas por duas traduções complexas,a primeira do árabe e do
lúdica do artista ou do escritor; quanto mais se distancia da primeira, menos se trabalha
berbereargelinospara o francêse a segundado francêspara o português.Issoporqueboa parte
diretamente por dinheiro, cresce mais o "interesse" pelo trabalho e cresce também o sen-
do esforçode Bourdieudessa fase estavajustamente na tradução para o francês dos termos
timento de plenitude ligado ao fato de realizar o trabalho, da mesma maneira que ~resce~
argelinos usados nos sistemas simbólicosque davam conta das relaçõessociais e cósmicas.
interesse ligado às gratificaçõessimbólicasassociadasà profissão,ao status profiss10nale a
Essa fase do percurso intelectual de Bourdieu está registrada nos primeiros livros sobre a
qualidade das relaçõesde trabalho, que costumam guardar relaçãoestreita com o interesse
Argéliaenas duas grandes sínteses antropológicasgeneralizantes,ou teóricas (SA;DR;ETP;
SP).Mais recentementeuma recolha sistemáticarealizada por TassaditYacineacrescenta à intrínseco pelo trabalho" (RP,241).
TRABALHO 353
352 TEORIA
A formulação"interesseintrínsecopelotrabalho"tem uma enormeimportânciaem diversos onde ela se passa, o conjunto das relações objetivasque ligam o agente em questão [...] ao
segmentosda sociologiade Bourdieu.Na sociologiado Estado,eleserá um fator determinante conjunto dos outros agentes presentes no mesmo campo e que se defrontam com o mesmo
na possibilidadede haverfuncionáriosdedicadosao aparentementeabstrato interessecoletivo espaço de possíveis". Associadasobretudo ao capital cultural herdado, a trajetória passa a
(RP).Na sociologiado trabalho propriamentedita, ela aparececomo ponto central dos jogos ser um dos elementos "do sistema de princípios explicativosdas práticas" [... ] dentro de
de enquadramentoque consagrama dominaçãocapitalistados diversosarranjos produtivos: um determinado campo (LD; 593). Constata-se, igualmente, uma associação entre traje-
''Asnovastécnicasde gestãode empresase em particular tudo o que é englobadona rubrica de tória e habitus, na medida em que Bourdieu (SP,94) o define como "a presença atuante de
'gestãoparticipativa'pode ser entendidocomotentativasde tirar partido, de maneirametódica todo O passado do qual ele é o produto".O tempo passa então a ser mobilizadocomovariável
e sistem~~ca,de todas a~possibilid~~esque a ambiguidadedo trabalho ofereceàs estratégias analítica, dentro de uma abordagemao mesmo tempo sincrônicae diacrônicada sociedade.
patronais (RP,244).Maisuma vez e Importanteligar essa análise à formulaçãosobrehabitus Asprimeirasutilizaçõesdo conceitode trajetórialigamestreitamenteo agenteao gruposocial
e tudo o que a separa da ideia de ideologianormalmente utilizada nas sociologiascríticas.A no qual estáinserido.A trajetóriamodal,ou seja,a trajetóriamais provávelde um agentedentro
"segundaverdade"exploraa estrutura socialincorporadano corpo e alma do trabalhador.A de seu grupo de origemé sempredefinidaem termosde probabilidades,ou melhor,de espaçoou
simplesrevelaçãoverbal da "primeiraverdade"não impede o funcionamentoautomáticodo "campode possíveis",na medida em que "a homologiaentreas posiçõese as disposiçõesdentro
habitus. E não é assim por acaso que ela normalmente tende a ser rejeitada,já que entra em do camponunca é perfeità' (NE,259)."Tudopermitesuporqueos indivíduosseparadospor essa
choquecom as estratégiasidentitáriasdos trabalhadores,que são construídasa partir das refe- fronteiraestatísticase opõemsobváriosângulos[... ];oposiçõesessasquesãoparte integrantede
rênciasproduzidasno trabalho e da sua posiçãoespecíficana hierarquianos coletivoslaborais. estilosdevidaligadosàstrajetóriassociaise às diferentescondiçõesde exercíciodeuma profissão"
~ "pr~eira verdade"só apareceentão em condiçõesmuito especiaisem que se esvaio capital (LD, 522).Reconheceigualmentea existênciade trajetórias"individuais"ou "singulares",_que
simboliconormalmenteassociadoàs posiçõespatronais ou gerenciais. consistem"em respostasa um estadodeterminadode oportunidadesobjetivamenteoferecidas
O coletivode pesquisadores que acompanhou Bourdieu em distintos momentos de sua pelahistóriacoletivaao conjuntode uma geração"(LD,337).Asvariáveisassociadasà trajetória~e
carreira se ocupoude diversasfacetasda sociologiado trabalho. Assim,não é exagerose falar cadaindivíduopodemrevestiruma infinidadede diferençassingularesquelevamem contanao
numa "sociologiado trabalho bourdieusiana", interessadaem diversostópicosda atualidade, apenasseupontode origem,mas igualmentea influênciadaslinhagensàs quaiseleperten_ce. No
quevão do trabalho gerencialde enquadramento (VILLETTE, 1979)ao trabalho nas empresas entanto,0 espaçodos possíveispróprioao campocontinuaa limitar seu percursoe a explicaros
de alta tecnologia(BALAZS; FAGUER, 1996),passando pelo exemplartrabalho taylorizadonas meandrosde cadatrajetória.Nessesentido,a trajetóriasereferesempreao indivíduosocialmente
montadoras de veículos(BEAUD; PIALOUX, 1999). construído,não ao indivíduobiográfico.Em seu artigo "A ilusão biográficà', Bourdieu(1986,
p. 70)enfatizaque é impossível"esquivara questãodos mecanismossociaisque favorecemou
Referências autorizama experiênciaordináriada vida comounidadee comototalidade",pois,segundoele,a
BALAZS, G.;FAGUER, J.-P.Unenouvelleformede management,l' évaluation.ARSS, v. 114,p. 68-78,1996. singularidadedos indivíduosse forjasimultaneamentenas e pelasrelaçõesso~iais. .
BEAUD,S.; PIALOUX,M. Retour sur la condition ouvriere: enquête aux usines Peugeot de O uso da noção de trajetóriaassumemaior importânciana obra de Bourdieua partir de La
Sochaux-Montbéliard. Paris: Fayard, 1999. distinction (1979),onde evocapela primeiravez o que chamade "efeitode trajetórià',ou seja,a
LAZARSFELD,P. F.; JAHODA,M. et al. Les Chômeurs de Marienthal. Texte imprimé traduit de ideiade que"agentesdotadosdasmesmaspropriedadese ocupandoa mesmaposiçãosoci~ [po~em
l'allemand par FrançoiseLaroche,préface de Pierre Bourdieu. Paris: Minuit, 1981. ter]uma trajetóriasocialdiferenteda trajetóriamodalde seugrupo"(LD,122,124).Elenao deixa,
VILLETTE,M. La carriere d'un "cadre de gauche"apres 1968.ARSS, v. 29, p. 64-74,sept. 1979. porém,de enfatizarque a trajetóriaindividualpermanece"fortementerela_cionada às diferença~
de estrutura do capitalpossuído[...] e particularmenteao volumedo capitalculturalherdado
(LD,90),na medida em que a origemsociale a linhagema que pertenceo agentecondicion~
200. TRAJETÓRIA
tipos de experiênciasparticulares.Nessecontexto,o habitus, princípioativoq~e dá unidadeas
·······················································································································
Angela Xavier de Brito
representaçõese às práticas,"é a propensãoda trajetóriasocial,individuale cole~va,,~uesetrans-
formana inclinaçãopor onde essatrajetória[...] tendea se prolongare a se realizar (LD'.3~8~.
.B~u~di~utem uma f~rma_pa~tic_ular, :mbora relativamentetardia, de utilizar a noção de Às noções de trajetória modal, coletivaou individual, acrescentam-seas de _traJeton_as
traJetona, mtegrando-a as prmcipais noçoes de sua teoria - habitus, campo e as diferentes ascendentese descendentes;passadas e potenciais;cruzadas,interrompidas,desviantes,dis-
formas de capitais.A trajetória social se refereoriginalmente "à evoluçãoao longodo tempo persas ou de trânsfugas.O que as vai diferenciaré a históriafamiliar,relacionadaaospro~essos
de_prop~iedades",tais como o volume e a estrutura do capital do grupo analisado, "que dá de desclassificaçãoe reclassificaçãodecorrentesde sucessivasconversõese reconversoesna
ongem ~s representações subjetivas inerentes à posição objetivamenteocupada" por cada vida do indivíduo, principalmente quando há mudança de fração de classe.
agente desse grupo (LD, 528).Bourdieu (1986,p. 72) pensa que "só se pode compreender Dez anos mais tarde, La noblesse d'État (1989)apresentauma análiseempíricado campo
bem uma trajetória à condição de construir anteriormente os estados sucessivosdo campo das grandesescolasfrancesas,colocandoem relevoa influênciado trabalhode consagraçãoque

354 TRAJETÓRIA TRAJETÓRIA 355


essas instituiçõesimprimem sobre as trajetórias de seus alunos. No restante de sua obra, esse
conceitomerecebrevemenção,quenão afetaseu tratamento.Detecta-se,atravésda históriadesse
conceito,a influênciado estadodo campoda sociologiafrancesapor voltados anos 1980,daslutas
para abandonar os paradigmasentão dominantes,o estruturalismoe o marxismo.Nessaépoca,
o campocomeçaa se abrir em direçãoa correntesqualitativasanglo-saxãs,cujainfluênciaimpõe
a compreensãodo devirbiográficocomoprodutoda interaçãodialéticaentre a determinaçãodas
estruturas e a açãodos indivíduos.Antesexaminados,sobretudona estrutura globale na sincro-
nia, os fenômenossociaispassam a ser analisadostambém em seus componentesindividuaise
na diacronia- abrindoespaçoà emergênciado conceitode trajetória.Populariza-sena Françao
uso dos conceitosde "carreira"(BECKER, 1985,p. 47) e "carreiramoral" (GoFFMAN, 1961,p. 127-
128)adequadosà construçãode modelossequenciais,que facultama análiseda formapela qual
o atorincorporaou integraa estrutura socialsem que nenhum delessejadeterminadopelooutro.
Essaslutas levamDanielBertaux (1976,1980)a propor o abandono do paradigma neoposi-
tivista atravésda interdisciplinaridadee da crítica ao pensamentoprobabilista.Suaabordagem
biográficaconduz à noção de destinos pessoais, que permite dar maior atenção aos aspectos 202. USOSSOCIAISDA CIÊNCIA(OS):PORUMA SOCIOLOGIA
CLÍNICA
concretosdos processosno níveldo indivíduo,sempredentro de uma estrutura de classes.Vin- DO CAMPOCIENTÍFICO(Les usages sociaux de la science: pour une
cent àe Gaulejac(1987)propõe programa semelhanteao articular a sociologiae a psicologiana socio!ogie clinique du champ scientifique)
análisede trajetóriasindividuaisem mobilidadeascendenteou descendentepara mostrar como ································································································································
.
Sylvia Gemignani Garcia
os mecanismossociaise as dinâmicaspsíquicasse entrecruzamna sincroniae na diacronia.Sua
ideia de que o indivíduo está inserido ao mesmo tempo em histórias pessoal, familiar e social
não se afasta muito,no entanto, da concepçãobourdieusianade incorporaçãode um habitus BOURDIEU,P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São
de classe,através do qual as informaçõesnecessárias à prática cotidiana são transmitidas de Paulo:Ed. da UNESP,2004.
geraçãoem geraçãoenquanto "espéciesde programas historicamentemontados" (QS,75).As
dinâmicas psíquicas serão, no entanto, analisadas do ponto de vista da teoria psicanalítica, Proferida no Institut National de la Recherche Agronomique (INRA) em 11 de março
levantandoo problemada identificaçãoinconsciente:os indivíduosnão mais se definemapenas de 1997 no âmbito das atividades do grupo de trabalho Sciences en Questions, a confe-
em relação ao grupo a que pertencem ou à situação social que ocupam, mas em relação à sua rência-debate de Bourdieu foi revista pelo autor com a colaboração de Etienne Landais e
própria identidade - conceitoque Bourdieunão mobiliza em suas análises. Patrick Champagne, sendo este o autor, também, de elucidativo pre~áci~.~ ~rof:sso: do
A introdução da noção de trajetória na obra de Bourdieu revelao papel do estado do campo College de France inicia sua fala destacando ~ importâ~cia de u:;namstitmçao c1ent~~ca
sobre ela e reduz ao mesmo tempo a pertinência das críticas dirigidas à teoria bourdieusiana como O INRA empreender "uma reflexão coletiva sobre s1mesmo . Ele retoma sua analise
por não levar em conta o indivíduo e a mudança social. dos campos científicos, lembrando que se trata de um espaço de enfrentamento entre
duas formas de poder que corresponde a duas espécies de "capital científico", a saber, um
Referências capital que pode ser nomeado como social, vinculado à ocupação de posições_de destaque
BECKER,H. Outsiders. Paris: Métailié, 1985. nas instituições científicas, e um capital específico,que se ancora no reconhec1me~to~elos
BERTAUX, D. Pour sortir de l'omiere néo-positiviste.Sociologie et Sociétés, v. 8, n. 2, p. 119-134,1976. pares. No interior do campo científico duas cate~orias de a~~ntes_s~opõem:~~ c~ent~stas
BERTAUX,D. L'Approchebiographique: sa validité méthodologique, ses-potentialités. Cahiers "puros", que conquistam capital e prestígio cientificos, e os adm1mstradores , c1ent~stas
Internationaux de Sociologie, v. LXIX,p. 197-225,1980. que ocupam postos de direção, acumulando capital institucional e o poder de defimr as
BOURDIEU,P. L'Illusionbiographique.ARSS, n. 62-63, p. 69-72, juin 1986. políticas científicas.
GAULEJAC, V.de. La névrose de classe. Paris: Hommes et Groupes, 1987. o sumário do livro é bastante revelador acerca das linhas de força pontuadas pelo autor
GOFFMAN,E. Asiles. Paris: Minuit, 1961. em seu diálogocom os pesquisadoresdo INRA,onde aparecempequenostópicos como estes:
"os campos como microcosmos relativamente autônomos","as propriedades específica~d~~
201. TROCAS SIMBÓLICAS campos científicos","as duas espécies de capital científico","o espaç~ dos pontos_devista ,
............. i·······································-:································································· "para além das aparências e das falsas antinomias", além daqueles diretamente vmculados
Ver:Bens simbólicos (economia dos) à situação do INRA e de uma recuperação dos debates havidos.
357
3 56 TROCASSIMBÓLICAS USOS SOCIAISDA Cl~NCIA(OS): PORUMASOCIOLOGIA CLÍNICADO CAMPO~IEN!(FICO
(Les usages sociaux de /a science: pour une sociologie clinique du champ sc,ent1fique)
. B~urd~;use ~~cus~a_carac~erizaro INRApela oposição entre a lógica da invençãodos
c1entist_as~uros e a log1cada movaçãoeconômicados pesquisadores"aplicados",uma vez
~ueno mstituto prevalecemambas. Essa instituição pública,investidade vocaçãouniversal
liberada da pressão direta do mercado,em que coexistemduas concepçõesde pesquisa,autô~
~ornas~co~p~tíveise~tre ~i,gozada necessáriaautonomiarelativaque conferelegitimidade
~ atuaçao publicad~s c1ent1st~s.De_staca,
com ênfase,que a autonomiaé a condiçãodo enga-
Jamento.Sendo_ass1~: o cam1~homdicado por Bourdieupara o INRAresidiria num longo
trabalho de soc10analisecoletiva- por meio da qual se fortalece a comunicaçãoracional -,
representando a busca de uma vida científicamais eficaze menos infeliz, algo que nenhum
diagnósticode comitês de especialistasseria capaz de deflagrar.

203. VEREDICTO
ESCOLAR

Ver: Sistema de ensino

204. VIOLÊNCIASIMBÓLICA
GérardMauger

Comocompreenderque"a ordemestabelecida,comsuasrelaçõesde dominação,seusdireitos


e seus tratamentos de exceção,seus privilégiose suas injustiças,consigaperpetuar-se [...] tão
facilmente,com exceçãode alguns acidenteshistóricos,e que as mais intoleráveiscondiçõesde
vida possam aparecer,com frequência,como aceitáveise, até mesmo,naturais?"(DM).
Uma primeira resposta a essa questão reside no uso que fazem os dominantes da força
física, simples ou armada para impedir ou derrubar qualquer revolta. Assim, segundo
Weber,"o Estado é uma comunidade humana que reivindica com sucesso o monopólio do
uso legítimo da violênciafísica em determinado território". Uma segunda resposta encon-
tra-se na coerçãoeconômicae, mais precisamente,na separaçãoentre os meios de produção
e a força de trabalho que, no modo de produção capitalista, obriga os proletários a vender
"livremente"sua força de trabalho. No entanto é inevitávelconstatar que, se na maior parte
dos casos,os dominadosnão se revoltamcontra a dominaçãoque os subjuga,não é - ou não é
somente- por terem receioda repressão(policial,militar, parental, marital etc.).Além disso,
se os explorados não se revoltam contra a exploraçãode que são vítimas, não é - ou não é
somente - sob a égide da necessidade,mas também porque tendem a aceitar sua situação
como inelutável,a percebê-lacomoinscrita "na ordem das coisas".Comoexplicartal adesão?
Marx e Engels(emA ideologia alemã), Weber (emEconomia e sociedade), Durkheim
e Mauss (no estudo das "formas primitivas de classificação")propuseram diversasrespostas
para essa questão.Bourdieunão é, portanto, nem o primeironem o único a sublinhar a adesão
ou a contribuição dos dominados para a sua própria submissão.A novidade,no conceitode
"violênciasimbólica",reside na explicaçãoproposta. Oxímoro que embaralha as fronteiras
entre o material e o intelectual,a forçae o direito, o corpo e a mente, o conceitode "violência
358
USOS SOCIAISD~ CIÊNCIA(OS): PORUMASOCIOLOGIA CLÍNICADO CAMPOCIENTIFICO VIOLÊNCIASIMBÓLICA 359
(Les usages soc,aux de la sc,ence: pour une socio/ogie clinique du champ scientifique)
simbólica" aplica-sea todas as formas "brandas" de dominação que conseguem ganhar a quala interiorizaçãodas "formasprimitivasde classificação''(inculcadaspelosistemade ensino)
adesão dos dominados. "Brandas" em relação às formas brutais baseadas na força físicaou é o fundamentodo "conformismológico"e do "conformismomoral" na origemda experiência
armada (mesmo que a violênciafísica seja sempre também simbólica)."Violência"porque, do mundo enquanto"mundode sensocomum".É nessaperspectivaque a definiçãoweberiana
por mais "brandas" que elas possam ser, tais formas de dominação não deixam de exercer do Estado é ampliada por Bourdieu(SE):além do "monopólioda violênciafísicalegítima",o
uma verdadeira violência sobre aqueles que a sofrem, engendrando a vergonha de si e dos Estado detém o da violênciasimbólica.
seus, o autodescrédito,a autocensura ou a autoexclusão."Simbólica",pelo fato de se exercer Seria então lícito considerar que na obra de Bourdieu a versão do conceitode violência
na esfera das significaçõesou, mais precisamente, do sentido que os dominados conferem simbólica assumiria dois aspectos, o que privilegia a pedagogiaexplícitae a aprendizagem
ao mundo social e a seu lugar nesse mundo (TERRAY, 1996). consciente,enquanto outro enfatiza a pedagogiaimplícita e o conhecimentopelo corpo ou,
Na história das sucessivasdefiniçõesde "violênciasimbólica"propostas por Bourdieu, em outros termos, uma versão para o erudito e outra para o político?De fato conviria, sem
algumas são oriundas dos estudos sobre o sistema de ensino (LR;NE),enquanto outras apa- dúvida, encarar essas duas versões como uma soluçãoconceitual (e também um programa
recem nos trabalhos sobre a etnologiacabila que haviam servido de base para a análise da de pesquisa) para dar conta da inércia da ordem social e, outra, para explicarseu questiona-
dominação masculina (MP;DM),traduzindo uma inflexão - a priori paradoxal - de Marx mento. Oparadoxo - aparente - é que a versãomais desencantadatenha sido contemporânea
em direção a Durkheim. da intensificaçãodos esforçosempreendidospara que a sociologiase tornasse "um esporte
Em sua forma inicial, a "violênciasimbólica"é uma violênciaoculta, que opera priori- de combate"e para disseminar as armas da crítica sociológica.
tariamente na e pela linguagem e, mais geralmente,na e pela representação,pressupondoo
irreconhecimentoda violênciaque a engendroue o reconhecimentodos princípiosem nome Referências
dos quais é exercida.Ela impõe uma tripla arbitrariedade (a do poder imposto, a da cultura DURKHEIM,E.; MAUSS,M. De quelquesformesprimitivesde classification:contributionà
inculcadae a do modo de imposição),violênciadisfarçada,ela se exercenão só pela linguagem, l' étude des représentationscollectives.L'Année Sociologique,v. 6, 1903.
mas também pelos gestose pelas coisas;auxiliar das relaçõesde força,ela adicionaa própria MAUGER,G. Sur la violencesymbolique.ln: MÜLLER,H.~P.;SINTOMER,Y. (Orgs.).Pierre
forçaa essasrelações.Desseponto de vista, o reconhecimentoatribuído pelos dominadosaos Bourdieu: théorie et pratique. Paris: La Découverte,2006. p. 84-100.
dominantesé duplo:reconhecimentoda pertinência das justificativas"religiosas","naturais", TERRAY, E. Réflexions sur la violencesymbolique.
Actuel Marx: autour de PierreBourdieu, n. 20,
"eruditas" etc., a respeito dessa dominação; e reconhecimento suscitado pelas "vantagens" p. 11-25, 1996.
ou pelos "benefíciossecundários" que ela lhes concede.De modo que a violênciasimbólica
só pode ser exercida na medida em que suas vítimas "se privam da possibilidade de uma
liberdade baseada na tomada de consciência"(NE). 20s. VISÃOE DIVISÃO, PRINCÍPIOS DE .
·······················································································································
Essaversãosofreuma importanteinflexãonos trabalhossobrea etnologiacabila.EmMedi- GérardMauger
taçõespascalianas(1997)e A dominação masculina (1998)a violênciasimbólicatornou-se"a
coerçãoque se institui unicamentepor intermédioda adesãoque o dominadonão pode deixar Nos esquemasincorporadosdo habitus estãoimplicadosos princípiosmais fundamentais
de dar ao dominante (portanto,à dominação)quando,para pensá-lo- ou, melhor ainda, para da construção e da avaliaçãodo mundo social. Geradoresde atos de construção do mundo
pensar sua relaçãocomele-, o dominadodispõeapenasde instrumentosde conhecimentoque social - "atos classificáveis"e "atos de classificaçãoque, por sua vez, são classificados'.'(LD,
tem em comumcomo dominante,os quais,limitando-sea ser a formaincorporadada estrutura 544) -, elesestão na origem do conhecimentoprático do mundo social e do sentido da orien-
da relaçãode dominação,fazemcom que essa relaçãopareça natural; ou, em outras palavras, tação social (senseof one'splace) que funcionamaquém da consciência.Mas comodescrever
quandoos esquemasqueeleimplementapara sepercebere se apreciaroupara percebere apreciar a gênesesocial desse sentido das possibilidadese das impossibilidades,das proximidades e
osdominantes(alto/baixo,masculino/feminino, branco/pretoetc.)sãoo resultadoda incorporação das distâncias que sustenta a visão do mundo social?O programa do que poderia ser uma
das classificações,assimnaturalizadas,de que seu ser socialé o produto".Enquantoa primeira sociologiagenéticadas estruturas mentais e das classificações(alto/baixo,forte/fraco,rico/
concepçãoprivilegiavaa pedagogiaexplícitana sociogênesedo habitus, a segunda enfatizaa pobre etc.) conduz a estabeleceruma distinção entre as "sociedadestradicionais integradas"
pedagogiaimplícitae a incorporaçãodas disposições,colocando-asassim fora do alcanceda e as "sociedadesmodernas diferenciadas"(ver,a respeito,MARTÍNCRIADO, 2010,p. 40-47).
consciênciae tendendoa excluira possibilidade,senão de se livrar da dominação,pelo menos Às "sociedadespoucodiferenciadas"correspondeuma aprendizagemprática "por simples
de colocá-laem suspenso.Essaoutra versão- ou, melhor,essa inflexão- da teoria da violência familiarização":"o que se imita não são 'modelos',mas as açõesdos outros" (ETP,285).Além
simbólica,ao registrar o fato de que a dominaçãopode ser exercidaindependentementedas disso, "é através de toda a organização espacial e temporal da vida social e, mais especial-
consciênc~as e vontades(e de quenão bastatomar consciênciapara selivrar dela),vai inscrevê-la mente, através dos ritos de instituição [...] que se instituem nas mentes (ou nos corpos),esses
nos corpos,fora do alcanceda consciência.Dessemodo, além de se desvinculardos conceitos princípios de visão e divisão comuns" (BouRDIEU, 1983,p. 59).No decorrer dessa familia-
marxistas de ideologiae de alienação,ela se aproximada concepçãodurkheimianasegundoa rização, o aprendiz adquire de forma insensívele inconscienteas estruturas cognitivas,as

360 VIOL~NCIA SIMBÓLICA VISÃO E DIVISÃO, PRINCIPIOS DE 361


"formas simbólicas"(comodiz Cassirer),as "formas de classificação"(comodiz Durkheim)
os princípios de visão e divisão que criam "o senso comum". ' comum")e as disposiçõesinteriorizadasno decorrer da experiênciaimplícitada condiçãode
classe(o"habitus de classe"),ou seja,simultaneamentesobreos efeitosprópriossejadas incul-
Nas sociedadesdiferenciadas,a pedagogiaimplícita exercidapela experiênciaprática do
caçõesconscientese das incorporaçõesinconscientes,ou da experiênciatanto prática quanto
mundo socialcoexistecom uma pedagogiaexplícita,"inculcação,metodicamenteorganizada
virtual. Segundo Bourdieu, "assim como o que é transmitido por meio da hereditariedade
como tal, de princípios formulados e, até mesmo, formalizados"(LR,62). ''Adquiridospelas
apren~i~agensmeto~icamente organizadas da escola e, portanto, quase sempre explícitos biológica,é, sem dúvida,mais estáveldo que o que é transmitido por roei~~a heredi~ar!ed~d:
e explicitamenteensmados, os esquemas que organizam o pensamento dos homens culti- cultural, assim também o inconscientede classe inculcado pelas cond1çoesde ex1stenciae
vados das sociedades'escolarizadas"'desempenham uma função semelhante àquela que é um princípio de produção de julgamentos e de opiniões mais estável do que os princípios
executadapelas "formasprimitivas de classificação"das sociedadestradicionais (BOURDIEU, políticosconstituídosde maneira explícitapeloprópriofatode ser relativamenteindependente
da consciência"(LD,529).De maneira geral, a hipótese de Bourdieuprivilegia,portanto, os
1967,p. 368). O Estado - em condiçõesde impor e inculcar, na escala de todo um território,
efeitosda pedagogiaimplícitaem relaçãoaos das pedagogiasexplícitas.Bourdieumenciona,
estruturas cognitivase avaliadorasidênticas ou semelhantes- "exercede forma permanente
igualmente,"o privilégioantropológicoconferidoao presentee, ao mesmotempo, ao espaço
uma ação formadora de disposiçõesduradouras [...] impõe e inculca todos os princípios de
visível e sensível dos objetos e dos agentes copresentes"(MM, 165),e concorda com o fato
classificaçãofundamentais, de acordo com o sexo,a idade, a competênciaetc. [...] cria [deste
de que, "mant.idasinvariáveisas demais condições,existe sempre uma espéciede privilégio
modo] as condiçõesde uma espéciede orquestraçãoimediata do habitus que, por sua vez, é
prático daquilo que é diretamente percebido" (MP, 162).Ora, na medida em que, por um
o fundamento de uma espéciede consensosobreesse conjuntode evidênciascompartilhadas
que são constitutivasdo senso comum" (BOURDIEU, 1983,p. 58-59). lado, enquanto corpos (e indivíduosbiológicos),os sereshumanos estão,à semelhançado que
ocorre com as coisas,situados em um lugar (MM,160)e em que, por outro, nada garante que
Mas a aquisição escolar desse "senso comum" duplica-se com a interiorização das dis-
posiçõesassociadasà experiênciade uma condiçãode classe.Às "estruturas características o espaço social local em que "elestêm lugar" seja um modelo reduzido do espaço na~ional.
"Salvoexceção,os membros das classespopulares 'não têm ideia' do que pode ~er o s1ste~a
de c~ndiçõesde existênciarelativas a determinada classe" (ETP,177-178),correspondeum
das necessidadesdas classes privilegiadas,tampouco de seus recursos a respeito dos quais
habitus de classe.O habitus individual é uma variante estrutural do habitus de classe,em
elestêm também um conhecimentobastante abstrato e sem nenhuma correspondênciacom
que se exprime a singularidade da posição ocupada no interior da classe e a da trajetória. O
0 real" (LD,437). Enfim, na medida em que a experiênciareal prevaleceem relação à expe-
desenvolvimentoulterior da teoria dos campos levouBourdieu a associar,da mesma forma,
riênciavirtual associadaà pedagogiaescolarou àquelada mídia, convémse questionar sobre
um "habitus específico"a cada campo. O conjunto das aprendizagens- implícitase explíci-
a congruênciaou as discordâncias,nas "sociedadesdiferenciadas",entre" habitus nacional"
tas, associadasà vida cotidiana de uma classe,a suas possibilidades/impossibilidades,a suas
liberdades/necessidades,a suas facilidades/proibições-, a percepção reiterada de "indícios (associadoa um conhecimentoabstrato) e "habitus de classe"(associadoà experi~n~iaco~-
creta). Nada garante, com efeito,que a incorporação insensíveldas estruturas sociaislocais
concretosdo acessívele do inacessível,do 'é para nós' e do 'não é para nós"' (SP,107),engen-
no decorrer de uma experiênciaconcreta, prolongada,além de repetida indefinidamente,e
dram expectativassubjetivas ajustadas às probabilidades objetivas que levam a "recusar o
"queconfereum lugar importante à afetividade"(MP,168-169),correspondanecessariamente
recusado"e a "desejar o inevitável"(SP,90).De tal modo que todo habitus de classese dis-
tingue de outro não só por gostos e aversões,-mastambém por tomadas de posiçãopráticas àquelas do espaço social nacional (e, a fortiori, mundial). .
A interrogação sobre esse tipo de tensões aparece bem cedo na obra de Bourd1eu.A
ou explícitasem relação ao mundo social e, mais especificamente,por disposiçõesrelativas
ao futuro, um "sensodo possível"e·um "senso dos limites". passagem acelerada de uma sociedadetradicional ("pouco diferenciada'')~ ,u~a soci~~a~e
moderna ("diferenciada'')tem uma duplaconsequência:por um lado, a expenenciada d1V1sa~
Nas sociedadesdiferenciadas,pedagogia implícita e pedagogia explícita coexistem.De
interior [dédoublement] entre o habitus interiorizadona sociedadetradicionale aqueleque e
modo que o mesmo aprendizado, como o da língua que se diz "materna",é objeto de uma
pedagogiasimultaneamenteimplícita- que está na origemda interiorizaçãode um" habitus imposto pela sociedademoderna (DR,161-177);por outro, o retorno reflexivosobreo ~a-bitus
imposto por sua inadequaçãoà nova situaçãoa ser enfrentada (ETP,300). Essa reflex1V1~a~e
linguístico"- e explícitaque se dá no decorrer da aprendizagemescolarda "língua legítima".
Esse aprendizado escolar é tanto mais fácil ou mais difícil quanto maior ou menor for sua forçada e essa divisão interior, provocadaspela mudança acelerad~das _estrutura,ssociais,
podem ser associadasa outros casosespecíficos:em particular, as m1graçoesgeograficase as
~roximidade da "com~etê~cialinguística" inicial. Bourdieu escreve a respeito o seguinte:
Aprendemosa falar nao so escutando falar certa maneira de falar, mas também falando [...] migraçõessociais,onde as disposiçõesadquiridas,no plano nacion~lou ~oc_ial, encontram-s~
em posição falseadana nova situaçãolocal ou social.A configuraçaopropna desse~~asosfm
nas_trocas ocor~idasno seio de uma família que ocupa uma posição particular no espaço
sociale que, por isso mesmo,propõe à mimesis prática[ ...] modelose sançõesmais ou menos generalizada por Bernard Lahire, que radicaliza a distância entre campos da pratica'.mas
afastados do uso legítimo" (PVD,14). também entre instituiçõesou situações(LAHIRE, 1988,p. 35),de modo que a heterogeneidade
e a incoerência dos esquemas do habitus se tornam a regra, enquanto a coerênciase trans-
Podemos,então,nos interrogar sobre a congruênciaou as discordânciasentre as disposi-
çõesadquiridas explicitamenteno âmbito escolar(o "habitus nacional" na origemdo "senso forma em exceção.Além disso, segundo ele, a defasagementre os esquemasincorporados e
as condiçõesde sua aplicaçãotorna-se sistemática.
362 VISÃO E DIVISÃO, PRINCÍPIOS DE
VISÃO E DIVISÃO, PRINCÍPIOS DE 363
Seé ve~dadequ:, ~e maneira genérica,"as divisõessociaisse tornam princípiosde divisão
q~e org~mzam a _v1sao~o mundo social" (LD,549) por intermédio dos condicionamentos
diferencia~ose.d1~erenciadoresque esíão associadosàs diversas condiçõesde existência,
0
estudo d~ mfluenc1aexercidasobre esses esquemasclassificatóriospelas divisõesda ordem
estabelec1dae pelas modalidadessocialmentediferenciadasde sua interiorizaçãodefineum
programa de pesquisas empíricas,por enquanto apenas esboçado.

Referências

BOURDIEU,P.Espri~d'État,:geneseet structure cÍuchamp bureaucratique.ARSS, n. 96-97,mars 198 .


3
BO~RDIEU,P. Systemesd enseignementet systemes de pensée. Revue International des Sciences
Sociales, v. XIX,n. 3, 1967.
LAHIR_E,
B. L'Homme pluriel: les ressorts de l'action. Paris: Nathan, 1998.
' · d p·
MARTINCRIADO, E· Les deux Al genes dº
e zerre Bour zeu. Broissieux:Croquant, 2010.p. 40-47.

206. WEBER,
MAX (1864-1920)
Remi Lenoir

Bourdieudizia que o que torna difícilpara um pesquisadorutilizar os trabalhos de Weber


é o fato de que aquilo que é transmitido nas exegesese nas vulgatasprofessoraisnão é tanto a
lógicade seu pensamento com seus fundamentos materiais e intelectuais, isto é, a operação
propriamente intelectual o opus operandi (a maneira de construir o objeto) -, mas sim
o resultado da pesquisa (as "teses"),o opus operatum, segundo a oposiçãoclássicaque ele
utiliza para dar conta de sua maneira de trabalhar e de ensinar. Eis o que Bourdieu tenta
fazer em seus dois artigos sobre a sociologiada religiãode Weber,nos quais procede não só
a uma reapropriaçãoverbal do procedimentoweberiano,mas a um verdadeiro trabalho de
reconstrução,analisando minuciosamentetrechosrelativosà sociologiada religião,extraídos
de Economia e sociedade,em função de seu próprio objetode pesquisa, ou seja,a elaboração
da noção de campo a respeito da qual sempre afirmou que ela se deve, senão a uma leitura
textual de Weber, ao menos a sua tentativa intelectual e, ao mesmo tempo, pedagógica de
apresentar sua eficáciaheurística.
A propósito do campo religioso,Bourdieuinterpreta as análises de Weber colocando-as
em perspectiva com as de Durkheim e de Marx. Ele vai reposicionar umas em relação às
outras, referindo-se às duas grandes tradições intelectuais que, em seu entender, dividem a
história da sociologia:a sociologiado poder e a sociologiado conhecimento.ElecolocaWeber
ao lado de Marx na sociologiado poder. Para este último, a religião é concebidaem termos
de ações, em termos de conflitosde atores. Durkheim, por sua vez, é situado por ele na so-
ciologiado conhecimentoe da linguagem - no caso dessepensador, a religiãoaparece como
taxinomia e ordenação do mundo. Assim, em sua análise da gênesee do funcionamento do
campo religioso,Bourdieu conjuga essas duas tradições cujos componenteshabitualmente
contribuem para separá-las (poder temporal e fenômenossimbólicos).Com efeito, em sua
opinião, é enquanto instrumento de conhecimentoque os fenômenossimbólicosse tornam
instrumentos de poder: atravésde um sistemade categoriasde percepçãodo mundo verifica-
se a efetivaimplicaçãode toda a estrutura da ordem social e de sua legitimação.
3 64 VISÃO E DIVISÃO, PRINCÍPIOS DE
WEBER, MAX (1864-1920) 365
i
(

No que ele designacomouma "leitura interpretativa"da análise feitapor Webera respeito entre essa oposição e entre as sociedadestradicionais e pré-industriais - onde o princípio
dos agentesdo sistemareligioso(o feiticeiro,o padre e o profeta)e da passagemde uma religião de estratificação era, sobretudo, de ordem da qualidade (status) - e as sociedades de tipo
de tipo mágicopara uma religiãode tipo racionalizadoe sistematizado,Bourdieuopera duas capitalista onde o princípio diferenciadordeveser buscado principalmente no plano das di-
rupturas como procedimentode Weber.Em primeirolugar reconstituio procedimentointera- ferençaseconômicas,o autor de La distinction estende o empregodos dois conceitosa todas
cionistaadotado,"entrelinhas",por Weberem suas análisesdo fenômenoreligioso,rompendo as sociedadese também a todas as classesnas quais essa distinção é válida, embora de modo
coma lógicatipológicatal comoesteúltimo a concebia,mediante a qual os agentessão dotados desigual.Ainda que a teoria weberiana do grupo de status permaneça próxima das teorias
de qualidadesintrínsecas,de propriedadesde essência,apesar das numerosasexceçõesquesão subjetivistasdas classes,cujoprincípiodas divisõessociaisé baseado unicamente nos estilos
. continuamenteassinaladaspelo pensadoralemão.Com efeito,pelo fato de analisar os agentes de vida e nas representações,Weber não a enxergavacomo exclusivae colocavao problema
do sistemareligioso,uns apósoutros,Weberfoiobrigado,segundoBourdieu,a pensar não tanto do duplo fundamento da estratificaçãosocial na objetividadedas diferençasmateriais e na
suas inter-relações,mas sim suas característicasintrínsecas.Em consequênciadisso, o ponto subjetividadedas representações.No entanto, segundo Bourdieu,eleforneceua essa questão
de vista sobre o universoreligiosoque ele leva em consideraçãoem cada circunstânciaé o do uma solução ingenuamente realista ao estabelecera distinção entre dois "tipos" de grupos,
agente,a partir do qual analisao sistema.Dessemodo,Weberesqueceas relaçõesobjetivasque quando o que há é tão somente dois modos de existênciade qualquer grupo.
se estabelecementre os agentessociais,independentementede qualquerinteração,sendo que Bourdieu repetia frequentemente que seus trabalhos se inscreviam na continuidade
boa parte de seus comportamentose práticas só podem ser compreendidostendo em conta a dos grandes fundadores da sociologia.No autor de Economia e sociedade ele encontrou
posiçãona estrutura do espaçoreligiosoem que os agentesevoluem. os instrumentos conceituais que lhe permitiram construir a teoria geral da economia das
É nesse sentido que Bourdieu opera uma segunda ruptura para com a abordagem in- práticas, a economiados bens simbólicos,que representouseu projeto científicomaior e cujos
teracionista de Weber.A construção do sistema completo de agentes e das relações que se fundamentos foram localizadosem Max Weber.
instauram entre eles no interior de um campo não é apenas um procedimento heurístico,
permitindo estabeleceras relaçõesobjetivasentre as posiçõesque estruturam um campo,mas
quepermite também caracterizaro ponto de vista que se pode ter sobreo conjuntodo sistema. 207. WITTGENSTEIN, LUDWIG(1889-1951)
. ..............................
~ .......................................................................................
.
Trata-sede tomar comoobjetonão uma posiçãoem um campo, mas o campo comoum todo, Louis Pinto
ou seja, o conjunto das posiçõesa partir das quais se engendram as estratégias dos agentes.
Bourdieu ambicionou elaborar uma teoria geral dos modos de dominação, das formas Associadona França,durantemuitotempo,aopositivismológico- correntetantodesconhecida
de poder e daquilo que lhe está inextricavelmenteassociado,uma sociologiacomparada dos quantodesdenhada-, Wittgensteinsó setornouum autorrealmenteimportantea partir dosanos
modos de legitimaçãodo poder e das formas de violênciasimbólicaque lhes são inerentes. 1970.Ele não faziaparte dos pensadoresque os estudantesde filosofiada geraçãode Bourdieu
Se o ponto de partida de sua análise é efetivamentea definiçãoweberiana do Estado, onde eram levadosa ler, tendo sido relegadoà obscuridadepelas tradições nacionais (filosofiadas
se concentra o exercícioda violênciafísica,ele não deixará de analisar, desde seus trabalhos ciências)e pelassucessivasvanguardas:fenomenologia,"estruturalismo"e "pós-estruturalismo"
sobre o sistema de ensino, outra dimensão do Estado, primordial a seus olhos, e da qual vai em suas diferentesvariantes.Nos últimosanos de sua vida, Bourdieudemonstroupreocupação
traçar a gênese e as funções: a monopolizaçãoda violência simbólica:para ele, a força age· coma assimilaçãodeWittgensteinaopós-modernismo,opondo-sea uma interpretaçãorelativista
pela coerçãofísicae também, consubstancialmente,pela representaçãoque dela têm aqueles das "formasde vida"tal comoela haviasidopropostapelospartidáriosdo "programaforte"em
que a suportam. A esse respeito,Bourdieucita frequentementePascal: qualquer efeitofísico sociologiadas ciências,comopor exemplo,DavidBloor(BOURDIEU, 2002).
é forçosamenteacompanhado de um efeitosimbólico. Inicialmente, Bourdieu havia pensado em dedicar a Wittgenstein o livro que, ao final,
Em sua opinião,Weberreduz a legitimidadeàs representaçõesda legitimidade.Nas socie- recebeu a denominação de Méditations pascaliennes. A análise minuciosa de jogos de
dades tradicionaisas relaçõesde dominaçãoocorremna e pela interaçãoentre as pessoas,ao linguagem de Wittgenstein é a ilustração de uma atitude filosóficaque rompe com o estilo
passo que nas sociedadescom forte divisão do trabalho social as relaçõessão mediadas por que Bourdieudesignavapor "escolástico".Aoinvés de puros exercíciosescolásticos,a ciência
mecanismos objetivose institucionalizados,tais como aqueles que produzem e garantem a e a filosofiapodem ser, antes, consideradas como maneiras de reformar nossos modos de
distribuiçãodos títulos de nobreza,monetários,escolares,registrosde propriedade,títulos de ver. Bourdieu encontra em Wittgenstein uma "boa parte de meus sentimentos a respeito da
crédito... , e tantas outrasaquisiçõesjuridicamentegarantidas,de tal modoque essaobjetivação filosofia",citando o próprio filósofoque escrevera:"Qual o interesse de estudar filosofia,se
asseguraa permanênciae a cumulatividadedas aquisiçõestanto materiaisquanto simbólicas. tudo o que ela faz por nós é nos tornar capazesde expressarde modo relativamenteplausível
A distinção entre esses dois modos de dominação é o alicerce dos dois princípios da certas questõesde lógicaabstrusas etc., e se isso não melhora nossa maneira de pensar sobre
estratificaçã~social dos tipos de sociedade distinguidos por Weber: o grupo de status e a as questões importantes da vida de todos os dias, se isso não nos torna mais conscientesdo
classesocial.Bourdieuapoia-senessa oposiçãopara questionar o princípiode uma hierarquia que qualquer jornalista no empregode expressõesperigosasque as pessoas dessa categoria
social única. Mas enquanto Weber, segundo Bourdieu, estabelecia uma correspondência utilizam para seus próprios fins?"(MP,53).

366 WEBER, MAX (1864-1920)


WITTGENSTEIN, LUDWIG (1889-1951) 367
Mas, para além do que diz respeitoà relaçãocom o saber,há razõesmais precisaspara nos A quarta razãorefere-seà maneira comoWittgensteincolocao problemados fundamentos.
interessarmospor Wittgenstein.A primeira, talvezaté cronologicamentefalando,refere-seao Os "jogosde linguagem",à semelhançadosjogosda sensaçãoou da ciência,estãoinscritos em
parentescode Bourdieucom Wittgensteinacercado problemadas regras. No filósofopode-se determinadas "formas de vida" que têm seu próprio regime. Bourdieupercebeu os vínculos
encontrar uma crítica da visão mitológica(platônica)da regra entendidacomo uma entidade entre esses conceitose seu próprio conceitode campo. Tendo que dar conta do estatuto da
misteriosa.Para dar contada regularidadedas condutashumanas,podemossertentadosa adotar sociologiaque reivindicaum valor de verdade,mostrando ao mesmotempo o caráterhistórico
uma concepçãoobjetivistaouintelectualistadasregras:estasagiriamà maneirade um mecanismo de todas as produçõeshumanas, ele considerao C!3-mpo como a condiçãode aparecimentode
ou, então,de um textoque o indivíduoseguiriacomoum "modode usar",e que eledeveriainter- alguns jogos sociais (tais como a arte e a ciência)dotados de um nomos específico,norma
pretar.A principalcríticadirigidapor Bourdieua Lévi-Straussincidesobreessaambiguidadeque ou lei imanente, cujo reconhecimentocertificao pertencimento ao campo e a conformidade
caracterizaa noçãode estrutura(modelo,norma,regularidadeobservada),e elepensasuperaressa aos fins que ele reconhece.Bourdieuentende ofereceruma solução,denominada "historicis-
dificuldadeultrapassandoa alternativasubjetivismo-objetivismo graçasàs noçõesde disposições, mo racionalista" ou "racionalismohistoricista",ao problema tradicional das relações entre
de habitus, comoconjuntode esquemasincorporadosde açãoe de avaliação. a história e a verdade, das relações entre o caráter socialmente condicionadoda produção
A segunda razão, associada à precedente, é o reconhecimento de uma disposição an- dos saberes e o valor objetivo que eles reivindicam, descartando as soluçõesconsideradas
ti-intelectualista em Wittgenstein. A regra não é uma questão de conhecimento, nem de inaceitáveis:de um lado o "fetichismoplatonizante" (MP,137)e, de outro, o "reducionismo
interpretação: seriam ainda necessárias regras para aplicar as regras. Ora, o autor da ação relativista"(MP,138)."É na história, e tão somentena história, que se devebuscar o princípio
é capaz de improvisar, de agir de maneira espontânea e segura em situações relativamente da independência relativa da razão perante a história, da qual é o produto" (MP, 130-131).
inéditas, tal como aqueleque "cumpre a regra" (follow the rule), quando afinal ele age sem Wittgenstein é, por excelência,um filósofoa quem se pode recorrer para manter juntos a
estar na presença dos casos exemplaresatravés dos quais teria podido se iniciar no emprego ausência de fundamento trans-histórico da razão e o valor objetivodas produções criadas
da regra. O que está implicadono fato de cumprir uma regra não é uma relação de conheci- nos diferentes campos, a começar pelo campo científico.Em consequência,a pluralidade
mento, mas um poder de fazer, uma capacidade:compreender a regra não consiste em dar das formas de vida não poderia ser reduzida à unidade de um princípio único. "Pelofato de
conta dela, mas simplesmenteem agir de maneira apropriada. que cada campo como 'forma de vida' é o lugar de um 'jogo de linguagem' que dá acesso a
A terceira razão é a concepçãocrítica-terapêuticada filosofia,próxima da "filosofianega- aspectosdiferentesda realidade,poder-se-iaindagar sobrea existênciade uma racionalidade
tiva" mencionadapor Bourdieu,que não propõe "teses",mas simplesmenteuma visão mais geral, transcendente às diferenças regionais e, por mais intensa que possa ser a nostalgia
clara do que a utilização das palavras significa,visão em que o que importa é saber o que da reunificação,sem dúvida é preciso renunciar, à maneira de Wittgenstein, a buscar algo
dizemosrealmente,saber utilizar a linguagemque convémàquilo que fazemos.Na esteira de assemelhadoa uma linguagem de todas as linguagens" (MP,119).
Wittgenstein,Bourdieuse esforçapara identificaras questõesfictícias,aquelasque se associam
aos equívocosprovocadospelos usos metafísicosde uma linguagem "esvaziadade sentido". Referência
"Alógicada linguagemcorrente [...] tende a inferir a substância do substantivo ou a atri- J.;LAUGIER,S.;
BOURDIEU,P.Wittgenstein, le sociologismeet la sciencesociale.ln: BOUVERESSE,
buir aos conceitoso poder de agir na história, como atuam nas frases do discurso histórico ROSAT,J.-J.Wittgenstein, dernieres pensées. Marseille:Agone,2002.
as palavras que as designam,ou seja,enquanto temas históricos:de acordocom a observação
de Wittgenstein,basta deslizar do advérbio'inconscientemente'('tenho inconscientemente
dor de dentes') para o substantivo 'inconsciente' (ou para determinado uso do adjetivo'in-
consciente';por exemplo,'tenho uma dor de dentes inconsciente') para produzir prodígios
de profundidade metafísica"(ETP,173-174).
A sociologiapode ser um convitepara o realismo,para uma maneira de ser realista que é
encontrada não só em Wittgenstein,mas também em Peirce,que é outro autor de referência
de Bourdieu.Devemosnos questionarsobrenossasnecessidades,nossosusos concretos,sobre
o que nos leva a formular questões irreais, fictícias,e sobre as consequênciasdesse tipo de
questõessobre nosso conhecimentodo mundo. Uma das expressõesprediletas de Bourdieu
era "em estado prático" (ou "em ato"). Por meio dessas expressõesele acreditavaopor o que
funciona realmente ao que é apenas o objeto de declaraçõesou de proclamações,aquilo que
só existe n~ papel. Mediante tal oposição,ele tomava o partido da prática, o que não era so-
mente uma escolhateórica- uma "teoria da prática"-, mas, sobretudouma regra de conduta
científica:descreveras práticas sociaisefetivase submeter o pensamento à prova da prática.

368 WITTGENSTEIN, °LUDWIG (1889-1951) WITTGENSTEIN, LUDWIG (1889-1951) 369


ÍNDICEONOMÁSTICO BOURDIEU,Jérôme, 62 CHRISTIN,Olivier,62
·······················································································································
BOURDIEU,Marie-Claire, 52 CHRISTIN,Rosine, 61, 347
BOURDIEU,Noémie, 53 CICOUREL,Aaron Victor, 25, 62
BOUVERESSE,Jacques, 26, 62, 130, 143,216, CLUNAS,Craig, 148
ACCARDO,Alain, 26, 123,245 BAUDELAIRE,Charles, 258, 309-310 BOYER,Robert, 348 COCTEAU,Jean, 31
ACEVEDO,Silvestre,313 BAUMAN,Zygmunt, 272 COLEMAN,James, 116-117
BRAGA,Rubem, 31
ADAMS,Gerry, 43 BAXANDALL,Michael, 224, 311 COMTE,Auguste, 170
BRANDÃO,Zaia, 303
ADKINS,Lisa, 340 BECK,Ulrich, 272 CORCUFF,Philippe, 313
BRAUDEL,Fernand, 62, 125, 175
ADORNO,Theodor W., 61 BECKER,Gary, 117 CORRÊA,Mariza, 156
BRITO,Angela Xavier de, 332, 354
AGUIAR,Andréa, 58, 231 BECKER,Howard, 25, 274, CORRIGAN,Philip, 108
BRUCK,Moeller van den, 83
AGULHON,Maurice, 26, 224 BEETHOVEN,Ludwigvan, 56 COURRÊGES,André, 73
BRUNSCHVICG,Léon, 49, 300
ALEXANDER,JeífreyC., 260 BENVENISTE,Émile, 61, 125 CROZIER,Michel, 202
BUBER,Martin, 50
ALLEN,George,255 BENZÉCRI,Jean-Paul, 31,286 DACCACHE,Michel, 246, 274
BUENO,Kátia Maria Penido, 151
ALMEIDA,Ana Maria F., 124,217,331 BERGER,Peter, 64 DARBEL,Alain, 29, 61
CALHOUN,Craig, 207,291
ALTHUSSER,Louis, 82, 99-100, 170,195, 198, BERGSON,Henri, 50 DARNTON,Robert, 25, 44, 62, 85, 224
201,260-261 CAMILLECOROT,Jean-Baptiste,259
BERNARD,Claude, 143 CANÊDO,Letícia Bicalho , 90 DE ÍPOLA,Emilio, 171
ANGENOT,Marc, 253
BERNSTEIN,Basil, 61 CANGUILHEM,Georges, 50, 81-82, 98-100, DELEUZE,Gilles, 174
APITZSCH,Ursula, 44
BERQUE,Jacques, 324 174,199,201,299 . DENORD,François, 75, 168
APITZSCH,Wolfgang,44
BERTAUX,Daniel, 356 CARLES,Pierre, 345-346 DERMENGHEM,Émile, 324
AQUINO,Tomás de, 213
BERTONCELO,
Edison, 118 CASANOVA,
Pascale, 44, 62, 257 DESCARTES,René, 81, 199
ARISTÓTELES,213,283, 297
BEYNON,Huw,44 CASSIRER,Ernst, 51,61, 192,238,288-289,362 DESNOS,Robert, 317
ARON,Raymond, 39, 61, 99, 125,167,174,175,
222,236,336 BHASKAR,Roy, 129 CASTEL,Robert, 26, 61, 129,206 DEZALAY,Yves,26, 62, 109,277
ARRUDA,Maria Arminda BLACKING,John, 61 CASTELNUOVO,
Enrico, 224 DISCEPOLO,Thierry, 42
do Nascimento, 71, 135 BLOCH,Marc, 222, 224 CATANI,Afrânio Mendes,25,28, 42, 51,61,95, DIXON,Keith, 43-44, 62
ARTIFONI,Enrico, 43 BLOOMFIELD,Leonard, 253 124,173,210,239,249,290,345 DREYFUS,Alfred, 237
AUSTIN,John Langshaw,91, 199,319-320 BLOOR,David, 367 CHAMBOREDON,Jean-Claude,26, 29, 50, 61, DUBOIS,Jacques,62
170,286,337
BACHELARD,Gaston, 49-51, 81-82, 99-100, BLUMER,Herbert, 205 DUBY,Georges,43, 62, 125,222, 230
118,128-130,144,170-173,174,199,299,338 BOCKSTAELE, Jacques,334 CHAMPAGNE,Patrick, 26, 61, 130, 131, 140,
DUREM,Pierre, 287
BAKER,Keith, 108 268,271,283,329,357
BOCKSTAELE, Maria Van, 334 DUMAZEDIER,Joffré, 175
BAKHTIN,Mikhail, 61,251,253 CHAMPEY,Ines, 44
BOLLACK,Jean, 26, 61 DUMÉZIL,Georges,43, 125
BALAZS,Gabrielle,26 CHAR,René, 152
BOLTANSKI,
Luc, 26, 29, 61, 154, 168,253 DURAND,José Carlos G., 29, 42, 73
BALIBAR,Étienne, 100, 164 CHARLE,Christophe,26, 43, 61-62,83,85, 168,
BONTEMS,Vincent, 49, 98, DURAND,Pascal, 63
222,224,236,239,258
BALZAC,Honoré de, 56 BOSCHETTI,Anna, 61-62 DURKHEIM,Émile, 38, 43, 46, 50, 61-62, 64,
CHARLESWORTH,
Simon, 216
BARANGER,Denis, 31, 52, 128, 169 BOUDON,Raymond, 202 102,134,135,143, 159-161,170-171,184-185,
CHARTIER,Émile-Auguste (ALAIN),98 187,192,207,213,222,224,234-235,247,249,
BARTHES,Roland, 125 BOUHEDJA,Salah, 347
CHARTIER,Roger,26, 125, 139,224 261,262,264,274,289,297,299,314,338,345,
BATAILLE,Georges, 174 BOULEZ,Pierre, 125
CHAUVIN,Sébastien, 63 359-360,362, 365
BATESON',
Gregory,61 BOURDIEU,Albert, 53 CHOMBARTDE LAUWE,Paul-Henry, 175 DUVAL,Julien, 62, 146, 148,187,208
BATISTA,Antônio Augusto, 145,186,250 BOURDIEU,Emmanuel, 52 CHOMSKY,
Noam,162-163,
214,250,252-254,290 EAGLETON,Terry, 43, 62
370
[NDICE ONOMÁSTICO 371
EINSTEIN,Albert, 49 GRIGNON,Claude,26, 37,61, 246 JULIEN,Charles-André,324 LORDON,Frédéric, 44
ELIAS,Norbert, 25, 64, 108, 147,165-167,214, GRILL,Igor G., 301 JÜNGER,Ernst, 83 LOWIE,Robert, 182
289,338 GROS,François, 44 JURT,Joseph,44 LOYOiA,Maria Andréa, 93, 142
ENGELS,Friedrich, 76, 359 GROTOWSKI,
Jerzy, 125 KAELBLE,Hartmut, 224 LUCKMANN,Thomas, 64
ERIBON,Didier, 44, 62, GRÜN,Roberto, 107,230, 275, 346, 352 KAFKA,Franz, 111,161 LUHMANN,Niklas, 64
FABIANI,Jean-Louis,61 GUEROULT,
Martial, 174,338 KANT,Immanuel, 81, 149, 199, 208-209,236, LUKÁCS,Gyõrgy,66, 84, 140,261
FAGUER,Jean-Pierre,26 247,311,344 MALINOWSKI,Bronislaw,182
GURVITCH,Georges,175,336
FANON,Frantz, 142 KLÜGER,Elisa, 179,277 MALLARMÉ,Stéphane, 257-258
HAACKE,Hans, 255-256
FAULKNER,William, 311 KOCKA,Jürgen, 224 MANEI, Édouard, 224, 257-259
HABERMAS,Jürgen, 43, 62, 344
FEBVRE,Lucien, 125,222 KOYRÉ,Alexandre, 82, 174,287 MANNHEIM,Karl, 236
HACKING,Ian, 62, 129-130
FEUERBACH,
Ludwig,260 KUHN,Thomas, 171-172,324 MARCHIJr.,Wanderley,79
HAHN,Otto, 171
FINE,Agnes, 157 LABOV,William, 26, 61 MARCUSE,Herbert, 61
HALBWACHS,Maurice, 64, 102, 125, 187,
FINLEY,Moses, 61, 107 222,262 LABROUSSE,
Ernest, 224 MARESCA,Sylvain,61
FLAUBERT, Gustave,66-67,84-85,175-176,237, HALIMI,Serge,45 LAGNEAU-YMONET,
Paul, 168 MARIN,Louis, 26, 61, 174
257-258,309-310 LAHIRE,Bernard, 64, 130,363 MARTÍN CRIADO, Enrique, 38, 141, 228,
HANLEY,Sarah, 108
FOUCAULT, Michel,43, 99, 125, 174,198,201- LAMICQ,Bernard, 53 304,345
HAROCHE,Serge, 124
204, 206, 260, 287,323 MARTÍNEZ,Ana Teresa,350
HAUSER,Arnold, 66 LANDAIS,Etienne, 357
FOURNIER,Marcel, 43 MARTINS,Carlos Benedito,335
HEGEL,Georg, 81, 182,297 LANGEVIN,Paul, 316 -
FRANÇOIS,Étienne, 224 MARX,Karl, 38, 64, 76, 90, 96, 104, 135, 161,
HEIDEGGER,Martin, 61,81-83,140, 164, 182, LAPASSADE,
Georges,334
FRISINGHELLI,Christine, 291 164,170-171,184-185,199,259-261,262,296,
198-199,217,224, 238, 282-283,296, 350 LATOUR,Bruno, 26, 324
FRITSCH,Philippe, 301 299,314,338,353,359-360,365
HEILBRON,Johan, 62 LAZARSFELD,
Paul, 167,170,338, 353
GALVÃO, Ana Maria, 137 MARY,Philippe, 63
HEINICH,Nathalie, 26 LEROUX,Brigitte, 77
GAMBONI,Dario, 61 MAUGER,Gérard, 45, 259, 305, 342, 359,361
HEY,Ana Paula, 151, 164, 179, 191,225, 277, LEBARON,Frédéric, 62, 77, 101,167
GARCIA,SylviaGemignani, 292, 298, 323,357 MAUSS,Marcel, 43, 61, 74, 125, 134, 161,166,
292,295 LECOMPTE,Margaret, 334 182, 192,213,247,262-264,297,359
GARCIA-PARPET, Marie-France, 63 HYPPOLITE,Jean, 100 LEHMANN,Bernard, 216 MEAD,Margaret, 38, 345
GARFINKEL,Harold, 128,205, 305 HIRSCH,Paul, 347 LEIBNIZ,Gottfried, 30, 81, 182, 199,305, 335 MEDEIROS,Cristina C. C. de, 123, 132, 219,
GARTH,Bryant G., 62, 109 HIRSCHMAN,Albert, 61 LEIRIS,Michel, 176 228,281,302
GAULEJAC, Vincent de, 334, 356 HOBSBAWM,
Eric, 25,224 LENOIR,Remi, 26, 86, 112, 184,262, 365 MELO,Juliana Ferreira de, 137
GEAY,Bertrand, 62 HOGGART,Richard, 61, 269 LÉVI-STRAUSS, Claude,38,40, 54, 55, 124-125, MENDRAS,Henri, 175
GENNEP,Arnold van, 320 HUBERT,Henri, 264 126-127,157,175,182,192-193,201,222, 228, MERLEAU-PONTY, Maurice, 81, 82, 125, 174,
GHEORGHIU,Mihai D., 26, 44 HUIZINGA,Johan, 231 233,246-248,260,262,274,296,318,324,326, 182,198, 199,214,267-268,296
GIDDENS,Anthony, 272 336,345,368 MERTON,Robert, 68, 70, 171,324, 338
HUME,David, 81, 199
GINZBURG,Carla, 25 LEVY,Bernard-Henri, 269 MÉTAILIÉ,Anne-Marie, 243
HUSSERL,Edmund, 81, 83, 157,182, 198, 199,
GIRARD,Alain, 316 213-214,274,296-297,350 LÉVY-BRUHL,
Lucien, 182 MEYERSON,Émile, 49
GIVRY,Claire , 347 ISAMBERT,François-André, 175 LEWIN,Kurt, 289 MICELI,Sergio,25, 62, 162,164, 174,176,238,
GOFFMAN,Erving, 25, 61, 205-207,338 ISAMBERT-JAMATI,
Viviane, 175 LINHART,Robert, 26 265,330
GOLDMAl'J'N,
Lucien,84 JAHODA,Marie, 353 LINTON,Ralf, 61 MICHELS,Robert, 90
GRAMSCI,Antonio, 237,292 JARUZELSKI,
Wojciech,43 LIPP,Carola, 224 MONTERO,Paula, 33, 233, 318
GRAW,Isabelle,44 JOLY,Henry, 174 LOPES,José Sérgio Leite, 265 MONTLIBERT,
Christian de, 44-45

(NDICE ONOMÁSTICO 373


372 INDICE ONOMÁSTICO
MOREAU,Frédéric, 309 PROUST,Marcel, 149 SCHNAPPER,Dominique, 29, 61 VERRIER,Frédérique, 44
MUEL-DREYFUS,
Francine, 26, 61,230 SCHOLEM,Gershom, 25 VEYNE,Paul, 125,202, 230
PUTNAM,Hílary, 102, 129-130
MÜLLER,Girgit, 43 SCHORSKE,Carl, 25, 224 VIALA,Alain, 85, 90
PUTNAM,Robert, 116-117
NAIRN,Tom, 43 SCHULTHEIS,Franz, 291 VIANA,Maria José Braga, 245
QUINE,Willard, 182
NICOD,Jean, 297 SCHUMPETER,Joseph, 61, 236 VIDAL-NAQUET,
Pierre, 222
RADCLIFFE-BROWN,
A. R., 61
NIETZSCHE,Friedrkh, 299-300 SCHÜTZ,Alfred, 128, 157-158,182,214,274 VOLOCHINOV,
Valentin, 251
RAGOUET,Pascal, 68, 118
NIZAN,Paul, 237 SCOTT,Joan, 25 VUILLEMIN,Jules, 51,61, 100, 174
REICHENBACH,Hans, 50
NOGUEIRA,Cláudio M. M., 23, 26, 177 SEARLE,John, 216 WACQUANT,Loic, 26, 34, 44, 96, 213, 216,
RESENDE,Tânia de Freitas, 327
SEIBEL,Claude, 29, 61 311-312
NOGUEIRA,Maria Alice, 36, 103,123,125,349 REY,Abel, 49
SEIDL,Ernesto, 189,241,308, 335 WAGNER,Anne-Catherine, 109,114,272
NOUSCHI,André, 38, 324 REYNAUD,Jean-Daniel, 175
SEIGNOBOS,Charles, 160,222 WALLON,Henri, 316-317
ORTIZ,Renato, 292 RINGER,Fritz K., 224
SENNETT,Richard, 206 WARNER,William Lloyd,207
PANOFSKY,
Erwín, 61, 126, lé4, 224, 289, 300 RIVET,Jean-Paul, 29, 61
SETTON,Maria da Graça J., 134 WEBER,Max, 31, 38, 46, 64, 71, 89, 90-91,93,
PARIENTE,Jean-Claude, 174 RIVIERE,Marie-Christíne, 61 121,134,135,161,164,170-171,182,184-185,
PARSONS,Talcott, 64, 299, 338 SIMIAND,François, 222 187,202, 213, 224, 236, 238, 245, 261, 262,
ROCHE,Daniel , 85
PASCAL,Blaise, 46, 81, 145, 199-200, 265, SIMIAND,Georges,262 287, 289, 297, 300, 307, 314, 335, 338, 345,
ROLSTON,Bill,43
366,338 SIMIONI,Ana Paula, 66, 255 359,365-367
ROMANELLI,Geraldo, 176
PASSERON, Jean-Claude,29, 36-37,50, 61, 104, SIMMEL,Georg, 64 WEIL, Eric, 174
144,170,173,219-221,245-246,261,268,286- ROSANVALLON, Pierre, 125
SINGLY,François de, 19.5 WENDEL,François de, 113
288,315,316,327,337 ROUEFF,Olívier,47
SMITH,Adam, 64 WILLIAMS,Raymond, 26
PASSIANI,Enio, 71, 135 RUNDQUIST,Angela, 110
SOARES,Magda B., 162 WILLIS,Paul, 25-26
PEIRCE,Charles, 368 RUSSELL,Bertrand, 300
SPENCER,Herbert, 64 WINKIN,Yves,26, 62, 205
PEREIRA,Gilson R. M. , 288 RYLE,Gilbert, 144 WITTGENSTEIN,Ludwig,51,81,165,182,199,
SPENGLER,Oswald, 83
PESANTE,Maria Luísa, 43-44 SAHLINS,Marshall, 64 SPINOZA,Baruch, 81, 172, 182, 199 296,303,338,367,368,369
PESTANA,José Luís, 197,267,282, 286 SAID,Edward, 258 SPOSITO,Marília P., 243 WOOLF,Virginia, 157
PETERSON,Richard, 150 SAINTMARTIN,Monique de, 26, 29, 108,169, STCETZEL,
Jean, 175,336 YACINE,Tassadit, 62, 352
PICASSO,Pablo, 31 273,347 ZOLA,Émile, 258
SUAUD,Charles, 61,216
PIGLIA,Ricardo, 176 . SAINT-JACQUES,
Denis, 90
TAYLOR,Charles, 216
PINÇON,Michel, 108 SALLUMJr., Brasílio, 118
THIESSE,Anne-Marie, 85
PINÇON-CHARLOT,
Monique, 108 SANKOFF,Gillían, 206
THINE, Sylvain, 168
PINHEIROFILHO,Fernando A., 165 SAPIR,Edward, 61 THOMPSON,E. P., 43, 62, 276
PINTO,Louis, 26, 44, 63, 81, 153,157,159,199, SAPIRO,Gisele, 26, 55, 85, 88, 126, 143, 181, TILLY,Charles, 108
234,367 192,296,309,321,324,341
TISSOT,Sylvie,63
PLATÃO,81, 157,200 SARTRE,Jean-Paul, 26, 81-82,89, 99, 127-128,
TOURAINE,Alain, 175,202
174,176,182,193,197-198,236-237,262,267,
POLANYI,Karl, 64, 78, 107,170-171,301 TRÉANTON,Jean-René, 175
269,292,296,298,321-323,336
PONTHIEUX,Sophie, 116 TREVOR-ROPER,
Hugh, 43
SASSEN,Saskia, 206
PONTON,Rémy,85 VANDENBERGHE,
Frederic, 129
SAUSSURE,Ferdínand de, 162-163,250, 252-
POPPER,Karl, 129-130,170-172,287 253, 264,289 VEBLEN,Thorstein, 146,213,338
POUILLON,,Jean,194 SAYAD,Abdelmalek,26, 29, 39,61-62,141,291 VERDÊS-LEROUX,
Jeannine, 61
POUPEAU,Franck, 42, 240 SAYER,Derek, 108 VERNANT,Jean-Pierre, 222

374 fNDICE ONOMÁSTICO INDICEONOMÁSTICO 37 5


ÍNDICEREMISSIVO 179,180,184-186,190-192,194,197,200,201, Capital científico, 69, 82, 172,357
·················································································· ····································· 203, 209,216,222,223, 225-227,229,231-233, Capital corporal, 101,133
241-243,246, 249-251,253,254,257,258,261, Capital cultural, 30, 32, 46, 59, 60, 72, 76,
264-266,269,270,272,273,278-281,289,290, 79, 90, 102-106, 109-111,113-116,119,
292-295,298,301-304,310,~18-320,324,325, 120, 133, 136, 143, 145, 146, 153, 154,
Ação,23-28,30, 33, 34, 43-45, 47,54, 60, 62, 68, 274,275,283,292,295,298,302,309,310, 327,329,332-339,341-343,348, 350,351,354- 167, 178, 179, 190, 191, 194, 195, 212,
69, 70, 71, 75, 79, 84, 92, 94, 97, 98, 104-107, 311,320,339,341,369 357,362,363,365,366,369 218, 219, 234, 235, 237, 241, 246, 250,
113, 114, 116, 121, 123, 125-129, 131, 135, Ascetismo, 42, 59, 60, 122, 213 Campo acadêmico, 175,250, 273,333,334 251, 261, 266, 280, 293, 294, 304, 314,
141-143,155,156,158,165,166,175,179,180, Ativismo, 42, 45, 62 Campo artístico, 64, 66-68,78, 84, 85, 112, 315,327,339,346,355
182, 183,189-193,196,213-216,220-223,229, Autoanálise, 85,176,206,287, 324, 332-334 138,158,256,344 Capital de autoridade, 94, 112,227,254
231-234,241-243,248-250,252,266,268,269, Socioanálise, 35, 173,225, 265, 324, 332- Campo burocrático, 58, 76, 78, 92, 185 Capital econômico, 32, 46, 54, 76, 77, 79,
274-276,280,293, 295-299,303-305,309,312, 334, 346,358 Campo científico,47,58, 68-70,78, 84, lll, 98, 101,102, 105-109,111,113-116,119,
313,318,320,323,325,326,328,334,336,339, Autonomia, 23, 26, 43, 45-47, 58, 61, 62, 67-69, 112,118,129,130,171,172,227,265,294, 120, 136, 145, 153, 154, 167, 169, 178,
341, 343, 352, 356, 361,362, 365, 368 71, 78, 80, 82-85, 87-89,92, 93, 111,125, 165, 312,313,324,337,343,357,369 183, 190, 191, 194, 196, 212, 227, 235,
Ação pedagógica, 37,134,317 167,170,172,186,200,215,225,227,237-240, Campo cultural, 71-73,121,137,148 237,261,266,280,293,304,314,315
Ação social, 23, 189, 218, 241, 262, 263, 254, 261, 270, 275, 279, 310, 311, 313, 323, Campo da alta costura, 73, 74, 111 Capitalescolar,78, 106,136,138,196,218,
304,308,334 337,338, 358 Campo de produção simbólica, 47,48, 71, 235,280,344
Agente, 23, 24, 26-28, 32-34, 36, 40, 47, 52, 54, Autonomia relativa, 51,65, 69, 88, 93, 100, 90 Capitallinguístico, 163,250-252,254,255
56-58, 65-72, 76, 78-81,86, 88, 91-94,96, 97, 261, 310,358 Campo do poder, 47,68, 74-77,84, 85, 96, Capital religioso, 82, 93, 94
106, 107,111-113,115,118-125,127-129,133, Autoridade,37,59,72, 76,87,92, 94, 95, 105,112, 97, 115,153,164, 168,180,184-186,223, Capitalsimbólico,40, 41, 54, 56, 57,70, 72,
135, 136, 137, 143, 146, 147, 149, 152-155, 161,202,221,227,235,254,264,276,279,284, 225-227,237,238,273,278-280,288,309, 77,78, 89,90, 102,103,106,109-114,116,
157-159,165,166,168, 172, 177-179,182-186, 293,319,320,326,328,331,338 310,333 117,119,145,154,161,167,169,182-184,
188-193,198,200,201,208,209,213,215,216, Autoridade artística, 67, 68 Campo econômico, 46, 47, 55, 64, 71, 72, 190, 228, 235, 237, 261, 266, 278, 304,
227,229,232,233,235,241-243,248,249,251, Autoridade científica, 58, 172,227 77, 78, 79,84,92, 121,227,272,273 314,315,324,326,351,353,354
260,263,268,274,276,280,281,290,293-297, Autoridade pedagógica, 37, 328 Campo escolar, 246, 254 Capital social, 32, 46, 54, 79, 90, 98, 102,
303-306,308-310,313,314;322,323,325,329, Béarn,51-53,55,109,114,115,132,153,174,175, Campo intelectual,35,48, 83-85,124,126, 106,110,lll, 113,114,115,116,117,119,
333,334,336,338,339,342,344,347-351,354, 190,214,217,222,223,297,308,313,326,351 131, 138, 164, 166, 174, 186, 225, 227, 136,145,154,167,180,183,194,196,235,
355, 357,363, 366 Bens, 31,47, 56, 58, 73, 74, 92-94, 101,104, 105, 237, 247, 255, 259, 260, 265, 269, 270, 26i,266,279,293,304,314
Alquimia social, 280 121-123,137,147-149,153,154,158,178,185, 273,282,289,321,323 Capital temporal, 69
Amorfati, 28, 126,208 201,208,209,217,243,251,263,269,276,290 Campo jornalístico, 269, 270 Espéciesde capital, 47, 56, 76, 96, 98, 103,
Análise de correspondências, 31, 226, 278, Bens culturais, 25, 30, 56, 71, 103, 104, Campo jurídico, 86, 330 lll-117, 119,120,152,153,167,180,181,
279,286 136,245 Campo literário, 46, 66, 71, 72, 83-85, 184,191,194,225,237,261,266,279,280,
Análise fatorial, 31,286 Bens simbólicos, 52, 55-57, 72, 97, 104, 88-90, 167,186,236,258,309,310 304,314,315,357
Antropologia, 33-35,54, 91, 126, 128, 139, 166, 105, 123, 153, 156, 164, 183, 254, 261, Campo político,46-48, 71,90-92,121,124, Volume de capital, 114,120,136,304
174,182,212-214,217,222,230,246-248,250, 264,267,269,270,292,294,326,356, 153,169,227,259,271,296,301,330,344 Capitalismo, 55, 107,144,310,331,348
263-265, 296, 318, 320, 321, 325, 326, 336, 367 Campo religioso, 57, 64, 84, 93, 94, 164, Categoria, Categorias, 30, 31, 49, 54, 69, 74, 75,
342, 347,353 Biografia,44,84,205 184,264,289,365 77, 81, 86, 95, 98, 103, 127,129, 137,147,150,
Antropologia reflexiva,33, 34 Boa vontade cultural, 42, 58-60, 149,179 Campo universitário, 85, 95, 96, 99, 192, 153,167,170,171,186-188,192,195,207,213,
Arbitrário cultural, 36, 37, 129, 136, 137,234, Brasil,43,90,97,164,208,250,298,316,318 223, 225-227,337 215,216,220,226,229,233,243,246,248,255,
245, 246, 327,328 Burguesia,59, 60, 63, 73, 74,77,80, 97, 108,122, Subcampo, 71,81, 129,237 257,258,269,276,278,283,287,288,293,300,
Argélia, 33, 38, 40, 41, 53, 55, 61, 64, 77, 78, 90, 123,147,169,188,259,273,290, 304, 306, 351 Capital,41,46, 47,54, 56, 59,60, 65-67,69,71,72, 312,313,325,328,330,334,337,342,349,352,
115,132,140-142,148,174,175,181,184,190, Cabília, Cabilas, 38, 40, 41, 53, 55, 64, 78, 115, 75,76,78,80-82,88-94,96,101-116,119-122, 353,357,367
192,214,217,222,223,230,237,238,241,247, 156,175,190,193,214,228,296,297,351 124,133,136,145,146,149,l61,168,172,178, De pensamento, 92, 117,123,159,233,273,
291,296,313,324,336,345,350,352 Campo, 26, 32-34, 39, 42-48, 51-53, 55-58, 180,188,191,196,209,213,215,218,226,227, 313,328, 337,349
Arte, 28-31,4,4,46, 47,55, 56, 66-68, 71, 72, 74, 64-76, 78-83, 85, 87-93,95-98, 100, 107,108, 231,235,236,241,242,250,254,255,260,267, De percepção, 56, 110,lll, 122, 192,215,
78,84, 103-105,107,121,124,126,138, 146- 111,116-119,121,122, 129,137-141,Í44, 146, 268,276, 278-280,292-295,302,304,310,314, 229,273,293,365
149, 164, 208, 241, 242, 246, 255-259, 263, 149,151-156,158,161,164,166,168, 171-175, 315,331,332,350,351,354,355,357 Do juízo professoral, 192, 328, 349

376
INDICE REMISSIVO 377
Causalidade do provável, 118 Formas de classificação, 154,273,359, 361, 230, 233-235, 251,258,263,264, 266-268, 293, Certificado escolar, 86, 105, 106, 136, 273
Ciência, 25, 30, 34, 35, 43, 45, 49, 50, 55, 62, 66, 362 295,297,309,313,319,322, 330,334,250, 351, Título escolar, 146, 178, 190, 279, 304
68-70, 72, 74, 78, 82, 90, 91, 92, 95, 99, 103, Lutas de classificação, 117, 123, 137,273 354,359,360,361,363 Direito, 46, 52, 67, 72, 86-88, 91, 92, 98, 101,103,
118,124, 128-130, 135,143,146,157,158,160, Princípios de classificação, 153, 155, 232, Corpo social, 133, 134, 294 107,131,152,160,180,192,195,196,221,225,
170-173, 177, 192, 199-201,203,210,212,225, 293,294,330,362 Técnicas do corpo, 213; 297 227,235,252,254,277,295,313,314,320, 330,
227,233,236,239,240,242,246,247,249,250, Sistema de classificação, 72, 111,139, 152, Esprit de corps, 61, 95, 134, 179, 211, 277 331,339,344,348,351,359
255,260,261,266,267, 269, 278, 282-289, 292, 158,161,185,209,278,333,349 Espírito de corpo, 179-181,279 Força do Direito, 86
299,300,302,309,310,312,323,324,333,335, College de France, 43, 95, 107,110, 112, 124, 125, Effet de corps,179, 180 Disposição, 23, 24, 26, 27, 29, 30, 35, 36, 39, 41,
337-343, 348,357,367,369 129,144,148,172,174,176,222,249,258,259, Crença,25,29,56,57,67,68, 70, 73, 78, 79,88, · 47, 56, 59, 60, 65, 68-70, 78, 81, 84, 88, 96, 101-
Ciência política, 90-92, 116, 150,284,285 264,303,313,323,329,330,332,340,341,357 91, 92, 94, 110, 112, 128, 134, 135, 137, 139, 105, 116, 120-122, 125, 127, 133-136, 136, 138,
Ciências sociais, 27, 34, 35, 43, 62, 71, 82, Competência, 30, 56, 66, 69, 76, 86, 87, 91, 97, 144,145, 157-159, 189,199,200, 231-233,235, 142, 144-146, 149,151,153,156,158,166,167,
83, 100, 107,108, 124, 126, 128, 130, 131, 98,102,104,105, 136,142,143,145,147, 149, 242,245,246,249,253,254,258,259,261,264, 175, 178-180, 182,186,193,196,198,200,201,
146, 149,164, 172, 173,175, 182,198,201, 150,155,162,163,180,198,214,216,218,219, 272,275,276,280,306,311,319,321,325,326, 203, 208, 213-216, 218-220, 229, 231-233,247,
202,204,223,224,234,238,239,246,247, 235,245, 253-255, 269,280,281,286,292,301, 259,260,263,264,267,279, 281, 290-292, 297,
328,335,337,343,351
249,259,269,271,287,288,301,303,312, 305,320,330,331,362 303,304, 306-308, 310-314,325,327, 334-336,
Produção da crença, 57
323-325,329,332,336,337,339-341,343 Conhecimento, 25, 26, 27, 34, 35, 36, 50, 59, 69, Cultura, 29, 30, 31, 34, 36-38, 43, 58, 59, 60, 62, 340-345,355,360,362,363,368
Classe, 25, 30, 31, 36-39, 42, 48, 56, 58, 59, 69, 70, 77, 83, 88, 93, 95, ll0, 112, 118, 126, 127, 63, 71, 73, 77,83,90, 101,103,105,132, 135- Distinção, 25, 28, 73-75, 79, 80, 88, 93, 94, 104,
72, 73-75, 77, 80, 84, 90, 92, 94, 95, 97, 104, 128,130,133, 135-137,139,145,148,152,154, 139, 143,145,146, 148-150, 156,164,167,174, 106, 108, 110, 114, 119, 121, 122, 132, 135, 136,
105,114,119-123,125,132,133,136-138,142, 156, 157, 160, 161, 166, 170, 174, 182, 185, 178,179,182,192,201,206,210,217-221,234, 137,143, 146-149, 158,161,163, 167, 170, 172,
143,146-150,153-155,158,160,167,176,178, 197, 199,200,201,203-205,212,214,222, 238,241,245,246,259,267,275,278-280,292, 186,188,190,196,228,234,246,247,252,
179, 183, 185, 187,188, 193, 195, 196, 205, 209, 224, 236, 238, 241-243, 245, 246, 252, 253, 294, 305, 317, 325, 327, 328, 337, 360 255,273,278,279,281,290,292,294,296,
214,216,220,221, 235-237,242,260,261,265, 259, 264, 266, 268, 270, 273, 274, 280, 287, Aculturação, 37, 220, 247 320,361,366,367
268,273,292,278,279,293-295,298,304,306, 288, 292, 293, 296, 299, 303, 312, 324, 327, Cultura escolar, 37, 196, 220, 221 Divisão do trabalho, 74, 93, 293, 323, 330, 331
314,315,318,322,323, 326-328, 333,347,356, 328,333-335,337,338,342,343,344,360, Cultura popular, 137-139, 150, 179, 287, Cultural, 105
362,363,367 361,363,365,368 Intelectual, 93, 341
345
Classe dominante, 36, 37, 48, 75, 76, 90, Atos de conhecimento, 34, 152, 154 Cultural, 29-31, 35-38, 43, 44, 46, 52, 55-57, 62, Internacional, 272
94, 105, 137, 147,149, 154, 155, 167, 168, Conhecimento científico, 34, 49, 129, 159, 68, 71, 72, 74, 77, 88, 89, 92, 95, 97, 101, 102, Social, 76, 366
178,184,223,227,235,237,246,272, 173, 247, 260 104, 105, 107, 108, ll0, 116, 119, 132-134, Dom, 30, 40, 55, 56, 138, 140, 142, 149, 151, 166,
273, 292, 306, 310, 322, 326, 327, 328 Conhecimento prático, 24, 28, 70, 95, 126, 136-139, 142, 143, 145, 150, 151, 154, 156, 183,196,228,241,248,263,264,266,296,
Classe social, 24, 29, 36, 37, 48, 63, 103, 253,313,344,349,361 167, 178, 184, 188, 218-222, 224, 227, 245, 326,335,350,351
115, 118-121, 123, 126, 129, 136, 140, Conhecimento praxiológico, 27, 126, 127, 246,254,259,269,270,274-276,282,283, Contradom, 55, 183, 228, 248, 263, 296,
142, 149, 177, 207, 212, 220, 235, 238, 128,182,292,325 285, 294, 305, 306, 308, 310, 311, 324, 327, 326,350,351
245, 261, 271, 278, 281, 290, 296, 306, Consagração, 50, 53, 56, 57, 67, 74, 94, 98, 99, Ideologia do dom, 103, 151, 221, 234, 248
328,330,346,353,363
316,318,328,329,339,366 104, 122, 124, 153, 181, 249, 255, 278, 281, Arbitrário cultural, 36, 37, 129, 136, 137, Dominação, 25, 44, 55, 69, 72-74, 76, 78, 82, 85,
Condição de classe, 120, 121, 126, 164, 310, 319, 320, 355 87, 94, 96, 98, 105, 134, 137, 151-157,159,168,
234,245,246,327,328
362,363 Consciência, 23, 25-27, 34, 40, 41, 45, 62, 93, Herança cultural, 37, 196, 217-219 181, 185, 190, 230, 240, 245, 260, 261, 265,
Consciência de classe, 121 96, 121, 126, 127, 129, 133, 166,214,221, 232, Legitimidade cultural, 37, 59, 246 266,268,273,279,280,292,293,302,306,
Frações de classe, 72, 81, 136, 153, 154, 233, 240, 252, 256, 267, 268, 286, 288, 298, Prática cultural, 29, 30, 32, 34, 37, 38, 42, 312,314,320,326,330,331,338,244,350,
178,185,261,355 299, 305-308, 313, 319, 321, 322, 333, 344, 59, 80, 81, 102, 104, 136-138, 142, 146, 351, 354, 359, 360
Habitus de classe, 75, 83, 163, 164, 298, 350,360,361,363 Dominação cultural, 42, 85, 152
187,298
356,362,363 Tomada de consciência, 159,255, 305, 323, Dominação masculina, 133, 155-157,230,
Denegação, 55-58, 107, 140, 230, 247, 263, 351
Posição de classe, 120, 135, 136, 164, 296 360 Destino, 98, 118, 120, 142, 143, 157, 197, 221, 339,346,360
Classificação, 25, 72, 77, 97, 104, 112, 121, Construção social, 54, 79, 128, 153 Dominação simbólica, 25, 87, 137, 152,
272,306,346,353,356
123, 138, 152, 153, 158, 179, 186, 191, 203, Construtivismo, 128, 129, 215 Determinação social, 74, 143,145,313,338 154,156,292
225,227,244,270,278,283,319,320,328, Corpo, 73-75, 80, 93, 94, 97, 99, 101, 102, 104, Diploma, 30, 67, 86, 97, 101, 102, 105, 106, Dominação social, 27, 28, 230, 327
349, 360, 361 105,124, 132-134, 147,151,158,180,181,183, 109,136,145,146,191,210,279,280,281, Efeitos de dominação, 87, 134, 253
Categorias de classificação, 248 188,193,198,202,208,214,219,221,222,227, Eficácia da dominação, 152, 154, 185
315,331

378 INDICE REMISSIVO INDICE REMISSIVO 3 79


Formas s_imbólicasde dominação, 152,
153 211,221,235,265,273,277-279,281,283,288,
316,331,332, 348 124,125,133,139,144,147,149,150,153, Estratégias de reprodução, 25, 40, 76, 77,
Modos de dominação, 131,154, 155,184, 168,174,177-180,184,188,191-194,199, 108,145,179,189-191,196,197,228,273,
235,248,278,281,292,326,366 Emprego,39, 158,169,190,204,216,241,252,
289, 293, 367,368 209,212,218,223,225,226,231,232, 304,314,315,326
Relações de dominação, 24, 25, 38, 134, 241-243, 260, 261, 264, 274, 289, 290, Estratégias de subversão,65,69
Epistemologia, 49, 50, 81, 82, 99, 100, 169-172,
152-154, 156, 223, 245, 261, 313, 314, 295, 304-306, 310, 312, 313, 322, 337, Estratégias de sucessão, 69, 190, 196,314
359,360,366 268, 286, 287, 290, 299, 300, 337,352
339, 342, 347,350, 362, 363 Estratégias distintivas, 25, 146,273
Dominado, 37, 38, 48, 65, 71, 89, 94, 104, 134, Vigilância epistemológica, 34, 287, 299,
332,341 Esporte, 35, 73, 75, 79-81, 104, 124, 133, 147, Estrutura, 23, 24, 27, 28, 31-34,36, 40, 45, 46,
138,153,155,156,166,174,178,185,192,226, 148,150,187,188,242,290,302,339,346, 52, 57,65, 68, 69, 75-77,79, 80, 87-89,93, 94,
Escola, 30, 31, 37,41, 64, 80, 81, 90, 96-98, 100,
235,237,238,245,258,264,266,279,280,293, 361 96, 97, 102, 105, 106, 109, 111,115, 120-122,
307,314,320, 333,351,359, 360 107,113,136, 142, 143,145,147,151,157,167-
Esquemas,33,35,38-41,43,47,60,85,86, 104, 127,129, 134-137,141-144,151-155,157,158,
Dominante, 36, 37,48, 50, 55, 65, 67, 69, 71-73, 169,174-177,179,180,191,196,202, 210-212,
111, 120, 121, 133, 138, 144, 152, 156, 161, 164-166,178,181,182,184,185,188,191-194,
75-79,82,84,89,90,92,94,103,105,120,122, 216-221,226,235,246,251,258,265,273,278-
180-182,189,191,193,214-216,237,267,274, 209,210,218,222,223,225, 227,229,231-233,
123,126, 128,131,133,137,138, 147,149,152- 280, 286,287, 304,307,310,315,316,318,327,
278,280,289,308,326,328,335,336,343, 235,237,242, 243,247,249,252,254,260,261,
157,163, 164, 167-169,174, 175,177-181,183, 331,332,335,337,339,341,343,348,355, 362
352, 360-364, 368 270,274,276,277,279,280, 289-294,296,297,
184,190,192,194,196,205,209,212,218,223, Escolarização, 29, 105,106, 177,220,246,
Esquemas de ação, 121, 142,328, 368 304-306,309, 312-315,318,325-328,336,338,
251,296,308,316,353
227,230,235-238,240, 243,245-247,254, 255, Esquemas de apreciação, 56, 278, 328 341,350,354-356,360,362,365,366,368
264, 272-274,276,278-280,287,292,294,304, Instituição escolar, 37, 60, 103, 104, 146,
Esquemas de percepção, 35, 47, 56, 121, Estruturalismo, 26, 34, 40, 54, 126, 128, 129,
151,212,279,281,315
306-308,310,314,315,321,322,324,326-328, 129, 134, 135, 180, 191, 278, 987, 304, 143, 154, 174, 182, 192, 193, 201, 215, 222,
333,335,348,351,356,359,360 Sistemade ensino, 15,37,95, 104,105,109,
307,311,319,328 233,248,250,260,262,292,304,314,321,
Doxa, 41, 82, 129, 137,153, 157-159,232,258, 149,154,164,165,176,180,186,218,219,
Esquissesalgériennes,62, 184 336,338,356,367
260, 272, 276, 307,308, 337,339 234,278,288, 315-318,327-329,359-361,
366 Estado, 25, 35, 46, 58-60, 65, 69, 75-79,81, 86, Estruturas cognitivas, 118,142, 151,152,
Allodoxia, 147,159 87, 89, 91, 97, 98, 101, 104-106,108-110,112, 154-156,182,191,281,292,294,361,362
Doxósofos,158,285 Sistema escolar, 150, 153, 168, 176, 184,
122, 130-133,154-157,159,161,164, 167,169, Estruturas estruturadas, 69, 135,295,334
Écoledes Hautes Études Commerciales (HEC), 185,191,220,221,246,280,284,294,
184-186,190, 191,210,213,217,223,224,227, Estruturas estruturantes, 23, 69, 127,135,
97,211 310,315,328,329,331,346
229,232,234,235,239,240,243,251,253, 292,295
École des Hautes Études en Sciences Sociales Escolástica, 79, 146, 200, 213, 248, 264, 305,
308, 342-344 258,259,261,265,266,268,272,275,276, Estruturas incorporadas,24, 193,293,312,
(EHESS),29, 34, 211,312 278,279,281,284,289,293,294,304,314, 313
Disposição escolástica, 343
École Nationale d 'Administration (ENA),168 315,322,324,326,328, 330-334, 346,348, Estruturalismo genético, 40, 124
Postura escolástica, 234
École Normale Supérieure (ENS),38, 52, 53, 354-356,359,361,362,366,368 Estruturas mentais, 103, 124, 134, 180,
81, 82, 97, 98, 99, 160, 162, 174,210, 211, Prática escolástica, 265, 266
Estética, 42, 60, 66, 74, 85, 89, 103-105, 121, 185,191,192,211,212,214,231,232,
267,317,336 Espaço, 16, 31, 32, 33, 40, 42, 43, 47, 48, 54, 58,
122,135,136,138,149,151,258,270,280, 278,280,281,330,361
École Polytechnique (EP), 97,210, 211 62, 64, 65, 67, 68, 70, 76-83, 85-89, 91-93,96,
309-311,322, 345, Estruturas sociais,24, 25, 27,39,72, 75, 77,
Economia, 25, 41, 46, 55-58, 78, 79, 84, 91, 101, 97, 107, 108, lll, 114,115, 119,121,122, 138,
Estilos devida, 58, 67,73, 75, 80, 81,94, 98,104, 94,108,119,120,124,129,135,142,144,
107,109,116,124,134,137,140,157,162-164, 143, 147, 149,150,153,165,166,172,180,183,
114,121,122,136-138,149,150,167,168, 179, 149,152,154,156,163,177,183,191,196,
169,180,183,193,209,211,213,236,245,250, 184, 187-192, 204, 216, 218, 220, 222, 223,
187-189,214,234,246,273,279,290,292,350, 211,212,214-216,223,273,278-281,290,
254,261,263,264,272,274,276,277,283,310, 225-229, 232, 233, 236,237,239,241,242, 247,
355, 367,395, 297,304, 327,330, 340, 354, 356, 363
326, 347,348, 367 250, 251, 256, 258, 266, 267,271,273,276,277,
Estratégia, 25, 27, 28, 32, 40, 41, 52, 54, 56, 58, Ethos,78,94,102,141,180, 183,194,199,228,
Economiados bens simbólicos,55-57,183, 279,280,282,283,289,290,293,294,295,
60, 65, 66, 69, 74, 78, 80, 90, 103, 104, 107, 308,310,336,339
264,326,367 298,306, 324,330-332,336,338-340,344,
347,352, 356, 357,363, 366 108,114,122,124,143,144,146,148,154, Etnografia,153,278
Economia geral das práticas, 101 164,167,179,182,183,189,190,193,196, Etnologia,15,53,115,124,148,151,181,191,192,
Educação, 30, 35, 44, 96, 97, 99, 106, 127, 147, Espaço de lutas, 65, 74, 76, 185,294, 332
207,215,216,223,230,232,242,243,248, 222,227,247,265,292,307,324,336,342, 360
160, 165, 169, 175, 176, 177, 190, 210, 211, Espaço de posições, 32, 47, 65, 67, 75, 87,
250,252,260,263,273,276,280,297,301, Existencialismo, 99, 321
220-222,240, 257,277-279,292, 297,311,316, 89,119,153,166,178,194,310
304,309,314,321,325,326,334,335,339, Fam ili.a, 25, 42, 52-54' 57-59,80, 101-103,105,
327,328, 337,344 Espaçodos possíveis,47,82, 144,174,298,
347,350,351,354,366 . 106, llO, 113-115, 120, 121, 125, 136, 142,
Elite/Elites, 60, 73, 75, 77, 80, 91, 96-98, 100, 310,333,334,341,343,355
Estratégias de conservação, 65, 69, 179 143,157,160, 174,175,177,183,188,190, 191,
104,113,136, 167-169,174,178, 179,181,210, Espaço social, 24, 26, 27,32, 65, 80, 89, 91,
Estratégias de fecundidade, 190, 314 195-197,209, 216-219,221,235,248,251,259,
92, 96, 98, 105, 106, 108, 111,118,-121,
Estratégias de reconversão, 191,304 314-316,331,347,362
380 INDICE REMISSIVO

fNDICE REMISSIVO 381


Fenomenologia, 50, 81-83, 128, 143, 158, 197, Habitus clivado, 53, 324 Inconsciente, 40, 55, 121, 125, 127, 132, 135, 148, Jogo incorporado, 190,242
198, 213, 233, 267, 274, 291, 321, 335, 338, Habitus de classe, 75, 83, 163, 164, 298, 156,160,180,182,200,208,225,233,250,263, Sentido do jogo, 24, 190,231,232, 241-243,
350,367 356,362,363 271,280,318,321,322,328,329,333,334,337, 249,298
Filosofia, 32, 34, 38, 49-51, 81-84, 87, 93, 99, 100, Hegemonia, 67, 72, 79, 83, 84, 94 341,342,346,356,361,363 Jornalismo, 71, 78,243,269,270,287,320
124,126,130,143,146,151,154,157,159,160, Herança cultural, 37, 196, 217-219 Incorporação,24,59,60,70, 1D6,lll,120, 124, Juízo professoral, 192, 328, 349
165,170,171,174,175,180,192,197-202,208, Herdeiros, 125, 169, 190, 197, 211, 219, 220, 133,152,154-156,180,191,192,216,234,266, Julgamento escolar, 278
209,215,216,227,233, 234,247,249,259,260, 286,331 305, 307, 319, 351, 356, 360, 363 Legitimação, 28, 36, 67, 69, 76, 84, 90, 94, 108,
264, 265, 267, 268, 272, 282, 283, 288, 289, Heterodoxia, 89, 335, 338 Incorporadas (disposições), 26, 65, 133, 179, 118, 137,179,227,245,246,259,266,269,272,
292, 299, 312, 324, 325, 336, 338, 341, 345, Hexis, 213, 351 290,303,360 273, 317, 328, 329, 335, 338, 365, 366
350, 351, 367, 368 Hexis corporal, 59, 74, 132, 134, 136, 180, Inculcação, 36, 98, 106, 133, 134, 218, 292, 307, Legitimidade, 36, 37, 59, 68, 94, 95, 97,
Fotografia,42, 74,113,136,160,186,201,206, 218,222,251,339 317, 328, 362, 363 105, 130, 138, 153, 154, 159, 169, 188,
250,291,336 Hierarquia, 25, 36, 42, 69, 71, 82, 83, 88, 95, 97, Individualismo, 234, 235, 338 206, 209, 212, 225, 235, 245, 253, 261,
França, 26, 29, 38, 40, 44, 52, 62, 67, 68, 77, 85, 104, 137, 139, 158, 208, 209, 211,227, 232, 243, Intelectual,· 15, 16, 25, 29, 33, 35, 36, 38, 43-45, 270, 273, 280, 293, 308, 314, 318, 320,
96-98, 103, 105, 107, 108, 121, 122, 131, 143, 258,259,280,294,300,304,328,335,338, 48,61,62,66,72,74,76,77,82,83,85,90,93, 326,328,335,358,366
147-150, 168,169,174,179, 185, 187,188,190, 341, 345, 354, 366 96-98, 100, 103-105, 107, 108, 110, 120, 122, Legitimidade cultural, 37, 59, 246
192,195,202,203,209,210,214,217,222,226, História, 15, 42, 49, 50, 52, 54, 70, 71, 73, 80-82, 123-125, 131,138,151,153,157,159,160,161, Processos de legitimação, 139, 153, 320
230, 236-238, 240,243,253,257,259,260,264, 84, 88, 89, 91-93, 99, 108, 118, 123-126, 133, 164-166, 168, 172, 174, 177, 180, 183, 186, 190, Libido,78, 157,23Z,343,353
265, 269-271, 277, 278,284,287,291,308,316, 139,147,156,158,160, 165-167,170, 198-201, 192, 198, 199, 201-206, 208,220, 221, 225-227, Linguagem, 35, 50, 63, 72, 91, 107, 110, 126, 129,
318,324,330,334,336,338,352,356,367 209, 210, 214, 215, 222-224, 233,237,238,242, 232, 236-239, 246, 247, 250, 255, 259, 260, 132,133,137,138,140,146, 163-165, 174,186,
Funcionalismo, 84, 172, 192, 236, 261, 338 257,259,262,268,271, 273-275, 280,291,295, 263-270,273,275,276,278,279,282,286,287, 192, 198, 200, 216, 250-254, 275, 282, 283,
Genealogia, 40, 54, 107, 132, 202, 331, 352 304, 311, 322, 331-333,337, 341, 355, 356, 360, 289,291,296,298,299,301, 311-313,316,321, 294, 299, 305, 318, 319, 326, 337, 349, 360,
Gênese, 36, 67, 68, 93, 99, 120, 124, 129, 153, 164, 365,368,369 323,324,328, 330-332-,336-341, 344,346, 348, 365, 367-369
193,216,233,253,265,279,289, 295, 304, 309, Homo academicus, 32, 35, 51, 61, 95, 96, 99, 349,352,359,365 Literatura, 25, 38, 42, 44, 55, 72, 84, 85, 88-90,
311,321,324,337,361,365,366 104,125,144,180,203,211,223,225,236,237, Intelectual coletivo, 238, 240, 311, 323 116,124,190,209,211,249-251,254,263,289,
Globalização, 78, 81, 132, 169, 272, 275 247, 258, 265, 312, 332, 333, 341, 351 Intelectuais midiáticos (Fast Thinkers) , 298,309,339,341,345
Gosto, 24, 25, 29, 32, 47, 73, 74, 80, 100, 104, 115, Homologia, 31-33, 45-48, 72, 89, 96, 153, 179, 269,270,330 Lógica da prática, 81, 124, 266, 296, 298, 312,
121,122,123,132, 136-139, 142,143,145,149, 180,205,258,278,289,290,310,355 Think Tanks, 238 326,
150,168,183,188,208-210,234,246,290,292, Homologia estrutural, 47, 71, 168, 193, Interação,23,26,34,154,163-166,l83,193,205, Lucros, 46, 54, 64, 66, 67, 74, 79, 96, 105, 159,
327, 332, 339, 362 270,289,297 218, 219, 251-253, 289, 296, 332, 334, 347, 348, 162, 163, 231, 249, 250, 252, 255, 256, 261,
Grandes Écoles, 32, 61, 76, 95, 97, 105, 114, Honra, 40, 41, 50, 55, 110-112, 142, 161,181, 183, 351,356,366 315, 331, 332,
115, 162, 167, 168, 179,210,211,217,236,258, 228,345,351 Interesse, 16, 32, 40, 43, 46, 48, 55, 57, 58, 62, Lucros simbólicos, 54, 77, 104, 105, 241
264, 277, 290 Sentido da honra, 40, 181, 182, 228 65-69,71,72,74,75,82,84,87,88,92,94,95, Lucros sociais, 133
Grandes escolas, 80, 96, 179, 180, 278, 279, Hysteresis,228 105,110,118,120,125,126,148,152,154,155, Luta,24,32,35,45,46,48,58,65,66,68-76,78,
332,355 Efeito de hysteresis, 228, 229 161,167,171,181,184-186,189,190,192,205, 79, 81, 82, 84, 89, 91, 92, 96, 99, 105, 112, 117,
Grupos dominantes, 72, 103, 120, 123, 167, 169, Hysteresis do habitus, 228, 229 208,213,217,222,227,231,232,237,238,242, 120-123, 130,131,139,146,149,152,153, 155,
180, 181, 212, 245, 278, 279, 294, 315, 327 Identidade, 75, 86, 100, 112, 124, 163, 180, 181, 250,264,268,273,274,276,279,281,285,294, 158,171,172,175,176,179,175,188,190,201,
Habitus, 16, 23, 24, 27, 28, 39-42, 46, 47, 52, 226,235,266,267,320,353,356 295,304,309,320,326,330-332,335,336,339, 202,209,212,217, 223-225, 236,238,240,241,
54, 65, 68, 69, 74, 79, 81, 88, 90, 93, 94, Identidade coletiva, 181 343-345,353,354,367 249,266,279,280,284,286,294,314,332,333,
96, 100, 107, 111, 116, 120-122, 126, 127, Identidade nacional, 185 Investimento, 55-57, 59, 60, 78, 100, 106, 132- 335, 338, 342-345, 352, 356
133, 136, 141-144, 146, 148-150, 152, 156, Identidade social, 98, 112, 125, 132, 180, 134, 179,190,191,196,219, 231-233,242,249, Lutas de classificação, 123, 137, 152, 273
158,163, 164,166,174-176,178,180,182, 281 314, 315, 325 Lutas simbólicas, 72, 92, 103, 104, 121-123,
183, 188-190, 193,194,198,199,203,205, Ideologia, 58, 88, 100, i05, 131, 151, 158, 164, Jogo,46,65-67,70,71,73,78,80,83,88,92,96, 149,152,195,260,261
213-216, 222, 223, 226-234, 237, 242, 248, 168, 171,230,234, 236,237,240,275,276, 283, 122,124,131,134,135, 138, 145-148, 162,171, Lutas sociais, 131, 240, 271, 293
250-252, 254,259, 260, 266,278,279, 281, 307, 308, 335, 354, 359, 360 182, 189, 190, 199, 203, 228, 231, 232, 237, Macrocosmo, 65
290-293, 295,297, 298, 302, 303, 305-308, Illusio, 46, 56, 70, 73, 78, 79, 88, 168, 199, 231- 238, 241-243, 248, 249, 266, 280, 281, 283, Magia,47, 74,86,93,98, 134,211,264,319
310,311,319,322,325,328,334,339,342, 233, 239,240,242,311,325,339,343,351 295, 297, 303, 311, 319-321,325, 326, 328, 338, Marxismo, 66, 71, 108, 126, 193, 233, 236, 259,
343,347,350,351,354,355,360-363,368 Ilusão biográfica, 233, 355 343,354,367,369 260,321,338,353,356

382 INDICE REMISSIVO INDICE REMISSIVO 383


-'1
i

Mercado, 41, 44-46, 52, 56-58, 61,67,78-80, 85, Notoriedade, 227,238, 247,269, 317 296, 301,306, 309,310,317,318,320,326,329, 266,278,288,290,291,296,298,299,301,303,
89, 93, 94, 101-103,105, 106, 132, 145, 146, Objetivação,34, 35, 50, 53, 75, 96, 112,132,136, 333,336-339,342, 344, 345, 347,350,351,357 304,308,319,324-326,330,331,332,342-344,
154,163,169,184,190,191,213,238,250-255, 154,173,174,199,225,251,268,299,313,333, Posição, 24, 32, 33, 35, 36, 47, 54, 59, 65-69,72, 350,368,369
277,286,289,292,310,314,347,348,350,358 335-338,341-344,366 74, 76, 77,79, 80-82, 84, 87-89,91-94,96-101, Escolástica, 200, 344
Mercado linguístico, 163,250-255,267 Objetivismo, 24, 27, 81, 126-128,182,183,214, 103, 104, 110, 119, 120, 122, 126, 135, 136, Realpolitik da razão, 199,240, 344
Mercado simbólico, 52, 56, 156, 164,270, 233, 260, 262, 296, 321,325-327,368 152, 153, 155, 156, 158, 163, 164, 166, 168, Razões práticas, 174,247,290, 303, 304
294 Opinião pública, 149,243, 283-285,302 175,177-180,190-196,203,209,212,218,223, Reconhecimento, 37, 43, 46, 57-59,69, 70, 72,
Mérito/Meritocracia,92, 104, 105,107,173,199, Ordem social, 79, 94, 106, 121, 129, 134, 143, 225-227,236, 241-243,247-249,259,260,266, 80,86,88,90,101,102,105-108,110-112,124,
202,300,319,325,32~328,331,335 151, 153, 154, 168, 185, 192, 193, 195, 208, 270,274,278-283,286,290,294,295,301,303, 133,135,140,146,151,152,154,156,163,172,
Metacampo, 76 230,244,292, 293,302,307,335,351,361,365 304,306,310,313,314,31~329,332-339,341, 195,212,222,227,231,232,235,241,242,245,
Metacapital, 76, 184 Ortodoxia, 73, 89, 95, 154 343,350-352,354,355,35~362,363,366 24~252,266,293,294,308,310,314,319,324,
Metodologia,26, 107,126-128,170,268,298,347 Patrimônio, 37, 53, 97, 101, 167,168, 178, 183, Posição de classe, 120, 135, 136,296 343,35~360,368,369
Microcosmos sociais, 64 189-191,196,217,218,241,252, 309,314,326 Posição social, 23-26, 28, 68, 75, 80, 119, Desconhecimento,151,156,212,245,264,
Mídia, 43-45, 62, 69, 97,240, 243, 268-271,275, Patrimônio cultural, 103, 106, 217, 310, 125,133,136,149,168,177-179,191,198, 293,294,314,320,335,344
329,346,349,363 327,331 199, 234, 242, 243, 249, 251, 278, 280, Reconversão,106,191,223,273,355
Midiático, 61, 87, 103, 117,225, 238, 260, Patronato, 77, 108, 168, 169,190,288 284,290,303,305,322, 33~338,342, Conversão, 36, 47, 69, 82, 104, 106, 145,
269,270,301,329,330 Pedagogia racional, 221, 328 355,362 175,307, 355
Mimese, 41 Pensamento,26,35,36,42,43,55,83,92-94,99, Posições relativas, 114,118-120,177,190 De capitais, 191,304
Mimesis, 133,362 104,107,117,123,128, 129,131,134, 135,152, Prática, 23-27,29-32, 34, 35, 37-42, 46, 47, 51- Reflexividade, 33-35, 159, 174, 198, 268, 296,
Mobilidade social, 178,271, 306 155,156, 158,159,161,164, 172,176;177,180, 56, 58-60, 65, 68-70,75, 78-81,86, 90, 94-96, 305-308,312,313,324,333,334, 341-345,363
Monopólio,31,65, 66, 77,78, 92, 94-97,109,112, 191,199,200,202,203,206,213,233,234,239, 101,102,104,120-122,124,126,127,129,130, Regra, Regras, 23, 24, 27,40, 46, 52, 54, 59-61,
123,148,155,185,212,280,330,343 240,246,247,251,255,262,265,273,283,297, 133,136-138,141,142,144,146, 147,149,151, 65,66,70,72,73,88,89,91,92,124,126,12~
Da autoridade, 67 302,304,305,312,313,318,321,323,328,33~ 153,154,156,158,160, 163-166,169-171,174, 137,145,156,172,175,182-184,189,190,193,
Da competência, 56 339,343,344,349,356,362,365,368 179,181-183,186-189,191,193,194, 196, 199, 214,217,220,228,232,241-243,248,252,253,
Da violência, 41, 76, 359, 361 Pensamento escolástico, 260, 343 200,209,213-216,218,220,221,224,225,228, 256,272,283,290,296,297,300, 301,303,305,
Da violência simbólica, 72, 76 Pensamento relacional, 51, 288, 289 229,231-234,236,242, 245-248,250,252,255, 307-310,319,322,325,326,341,350,363,368
Do Estado, 184 Pequena burguesia, 59, 60, 122, 290, 306, 351 260-268,270,280,283,284,289,290,292, Relativização,342
Do saber, 93 Poder, 15, 25, 32, 43, 46, 47, 59, 62, 69, 71, 72, 294, 296-300,303-308,312,313,318,319,321, Religião,55, 58, 74,89, 93, 94, 161,164,175,235,
Movimentossociais, 43, 131,132, 139,239,240, 74-77,84, 87, 90, 92, 94-96, 98, 101,102, 105, 324-326,328, 332-334,337,339,341-344,346, 236,274,311,33~339,365,366
338,345,346 109,lll, 118,119,122, 134, 137,143,152-155, 348-352,355, 356, 361-363,366-368 Reprodução,23, 69, 70, 72, 73, 76, 77,84, 94, 95,
Mundialização, 45, 79, 81, 272-274 159,163,165,166,168, 169,174,177,180,181, Práticas sociais, 24, 34, 79, 98, 120, 171, 96, 99, 104-106,108, 115, 123, 144, 145, 149,
Mundo social, 15, 23, 26, 32, 35, 45, 71, 72, 88, 184,185,190,196,202,203,212,214,225-22~ 292,309,352,368 154, 155,157,162,167,168, 179-182,185,189,
91,93-96,104,112,122,123,126-132,135,137, 238,245,247,251,254,255,261,264,272,275, Prestígio, 42, 72, 74, 77, 82, 110, lll, 145, 177, 190,191,193,196,197,211,212,215,219,223,
140, 148,152-155,158-161,163,166,175,176, 276,278-281,292-295,312,314,318-320,322, 178,183,200,210,211,22~235,24~255,279, 226,227,235,236,247,260,261,268,273,278,
180,181,185,186,189-192,197,205,215,216, 328, 329-332, 335, 338, 344, 346, 349, 357, 280,283,294,338,345,357 280,290,292, 293,304, 313-317,326,327,329,
225,233,240-242,244,247,250-251,260, 261, 360,366,368 Privilégio, Privilégios, 29, 30, 34, 47,52, 87,98, 331,338,339
268,271,274,280,282,283,292-295,299,301, Poder simbólico, 72, 79, 95, 109,124,132, 104,108,219,221,240,242,276,307,308, 313, Estratégias de reprodução, 25, 40, 76, 189,
305-308,310,312,313,322,325,330,332,33~ 13~ 163, 185,200,266,292-295,319 32~328,335,344,359,363 190,191,196,197,228,273,304,314,315,
339,341-343,345; 351,360-362, 364 Relações de poder, 87, 95, 119, 139, 163, Projeto,23,30,39,43,6~74,86,88,92,96,116, 326
Neoliberal,44, 45, 58, 62, 78, 130, 131,238, 239, 261,313 125,126,143,158,160,161,165,174,181,184, Modos de reprodução, 76, 168, 196, 227,
266,276,346 Política,30, 34, 35,43-46,56, 58,61,63,65,69,71, 19~202,224,260,263,266,270,272,278,296, 235,244,315
Neoliberalismo,131,234,271,275-277,348 78,79,82-84,87,90-94,96-97,99, 107,116,117, 298,301,316,31~333-340,351,367 Reprodução cultural, 152, 164, 177,227,
Nobreza,76,87, 105,112,113,145,146,168,191, 122, 128, 129,131,132, 137,141,142,149,150, Razão,29,30,34,36,42,46,49, 76,83,8~99, 327
211,273,294,330,331,366 153-156,159,174,175,181,182,185,187,193, 110,lll,125,128,130,138,143,144,155,158, Reprodução escolar, 280,331
Nobre~ade Estado, 77, 87, 131,265, 332 202, 203, 209-211,214,216,217,222,224-226, 159,161,166,170,172,174,183,188,192,193, Reprodução social, 75, 94, 104, 106, 108,
Nobreza escolar, 82, 280 235-240,245,253,256,260,264,266,267,270, 199,200,201,211,214,220,224,226,22~230, 129,148,151-153,164,179,180,189,217,
Nomos,46, 7~ 172,173,201,281,310,369 272,275,276,278,280,282-285,289,292,295, 233,235,238,242,249-251,253,262,263,265, 278,293,309,314-31~32~350

384 ÍNDICE REMISSIVO ÍNDICE REMISSIVO 385


Resistência,39,43, 46, 62, 94, 99, 120, 156, 173, Sistema, 23, 27, 36-38, 40, 52, 54, 65, 68, 69, 72, Sociologiareflexiva, 34 100,101,105,106,107,109,110,111,114-118,
205, 256, 297, 333 77,78, 79, 83, 87,94-96, 98, 103-105,109,116, Sociologiarelacional, 312 125,127-129,133,140,141,144,145,148-154,
Rito,Ritos, 161,163,235,249,264,318-320 120,126,127,129,132-134,136,142,149,150- Subjetivismo,26, 81, 128,129,183,214,233,262, 157-161,165-170,174-176,179,182,186,190-
Rito de instituição, 146,163,249,264,279, 155,157,158, 161,164, 165,167,168,176-178, 296, 299, 304, 321,325, 327,368 192,195,196,198,199,202,203,205,211,214,
318,361 180,181,184-186,190-193,196,202, 208-210, Subjetividade,24, 25, 27;34, 139,293,299, 218,219,220,222-225,227,230-234,237,238,
Ritos de consagração, 320 213-215,218-221,223,225,226,230-234,236, 350,367 240,243,247,248,250,251,257,258,261-264,
Rito social, 318 243,246,248,252,253,263,270,278,280-285, Sujeito, 23-28, 34, 40, 49, 53, 59, 83, 103, 104, 266, 268, 272-274, 276, 283, 284, 286, 287,
Senso comum, 50, 82, 122, 126, 127, 129, 158, 288,290, 292-295,297,299-301,304,310,314- 106, 107,118,120, 138,161,165,166,173,180, 289,291,293,295,297,301-304,307,310-312,
160,172,185,214,234,274,286,289,299,318, 319,325, 327-329,331,333,336,339,343,346, 193,197,198,209,231-234,249,256,268,293, 314,323,326-339,341,344-346,348, 352-355,
333, 337,361, 362 350,352,355,359361,363,365,366 295,296,299,304,305,313,322-325,328,330, 357-360,365,366,367
Senso prático, 35, 79, 110, 124, 148, 199, 200, Sistemas de classificação, 111, 139, 152, 333,334,341,344,348 Trajetória, 33, 36, 58, 59, 63, 67, 68, 78, 84, 85,
228,229,24~259,29~298,305, 306,318, 158,185,209,278,349 Taxionomia, 117,152, 154, 349 90,91,96,98,99,108,119,120,125,l36,144,
322, 324-326 Sistemas de pensamento, 42, 161,164 Televisão,30, 44, 50, 53, 269, 329, 339,349 161,169,17~178,182,198,202,210,215,216,
Sentido, 23, 25, 27, 28, 33, 38, 40, 42, 47, 50, Skhole,201,266,305,343,352 Tempo,27-30,35, 38, 39,41,46, 50, 57,60, 67-69, 219,233,236,237,243,247,265,268,279,282,
58-60, 68, 70, 74, 76, 79, 84,88,89,96, 100, Sociação,215 74,76,79,83,86,89,95,99,106-108,115,116, 286, 291, 302, 303, 310, 313, 316, 324, 333,
106-108,110,112,116,119-122,126-128,131, Socialização,25,60,75,91,106,133,155,181,182, 125, 133,134, 136, 137,141,145,149,150,157, 337,339,341-343,345, 350, 351,354-356,362
135-138,140,148,151,153,156,157, 161-165, 228, 230, 232, 241,252, 265,279,297,347,352 160,166,167,169,171,180,182-184,190-193, Efeito de trajetória, 352
167,171,173,181,182,186,189,190,192,193, Processo de, 56, 133, 144, 180, 217,229, 201,214,215,217,219,221-223,227,230, 231, Trajetória modal, 355
213,220,221,228,230-234,236,241,242, 232,303,304 237, 240-242, 245-248, 260, 261, 263, 266, Trajetória social, 136, 198,282, 350, 354,
244, 246-248, 250, 254-256, 260, 262-268, Sociedade, 23, 27, 36, 39-41, 52, 53, 55, 56, 64, 268,27~ 278,282,283,286,291,294,296, Trocas,4~52,54,55,72, 78,100, 10~ 114,115,
272,274,278,283,285,288,292-294,296, 67,71,78-80,91,93-97,102,104-109,lll, 112, 305, 314,315,317,321,324, 326, 331,336, 337, 140,164,182, 183,20~220,255,280,292,
298-300,303,304, 307,308, 310,314,315,318, 115,116,118,119,120,123,125,128,130, 340,342,343,345,349,350-352,354-356, 293,296,326,362
322,323,326-328,330,333,335,338,341,352, 131,135-138,140-143,148-150,153-158,161, 363, 365, 367, 369 Economia das trocas, 162-164,250
353, 355,360, 361, 366, 368 165-168,172,175,177-182,190,192, 195-197, Dimensão temporal, 183,263 Trocaslinguísticas, 162-164,250,254,339
Produção de sentido, 134, 152,293 205,209,210,212,214,215,217,218,222-224, Teoria, 32, 34, 37, 39, 45, 46, 49, 54, 66, 68, 72, Trocas simbólicas, 62, 164,356
Sentidodo jogo, 24, 190,231,232,241-243, 228,234-238,241,245,246,248,249,258,261, 75, 78, 79, 81, 83, 87,89, 93, 103,107,116,128, Veredicto escolar, 359
249,298 263,266,272,274,280,281,284,290,291, 130,136, 141-144,147,151,152,156,160,162- Violência simbólica, 37, 72, 90, 104, 137, 152,
Simbólico,25, 28, 36-38,40, 41,46, 52, 54-57,67, 293,295-298,300,305,308,309,313-316,318, 156,163,171,184,205,245,246,250,252,
165,170-172,174,184,193,202,213,215,216,
70, 72, 74, 76, 77-79,83, 87-90, 92-95, 97, 98, 327-329,332,333,335,336,339,345-348,350, 261,266,278,281,292,307,316-318,326,328,
233,234,245,246,252,253,259,260,262,265,
102-114,116,117,119,121-124,126,129, 132, 351,353,355,359,361-363,365-367 275,276,278,283,287,288, 290,292,293,295, 330,339,359-361,366
134-138,143,145, 146, 149,152-157,161-164, Sociodiceia, 190, 275, 335 299,300,309,311,312,314,316-319,325-328, Visão e divisão, 153, 180, 181
167,169,171,178,180-186,190, 192-195,200, Sociogênese,124, 144,343, 360 330,338,339,341,348,354,356,360,366,367 Divisão social, 46, 64, 93, 349
202, 205,210,213,216,220,225,227,228,231, Sociologia,26, 29,31,34, 35,38, 51,53,61,65, 68, Princípiosde visão e divisão,111,142,185,
Teoria da ação, 26, 213,248, 262,263,303,
233,235,237,242,245,246,248,250,252-254, 70, 71,75, 78, 79,83-85,88, 90, 91,98, 100,107, 317,352 192,280,281,293,301,361-362
257,259-261,263-267,269,270,272, 275,278, 108,113,116,117,123,124,128, 130,132,133, Teoria da prática, 27, 38, 40, 41, 55, 127,
281,289,290,292-295,298,304,307,308,310, 135,138,143,144,150,151,159,160,163-166, 181-183,189,228,250,261,263,296,297,
312,314-319,324,326,328-330,338,339,341, 168-177,187,190, 191,193,195-197,199-202, 298,305,308,321,324,368
351-354,356,359, 360-362,365-367 205,206,208,209,211,212,218,219,222-225, Teoria do conhecimento sociológico,170,
Dimensão simbólica, 38, 55, 58, 76, 78, 227,228,233,234,236,238,247,249,250,254, 299
135,152,183,188,292,294,326,330 259,260,264-266,269,271,282,283,286,287, Teoria do espaço social, 71, 90, 173
Instrumentos simbólicos, 152 289,292,295,298,299, 301-304,312,318,321, Teoriados campos, 45, 47,64, 71, 149,194,
Ordem simbólica, 85, 95,155, 158, 185, 324,327,333-343,345-348,350,352-354,356, 261,269,270,310,362
292 357,361, 365-369 Teoria social, 103, 165
Produção simbólica,47,48, 71,72, 90, 153, Sociologiada sociologia,51,171,249,337, Tomada de posição, 197,313
154, }59,164,202,260,261,289 341,342 Topologia social, 71
Revolução simbólica, 158, 184, 257-259, Sociologiado conhecimento,128,160,211, Trabalho, 25, 29, 33-36,38-40, 43, 44-46, 50-57,
310 288,299,342,365 61, 64, 74, 76-79,81, 83-85, 91, 93, 95, 97, 98,

386 ÍNDICE REMISSIVO


ÍNDICE REMISSIVO 387
1
i

Pierre.La noblessed'État:grandesécoleset espritde corps.Paris:Minuit, 1989.


BOURDIEU,
OBRAS
DEPIERRE
BOURDIEU
PUBLICADAS
NAFRANÇA*
······················································································································· BOURDIEU,Pierre. Les reglesde l'art:genese et structure du champ littéraire. Paris: Seuil, 1992.
BOURDIEU,Pierre; WACQUANT,Loi'cJ. D. Réponses:pour une anthropologie réflexive. Paris:
Seuil, 1992.
BOURDIEU,Pierre (Org.).La misere du monde. Paris: Seuil, 1993.
Pierre.Raisonspratiques:sur la théoriede l'action.Paris:Seuil,1994.
BOURDIEU,
BOURDIEU,Pierre; HAACKE,Hans. Libre-échange.Paris: Seuil, 1994.
BOURDIEU,Pierre. Sociologiede l'Algérie.Paris: P.U.F.,1958. BOURDIEU,Pierre. Sur la télévision,suivi de L'emprisedu journalisme. Paris:LiberÉditions, 1996.
BOURDIEU,Pierre; DARBEL,Alain; RIVET,Jean-Paul;SEIBEL,Claude. Travai!et travailleurs en BOURDIEU,Pierre. Méditations pascaliennes.Paris: Seuil, 1997.
Algérie. Paris-La Haye:Mouton, 1963. BOURDIEU,Pierre. Les usages sociaux de la science:pour une sociologie clinique du champ
BOURDIEU,Pierre; SAYAD,Abdelrnalek.Le déracinement:la crise de l'agriculturetraditionnelle scienti.fique.Paris: INRA, 1997.
en Algérie. Paris: Minuit, 1964. BOURDIEU,Pierre. Contre-feux:propospour servir à la résistancecontre l'invasion néo-libérale.
Jean-Claude.Les héritiers:les étudiants et la culture.Paris: Minuit,
BOURDIEU,Pierre;PASSERON, Paris: Liber/Raisonsd'agir, 1998.
1964. BOURDIEU,Pierre. La domination masculine. Paris: Seuil, 1998.
BOURDIEU,Pierre; BOLTANSKI,Luc; CASTEL,Robert; CHAMBOREDON,Jean-Claude. Un art BOURDIEU,Pierre. Esquissed'une théoriede lapratique,précédéde Traisétudesd'ethnologiekabyle
moyen: essaisur les usagessociaux de la photographie.Paris: Minuit, 1965. (1972).Paris: Seuil, 2000.
BOURDIEU,Pierre; PASSERON, Jean-Claude;SAINTMARTIN,Monique de. Rapport pédagogique BOURDIEU,Pierre. Propossur le champ politique. Lyon:Presses Universitairesde Lyon,2000.
et communication. Paris-LaHaye:Mouton, 1965.(Cahiersdu Centre de SociologieEuropéenne).
BOURDIEU,Pierre. Les st.ructuressocialesde l' économie.Paris:Liber/Raisonsd'agir,2000.
BOURDIEU,Pierre; DARBEL,Alain; SCHNAPPER,Dorninique.L'Amour de l'art: les musées d'art
Pierre. Contrefeux, 2:pour un mouvement socialeuropéen.Paris:Raisonsd'agir,2001.
BOURDIEU,
européenset leur public. Paris: Minuit, 1966.
BOURDIEU,Pierre. Science de la scienceet réflexivité. Paris: Raisons d'agir, 2001.
BOURDIEU, Pierre;CHAMBOREDON, Jean-Claude.Le métier de sociologue:
Jean-Claude;PASSERON,
préalables épistémologiques.Paris: Mouton-Bordas,1968. Pierre.Interventions1961-2001:
BOURDIEU, sciencesocialeet actionpolitique.Marseille:Agone,2002.
Pierre.Le baldes célibataires:la crisede la sociétépaysanne en Béarn.Paris:Seuil,2002.
BOURDIEU,
BOURDIEU,Pierre; PASSERON,Jean-Claude. La reproduction: éléments pour une théorie du
systeme d'enseignement. Paris: Minuit, 1970. BOURDIEU,Pierre. Si le monde social m'est supportable, c'est parce que je peux m'indigner.
BOURDIEU,Pierre. Esquissed'une théorie de la pratique - précédé de Trais études d'ethnologie Entretien avecAntoine Spire. La Tour d'Aigues:Éditions de l'Aube,2002.
kabyle. Geneve:Droz, 1972. BOURDIEU,Pierre. Images d'Algérie:une affinité élective.Arles:Actes Sud, 2003.
Pierre.Algérie60:structureséconomiqueset structures temporelles.Paris:Minuit, 1977.
BOURDIEU, BOURDIEU,Pierre. Esquissepour une auto-analyse. Paris: Raisons d'agir, 2004.
BOURDIEU,Pierre. La distinction: critique sociale du jugement. Paris: Minuit, 1979. BOURDIEU,Pierre. Esquissesalgériennes.Paris: Seuil, 2008.
BOURDIEU,Pierre. Le sens pratique. Paris: Minuit, 1980. BOURDIEU,Pierre; BOLTANSKI,Luc. La production de l'idéologie dominante. Paris: Raisons
BOURDIEU,Pierre. Questions de sociologie.Paris: Minuit, 1980. d'agir/Dernopolis,2008.
BOURDIEU,Pierre; CHARTIER,Roger.Le sociologueet l'historien. Marseille:Agone;Paris: Raisons
Pierre.Cequeparlerveut dire:l'économiedeséchangeslinguistiques.Paris:Fayard,1982.
BOURDIEU,
d'agir, 2010.
BOURDIEU,Pierre. Leçon sur la leçon. Paris: Minuit, 1982.
BOURDIEU,Pierre. Sur l'État. Cours au College de France (1989-1992).Paris: Raisons d'agir/
BOURDIEU,Pierre. Homo academicus. Paris: Minuit, 1984.
Seuil, 2012.
BOURDIEU,Pierre. Langageet pouvoir symbolique. Paris: Points, 1984.
BOURDIEU,Pierre. Manet. Une révolution symbolique. Paris: Seuil/Raisonsd'agir, 2013.
BOURDIEU,Pierre. Chosesdites. Paris: Minuit, 1987.
BOURDIEU,Pierre. Sociologiegénérale.Cours au Collegede France (1981-1983).Paris: Raisons
~ierre.L'Ontologiepolitique de Martin Heidegger.Paris:Minuit, 1988.
BOURDIEU, d'agir, Seuil, 2015.v. 1.
BOURDIEU,Pierre. Sociologie
générale.Coursau CollegedeFrance(1983-1986).
Paris: Raisons d'agir,
· Listagem limitada somente a livros e coletâneas. Compreende também as obras em coautoria. Seuil, 2016.v. 2.

388 OBRAS DE PIERRE BOURDIEU PUBLICADAS NA FRANÇA 389


B0URDIEU,Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro:
OBRAS
DEPIERRE
BOURDIEU
PUBLICADAS
NOBRASIL* Zahar, 1998.
·······················································································································
B0URDIEU,Pierre. Escritos de Educação. NOGUEIRA,Maria Alice; CATANI,Afrânio (0rgs.).
Petrópolis,RJ:Vozes,1998.
B0URDIEU,Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 1999.
B0URDIEU,Pierre; CHAMB0RED0N,Jean-Claude;PASSER0N,Jean-Claude.A profissão de so-
ciólogo:preliminares epistemológicas.Petrópolis,RJ:Vozes,1999.
B0URDIEU,Pierre. O campo econômico:a dimensão simbólica da dominação. Campinas, SP:
Papirus, 2000.
B0URDIEU,Pierre. Contrafogos2:por um movimento socialeuropeu.Rio de Janeiro:Zahar, 2001.

B0URDIEU,Pierre. A economia das trocas simbólicas. MICELI,Sergio (0rg.). São Paulo: Pers- B0URDIEU,Pierre. Meditaçõespascalianas.Rio de Janeiro:Bertrand Brasil,2001.
pectiva, 1974. B0URDIEU,Pierre.A produção da crença:contribuiçãopara uma economiados benssimbólicos.
B0URDIEU,Pierre;PASSER0N,Jean-Claude.A reprodução:elementospara uma teoria do sistema São Paulo: Zouk, 2002.
de ensino. Rio de Janeiro:Francisco Alves,1975[Petrópolis,RJ:Vozes,2008]. B0URDIEU, Pierre; WACQUANT,LoYcJ. D. Um convite à sociologia reflexiva. Rio de Janeiro:
B0URDIEU,Pierre.O desencantamentodo mundo: estruturas econômicase estruturas temporais. RelumeDumará, 2002.
São Paulo:Perspectiva, 1979. B0URDIEU,Pierre; DARBEL,Alain. O amorpela arte: os museus de arte na Europa e seupablico.
B0URDIEU,Pierre. Pierre Bourdieu:sociologia.0RTIZ, Renato (0rg.). São Paulo:Ática, 1983. São Paulo: EDUSP/Zouk,2003.
B0URDIEU,Pierre. Questões de sociologia.Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. B0URDIEU,Pierre. O~ usos sociais da ciência:por uma sociologiaclínica do campo científico.
São Paulo: Unesp, 2004.
~0URDIEU, Pierre. Lições da aula: aula inaugural proferida no Collegede France. São Paulo:
Atica, 1988. B0URDIEU,Pierre. Esboçode auto-análise. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

B0URDIEU,Pierre. A ontologiapolítica de Martin Heidegger.Campinas, SP:Papirus,1989. B0URDIEU,Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre:

B0URDIEU,Pierre. O poder simbólico.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil;Lisboa:Difel, 1989. Zouk, 2007.

B0URDIEU,Pierre. Coisasditas. São Paulo:Brasiliense,1990. B0URDIEU,Pierre. O senso prático. Petrópolis,RJ:Vozes,2009.


B0URDIEU,Pierre. Homo academicus.Florianópolis:Ed. da UFSC,2011.
B0URDIEU,Pierre; HAACKE,Hans. Livre-troca: diálogos entre ciência e arte. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1995. B0URDIEU,Pierre; CHARTIER,Roger.O sociólogoe o historiador.BeloHorizonte:Autêntica,2011.

B0URDIEU,Pierre.As regrasda arte:gênesee estrutura do campo literário.SãoPaulo:Companhia B0URDIEU,Pierre;PASSER0N,Jean-Claude.Os herdeiros:os estudantes e a cultura.Florianópolis:
das Letras, 1996. Ed. da UFSC,2014.
B0URDIEU,Pierre.A economiadas trocaslinguísticas:o quefalar quer dizer.SãoPaulo:EDUSP,1996. B0URDIEU,Pierre. Sobre o Estado. Cursosno Collegede France(1989-92).SãoPaulo:Companhia

B0URDIEU,Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP:Papirus,1996. das Letras, 2014.

Roger(0rg.).Práticasda leitura.SãoPaulo:Estação
B0URDIEU,Pierre;BRESS0N,François;CHARTIER,
Liberdade,1996.
B0URDIEU,Pierre. Sobre a televisão.Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
B0URDIEU,Pierre. A miséria do mundo. Petrópolis, RJ:Vozes, 1997.
B0URDIEU,Pierre; R0LNIK,Suely;WACQUANT, LoYcJ. D.; LINS,Daniel Soares. Cultura e subje-
tividade: saberes nômades. Campinas, SP:Papirus,1997.
B0URDIEU,Pierre; MICELI,Sergio (0rg.). Liber 1. São Paulo: EDUSP,1997.

· Listagem limitada s·omente a livros e coletâneas. Compreende também as obras em coautoria.

OBRAS DE PIERRE BOURDIEU PUBLICADAS NO BRASIL 391


390
- -~ -~-J

_OUTRAS
REFERÊNCIAS
DEPIERRE
BOURDIEU
UTILIZADAS CRONOLOGIA
DEPIERRE
BOURDIEU
······················································································································ ·······················································································································

J.-C.Les étudiants et leurs études. Paris-La Haye:Mouton, 1964.


BOURDIEU,P.; PASSERON,
BOURDIEU,P. Distinction:a SocialCritiqueof the Judgmentof Taste(1979).Cambridge: Harvard
UniversityPress, 1984. 1930 (primeirode agosto)- Pierre Bourdieunasceem Denguin,pequenovilarejoda província
BOURDIEU,P. TheLogicof Practice(1980).Cambridge:Polity Press, 1990. do Béarn,região rural do sudoesteda França, situada nos Pirineus e próxima da Espa-
nha, onde a língua nativa era o occitânico.Seupai, Albert Bourdieu,origináriode uma
BOURDIEU,P.; WACQUANT, L. J.D. An Invitation to Reflexive Sociology.Chicago:Toe Chicago
familia de camponeses,havia se tornado, ao redor dos 30 anos, modesto funcionário
UniversityPress, 1992.
público dos correios, tendo exercido,ao longo da vida, o ofício de carteiro na região
BOURDIEU,P. PascalianMeditations(1997).Cambridge:Polity Press, 2000.
do Béarn. Sua mãe, NoémieBourdieu,também provenientedo meio rural, pertencia a
BOURDIEU,P. Esboçode uma teoriada prática,precedidode três estudosde etnologiaCabila(1972). uma familia de agricultorescom nível socialum pouco mais elevado.
Oeiras:Celta,2002.
1941-1947 - Frequenta o Liceu de Pau (capital do Béarn), onde cursa a primeira parte do
BOURDIEU,P. TheSocialStructuresof theEconomy(2000).Cambridge:Polity Press, 2004.
ensino secundário e se distingue nos estudos.
BOURDIEU,P. The Ball of Bachelors.Chicago:Universityof ChicagoPress, 2004.
1948-1951 - Recebeuma bolsa de estudospara cursar o ensinomédio e, a conselhode um de
BOURDIEU,P. Picturing Algeria. Editado por Franz Schultheis e Christine Frisinghelli.New York: seus professoresdo Liceude Pau, ingressano LiceuLouis-le-Grand,em Paris, reputado
ColumbiaUniversityPress, 2012. por constituiro melhor cursopreparatóriopara o ingressona ÉcoleNormaleSupérieure
de Paris e por reunir os melhores alunos do país.
1951-1954 - Ingressana célebreEscolaNormal Superior(ENS)da rue d'Ulm, em Paris, en-
tão o mais importante centro de recrutamento e formaçãoda elite intelectualfrancesa.
Diploma-se,nessa escola,em filosofia,aos 25 anos. Na mesma época, realiza estudos
de graduação também em filosofiana Faculdadede Letras de Paris (Sorbonne),onde
defendeu a tese intitulada Estruturas temporaisda vida afetiva.
1954 - Obtém - juntamente com JacquesDerrida e EmmanuelLe RoyLadurie - aprovação
no concurso de Agrégation (concursopúblico de admissão ao cargo de professor de
liceu ou de faculdade).
1954-1955 - Passaa lecionarfilosofiano Liceude Moulins,pequena cidadesituada na região
central da França.
1955-1958 - É convocadoe presta o serviçomilitar na Argélia,então colônia francesa no
norte da África,em plena guerra (1954-1962)por sua independênciada França.
1958-1960 - Lecionana Faculdadede Letras de Argel (capital da Argélia),como Professor
Assistente.Duranteesseperíododesenvolveum extensotrabalhode campo,queredundou

392 393
numa etnologiada sociedadecabila (populaçãocamponesa habitante das regiõesmon- 1979 - Publica, pela Editora Minuit, o livro La distinction, considerado por muitos como
tanhosas do norte da Argélia). sua obra magna e que lhe valerá a consagraçãointernacional. Trata-se de uma análise
1960 - Em função do agravamento do conflito colonial e diante das posições liberais que dos gostos e julgamentos éticos e estéticos das diferentes classessociais.
assume face à guerra de independência, Bourdieu é obrigado a voltar para a França, 1981 (13 de dezembro) - Em protesto contra a repressão que se abatia sobre a Polônia, Bour-
tornando-se Professor Assistente na Faculdadede Letras de Paris (Sorbonne). dieu lança - juntamente com MichelFoucault- um manifesto em favor do movimento
1962 (2 de novembro) - Casa-secom Marie-ClaireBrizard, sociólogae filha de um médico. Solidariedade.
Dessa união nasceram três filhos,Jérôme, Emmanuel e Laurent. 1981 - É eleito Professor Titular da cátedra de Sociologiado Collegede France.
1961-1964 - É nomeado professor e orientador pedagógicoda Faculdade de Letras de Lille 1982 (23 de abril) - Profere, no Collegede France, a provocadora aula inaugural Leçon sur
(cidadelocalizadano norte da França).Na Universidadede Lille,ministra, pela primeira la leçon (no Brasil:Lições da aula).
vez, cursos sobre os "pais fundadores" da sociologia (Durkheim, Weber, Marx), mas 1984 - Publica, pela Editora Minuit, o livro Homo academicus, obra sobre o universo das
também sobre a antropologia britânica e a sociologianorte-americana. Paralelamente, disposições e práticas dos professores universitários.
prossegueo trabalhode análisedos dados de campocoletadosdurante o período argelino
1989 - Publica, pela Editora Minuit, La noblesse d'État, seu último grande livro sobre o
e em suas constantes viagens de férias à Argélia.
sistema escolar.
1964 - Passa a lecionar na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS)de Paris,
1989 - Funda a Liber, "revista internacional de livros", editada em diversospaíses europeus
credenciando-se também como orientador de teses e estudos científicos.Ao assumir
e em nove Ifuguas, que dirigirá por dez anos. Seu objetivo era a difusão internacional
esse posto, aos 34 anos, tornou-se um dos mais jovens professores dessa instituição.
de trabalhos originais e inovadores no campo das ciênciashumanas e da literatura.
1964 - É indicado por Raymond Aron para sucedê-lo na direção do Centro de Sociologia
1989 - Recebeo título de Doutor Honoris Causa da Universidade Livre de Berlim.
Europeia.
1989-1990 - Preside u~a comissão nacional de reflexãoe estudos sobre os "conteúdos do
1964 - Torna-se diretor da coleçãoLe Sens Commun para a editora parisiense Minuit. Por
ensino", nomeada pelo então presidente da república, François Mitterrand.
mais de duas décadas, Bourdieu dirigiu essa coleção,na qual publicou obras clássicas
(de Durkheim,Mauss, Halbwachs,Cassirer,Bakhtin,entre outros), bem como traduziu 1990 -A partir da década de 1990, Bourdieu assume um papel combativo nos movimen-
e divulgou,na França,grandes autores contemporâneos(entre eles,Goffman,Bernstein, tos sociais antiglobalização e de apoio aos desempregados, aos trabalhadores do
Labov,Goody,Hoggart). campo, aos imigrantes ilegais na França, aos intelectuais perseguidos em diversas
partes do mundo.
1964 - Nessa mesma coleção,publica, em coautoria com Jean-ClaudePasseron, o livro Les
héritiers, sua primeira grande obra no campo da educação. 1993 - É lançada a primeira edição da coletânea, organizada por Bourdieu, A miséria do
mundo (no Brasil:A miséria do mundo), que, apesar de suas mil páginas, teve um
1967 - Funda o Centro de Sociologiada Edm:açãoe da Cultura (CSEC)na EHESS.Neste
enorme sucesso de vendas, tendo sido adaptada para o vídeo e para o teatro.
centro, Bourdieu congregou e dirigiu, por mais de trinta anos, uma grande equipe
de pesquisadores dedicados à compreensão das relações que se estabelecem entre o 1993 - Recebea Medalha de Ouro do Centre National de la Recherche Scientifique(CNRS),
universo da cultura e o campo do poder e das classessociais. um dos mais importantes símbolos de reconhecimento conferidos pela comunidade
científicana França.
1970 - Publica, mais uma vez em coautoria com Jean-Claude Passeron, aquele que se tor-
naria seu mais conhecidolivro no terreno da educação:La reproduction (no Brasil:A 1993 - Funda o Comitê Internacional de Apoio aos Intelectuais Argelinos (CISIA).
reprodução). Na década de 1970,dá início a intensas atividades acadêmicasno exte- 1995 (dezembro) - lança um "apelo dos intelectuais em favor dos grevistas"contra o plano
rior como convidado de instituições importantes, como as universidades de Chicago, governamental neoliberal que ameaçavaas políticas públicas do bem-estar social e da
Harvard, Princeton (EUA);Instituto Max Planck (Alemanha); Universidade de Todai seguridade na França.
(Japão), entre outras. 1996 _ Funda a editora Liber-Raisons d'agir, com uma política editorial que deveria asso-
1975 - Com o apoio de Fernand Braudel, então diretor da Maison des Sciencesde l'Homme, ciar a independência do trabalho científicocom a militância e o compromisso cívicos.
cria o periódico Actes de la Recherche en Sciences Sociales (ARSS),que dirigirá até 1996 - Recebeo título de Doutor Honoris Causa da UniversidadeJohann WolfgangGoethe
os mo~entos finais de sua vida. Esse periódico tornou-se uma das mais importantes de Frankfurt e da Universidade de Atenas. Recebeo Prêmio Erving Goffmanda Uni-
publicações em ciências sociais no mundo. versidade de Berkeley,na Califórnia.

394 CRONOLOGIA DE PIERRE BOURDIEU CRONOLOGIA DE PIERRE BOURDIEU 395


\
(

1997 - Criaçãoda coleçãoLiber nas Éditions du Seuil.Obtenção do Prêmio Ernst Blochda


cidade de Ludwigshafen.
SOBRE
OSORGANIZADORES
·······················································································································
1998 (janeiro) - Intervençõespúblicasem favor do movimento dos desempregados.
1999 - Doutor honoris causa da Universidadede Joensuu.
2000 -Apoio ao Manifestopelos estadosgerais do movimento socialeuropeu (1° de maio) e
aosmovimentosde luta contraa mundializaçãoneoliberal,reunidosem Nice(dezembro).
2001 (28 de março) - Dá sua última aula no Collegede France.
2001 (abril) - Apoio aos movimentos de luta contra a mundialização neoliberal,reunidos
em Québec.EleitoFellowCorrespondentda AcademiaBritânica.
2002 (23 de janeiro) - Pierre Bourdieumorre, em Paris, aos 71 anos de idade, vítima de um
câncer.
Afrânio Mendes Catani é ProfessorTitular na Faculdadede Educaçãoda Universidade
de São Paulo. Organizou,em coautoriacom Maria AliceNogueira,a coletâneaPierre Bour-
dieu - Escritos de Educação (Vozes,1998, 16ª edição 2015).Publicou Origem e destino:
pensando a sociologia reflexiva de Bourdieu (Mercadode Letras, 2013).

Maria Alice Nogueira é ProfessoraTitular do Departamento de Ciênciasda Educação


da UniversidadeFederarde Minas Gerais,onde criou e coordenouo ObservatórioSociológico
Família-Escola(OSFE).Organizou, em coautoria com Afrânio M. Catani, coletâneaPierre
Bourdieu - Escritos de Educação (Vozes,1998, 16. edição 2015).Publicou, em coautoria
com ClaudioM. M. Nogueira, o livro Bourdieu & a Educação (Autêntica,2004).

Ana Paula Hey é professorano Departamento de Sociologiada Faculdadede Filosofia,


Letras e CiênciasHumanas da Universidadede São Paulo, onde integra o grupo de Pesquisa
em Sociologiada Educação,Cultura e Conhecimento.Desenvolvepesquisas sobre o campo
acadêmicono Brasil e as relaçõescom outros espaçossociais. PublicouEsboço de uma so-
ciologia do campo acadêmico. A educação superior no Brasil (EdUFSCar,2008).

Cristina Carta Cardoso de Medeiros é professora do Departamento de Educação


Físicada UniversidadeFederal do Paraná, onde faz parte do Centro de Pesquisaem Esporte,
Lazere Sociedade.Defendeutese sobrea apropriaçãoda teoria sociológicade Pierre Bourdieu
no campo acadêmicoeducacional(UFPR,2007).

396 CRONOLOGIA DE PIERRE BOURDIEU 397


TRADUTORES
·······················································································································

Verbetes traduzidos do francês: Guilherme João de Freitas Teixeira


Análise de correspondênciasmúltiplas;Autonomiae homologiados campos;Bachelard,
Gaston;Béarn;Benssimbólicos(economiados);Campo;Campocientífico;Campodo poder;
Campo econômico;Campo filosófico;Campo intelectual; Campojurídico; Campoliterário;
Canguilhem, Georges;Capital; Capital simbólico; Capital sodal; Ciência; Conhecimento
praxiológico;Construtivismo;Contrafogos:táticas para enfrentar a invasãoneoliberal (Con-
tre-feux:propos pour servir à la résistancecpntre l'invasion néo-libérale);Contrafogos2: por
um movimento socialeuropeu (Contre-feux2: pour un mouvementsocial européen);Dene-
gação;Determinismo;Distinção;Distinção (A):crítica social do julgamento (Ladistinction:
critique socialedu jugement);Doxa;Durkheim, Émile;Elites;Epistemologia;Esquissed'une
théorie de la pratique, précédé de Trois études d'ethnologie kabyle;Estado; Estilos de vida;
Estruturalismo;Familia;Filosofia;Goffrnan,Erving;Gosto;História;Indivíduo- sociedade;
Intelectuais; Lévi-Strauss,Claude;Manet. Une révolution symbolique;Marx, Karl; Mauss,
Marcel;Mídia; Miséria do Mundo (A) (La misere du monde);Mundialização/Internaciona-
lização; Mundo Social;Opinião pública/sondagem;Passeron, Jean-Claude;Prática (teoria
da); Reflexividade;Regras da Arte (As):gênesee estrutura do campo literário (Lesregles de
l'art: genese et structure du champ littéraire); Sartre, Jean-Paul;Senso prático (O) (Le sens
pratique);Sobrea televisão(Surla télévision,suivi de remprise du journalisme);Sociologia
da Sociologia;Sociologiae reflexividade;Violênciasimbólica;Visão e divisão,princípios de;
Weber,Max; Wittgenstein,Ludwig.

Verbetes traduzidos do espanhol: Cristina Antunes

Argélia;Déracinement(Le):la crise de l'agriculturetraditionnelleen Algérie;Desencanta-


mento do mundo (O):estruturas econômicase estruturas temporais;Fenomenologia;Honra
(sentidoda);Merleau-Ponty,Maurice;Ontologiapolíticade Martin Heidegger(A)(rOntologie
politique de Martin Heidegger);Reconversãode capitais;Sociologiede rArgérie; Tempo.

Verbete traduzido do inglês: José Madureira Pinto e Virgílio Borges Pereira.


Habitus.

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