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B R IE
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autêntica
Copyright© 2017 Os Organizadores
Copyright© 2017 Autêntica Editora
Todosos direitos reservadospela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida,seja por
meios mecânicos,eletrônicos,seja via cópia xerográfica,sem a autorizaçãoprévia da Editora. SUMÁRIO
Todosos esforçosforam feitos no sentido de encontrar os detentoresdos direitos autorais das obras que constam deste
livro. Pedimosdesculpaspor eventuaisomissõesinvoluntáriase nos comprometemosa inseriros devidoscréditose corrigir
possíveisfalhas em ediçõessubsequentes.
EDITORA
RESPONSÁVEL DIAGRAMAÇÃO
RejaneDias LarissaCarvalhoMazzoni
EDITORA
ASSISTENTE WaldêniaAlvarenga
CecíliaMartins CONFECÇÃODOSINDICES
REVISÃO Os organizadores
LúciaAssumpção CarlaNeves
RenataSilveira
CAPA
Alberto Bittencourt
(sobreimagem de fotógrafo desconhecido)
Verbetes 7
A~t~~~~····························································
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro) Ab.~Í~d·;·~··~·~·i~~·ct·~··t~~~~~·~~t~·~···········
··························································································· ····························
VocabulárioBourdieu/ Afrânio MendesCatani... [et ai.]. (Orgs.).-- 1. ed. --
BeloHorizonte: AutênticaEditora,2017. Glossário deobrase textosde PierreBourd.i.~~
. ........................................................................... . ............................... }.~
Outros organizadores:Maria Alice Nogueira,Ana Paula Hey, Cristina
Carta Cardosode Medeiros. VocabulárioBourdieu 23
·······················································································································
ISBN978-85-513-0229-3
Índiceonomástico 370
1. Bourdieu, Pierre, 1930-2002 - Glossários, vocabulários, etc. ·························································································· ·····························
2. Bourdieu,Pierre,1930-2002- Linguagem3. Sociologia1.Catani,Afrânio índiceremissivo 376
Mendes.li. Nogueira,Maria Alice. Ili. Hey,Ana Paula.IV. Medeiros,Cristina
Carta Cardosode.
ó'b~~i·ci~·ri~·~~~·á;~~di~~·
··························································································
17-05006 CDD-301 ObrasdePierreBourdieupublicadas
noBrasil .................... }~9.
··························································································
Índice para catálogo sistemático:
1. Vocabuláriode Bourdieu : Sociologia301 Outrasreferências
de PierreBourdieuutilizadas ·····························392
··························································································
Cronologiade PierreBourdieu }~?.
..................................
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GRUPO AUTÊNTICA
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Tradutores
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., 398
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www.grupoautentica.com.br
VERBETES
··································································································································
A Campo intelectual 83
Campo jurídico 86
Ação 23
Actes de la Rechercheen SciencesSociales Campo literário 88
25
Campo político 90
Agente 26
Campo religioso 93
Algérie 60: structures économiqueset
Campo universitário 95
structures temporelles 28
Canguilhem, Georges 98
Amorfati 28
Capital 101
Amor pela arte (O): os museus de arte na
Capital cultural 103
Europa e seu público (Làmour de làrt: les
Capital econômico 107
musées d'art européenset leur public) 28
Capital simbólico 109
Análise de correspondências múltiplas 31
Capital social 113
Antropologia reflexiva 33
Categorias de pensamento 117
Arbitrário cultural 36
Causalidade do provável 118
Argélia 38
Ciência 118
Art moyen (Un): essaisur les usages
Classe social 118
sociaux de la photographie 42
Classificação (lutas de) 123
Ascetismo 42
Coisas ditas (Chosesdites) 123
Ativismo 42
College de France 124
Autonomia e homologia dos campos 45
Conatus 125
Condição de classe 126
B Conhecimento praxiológico 126
Bachelard, Gaston 49 Construtivismo 128
Bal des célibataires(Le):crise de la société Contrafogos: táticàs para enfrentar a invasão
paysanne en Béarn 51 neoliberal (Contre-feux:propospour servir à
Béarn 52 la résistancecontrel'invasionnéo-libérale) 130
Bens simbólicos (economia dos) 55 Contrafogos 2: por um movimento
Boa vontade cultural 58 social europeu (Contre-feux 2: pour un
Bourdieu editor 61 mouvement social européen) 131
Burguesia 63 Corpo 132
Crença 134
e Cultura 135
137
Cultura popular
Cabília 64 .,
Campo 64
Campo artístico 66 D
Campo científico 68 Denegação 140
Campo cultural 71 Déracinement (Le): la crise de làgriculture
Campo da alta costura 73 traditionnelleen Algérie 141
Campo do poder 75 Desencantamento do mundo (O): estruturas
Campo econ_ômico 77 econômicas e estruturas temporais 141
Campo esportivo 79 Destino 142
Campo filosófico 81 Determinismo 143
1.
.:, ..
,..,:•-"
.
t-
Diploma 145 H Miséria do mundo (A) (La miseredu monde) 271 Reprodução (A): elementos para
Disposição 146 Mobilidade social 271 . uma teoria do sistema de ensino (La
Habitus 213
Distinção 146 Mundialização/Internacionalização 272 reproduction:élémentspour une théorie du
Heidegger, Martin 217
Distinção (A): crítica social do julgamento Mundo social 274 systeme d'enseignement) 316
Herança cultural 217
(La distinction:critiquesocialedu jugement) 148 Rito (de instituição) 318
Herdeiros (Os): os estudantes e a cultura N
Dom (ideologia do) 151
(Leshéritiers:les étudiants et la culture) 219
Dominação
Dominação masculina (A) (La domination
151
Hexis corporal 222 Neoliberalismo
Noblessed'État (La): GrandesÉcoleset
275 s
História 222 Sartre, Jean-Paul 321
masculine) 155 esprit de corps 277
Homo academicus 225 Sciencede la scienceet réflexivité.Cours du
Doxa 157 Nobreza 281
Honra (Sentido da) 228 Collegede France(2000-2001) 323
Durkheim, Émile 159 Nomos 281
Hysteresis 228 Senso prático (O) (Le senspratique) 324
E I
o Sistema de ensino 327
Sobre a televisão (Surla télévision,suivi de
École Normale Supérieure 162 Ontologia política de Martin Heidegger (A)
Ideologia 230 L'emprisedujournalisme) 329
Economia das trocas linguísticas (A): o (L'Ontologiepolitique de Martin Heidegger) 282
Illusio 231 Sobre o Estado. Cursos no College de France
que falar quer dizer (Ce que parler veut Opinião pública/sondagem 283
Ilusão biográfica 233 (SurEÉtat.Coursau Collegede France) 330
dire:l'êconomiedes échangeslinguistiques) 162 Sociedade 332
Inconsciente 233 p
Economia das trocas simbólicas (A) 164 332
Incorporação 234 Socioanálise
Educação 165 Passeron, Jean-Claude 286
Inculcação 234 Sociodiceia 335
Elias, Norbert 165 Patronato 288
Indivíduo - sociedade 234 Sociologia 335
Elites 167 Pedagogia racional 288
Intelectuais 236 Sociologia da sociologia 341
Emprego 169 288
Interesse 239 Pensamento relacional Sociologia e reflexividade 342
Epistemologia 169
Interventions, 1961-2001:sciencessociales Pequena burguesia 290 Sociologiede rAlgérie 345
Esboço de auto-análise (Esquissepour une Sociologieest un sport de combat (La) 345
et actionpolitique 239 PicturingAlgeria 290
auto-analyse) 173 Structuressocialesde l'êconomie(Les) 346
Investimento 240 Pierre Bourdieu. Sociologia 292
Escola 176 348
Poder simbólico 292 Sujeito
Escritos de Educação 176
Espaço social
J Poder simbólico (O) 295
177
Esprit de corps Jogo (Sentido do) 241 Política 296 T
179
Jornalismo 243 Posição de classe 296 Taxionomia 349
Esquissed'une théoriede lapratique,précédé
Juventude 243 Prática (Teoria da) 296 Televisão 349
de Traisétudesd'ethnologiekabyle 181
Profissão de sociólogo (A): preliminares Tempo 350
Esquissesalgériennes 184
Estado 184 L epistemológicas (Le métier de sociologue: Teoria 352
Estilo de escrita de Bourdieu Legitimidade/legitimação 245 préalablesépistémologiques) 298 Trabalho 352
186
Estilos de vida 187 Lévi-Strauss, Claude 246 Projeto 301 Trajetória 354
Estratégia/Estratégias de reprodução 189 Lições da aula (Leçonsur la leçon) 249 Propossur le champpolitique 301 Trocas simbólicas 356
Estrutura (social e mental) 191 Linguagem 250
Q
Estruturalismo 192 Linguístico (Capital; Mercado) 250
Questões de sociologia (Questions de
u
Ethos 194 Livre-troca: diálogos entre ciência e arte Usos sociais da ciência: por uma sociologia
(Libre-échange) sociologie) 302
255 clínica do campo científico (Os) (Les
F R usagessociaux de la science:pour une
Familia 195 M sociologiecliniquedu champ scientifique) 357
Razões práticas: sobre a teoria da ação
Fenomenologia 197 Manet. Une révolutionsymbolique 257 (Raisonspratiques:sur la théoriede l'action) 303 .,
Filosofia 199 Marx, Karl 259 Reconversão de capitais 304 V
Fotografia 201 Mauss, Marcel 262 Veredicto escolar 359
Reflexividade 305
Foucault, Michel 201 Meditações pascalianas (Méditations Violência simbólica 359
Regra 308
pascaliennes) 265 Regras da Arte (As): gênese e estrutura do Visão e divisão, Princípios de 361
G Mercado linguístico 267 campo literário (Les reglesde lart: geneseet
Goffrnan, Erving 205 Mercado simbólico 267 structure du champ littéraire) 309 w
Gosto 208 Merleau-Ponty, Maurice 267 Réponses:pour une anthropologie 365
Weber,Max
GrandesÉcoles 210 Metodologia 268 réjlexive 311 367
Wittgenstein, Ludwig
Grupos dominantes 212 Mídia 268 Reprodução 313
8 9
i
AUTORES
11
---------------~----------- ----------~-----,;---------------""""T-".--,-:------:----=-=---,.......,.---,---,--:--:------:-,~1------11
(
12 13
Monique de Saint Martin ABRINDO
A CAIXADEFERRAMENTAS
ÉCOLEDESHAUTESÉTUDESEN SCIENCESSOCIALES- FRANÇA
Pascal Ragouet
UNIVERSITÉDEBORDEAUX
- FRANÇA
Pascale Casanova
DUKEUNIVERSITY- ESTADOSUNIDOS
Patrick Champagne
INSTITUTNATIONALDELARECHERCHEAGRONOMIQUE
- FRANÇA
Paula Montero
UNIVERSIDADE
DESÃOPAULO- BRASIL
RemiLenoir
ÉCOLEDESHAUTESÉTUDESEN SCIENCESSOCIALES- FRANÇA
A elaboração de um vocabulário dedicado a Pierre Bourdieu (1930-2002)não é tarefa das
Roberto Grün mais fáceis,sobretudoquando consideramoso quanto antibourdieusianoé apresentarnoções,
UNIVERSIDADE
FEDERALDE SÃOCARLOS- BRASIL constructos, definiçõesdescoladosdaquilo que caracteriza de modo preciso e original seu tra-
SergioMiceli balho científico,qual seja,fornecerinstrumentos de construção da análise sociológicaque não
UNIVERSIDADE
DESÃOPAULO- BRASIL se constituam em meros conceitosdescritivos,mas que envolvamuma epistemologiaprática.
SylviaGemignani Garcia Bourdieu foi um dos grandes pensadores de nosso tempo, tendo dado, já em fins dos anos
UNIVERSIDADE
DESÃOPAULO- BRASIL
1950,uma contribuiçãoessencialpara afirmar a sociologiacomo disciplinacientíficana Euro-
pa. Dotado de rigorosa acuidade intelectual,provenienteda formação filosóficadesenvolvida
Tânia de Freitas Resende nos setores mais consagrados da academia francesa, propiciou uma visão analítica refinada
UNIVERSIDADE
FEDERALDEMINASGERAIS- BRASIL
de objetos complexos e diversos que compõem o mundo social em que vivemos. Alçado à
Vincent Bontems posição de cientista imprescindível a quem se envolvecom a ciência social contemporânea,
LABORATOIRE
DESRECHERCHES
SURLESSCIENCESDELAMATIÊRE- FRANÇA tornou-se autor de uso frequente em campos disciplinaresos mais variados, como sociologia,
WanderleyMarchi Júnior antropologia, educação, história, economia e psicologia.Sua obra abrangeu desde sensível
UNIVERSIDADE
FEDERALDO PARANÁ- BRASIL etnologia do mundo tradicional dos cabilas, na Argélia, envolveua crise da reprodução das
sociedades tradicionais francesas, desvendouas funções sociais do sistem~de ensino de seu
YvesWinkin
país, descreveu práticas culturais distintivas alinhadas à constituição e classificação das
CONSERVATOIRE
NATIONALDESARTSET MÉTIERS- FRANÇA
classes sociais, explorou as peculiaridades de seu próprio universo intelectual, desvelou os
Zaia Brandão confrontos no interior de distintos campos de produção simbólica, expôs formas dissimu-
PONTIFÍCIAUNIVERSIDADE
CATÓLICADO RIO DEJANEIRO- BRASIL ladas de dominação e de exercícioconsentido do poder, além de refletir e polemizar sobre
problemas sociais emergentes com seu enérgico ativismo político. A construção de todo um
aparato conceitua! estabelecidoao longo e a partir de incursões em terrenos empíricos bas-
tante diversificadosresultou na elaboração de potentes noções operacionais que permitem,
por sua vez, perscrutar os mais variados domínios do mundo social.
Nesse sentido, apresentamosao leitor a possibilidadede interagir com a grande multiplici-
dade de elementosconstitutivosda teoria de Bourdieu,exibidosde modo singular pelosautores
dos diferentesverbetes,mas que, em seu conjunto, ensejam uma visão global da contribuição
de suas análises sociológicas.Com isso afirmamos que nossa motivação foi a de apresentar
uma sistematização, dotada de valor pedagógico, daquilo que constitui o pensamento e a
prática científica de sua sociologia,centrada no tripé teoria-história-empiria, como auxílio
à leitura e compreensão de seus textos e direcionado a um público amplo.
15
14
1.
A seleçãodos verbetesque integram este Vocabulário Bourdieu refleteum esforçopara Expressamosdesdejá nosso agradecimentoaos 65 colaboradores,provenientesde várias
se aproximardos aspectosnodais de seu pensamentoe da contribuiçãoao campo das ciências instituições brasileiras e de diferentes países como França, Espanha, Argentina e Estados
humanas e sociais.Tal escolhadesconsiderouas modulaçõespresentesem sua obra, ou seja, Unidos,muitosdelesparceirosde trajetóriaou ex-alunosdo próprioBourdieue representantes
os verbetes tanto podem refletir conceitosmaduros de sua escrita analítica como conviver de distintos campos disciplinares.Elesforam responsáveispela elaboraçãodos 164verbetes,
com noçõesapenas esboçadas;podem se referir ao âmbitonacional ou a uma pequena região distribuídos em três categorias:os relativosàs noções centrais e correlatas,os dedicadosaos
geográfica;permitir generalizaçõeso'use cingir ao contextode uma investigaçãoespecífica. livrospublicadospelopensadorfrancêse os que se referema um seletogrupo de interlocutores
Aquelesque manusearem este Vocabulário serão, portanto, convidadosa interagir com um com os quais ele dialogouao longo do processo de constituiçãode seu pensamento.
corpus teórico concebidono processomesmo de construção dos problemas científicos,com Os verbetes foram editados com a finalidade de uniformizar as referênciasfeitas pelos
condicionantesligadosàs disposiçõespara fazer ciência,às instituições que lhe dão sustenta- autores aos escritos de Bourdieu, indicando-os a partir de siglas compostaspelas primeiras
ção, ao habitus de cada disciplina e ao sistema de posiçõese tomadas de posiçãono interior letras dos títulos dos livros, grafadas em maiúsculas. Acrescentou-seuma letra minúscula,
do campo científico,nacional e internacional. "p",para versões da obra em português, ou "i", para traduções em língua inglesa.
A importânciade sepublicaruma obra dessanaturezano Brasilprende-seao fatode que os Alistagemcompletada bibliografiado autorencontra-seno índicede seuslivrospublicados
trabalhos de Bourdieususcitam,desdeos anos 1960e de modo contínuo,grande interesseno na França e no Brasil.O Vocabulário conta ainda com uma "Cronologiade Pierre Bourdieu",
meioacadêmicolocal.Commomentosmarcadospor uma apropriaçãomais intensado autornos que detalha sua biobibliografia.
domíniosespecíficosda sociologiae da antropologia,expandindo-sepor polêmicasno campo Gostaríamos,por fim, de agradecerduplamente à AutênticaEditora: pela oportunidade
educacional,até ser tomadocomoreferênciade base em áreasmais amplas,o número constante aberta a obras desta natureza, que permitem expor em amplitude e com total liberdade o
de pesquisasinspiradasnas ferramentasepistêmicase empíricasqueeledesenvolveuevidenciam conjunto dos trabalhos de Bourdieu e, também, por respeitar o tempo demandado à finali-
sua apropriaçãovastae amalgamadaao nossoespaçocientífico.Nessadireçãodeve-seressaltar, zação deste empreendimentocoletivo.
ainda, o conviteà releiturado conjuntoda obra que produziu,impulsionadopela organização
de livrosinéditospublicadosapós seu desaparecimento,à proliferaçãode pesquisasrealizadas Afrânio Mendes Catani
aqui e em váriospaíses,deslocandoempiricamentea abordagemcientíficaque concebeu. Maria Alice Nogueira
Por todas essas razões, decidimos oferecer ao leitor a oportunidade de acessar teorica- Ana Paula Hey
mente um universoconceitua!e metodológicoconsideradodenso em complexidadee em suas Cristina Carta Cardosode Medeiros
formas de expressão.O próprio Bourdieuempreendeualgumas inciativas nessa direção, ao
organizar antologiascom artigos de cunho teórico, além de fartas transcrições de palestras, SãoPaulo,BeloHorizonte,Curitiba,maio de 2017.
entrevistas, conferênciase seminários, tais como Questions de sociologie (1980),Choses
dites (1987),Réponses: pour une anthropologie réfléxive (1992),Raisons pratiques - sur
la théorie de l'action (1994).
Poderíamossintetizarnossoobjetivocoma organizaçãodeste Vocabulário comas próprias
palavras de Bourdieu em uma passagemdo prefácioà ediçãobrasileira de Razões práticas,
datada de outubro de 1995:"sepossofazer um voto,é o de que meus leitores,especialmenteos
mais jovens,que começama se envolverem pesquisas,não leiam este livro como um simples
instrumento de reflexão,um simplessuporte de especulaçãoteórica e da discussão abstrata,
mas como uma espécie de manual de ginástica intelectual, um guia prático que é preciso
aplicar a uma prática, isto é, a uma pesquisa prazenteira, liberta de proibiçõese de divisões
e desejosade trazer a todos esta compreensãorigorosa do mundo que, estou convencido,é
um dos instrumentos de liberaçãomais poderosos com que contamos".
Os desafios que enfrentamos em trabalho de tal envergadura foram diversos, desde a
seleçãodos verbetese a extensãoadequadaa ser conferidaa cada um deles,até a identificação
dos especialistasencarregadosde redigi-los.Quanto a este ponto, o Vocabulário congrega
autoressitua~os em distintas posiçõesnos espaçosda reflexãoacadêmica,mas que possuem
em comum uma agendaintelectual convergenteem termos de pressupostosteóricos,proce-
dimentos analíticos,metodologiasde pesquisa.
17
16
SIGLA GLOSSÁRIO DE OBRAS E TEXTOS DE PIERRE BOURDIEU
L 19
r·- ;
20 21
. :1
!
1.AÇÃO
CláudioMarquesMartins Nogueira
AÇÃO 23
ação prática. O argumento de Bourdieu é que a estruturação das práticas sociais não é um suas ações cotidianas, sem que tenham plena consciênciadisso - sem necessitar sustentar
processoque se façamecanicamente,de forapara dentro, de acordocom as condiçõesobjetivas a existência de qualquer teleologismoou finalismo consciente de natureza individual ou
presentesnum determinadoespaçoou situaçãosocial.Nãoseria, por outro lado, um processo coletiva.A convicçãode Bourdieu é a de que as ações dos sujeitos têm um sentido objetivo
conduzidode forma autônoma,conscientee deliberadapelossujeitosindividuais.As práticas que lhes escapa. Eles agem como membros de uma classe, mesmo quando não possuem
sociais seriam estruturadas, isto é, apresentariam propriedades típicas da posição.social consciênciaclara disso;exertem o poder e a dominaçãoeconômica(e,sobretudo,simbólica)
de quem as produz, porque a própria subjetividadedos indivíduos, sua forma de perceber frequentemente,de modo não intencional.As marcas de sua posição social,os símbolosque
e apreciar o mundo, suas preferências,seus gostos, suas aspirações estariam previamente a distinguem e que a situam na hierarquia das posiçõessociais, as estratégias de ação e de
estruturados em relação ao momento da ação. reprodução que lhe são típicas, as crenças,os gostos,as preferênciasque a caracterizam, em
SegundoBourdieu,cada indivíduo,em funçãode sua posiçãono espaçosocial,vivenciaria resumo, as propriedades correspondentesa uma posiçãosocial específica,são incorporadas
uma série característicade experiênciasque estruturariam internamente sua subjetividade, pelos sujeitos,tornando-se parte da sua própria natureza. A ação de cada sujeito tenderia,
constituindo uma espéciede "matriz de percepçõese apreciações"que orientaria, estrutu- assim, a refletir e a atualizar as marcas de sua posiçãosociale as distinções estruturais que a
raria suas ações em todas as situações subsequentes. Essa matriz, ou seja, o habitus, não definem,não, em primeirolugar,por uma estratégiadeliberadade distinçãoe/oude dominação,
corresponderia,no entanto, a um conjunto inflexívelde regras de comportamento a serem mas,principalmente,porque essasmarcasse tornaram parte constitutivade sua corporeidade
indefinidamenteseguidaspelosujeito,mas, diferentementedisso,constituiria um "princípio e de sua subjetividade.Os sujeitosnão precisariam ter uma visão de conjunto da estrutura
gerador duravelmentearmado de improvisaçõesregradas" (PBS,65). sociale um conhecimentopleno das consequênciasobjetivasde suas ações,particularmente,
Bourdieu realça essa dimensão flexíveldo habitus, o que ele chama de relação dialética no sentido da perpetuação das relaçõesde dominação,para deliberadamentedecidirem ou
ou não mecânica do habitus com a situação,antes de mais nada, como forma de evitar uma não a agir de acordo com sua posiçãosocial.Elessimplesmenteagiriam de acordocom o que
recaída no objetivismo.O autor insiste que o habitus seria fruto da incorporação da estru- aprenderam ao longo de sua socializaçãono interior de uma posiçãosocialespecíficae, dessa
tura e da posiçãosocial de origemno interior do próprio sujeito.Essa estrutura incorporada forma,nos termos de Bourdieu,confeririamàs suas açõesum sentido objetivoque ultrapassa
seria colocadaem ação, no entanto, ou seja, passaria a estruturar as ações e representações o sentido subjetivodiretamente percebidoe intencionado.
dos sujeitos,em situaçõesque diferem,em alguma medida, daquelasnas quais o habitus foi
formado.O agentesocial,para usar o termo preferidopor Bourdieu,precisaria,então,ajustar
suas disposiçõesduráveispara a ação, seu habitus, formado numa estrutura social anterior, 2. ACTESDELARECHERCHE
EN SCJENCES
SOCJALES
à conjuntura concreta na qual ele age. O grau de ajustamento necessáriovariaria conforme Afrânio Mendes Catani
a maior ou menor similaridade entre as condiçõesobjetivasdentro das quais o habitus foi
forjado e as característicasobjetivasdo contexto de ação. Nos casos de maior similaridade, Actes de la Rechercheen SciencesSociales(ARSS)foilançadaem 1975e dirigidapor Pierre
predominantes segundo o autor, os agentesestariam, por assim dizer, pré-adaptadosao seu Bourdieuaté2001,coordenandouma equipedetrabalhobem consolidada.Operiódico,de natu-
contexto de ação.Eles teriam o conhecimentoprático sobre as regras ou o "sentido do jogo" rezainterdisciplinar,esforçou-separa" desnacionalizara ciênciasocial",inovarna representação
e saberiam, assim, reconhecer como evidentes os cursos de ação mais viáveis e adequados gráficae nos resultadosda pesquisa.Miceli(2002)escreveuque a revistaprocurou dar conta
para indivíduos com sua origem social. de um tríplice desafio:"afirmarum rosto teóricooriginalpara o ofíciode sociólogo,lançar as
É importante,então,observarqueo conceitode habitus desempenha,na obra de Bourdieu, bases de aliançascom cientistassociaisestrangeirosconsideradospares [...] e testar os grausde
o papel de elo articulador entre três dimensões fundamentais de análise: a estrutura das universalizaçãodos achadose dos conceitosderivadosdos seus experimentosde investigação".
posiçõesobjetivas,a subjetividadedos indivíduose as situaçõesconcretasde ação.A posição A publicação,hojetrimestral,divulgou,alémdas temáticasqueperpassavamo tecidosocial,
de cada sujeitona estrutura das relaçõesobjetivas,ou seja, no espaçosocial,propiciaria um artigos dedicados à economia dos bens culturais (pintura, livros, literatura, moda, música,
conjuntode vivênciastípicasque tenderiam a consolidar-sena forma de um habitus ajustado museus, academia,mito, ciênciae as respectivasinterrelações),à lógicada classificaçãosocial
à sua posição social. Esse habitus, por sua vez, faria com que esse sujeito agisse nas mais e à fabricaçãode coletivossociais;textosreferentesà etnicidade,à região,à nação,à vida social
diversassituaçõessociais,não comoum indivíduoqualquer,mas comoum membrotípicode - envolvendoa família,a empresa,o partido, o Estado(WACQUANT, 2002,p. 106).A esteinven-
um grupo ou classesocial que ocupa uma posição determinada na estrutura social.Ao agir tário temáticopodem-seacrescentarestudosdas estratégiassociaisde dominação,distinçãoe
dessaforma,finalmente,o sujeitocolaboraria,sem sabê-lo,para reproduziras propriedadesdo reprodução,bem comoàs práticas e aospoderesintelectuais.Mencionem-senúmerossobreas
seu grupo social de origeme a própria estrutura das posiçõessociaisna qual elefoi formado. novasformas de desigualdadesociale marginalidadeoriginadasnos anos 1990(WACQUANT,
Ass~, o conceitode habitus permite a Bourdieusustentar a existênciade uma estrutura 2002,p. 105-6).AtravésdaARSSBourdieumanteveprofícuodiálogocomintelectuaisestrangei-
social objetiva,baseada em múltiplas relações de luta e dominação entre grupos e classes ros de primeira linha - HowardBecker,Aaron Cicourel,RobertDarnton,NorbertElias,Erving
sociais -e das quais os sujeitosparticipam e para cuja perpetuação colaboram por meio de Goffman,Eric Hobsbawm,CarloGinzburg,GershomScholem,Joan Scott,CarlSchorske,Paul
24 AÇÃO
ACTES DE LA RECHERCHE EN SCIENCES SOC/ALES 25
Willis,WilliamLabov,RaymondWilliams,etc.Grandequantidadede colaboradoresfranceses experiênciaseria entendidacomoestruturadapor relaçõesobjetivasque ultrapassamo plano da
também frequentaram as páginas da revista: Robert Castel,Luc Boltanski,ClaudeGrignon, consciênciae intencionalidadeindividuais.Segundoessasabordagens,serianecessárioinvestigar
Patrick Champagne,AbdelmalekSayad,Jean-ClaudeChamboredon,YvetteDelsaut,Monique as estruturassociaisqueorganizam,queestruturama experiênciasubjetiva;inclusiveparaescapar
de Saint Martin, YvesDezalay,Remi Lenoir, Louis Pinto, Mihai Gheorghiu, GiseleSapiro, à concepçãode queosindivíduossãoseresautônomose plenamenteconscientesdo sentidode suas
Jean-PierreFaguer,GabrielleBalazs,MichaelPollack,Loi:cWacquant,FrancineMuel-Dreyfus, ações.Aomesmotempoem que consideranecessáriaessaruptura coma dimensãosubjetivaque
RogerChartier,YvesWinkin,NathalieHeinich,ChristopheChade,AlainAccardo,JeanBollack, o objetivismopromove,Bourdieumostra-sepreocupadocoma dificuldadedessaperspectivade
LouisMarin, MauriceAgulhou,JacquesBouveresse,Robert Linhart, Bruno Latour. construiruma teoria da prática,ou seja,de explicarcomose dá a articulaçãoentre os planosda
Comolembra Wacquant (2002,p. 106),o êxito de ARSS foi total, com um públicoleitor estrutura e da ação.O objetivismotenderiaa concebera práticaapenascomoexecuçãode regras
regular próximo a dez mil. A revista se estendeu,portanto, para além da academia,uma vez estruturaisdadas,seminvestigaro processoefetivopor meiodo qualas regularidadessociaissão
que na França há apenas cerca de mil sociólogos. produzidase reproduzidaspelosagentespor meiode suas açõespráticas.
O conhecimentopraxiológicoe a noçãode agentea eleassociadaé apresentadoe defendido,
Referências
então,pelo autor comouma alternativacapazde solucionaros problemasdecorrentesdas pers-
MICELI,S. Uma revoluçãosimbólica.Tendênciase Debates,Folha de S.Paulo, 27,p. 3-A,jan. 2002. pectivassubjetivistae objetivista.O conhecimentopraxiológiconão se restringiriaa identificar
WACQUANT, L. O legadosociológicode Pierre Bourdieu;duas dimensões e uma nota pessoal.Revista estruturasobjetivasexternasaosindivíduos,tal comoo fazo objetivismo,masbuscariainvestigar
de Sociologia e Política, Curitiba: UFPR,n. 19,p. 95-110,novembro 2002. comoessasestruturasseencontraminteriorizadasnos agentes,constituindoum conjuntoestável
de disposiçõesestruturadas,um habitus, que,por sua vez,estrutura as práticase as representa-
3.AGENTE çõesdas práticas.Essaformade conhecimentoapreenderia,então,a própriaarticulaçãoentreos
········································································•·'••··········································· planosda açãoou das práticassubjetivase o planodas estruturas,ou, comorepetidamentediz o
Cláudio Marques Martins Nogueira autor,captariao processode "interiorizaçãoda exterioridadee de exteriorizaçãoda interioridade".
. O uso recorrentedo termo "agente"por Bourdieunão se justifica,portanto, por uma sim-
A adoção do termo "agente"por Bourdieuestá relacionadaao seu esforçode construção plespreferênciapessoaldo autor. O termo marca, por um lado, a distância que Bourdieuquer
de uma teoria da açãoprática, ou seja,de um conhecimentosobre o modo como agentescon- estabelecerem relaçãoàs concepçõessubjetivistaou individualista,que tendem a se limitar à
cretos,inseridos em uma posiçãodeterminada do espaçosocial e portadores de um conjunto experiênciaimediata dos sujeitos.Bourdieuinsiste que as ciênciassociaispodem ir além da
específicode disposiçõesincorporadas, agem nas situações sociais. simplesdescriçãofenomenológica do universosubjetivoembuscade suascondiçõesobjetiv~sde
É preciso considerar que Bourdieu constrói toda sua obra em contraposição, por um possibilidade.Na perspectivadele,seriapossívele necessárioinvestigaras relaçõesentreo plano
lado, ao que ele chama de forma subjetivista ou fenomenológicade conhecimento e, por subjetivoe objetivo,entre as escolhas,as percepções,as apreciaçõese a localizaçãosincrônicae
outro, às abordagensde natureza estruturalista, rotuladas por ele de objetivistas. Bourdieu diacrônicados indivíduosno espaçosocial.Essaafirmaçãodo caráter socialmentesituado das
(SPp;PBS)argumenta que o conhecimentofenomenológico,representado na sociologiapor subjetividadesimplicaainda uma rejeiçãofrontalde qualquerconcepçãouniversalistasobreos
correntescomo a Etnometodologiae o Interacionismo,restringir-se-ia a captar a experiência indivíduose suaspropriedades,comoas que estãosubtendidasna hipótesede um ator racional,
e a percepçãoimediata do mundo social,tal comovivida cotidianamentepelos membros da orientado por preferênciasuniversalmentedadas. Por outro lado, o termo "agente"também
sociedade.Essa forma de conhecimento,segundo o autor, excluiriado seu campo de investi- permite um distanciamento em relação às concepçõesestruturalistas ou objetivistas, que
gaçãoa questãodas condiçõesde possibilidadedessaexperiênciasubjetiva.Descrever-se-iam reduziriamos atoresa simplesexecutoresde regras estruturais estabelecidasa partir do ponto
as ações e interações sociais,mas não se questionaria a respeito das condiçõesobjetivasque de vista do observador.O termo põe em relevoa dimensãoconcretada ação, ou seja, o modo
poderiam explicaro curso dessasinterações.Bourdieuestendeessasobservaçõescríticasa um comoos indivíduosefetivamenteagemem situaçõesefetivas,modo esseque,na perspectivade
conjuntode teorias que vão além das correntesestritamente fenomenológicas incluindo-se, Bourdieu(CDp),seria muito diferenteda obediênciaestrita de um conjuntode regras.
muito especialmente,a abordagem de Sartre e as teorias da escolha racional, estas últimas Valeaindaressaltarqueas noçõesde agentee de habitus permitema Bourdieucompreendero
inspiradas no pensamento econômico. O problema de todas essas abordagens, rotuladas funcionamentomacroestruturalda sociedade,particularmenteosprocessosde dominaçãosocial,
por ele de subjetivistas,não seria apenas seu escopolimitado, o fato de elas não atingirem as sem precisarsupor que essessão intencionalmenteconstituídos,sejapelosindivíduosisolados,
bases sociais que supostamentecondicionariamas experiênciaspráticas, mas, sobretudo, o sejapelosgrupos.O raciocíniode Bourdieucompõe-se,na verdade,de duas partes.Em primeiro
fato de contribuírem para uma concepçãoilusória do mundo social,que confereaos sujeitos lugar,afirmaque os agentesagemde acordocomo habitus herdadodo seugruposocial.Osindi-
excessiva~utonomiae consciênciana conduçãode suas ações e interações. víduospercebemos elementosenvolvidosnas situações,estabelecemseusobjetivosprioritáriose
Em contraposiçãoao subjetivismo,o conhecimentoobjetivista,associadoao estruturalismo, selecionamas estratégiasa seremutilizadasem cada ação,semprede acordocomseu sistemade
caracterizar-se-iapela ruptura que promoveem relaçãoà experiênciasubjetivaimediata.Essa disposições socialmenteestruturado.Emoutrostermos,issosignificaqueosagentesnãoescolheriam
26 AGENTE
AGENTE 27
?: . 1
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! modo de ser das classes cultas (AAp, 37). A "necessidade cultural" é produto da educação, das obras de arte - ou, para falar como Max Weber, gozam "do monopólio da manipulação
da ação da escola. Acho que talvez não seja por outra razão que a epígrafe da parte 3 do dos bens de cultura e dos signos institucionais da salvação cultural" (AAp, 169). Ou, em
livro, "Leis da difusão cultural", foi extraída do filósofo e matemático alemão Leibniz: palavras mais claras, o cronista Rubem Braga, visitando Jean Cocteau em Paris em 1950,
"a educação consegue tudo: faz dançar os ursos". A ação escolar, bastante desigual - em escreveu que o escritor em determinado dia estava com Picasso, e o pintor perguntou a um
razão de atuar sobre indivíduos previamente dotados, pela ação familiar, com distintos rapaz, restaurador de quadros, o que achava de certa pintura. "O rapaz confessou que não
níveis de competência artística-, envolve jovens já "iniciados" nesse domínio cultural. podia dizer nada porque não compreendia aquele quadro. E o espanhol: Você compreende
A escola, ao inculcar disposições duradouras à prática culta, auxiliando decisivamente chinês? O rapaz disse que não. Pois chinês se aprende; isso também" (BRAGA,2013, p. 38-39)
na transmissão do código das obras de cultura erudita, transforma as desigualdades
diante da cultura em desigualdades de sucesso. Fecha-se o círculo que faz com que Referências
capital cultural leve ao capital cultural (AAp, lll). Os indivíduos assimilam parte das BRAGA,R. Visita a Jean Cocteau.ln:___ . Retratos parisienses. Seleçãoe apresentaçãoAugusto
disposições cultas, produto de uma educação distribuída de forma desigual, tratando Massi. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.p. 37-40 (Escrito originalmente para o jornal Correio
"as aptidões herdadas como se fossem virtudes próprias da pessoa ['dons'], ao mesmo da Manhã, 19 mar. 1950).
tempo naturais e meritórias" (AAp, 169). CATANI,A. M. A cultura não é um privilégio natural. Apresentação.BOURDIEU,P.; DARBEL,A.
Os questionários aplicados correlacionam, com detalhe, uma série de variáveis, tais como O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. Colaboraçãode D. Schnapper.São
categoria socioprofissional, nível de escolaridade, profissão, renda, sexo, local de residência, Paulo:EDUSP;Zouk, 2003.p. 7-11.
faixa etária, museu visitado, dia e horário em que ocorreu a visita, tempo médio da visita,
correlação entre visita(s) a museu(s), cinemas e teatros, influência familiar e de amigos para
a(s) visita(s) segundo o nível cultural, juízos sobre os museus e as exposições, tipo de arte 1. ANÁLISEDE CORRESPONDÊNCIAS
MÚLTIPLAS
preferido, motivo(s) declarado(s) da visita, nome(s) de pintor(es) e de escola(s), etc. Denis Baranger
A pesquisa em tela possui caráter pioneiro, procurando evidenciar a dimensão eminente-
mente social dos meios de apropriação dos bens culturais existentes em museus - dimensão Ao falar de análise fatorial, Bourdieu refere-se, em geral, à Análise de Correspon-
essa que se constitui em privilégio apenas daqueles dotados da faculdade de se apropriarem dências Múltiplas (ACM), um método especialmente adaptado ao processamento de
das obras. O texto dos pesquisadores franceses foi concluído há cerca de quarenta e cinco dados extraídos de pesquisa por meio de questionário, concebido no âmbito da Análise
anos e, de lá para cá, o quadro sofreu alterações significativas. O turismo cultural e a visita a dos Dados (ADD). Para a Escola Francesa de Estatística, fundada por J.-P. Benzécri, seu
museus, por exemplo, experimentaram transformações de monta, não mais se beneficiando princípio fundamental é o seguinte: "O modelo deve seguir os dados, não o inverso [...]
apenas das categorias socioprofissionais munidas de diplomas, isto é, o público já tradicio- temos necessidade de um método rigoroso que seja capaz de extrair estruturas a partir dos
nal que os frequentava. Pode-se dizer o mesmo do estágio relativamente amador em que se dados" (BENZÉCRIet al., 1973, p. 6).
encontrava a "museologia" - hoje consideravelmente alterada -, ou ainda quando fala dos Ao contrário da análise fatorial psicométrica clássica, que lida com variáveis quantitati-
conservadores de museus, pertencentes aos·extratos superiores pouco afeitos a questões que vas, a ACM opera com modalidades de variáveis qualitativas e produz planos fatoriais que
envolviam gama relativamente ampla de papéis (homem de ciência, comerciante, diretor oferecem uma representação visual das relações que ligam um conjunto de propriedades
administrativo, educador): hoje equipes com quadros diversificados participam desse circuito, (fala-se, também, de Geometric Data Analysis).
encarregando-se de projetos referentes a ações educativas, à busca de patrocínios, à utilização Ao servir-se de um quadro disjuntivo completo (ou de um quadro de Burt), a ACM
de leis de incentivos fiscais, à edição de catálogos, à maior divulgação em geral. permite estabelecer correspondências entre o espaço multidimensional das propriedades
Em 1969, cético com relação aos limites que a ação do conservador impunha-se a qual- (das modalidades das variáveis) e o espaço dos indivíduos (os entrevistados). Foi no artigo
quer tipo de incitação direta à prática cultural, Bourdieu escrevia: "quem acredita na eficácia "L'Anatomie du gout" (1976, com M. de Saint Martin) que Bourdieu recorreu, pela primeira
milagrosa de uma política de incitação para visitar museus e, em particular, de uma ação vez, a uma análise fatorial concebida no âmbito da ADD; mas foi o sucesso de La distinction
publicitária pela imprensa, rádio ou televisão - sem se dar conta de que ela limitar-se-ia a (1979) - obra na qual esse longo artigo foi retomado integralmente - que garantiu destaque
acrescentar, de forma redundante, informações já fornecidas em abundância pelos guias, ao método dentro da sociologia.
postos de turismo ou cartazes afixados à entrada das cidades turísticas - assemelha-se às Em La distinction, trata-se de estabelecer uma correspondência, uma relação de homolo-
pessoas que imaginam que, para serem mais bem compreendidas por um estrangeiro, basta gia, entre a estrutura das práticas desvendadas pela ACMe a estrutura das classes e das frações
gritar mais alto" (AAp, 149). sociais, definidas pelas categorias socioprofissionais (CSP).Além das variáveis ativas (aquelas
Em suma, pela leitura de vários textos de Bourdieu é possível compreender os mecanis- cujas modalidades são levadas em conta pela geração do espaço multidimensional), e das ilus-
mos pelos quais àpenas parte dos indivíduos consegue obter as chaves para a plena fruição trativas (projetadas no plano), Bourdieu atribuiu um papel diferente à CSP,cuja intervenção se
fezpor intermédiodos indivíduos,projetandosucessivamenteos indivíduosde cada CSPpara um procedimento análogo, quando os professoresuniversitários eram lançados no espaço
verificarem qual regiãodo plano fatorialelesviriam a se posicionar(LD,296 e 392). das faculdades de letras, estruturado com base em indicadores de posição. Ao observar
A ACMpermite visualizar a determinação de uma estrutura (o espaço das práticas) por essesindivíduos, escreviaBourdieu,"saltará aos olhos de todos os observadoreshabituados
outra estrutura (o espaçodas posições),além de substituir a análise positivista das variáveis, ao detalhe dos acontecimentosuniversitários de 1968"que a estrutura das posiçõesestá em
centrada na influênciade certas variáveisartificialmenteisoladas a partir de outras. Em La correspondênciacom a distribüição das tomadas de posição.O que se vê bem nesse exemplo
distinction, a "verificaçãoempírica"de Bourdieuprocededos efeitos(a estrutura das práticas é que a variável - a modalidade correspondentea uma propriedade denotada por um nome
produzida a partir de uma ACMrealizada em um conjunto de propriedades, referentesaos comum é substituída pelo nome próprio.
gostose práticas culturais, em matéria de pintura, música, cinema, etc.)para remontar a seu Trata-se,como sempre, de mostrar a relaçãode homologiasegundo a qual as tomadas de
princípio (a estrutura das posiçõesidentificadaspelas CSP).Desse modo, a ACMpermitiu posição dependem das posições ocupadas pelos agentes na estrutura do campo. Mas, após
a Bourdieu transformar suas intuições relativas ao espaço social em uma representação La distinction, os dados da ACMreferem-sea um só dos termos dessa relação,enquanto as
geometricamenteconstruída. tomadas de posição aparecem apenas no comentário de Bourdieubaseado em outras fontes
Posteriormente,a ACMfuncionarácomoa ferramentaprivilegiadagraças à qual Bourdieu que não intervêm na ACM,nem são processadas quantitativamente. No próprio cerne do.
poderá mostrar a estrutura dos diversos campos que compõem o principal espaço social. esquema explicativode Bourdieu.encontra-sea intervençãoinsubstituíveldo qualitativo.
A ACMparece ser realmente a técnica perfeita para sua teoria: "Trata-se de uma técnica Posteriormente à La distinction, todas as ACMde Bourdieu mostram essa mesma es-
relacionalde análise dos dados, cuja filosofiacorresponde exatamente ao que é, a meu ver, trutura explicativa.A ACMé engendrada a partir de variáveis de base (processadascomo
a realidade do mundo social. É uma técnica que 'pensa' em termos de relações,como tenho modalidades ativas), o que permite tornar visível a estrutura do campo e as posições dos
tentado fazê-lo justamente com a noção de campo" (R, 72). Após "L'Anatomiedu goftt", indivíduos.Depois o plano fatorial é o elementofundamental para a interpretação de outros
Bourdieuvoltará a utilizá-Ia em "Le patronat" (1978)e, em seguida, continuará a aplicá-Ia materiais que poderão ser de natureza quantitativa ou qualitativa. Assim, a ACMterá sido
em numerosos campos:as Faculdadesde Letras (HA),as Grandes Écoles (NE),as editoras para Bourdieu tanto uma ajuda para pensar quanto um meio de exposiçãodos resultados
(1999),os construtores de moradias individuais (SSE). de suas análises.
Em seu livro Les structures sociales de l'économie Bourdieu reafirma as virtudes da
ACMnestestermos:"Pode-seesperarda análise de correspondências- a qual, utilizada deste Referências
modo, nada tem do método puramente descritivo que pretende ver nela aqueles que a J.-P.et al.I. L'Analysedes données;II. L'Analysedes correspondances.Paris:Dunod, 1973.
BENZÉCRI,
opõem à análise de regressão - que seja capaz de desvendar a estrutura das posiçõesou, o BOURDIEUP. Une révolution conservatrice dans l' édition. ARSS, v. 126-127,p. 3-28, 1999.
que vem dar no mesmo,a estrutura da distribuição dos poderes e dos interessesespecíficos BOURDIEUP.;SAINTMARTIN,M. I:Anatomiedu gout. ARSS, v. 2, n. 5, p. 1-81,1976.
que determina e explica as estratégias dos agentes" (SSE,128-129).À "simples descrição", BOURDIEUP.;SAINTMARTIN,M. Le patronat. ARSS, v. 20-21,p. 3-82, 1978.
Bourdieuopõeo "verdadeiromodeloexplicativo",superandoa oposiçãoentreaprofundamento
e confirmação:"Aanálise de correspondências- mediante a distribuição segundo os dois
primeiros fatores - manifesta a distribuição das forças em confronto e, através do vínculo a.ANTROPOLOGIA
REFLEXIVA
de implicaçãosociológica(e não lógica)que une as tomadas de posição às posições,revelao
Paula Montero
princípio das estratégiasde luta que visam conservá-Iaou transformá-la" (SSE,140).
É na evocaçãodesse "vínculode implicaçãosociológica"que se baseia a explicação:à se- Se há uma palavra-chave que resume perfeitamente a trajetória intelectual de Pierre
melhança do que ocorre em La distinction, trata-se ainda de mostrar a homologiaentre dois Bourdieu, esta é, certamente, a reflexividade. Embora não constituísse ainda um conceito
espaços,o das posiçõese o das tomadas de posição.Mas, após a utilização do procedimento, em seus estudos sobre a Argélia da década de 1960,já estava certamente presente em seu
é o inverso:todas as modalidades ativas selecionadaspara a-geração da ACMe dos planos modo de observação etnográfica. Em Esboço de auto-análise (2005), Bourdieu volta
fatoriais correspondem a indicadores do capital econômico, cultural e social, da filiação sobre si mesmo o esforço da reflexão sociológiêa e explicita o impacto de suas origens no
institucional, etc., isto é, a indicadores das posições. As tomadas de posição, por sua vez, mundo rural francês, de sua experiência opressiva como aluno interno no liceu e, poste-
deixam de ser visíveiscomotais no diagrama; ou, mais exatamente,é necessáriodeduzir que riormente, de combatente na guerra contra a libertação da Argélia, na conformação de
elas se manifestam nos indivíduos identificadoscada qual por seu nome próprio. seu estilo rebelde e insubmisso de observar o mundo e de conceber o trabalho intelectual
Nada de equivalenteao papel desempenhadopela CSPem La distinction que permitia de uma forma geral.
fixar soli~amente o que significavamos indivíduos segundo essa variável. Daí em diante, Em um sentido mais amplo pode-se dizer que a reflexividadeconsiste em uma atitude
tudo o que podemos saber sobre as tomadas de posição é o que Bourdieu nos elucida em intelectual ou cognitivaautorreferidana qual o observadore suas ações se tornam parte do
seus comentáriosacercado plano fatorial. Já em Homo academicus (1984),era possívelver modo de conhecero mundo. Na Antropologiaessanoção ganhou duas significaçõesclistintas.
Uma diz respeitoà consciênciado pesquisador de que sua formação,seus modos de pensar e a partir dos quais o mundo social é visto e construído. No caso da sociologia,a reflexivi-
agir, sua inserção social e suas relaçõesafetam a situação que está sendo observada.A outra dade diz respeito à necessidade de uma crítica epistemológicaao pensamento realista. A
se refere à percepçãode que toda prática cultural envolve,por parte do agente, consciência maior parte dos pesquisadores em ciências sociais toma por objeto problemas relativos a
e comentário sobre ela mesma. Pierre Bourdieutransformou essas duas dimensões em pro- populações delimitadas de maneira mais ou menos arbitrária: velhos, jovens, imigran-
blemas teórico-metodológicoscentrais da sua reflexão sobre as condições de objetividade tes, etc. Para romper com es·sailusão realista é preciso objetivar o trabalho histórico de
nas ciênciashumanas. construção dessas unidades sociais relativamente homogêneas que sé tornam de maneira
Esquissed'une théorie de la pratique, publicadoem 1972,e o compêndiode ensino em impensada objetos pré-construídos da ciência. Por meio da reflexibilidade o sociólogo
pesquisa,Ofíciodo sociólogo(1973),podemser consideradasas obrasmais importantespara o pode evitar que o mundo social opere através do pesquisador oferecendo-lhe, como se já
entendimentode sua críticaepistemológicaàs teorias e práticascientíficascorrentesno campo estivessemprontos, os problemas científicosque cabe a ele construir. Com efeito,as ciências
das ciênciassociais.No trabalho de 1972o autor constróisua teoria das práticassociaisem um sociais estão permanentemente expostas a acolher os problemas do mundo social como se
diálogocrítico com os limites heurísticosdo estruturalismo e da hermenêutica.No primeiro fossem objetos de ciência. Muitos dos objetos reconhecidos pelas disciplinas acadêmicas
caso, observaque o modo de conhecimentoobjetivistaimplícitono estruturalismo apreende nada mais são, na verdade, do que problemas sociais contrabandeados para a sociologia
as práticas de forma externalistasem perguntar-se sobre os princípiosque a geram. Ao fazer (pobreza, delinquência, juventude, educação, lazer, esportes, etc.). Bourdieu nos lembra,
uma transposição do modelo linguístico desacompanhada de uma reflexãoepistemológica reiteradamente, que o mundo social constrói sua representação de si servindo-se também
das condiçõese dos limites dessatransposição,a antropologiaestrutural identificoucultura e da sociologia e dos sociólogos.Pode-se dizer o mesmo do mundo cultural e dos antropó-
língua e, ao fazê-lo,privilegioua estrutura dos signosem detrimento das funçõespolíticas,de logos. A objetivação de sua posição e do seu próprio pensamento permite ao sociólogo/
comunicaçãoe de conhecimentopresentesem todaprática. Jáo modo de conhecimentointera- antropólogo romper com essa persuasão clandestina da linguagem corrente do Estado, da
cionistapecaria,no seu entendimento,pela reduçãodas estruturas objetivasque determinam burocracia, dos meios de comunicação,do nativo, etc. Somentea partir da disposiçãopara
toda interaçãosocialà subjetividadedas relaçõesde um indivíduocom o outro. a reflexibilidadeé possível evitar que o pesquisador se torne instrumento daquilo mesmo
Em Ofíciodo sociólogo,Bourdieuafirma a necessidadede submetertoda práticacientífica que ele pretende pensar. A socioanálise proposta por Bourdieu exigeum retorno reflexivo
à crítica da razão epistemológica.Isto significaromper, por um lado, com o empirismo que no qual a desconstrução crítica do objeto se aplica também ao pesquisador.Foi esse esforço
faz do ato de conhecimentocientíficouma simples constatação do mundo real e, por outro, de objetivaçãoque o autor empreendeu ao examinar o mundo acadêmicofrancês no Homo
com o convencionalismode uma sociologiaespontânea que apenas sistematiza as opiniões academicus. Em contraponto ao campo intelectual francês, o que mais falta na tradição
correntesno universosocialem uma metalinguagem.Eleformulaentão os doisposicionamen- sociológica norte-americana é, no entender de Bourdieu, uma análise verdadeiramente
tos básicosque definemas condiçõesde possibilidadede todo discurso científiconas ciências crítica de suas próprias instituições universitárias.
sociais: contra o empirismo é preciso considerar que todo fato científicoé construído pela No caso da antropologia, a reflexibilidade diz respeito à necessidade do pesquisador
crítica incessantedas evidências;contra a filosofiahumanista da ação é preciso ter em conta de, ao mesmo tempo em que observa o mundo social, refletir sobre sua própria posição de
que a vida socialnão deveser explicadapela concepçãoque dela têm os sujeitos.Aopromover observador erudito. É claro que, para falarmos do mundo, somos de certo modo obrigados
as relaçõesestabelecidasem campo como meioprivilegiadode conhecimento,a "observação a abstrair o fato de quetambém estamos nele. No entanto, essa posição cognitiva, quando
participante" corre o risco de deixar-se seduzir pelas demandas do objeto. não objetiva_da,cria um viés intelectualista, próprio à abordagem estruturalista. Com
Os fundamentos da vigilânciaepistemológicae suas relaçõescom a críticateóricae meto- efeito, observa Bourdieu, "o conhecimento teórico deve inúmeras de suas propriedades
dológicana produçãodo conhecimentocientíficoforam bem delineadosnessas duas obras do mais essenciais ao fato de que as condições de sua produção não são as da prática" (R, 50).
início dos anos 1970.No entanto, foi o seu trabalho em colaboraçãocom Lok J. D. Wacquant No entanto, a reflexibilidade exige objetivar a pretensão heurística dessa posição de um
publicado em 1992- Réponses - que tornou mais explícitoo que seria para Bourdieuuma observador imparcial e externo, onipresente e ausente, quase divino para não transformar
ciênciasocialreflexiva.Editadona forma de um diálogocom o autor,o livroreúne os principais a antropologia num simples instrumento de luta política ao invés de poderoso instrumento
posicionamentosde Pierre Bourdieucom relaçãoao debateda ciênciasocialanglo-americana de conhecimento dessas lutas. Para evitar o int'electualismoé preciso objetivar os esquemas
da década de 1980.Os temas e conceitosmais importantes foram agrupados por Wacquant de percepção e cogniçãodo próprio observador.Isto não significaum retorno complacente
sob duas grandes rubricas: "as finalidades da sociologiareflexiva",que reúne as questões de e intimista à pessoa do pesquisador, essa espécie de observaçãodo observador inaugurada
seus alunos em seminário de pesquisana Universidadede Chicagoem 1986-1987,e "a prática pela pós-modernidade antropológicaque fala mais do autor do que de seu objeto de estudo.
da antropologiareflexiva",que faz o mesmo a partir de um seminário na École des Hautes Objetivar os esquemas do senso prático não tem por objetivo demonstrar que as ciências
Étude:s en Sciences Sociales, Paris, no mesmo ano. sociais constituem apenas mais um ponto de vista sobre o mundo, nem mais nem menos
Percorrendo em perspectiva esse conjunto de textos, pode-se perceber que a reflexivi- científicodo que qualquer outro. A reflexividadesignificapara Bourdieu a condiçãomesma
dade é tomada como uma forma de auto-objetivação e de objetivaçãodos pontos de vista de uma prática científica rigorosa.
ANTROPOLOGIA REFLEXIVA 35
34 ANTROPOLOGIA REFLEXIVA
9. ARBITRÁRIO CULTURAL de mistificação de um arbitrário cultural como cultura universal que o autor dá o nome de
·······················································································································
Maria Alice Nogueira "violênciasimbólica".
Para Bourdieu, o mesmo fenômeno ocorreria no caso da instituição escolar.Os saberes e
"Arbitrário cultural" é o termo utilizado por Bourdieu para designar o fenômeno social todos os conteúdos curriculares transmitidos e veiculadospelos sistemas de ensino, e consi-
que consiste em erigir a cultura particular de uma determinada classe social (a "classe do- derados como a cultura legítima, não constituiriam senão o arbitrário cultural dominante,
minante") em cultura universal. A arbitrariedade do processo residiria, segundo o sociólogo isto é, a cultura e os saberes das classes dominantes, sem nenhuma relação de superioridade
francês, na ocultação da origem de classe dessa variante cultural, isto é, no apagamento do intrínseca com as outras variantes culturais. Observa,no entanto, que a autoridade pedagó-
fato de que ela não possui, em si mesma, nenhum valor intrínseco, retirando toda a sua su- gica, ou seja, a legitimidade da instituição escolar e da ação pedagógica que nela se exercesó
perioridade do fato de estar em posição dominante nas relações de forças entre os diferentes pode ser garantida na medida em que o caráter arbitrário e socialmente imposto da cultura
grupos sociais. Já em 1970,em La reproduction, obra escrita com Jean-ClaudePasseron e escolar é ocultado.
uma das mais importantes da primeira etapa de sua trajetória intelectual, Bourdieu escrevia: Portanto, apesar de arbitrária e socialmentevinculada a uma dada classe,a cultura escolar
"A seleção de significados que define objetivamente a cultura de um grupo ou de uma precisaria, para ser legitimada, se apresentar como uma cultura neutra. A autoridade alcan-
classe como sistema simbólico é arbitrária, na medida em que a estrutura e as funções çada por uma ação pedagógica,ou seja, a legitimidade conferida a essa ação e aos conteúdos
dessa cultura não podem ser deduzidas de nenhum princípio universal, físico, bioló- que ela distribui seriam proporcionais à sua capacidade de se fazer ver como não arbitrária
gico ou espiritual, não estando unidas - por nenhuma espécie de relação interna - à e não vinculada a nenhuma classe social. Assim, na medida em que impõe e inculca em seu
natureza das coisas ou à natureza humana" (LR,22). público, de modo dissimulado, um arbitrário cultural como cultura universal, a instituição
Portanto,desdeo iníciode sua carreira,Bourdieuformulavaa tesede queum poderosotraba- escolar pratica - à sua maneira e sobre aqueles desprovidos,pelo nascimento, de "herança
lho social- que se dá em escalasocietária- de "legitimação"da cultura das classesdominantes cultural" - um ato de "violênciasimbólica".
resultouna produçãode uma cultura "legítima"- posto que legitimadapelos agentessociais-, Segundo Bourdieu, no que concerne aos grupos sociais dominados, o maior efeito dessa
cuja origem ficou esquecidanum processodito de "amnésia da gênese"."Em uma formação "violência simbólica" exercida pela escola não é a perda da cultura familiar de origem e a
social determinada, a cultura legítima, i.e., a cultura dotada da legitimidade dominante, "aculturação" em uma nova cultura exógena,mas o reconhecimento,por parte dos membros
não é outra coisa senão o arbitrário cultural dominante, na medida em que ele é ignorado desses grupos, da superioridade e legitimidade da cultura dominante. No início dos anos
em sua verdade objetiva de arbitrário cultural e de arbitrário cultural dominante" (LR,38). 1960, em Les héritiers, Bourdieu e Passeron escreviam: "Para os filhos dos camponeses,
· Desenvolvendomelhor o argumento,diríamos que Bourdieudefendeque nenhuma cultura dos operários ou dos pequenos comerciantes, a aquisição da cultura escolar é aculturação"
pode ser objetivamente definida como superior a outra cultura. Os conhecimentos, signifi- (LH,37). Esse reconhecimento se traduziria numa desvalorizaçãodo saber e do saber fazer
cados e valores que orientariam cada classe ou grupo social em suas disposiçõese condutas tradicionais dos meios populares, em favordo saber e do saber fazer socialmentelegitimados.
seriam, por definição,arbitrários, ou seja, não estariam fundamentados em nenhuma razão A esse respeito, na obra La distinction, com base em resultados de pesquisa sobre as
objetiva,universal. Porém, apesar de arbitrários, esses significadose valores- isto é, a cultura práticas culturais dos franceses, que demonstravam, entre outras coisas, a tendência dos
de cada grupo - seriam concebidose vividos pelos indivíduos como os únicos possíveisou, entrevistados menos instruídos em disfarçar sua ignorância e em exibir comportamentos e
pelo menos, como os únicos válidos. opiniõesquelhes pareciam as mais próximasda legitimidadecultural, Bourdieu(1979)conclui
Na perspectiva de Bourdieu,a conversãode um arbitrário cultural em cultura legítima só que "Os membros das diferentes classes sociais se distinguem menos pelo grau em que
pode ser compreendida quando se considera a relação entre os vários arbitrários em disputa reconhecem a cultura do que pelo grau em que eles a conhecem: as declarações de
em uma determinada sociedadee as relaçõesde força entre os grupos ou classessociais exis- indiferença são excepcionais e mais ainda as rejeições hostis - ao menos na situação de
tentes nessa mesma sociedade.No caso das sociedadesde classes,a capacidadede imposição, imposição de legitimidade que a relação de pesquisa cultural como um quase exame
de inculcação e de legitimação de um arbitrário cultural corresponderia à força da classe provoca. Um dos mais seguros testemunhos do reconhecimento da legitimidade reside
social que o sustenta. Assim, de um modo geral, os significados (conhecimentos, valores, na propensão dos mais desmunidos a dissimular sua ignorância ou sua indiferença
etc.) arbitrários, capazes de se impor como cultura legítima, seriam aqueles sustentados e a homenagear a legitimidade cultural da qual o entrevistador é, aos seus olhos, o
pelas classes dominantes. depositário, escolhendo em seu patrimônio aquilo que julgam o mais conforme com
Além disso, é fundamental, no pensamento bourdieusiano, a ideia de que a eficáciaou a definição de legitimidade" (LD,365).
a força social desse processo de imposição de um arbitrário cultural repousa sobre o fato de Várias são as críticas dirigidas hoje à teoria da legitimidade cultural. Uma das mais im-
que ele se dá de modo dissimulado, o que - de resto - aconteceria com todas as formas de portantes emana de dois antigos colaboradoresde Bourdieu, Claude Grignon e Jean-Claude
hierarquia social que retiram sua legitimidade do fato de que a arbitrariedade, que está na Passeron (1989),que reconhecemnessa teoria uma "força"e uma "limitação".A primeira viria
origem de sua constituição,passa despercebidaaos olhos dos atores sociais.É a esse processo do fato de que ela representa um justo golpe no relativismo cultural, por se negar a conceber
36 ARBITRÁRIO CULTURAL
ARBITRÁRIO CULTURAL 37
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argelina - que Bourdieu continuará em artigos posteriores (compiladosem EA). O livro foi
a cultura dos diferentes grupos sociais fora do quadro das relações de dominação existentes
muito mal recebido entre os franceses de Argel, majoritariamente opostos à independência
ent~e ~l~s.Por outro lado, segundo eles, ela não conseguiria "descrever positivamente 0
arbrtrano das culturas dominadas, isto é, descrever em todas as suas dimensões simbólicas e entre os quais predominavam posturas de extrema direita.
Após seu serviço militar, Bourdieu é contratado como assistente na Faculdade de Letras
o que existe e ainda funciona, mesmo quando se trata da cultura dos dominados". De tal
da Universidade de Argel, onde tem como aluno Abdelmalek Sayad. Entra em contato com
modo que "~spráticas e os traços culturais das classespopulares se veem privados do sentido
a Associationpour la RechercheDémographique,Économiqueet Sociale(ARDES),formada
que eles retiram de seu pertencimento a um sistema simbólico" (GRIGNON; PASSER0N, 1989,
por estatísticos franceses e argelinos. Esta associação recebe o encargo do exército francês
P· 36) na medida e~ ~ue .ºsociólogosó os enxerga pelo lado negativo da falta, da infração,
de investigar as populações deslocadas pela guerra (dois milhões de pessoas haviam sido
do erro, enfim da distancia envergonhada dos padrões legítimos.
deslocadas pelo exército francês para campos de reagrupamento e seus povoados foram
destruídos).Bourdieu é chamado para dirigir a pesquisa e realizar a interpretação sociológica
Referência
dos dados estatísticos. Organiza uma grande pesquisa, na qual combina todas as técnicas
GRIGNON,C.; PASSERON,J.C. Le savant et le populaire. Paris: Gallimard/Le Seuil, 1989.
de investigação - enquetes, análises de registros administrativos, observação participante,
entrevistas... -, centrada no alojamento e no emprego,sobre a desestruturação e a miséria da
io.ARGÉLIA sociedadeargelina por causa da colonizaçãoe da guerra e sobre a passagem de uma sociedade
pré-capitalista a uma sociedade capitalista.
Enrique Martín Criado Em 1960 Bourdieu, avisado de que se encontra na lista vermelha das associações de
extrema direita (o que significa, naquela época de intensa agitação repleta de atentados, que
A Argélia desempenha um papel essencial na obra de Bourdieu. É nesse país onde, após
sua vida corre perigo),volta a Paris, como assistente de Raymond Aron na Sorbonne.Entre-
haver ~studado filosofia,começa a se dedicar à sociologia.Na Argélia realiza sua primeira
tanto, continua analisando os materiais da pesquisa, a partir dos quais escreverádois livros:
pesqmsa e s~bre a Argéli~escreve seus primeiros textos. Uma região desse país, a Cabília,
Travail et travaílleur~en Algéríe (1963)e Le déracinement (1964).Ambos os trabalhos
lhe p~op~r:10nao ~atenal ~ndamental a partir do qual propõe uma de suas principais
oferecemuma detalhada descriçãoda sociedadeargelina no momento da independência.Seu
contnbmçoes, a teona da pratica. Na Argélia começa seu compromisso político público, de-
fio condutor é a análise da passagem de uma sociedadetradicional a uma sociedademoderna
fend~ndo~ ca~sa da independência diante da França. Este compromissocom o povo argelino
nas dramáticas condições da colonizaçãoe da guerra. Travailet travaílleursen Algéríe se
contmuara ate o final de sua vida, denunciando a cumplicidade do governo francês com 0
centra especialmentenos trabalhadoresurbanos - subproletários,operários,artesãos - dentro
go~re:nomilitar argelino na guerra que se desencadeia depois da anulação, em 1992, das
de uma análise geral da estrutura social argelina. Le déracinement, por sua vez, analisa a
elerçoesganhas pela Frente Islâmica de Salvação(FIS),fundando com outros intelectuais em
população camponesa a partir da pesquisa realizada nos campos de reagrupamento. Além
1994,o ComitêInternacional de Apoio aos Intelectuais Argelinos (CISIA),ou denunciando 0
de realizar uma documentada denúncia do colonialismofrancês, Bourdieu, em tais obras, já
fe~ha~ento das fro~teiras da França, impedindo o exílio de dezenas de milhares de pessoas se revela como um profundo sociólogo.Analisa nesses textos a estrutura social argelina, os
cu3avida corre pengo no cruzamento de massacres entre islamitas e militares argelinos
comportamentos trabalhistas, os arranjos em função das condições de existência, a relação
(alguns desses textos encontram-se em INT).
entre aspiraçõese condiçõesobjetivas,a relaçãoentre tipos de disposiçõese habitat,o "contágio
Dep~isde estudar_filosofiaem Paris e trabalhar durante um breveperíodo comoprofessor
das necessidades"nos comportamentos de consumo a partir dos modelos urbanos de classes
em um hceu de Moulms (centro da França), Bourdieu é recrutado. Destinado inicialmente a
médias, as consequências do trabalho assalariado nas relações familiares, na concepção do
Versalhes,é enviado no início de 1956para a Argélia, em plena guerra de independência da
tempo ou na transformação das sociedades rurais, a introdução de medidas homogêneas -
França (1954-196~)-Depoisde alguns meses na região de Chélif,é transferido para o Governo
de tempo, de produtos ... - e as resistências e mudanças que provoca, a transformação dos
Geralde Argel.Ali entra em contatocom vários pesquisadoresque, como ele,são muito críticos
rituais de sociabilidade cotidiana, a mudança na concepçãode enfermidade. O fio condutor
em relação à colon~za~ãofrancesa - como André Nouschi, que pesquisa a desestruturação do
é a contraposição entre a racionalidade pré-,capitalistae a capitalista, a passagem de uma
mu~do r_uralargel~~ a ~ustada colonizaçãoe_de suas leis.Nessaépoca, Bourdieucomeçaa ler
sociedade tradicional a uma sociedade moderna.
Sociologia- uma d1sc1phnamenosprezadana EcoleNormaleSupérieureondehaviaestudado-,
Nesses livros ele já põe em prática o que será sua teoria do habítus: as condições de
ao ~es~o tempo em que escreveseu primeiro livro, Sociologíede l".Algéríe (1958).Isola-se
existência produzem um determinado tipo de disposiçõesque tendem a reproduzir as con°
na brbh~te:a ,do Gove~~oGe~al,onde lê a literatura etnológica colonial sobre a Argélia, que <liçõesdas quais são produto. Nelasjá encontramos, igualmente, a relação entre projeção ao
se ~onstrtmra na matena-pnma de seu livro. Nele examina, também, os autores que então
futuro e condições de existência - a probabilidade de realizar projetos sensatos de futuro
esta con~ecendo:We~er,Marx, mas, sobretudo, Durkheim, Lévi-Strausse Margaret Mead,
depende das proteções que a situação presente ofereça- e a transferibilidade dos esquemas
a quem,le com entusiasmo e de quem toma os principais esquemas analíticos para O livro
do habítus - os mesmos esquemas são aplicados a domínios muito diferentes da prática.
(MARTINCRIADO, 2008). Além do mais, esse trabalho constitui uma crítica à colonização
ARGÉLIA 39
38 ARGÉLIA
À diferença dos textos posteriores em que teorizará o habitus - onde insiste no ajuste do Esses artigos, desse modo, proporcionam casos exemplares de uma sociedade onde a
habitus à situação -, aqui tudo é questão de desajuste. Caniponeses e subproletários se integração social se produziria a partir do hab.itus e onde o habitus estariam perfeitamente
acham em perpétua tensão entre uns esquemas adquiridos em uma sociedade tradicional e integrados e aplicariam seus esquemasbásicosaos diferentesâmbitos da prática. Cabíliaseria
a nova situação de extensão das relaçõescapitalistas. Este desajuste tem duas consequências. um caso exemplar porque seria uma sociedade tradicional.
Em primeiro lugar,a desestruturaçãoda sociedadetradicionallevaos indivíduosà consciência Assim, na Cabília as crianças seriam socializadas por meio da prática e da mimese,
do desajuste entre seus esquemas e a realidade e, a partir dela, ao retorno reflexivosobre tais por ser uma sociedade desprovida de escrita e de escolas: daí que nela se possa observar
esquemas. Passa-se de um ethos implícito a uma ética explícita. A segunda consequência é muito melhor a aquisição prática, corporal, das disposições que conformam o habitus. Na
o constante funcionamento, nos mesmos sujeitos, de duas lógicas distintas: a tradicional em Cabília, sem aparato jurídico dotado do monopólio da violência física, a ordem jurídica
que foram socializados e a nova em que estão aprendendo. A maioria dos argelinos utilizaria se basearia, sobretudo, nos princípios implícitos do habitus. Ela seria uma sociedade
constantemente ambas as lógicas segundo a situação ou realizaria sínteses mais ou menos agrícola pré-capitalista sem economia de mercado que produziria, por meios tradicionais,
instáveis:viveria uma experiência de desdobramento. para o autoconsumo e que excluiria o desenvolvimento das forças produtivas e a concen-
Todavia,os textos mais conhecidosde Bourdieu sobre a Argéliasão aquelesque dedica a tração de capitais: daí que se constitua em um exemplo privilegiado de uma sociedade
uma regiãobebere,a Cabília.Em suas pesquisasno país, Bourdieutambém haviase dedicadoa onde as estratégias de acumulação se baseiam no capital simbólico - na honra, nesse
compilarinformaçãoetnológicasobreesta região,perguntando a seus informantessobretemas caso. Sociedade simples e perfeitamente integrada, nela todos os domínios da prática se
tão variados como os rituais, a honra, os intercâmbios de dons, os calendários agrícolasou a organizariam a partir do mesmo conjunto reduzido de esquemas que conformariam uma
genealogia.Na sua volta à França trabalha sobre esses materiais e escreve,ao longo da década doxa que não necessitaria passar pela consciência ou reflexão ao ser compartilhada por
de 1960,três artigos:sobre o sentido da honra, a casa cabília e as estratégiasde parentescona todos e ao se achar perfeitamente ajustada à situação nessa sociedade estável e homogênea.
Cabília.Os três trabalhos se integram em Esquisse d'une théorie de la pratique, précédé de Como sociedade simples, na Cabília se observariam melhor as lógicas puras do habitus
Traisétudes d'ethnologie kabyle {1972)- ondeBourdieurealizaa primeiraexposiçãosistemática e do capital simbólico.
de sua teoria do habitus - e em diferentescapítulosde Le sens pratique. De fato,se tais artigos Este é o aspecto m_aisdiscutível desses estudos cabílios:a sociedadecabília havia deixado
têm tanta relevânciaé porqueBourdieuos utilizacomoexemplosmodelode sua teoriada prática. de ser uma sociedade tradicional muito tempo antes de que Bourdieu a conhecesse. Já no
Com efeito, os artigos podem ser lidos como etapas da viagem de Bourdieu desde o século XIXteria como principal atividade o comércio;desde as invasões islâmicas se regia
estruturalismo de Lévi-Strauss- representado, sobretudo, por "Acasa cabília" e, em menor por codificaçõesjurídicas - complicadas com a colonização francesa - e desde os fins do
grau, por "O sentido da honra" - até o estruturalismo genético, que já se pode ver em "O século XIXera a zona mais escolarizada da Argélia (MAHÉ,2001).Longe de ser uma socie-
sentido da honra", mas, sobretudo, em "O parentesco como representação e como vonta- dade tradicional, era a região mais modernizada da Argélia, onde as relações salariais e a
de". Aqui não só rejeita a análise do parentesco de Lévi-Strauss, como também introduz economia monetária mais se haviam desenvolvido.Bourdieu não ignoravatudo isso: de fato,
plenamente o conceito de estratégia como oposto ao de regra, analisando as práticas ma- o assinalavaem publicaçõescomo Travail et travailleurs en Algérie. Talveztenha construído
trimoniais não como atualizações de um sistema de regras subjacente, mas como práticas uma imagem da Cabíliatradicional porque era a que mais convinha para defender sua teoria
que jogam com as regras na persecução de determinados interesses - contra as práticas e da prática, para oferecerum exemplomodelo do habitus (MARTÍNCRIADO, 2013).
os interessas de outros agentes - que hão de ser entendidos no conjunto das estratégias de
reprodução dos grupos sociais. Referências
De fato, Bourdieu - como ele mesmo reconheceu em numerosas ocasiões - havia estado BOURDIEU,P. The Sentiment ofHonour in Kabyle Society.ln: PERlSTIANY,J.G. (Ed.). Honour
muito influenciado por Lévi-Strauss e seu método estruturalista. Um sinal evidente disso and Shame. The Values of Mediterranean Society. Londres: Weidenfeld and Nicholson, 1965.
é o artigo sobre a casa cabília: aqui nos apresenta o sistema de oposições fundamental - p. 191-24.
masculino/feminino, etc. -, suas correspondênciasnos diferentes âmbitos, assim como suas BOURDIEU,P. La maison kabyle ou le monde renversé. ln: POÜlLLON,J.;MARANDA,P. (Eds.).
transformações - a casa como espaço onde se invertem os termos. Por sua vez, o artigo Échanges et communications. Mélanges offerts à Claude Lévi-Strauss à l'occasion de son 60e
sobre o sentido da honra tenta recompor e formalizar a estrutura inconsciente - conjunto de anniversaire.Paris: Mouton, 1970.
oposiçõese regras - de todas as práticas de honra, que se aplicaria também a outras práticas, MAHÉ,A. Histoire de la Grande KabylieXIX-XX siecles.Anthropologiehistorique du lien social
como o intercâmbiode dons. No entanto, nesse artigo já introduz novidades que caracterizam dans les communautés villageois.Paris: Bouchene,2001.
sua teoria da prática: o habitus como princípio incorporado das práticas, a importância das MARTÍNCRIADO,E. Les deux Algériesde PierreBourdieu.L'enracinement de la théoriede l'habitus.
estratégias de reprodução, o capital simbólico.A ruptura com Lévi-Straussé mais evidente Paris: Croquant, 2008.
no artigo sobre o parentesco,onde analisa as relaçõesde parentesco como estratégiaspráticas MARTÍNCRIADO,E. Cabilia:la problemáticagénesis del concepto de habitus. Revista Mexicana
de reprodução social dos diferentes grupos sociais. de Sociología,v. 75, n. 1,p. 125-151,2013.
40 ARGÉLIA ARGÉLIA 41
11. ARTMOYEN(UN):ESSA/SURLESUSAGES
SOC/AUX
artigosescritospor Bourdieuao longode quarentaanos, consistindo-seem uma súmulade seu
DE LAPHOTOGRAPHIE engajamentoem distintos movimentossociaisfrancesese estrangeiros,revelaa intensidadee
································································································································
a contundênciade seu pensamento.Principio com tais consideraçõesacercadesselivro com
JoséCarlosG. Durand a finalidade de destacar que praticamente desde o início de sua longa carreira o sociólogo
francês jamais deixou de intervir nos movimentos sociais que considerava significativos
BOURDIEU,P.;BOLTANSKI, L.; CASTEL,R.; CHAMBOREDON,J.-C. Un art moyen: essaí sur les
usagessociaux de la photographíe.Paris: Minuit, 1965. para a transformação de uma dada realidade social adversaa grandes setores da população.
Nas décadas de 1980e 1990,Bourdieu intensificousua ação, começando por assinar a
Ao lado da moda, da história em quadrinhos, do romance popular e dojazz, a fotografia petição pública, com Michel Foucault,em 15 de dezembro de 1981,publicada no jornal Li-
foi vista por Bourdieucomo um gênero artístico "menor",atalho útil para se entenderem os bération,"Lesrendez-vousmanqués: aprés 1936et 1956,1981?",contra a recusa do governo
fundamentos da dominaçãocultural e da correspondentehierarquia de gêneros,encabeçada socialistafrancêsem apoiar o sindicatopolonêsSolidariedade,atacadopelastropas do general
pela pintura clássica,pela literatura erudita, pela ópera e pelo teatro de vanguarda. Jaruzelski.Em 1985coordenouo documento "Propositionspour l'enseignementde l'avenir",
A fotografiareintegraa família,solenizandoe perenizandoespaços,objetos,pessoase mo- elaboradopor professoresdo Collegede France,obtendoampla repercussãoem váriospaíses.
mentosmarcantes.Estaé sua funçãosocialbásica,razãode sua grandedifusão,a despeitode seu A exemplode ÉmileDurkheim,postulandoqueos interessesda ciênciapodemser resolvidos
parcoprestígiocomopráticacultural.Dasfotosde famíliasó se pede que sejamfiéiso suficiente apenaspelospróprioscientistas,criou,em 1989,aLiber:Revista Europeiade Livros(depois,
para que alguémse vejae se reconheça,e para que se aponteàs novasgeraçõesa importânciade como subtítuloRevista Internacionalde Livros,adotadoem 1994),quecirculouaté 1998.Era
cadaum no círculode parentesco.Nelasnão há lugarpara improviso,tudo tendendoao regulado uma publicaçãotrimestral encartada na revistaActes de la Rechercheen SciencesSociales.
e convencional,definindo,no limite,o universodo "fotografável"ou "nãofotografãvel". "Comparadoa veículossimilaresnos EstadosUnidose em diversospaíseseuropeus- TheNew
Por isso, nada a estranhar que os casados (com filhos) fotografemmais do que os sem YorkReview of Books,Times LiterarySupplement,London Review of Books,Le Monde des
filhos, e estes mais que os solteiros,ou que o casamento continue a ser o eventosocial mais Livres, etc. - com projetos gráficosdispendiosose sofisticados,tiragens em escalacomercial
fotografado.Só conhecendoas condiçõesde vida e os sistemasde pensamento e de percepção compensadorae esquemas empresariaisde produção e difusão, Liber procura tirar partido
de um grupo será possívelentender o sentido de suas práticas fotográficas.Seu habitus é a de sua autonomia perante os grandes órgãos da imprensa, os maiores impérios editoriais, o
sede dos valores éticos e estéticosque definem o que merece ser fixado,conservado. establishmentde celebridadespolíticas,artísticas e intelectuais,as agendasdos radicalismos
As práticase as ambiçõespropriamenteestéticasem fotografiase constroemna contramão de direita e de esquerda,voltando-separa um públicode estudantes,pesquisadoresespeciali-
de sua funçãointegrativa,o que se vê pela forte incidênciade celibatáriosentre os aficionados, zados e produtores de cultura, junto aos quais garante o acessopor intermédio de sua língua
ou "devotos",da fotografia.Eles são, a rigor, os "desviantes",ou autodidatas às voltas com nativa. Afora as versões em francês, alemão e italiano desta 'revista internacional de livros'
uma penosa e quase sempre não compensadaaspiração estética. trimestral [...], Liber é também publicadoem búlgaro,em húngaro, em sueco,em romeno,em
Diferentes pesquisas açerca dos hábitos de fotografar entre camponeses, operários, grego,em norueguês e em turco, ampliando desse modo sua força de penetração no interior
classes médias e altas e afiliados de fotodubes forneceram o material de campo. Posse de de cada um dessescamposnacionaisde produção cultural" (MICELI, 1997,p. 15).Foidefinida
câmera, frequênciae ocasiõesde uso, costumede mostrar álbuns estão entre os quesitoscujos por Bourdieucomouma forma de resistênciaa uma situaçãode ajusteintelectual,propondo-se
resultados foram cruzados pela condiçãosocioeconômica,idade, estado civil,nível de esco- o resgate da capacidadede aliar a autonomiada esferaintelectualcom o engajamentocrítico,
laridade e demais práticas culturais dos respondentes. em um espaçopúblicoe político,tendo sido definidoso modelo e a "missão"dos intelectuais:
em lugar do intelectualtotal sartriano, tem-se o intelectualtransdisciplinar e internacional,
alternativo aos poderes econômicos,políticos e à mídia (MICELI,1997,p. 12-13).
12. ASCETISMO Liber 1 (1997),editado apenas no Brasil, pela Editora da Universidade de São Paulo,
······················································································································· tem 321 páginas e a colaboraçãode 26 autores em 31 artigos; procura refletir sobre a crise
Ver:Boa vontade cultural política, econômicae cultural atravessadap'elaEuropa no fim do século passado. Dividido
em três partes concentra-se, na primeira ("Impasses da questão nacional"), no estudo do
13. ATIVISMO tema em países como Alemanha, Escócia e Irlanda, com artigos de Bourdieu, Christophe
························································ ······························································· Charle, Jürgen Habermas, Girgit Müller, Keith Dixon, Tom Nairn, Hugh Trevor-Roper,
Afrânio Mendes Catani Terry Eagleton,Gerry Adams e BillRolston.Os artigos da segunda parte ("Mestresdo pen-
samento") concentram-se no trabalho de homenagem e reconhecimento de alguns autores
~ma simple~consulta a Interventions, 1961-2001:sciencesociale et action politique,
mais inventivas da ciência social contemporânea, como Marcel Mauss, GeorgesDuby,E. P.
coletanea orgamzada por Franck Poupeau e Thierry Discepolo,que reúne uma centena de
Thompsone GeorgesDumézil,com textos de MarcelFournier, Enrico Artifoni, Maria Luísa
42 ART MOYEN (UN): ESSA/ SUR LES USAGES SOC/AUX DE LA PHOTOGRAPHIE
ATIVISMO 43
...
,..,,...,~--------------·-- ~----------------...;._ ___
_
Pesante, Huw Beynon, Didier Eribon e Frédérique Verrier. Na terceira parte (''Arte, Litera- Montlibert, Savoir à vendre: l'enseignement supérieur et la rechercheen danger (2004);
tura e Indústria Cultural"), dedicada à arte, à literatura e à indústria cultural, destacam-se Serge Halimi, Les nouveaux chiens de garde (1997).
artigos sobre o papel político e cultural dos intelectuais, os novos campos e áreas do saber Ainda em 1996, em 13 de outubro, Bourdieu e outros intelectuais se posicionam favo-
nas ~um~nidades, o perfil de alguns gêneros de ponta da indústria cultural, como a ficção ravelmente ao movimento dos sem documentos; em janeiro de 1998 realiza intervenções
multmac10nal e a arte globalizada - temas que normalmente encontram uma recepção públicas em prol do movimento dos desempregados e em 8 de abril escreve "Pour une gauche
reverencial em jornais, revistas e televisão. Escrevem aí Bourdieu, Louis Pinto, Ursula e de gauche", no jornal Le Monde. A partir daí se intensifica uma campanha orquestrada
Wolfgang Apitzsch, Robert Darnton, Didier Eribon, Pascale Casanova, Joseph Jurt, Mihai: contra ele na mídia. No ano seguinte redige "Maitres du monde, savez-vous ce que vous
D. Gheorghiu, Ines Champey e Isabelle Graw (MrcELI, 1997,p. 13-14). faites?", publicados nos jornais Libération e Le Monde, em 13 e 14 de outubro, e na Folha
Em 1989divulga "Príncipes pour une réflexion sur les contenus de l'enseignement", relatório de S.Paulo em 19 de outubro de 1999.Em 2000 deu seu apoio ao "Manifeste pour les états
da comissão que preside com François Gros, ministro da Educação Nacional, da Juventude e généraux du mouvement social européen" (1° de maio) e aos movimentos de luta contra
dos Esportes; em 1991torna-se membro do Conselho Científico do Instituto Maghreb-Euro- a mundialização neoliberal, reunidos em Nice (dezembro) e em Québec (abril de 2001).
pa e, nessa mesma data, cria a Associação de Reflexão sobre o Ensino Superior e a Pesquisa Acredito que o ativismo e o engajamento de Bourdieu possam ser exemplarmente
(ARESER), a qual preside. Em 1993 tem intensa participação no Parlamento Internacional resumidos em algumas passagens de seu livro A miséria do mundo, quando escreve
dos Escritores e no Comitê Internacional de Apoio aos Intelectuais Argelinos (CISIA). que "levar à consciência os mecanismos que tornam a vida dolorosa, inviável até, não é
. No início_da década de 1990, em que as desigualdades sociais e a marginalidade já ha- neutralizá-los; explicar as contradições não é resolvê-las". Não se pode anular o efeito
viam se mamfestado de forma acachapante, fazendo com que os tradicionais instrumentos que a mensagem sociológica pode exercer, por mais cético que se possa ser acerca de sua
de protesto coletivo ficassem superados, Bourdieu, através da revista Actes de la Recherche eficácia social, "ao permitir aos que sofrem que descubram a possibilidade de atribuir
en Sciences Sociales,que dirigiu de 1975 a 2001 (ver verbete ARSS), editou vários artigos seu sofrimento a causas sociais e assim se sentirem desculpados; e fazendo conhecer
baseados em biografias e depoimentos que homens e mulheres confiaram a vários autores amplamente a origem social, coletivamente oculta, da infelicidade sob todas as suas
"a propósito de sua existência e de sua dificuldade de viver" (MM, 9). Depois, tais estudo~ formas, inclusive as.mais íntimas e as mais secretas" (MM, 944). Tal constatação não tem
fo~a~ ampliado~, resultando em livro com quase mil páginas, trabalhando a questão da nada de desesperador: "o que o mundo social fez, o mundo social pode, armado deste
m1sena e do sofrimento social na França contemporânea: trata-se de A miséria dó mundo, saber, desfazer. Em todo caso, é certo que nada é menos inocente que o laisser-faire: se é
que se tornou um sucesso de vendas, sendo inclusive editado em muitos países. Coordenado verdade que a maioria dos mecanismos econômicos e sociais que estão no princípio dos
por Bourdieu, que também escreveu vários capítulos, o volume conta com o trabalho de sofrimentos mais cruéis, sobretudo os que regulam o mercado de trabalho e o mercado
outros 22 autores. escolar, não são fáceis de serem estancados ou modificados, segue-se que toda política
Bourdieu acompanhou de perto o conjunto de manifestações de rua ocorridos na França que não tira plenamente partido das possibilidades, por reduzidas que sejam, que são
em dezembro de 1995 e, na ocasião, fez brilhante intervenção na Gare de Lyon ("Contra a oferecidas à ação, e que a ciência pode ajudar a descobrir, pode ser considerada culpada
destruição de uma civilização"), posteriormente incluída em seu livro Contrafogos:táticas de não assistência à pessoas em perigo" (MM, 944).
para enfrentar a invasão neoliberal (1998),em que investe contra as posturas tecnocráti-
cas do governo socialista francês - em 1996, com um grupo de intelectuais criou a editora Referências
Liber - Raisons d'agir, depois apenas Raisons d'agir, publicando pequenos livros densos, DELSAULT, Y.;RIVIÊRE,M.-C.Bibliographie destravauxdePierreBourdieu,suivid'un entretien
be~,documentados e baratos sobre problemas políticos e sociais da atualidade, escritos por sur l'espritde la recherche.Paris: Les Tempsdes Cerises,2002.
soc10logos, economistas, escritores e artistas que possuíam "a vontade militante de difundir MICELI,S. Apresentação.ln: BOURDIEU,P. (Ed.);MICELI,S. (Seleçãoe organização).Liber1. São
o saber indispensável à reflexão e à ação política em uma democracia" (WACQUANT, 2002, p. Paulo:Ed. da USP,1997.p. 11-15.
WACQUANT, L. O legadosociológicode Pierre Bourdieu:duas dimensõese uma nota pessoal.Revista
99-101).A maioria desses livros - de Bourdieu ainda se incluem Sur la télévision, suivi de
L'empris: du jo~rnalism_e(1996), Contre-feux 2: pour un mouvement social européen de Sociologiae Política,Curitiba:UFPR,n. 19,;p.95-110,nov.2002.
(2001),~!em~~ hvro, c~let1voda ARESER, Quelques diagnostics et remedes urgentespour
une umversite en penl (1997)- foi publicada contra uma situação de cerceamento da mídia 14. AUTONOMIA
E HOMOLOGIA
DOSCAMPOS
e do mercado editorial, que se recusavam a discutir, aprofundar e editar vários temas que, se ····-······················
..··················..·············.............................................................
.
escamoteados, contribuiriam para a manutenção do que o autor denominou "os fundamentos GérardMauger
ocultos da dominação". Alguns títulos merecem destaque: Keith Dixon, Les évangélistesdu
Os conceitos de autonomia e de homologia ocupam um lugar central na teoria dos cam-
marché (1998);Loi:cWacquant, Les prisons de la misere (1999);Frédéric Lordon, Fonds
pos, na medida em que, por um lado, a "autonomia" (relativa) é a condição sine qua non da
de pension, piege à cons?Mirage de la démocratie actionnariale (2000); Christian de
própria existência dos "campos" e, por outro, a noção de "homologia"é mobilizada na análise
afirma-se à medida que aumenta a autonomia do campo científico em relação às de-
tanto de suas estruturas e de seu funcionamento interno quanto das relações entre os campos.
terminações externas. O privilégio concedido à "forma" em detrimento da "função"
("a arte pela arte") está subordinado à autonomização dos campos da arte em relação
Autonomia ao campo econômico e ao campo político. Mas a autonomia dos campos de produção
simbólica tem como contrapartida seu "corte escolástico com o mundo da produção":
O surgimento de campos relativamente autônomos deriva da divisão social do "ruptura libertadora", mas também "desconexão que encerra a virtualidade de uma
trabalho (Durkheim) ou da diferenciação das atividades sociais (Weber). Os campos mutilação", geradora das "três formas de erro escolástico" (MP).
mais autônomos são aqueles que definiram uma lógica própria irredutível à de outros
campos ("nomos"): "a arte pela arte", "negócio é negócio", etc. Tal lógica peculiar convoca
Homologias
e torna ativa uma "illusio" específica: reconhecimento tácito do valor dos interesses
envolvidos no campo. O pertencimento ao campo pressupõe, além do domínio prático A noção de homologia estrutural desempenha também um papel-chave na teoria
das regras e regularidades que definem o seu funcionamento normal, um senso do jogo dos campos. Olivier Roueff (2013) colocou em evidência a dupla função que ela exe-
e de suas implicações (um "habitus específico"), assim corno a detenção de recursos cuta na análise das estruturas internas dos diferentes campos de produção simbólica:
eficientes no campo: "capital específico", que é uma arma nas lutas internas ao campo 1º) Tendo em vista que todo campo é definido como um "espaço de posições"
e, ao mesmo tempo, o pretexto dessas lutas (o valor do capital econômico, do capital organizado pela distribuição das propriedades atuantes e um "espaço de tomadas
cultural, do capital social, etc., varia de acordo com os campos). Os limites do campo de posição" definido pela distribuição das práticas peculiares ao campo, a relação
estão em jogo nas lutas internas ao campo, onde se trata de levar ao reconhedmento entre espaço de posições e espaço de tomadas de posição é uma relação de homolo-
de uma definição de pertencimento, de impor um "direito de entrada" informal ou gia estrutural. Essa homologia é efetuada pela mediação do "espaço dos possíveis",
institucionalizado, além de lutas externas entre os campos (a imposição, ao Estado, associado ao "ponto de vista" próprio de cada posição no interior do campo. Na
de critérios de racionalidade econômica traduz, por exemplo, o predomínio crescente medida em que esse ponto de vista depende, simultaneamente, do "ponto" (isto é,
do campo econômico em relação ao campo político). da posição) e da "vista" (ou seja, dos esquemas de percepção do habitus), a homo-
Assim, a autonomização da economia seria o produto da lenta evolução que a logia entre "espaço das posições", "espaço dos possíveis" e "espaço das tomadas de
conduziu "a constituir-se como tal, não só na objetividade de um universo separa- posição" pressupõe igualmente a homologia entre espaço das posições e "espaço
do - regido por leis próprias, isto é, as do cálculo interessado, da concorrência e da .das disposições" (habitus).
exploração mas também, posteriormente, na teoria econômica ('pura')" (MP). Se o 2 º) Em cada campo, a homologia estrutural entre o espaço dos produtores e o
Estado permitiu ao campo da arte e ao campo musical emancipar-se do comando da espaço dos consumidores fundamenta "a magia social" do ajuste inintencional entre
Igreja e do clientelismo, a formação do mercado está na origem da autonomização do a oferta e a demanda: "o acordo que se estabelece [... ] objetivamente entre os tipos
campo literário e do campo de arte, libertando-os progressivamente do controle do de produtos e os tipos de consumidores só se realiza nas ações de consumo por meio
Estado. Inversamente, se o mercado permitiu afrouxar a coerção estatal, ele impõe, dessa espécie de sentido da homologia entre bens e grupos, que define o gosto" (LD).
por sua vez, a lei do lucro geradora de uma heteronomia crescente que o Estado pode Mas a noção de homologia é igualmente crucial na análise das relações entre os
compensar pela implementação de uma política cultural. A autonomia (relativa) campos:
aparece, assim, como o ponto culminante de um processo reversível de autonomização 1º) As homologias estruturais regulam, por um lado, as circulações entre os di-
e de "depuração" sempre inacabado, "tanto do lado da economia que reserva ainda ferentes campos e o campo do poder e, por outro, as trocas e os deslocamentos dos
um lugar importante aos fatos e aos efeitos simbólicos quanto do lado das atividades agentes entre os diferentes campos. Considerando que cada campo está associado a
simbólicas às quais a dimensão econômica continua sendo negada" (MP), uma espécie de capital, a passagem de um campo a outro pressupõe uma conversão de
O "grau de autonomia" de um campo pode ser avaliado pela importância do "efeito um capital específico que se detém, portanto, uma taxa de conversão que é um objeto
de retradução ou de refração" que sua lógica específica impõe às influências ou aos de lutas no seio do "campo do poder".
comandos externos, pelo rigor das sanções negativas infligidas às práticas heterôno- 2º) Enfim, se cada campo possui uma forma própria, os diferentes campos têm
mas, pelo vigor dos incentivos positivos à resistência contra a intrusão dos poderes igualmente propriedades invariantes, de modo que o estudo de um campo passa pelos
associados a um campo no funcionamento de outro campo (por exemplo, a tirania testes da pesquisa das propriedades gerais dos campos, colocadas em evidência no
de acotdo com Pascal), pelo grau ao qual o princípio de hierarquização interna está decorrer de pesquisas anteriores: as relações de homologia entre os campos autori-
subordinado a princípios de hierarquização externos (RA). É possível, finalmente, nos zam as transferências racionais de esquemas explicativos de um campo a outro (LD;
interrogarmos sobre os efeitos da autonomização de um campo. A "razão científica" BouRDIEU,2013).Assim, Bourdieu (LD) teria enfatizado a homologia entre as oposições
46 AUTONOMIA E HOMOLOGIA DOS CAMPOS
AUTONOMIA E HOMOLOGIA DOS CAMPOS 47
consti!utivas dos diferentes campos de produção simbólica (à semelhança daquela
entre campo de produção restrita" e "campo da grande produção"); a homologia
entre o campo político (definido como o campo das lutas de classes ordinárias ou
extra~rdinárias, dissimuladas ou abertas, individuais ou coletivas, espontâneas ou
orgamzada_s, etc.) e o campo de produção ideológica; a homologia entre o espaço da
classe domi~ante e o es?aço das classes médias (fundada em sua estrutura em quias-
ma), etc. Tais homologrns entre os campos permitem explicar não só solidariedades
parciais e ~lianç~s ~e fato entre do?1inados ou entre dominantes de diferentes campos,
mas tambem a log1ea dos atos dai decorrentes, culminando em um duplo resultado:
tal com_osatisfazer, no campo intelectual, seus interesses de intelectual sob o pretexto
de servir, no campo das classes sociais, aos interesses do proletariado.
Referências
BOURDIEU, P. De la méthode structurale au concept de champ. ARSS, n. 200, p. 12-37,déc. 1s.BACHELARD, GASTON( 1884-1962)
·······················································································································
2013.(Théorie des champs).
Vincent Bontems
ROUEFF, O. Les homologies structurales: une magie sociale sans magiciens? Laplace des in-
termédiaires dans la fabrique des valeurs. In: COULANGEON , Ph .,· DUVAL , J. (Org.). 71ren te
Gaston Bachelard nasceu em 27 de junho de 1884na aldeia de Bar-sur-Aube. O pai era
ans apres La distinction de Pierre Bourdieu. Paris: La Découverte, 2013. p. 153-164.
sapateiro, enquanto a mãe mantinha uma banca de tabaco e jornais. A sensibilidade de
Bachelard guardará a-marca desse meio rústico e convivial, assim como sua fala conservará
o sotaque de sua região, a Champagne. Após ter concluído o ensino médio, foi bem-sucedido
no concurso de admissão aos Correiose Telégrafos,em 1903,tendo prosseguido os estudos na
área das ciências, graças aos cursos noturnos. Depois da Primeira Grande Guerra, tornou-se
professor de física e de química em sua cidade natal e empreendeu estudos de filosofia.Em
1927,defendeu duas teses: Essai sur la connaissanceapprochée,orientada por Abel Rey,
e Étude sur l 'évolution d 'un probleme de physique: la propagation thermique dans les
solides,sob a orientação de Léon Brunschvicg. Na primeira, insiste particularmente sobre
o papel desempenhado pela dupla formada pela técnica e pela matemática na construção do
fato científico,bem como na razão de que todo o conhecimento científicoé, por essência,uma
aproximação.Ele guarda, assim, seu distanciamento tanto do idealismo que supõe categorias
fixasdo entendimento quanto do empirismo que parte do pressuposto da existênciade objetos
oferecidosà observação e coloca, no primeiro plano da análise, as relaçõesentre o sujeito e
o objeto. Na segunda tese, que se refere mais à história das ciên~iasdo que à filosofia,ele já
manifesta a principal caraterística de sua epistemologia,que consiste em apreender a ciência
de maneira dinâmica através do progressodas teorias (cujaevoluçãodescontínua está também
em relação com os progressos da precisão dós instrumentos de avaliação).Essas duas obras
rompem com a noção positivista do progresso como acúmulo contínuo.
Sua contribuição decisiva para a filosofiadas ciências deve muito à sua sólida formação
científica inicial, mas também e, sobretudo, ao fato de não ter deixado de reatualizá-la em
contato com revoluções teóricas representadas pelas teorias, seja da relatividade restrita e
geral, seja da mecânica quântica. Sua escrita toma uma feiçãopolêmica, produzindo francas
demarcações:em 1929,diante de Émile Meyerson,com La valeur inductive de la relativité,
obra em que mostra que a estrutura das relações matemáticas da teoria de Albert Einstein
50 BACHELARD, GASTON (1884-1962) BAL DES CÉLIBATAIRES (LE): CRISE DE LA SOCIÉTÉ PAYSANNE EN BÉARN 51
enquanto "Reproduction interdite. La dimension symbolique de la domination économique" tinha sido difundida anteriormente peio canal de televisão ARTE, sob o título Les cadets de
em Études Rurales (1989).Há, ainda, um posfácio, "Une classe objet", originalmente divul- Gascogne [Os caçulas da Gasconha). · . ., .
gado em Actes de la Recherche en Sciences Soei ales (1978). Na região do Béarn, o vilarejo de Lasseube é a terra natal e o lugar da mtancia de
Sua análise é matizada a partir de questão fundamental: como é possível que, em uma Pierre Bourdieu, antes de ele se tornar sociólogo, em Paris. Seu pai, Albert, que pertencia
sociedade assentada tradicionalmente no direito dos primogênitos, são justamente estes que a uma família de meeiros, aéabou exercendo a profissão de carteiro (e, posteriormente,
ficam solteiros? No artigo inicial elabora o que chama de "um Tristes trópicos às avessas", contador) na agência de correios local, depois de se casar com Noémie, que fez um ca-
entrevistando velhos solteiros de sua geração e da de seu pai (que o acompanha em grande samento socialmente desfavorável (por ser fiiha caçula de uma importante família de
parte delas, falando bearnês e ajudando "com sua presença e discretas intervenções, a des- agricultores da região). Pierre Bourdieu cursou o ensi~o médio co~o aluno-interno no
pertar a confiança e a confidência"). Acrescenta que a contenção objetivista de seu propósito Lycée Louis-Barthou, em Pau, a capital da região, manitestando~~e_su~ultaneamente bom
se deve, em parte, ·'ao fato de que tem a sensação de cometer uma espécie de traição, o que aluno e menino travesso, ou seja. seu jeito de viver a contract1çao entre uma elevada
me levou a rechaçar qualquer reedição de textos, a não ser em revistas eruditas de escassa consagração escolar e uma baixa extração social" (EAA, 127). Graças ao diretor desse
difusão, protegidos contra as leituras mal-intencionadas ou voyeuristas". estabelecimento de ensino, Bernard Lamicq - "um dos raros, senão o único estudante
"Les stratégies matrimoniales dans le systeme de réproduction" marca de forma manifesta a natural do Béarn, a se formar na Écoie Normale" -, ele conseguiu uma vaga, em Paris, para
ruptura com o paradigma estruturalista através da passagem da regra à estratégia, da estrutura fazer a khâgne (curso preparatório para a Escola Normal Superior), igualment~ co~o alu-
ao habítus e do sistema ao agente sociaÍizado, "por sua vez animado ou influenciado pelas no-interno, no Lycée Louis-le-Grand e, depois, na própria Escola Normal Superior, situada
estruturas das relações sociais da qual é produto". Publicado em Annales, uma revista de na rua d'Ulm, em Paris. Tal percurso irá transformá-lo em um "milagroso" social - ou.
história, ''como para assinalar melhor a distância com relação ao sincronismo estruturalista", um "trânsfuga filho de trânsfuga" -. habitado por um habitus clivado "gerador de toda a
foi escrito com Marie-Claire Bourdieu. espécie de contradições e tensões" (SSR, 214). .
"Reproduction interdite. La dimension symbolique de la domination" permite compreender Mas, para Bourdieu, o Béarn é sobretudo seu terreno privilegiado, começando por sua
de forma clara a unificação do mercado de bens simbólicos em escala nacional, condenando pesquisa de 1959-60,que culminará em um de seus mais célebres artigo: de juvent~de sobre
a "uma repentina e brutal desvalorização aqueles que tinham a ver com o mercado protegido o mistério do celibato dos primogênitos, nessa região de pequenos pro~utores agncolas em
dos antigos intercâmbios matrimoniais controlados pelas famílias". A busca da parceira vai que "a função primordial do casamento consistia em garantir a continuidade da _linhage~
depender, então, diretamente da iniciativa do interessado. sem comprometer a integridade do patrimônio" (BouRDIEU,1962,p. 34). E ele nao cessara
Bourdieu mostra o êxodo das jovens que já não querem mais trabalhar em ofícios de mais de retomar o estudo dessa questão (BouRDIEU,1972, 1989).
camponeses e fala da exclusão do mercado das trocas matrimoniais de um grande contin- Quando iniciou s~a pesquisa na região do Béarn, Bourdieu ainda residia na Argélia,
gente de primogênitos solteiros na faixa dos 30 anos. No baile, que representa um verdadeiro desenvolvendo esse estudo simultaneamente àquele sobre os cabilas. São as mesmas ques-
choque de civilizações, eles ficam ao redor da pista, mas não dançam, privilégio reservado tões que o preocupam, e sua reflexão sobre cada um desses campos se alimenta daquela que
aos mais jovens. Através do baile o mundo da cidade penetra na vida do campo, revelando produz sobre o outro. Em várias oportunidades, ele definiu seu retorno à terra ~atai como
seus modelos culturais, sua música, suas técnicas corporais. As mudanças nos costumes, "um Tristes tropiques às avessas": "Minhas pesquisas sobre o casamento no Bearn foram
impostas pela vida moderna, tornaram obsoletas as práticas tradicionais, convertendo para mim o ponto de passagem, e de articulação, entre a Etnologia e a Sociologia. De,s~ída,
este livro, dedicado ao seu Béarn natal - região rural do sudoeste da França, próximo aos havia concebido esse trabalho sobre minha própria região de origem como uma especie de
Pireneus -, em uma obra íntima e bela e, o que é mais relevante, em trabalho etnográfico experimentação epistemológica: analisar como etnólogo, num universo famili~r (a não ~er
de primeira linha. pela distância social), as práticas matrimoniais que eu havia estudado num umverso social
mais distante, a sociedade cabila, significava me dar uma oportunidade de objetivar o ato de
objetivação e o sujeito objetivante" (CD, 75). .
í7. BÉARN A transição da Etnologia para a Sociologia é'visível no fato de que, no artigo de 1962,ve~i-
Denis Baranger fica-se o recurso insistente à estatística, procedimento deplorado por alguns autores que nao
deixam de reconhecer sua natureza grandemente etnográfica (JENKINS, 2006). No entanto, ele
"Lucas, jovem sociólogo parisiense, retorna a seu Béarn natal para empreender uma deve ser entendido, sobretudo, em relação à passagem de um universo estranho - a Cabilia,
pesquisa sobre o celibato entre os camponeses" - eis o que era anunciado pelos jornais, em que representa o tipo de objeto tradicionalmente antropológico - ao mundo de sua infância
2004, P?r ocasião do lançamento, nas salas de cinema, do filme Vert Paradis [Paraíso verde] e, por conseguinte, a uma relação mais "sociológica'' com o objeto. Esse é o primeiro nível_de
de Emmanuel Bourdieu, o filho caçula de Pierre Bourdieu que, além de filósofo formado significação - se quisermos, "epistemológica" - dessa reviravolta mencionada por Bourdieu
na École Norrnale Supérieure, é cineasta. Aliás, uma versão abreviada dessa película já (mesmo que, na realidade, ele nunca tenha se importado muito com as diferenças disciplinares).
52 BÉARN BÉARN 53
Mas,e issoé importante,a reviravoltarefere-setambém - depoisde "LamaisonKabyle",seu tradiçãoparticular,pode reproduzir - de maneira mais inconscientedo que consciente-, esta
"últimotrabalhode estruturalistafeliz"(SP,22)- a uma evoluçãodecisivade seu sistemateórico: ou aquelasoluçãotípicanomeadaexplicitamentepor essatradição"(BouRDIEU, 1972,p. 1107).
a passagem"daregraàs estratégias"(CD),em ruptura como estruturalismode Lévi-Strauss, a fim A região do Béarn, longe de ser um capítulo encerrado na evoluçãodo pensamento de
de deixar de concebera práticacomourna execuçãomecânicada regra.Urnaobservaçãobanal Bourdieu,nunca deixou de figurar no âmago de sua teoria da prática.
de sua mãe é que irá ajudá-loa operar essapassagem:"Elesviraram parentesdos fulanos,desde
o momentoem que um delesse formouna Polytechnique"(EAA,86).Dessemodo, ele mostra Referências
que a práticaé criada,não pelaregra - menosainda, pelomodelo-, mas pelosprópriosagentes, BOURDIEU,P. Célibatet condition paysanne. ÉtudesRurales,v. 5-6, p. 32-136,1962.
dotadosde urna capacidadede manipular,não necessariamentede formaconsciente,as regras. BOURDIEU,P. Les stratégies matrimoniales dans le systeme de reproduction. Annales, v. 4-5,
As árvores genealógicasnão são senão uma invenção do etnólogoe, portanto, ao paren- p. 1105-1127,1972.
tesco oficial, convém opor o parentesco prático, aquele que se encontra verdadeiramente BOURDIEU,P. Reproduction interdite. La dimension symbolique de la domination économique.
em ação através dos habitus: "Asrelações de parentesco efetiva e atualmente conhecidas, ÉtudesRurales,v. 113-14,p. 15-36,1989.
reconhecidas, praticadas e, corno se diz, 'mantidas', são, para a genealogia construída, 0 JENKINS,T. Bourdieu'sbéarnais ethnography.Theory,Culture& Society,v. 23, n. 6, p. 45-72,2006.
que a malha rodoviária mantida, de fato, em boas condições, frequentada, desimpedida,
portanto, fácil de acesso- ou melhor ainda, o que o espaçohodológicodos entroncamentos
e dos percursos realmente efetuados - é para o espaço geométrico de um mapa enquanto
rn.BENSSIMBÓLICOS
(Economia
dos)
, representaçãoimaginária de todos os caminhos e de todos os itinerários teoricamentepos-
síveis.Prolongandoa metáfora, as relaçõesgenealógicasdesapareceriamrapidamente,como GiseleSapiro
caminhos abandonados,se elas não recebessemurna manutenção contínua, mesmo que se
forem utilizadas de forma descontínua"(BouRDIEU, 1972,p. 1108). A economiados bens simbólicosdesenvolvidapor Bourdieuestá enraizadaem uma crítica
O teina fundamental dos "usos sociais do parentesco"será desenvolvidoplenamente em do econornicismoque i;eduzas trocas ao cálculo interessado.Seus primeiros estudos sobre
Le sens pratique e, por esse meio, é todo o estatuto da teoria jurídica e antropológica do sociedadespré-capitalistas- a Cabília,na Argéliaainda colôniafrancesa,e sua regiãonatal do
parentesco que se encontra questionado, considerando que "as relações de parentesco são Béarn,no sopédos Pirineus - e, em seguida,seustrabalhossobreos camposliterário,artístico,
algo que se faz e com as quais se faz algo" (SP,279). religiosoe científico,revelama dimensãosimbólicadas trocas,cujafunçãoconsisteem torná-las
É fácilmostrar comoessareflexãoculmina rapidamentena ideiade capitalsocial(embora, irreconhecíveiscomotais. O economicismoque se consolidoua partir do séculoXVIIIé apenas
na época,tal noção ainda tendesse a se confundir com a de capitalsimbólico):"Seas pessoas uma forma particular da economiadas práticase das trocas.Alémdisso,se elese impôs corno
socialmentemais bemsituadastêm também as maioresfamílias,enquantoos 'parentespobres' paradigmadominante com o capitalismotriunfante, alguns universos- tais comoos campos
são também os mais pobres em parentes, é porque, neste domínio como em outros setores, de produção cultural ou científica- continuam funcionandode acordocom os princípiosda
o capital convergepara o capital, tanto mais que a memória da parentela e a propensão a economiapré-capitalista,enquantoo paternalismomostra quetais formasdenegadasde domi-
mantê-la são função dos lucros materiais ou simbólicosque podem ser auferidosquando se naçãosubsistemno próprioâmagodo campoeconômico.Essateoriapassoupor reformulações
pratica o parentesco"(BOURDIEU, 1972,p. 1109). sucessivasao longode sua obra,desdeEsquissed'une théoriede lapratique (1972)atéRaisons
Certamente,em "as categoriasde parentescoinstituem urna realidade" (SP,287),trata-se nrr.mn,,,,c (1994),livroem que se encontrasuaversãomaisacabadae maissintética,passandopor
de construçõessociais.Mas os agentestêm a capacidadede servir-sedessas"realidades",tendo Le senspratique (1980).Ostrabalhossobrea literatura,a arte, a religiãoe a ciência- universos
cornoimplicaçãoque "alguns casamentosidênticos,unicamente sob o aspecto genealógico, em que prevalece"o interessepelo desinteresse"- constituemsua ilustração.
podemrevestirsignificaçõese desempenharfunçõesdiferentes,inclusiveopostas,dependendo O senso de honra e o dom são os dois exemplosparadigmáticos do modo de funciona-
das estratégias em que estão inseridos" (SP,290), afirma ele, em ruptura igualmente com 0 mento da economiados bens simbólicos:eles se baseiam na recusa do cálculo, da lógicado
nominalismo positivistada antropologiabritânica. De fato, "contra a tradição antropológica valor, que está na origem do econornicismo.Não é suficienteobjetivar a realidade da troca,
que aborda cada casamentocomouma unidade autônoma [...] cada transação matrimonial só tal como faz Lévi-Straussa propósitodo dom e do contradorn,para levá-laem conta, porque
pode ser compreendidacomo um momento em urna série de trocas materiais e simbólicas. ela é dissimulada pelo intervalo temporal que introduz também alguma incerteza relativa-
Deste modo, o capital econômicoe simbólicoque uma família pode investir no casamento mente à reciprocidade.
de um de seus filhos vai depender, em grande parte, da posição ocupada por essa troca na Assim, a primeira característica da economia dos bens simbólicos é a denegação da
históric:!-
matrimonial da família" (BouRDIEU, 1972,p. 1120). economia economicista,ou seja, do cálculo em termos de interesse: o interesse econômico
Assim, "o casamento não é o produto da obediência a uma regra ideal, mas o desfecho é "recalcado","censurado".A segunda, correlata da primeira, é a transfiguração dos atos
de urna estratégia que, pondo em ação os princípios profundamente interiorizados de uma econômicosem atos simbólicos:essa alquimia requer um investimentoconstante por parte
Em 1975,"com a bênção e o apoio de Fernand Braudel, diretor da Maison des Sciences de livros de autoria de Louis Pinto, Pascal Durand, Sébastien Chauvin, SylvieTissot, Marie-
de l'Homme [...], cria a revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales, que se firmou France Garcia-Parpet, Philippe Mary, etc.
como uma das mais importantes publicações em ciências sociais no mundo. Embora tenha Bourdieu, durante mais de quarenta anos, sempre devotou especial atenção para a pu-
permanecido altamente singular em seu formato, tom e missão [...] a revista procurou blicaçãodos resultados de suas investigações,bem como daquelas desenvolvidaspor colegas
publicar os mais avançados produtos da pesquisa social a fim de impingi-los sobre a cons- franceses e estrangeiros, divulgadas sob a forma de livros e de artigos em periódicos cientí-
ciência coletiva e sobre a discussão pública na França e no exterior". Bourdieu a dirigiu ficos.Na maior parte de sua trajetória acadêmica, conforme se escreveuaqui, teve o controle
de 1975a 2001 (WACQUANT, 2002) -ver, sobre a revista, o verbete ''.Actesde la Recherche do conteúdo que publicou, inclusive possuindo o senso de oportunidade política de editar,
en Sciences Sociales". quando julgou necessário, textos de intervenção (não poucos de sua autoria) em que ajudou
Nos anos 1980-1990Bourdieu continuou sua ação, entendendo, a exemplo de Émile a colocaro saber intelectual numa linguagem apropriada, a serviço de parcelas da população
Durkheim, que os interesses da ciência só podem ser resolvidos pelos próprios cientistas. ·quenão possuem as chaves para decifrar obras que normalmente circulam apenas entre os
Na perseguição desse objetivo,criou, em 1989,a Liber: Revista Europeia de Livros (depois, produtores da cultura erudita.
com o subtítulo Revista Internacional de Livros, adotado em 1994),que durou até 1998.
Era uma publicação trimestral encartada na Actes, que saía simultaneamente em vários Referências
países, nos seguintes idiomas: francês, alemão, italiano, búlgaro, húngaro, sueco, romeno, MICELI,S. Apresentação.ln: BOURDIEU,P. (Ed.).MICELI,S. (Org.).Liber 1. São Paulo:Ed. da USP,
grego,norueguês e turco, sendo definida por Bourdieu como uma forma de resistência a uma 1997.p. 11-15.
situação de "ajuste intelectual", propondo o resgate da capacidade de aliar a autonomia da WACQUANT, L. O legadosociológicode Pierre Bourdieu:duas dimensões e urna nota pessoal.Revista
esfera intelectual com o engajamento crítico, em um espaço público e político. O modelo e a de Sociologiae Política,Curitiba: UFPR,n. 19,p. 95-110,nov. 2002.
"missão" dos intelectuais são redefinidos: em lugar do intelectual total sartria~o, tem-se o
intelectual transdisciplinar e internacional, alternativo aos poderes econômicos,políticos e
à mídia. SergioMicelidestaca na apresentação a coletânea Liber 1, que reúne 32 textos sele-
cionados do suplemento,que o desafioinicial de um empreendimento dessa natureza foi o de 2í. BURGUESIA
···························································································•,•··························
"firmar alianças supranacionais com vistas à montagem de uma rede de autores e correntes
guiada por lideranças intelectuaisindependentes"(MICELI,1997,p. 12).As bases de tal acordo Ver: Classe social
operacional e doutrinário eram "o respeito intelectual recíproco e, tão ou mais importante
num momento de resistência aos arautos da modernidade neoliberal", constituindo-se em
"contraveículo de combate intelectual e divulgação cultural de qualidade" (MICELI,1997,
p. 12-13).Voltando-separa um público de estudantes, de pesquisadores especializadose de
prod~tores de cultura, Liber tinha entre seus colaboradores GeorgesDuby,Robert Darnton,
Terry Eagleton, Jürgen Habermas, E. P. Thompson, Keith Dixon, Didier Eribon, Christophe
Chade, PascaleCasanova,além de vários outros intelectuais originários da França e de outras
nações em que o suplemento era publicado.
Ainda nos anos 1990,Bourdieu capitaneou a criação da editora Liber - Raisons d'agir,
depois apenas Raisons d'agir, publicando pequenos livros, bem documentados e a preços
baixos, sobre temas políticos e sociais da atualidade - ver verbete "Ativismo".
Em 1997, o sociólogo criou a coleção Liber, nas Éditions du Seuil, editando, de sua
autoria, Méditations pascaliennes, La domination masculine e Les structures sociales
de l' économie - Esquisses algériennes (2008), póstumo, reunindo textos que escreveu
em vários momentos sobre o país africano, organizado por Tassadit Yacine.Nessa coleção
foram editados livros de seu amigo e colaborador Abdelmalek Sayad, Olívier Christin,
Jacques Bouveresse,Frédéric Lebaron, Jacques Dubois, Bertrand Geay,Julien Duval, Yves
Dezalay, Bryant G. Garth, Anna Boschetti, Ian Hacking e Aaron Victor Cicourel, entre
outros. Após sua morte, em janeiro de 2002, a coleção, que passou a ser dirigida por seu
filho, Jérôme Bourdieu, por Johan Heílbron e YvesWinkin, prosseguiu com a publicação
64 CABÍLIA
CAMPO 65
Bourdieu tinha indubitavelmenteo sentimento de ter feito justiça à especificidadedos d então tais comoaquelarepresentadapelospartidáriosde obras"socialmenteengajadas",ou a
campos,assimcomode ter enfatizadoos invariantesconstitutivosde qualquercampo,ao lutar d:s produtoresmais afinadoscomos públicosampliados,também chamadoscomo"burgueses"
contra o reducionismoeconômicoque vê, em tudo, o interesse de tipo econômicoe a busca ou "comerciais". Recuperava,assim,o universode disputasque os defensoresda "artepela arte",
de maximizaçãodo lucro econômico.Ao mostrar que os interesses,os capitais,as estratégias comoFlaubert,tiveramde enfrentara fim de conseguirimpor seu ponto de vista comoo domi-
e, até mesmo,as formas de luta eram específicosde cada campo, ele permitia efetivamentea nante.Comtal análise,Bourdieudemonstraquea crençana qualidadeformaldas obrasfoigerada
possibilidadede fazer diferenças:"O universo'puro' da ciênciamais 'pura', escreviaele,é um peloprópriocampo artístico,ao longoda trajetóriade disputasentre grupose visõesde mundo
campo social como qualqueroutro, com suas relaçõesde força e seus monopólios,suas lutas distintas.Aohistoricizara gêneseda crençana "autonomiada obrade arte",vendo-acomoresul-
e estratégias,seus interessese suas vantagens,mas no qual todas essas invariantes revestem tado da hegemoniaconquistadapelosdefensoresda arte pura, permite que se reavaliea suposta
formas específicas"(BouRDIEU, 1976,p. 89). Entretanto, o modelo permaneceu insensível universalidadedo paradigmaestéticoformalista,o qualseprojetou,ao longodo séculoXX,como
em relação a outras diferençasque são também cruciais e podem levar a designar,de outro válido,independentementedo tempo e da sociedadeem queas obrasteriam sidoproduzidas.
modo, determinados "campos":o grau de profissionalizaçãodo campo e, em particular, de O campo artístico constitui-se como um espaço estruturado de posições obje~i"~ramente
estabilizaçãodos atores no campo; a relaçãoentre os agentesdo campo e o "público"ao qual definidas,por meio das quais indivíduos,grupos e instituiçõeslutam pelo monopoho da a~-
eles se dirigem ou a quem eles destinam suas produções (obras, discursos, competências, toridade artística, ou seja,pelo direito de definir quem é ou não é artista, controlando entao
etc.); o grau de esoterismo ou exotismo com o qual os agentes do campo podem praticar os critérios de apreciaçãoe legitimaçãodas obras de arte. Comotodos os campos sociais, o
sua atividade, etc. Pode-se falar de "jogo" para designar um "campo secundário" no qual campo artístico é um espaçode forças que se impõe sobre todos os agentes que d~lequerem
a remuneração, a institucionalizaçãoe a profissionalizaçãosão precárias (LAHIRE, 2006). participar. Mas, diferindo dos demais (comoo acadêmico,por exemplo),caract:nza-se_pelo
baixo grau de codificaçãode suas fronteiras; para nele ingressar, os agente~nao preci~a1:1
Referências estarmunidos de diplomasespecíficos,formaçõesescolarespréviasou outros tipos de capitais
BOURDIEU,P. Le champ scientifique.ARSS, n. 2, p. 88-104,1976. formalmente regulamentados. O que está em jogo nesse campo é, justamente, o direito ao
BOURDIEU,P. Quelquespropriétés des champs. ln: Questions de sociologie.Paris: Minuit, 1980. controle de tais fronteiras, ou seja, todos os agentes aí competempor um capital específico:
p. 113-120. o da autoridade artística que lhes permite impor a definição de quem é ou não artista, de
BOURDIEU,P. Le champ littéraire. ARSS, n. 89,p. 3-46, 1991. quemfaz ou não parte desse universo na medida em que suas produçõessão percebidas,ou
LAHIRE,B. La condition littéraíre:la doublevie des écrivains.Paris: La Découverte,2006. não, como propriamente "artísticas".
Valenotar que, para além da definiçãomais geral de um campo de forçasestruturado em
torno de posições em disputa pelo monopólioda autoridade artísti~a, q~e ~ode ser tom_ada
24. CAMPOARTÍSTICO como estruturalmente válida, o campo artístico possui configuraçoesdistmtas que vanam
Ana Paula Símíoni conforme o momento e a sociedade em que se inscreve.No caso da França do século XIX,
a revolução provocada pela imposição do princípio da "arte pura" como o mais legítimo
O conceitode campo artísticocomeçoua ser desenvolvidopor PierreBourdieuem meados implicou a autonomizaçãoplena do campo, isto é, que, doravante, esse passasse a se _carac-
da décadade 1960,tendo comoobjetivodiferenciar-sedas análisesestéticasque dominavamos terizar pelo "princípio econômicoinvertido".Com isso, os julgamentos so~r: ~s qualidades
debatesintelectuaisdo momento.Por um lado,tratava-sede superar as explicaçõessociológicas da obra ocorrem a partir de valores distintos dos econômicos,contra os cntenos do lucro e
caudatáriasdomarxismo(comoas deLukács,Goldmane Hauser)quetendiama reduziras obrasde da aceitaçãodo mercado. Nesse universo afirma-se uma lógicaparticular_por mei~ d~ qual
arte a simples"reflexos"das relaçõessociais,subordinandoos criadoresàs coerçõessociaisde seus os agentesinteressam-sepela defesado" desinteresse"comoum estilo de vida, da c~ia~ao~m
grupossociaise clientela.Por outro,ao ponderara existênciade uma lógicaparticularao campo detrimentoao comércio,da gratuidadeem relaçãoaos rendimentos.Essecampoconstitmassim
artístico,Bourdieunãopretendiasubscreveras teoriasditas"internalistas",as quaispostulamque uma lógica de valorizaçãoprópria, fruto de um desenvolvimentohist_óricode longa dura~ão
as obrassó podemser explicadaspor si mesmas,por meiode seuselementosformais.Paraele,tais no qual as obras de arte foram paulatinamente dissociando-sedo um~erso das mer~a~onas
doutrinastomamcomoevidenteo mito da obra de arte comouma "criação"feitapor um criador triviais. Diferindodessas que são costumeiramenteavaliadaspor sua simplesmatenahdade,
"incriado",aceitandocomofato aquiloque é, na realidade,o produtofinal e mais bem acabado as obras de arte foram sendo consideradasfruto de habilidadesincomensuráveisde um ponto
de um processosociale históricoa ser explicado,a saber,o da autonomizaçãodo campoartístico. de vista exclusivamenteeconômico,por exemplo,pautando-se pela habilidade dos artistas.
Em As regrasda arte, Bourdieudetém-senas transformaçõeslevadasa cabopelo mundo Comoprodutoseminentementesimbólicos,as obrasde arte necessitamde certas condições
literáriofrancêsdo séculoXIX,de sorte a compreendera emergênciade uma nova posiçãoes- parasua execução:a de quesejamfrutodeum atode consagraçao - operado por aiguem' soci·a1me~te
a
tética, da "artepura",exemplarmentepostuladapor GustaveFlaubert.Partindo da análisedo reconhecidocomo capazde efetuarsua transmutação,comoos artistas. Segueque a produçao
romanceA educaçãosentimental,reconstróias posiçõesexistentesno campoliteráriofrancês da obra de arte comouma mercadoriaespecíficadotada de valor singular exigea produçãoda
68 CAMPOCIENTIFICO 69
CAMPO CIENTÍFICO
a seu objetivosem supor a intençãoconscientede fins, nem o domínio expressodas operações ·26.····CAMPO
··············CULTURAL
···············.............................
·.......................................
E~·i;
-p~;t~~t
necessáriaspara alcançá-los,objetivamente'reguladas'e 'regulares'sem ser em nada o produto
da obediênciaa regras e, sendo tudo ~sso,coletivamenteorquestradas sem ser o produto da Maria Arminda do Nascimento Arruda
ação organizadorade um maestro" (SP,88-89).Essa longa citação poderia credenciara ideia
de que Bourdieunão desenvolve,de modo algum, uma sociologiaque atribua às normas um Ateoria dos camposde Pierre Bourdieu,inspirada na ideiadas esferasda açãode Weber,é,
peso importante na explicaçãodas práticas.Tal pressupostoseria errôneo.Bourdieuadmite a claramente,uma resposta às definiçõesde cultura e sociedadeque algumas correntesteórico-
existênciade regras peculiares da atividadecientífica;no entanto, a capacidadedas mesmas metodológicasdas ciências sociais oferecem.É, por assim dizer, a ferramenta por meio da
para suscitar uma orientaçãodas práticas eruditas depende,em seu entender,das disposições qualé possívelacessara totalidade social,compostapor mundos sociaisdistintos.Aopreferir
interiorizadaspelos cientistas.Dito de outra maneira, a capacidadecoercitivae incitativadas a noção de campo em detrimento de conceitoscomo "grupos","populações","organizações"
normas dependeda capacidadedos agentesde percebê-las,de apreciá-lase de implementá-las.E ou "instituições",Bourdieupretende chamar a atençãopara osjogos de interessese lutas que
Bourdieunão deixade sublinharque essaatividadede percepçãoé inseparavelmenteda ordem modelama existênciado mundo social,apresentando-secomouma metáfora espacial-chave
tanto do conhecimentoquanto do reconhecimentoprático. em sua sociologia.Em suas próprias palavras, a sociologiaé uma espéciede topologiasocial
Em outras palavras, em Bourdieu, a explicação da prática pelas normas se encontra preocupadacom a construção de uma teoria do espaçosocial.
estreitamente articulada a uma explicação pelas disposições: pelo fato de que os agentes Deum só golpe,Bourdieurompecomaquelasrepresentaçõesmaistradicionaisda hierarquia
estão "dispostos" por intermédio de uma aprendizagemsocial - é que eles são "sensíveis" ba~;ea<1as
numavisãopiramidalda sociedade,típicasdomaterialismovulgare,igualmente,
às restrições advindas das normas e podem dar-lhes uma resposta de modo "sensato" ou, coma concepçãode que existe"â' sociedade,um todo homogêneo,um conjuntounificado.O
ainda, mais ou menos apropriado. No agir disposicional descrito por Bourdieu, existe conceitode "campo cultural" é também uma reação contra, basicamente,duas tendências-
uma dimensão interpretativa sob a condição, todavia, de ter em mente a ideia de que as uma sociológica,outra não -, que pesquisamos bens culturais:a primeira é representadapor
latitudes de interpretação são circunscritas. Se é o indivíduo que seleciona e identifica certomarxismo que pensa as manifestaçõesculturais como determinaçõesda infraestrutura
as normas ou as regras a fim de interpretar seu sentido e responder-lhes da maneira que econômicada sociedade-,meros epifenômenos,numa operaçãode reducionismoque nega à
ele julga adequada, essa atividade interpretativa não se desenrola, de modo algum, em cultura qualquerautonomia;a segunda,ao contrário,profundamenteformalista,encaraa arte
um vazio social; o campo tem uma história, no qual usos e tradições se sedimentaram, e a cultura como apartadas da realidadesocial,livresdas influênciasmundanas da sociedadee
e ele se construiu progressivamente a partir de um suporte de crenças aparentemente do conjuntode relações(políticas,econômicase sociais)que a forma, e supostamentedotadas
não questionadas que constituem a base do "jogo" da ciência. E, assim, chega-se aqui à de uma pureza absoluta,comopretendemcertas vertentesda semióticae da semiologia.
noção de illusio. Segundo Bourdieu, a realidade social é formada por três campos principais: o campo
Contrariamente à sociologiafuncionalista de Merton, a qual inscreve a competiçãoem político, o econômico e o cultural ou da produção simbólica. Cada um desses campos é
um quadro meritocrático,cujofuncionamento é pouco discutido, em Bourdieutudo parece, compostopor inúmeros outros subcampos,e tanto os camposquanto os subcampos,embora
à primeira vista, objeto de lutas: o acessoao reconhecimento,mas, também, a definiçãodos apresentemuma história e um desenvolvimentoparticulares, agentes einstituições sociais
critérios que presidem à atribuição desse capital simbólico,as fronteiras das especialidades específicos,lógicas de funcionamento peculiares, exibem "homologias estruturais" entre
e das disciplinas, os critérios de uma boa reprodução das experiências, etc. Entretanto, si, isto é, propriedades comuns, "leis gerais" invariáveis ou "mecanismos universais" que
Bourdieuinsiste no fato de que.há sempre, em um espaçoconcorrencial,realidades que não os estruturam. Os campos são atravessadospor relaçõesde força, por formas específicasde
ocasionam debate, o que ele designa por illusio. A filiação ao campo científicoimpõe aos luta que visam acumular os capitais gerados por cada um dos campos e subcampos, sendo
atores o respeitode princípiosgeradoresconstitutivosde uma espéciede axiomáticaprática, que é a propriedade do capital que vai definir a posição dos dominantes e dos dominados e
cuja incorporaçãocondicionaa participação de cada um no jogo da concorrênciacientífica. do exercíciodo poder de uns sobre outros.
As lutas que contribuem para a estruturação do "campo científico" desenvolvem-se,por O conceitode "campocultural" torna visívelas disputas e os conflitosque constituemum
conseguinte, no respeito de normas que escapam aos conflitos de definição:prestar-se ao dos princípios fundamentais da produção cultural. Ainda que Bourdieu admita a existência
jogo da argumentação e da contra-argumentação,submeter-se à crítica, etc. Trata-se,então, dos subcampos,raramente utiliza o termo, preferindo a expressão"campo"para se referir,a
das condiçõessociais que tornam possívelo conhecimentoobjetivo. rigor, àquilo que seriam os subcamposdo campo cultural, como o literário, o da moda, o do
jornalismo, o da pintura, o científico,o religiosoe outros. Como se disse, cada (sub)campo
Referência
é composto por agentes e instituições sociais específicos:o campo literário, por exemplo,é
formado por escritores, editoras, prêmios literários, academiasliterárias, críticos, editores,
BOUR~IEU,P. La spécificité du champ scientifique et les conditions sociales du progres de la rai-
son. Sociologie et Sociétés, v. 7, n. 1, p. 91-118,1975.[Novaed. Le champ scientifique.ARSS, v. 2/3,
professores;o científico,por cientistas, universidades,centros de pesquisa, divulgadores,e
p. 88-103,1976.]
assim sucessivamentepara cada uma das regiõessociais que formam o campo da produção
CAMPO CULTURAL 71
70 CAMPO CIENTÍFICO
simbólica. Os produtores culturais, proprietários de um elevado capital cultural, encon- são as regras da disputa, elaboradase aceitaspor todos os jogadores - é a illusio do campo
tram-se em disputas constantes, procurando manter e aumentar seu capital simbólico,que ou, simplesmente,a crença nas regras que o fundam e o fundamentam. O segundo equívoco
podem ou não ser reconvertidosem capital monetário. Os bens simbólicosem disputa são o é aqueleque vê Bourdieu apenas como um teórico da reprodução. Se, por um lado, de fato
reconhecimento,o prestígio,o status, a autoridadeem determinada área de atuaçãocultural. o campo cultural reproduz a luta e a dominação de classeque lhe são externas, por outro, a
Os agentesreúnem-se em grupos, formam alianças, elegemadversáriospara levar adiante as dinâmicaintensa das lutas intestinas ao campo geram obras culturais (artísticase científicas)
contendas,cujavitória significaconquistara hegemoniado campo,posicionar-see manter-se extremamente críticas, que abalam certezas e podem oferecerperspectivas alternativas ao
comogrupo dominante, o qual, inevitavelmente,sofrerá a concorrênciaconstantedos grupos status quo, ensejando mudanças internas e externas ao campo.
subordinados.Entronizar-se como grupo ou agente hegemônicosignificaadquirir e exercer
o poder de nomeação, de classificação,atribuindo e distribuindo títulos, rótulos oficiais,
batizando, consagrando certos intelectuais e obras em detrimento de outros. 21. CAMPODAALTACOSTURA
······················································
·································································
Aquele(s)que ocupa(m)a posiçãodominante goza(m)do direito de definir quem é o me- JoséCarlosG. Durand
lhor ou o pior escritor,qual obra é grande ou medíocre, quais músicas devemser ouvidas ou
esquecidas,qual teoria apresenta maior poder explicativo,quais livros devemser lidos - no Tomandoa alta costura como caso particular de bens de luxo, e examinando-acomoum
limite,definir o que é literatura, o que é arte e o que é ciência.O campocultural funcionacomo campo,Bourdieureconstituia históriadas principaismaisons, atentoà sua dinâmicaentre 1945
um sistema hierárquico de classificaçõesque vai do mais ao menos legítimo,constituindo-se e 1975,que foi um período-chavede mudanças.É de 1975a publicação,comYvetteDelsaut,de
numa autêntica arena de lutas por reconhecimento,pelo direito de instituir o que é e o que "Lecouturier et sa griffe: contribution à une théorie de la magie': longoartigo nutrido de
não é culturalmente legítimo, legitimando,por conseguinte, a própria posição dominante. dossiêsdosprincipaiscostureiros,montadosa partir de entrevistase matériasde imprensageral
Autônomos,os campos não se encontram isolados, mas comunicam-seentre si a partir de e de moda.Anode fundação,origemsocialdo fundador,localizaçãona geografiasocialde Paris,
suas áreas de contato, ou seja, existem entre os campos zonas de intersecção ocupadas por estilode decoraçãoda loja (eventualmenteda residênciado costureiro),visual de apresentação
indivíduos e instituições que exercemuma dupla função, agentes duplos que transitam por dasvendedoras,sãoos elementosqueos autorescombinampara mostrar as afinidadesde cada
camposdistintos e realizam as mediaçõese trocas necessáriasentre lógicassociaisdiferentes. um com o público a que serve. Assim como em outros campos, a dipâmica da alta costura
Podemos citar, como ilustração, o caso dos editores, que agem, simultaneamente, no acionauma duplade opostos,no casoa ortodoxiados dominantes,os n'omesconsagrados,que
campo econômicoe no literário; situação semelhante é a do marchand, que serve de elo de insistem em autenticidade,exclusividadee refinamento,e em seus componentesespecíficos:
ligaçãoentre o campo econômicoe o da pintura. Fica claro, assim, que o campo cultural não sobriedade,elegância,equilJbrioe harmonia.E, no polooposto,a heresiados não confirmados,
está livre das influênciase demandas externas oriundas dos demais;contudo,elassão sempre queglorificaa audácia,a liberdadede criação,a juventudee a fantasia.
retraduzidas de acordo com suas regras e princípios organizativos internos, convertendo Quanto à clientela,os dominantes servem às mulheres em "idade canônica" (isto é, ma-
tais demandas e influênciasem problemas,questões,respostas e linguagenssimbólicos.Tal duras) da alta burguesia tradicional e seu discurso respeita o orçamento farto, a discriçãoe
porosidadedeixa evidenteque há uma homologiaentre a estrutura social mais abrangente e o classicismode gosto implícitosem sua cultura de classe.O polo dominante da alta costura
os campos sociais,envolvendo,dessa maneira, o campo cultural na reproduçãodas relações fornece marcas de "classe",marcas que são de rigueur nas cerimônias exclusivasdo culto
e dominação de classe:as diferentesclassese frações de classeestão empenhadas numa luta que a classeburguesa presta a si própria, por meio da celebraçãode sua distinção, sendo os
simbólica para impor a definição de mundo social que mais convém aos seus interesses, costureiros,pois, produtores de emblemasde classe (BouRDIEU; DELSAUT, 1975,p. 29).
e tal disputa pode ser conduzida diretamente, nos conflitos simbólicos da vida cotidiana, Já os costureiros não confirmadoslutam por conquistar outro segmento - a nova bur-
ou indiretamente, por procuração, a partir da luta travada pelos especialistasda produção guesia - representada por mulheres profissionaisliberais ou esposas de executivose altos
simbólica,proprietários do monopólioda violênciasimbólicalegítima. funcionários.Esbeltas,bronzeadas,de corpo cultivado,elasse vestemnão mais para ocasiões
A definiçãode campo cultural de Bourdieu,infelizmente,sofreuleituras equivocadaspor solenes (extraordinárias),mas para o cotidiano, dentro e fora de casa. A elas se agregam as
parte de seus críticos.O primeiro desses equívocosdiz respeito a certo relativismoatribuído jovens da burguesia tradicional, vistas como portadoras de um gosto, de um estilo de vida
a Bourdieu quanto à produção cultural: fruto das disputas pelo poder simbólico, é como e talvez mesmo de um alinhamento político distante ou oposto ao de sua classe de origem,
se as obras culturais fossem desprovidas de virtudes internas, formais, e sua classificação e de orçamento curto. Exemplo:a mulher para quem Courregesdiz costurar é alta, jovem,
dependesseapenas da boa vontade do grupo hegemônicono interior do campo. Na verdade, bronzeada, cabelocurto, limpa, sorridente, radiante (BouRDIEU; DELSAUT, 1975,p. 30).
o que Bourdieunos mostra é que os campos impõem formas específicasde luta; assim, no O queestá emjogona oposiçãoquepolarizao campoda alta costuraé a emergênciade novos
caso do campo cultural, os querelantes, para validar ou invalidar esta ou aquela obra, se signósde distinção.Esportesde elite,turismo em locaisexóticos,residênciassecundárias,dietas
utilizam, comosuas armas, de critériosrigorososde interpretação,avaliaçãoe validação.Por e exercíciosfísicossão,entre outros,sinaisde um aggiornamento do cerimonialtradicionalda
isso,não é qualquerobra, autor ou teoria que recebeo aval dos participantes do campo.Essas distinçãoburguesa,instilando intolerânciaem relaçãoao cerimonialantigo.A novaburguesia
CAMPO DO PODER 75
74 CAMPO DA ALTACOSTURA
definir o campo do poder como o espaçoem que se estabeleceo valor relativodos diferentes dominantesdo ponto de vista cultural e dominadaseconomicamente.Nesseespaço,a nobreza
tipos de capitaisque proporcionamum poder sobre o funcionamentodos diferentescampos. do Estado ocupa uma posição intermediária.
O desafiop~culiara esseespaçode lutas é a imposiçãodo princípiolegítimode dominação. Trabalhosrecentesmostramquea desvinculação dopoderpúblicoemrelaçãoà esferaprodutiva
Desdeentão,asestratégiasdereprodução- implementadaspelosdominantesdosdiversoscampos- teveo efeitode levarà aproximaçãoentre o patronatodo Estadoe o patronatodo setorprivado:
comportamuma dimensãosimbólicaquevisalegitimara espéciede capitalem que repousaseu o primeiroperdeu a intensídadecomotal, mas reconverteu-seaos negóciosprivados,enquanto
poder.Eisa razãopelaquala coexistênciaentrepoderestemporaise espirituais,sublinhadajá por o segundoincrementousua formaçãoe ganhou em prestígio.Esseduplomovimentoproduzas
Marxe Engelsem L'Idéologie allemande (MARx;ENGELS, 1976,p. 45)permaneceum invariante desregulamentações, as privatizaçõese o humor ideológicodos anos 1980,além de diminuir os
estruturaldo campodo poder,assimcomode todosos campos.O poder tem necessidadede ser lucrossimbólicosque as fraçõesintelectuaispodiamtirar da exploraçãode seusconhecimentos.
legitimado,de setornar irreconhecívelenquantoarbitráriopara seperpetuar.Existemintelectuais Elasdeixamde ter o monopólioabsolutonessedomínioe sãoafetadasfortementepelorecorrente
(em sentidoamplo)queparticipamassimdos"circuitosde legitimação"da classedominante,cuja questionamentoda cultura clássica.O relativodeclíniodessascategoriasnem por issosignificao
eficáciaserá tanto maior quantomaior for a extensãodessescircuitos:se a proximidadereal ou desaparecimentodo Estado;aliás,os indivíduosmaisvinculadosao públicoé que se encontram
potencialdos membrosda classedominantefosseconhecidapor todos,as formasde legitimação sempreem posiçãode estabelecero vinculoentrepatronato,administraçãoe dirigentespolíticos.
cruzadaa queelesse submetemempúblicoperderiamuma grandeparte da sua eficácia.E se esses A estrutura do campo do poder, na França, na época contemporânea,pode ser analisada
circuitosdelegitimaçãodeixamde aparecerdemaneiratãonítidaé,emparte,porqueosagentesque a partir de quatro critérios principais: a integração no campo econômico; a antiguidade
povoamo campodopoderserevelamfrequentementemultiposicionais. Assim,corre-seo riscode da filiação à burguesia; a proximidade ao Estado; e a visibilidade pública. Notar-se-á que
atribuirsuastomadasde posiçãoa posiçõesàs quaiselassãopoucotributárias(BOLTANSKI, 1973). princípios de divisão comparáveis (pelo menos, os dois citados em primeiro lugar) se re-
Em relação à coabitaçãopraticamente constante entre poderes temporais e espirituais, velam operatórios em outros países. Aliás, eles são bastante semelhantes aos que Bourdieu
a estrutura do campo do poder não é fixa no tempo. Trata-se de um produto do aprofunda- colocouem evidência nos anos 1980.A estrutura do campo do poder resulta sempre deste
mento da divisãodo trabalho social e da emergênciade uma pluralidade de campos sociais. duplo processo: por um lado, de diferenciaçãoe, por outro, de estratificação.No momento
Em seu curso, Sur l'État, Bourdieumostra que o campo do poder está igualme~tevinculado em que o capital econômico se impôs como princípio dominante de classificação,a posse
ao Estado e, ao mesmo tempo, é distinto dele: preexistindo ao Estado, o campo do poder (ou não) de um poder sobre os meios de produção cria a separação entre as elites, cuja
não deixa de enfrentar em seu âmago o controle do Estado como um de seus desafiosprin- hierarquização está sempre, por sua vez, estreitamente vinculada àantiguidade na classe.
cipais. Com efeito,o Estado apropriou-seprogressivamentedo monopólio do uso legítimo Esta permite evitar o recurso a longasestratégias de reproduçãona transmissão dos poderes
da violênciafísica e simbólica;portanto, possui a capacidade de tomar medidas suscetíveis e oferece,com menor dispêndio, uma parte não desprezíveldo capital simbólico familiar.
de modificar o valor relativodas diferentesespéciesde capital. Esse metacapital constitui o
objetode uma concorrênciano cerne dessemetacampo, que é o campo do poder. Para expli- Referências
cá-lo,Bourdieudescreveo longoprocesso que, desde o século XII até a RevoluçãoFrancesa, MARX,K.; ENGELS,F. L'Idéologie allemande. Paris: Sociales,1976.
assistiu ao confronto entre nobreza armada e nobreza togada, entre o rei e o Parlamento. O BOLTANSKI, L. L'Espacepositionnel:multiplicité des positions institutionnelles et habitus de classe.
campo do poder tira sua dinâmica interna da oposiçãoentre dois modos de reprodução:por Revue Française de Sociologie, p. 3-26,jan./mars 1973.
um lado, a reproduçãohereditária e, por outro, a reproduçãoburocrática.O desenvolvimento DENORD,F.; LAGNEAU-YMONET, P.; TRINE, S. Le champ du pouvoir en France. ARSS, n. 190,
da instrução e o aumento do número de assalariados da função pública, cuja autoridade se dez. 2011.
baseia na competência, põem em causa a hereditariedade assente nos laços de sangue. A HJELLBREKKE, J.; LE ROUX,B.;KORSNES,O.;LEBARON,F.;ROSENLUND,L.; ROUANET,H. Toe
autonomizaçãode um campo buroáático (o Estado) e a constituição correlata dos "grands Norwegian Field of Power Anno 2000. European Societies, n. 2, p. 245-273,2007.
corps" desfazem,em parte, a contradição entre esses dois modos de reprodução.Uma nova
nobrezase constituiem nome de suas competênciasescolaresque são garantidaspeloEstado.
Bourdieudedicounumerosostrabalhos ao estudo das Grandes Écoles - bastante seletivas 29. CAMPOECONÔMICO
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do ponto de vista social- que alimentamos "grandscorps"do Estado.O campodessas"écoles" Frédéric Lebaron
e o campo do poder revelamum funcionamentohomólogo:em seu livro,La noblesse d'État,
ele mostra que ambos têm uma estrutura quiasmática. A distribuição segundo a desigual Antes de se servir da locução"campo econômico",Bourdieu- ao trabalhar, no final dos
dotação em capital econômicoé cruzada com a distribuição segundo o capital cultural pos- anos 1950,sobreas estruturas econômicase sociaisda Argélia- utilizade preferênciaos termos
suído que, por sua vez, hierarquiza os campos segundo uma ordem inversa. Desse modo, o "sistemà' ou "cosmos"econômico,designandocomissoum universorelativamente"fechado",
campo do poder seria organizadopela oposiçãoentre posiçõesdominantes do ponto de vista regido por uma "lei" própria ("nomos").O cosmos"capitalista"teria, mais particularmente,
econômicoou temporal, mas dominadas culturalmente, por um lado e, por outro, posições uma tendênciaà expansãoe esta teria o efeitode destruir as estruturas sociais"tradicionais",
vez, se impõe. A illusio econômicapode ser definida como a crença,mais ou menos exposta
mesmo que fossem altamente sofisticadase milenares, tais como as da Cabília.Essa visão
claramente,na necessidadede maximizar os lucros monetários. A teoria neoclássicaé falsa
("expansionista"e "destrutiva")da ordem econômicacapitalistasubentende sua concepção
ao atribuir comportamentosque os atoreseconômicossão incapazesde ter: a "racionalidade"
da "inserção social da economià' ("embeddedness").Ela está em coerênciacom sua análise
desses atores está mais próxima do "razoável"que do estrito cálculoracional, enquanto sua
sociopolítica,desenvolvidanos anos 1990,da ameaça que a dominaçãoda ordem econômica
prática está baseada em uni senso prático, senso de orientação impreciso.Contudo, a "ver-
faz pairar sobre os campos mais autônomos (ciência,arte ...) e, até mesmo, sobre universos
dade" da teoria neoclássicase mantém pelo fato de retraduzir, de forma bastante fidedigna
commenor autonomia,tais comoa funçãopúblicae o jornalismo.No entanto,a imposiçãodo
em seu princípio, sob uma forma escolástica,a illusio particular do campo econômico.Ela
cos~os capitalistatornou-sepossível,para Bourdieu,na Argélia,assim como na globalização
a "consolida","separando"a racionalidade"econômicà'de qualquer outra lógicacom a qual
neoliberalcontemporânea,pelaviolênciasociale políticada colonização.Alémdisso,as análises
ela está sempre intimamente ligada. Deste modo, no ponto em que a teoria neoclássicafor-
da eco~omiade mercadonunca serão dissociadaspor Bourdieude sua sociologiado Estado,
mula a hipótese de um ator consciente,transparente a si próprio em relaçãoa seus objetivos,
comoe demonstradooportunamentepelapublicaçãode seu curso Sur l'État,no iníciode 2012.
preferênciase escolhas,ela radicalizauma visão implícitaque subentendea ação dos agentes
A existência do campo econômicoé o resultado de um processo de autonomização que
econômicose tende, nos universos"maisracionalizados",a aproximar-sedesseideal-tiposem
~evoua :ógicaeconômicaa definir-sesob uma forma tautológica:"amigos,amigos,negócios
nunca, todavia, ser capaz de alcançá-lo.Elaparticipa assim do trabalho geralde submissão
a parte , como todos os outros campos, segundo as análises desenvolvidas em seu livro
da ordem socialàs lógicasdominantesdo universoeconômico.Um dos resultadosda pesquisa
Raison_spratiques (1994).~sse processo, próximo do "desencastramento" analisado por
sobreo mercadoimobiliário,levadaa efeitonos anos 1980,consistiuem colocarem evidência
Polany1(1983),tornou autonoma uma ordem da realidade social - a ordem econômica-,
o papel decisivoda política e das lutas políticas no processo de construção de um mercado.
por ter tornado autônoma uma illusio, uma crença particular no valor do jogo, uma
Em vez de se contentar em regulamentar o mercado, o Estado o constrói, organiza e define
forma de libido, de energia específicaque impele os atores econômicos,sejam eles quais
em sua estrutura e em suas funções.Procedendodeste modo, ele modifica,de maneira mais
forem, a maximizar seu ganho individual. A extensão dessa illusio é o produto de um
ou menos irreversível,o processode desenvolvimentoeconômico.Aoreavaliaros fatorespolí-
longo processo conflitante no qual o Estado desempenhou um papel decisivo,mediante a
ticos na construçãosocialda economia,Bourdieuquestionaa representação- daí em diante,
unificaçãomonetária, a edificaçãode um monopólio fiscal, em suma, graças à constituição
muito dominante -, segundo a qual o processo de "mundialização'\ tal como se desenvolve
de um espaço relativamente estabilizado de trocas e de circulação monetária (SSE,24-26).
hoje, seria inelutávele natural. A sociologiada economiadesfataliza a ordem econômicae,
1:ªs. a ~dade mais profundado campoeconômicoestávinculadaao fatode que os agentes
ao mesmo tempo, colocaem evidênciasua lentidão e suas forças de inércia que têm origem
econoID1cos Jogamo mesmojogo,lutampelomesmoobjetivo,etc.O ethoseconômico"racional"
nos habitus econômicose nos sistemasde crenças que lhes são inerentes.
(a lei do campo econômico)tevetendênciaa difundir-see a generalizar-se,mas de acordocom
dete~inadas condiçõeseconômicasparticulares,como é demonstradoa partir do exemploda
Cabilia(A60,83-116).Duranteessemesmoprocessohistórico,instalam-seasinstituiçõese aspráticas Referência
POLANYI,K.La grande transformation:aux originespolitiques et économiquesde notre temps.
associadasà ordemcapitalista"moderna":o empréstimoajuros,o sistemafinanceiroe astécnicas
bancárias,a contabilidade,a oposiçãotrabalho/lazersob sua forma"moderna",o assalariado,etc. Paris: Gallimard, 1983.
Paralelamente,desenvolvem-seas predisposiçõesao cálculo,à antecipação,ao acúmulo,à
poupança,etc.,que estãoassociadasao funcionamento"normal"desseuniversoe pressupõem 30. CAMPO
ESPORTIVO
um mínimo de capitais(econômico,cultural,social).A existênciade universosantieconômicos- ·······················································································································
WanderleyMarchiJúnior
ou seja,de espaçosem que a busca de capitalsimbólicorepousa em um recalqueda economia
monetária (campoartístico,campo científico,campo burocrático...) - mostra até que ponto a
Pierre Bourdieupreconizavauma forma particular de entender o esporte moderno. Para
illusioeconômicaé apenasum caso particular de investimentoem um jogo social.
ele, as manifestações que compõem o fenômeno esportivo ocupam um espaço de práticas
O campo econômicoé um universode lutas incessantes.Atémesmono interior do campo
sociais denominado campo, no qual se atribuem posiçõescompatíveiscom o capital social,
das empresas,as lutas de concorrênciatêm uma dimensãosimbólica:o dominanteimpõe sua
econômico ou cultural de cada componente. No interior desse espaço, existem formas de
definiçãodo jogo,suas escolhas,sua concepçãodo produto, etc. Todasas estratégiasdo domi-
disputas, lutas e concorrência na busca pela hegemonia de determinadas práticas, além
nante têm em vista reforçarsua posição,apoiando-seem todos os recursospossíveis,incluindo
da distinção social das pessoas envolvidas, conforme o seu potencial de poder simbólico.
todosos recursospropriamentesimbólicos(criaçãode marcas,etc.).Oprópriocampopatronalé
Para o esporte moderno, Bourdieu reserva a caracterizaçãode uma prática, introjetada
atravessadopor lutasentre detentoresde formasdiferentesde capital em particular,de capitais
na formação da sociedade, que respeita os contornos da lógica mercantil estabelecidano
escolares- associadasa trajetóriasdiferenciadase a disposiçõesdiferentesquelhessãoinerentes.
universo das relaçõeshumanas. Nessesentido, defineque o principal responsávelpelomovi-
A teoria econômica neoclássica é uma formalização, uma racionalização erudita da
mento dessa engrenagemé a relaçãoconstruída entre a oferta e a demanda por determinadas
illusio do campo econômico,tanto mais forte em uma sociedadeem que essa illusio,por sua
CAMPO ESPORTIVO 79
78 CAMPO ECONÔMICO
práticas culturais. O conjunto dessas relações pode ser comparado, analogicamente, aos estudos de um "subespaço"no interior de um espaço,de um subcampo em um campo ou de
pressupostose leis que regem o mercado de produtos e consumidores.Pode-seincluir nessa uma modalidade no universo dos esportes (~BS;82-121;QSp,127-135;CDp,208-213).
análise o estabelecimentode processosde concorrêncianas configuraçõesou campossociais. Há,na análisedo sociólogofrancês,um pressupostode queo campoesportivocontribuipara
Dessemodo, o esporte é tido como um produto que respeita e reflete as estratégiasmer- produzira necessidadedeseusprópriosprodutos;entretanto,elanãodesconsidera alógicadaprática
cadológicasque a sociedademoderna define por conta das inúmeras formas de intervenção esportivainscritapela unidadé de disposiçõespertinentesa uma fraçãode classe.Assimsendo,
e inserção social.A dinâmica instalada nesse campo goza de determinada autonomia,pois, percebemosque no campo esportivosão estabelecidasrelaçõesestruturantesentre disposições
segundoo autor,cada campo constróisuas própriasleis funcionais,sua cronologiaespecíficae sociaise a composiçãoda ofertae demandade um esporte.Acrescenta-sea essecontexto,como .
seus objetosde disputa, que refletemposiçõessociaise estilosde vida. Bourdieuentendeque, destacadoinicialmente,a efetivaçãodas transformaçõesocorridasnas modalidadesno decorrer
para discutirmos o desenvolvimentodas modalidades esportivas,temos que tê-las inseridas da suahistória.Bourdieuanalisaessemote,considerando:"[ ...] queo princípiodastransformações
no processo de mercantilização,o qual determina as estruturas constituintes da sociedade das práticase dos consumosesportivosdeveser buscadona relaçãoentre as transformaçõesda
e as relaçõesque são estabelecidasno interior dos campos. ofertae as transformaçõesda demanda:as transformaçõesda oferta(invençãoou importaçãode
Assim sendo, o surgimento, as transformações e a evoluçãodos esportes são estudados esportesou de equipamentosnovos,reinterpretaçãodos esportesou jogosantigos,etc.)são en-
a partir de uma proposta de leitura da história estrutural relativamenteautônoma das mo- gendradasnas lutasde concorrênciapelaimposiçãoda práticaesportivalegítimae pelaconquista
dalidades.A análise da constituição do campo esportivo deve estar associada,diretamente, da clientelados praticantescomuns(proselitismoesportivo),lutas entre diferentesesportese, no
ao espaçosocial em que as manifestaçõesesportivas construíram suas estruturas. Sobre as interiorde cadaesporte,entre as diferentesescolasou tradições(porexemplo,esquide pista,fora
transições e transformações do esporte, Bourdieu é incisivo:"Pareceindiscutívelque a pas- da pista,de fundo,etc.),lutasentreas diferentescategoriasde agentesengajadosnestaconcorrência
sagemdojogo ao esportepropriamentedito tenha se realizadonas grandes escolasreservadas (esportistasde altonível,treinadores,professoresde ginástica,fabricantede equipamentos,etc.);as
às "elites" da sociedadeburguesa, nas public schools inglesas, onde os filhos das famílias transformaçõesda demandasãouma dimensãoda transformaçãodosestilosdevidae obedecem,
da aristocraciaou da grande burguesia retomaram algunsjogos populares,isto é, vulgares, portanto,às leisgeraisdestatransformação"(QSp,152).
impondo-lhesuma mudança de significadoe de função muito parecida àquela que o campo O campo esportivo-comouma noção que permite variadas perspectivasde análise deve
da música erudita impôs às danças populares, bourrées,gavotase sarabandas, para fazê-las ser contextualizado em relação a outros conceitos geradores, tais coi;nohabitus, campo e
assumir formas eruditas como a suíte" (QSp,139,grifos do original). capital, além de considerar que o autor trabalhou essa definição coi:nas perspectivas do
Objetivamente, podemosdizerqueBourdieuadmitea constituiçãodocampoesportivoa partir esporte moderno e que, talvez, a contemporaneidadedo objeto, alocada, por exemplo,nas
da evolução,ruptura e transformaçãodos antigosjogospopularesem esportesmodernos,estes questões da globalização,da mundialização das práticas culturais e da inexorávelinserção
detentoresde especificidadesmercantise convergentespara um modeloestrutural de sociedade socioeconômicados legadose megaeventosesportivosem dimensõesplanetárias tenha dado
de consumo.Entretanto,esseprocessode transiçãonão é o únicoexistenteno estabelecimento das outras possíveisdimensõespara repensarmos,senão a definição,pelo menos o conjunto dos
manifestaçõesesportivas.Houvealgumasmodalidadesqueforaminventadassema necessidadede contornos e de relaçõessociais estabelecidasno campo esportivo.
respeitarum processoevolutivoda formaprimáriado jogopopularou passatempoaristocrático.
Os esportes modernos, sejam eles invenção ou manifestação evolutiva de jogos popu- 31. CAMPOFILOSÓFICO
lares, segundo Bourdieu, são práticas institucionais construídas para agentes sociais com ·······················································································································
Louis Pinto
variado e distintivo potencialde consumo, o qual é manifestado pelas demandas no interior
do campo. Nesse contexto, a complexidadedo fenômeno esportivo passa a ser regido pelas
franceses,PierreBourdieuseguiuum cursusuniversitário
À semelhançade outrossociólogos
relaçõespróprias da lógicado mercado nas quais os esportes são conduzidosao processode
defilosofia(ÉcoleNormale Supérieure,agrégation) quelheforneceuumagrandefamiliaridadecom
espetacularizaçãoe mercantilização.
autoresclássicos,tais comoPlatão,Descartes,Pascal,Spinoza,Leibniz,Hume,Kante Hegel.Para
Para entender essa dinâmica e lógica do campo esportivo, Bourdieu afirma que é ne-
os aprendizesfilósofosde sua geração,o espaçodasproblemáticasestavaestruturadopelaoposição
cessário o reconhecimento da posição que determinada modalidade ocupa no espaço dos
entre o polo da fenomenologia(Husserl,Heidegger,Sartre,Merleau-Ponty)e o da epistemologia
esportes.Esse espaço,ou campo, é identificadopor um conjunto de indicadores,tais como:a
francesa (Bachelard,Canguilhem)- oposiçãoque permaneceuimportante em seus trabalhos
relaçãodos praticantes e determinadas modalidadesconformesua posiçãoou extrato social;
de sociólogomedianteo binômioobjetivismo-sµbjetivismo. Maistarde, os autoresanglo-saxões
as diferentes representatividades federativas; o número de praticantes e seus respectivos
contemporâneostomaramparte crescenteem suareflexão(especialmente, Wittgensteine Austin).
capitais;as característicaspolítico-sociaisdos dirigentes; o tipo de relaçãocom o corpo que
Apesar de não ter construído uma teoria do campo filosófico como tal, Pierre Bour-
determinados esportes exigem (de contato ou de interposição com bola). O passo seguinte
dieu forneceu numerosas análises tanto conceituais(sobre o campo, as disciplinas)quanto
é relacionar no campo esportivoa manifestação do seu espaço social,representado em seus
concretas.Osfilósofossãoindivíduosqueocupamasposiçõesinscritasem determinadoestadodo
elementosde distinção e "gostosde classe".Para tanto, o autor considera a possibilidadede
CAMPO FILOSÓFICO 81
80 C.AMPOESPORTIVO
campo:dotadosdedesafiosespecíficos, visamimporuma definiçãolegítimada filosofiaajustadaao Outradescriçãodo campofilosóficofoiesboçadapor Bourdieuno seulivrosobreHeidegger.
tipo de capital(científico,
literário,religioso,etc.)que elesdetêm.Apóso séculoXIX,a instituição Umdosobjetivosdessefilósofoconsistiuemsubverterashierarquias,impondouma novaformade
universitáriapareceter conseguidomonopolizar,não só a formaçãodos filósofos,o percursode filosofar:eranecessárioarrancara filosofiaàs ciênciassociais,radicalizandocontraessasciênciasa
suascarreiras,mastambéma definiçãodosprogramas,a listados autorescanônicos,o conteúdoe críticaque elaspodiamfazerdaphilosophiaperennise,maisprecisamente,inscrevendoo tempo
a formadosexercíciosescolares(dissertação,tese).Dizerquea filosofiafuncionacomoum campo no âmagodo Ser.Heideggersalvavaa filosofia,medianteessesaltoparadoxal,do relativismohis-
significaque ela tem a garantiade certa autonomia,a qual supõe a delimitaçãode fronteiras,a toricista,assegurando-lhea preeminênciana ordemdo pensamentofundamental,dopensamento
ruptura comos interessesexteriores,a constituiçãode desafiosinternos,a existênciade um elenco dofundamento("ontologia-fundamental"). Aoreinterpretara fenomenologia, Heideggerdesfazia
de profissionaisdedicadosao tratamentode objetospróprios.O valorfilosóficode um problema 0
vínculo com o racionalismo cartesiano,
do qual Husserlera herdeiro,e questionava diretamente
ou de um autor é aquiloque é reconhecidopelosprofissionaispossuidoresdos saberesdistintos a hegemoniado neokantismo,outra correnteracionalistaque tendia a reduzir a filosofiaa uma
do senso comum (uma filosofiado senso comumnão é o senso comum).Mas, essa autonomia "teoriado conhecimento"e da cultura.A razão,o espaçoe o tempo"objetivos", o sujeitoe o objeto
é fundamentalmenteambígua:por um lado,ela permite a formaçãode um domínioseparado, da tradiçãofilosóficaestavamdesvalorizadosem benefíciode uma experiênciamais "originárià':
voltadoexpressamentepara objetosespecíficos.E, por outro,elapode ser menosreal queformal: a do "estar-no-mundo",da finitude,da angústia,etc. Mas o sucessode Heideggernão pode ser
o estatutofilosóficodo discursopode ser tributárioapenasdo que Bourdieudesignacomouma compreendidounicamenteno campofilosófico:no cernedeste,o pensadorreproduzum sistema
"retóricado corte falso",recurso destinado a dissimular a reinscriçãode conteúdosprofanos de oposiçõeshomólogoàqueleque está presenteentre os pensadoresalemães"revolucionários-
(ideológicos)no campofilosóficosob as aparênciasde qualidadefilosófica. conservadores"da época - Spengler,Moellervan den Bruck,Jünger -, que refutavamtanto o
Espaço diferenciado, o campo filosóficoé um lugar de lutas entre profissionais. A se- conservadorismotradicionalistaquanto o pensamentoprogressista.Bourdieuesforça-sepor
melhança do que ocorre em qualquer campo, podem-se analisar hierarquias, inversão de mostrar o caráteressencialmenteequivocadodo discursoheideggerianoconstruídoa partir de
hierarquias, estratégias intelectuais (combinadascom estratégias institucionais, editoriais, "significaçõessuspeitas"que podem ser apreendidasem um registropolíticoordinário (c~tica
políticas,etc.).Em sua tentativapara "reconstruir o espaçodos possíveis"no campo filosófico das massas,do socialismo,do intelectualismo,dosjudeus)e, simultaneamente,em um registro
dos anos 1950,Pierre Bourdieu refere-sea uma clivagemobservadapelos contemporâneos: propriamentefilosófico(o ser contra o ente,a ontologiacontra o naturalismo).Heideggerlevaa
por um lado, Jean-PaulSartre, "intelectual total" que ocupavauma posiçãodominante, mas seuápicecertasvirtualidadesdo discursofilosóficoque,graçasaosmeiosda" eufemização",pode
ambígua (consideradademasiadomundana) e MauriceMerleau-Ponty,propenso "a conceber dizeras coisasdizendoque não as diz.Dessemodo,tirando partido das raízesdo termo "Sorge",
a fenomenologiacomouma ciênciarigorosa"aberta às ciênciashumanas. E, por outro, "uma erigidoem conceitoontológico(a"Apreensão" comodimensãofundamentaldoDa-sein,estar-aí),
história da filosofiamuito estreitamenteligada à história das ciências","uma epistemologia a críticafilosóficada assistência(Fürsorge),
do "alguém",da "tagarelagem"- termosquetêm como
e uma história das ciênciasrepresentadaspor autores,tais como GastonBachelard,Georges antagônicosa existência-autêntica(Eigentlichkeit)e a resolução(Entschluss)diante d~ morte
Canguilheme AlexandreKoyré".Essa clivagemnão deveser autonomizada,mas relacionada assumida- permitetransfigurar,em uma formaelevadae inatacável,um velhotema do discurso
às condiçõessociaisde produção das hierarquias filosóficas:os lugaresmais prestigiosossão conservador,a críticapolíticada segurançasocial(Sozialfürsorge) e do bem-estar.
a "khâgne" e a ÉcoleNormaleSupérieure,que contribuempara a integraçãológicae ética de A atençãoatribuídaàs palavrasmostra comoo corteentre abordagemexternae abordagem
uma "nobreza escolar",inculcando um senso da proeminência ou da profundidade através interna é inapropriada à sociologiada filosofiaque deve aplicar-se a descrevero funciona-
do culto de pensadoresproféticos(Heidegger)e um desdém pelos objetostriviais, empíricos, mento do campo filosóficoe, ao mesmo tempo, a considerar sua autonomia sem deixar de
escolaresou simplesmenteeruditos. Destemodo, a "improvisaçãoretórica" do aprendiz e as estar continuamente em jogo através dos compromissos com forças exteriores ao campo,
"exibiçõesteatralizadas da improvisaçãofilosófica"do mestre são instrumentos de apren- além das importações de temas e de ideias.
dizagem, graças aos quais são adquiridos um senso da posição no espaço intelectual, uma
doxa e um espaçode assuntos e de maneiras de pensar que evitem a transgressão e sejam
32. CAMPOINTELECTUAL
a garantia de elevadasambições.Toda a lógica do campo transformava o polo racionalista ·······················································································································
ChristopheCharle
da história das ciênciasem uma região dominada, votada à "submissãoao modelo filosófico
dominante".Apesardas aparências,a referênciaà ciêncianos anos 1960(Althusser,Foucault)
não assinala, segundo Bourdieu, uma ruptura com essa dominação: tal postura liberta os Bourdieuelaborouo conceitode campointelectual- noçãoquevai desempenharum papel
filósofosdas condicionantesda herança acadêmica e metafísica sem impor-lhes uma con- cadavez mais importante em seu método de pesquisae em seus trabalhos da maturidade - a
versão total, tampouco uma renúncia às vantagens do aristocratismo filosófico.Eis o que é partir de 1966, com o artigo "Champ intellectuel et projet créateur" e, depois, em 1971,
testemun,hadopelo "efeito-logià'que consiste em dar as aparências da ciência a uma nova "Champ du pouvoir,champ intellectuelet habitus de classe".Esses dois artigos, focalizados
disciplina("arqueologia","gramatologia")constituídacom o objetivode contornar as ciências na sociologiado campoliterário - cujainsuficiênciafoi criticada,mais tarde, por Bourdieu-,
sociais e remetê-lasàs zonas inferiores da empiria. foram completadose corrigidospor suas duas importantes contribuiçõessobreoutros espaços
CAMPO INTELECTUAL 83
82 CAMPO FILOSÓFICO
simbólicos,o campo religiosoe o campo artístico, permitindo generalizar essasproposições subordinaçãoe renunciam a defendersua autonomiaestéticacontra as injunçõesdo mercado.
ao campointelectualglobal:"Uneinterprétation de la théorie de Ia religionselonMaxWeber" Mas a exaltaçãoda literatura pura e artística, em Flaubert,não se limita à deploraçãode uma
e "Le marché des biens symboliques". ordem simbólica caduca (e, em parte, mítica, uma vez que o antigo regime literário estava
Comesseconceito,trata-sede rompercomuma sociologiaque estabeleceuma relaçãodireta submetidoa outras formas de restrições,como ficou demonstradopelos trabalhos de Alain
- como faziaa sociologiada literatura marxista na época (GyõrgyLukàcs,LucienGoldmann) Viala,DanielRocheou Robertbarnton sobreos séculosXVIIe XVIII).Seo autor de Madame
ou o funcionalismo- entre interesse de classe,por um lado e, por outro, orientaçõesideo- Bovaryrejeitao compromissoou o profetismoda geraçãoromântica,esfaceladapelofracassoda
lógicas e intelectuais. Essa abordagem questiona igualmente a tradição letrada, idealista e Revoluçãode 1848,e, em suas obrasmais célebres,trabalha a denúnciadas ilusõesromânticas,
intelectualista, dominante desde sempre no estudo desses temas: ela limita a interpretação elefixatambém a seu empreendimentouma ambiçãocríticae irônicada literaturade consumo
dos conflitosintelectuais a um conflitode ideias puras, autônoma em relação aos contextos correntepor uma escrita desconcertanteque embaralha os códigosestabelecidos.Trata-sede
mais amplos,privilegiandoo estudo do discurso,a exegesedos textos e a abordagemherme- outramaneira, intrínsecaao trabalho do escritor,de reivindiçara autonomiaem relaçãoa todas
nêutica enfática.A vulgarizaçãoda expressão"campointelectual",nos últimos trinta anos, à as convençõesestabelecidasdo campoliteráriocontemporâneo.Essaduplanegaçãoe essadupla
medida de seu sucessoe das discussõesque ela suscitou no cerne das disciplinasenvolvidas reivindicaçãoexplicamque a Éducation sentimentale (1869)- romanceamplamentebaseado
e, frequentemente,hostis (história da filosofia,história das ideias,história da literatura, his- em uma autoanálisede Flaubert e em uma reconstituiçãofeita pelo romancista da principal
tória da arte, etc.),manifestoutendência a fazer-lheperder várias de suas virtudes críticas e criseatravessadapelaFrançaem torno de 1848- propõepraticamenteuma análisesociológica
incômodasiniciais,transformando-aem uma noção puramente descritivaque reduz "campo das relaçõesentre campo intelectuale campo do poder, na França de meadosdo séculoXIX,
intelectual"à "vidaintelectual"ou "esferaintelectual"e, até mesmo,intelligentsia.Tratava-se atravésdo conjuntodos personagense de suas trajetórias.Essaprimeira aplicaçãodo método
de fato,para Bourdieu- e trata-se sempre,se pretendemosser fiéisà sua inspiraçãoatravésdo de análise em termos de campo intelectualserá prolongadae aprofundadano livro Les regles
uso rigorosodesteconceito-, de elaborarcom eleum questionárioe um programade pesquisa de l'art (1992),integrando as contribuiçõesdos trabalhos de igual inspiraçãode C. Charle,R.
para testar diversashipóteses:em tal período ou em tal contextogeográfico,será que se pode Pontone A.-M.Tuiessesobreo campointelectuale literáriono final do séculoXIXe suscitando
identificar,ou não, um campo intelectual (ou literário), ou seja, um conjunto de posiçõese outras pesquisas que hão de aperfeiçoare enriquecero esquemageral e as hipótesesiniciais
oposiçõesentre grupos (intelectuais)em luta pela hegemoniae pela autonomiarelativamente sobreoutros períodoscomplexos,tais comoos da Guerrade 1940e da Lib~ração(SAPIRO'. 1999)
a outros grupos (intelectuaisou não)?Em que desafiosse baseiam suas oposiçõese debates? ou comparar o campoliterário e intelectualna Françacom outros camposde outros pa1sesou
De que maneira tem sido sua evolução?Serãoeles específicos,como ocorre em determinados de outras épocas (cf.VIALA,1985;CHARLE, 1996;OP;CASANOVA, 1999).
campos científicosou ainda heteronômicoscomo é o caso nos domínios que dizem respeito Tais ampliaçõespermitiram avaliar em melhores condiçõesas especificidadesda evolu-
mais de perto ao poder e à economia?Que trunfos, disposições,caraterísticasdos produtores ção dos diferentes campos intelectuais em diferentes países e os fenômenosde dominação
em concorrênciaexplicamsuas trajetórias,sucessose fracassos,tomadas de posição?Qual a entre eles, em conformidade com os subconjuntos (campo universitário, campo literário,
margem de liberdadeà disposiçãodessecampo intelectualem relaçãoao campo do poder, ao campo artístico, etc.).O processode autonomização,se estiverativo em toda a parte, assume
campo econômico,ao campo religioso,etc.?Em que sentido evoluiessa margem, segundo as formas e segue caminhos fortemente divergentes, até mesmo em nações aparentemente
conjunturashistóricas?Respondera essasquestõespressupõe,por conseguinte,diferentestipos próximas. Ele nunca será definitivamente alcançado e pode passar por questionamentos
de pesquisascomplementares:morfológicas,sociológicas,ideológicase políticas.Issoimplica, radicais, inclusive, na França (na época do governo de Vichy) ou nos Estados Unidos (no
por exemplo,estabelecerbiografiassociais (isto é, construídas),cruzadas e comparadas,dos período do macarthismo). Ora, essas duas nações não deixam, no entanto, de reivindic~r,
principais intelectuais;análisesinstitucionaisdas instâncias de legitimação,de produção ou desde o século XVIII, seu papel de vanguarda nesses domínios. A abordagem transnac10-
de reproduçãodas posiçõesno campo intelectual;estabelecimentode múltiplasrelaçõesentre nal permitiu também destacar a importância dos fenômenos de dominação cultural entre
essesdiversosfatorese condicionantes,sem esquecera análiserelacionaldas caraterísticasdos grandes e pequenas nações, entre grandes e pequenos idiomas que exercem uma grande
t_extos,das tomadasde posiçãoe das obrasproduzidasno cernedessasdiferentesconfigurações. influência sobre as características dos campos literários e intelectuais, não só entre nações
E possívelencontrar tais tentativasem ação nos trabalhos empreendidospor Bourdieue por imperiais e nações colonizadas ou antigamente colonizadas,mas até mesmo no interior do
seus colaboradoresao tentarem proceder a descriçõesaprofundadasdeste ou daquelecampo espaço europeu, segundo as relações de força entre os mercados literários ou intelectuais;
intelectual(ouartístico,ou religioso,ou literário)singular e, até mesmo,destaou daquelaobra, tal dominação foi avaliada, por exemplo,pela sociologiada tradução, como ficou demons-
deste ou daqueleautor.Assim,na primeira aplicaçãodessas hipótesesde pesquisa ao campo trado por GiseleSapiro e por seus colaboradores no que se refere à época contemporânea
literário francês, através do caso de Flaubert, Bourdieu colocaem evidênciaa oposição que (SAPIROet al., 2008). Todos estes exemplos mostram a fecundidade sempre visível e a
atraves~aesse campo entre os raros autores que reivindicam sua autonomia em relação aos diversidade dos programas de pesquisa implicados pelo conceito de campo intelectual
desafios econômicosde uma literatura em via de comercializaçãoacelerada pela impren- ou de campo literário. Com efeito, ele pode ser declinado na escala tanto de um pequeno
sa, teatro, romance, por um lado, e, por outro, uma maioria de literatos que aceitam essa grupo e, até mesmo, de um autor importante (sob a condição de reposicioná-losno espaço
CAMPO INTELECTUAL 85
84 CAMPO INTELECTUAL
1 -----------------
das múltiplas relações, permitindo compreender seus projetos e sua situação) quanto de propriedadesestatutárias]impõem à percepçãode todos [...], comoinscritas em uma essência
espaços globais e, até mesmo, internacionais, o que obriga, em qualquer caso, a adaptar 0 de natureza socialmente garantida", aquela que é conferida pelo Estado. Para Bourdieu, o
q~e~tionário:a implementar os métodos de análise ou de comparação adaptados às espe- direito consagra a ordem estabelecidaao reconhecer comolegítima uma visão dessa ordem,
c1fic1dadese as fontes para evitar a queda, de novo, nas armadilhas positivistas e eruditas, que é uma visão de Estado e garantida pelo Estado. ·
ou o recurso aos esquemas convencionaisdas abordagens contra as quais essa ferramenta As referênciasao direitoinscrevem-se,na maior parte das vezes,nos estudosempreendidos
havia sido concebida. porBourdieusobreas formase os efeitosda dominaçãosimbólica.O direito,em seuentender,age
comoem suplemento"aoformalizar"e "aocolocarformasnas relaçõesde poder",de acordocom
Referências suasexpressões.E Bourdieuainda fornecea seguinteprecisão:"Aforçada forma [jurídica]- a
BOURDIEU,
P.Champintellectuel
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Recherche de l'École Normale Supérieure, v. 1, p. 7-26, 1971. aceitarpelofatode seapresentarsobas aparênciasda universalidade,aquelada razãoou da moral".
BOURDIEU, P.L'Inventionde la vied'artiste.ARSS, n. 2, p. 67-94, mars 1975. O Estado é uma ficçãode juristas, os primeiros "nobres do Estado",que desenvolveram
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BOURDIEU, P.UneinterprétationdelathéoriedelareligionselonMaxWeber.Archives Européennes desinteressadaorientada para fins universais e não unicamente para o serviço e a glória do
de Sociologie, Paris,v.XII,n. I, p. 3-21, 1971. rei, a fortiori não para a defesa de seus próprios interesses.
CASANOVA, P.La république mondiale des lettres. Paris:Seuil,1999. A nobreza do Estado, como escreveurepetidamente Bourdieu, fundou sua razão de ser
CHARLE, C. Naissance des "intellectuels" (1880-1900). Paris:Minuit,1990. social e sua dominação ao afirmar e defender a auton01;11ia do serviço público em nome do
CHARLE, C. La crise littéraire à l'époque du naturalisme: Roman, théâtre et politique; essai direitoem relaçãoao poder régio,em nome da competênciaem relaçãoà nobrezahereditária
d'histoire sociale des groupes et des genres littéraires. Paris:P.E.N.S.,1979. e em nome do interessegeral por oposiçãoao universo econômico.O que não evita a questão
CHARLE, C.Les intellectuels en Europe au XIX' siecle. Paris:Seuil,1996. da finalidadesocialdo direito que não poderia reduzir-seà invençãode um modo racionalde
PONTON, R.Le champ littéraire de 1865 à 1905. Paris:EHESS,1977.These. gestãoadministrativa, nem à burocracia,tampouco ao ideal de neutralidade, de desinteresse
SAPIRO, G.(Org.).Translatio. Paris:CNRS,2008. e de universalidade que lhe é inerente. ·
SAPIRO, G.La guerre des écrivains (1940-1953). Paris:Fayard,1999. Com efeito,o "universal" não preexiste,de acordo com Bourdieu,à formaçãodo Estado
TRIESSE, A.-M.Le roman du quotidien. Paris:LeCheminVert,1984. moderno.Osfuncionáriosdessetipo de Estadonão o utilizampara dissimularseusprivilégios
VIALA, A.Naissance de l' écrivain: sociologie de la littérature à l' âge classique. Paris:Minuit,1985. e seusinteressespróprios.Ao elaborarprincípiosnormativose o direito quelhes corresponde,
os juristas e os parlamentares dos séculosXVIIe XVIIIprocuraram justificar a autoridade
33. CAMPO
JURÍDICO superior que elestentam encarnar, produzindouma filosofiajurídica e políticado Estadopela
······················································································································· qual é desvalorizada, para não dizer desqualificada,qualquer outra teoria imediatamente
Remi Lenoir reduzidaaos interessesdos grupos, desdeentão constituídoscomoparticulares,corporativos,
em suma, pré-estatais. "Elestiveram de inventar o universal- o direito, a ideia de serviço
As análises de Bourdieu sobre o direito incidem sempre sobre um objeto que supera a público, de interesse geral, de população, etc. - e, se é que se pode dizer, a dominação em
definiçãoque se dá comumentepara práticas e produçõesjurídicas:assim, "a forçado direito" nome do universal para ter acesso à dominação".
remete ao que ele designa como "a magia do Estado" e o efeitode oficializaçãoe certificação À semelhança do que ocorre com todos os universos que conquistaram sua autonomia
que lhe é inerente. O certificado escolar é seu ato típico. O diploma faz parte da categoria de funcionamento - como é confirmadopela constituição de uma doutrina, ou seja, de um
dos atos de certificação,de validação,pelos quais o Estado garante e consagra determinado direito erudito -, a produçãojurídica não poderia ser interpretada, de acordocom Bourdieu,
estado de coisas sociais: neste caso concreto, um nível escolar, mas, em outros setores da comoum sistemafechadoe unicamente do ponto de vista de sua lógicainterna (dogmatismo
atividade social, o âmbito de competência de uma profissão, uma identidade, um estado legal),nem como o reflexodireto de fatores que lhe são, em diversosgraus, exteriores (eco-
civ~. O Estado, ao reconhecer esses estados de fato, leva-os a submeter-se ao que Bourdieu nômicos,políticose midiáticos).A noção de campo aplicadaao universojurídico lembra que
designa por uma promoção ontológica,uma transmutação. Os atos de registro realizados este último deve ser pensado de um modo relacional,tanto em seu funcionamento interno
pelos agentesdo Estadoconferemum status oficiala situaçõesreais: o que não altera nada e, quanto em suas relaçõescom os outros campos, como um espaçoestruturado de posições-
~o m~smo;tempo, modificatudo. Comose confirma, por exemplo,pela diferençaentre uma e de postos que lhes correspondem - às quais estão vinculadas propriedades relativamente
hgaçao e um casamento.Os atosjurídicos são atos de reconhecimentoque prescrevemo que independentes daquelas peculiares aos indivíduos que as ocupam. Ela permite estabelecer
eles consagram por serem dotados "de uma objetividade e de uma universalidade que [as as relações objetivasentre essas posições- a estrutura das disciplinasjurídicas, aquela das
86 CAMPO JURÍDICO 87
CAMPO JURÍDICO
hierarquias profissionais, aquelas das homenagens acadêmicas - e entre estas últimas e as créateur",publicadoem 1966,na revistaLes TempsModernes,fundada e dirigidapor Jean-Paul
diferentes formas de produção jurídica, inclusiveas definiçõesda própria atividadejurídica. Sartre.Sea ideiade um universosocialrelativamenteautônomo,dotado de uma históriaprópria
O estabelecimentode relaçõesentre essas posiçõese as propriedades sociais e culturais de e deregrasespecíficas,já estápresentenessetexto,Bourdieuirá renegaressaprimeira elaboração,
seus ocúpantes não teria sentido se não fossem definidos os desafiosespecíficosdo universo queconsideracomodemasiadointeracionista,em benefíciode uma concepçãomais objetivistae
ed~s ~ubuniversosjurídicos. É evidente,por exemplo,que distinções como aquela que opõe topológicado campo,desenvolvidaem váriosartigospublicadosentre 1971e 1991- "Lemarché
o direito público ao direito privado remetem ainda a interesses muito diferentes, embora os des biens symboliques"(1971);"Quelquespropriétés des champs" (1980);"Mais qui a créé les
agen:es tenham em comum uma disposiçãoa jogar o jogo exigidopelo espaço da disciplina, créateurs?"(1980),"Toefieldof culturalproduction"(1983)e "Lechamplittéraire"(1991)-, antes
~u seJa,um habítus que implica o conhecimento e o reconhecimento das regras do jogo e do de elaboraruma obramaior:Les reglesde l'art (1992).
mteresse do que está em jogo (ou seja, a íllusío específicadeste campo que, muitas vezes, é Deacordocom essadefiniçãoobjetivistae, ao mesmotempo,relacional- inspiradapelanoção
designada como "um espírito",neste caso concreto, o "espíritojurídico"). Tem a ver também, físicade campo magnético(princípiode atração-repulsão)-,o campodesigna,simultaneamente,
e antes de mais nada, com ofícios,um conjunto de técnicas, de referências,de conhecimentos um espaçode posiçõesquesedefinemumasem relaçãoàsoutrasem funçãoda distribuiçãodesigual
e de "crenças" próprios desse espaço, tratando-se, seja da hierarquia dos princípios funda- do capitalespecíficoe um espaçode tomadasde posiçãoinscritasem uma história,que também
mentais, das disciplinas,das faculdades,seja das revistas e das editoras, sem falar da maneira adquiremsentidoumasem relaçãoàs outras.Essesdoisespaçosmantêmuma relaçãodehomologia.
de redigir textos e da importância atribuída às chamadas e notas de rodapé. Comefeito,se o espaçodas possibilidadesse apresentaaosescritoressoba formade escolhaa fazer
entreopçõesmais ou menosconstituídascomotais no decorrer de sua história - rimas ou verso
Referência
livre, narrador extradiegético ou interdiegético,etc. -, essas escolhas estéticas são correlatas
BOURDIEU,P. La forcedu droit: élémentspour une sociologiedu champjuridique.ARSS, n. 64, das posições ocupadas por seus autores no campo, em função do volume e da composição
p. 3-19, sept. 1986.
do capitalsimbólicoespecíficodetido,ou seja,do grau e do tipo de reconhecimentoque haviam
adquiridoenquantoescritores.Para compreenderessadistribuiçãodo capitalespecífico,impõe-se
34. CAMPOLITERÁRIO relacioná-lacom as principaisoposiçõesque estruturam o campoliterário.
······················································································································· A primeiralimita-sea ser a especificaçãono campode uma clivagemqueservede estrutura ao
GiseleSapiro espaçosociale se encontraem todosos universossociais:elaopõeos" dominantes"aos" domina-
dos",segundoo volumeglobaldo capitalcom cotaçãonesseuniverso,no casoconcreto,o capital
O conceitode campoliterário,forjadopor PierreBourdieu,apreendeo mundo dasletras como de reconhecimento.Essaclivagemcoincide,frequentemente,com a oposiçãoentre "velhos"e "jo-
~ ~iverso social dotado de uma relativaautonomia, no sentido em que é regido por regras vens",escritoresreputadose recém-chegados.Elapode ser ilustradapelosmembrosdaAcadémíe
propr~asquese referemà sua história,além de determinaremas condiçõesde acúmulodo capital Françaíse,por um lado,e, por outro,pelasvanguardas(porexemplo,os surrealistas).Enquantoos
específicoa esseuniverso.Esseconceitovisa escaparde uma duplaarmadilha.Contraa ideologia dominantesestãointeressadosna conservaçãodo estadodas relaçõesde força,os dominados,que
românticado "criadorincriado",que encontrousua expressãomais acabadana noçãosartríana procuramsubvertertal situação,rompemcomas convençõese os códigosestabelecidos. Aoextrair
de "projetocriador"e queservede fundamentoà abordagempuramentehermenêuticadas obras, elementosda teoria da religiãode Max Weberpara pensar essesconfrontos,Bourdieurecorreàs
ele chama a atençãopara o fato de que os produtoresnão escapamàs restriçõesque governam0 noçõesde ortodoxiae heterodoxia.Aoevocaras seitasreunidasem torno de uma figuraprofética,
mundo social.Uma sociologiada literatura tem o direito de formular a seguintepergunta:"Mas asvanguardasaparecem,comefeito,comoheterodoxasem suatentativadesubverteras convenções
quemteriacriadoos criadores?",ou seja,por quaisprocessosse formao valorsimbólicodas obras? de escritade sua época,suscitandoreaçõesmais ou menosacirradaspor parte dos defensoresda
No entanto,contraa sociologiamarxistaque reduz a obra às característicassociaisde seupúblico ortodoxia,comparáveisàquelasdos sacerdotesporta-vozesde determinadaigreja.As lutas entre
ou de seu autor,e contra a abordagemeconomicistaque se interessaapenaspelas condiçõesma- os partidários da ortodoxiae os heregessão recorrentese, em grande parte, constitutivasda his-
:e~ais d~produç~oe do consumoconcernentesà indústria do livro,PierreBourdieuafirma que tória do campo. O princípioda originalidadeque rege o mundo das letras desdeo Romantismo
e llllposs1velexplicaros universosculturais sem levar em consideraçãosua autonomiarelativae fazcom que as lutas de concorrênciapara a imposiçãoda definiçãolegítimada literaturatenham
suaprincipalpropriedadequeé a crença.Do pontode vista metodológico,tal abordagempretende assumidouma formaabertae, às vezes,violenta,ilustradaperfeitamentepelaformado manifesto.
superar a tradicionaloposiçãoentre análiseinterna e análise externa:a primeira está focalizada A segundaoposiçãoé mais específicaaos universosda produçãocultural,definindoa relação
na decifração,ao invésdo ato criador.Inversamente,a segunda tende a reduzir as obras a suas de tais universoscom as condicionantesexternas:ela distinguetipos de reconhecimento,simbó-
condiçõesde produçãoe recepção.Enquantoa análiseinternase interessapelaestruturadas obras lico ou temporal,de acordo com seu grau de autonomiaem relaçãoà demanda,tratando-sedas
a anápse externaenfatiza,sobretudosua função social.O conceitode campovisa articular esse~ expectativasdo públicoou da demandaideológica.Segundoa lógicaheterônoma,o valor da obra
doisaspectosda análise,tendo em contaas mediaçõesentre essasduas ordensde fenômenos.Tal é reduzido,seja a seu valor de mercado,cujavendagemconstitui o indicador- por exemplo,os
conceitoaparecepelaprimeiravezsob a pena de Bourdieuno artigo"Champintellectuelet projet best-sellers-, sejaa seuvalorpedagógico,de acordocomcritériosmorais ou ideológicos.No lado
88 CAMPO LITERÁRIO
CAMPO LITERÁRIO 89
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oposto,a lógicaautônomafazprevalecero valorpropriamenteestéticoda obra,o qualsomenteos de pesquisa que inspirou e renovounumerosos trabalhos da ciênciapolítica, ao trazer como
especialistas- ou seja,os pares e os críticos- estãoem condiçõesde apreciar:o reconhecimento problemáticafundamental o corte que se estabeleceraentre o político em relaçãoao social.
dos pares será,portanto,o critériode acúmulode capitalsimbólicoespecíficono campo. O campo políticoé definidocomoum espaçorelativamenteautônomo,dependentede um
Aproduçãoliteráriaautonomizou-seda demandadas classesdominantese do grandepúblico, universode regras, crenças e papéis próprios. É "o lugar em que se geram - na concorrência
ao valorizaro julgamentodos especialistas.Se Bourdieusitua esseprocessode autonomização entre os agentes que nele se atham envolvidos- produtos políticos, problemas,programas,
do campoliterárioem meadosdo séculoXIX,sob o SegundoImpério,algunshistoriadoresda análises,comentários,conceitos,acontecimentos,entre os quaisos cidadãoscomuns,reduzidos
literatura- tais comoDenisSaint-Jacques e AlainViala(1994)- detectamseusprimórdiosdesde ao estatuto de 'consumidores',devemescolher" (BouRDIEU, 1981a).E escolhercom grandes
o séculoXVII.Noentanto,esseprocessonão é linear,nem homogêneo(SAPIRO, 2012),tendoassu- chancesde mal-entendidos,pois o acessoaos meios de participaçãopolíticaaí se distribuem
midodiversasmodalidadesem funçãodospaíses.Assim,no Brasil,foino iníciodo séculoXX,no de forma desigual,tanto do ponto de vista da socializaçãoquanto da posiçãono espaçosocial.
períodomodernista,queseassisteà autonomizaçãodeum campoliterárionacional(MrcELI, 2001). Esta definição,que sublinha a concentraçãodos meios de produção propriamentepolíti-
cosnas mãos de profissionaise o desapossamentodesses meios pela maioria da população,
Referências condensasua oposiçãoaos postulados clássicosda ciênciapolítica (dissociaçãoda políticado
BOURDIEU, P.Champintellectuelet projetcréateur.Les TempsModernes,v.246,p. 895-906,nov.1966. mundo social, escolha racional, delegação,etc.) centrados na figura do cidadão esclarecido
BOURDIEU,P. Le marché des biens symboliques.L'.AnnéeSociologique,v. 22, p. 49-126,1971. e competente,dado como proprietário de uma opinião. Ao contrário, faz ver os constrangi-
BOURDIEU,P. Toe Field of Cultural Production, or: Toe Economic World Reversed.Poetics,v. 12, mentos que pesam nas opções dos "consumidores"desprovidosde competênciasocial para
n. 4-5, p. 311-356,1983. a políticae de instrumentos próprios de produção de discursos ou atos políticos:abster-seou
BOURDIEU,P. Le champ littéraire. ARSS, n. 89,p. 4-46, 1991. se conformar com as escolhasde seus representantes.Na sequênciade Weber,e utilizando a
MICELI,S. Intelectuais à brasileira.São Paulo: Companhia das Letras, 2001. linguagemda análise marxista da economiacapitalista (produtores,consumidores,concen-
SAINT-JACQUES, D.;VIALA,A. À propos du champ littéraire: histoire, géographie,histoire littéraire. tração de capital, etc.) para definir uma distribuição desigualde forçasno campo, Bourdieu
Annales, Histoire, SciencesSociales,v. 49, n. 2, p. 395-406, 1994. questionaa natureza do laço que une representantes e representados.
SAPIRO,G. Autonomy Revisited:Toe Question ofMediations and its MethodologicalImplications. A definição retoma o processo de deslocamentodo político em relação à vida social or-
Paragraph,v. 35,p. 30-48, 2012. dinária que atravessoutodo o séculoXIX,ou seja, um fenômenoque se explicana sociedade
ocidentalmoderna, quando do aparecimento de domínios separados de atividades,presos
a formas legais específicas(direito,política, esfera acadêmica,etc.). Sob este prisma, e com
35. CAMPOPOLÍTICO um conjuntode ferramentas metodológicase teóricas extraídas da sociologia,antropologiae
··:···················································································································· história Bourdieuevoca Max Weberna sua sã brutalidade materialista ("pode-seviverpara
) -
Letícia BicalhoCanêdo a política e da política")para refletir sobre esse "microcosmo"social,no interior do enorme
mundo social,onde se geramproblemasque agitam os políticosem suas posiçõeshierárquicas
Em seu modelo de funcionamento e dinâmica histórica, o campo político é explicitado dentro do campo,permitindo-lhesse distinguir entre eles,mas que, entretanto,não interessam
pela primeira vez no artigo "La représentation politique. Éléments pour une théorie du ao comum dos mortais. Um microcosmo que comporta fenômenos e objetos que parecem
champ politique" (BouRDIEU, 1981a).Bourdieu o formula sem o estudo empírico detalhado ter existido desde sempre (a democracia,o voto, os partidos políticos, o cidadão eleitor,as
que caracteriza suas descrições da lógica dos campos de produção simbólica (intelectual, sondagens,os deputados),mqs que são invençõesrecentes presas a conjunturas históricas.
religioso,da alta costura, etc.).A coerênciada noção se sustenta em suas pesquisasanteriores, Enfim,com a ferramentaanalíticado campo,Bourdieudeixa claro desde seu artigo inau-
nascidas de inquietaçõespráticas de seu envolvimentocom questõespolíticas (colonialismo gural que seu objetode investigaçãonão é a política,mas o espaçosocialonde se confrontam
na Argéliae escola)e na assimilaçãoda vasta literatura de sociologiapolítica (Weber,Marx, as elitespolíticas.Com isso,ele restitui a especificidadedos fenômenospolíticosem relaçãoàs
Michels),que ele reinterpreta. Assim, neste artigo fundador, pôde reconstruir os objetos lógicassociaisde onde derivam:desnaturalizaas instituiçõespolíticase o próprio Estadopela
classicamenteabordados pela ciênciapolítica (representatividade,partidos, etc.) e aplicar a apreensãodas relaçõesque unem indivíduose grupos concorrentesque pretendem falar em
sua teoria geral dos campospara o caso particular da política,podendo dotá-lados conceitos seunome (BouRDIEU, 1993).A ferramentapermite estabelecerde que maneira os mecanismos
associadosde capital (social,cultural e simbólico),estratégia, trajetória e habitus. Parte da genéricosque regulam a aceitaçãoou eliminaçãodos novosentrantes na dinâmica do campo
ambição de Bourdieu de elaborar uma sociologiacomparada dos modos de legitimaçãodo político(lutade gerações,reputação),ou a concorrênciaentreos diferentesprodutores(trajetória
poder e,das formas de violênciasimbólica,o artigo foi publicado dois anos após a revolução de acumulaçãode capital),determinam os discursosa serem produzidosou reproduzidose a
que sua teoria do espaço social, composiçãode grupos e competição simbólica efetuou no apariçãode ideias-forças,relativamenteindependentesde suas condiçõessociaisde produção,
estudo das classese das culturas (La distinction, 1979).Equivale,portanto, a um programa e que têm por alvo"impor a visão legítimado mundo social" (BouRDIEU, 1981b).
CAMPO RELIGIOSO 93
92 CAMPO POLfTICO
exprimee re:orça.~ reli~~o,comotodosossistemassimbólicos,cumpreuma funçãode distinção empresárioindependenteda salvação,o profetaou feiticeirodependeda aptidãode seu discursoe
entre a marupu~açaolegitimado sagradoe formas inferioresde religião,tanto formaspassadas suapráticapara mobilizaros interessesreligiososde fiéispotenciaise para operaruma subversão
quanto c~nco~itantes,~uepassam a ocupar uma posiçãodominadana estrutura das práticase da ordemsimbólicavigentee uma reordenaçãosimbólicadessasubversão,dessacralizandoo sa-
crençasSimbolicasassociadasa uma formaçãosocialdeterminada.Todapráticaou crençadomi- gradoe sacralizandoo sacrilégio.Todaseitaquelograsucessotendea tornar-seIgrejadepositária
na~a ~p~rececomoprofanadora,pois, por sua própria existência,constituiuma contestaçãoou e guardiãde uma ortodoxia,detentorade hierarquias,dogmase legitimidade.Da mesmaforma,
res1ste~cia
ao monopólioe à legitimidadeda gestãodo sagradopelocorposacerdotalhegemônico. no interiorde uma mesmaIgreja,é possívelque se estabeleçamrelaçõesde concorrênciaentre a
A~~~ estrutur~da:a religiãoé um sistemasimbólicoquefuncionacomoprincípioqueconstróia ortodoxiae a heresia.O conflitoteológicopelaautoridadereligiosaentre especialistasse combina
expenenaa.Eladelimitao quemereceser discutidoe o quedeveser admitidosemdiscussão,como com o conflitopor poder na hierarquia eclesiástica,tomando a forma de heresia quando uma
dogmaou mist~~oda fé.~l~ converteospreceitosimplícitosdeum ethosdesejável,consagrando-os parte do c}erocontestao monopólioeclesiásticonas mãos das classessacerdotaishegemônicas.
com~n~rma~~ticase~Iíc1tas,racionalizadase sistematizadas.A religião,portanto,cumpreuma Estemodeloinicialde campo,exaustivamenteretrabalhadopor Bourdieu,é posteriormente
funçao1deo~ogica poss1v~l de ser mobilizadapor um grupo ou classena medidaem que permite aplicadoà análise dos movimentos e das relações de poder em diferentes domínios sociais
a consagraç~odas propnedadescaracterísticasde um estilo de vida determinado.Taisproprie- - econômico,político, cultural, científico,jornalístico, etc. -, que, embora interligados,não
dades,associadasa um grupo ou classeque ocupauma posiçãodeterminadana estrutura social podem ser remetidos a uma lógicasocialúnica, mas que, em conjunto,garantem a produção,
e, portanto,semprearbitrárias,podem ser legitimadaspela religião,que as sacralizae naturaliza a reproduçãoe a imposiçãodo poder simbólicoem nossas sociedadese, portanto, seu próprio
em siste~as de repr~sentaçõesconsagradoscuja estrutura reproduz,de forma transfiguradae, funcionamento (ver também: ETS;OPS;LoYOLA, 2002).
portanto,rrreconhec1vel, a estrutura das relaçõessocioeconômicasvigentes.
Em u~a sociedadedividida em classes,os sistemas religiosospróprios às diferentesclas- Referências
ses cont:1bu~m?ara a reprodução da ordem social, na medida em que a consagra, sanciona · LOYOLA,M. A. Bourdieu e a Sociologia.ln: ____ . Pierre Bourdieu entrevistado por Maria
e s~:rahz_a,Justificando a hegemonia das classes dominantes e impondo aos dominados a
Andréa Loyola. Rio de Janeiro: Eduerj, 2002.
legit1maçaoda dominação.Dissimulandoem seus símbolosque a dominaçãoé arbitrária, bem
WEBER,M. Economia e sociedade.Brasília:UNB;SãoPaulo:Imprensa Oficial,2000.v. I.
como_as fo,rmasP:las quais se opera, a religião reforça o ethos da resignaçãoe da renúncia
WEBER,M. Economia e sociedade.Brasília:UNB;SãoPaulo:Imprensa Oficial,2004.v. II.
as~ociado~s condições,~eexistência dominada. A crença na eficáciasimbólica da religião
exigeque o mteressepohtico que a determina sejamantido veladoe apresentadocomounidade
aparente, tanto para os profanos quanto para os especialistas religiosos. 37. CAMPOUNIVERSITÁRIO
_D~ntro
do própriocamporeligioso,os diferentesagentes(indivíduosou grupos)quedisputam Afrânio Mendes Catani
0
P_siçoesna estru~ra das relaçõesde forçapodem lançar mão elocapitalreligiosona concorrên-
cia pela hegemoma,dominaçãoou monopólioda gestão dos bens de salvação.Tal monopólio Homo academicus(1984),um dos principais livros de Bourdieudedicadoao campo uni-
garante aos agenteso exercíciolegítimodo poder religioso,ou seja, o poder de influenciarde versitáriofrancês - o outro é La noblessed'État: GrandesÉcoleset esprit de corps(1989)-,
forma duradoura ~s ~e~resentaçõese práticas de leigos,incuUndoneles um habitus religioso estuda duas décadas de expansão do sistema de ensino superior de seu país até os anos
que passa a ser prmcip10gerador de pensamentos,percepçõese ações,em concordânciacom 1970.Nesse trabalho o autor leva às últimas consequênciasaquilo que afirmavaem sua aula
as normas de uma representaçãoreligiosado mundo que é ajustada a uma determinadavisão inaugural no College de France: "qualquerproposiçãoformulada pela ciência da sociedade
p~líticado m~ndo social.O capitalde autoridadede que dispõeum agentereligiosose associa pode e deve aplicar-seà própria pessoa do sociólogo"(LL,7).
diretamente a forçamaterial e simbólicados grupos ou classesque ele pode mobilizar,ofere- Em algumaspáginas de Réponses:pour une anthropologieréflexive,comentaque Homo
cendo-lhesbens e serviçoscapazesde satisfazerseus interessesreligiosose políticos. academicuslhe custoumuito em termosde tempo,de reflexão,de redaçãoe pesquisa,irritando
Dessaforma,_noc~po religioso,segundouma lógicaprópria de mercado,as Igrejasdomi- . bastanteos colegasuniversitáriosquandoexaminaa si mesmo,poiso textocontémváriaspáginas
nantes tendema Impedira entrada de novasempresasde salvaçãoconcorrentes,comoas seitas. reservadasà sua pessoatodas as vezesque analisa categoriasàs quais pertence- ao falar de si
El~ss~es~o~çam para preservaro capitalde controledo acessoaosmeiosde produção,reprodução revelaverdadesqueatingema outros.Justamenteo capítuloprimeiro,"Um'livropara queimar'?",
e distribmçao~osbens de salvação.Esseacessoprivilegiadoé delegadoaossacerdotesque atuam seiniciacomum períodoreveladordo quevirá aolongodas mais de trezentaspáginas:"Aotomar
n~~onta,continuamentejunto aosfiéis,conferindo-lhesautoridadena medidaem quesãofuncio- comoobjetoum mundo socialno qualse estápreso,somosobrigadosa reencontrar,numa forma
nanos ~: ~a estrutu~aburocratizadadetentorade capitalinstitucionalsacramental.Oprofeta que se pode dizer dramatizada, um certo número de problemasepistemológicosfundamen-
ou ~feztz,cezro e sua seita,c_oncorrentes da Igrejahegemônica,colocamem questãoO monopólio tais, todos vinculadosà questão da diferençaentre o conhecimentoprático e o conhecimento
do~~strumentos d: salvaçao,mas,para tanto,precisamoperaruma acumulaçãoinicialde capital erudito e, principahnente,à dificuldadeparticular da ruptura com a experiênciaautóctonee
religioso,afim de disputaro exercíciolegítimodo poder religiososobreos leigos.Na condiçãode com a restituiçãodo conhecimentoobtido,à custa dessa rupturà' (HA, 11,grifos do original).
94 CAMPO RELIGIOSO
CAMPOUNIVERSITÁRIO 95
No posfácio("Vingtans apres"),datado de janeiro de 1987,diz que "analisarcientificamenteo financiados, pertencimentoa comitêseditoriaisde revistascientíficas,
índicesde citação,publicações
mundo universitárioé tomar comoobjetouma instituiçãoque é socialmentereconhecidacomo relevantes,currículo"internacionalizado", orientaçõesde doutorado,tomadasdeposiçãopolíticas,
fundadapara realizaruma objetivaçãoquepretendea objetividadee a universalidade"(HA,291). relacionamentocom a mídia, etc. Precisamser levadosem containdicadoresdetalhadossobre
Em La noblessed'État, por sua vez,o focoanalíticorecai no estudoda estrutura do espaço osprofessores,os diferentescorposestudantis,as própriasuniversidades,as hierarquiasuniver-
de educaçãodas elitesna Françaa partir da segundametade dos anos 1960,estendendo-seaté sitárias,as classificaçõesdos departamentose institutos.Entretanto,é fundamentalestabelecer
a décadade 80. Bourdieu,ao trabalhar o campo das grandes escolase a produçãoe a reprodu- deformaprecisaa relaçãoque os cientistasmantêmcom as distintasinstituiçõesqueintegramo
ção dos grupos dirigentes,mostra a divisãoexistenteentre as escolas(grandese pequenas)e, queeledenominou"campodo poder".Na França,por exemplo,considera-seo pertencimentoa
também, entre instituiçõesque salvaguardamos valoresintelectuaise aquelasque preparam comissõesadministrativasoficiais,comitêsgovernamentais,conselhosde administração,etc.Nos
quadros para os postos econômicose políticos.No entender de Wacquant(2007),tal procedi- EstadosUnidosé essencialverificaros comitêse relaçõesde expertscientíficos,a integraçãoàs
mento permite, nas sociedadescapitalistasavançadas,analisar simultaneamenteas conexões grandesfundaçõesfilantrópicas,aos institutosdepolicy research,etc.No Brasil,por suavez,há
e interseçõesestruturantes do espaçosocial,do sistemade educaçãoe do campo do poder. quese observaro aparatoque o Estadoassegurapara garantira produção,circulaçãoe mesmoo
A partir das ideias centrais de Homo academicus e de La noblessed'État, pretende-se consumodebens simbólicosquelhe sãoinerentes,envolvendoo conjuntodas organizaçõesdedi-
apresentar as concepçõesde Bourdieu acerca do que denominou campo universitário. cadasà educaçãosuperiorpúblicae privada,em seusmaisvariadosníveis,formatose naturezas;
Ao longo de sua obra, escreveu que pensar em termos de campo significapensar em as agênciasfinanciadorase de fomentoà pesquisa,nacionaise estaduais;os órgãosestataisde
termos de relações,chegandoa falar que "o real é relacional":o que existe no mundo social avaliaçãode políticaseducacionais;o(s)setor(es)do Ministérioda Educaçãoresponsável/eis pela
são relações, "independentemente da consciência e da vontade individuais", como disse educaçãosuperiore os institutosde pesquisaquepossuema mesmafinalidade(Inep);os setores
Marx (R, 57).Analiticamente,um campo se estrutura como uma rede de relaçõesobjetivas ou câmara dos Conselhosde Educaçãoem distintosníveis;as associaçõese entidadesde classe
entre posições - e estas se definem objetivamente em sua existência e nas determinações (CRUB,Andifes,Andes/SN,PROIFESFederação,ABMES,ANUP,ABRUC,ANAMEC,ANAFI,
que impõem a seus ocupantes (agentesou instituições) por sua situação atual e potencial SEMESP, etc.)e as comissõesgovernamentais(CATANI, 2013,p. 75).No entenderde Bourdieu,tais
na distribuição das diferentes espéciesde capital ou de poder, "cuja posse implica o acesso comissõesrepresentamumaformatipicamenteburocráticadeconsulta,emqueosagentesdoestado
aos lucros específicosque estão em jogo no interior do campo e, também, por suas relações têm condiçõesde impor nomes que referendemsuas posiçõesconservandoassim o monopólio
objetivascom as demais posições(dominação,subordinação,homologia,etc.)" (R, 57-58). da preparaçãodas decisõescoletivas,da sua açãoe da avaliaçãodos resultados(SSE,130-134).
Para o sociólogo,uma análise em termos de campo implica em três momentos necessá- A estrutura do espaçoda educaçãosuperior francesa de elite encontra-seorganizada em
rios e inter-relacionados.De início, é preciso que se verifiquea posiçãodo campo em relação GrandesÉcoles- "escolasde graduaçãoseletivas,baseadasem numerus clausus,em classes
ao campo do poder. Em seguida, deve-seestabelecera estrutura objetivadas relaçõesentre especiaisde preparaçãoe examesde acessonacionaiscompetitivos,compassagemdireta para
as posições ocupadas - por agentesou instituições - que competem no interior do campo. postosde trabalho e elevadoperfil" (WACQUANT, 2007,p. 302)- e universidades,organismos
Por fim, "se devem analisar o habitus dos agentes, os diferentes sistemas de posições que de massa, abertos a todos que concluemo curso secundário. No interior do próprio campo
estes adquiriram mediante a interiorização de um tipo determinado de condiçõessociais e das GrandesÉcoles,observa-sea divisãoentre as "melhores"e as "piores"e, também, entre
econômicase que encontraram, em uma trajetória definida dentro do campo considerado, as voltadasa valoresintelectuais e as que preparam para posiçõeseconômico-políticas.Há as
uma oportunidade mais ou menos favorávelde atualizar-se" (R, 64-65). quesão "intelectuais",como a ÉcoleNormaleSupérieure,que forma os intelectuais da nação
O campouniversitário,para ele,é o espaçosocialespecíficoonde se trava uma luta encarni- e têm como estudantesas fraçõescultivadasda burguesia.Há outras quepreparam dirigentes
çada para estabelecero monopóliolegítimoda verdadeacadêmicaou universitária,espaçoesse industriais e do Estado, como a Écoledes Hautes Études Commercialese a ÉcolePolytech-
marcadopor contínuascontrovérsiascom relaçãoao sentidodo mundo e desseprópriomundo. nique, espaço dos oriundos e destinados às frações ricas da alta burguesia francesa. Por sua
Todavia,essecampopossuiforteparticularidade:seusveredictosestãoentre os mais poderosos vez,a ÉcoleNationaled'Administrationencontra-seao meio do caminho entre os dois polos,
socialmente(R,50).Constitui-seem um locusde relaçõesqueenvolvecomoprotagonistasagentes dela originando os ocupantes dos gabinetese altos funcionários da administração, mescla
quepossuema delegaçãopara gerire produzirpolíticasuniversitárias,istoé, uma modalidadede de competênciaculturais e econômicas,recrutando estudantes cujo patrimônio familiar é
produçãoconsagradae legitimada.Éum espaçosocialinstitucionalizado, delimitado,comobjetivos composto"de diplomasraros e riquezaantigà' (WACQUANT, 2007,p. 300,302;CATANI, 2013).
e finalidadesespecíficasondeseinstalauma verdadeiraluta para classificaro quepertenceounão Essa caracterizaçãode diferentesinstituições corresponde a funções sociais distintas e,
a essemundoe ondesãoproduzidosdistintosenjeuxdepoder.As diferentesnaturezasde capitale principalmente, produz agentes determinados que exercem papéis sociais de acordo com
as disposiçõesacadêmicasgeradase atuantesno campomaterializam-senas tomadasde posição, prerrogativas externas ao mundo universitário, mas que se transfiguram em legitimidade
é dizer,1:ºsistemaestruturadodas práticase das expressõesdos agentes(CATANI, 2013,p. 74-75). · através do título obtido. Bourdieu explicitaa compreensão do campo do poder como rede
Devemser analisadosos diferentestipos de capitalque dão o tom no campo universitário, cruzada das ligações estruturais e funcionais que entrelaçam o espaço das escolasde elite
tais comoescolasqueos indivíduosfrequentam,títulosobtidos,premiações,projetosde pesquisa com o das classes dirigentes, segundo suas articulações. Nas atuais sociedadescomplexas,
CAMPO UNIVERSITÁRIO 97
96 CAMPO UNIVERSITÁRIO
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a escola se converte em organização encarregada do trabalho de consagraçãodas divisões 1930desligou-sedessacorrentepor razões,ao mesmotempo,políticas(confereprioridadeà luta
sociais,alémde exigirduas espéciesde capitalque dão acessoa posiçõesde poder,definindoo antisfacista)e teóricas(voltou-separa a históriadas ciências).Durantea SegundaGrandeGuerra,
espaçosociale regulando as oportunidades e trajetórias de grupos e indivíduos,quais sejam, adereao mo~ento de Resistênciacontrao invasornazistae defendesua tese de medicina,em
o capitaleconômicoe o capitalsocial(WACQUANT, 2007,p. 298).A generalizaçãodos títulos 1943,Essaisur quelquesproblemesconcernantle normal et lepathologique,publicadapela
educativosconstitui-seem pré-requisitopara a ascensão ao vértice das empresasprivadas e PUFsob o título Le normal et iepathologique.Nesseestudocriticao positivismoda fisiologia,
das burocraciasdo Estado,consolidandoum novomodelode dominação(CATANI, 2013,p. 70). manifestaum vitalismonietzschianoe,dopersonalismo,mantéma atençãoprestadaaoindivíduo.
Bourdieuchama a atenção,ainda, para uma dimensãode caráteruniversal:quer na França Deacordocom sua tese,ao invésde conceberas relaçõesdo normal e do patológicoao definira
ou em váriasoutrasformaçõessociais,ser "herdeiro"tem custocadavezmais elevado,financei- patologiapor um desvioda norma (definidacomomédia),deve-se,sobretudo,levarem consi~e-
ramentefalando,mas, sobretudo,quanto aos custosemocionaise vivenciais.As escolasde elite raçãoa normatividadevariáveldo indivíduoem funçãode seu meio,além de concebera saude
submetemseus estudantesa regimesde trabalho severos,a estilosde vida austeros,a práticas comoa "atitude"("allure"]mediantea qual o indivíduoé capazde cometerexcessos,enquantoa
de mortificaçãosocial e mesmo intelectual.São sacrifíciospessoaisterríveisa que nem todos doençasignificaestar reduzidoa uma norma fixadapor uma deficiência.
conseguemou queremse submeter.Apesarde se beneficiaremde uma sériede vantagensdesdea Após a guerra, ensinou na Universidadede Estrasburgo,antes de se tornar insp~t~r_geral
tenraidade,nemtodofilhode dirigenteempresarial,médicocirurgiãoou cientistatem a garantia (1947),função que exercerácom.severidade,tendo escolhidoGastonBachelardpara dir1grrsua
de obtençãode uma posiçãode destaque.Nem todos os jovens da eliteapresentamtrajetórias tese sobreLa Jormation du conceptde réjlexeaux XVII' et XVIII• siecles,texto em que o
escolaresexitosas,não sendopoucosos que abandonamas escolaspreparatórias,ou são expul- métodobachelardianose manifestapelouso dos conceitosde "obstáculoepistemológico" e de
sos, ou tentam o suicídioou simplesmenteoptam por outras carreiras (CATANI, 2013,p. 71-72). "fenomenotécnico". Em 1955,logoapós a defesada tese,foi eleitopara a cátedrade filosofiadas
Em La noblessed'État destaca-se,igualmente,que um dos obstáculosprincipais à socio- ciênciasda Sorbonne,deixadarecentementepor Bachelardque, além disso,vai legar-lheapre-
logiado Estadoresidena incapacidadeque estepossuipara tornar secretoo seu própriopoder. sidênciado Institut d'Histoiredes Sciences.Investidode tais funções,Canguilhemdesenvolve
Em primeiro lugar, o Estado é o "banco central de crédito simbólico"que endossa os atos de umahistóriados conceitosda biologiae da medicina- La connaissancede la vie - e transmitea
nomeaçãopor meio dos quais "as divisõese os altos cargossão atribuídos e proclamados,i.e., herançabachelardianamedianteseuscursosna Sorbonnee no IHS:"Aodar continuidade~obra
promulgadoscomouniversalmenteválidos no campo de ação de um determinado território de GastonBachelard,sobrea qualofereceude uma apresentaçãoadmirável,GeorgesCanguilhem
e população [...]. O título acadêmicoé a manifestaçãoparadigmática desta 'magia do Estado' produziuuma c~ntribuiçãodecisivapara a epistemologiahistóricaou,mais,para a historicização
atravésda qual, a pretexto da certificação,as identidadese os destinossociaissão produzidos, da epistemologia,para a análiserigorosada gênesedos conceitoscientíficose dos obstáculoshis-
as competênciastécnicas e sociais fundidas e os privilégios exorbitantestransmutados em tóricosà sua emergência,sobretudopor meiode descriçõesclínicasdas patologiasdo pensamento
direitos devidos"(WACQUANT, 2007,p. 307-308). científico,das falsasciênciase dos usospolíticosda ciência,em especialda biologiâ'(EAA,41).
A violênciado Estado é exercidasobre nós através da inculcação de categoriaspor meio Nomeadopresidentedo júri da agrégationde filosofia(1964-1968),promovea exigência
do sistema educacional, que produz "mentes dóceis" e, não é supérfluo recordar, docilis de científicidadee encarna o espírito de rigor para a geração de estudantes de filosofiada
deriva de docere,ensinar. ÉcoleNormale Supérieuredas décadas de 1950-1960:"Condiscípulode Sartre e de Aron na
ÉcoleNormale, dos quais se distingue por uma origem popular e provinciana, Canguilhem
Referências poderá ser reivindicado, ao mesmo tempo, pelos ocupantes de posições opostas no campo
CATANI,A. M. Origem e destino: pensando a sociologia reflexiva de Bourdieu. Campinas, SP: universitário:enquanto homo academicus exemplar - tendo desempenhado,durante um
Mercado de Letras, 2013. longoperíodo, e com o mais extremado rigor, as funções de inspetor geral do ensino s~cun-
WACQUANT,L. Lendo o "Capital" de Bourdieu. In: PINTO, J.M.; PEREIRA,V. B. (Orgs.).Pierre dário -, ele servirá de emblemaa professoresque ocupam posiçõesinteiramente homologas
Bourdieu: a teoria da prática e a construção da sociologia em Portugal. Porto: Afrontamento, à sua nas instâncias de reprodução e consagraçãodo corpo; entretanto, enquanto defensor
2007. de uma tradição de história das ciênciase de epistemologia,o refúgioheréticopor excelência
da seriedade e do rigor na época do triunfo do existencialismo,ele será consagrado,junto
38. CANGUILHEM, GEORGES ( 1904-1995) com Gaston Bachelard,como mestre do pensamento por parte de filósofosmais afastados
.......................................................................................................................
Vincent Bontems
do núcleo da tradição acadêmica,tais como Althusser,Foucaulte alguns outros" (MP,49).
Foi escolhidopor Bourdieupara orientar sua tese sobre "Lesstructures temporellesde la
Nascidoem4 dejunhode 1904,GeorgesCanguilhemconcorreuparaa ÉcoleNormale Supérieure vie affective".Ainda que, nesse estudo,não façanenhuma referênciaàs obras de Canguilhem,
em 19~4.Começoupor ser "alanista",isto é, discípulodo filósofo,Érnile-AugusteChartier,dito Bourdieuexibea mesmaformade expressão,laboriosae austera.Alémdisso,a proximidadedos
Alain (1868-1951),que tinha sidoseu professorno LiceuHenri IV e cujopacifismoexerceuuma doishomens era também, sem dúvida,grandementetributária da semelhançade suas trajetó-
influênciadecisivasobrea juventudeno períodoentreas duas GrandesGuerras.Nofinaldosanos rias:de origemrural e modesta,ambostinham sido "salvos"pela educação,até fazeremparte
CAPITALSIMBÓLICO 109
108 CAPITALECONÔMICO
a única forma possívelde acúmulo;tal conceitopermeia quase toda a sua obra e ostenta, sem O capital simbólico possui propriedades bastante particulares e diferentes das outras
qualquer dúvida, a grife de Bourdieu.Ele é forjadoprogressivamentepelo autor, desde seus espécies de capital: não é uma espécie de capital semelhante à do capital econômico, do
primeiros artigos, nos quais é frequentementeassociadoao capital material, sem deixar de capital cultural e, também, do capital social; ele é, por sua vez, particularmente lábil, frágil
distinguir-se dele,assim comoem um de seusprimeiros livros,Esquissed'une théorie de la e vulnerável.De acordo com a explicaçãode Bourdieu,tal fragilidadedeve-seao fato de que
pratique (1972),até suas últimas obras,tratando-se seja de Méditations pascaliennes(1997) eleé "um capital alienadopor definição,um capital que se apoia necessariamentenos outros,
ou de Le Bal des célibataires(2002)e vai retomá-lo incessantemente,abrindo então novas no olhar e na fala dos outros" (BouRDIEU, 2007,p. 389).Ele pode perder-se facilmente,tal
perspectivas,por exemplo,em seustrabalhossobrea linguagem(PVD;LPS)ou em seus cursos como a honra que pode se perder por uma ninharia - por exemplo,no teatro do Séculode
sobre o Estado, ministrados no College de France, entre 1989e 1992(SE).Nenhum artigo Ouro espanhol. Ele é também distribuído de maneira bastante desigual: "Dentre todas as
foi dedicadoao capitalsimbólico,de maneira específica,na revistaActes de la Rechercheen distribuições,uma das mais desiguaise, sem dúvida, a mais cruel - explicavaBourdieu - é
SciencesSociales,diferentementedo que ele fez em relação ao capital cultural ou ao capital decertoa repartição do capitalsimbólico,ou seja, da importânciasociale das razões de viver"
social.No entanto, reflexõesbastante aprofundadas - às vezes,capítuloscompletos- foram (MP,284).Essa distribuição é tão desigual que Bourdieuchegoua falar da "maldiçãode um
elaboradassobre esse conceitoem várias obras. capital simbólico negativo" a propósito do "pária estigmatizado"que podia ser o judeu da
Nãohá dúvidaalguma de que é difícilpropor uma definição- mesmo que provisória- do épocade Kafkaou, atualmente,o preto dos guetos,o árabe ou o turco dos subúrbiosoperários
capital simbólicoem Bourdieu:por um lado, pelo fato de que ele desconfiavadas definições, das cidadeseuropeias (BouRDIEU,2007, p. 389).
julgando que tal espécie de proposta constituía "um ritual científicoum tanto positivista" Não se pode avaliar nem padronizar o capital simbólico,que é dificilmenteobjetivável
(BouRDIEu,2007),mas também pelo fato de que o capital simbólicoé, para ele,um "capital na medida exata em que é um conjunto de propriedades distintivas que existem na e pela
denegado","desconhecidoenquanto capital",e que se apoia, em parte, na crença ou no reco- percepçãode agentesdotados das categoriasde percepçãoadequadas. Ora, tais categoriasse
nhecimento (SP).O capitalsimbólicofunciona,conformeexplicaem Le senspratique, como àdquirem,nomeadamente, através da experiênciada estrutura da distribuição desse capital
"um crédito,mas no sentido mais amplo do termo, ou seja, uma espéciede adiantamento, de no interior do espaçosocial ou de um microcosmosocial particular, por exemplo,o campo
desconto,de promissória"que os membros de um grupo atribuem somenteàquelesque - em científicoou o campo da alta costura.
razão de sua posição,do trabalho que eles executam para mantê-lo - lhe fornecem o maior A fragilidade do capital simbólicotambém tem a ver, sem dúvida, com o fato de serdes-
número de garantias. A manutenção desse capital pode, aliás, entrar em contradição com a tituído, de certa forma, de autonomia:será, ou não, uma espéciede capital autônomo,ou não
gestão dos interesseseconômicos,profissionaisou até mesmo culturais. terá tendência a confundir-se com as outras espéciesde capital?A questãopode ser suscitada
Se é impossíveldar uma definiçãoprecisa, vamos mesmo assim tentar, no mínimo, cir- quando se lê, por exemplo,em Raisons pratiques: "Designopor capital simbólicoqualquer
cunscrevero conceitoe identificarsuas principais características.Por ocasiãode uma inter- espéciede capital (econômico,cultural, escolar ou social) quando ela é percebida segundo
vençãoem um colóquiorealizado em Toulouse,em 1994,intitulado ''.Ancienneset nouvelles categoriasde percepção, princípios de visão e divisão,sistemas de classificação,esquemas
aristocratiesde 1880à nos jours", cujotexto foi publicadoapós sua morte, Bourdieuindicava classificatórios,esquemascognitivosque são, pelo menos em parte, o produto da incorpora-
com precisão e explicitavacom suficienteclareza, diante de historiadores e de sociólogos,o ção das estruturas objetivasdo campo considerado,ou seja, da estrutura da distribuição do
que entendia por esse conceito:"O capital simbólico é um capital com base cognitiva que capitalno campoconsiderado"(RP,161).Ou ainda, em Méditationspascaliennes:"Qualquer
se apoia no conhecimento (não intelectual, mas um domínio prático, um senso prático). espéciede capital (econômico,cultural, social)tende (emgraus diferentes)a funcionar como
Qualquerpropriedade - conchasnas Ilhas Trobriand, número de voltas do colar de pérolas capital simbólico (de modo que, talvez, fosse preferívelfalar, a rigor, de efeitos simbólicos
na corte da Suécia [... ] -, qualquer diferençapode tornar-se capital simbólico,distinção, se do capital) quando obtém um reconhecimentoexplícitoou prático, o de um habitus estru-
a distinção makes sense, 'adquire sentido' para as pessoas que dispõem de categorias de turado segundo as mesmas estruturas do espaçoem que foi engendrado.Em outros termos,
percepçãopara apreendê-la"(BouRDIEU, 2007,p. 388). E, em seguida, sublinhava que, em o capital simbólico (a honra masculina das sociedadesmediterrâneas, a honorabilidade do
seu entender,capitalsimbólicoé algo "melhorque prestígio,o qual destrói,pela banalização, homem ilustre ou do mandarim chinês, o prestígio do escritor renomado,etc.)não constitui
o que ele designa; inclusive,melhor que carisma porque ele tem a ideia de que, sob certas uma espécie particular de capital, mas aquilo em que se torna qualquer espécie de capital
condições,o capital simbólicopode ser uma importante fonte de ganhos"."É algo da honra, quando é desconhecidaenquanto capital, ou seja, enquanto força, poder ou capacidadede
da posição, da diferença que existe parnalguém que é capaz de fazer diferenças, de ver à exploração(atual ou potencial),portanto, reconhecidacomo legítima" (MP, 285).Assim,se
primeira vista a diferença entre três posiçõese quatro voltas do colar de pérolas".Bourdieu não chegoua duvidar do rigor desseconceito,o próprio Bourdieuse questionou,pelomenos,
referia-se,nesse caso, à intervenção de Angela Rundquist que, nesse colóquio,analisava o para saber se não seria preferívelfocalizara atençãonos efeitossimbólicosdo capital,seja ele
ritual de apresentaçãopública das damas, jovens e mais idosas, em vigor até 1962na corte econômico,cultural ou social, em vez de se concentrar no capital simbólico.
real da Suécia,na qual estas últimas iam fazer uma profunda reverênciaàs damas da família O capitalsimbólicopode, efetivamente,ser difuso,baseadounicamenteno reconhecimento
real a fim de serem assim conhecidase reconhecidas (RUNDQUIST, 2007). coletivo;no entanto, e de acordocom a observaçãode Bourdieuem seus trabalhos e reflexões
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professoresuniversitários,arquitetos,artistas, propunham duas ilustrações,entre outras, do Aliás,esse capitalnão é completamenteindependentedeles(BoURDIEU; SAINTMARTIN, 1978,
pesoimportantede vinculaçãoa um grupo quepode ser uma família,mas tambémumagrande p. 28),de tal modo que é impossível,frequentemente,isolá-lodas outras espéciesou tipos de
école,uma grande corporação,um conselhode administraçãoou um clube.O capitalsocialé, capitais.Ao mesmo tempo, não pode ser reduzido a esta ou aquela das diferentesespéciesde
com efeito,possuídocoletivamentee permite a cada um dos membrosde um grupo participar capital,em particular, ao capital econômicoe ao capital cultural (cujorendimento pode ser
do capital possuído individualmentepor todos os outros (NE).Tal vinculação proporciona multiplicado por ele).No texto de 1980Bourdieusublinha que, "embora seja relativamente
diferentesganhos, que constituemo alicerceda solidariedademediante a qual elesse tornam irredutível ao capital econômico e cultural possuído por um agente determinado ou, até
possíveis.No grupo, nem todos detêm o mesmovolumede capitalsocialque tampoucotem a mesmo,pelo conjunto de agentes a quem está ligado (comobem se vê no caso do novo rico),
mesma antiguidade;daí, uma das questõesformuladaspor Bourdieu,em 1980,se refere aos o capital social não é jamais completamenteindependente deles pelo fato de que as trocas
"mecanismosde delegaçãoe de representação",além de saber quem,entre os seus numerosos que instituem o inter-reconhecimentosupõem ore-conhecimento de um mínimo de homo-
membros,pode ou não representarou, mais ainda, aplicaro capitalsocialdessecoletivo. geneidade'objetiva',e de que ele exerceum efeitomultiplicadorsobre o capitalpossuído com
Aliás, a aplicaçãodo capital social do grupo só é possívelpor alguém que tenha realizado exclusividade"(BouRDIEU, 1980,p. 2).
um importante trabalho de instauração e manutenção desse capital. ''A existência de uma Ao escreveras "Notes provisoires",Bourdieunão utilizavapela primeira vez esta noção
rede de ligaçõesnão é um dado natural, nem mesmo um 'dado social', constituído de uma de capital social, mas é a primeira vez que a tornava central em um trabalho. Ele irá indicar
vezpor todas e para semprepor um ato social de instituição (representado,no caso do grupo com precisão, vinte anos mais tarde, que havia forjado efetivamentetal conceito em suas
familiar, pela definiçãogenealógicadas relaçõesde parentesco que é característica de uma produçõesiniciaisde etnologiana Cabíliaou no Béarn,"para explicaras diferençasresiduais
formação social),mas o produto do trabalho de instauração e manutenção que é necessário associadas,grossomodo, aos recursos que podem ser reunidos, por procuração,através das
para produzir e reproduzirligaçõesduradouras e úteis, aptas a proporcionarganhosmateriais redes de 'relações'mais ou menos numerosas e mais ou menos fecundas" (SSE).Foi,de fato,
e simbólicos"(BOURDIEU, 1980,p. 2). ao empreender suas pesquisas no final dos anos 1950e na década de 1960,na Argélia e no
Desdesuaspesquisassobreos camponesesdo Béarn e das respectivasestratégiasmatrimo- Béarn, sobre a crise das sociedadescamponesase tradicionais, que pôde observar e analisar, .
niais,Bourdieujá estabeleciaa distinçãoentrerelaçõesde parentescoefetivamente"conhecidas, entre outros aspectos, as famílias (sejade condiçãoinferior ou superior), os casamentosou
reconhecidas,praticadas e, como se diz, 'mantidas"',que haviam exigidotrabalho e relações alianças e os casamentos desiguais feitos com pessoa de condição inferior, o celibato dos
genealógicasque "não tardariam a desaparecer,à semelhançado que ocorre com as veredas caçulas no Béarn e a reprodução das linhagens, além de elaborar de forma progressiva
abandonadas,se elasnão recebessemuma manutençãocontínua,mesmoque sejamutilizadas essa noção que ele não utiliza diretamente, na época, em seus textos. A família - conforme
apenasde maneiradescontínuà'.Evoca-sefrequentemente,acrescentavaele,"o quantoé difícil sublinhará posteriormente é o espaço principal do acúmulo e da transmissão do capital
restabeleceruma relaçãoquenãotenhasidomantidaem ação,mediantetrocasregularesdevisitas, social (BouRDIEU, 1980);por conseguinte,ela constitui ponto de partida decisivopara suas
cartas e presentes"(BouRDIEU, 1972).As relaçõese a vinculaçãoa um grupo podemperder sua análises e para a elaboraçãode tal conceito.
eficáciae seu valor,até mesmodesaparecer,se não houverum trabalho contínuopor parte dos Foi nas décadas de 1970-1980,no momento em que Bourdieu empreende pesquisas,
atoresenvolvidos.Semmobilizaçãonem trabalho sobreo capitalsocial,este corre o risco de se simultaneamente, sobre o gosto nas diferentes classes sociais, sobre as Grandes Écoles e
tornar uma espéciede peso morto. E esse trabalho pode ser efetuadoem diferentescontextos, sobre o que ele designa como o campo do poder - de maneira mais concreta, por ocasião
desdea formamundanarealizadapelosaristocratasaté os coquetéisdoseditores,passandopelos das pesquisas que serviram de suporte para seus livros, La distinction (1979)e La noblesse
intercâmbiosde relatórioselaboradospor professoresuniversitáriosou pesquisadores(QS). d'État (1989)-, que recorre com maior frequência à noção de capital social, explicitando-a,
Associações, clubese rallyesde diversostiposencontram-seentreosespaçosquedesenvolvem a mediante o aporte de precisões em diferentes artigos e obras. Na impossibilidade de
aptidãopara constituire manterredes,quepermitemtrabalharsobreo capitalsociale fortalecê-lo. esboçar o percurso completo dessa noção, vamos fornecer aqui alguns pontos mínimos
Alémdisso,essecapitalsocial- quepode ser herdadoda família,adquirido,sejapelocasamento de referência.
ou pelafrequênciaaosmelhoresestabelecimentosde ensino,sejapúblicoouprivado,de Grandes O capital social é evocado em rápidas tintas como "um capital de relações mundanas,
Écoles,de associações,de clubes,que é acumulado,transmitidoe reproduzido- tem-setornado, capital de honorabilidade e capital de respeitabilidade",no artigo "Reproductionculturelle
com uma frequênciacada vez maior,internacional.ComolembraAnne-CatherineWagner,as et reproduction sociale" (1971),que aborda prioritariamente a estrutura da distribuição do
classessuperioresdistinguiram-sesempre por seu cosmopolitismo,constitutivodo estilo de capitalcultural, assim como a estrutura da distribuiçãodo capitaleconômico.Em "Anatomie
vida aristocrata(WAGNER, 2007).Sejacomofor,o volumedo capitalsocialenquantocarteirade du gout" (1976},a concepçãoe a definiçãodo capital social são apresentadas_deforma mais
relaçõesdeixaum espaçocadavezmaior aosdiferentestiposde ligaçõese de relaçõesinternacio- detalhada.Assim,no momentode analisar os clubes,sublinha-seo seguinte:"Ereduzido,sem
nais, constituindo-sede maneirabastantedesiguale, quasesempre,sendoo acessoa eledifícil. dúvida, o número de instituições (seexcetuarmos,em determinados casos,o casamento)que
Nãose pode, com efeito,compreendero que é o capital social,segundo Bourdieu,se essa estejammais diretamente orientadas para o acúmulo racional de capital social:sem mesmo
noção não for relacionada às outras espécies de capital: econômico, cultural e simbólico. falar de todos os ganhos, atuais ou potenciais,que proporcionamou prometem 'relações'tão
se conforme a posição relativa que ocupam no espaço social, todas elas dependentes das
45. CAUSALIDADE
DO PROVÁVEL
propriedadesde que dispõem.As classessociais,para Bourdieu,de;ern ser ent~n~idascomo
conjuntosde agentessituados em posiçõespróximas no espaçosocial,q~e_se~zstmgue~ _de
Ver:Destino
outras classes, situadas em posiçõesrelativas distintas. Em suma, as distmçoes de posiçao,
fundadas em diferençasde propriedade,conferempoder de umas classesem relaçãoàs outras
l
45. CIÊNCIA
(OPS,133-135;MPp, 164).
Pascal Ragouet O significadodado por Bourdieuaos termos "propriedade" e "distinção" - centrais já
na primeira aproximação,abstrata, do seu conceitode classesocial - permite demarcar sua
Para Bourdieu,a ciênciaconstituium "mundoà parte",não só por ser produzidano âmbito perspectivaem relaçãoà marxista, usada frequentementepor ele cornocontrapont_oda sua.
de um camposocialespecífico,mas tambémpor constituirum modo de conhecimentoobjetivo Vejamos,primeiro, 0 que ele entendepor propriedade.Trata-se,desdelogo,de propriedades-
da realidadecomestatutoepistemológico particular.No entanto,a objetividadeda ciênciaé uma no plural _ atuantes, quer dizer, que permitem aos agentesexercerempoder sobre os outros
produçãosocialcoletiva:"Oprocessodevalidaçãodo conhecimentocomolegitimaçãodizrespeito situadosem distintas posiçõesdo espaçosocial.As propriedadessão, pois, recursos de poder
à relaçãoentre o sujeitoe o objeto,mas igualmenteà relaçãoentre os sujeitose, sobretudo,às e as relaçõesde classesão relaçõesdepoder. As propriedadesatuantes,ademais,referem-se
relaçõesentre os sujeitosa propósitodo objeto"(SSR,143).Bourdieugostade lembrar a tese de a distintasformas de capital,não só a modalidadesde capital econômico,mas também ao
Bachelardsegundoa qual "ofatoé conquistado,construído,constatado".Conquistadocontra a que chama capital cultural, ao capitalsociale ao capitalsimbólico.As várias modalidadesde
ilusãodo saberimediato;construídograçasao trabalho de conceitualizaçãoe à implementação recursos econômicos- fundiários, financeiros,monetários, etc. - correspondemao que ele
do raciocíniohipotético-dedutivo;e constatado,ou seja, validadopela coletividadeatravésde entendepor capital econômico.O conjuntodos recursosculturais - sabe~es,incorporad~sou
um trabalho de comunicação.Bachelardinsistesobreesseaspectoem sua obra,LaJormation não _ possuídos pelos agentes, constituem o seu capital cultural. O con3untodos relaciona-
de l'esprit scientifique:"Qualquer doutrina da objetividadeacaba sempre por submeter o mentos sociaisa que cada um pode recorrer para alcançarseus objetivosé denominado,por
conhecimentodo objetoao controlede outrem" (BACHELARD, 1938,p. 241). ele,comocapitalsocialdos agentes.Por último, o capitalsimbólicodiz respeitoao modo como
Mas corno,então,os atores envolvidosem uma dinâmica concorrencial- para impor sua o agentesocial,portador dos seus vários recursos, é percebidopelos ou~rosagentes.Cornoo
definiçãotanto do verdadeiroquanto dos meioslegítimospara dizer o verdadeiro- chegama espaçosocial é multidimensional,cada uma destas formas de capitaltein relevânciavariá;el
um consensoracionalsobrea validadecientíficade um enunciado?Para Bourdieu,esseconsenso em cada um de seus campos- econômico,cultural,político,etc. O que importa para Bourdieu
resulta de urna dinâmica intersubjetivade circulaçãocrítica - que leva a urna "desparticula- é enfatizarque tais recursos (ou capitais)permitem aos agentesexerceremp~der nas dis_putas
rização"e a urna "universalizaçãodos resultados"-, enquadrado socialmentepela existência que ocorrem no espaçosocial ou em camposparticulares deste. Quanto mais se a~ropnarem
de normas que são os produtos da história do campo científicoe arbitrado igualmentepelo de recursos,mais possibilidadesobjetivasde ganho terão as classesde agentesnas disputasque
"real",cujaexistênciaé postuladatacitamentepelospesquisadores.Nessascon1ições,o discurso ocorremno espaçosocial. , .
científiconão poderia ser assimiladoa "um reflexodireto da realidade,a um puro registro", o outro termo em questão, "distinção", diz respeito à exclusão mutua dos agentessi-
nem ao "produto de urna construção, orientada por interesses e estruturas cognitivas,que tuados em posiçõesrelativasdiferentes,cada classesituando-seem luga~distinto em_re!açã~
viessea produzir visõesmúltiplas- subdeterrninadaspelo mundo - dessemundo" (SSR,151). às outras _ posiçõesacima, entre ou abaixo,próximas ou distantes. As diferentesposiçoesso
têm sentido em contraponto umas com as outras.
Referência Em suma, 0 espaçosocialé um espaçomultidimensional de posiçõesrelativas.Neleca_da
BACHELARD,G. La formation de l'esprit scientifique: contribution à une psychanalyse de la posiçãopode ser definidaem função de um conjuntomultidimensionalde c~or~ena~as,cu~os
connaissance objective. Paris: Vrin, 1938. valorescorrespondemao volume total de capitalpossuídopelosagentes(primeiradrmensao)
e à sua composição,quer dizer, ao peso relativo que as diferentesespéciesde capitaltê~ no
47. CLASSE
SOCIAL conjunto (segundadimensão).Além disso, a posiçãosocialde um agenteou de um con3unto
de agentes não é apenas uma posição relativa em urna estrutura social em dado moi:nento;
Brasílio Sallum Jr.
ao invés, a posição social é sempre um ponto em uma trajetória (individual e colet1v:,~e
Edison Ricardo Bertoncelo
ascensãoou descenso)que orientaos agentespara pontos de chegadamais ou menosprovaveis
segundo seus diferentespontos de partida (terceiradimensão). . _
Trata-sede um conceitocuja compreensãodepende de se concebera sociedadecornoes-
Em seus estudossobre a sociedadefrancesa, Bourdieucostumavarepresentar as posiçoes
paço soc,ial.Entendidaa sociedadedesta forma, os agentessociaisocupamdistintasposições
que os agentesocupam no espaçosegundo essas três dimensões.Duas delas_estabele~em_ um
relativas,definidas conforme se distribuem as propriedades entre eles, o que lhes confere
cortesincrônicona estrutura sociale correspondemao volume total de capitaleconomzcoe
poder nas relaçõescom os outros. Assim,os agentessociaissão distinguidose distinguem-
CLASSE SOCIAL 119
118 CAUSALIDADE DO PROVÁVEL
cultural que possuemos agentesem um dado momento (eixovertical) e aopeso relativoque O habitus, o princípionão escolhidodas "escolhas"cotidianas,com sua duplacapacidade
essas espéciesde capital têm no conjunto (eixohorizontal). Assim, no topo da estrutura da de engendrar práticas e de produzir juízos práticossobre as práticas,transmuta o espaçodas
sociedadefrancesa,encontram-seosgrupos dominantes (grandesempresários,profissionais classessociais,o espaçodas diferençasobjetivas,em espaçosimbólico,queé o espaçodos estilos
e intelectuais),que se diferenciamdos demais grupos (operários,funcionários de escritório) de vida. As marcas ou signos de distinção - o conjuntode traços de um estilo de vida - são,
eni termos do volume de capital que possuem e entre si, segundo o peso que os capitais na verdade,retraduçõesexpressivas,por meioda fórmulageradorado habitus, das diferenças
cultural e econômicotêm na composiçãodo capital total. A outra dimensão estabeleceum objetivas.Assimsendo,diferentementede MaxWeber,queentendiaclassee status comoprin-
corte diacrônico na estrutura social, apreendendo cada posição em uma trajetória entre cípiosopostosde diferenciaçãosocial,Bourdieuarticula a ordem econômicae a ordem social.
uma origem e um destino.Assim,determinadasposiçõesintermediáriasna estrutura social Dissemosantesqueo habitus consistede disposiçõesduráveise transponíveis.Sãoduráveis
(comoocupaçõesde escritório)podem ser, para alguns indivíduos,posiçõestemporárias em porqueo habitustendea carregaras "marcas"do passadodo qual é produto,sobretudodas "pri-
uma trajetória que os orienta para posiçõesgerenciaisou de direção. meirasexperiências",relacionadascomas "manifestaçõespropriamentefamiliais"de urna dada
Combase nessaspropriedadese posiçõesrelativas,Bourdieusustentaque se podem definir condiçãode classe.Taisexperiênciasdeurnacondiçãode classee de seuscondicionamentos sociais
classesno sentido lógicodo termo - conjuntosde agentesque ocupamposiçõessemelhantes tendem a se inscreverno habitus comoesquemasde avaliaçãoe percepçãode toda experiência
e estão sujeitosa condicionamentossociaissemelhantes.Em função,podemossupor que têm posterior(SPp,89).Alémdisso,as disposiçõesdo habitussão transponíveisporqueos esquemas
boa probabilidadede terem atitudes e interessessemelhantese, consequentemente,práticas e de ação e percepçãoque orientamas práticasdos agentesse manifestamnos diferentescampos
tomadas de posiçãosimilares.É o que denomina,para sublinhar seu ponto de vista, classes em que se organizaa vida socialsegundoas lógicasquelhes são específicas(campoeconômico,
no papel;não uma classeefetiva,um grupo mobilizadopara a luta, mas urna classeprovável, campopolítico,campocultural,etc.).Comoconsequência,as práticasdos agentesnos diferentes
conjuntode agentesque oporãomenos resistênciaà mobilizaçãocoletivado que se mesclados campossociaistendema se organizaratravésde oposiçõesquesãohomólogasentresi e também
comoutrossituadosem lugaresdistintosdo espaçosocial.Assim,tais classes"nãoexistemcomo homólogasem relaçãoao espaçodasrelaçõesde classe.Nessesentido,as transposiçõessistemáticas
gruposreaisemboraexpliquema probabilidadede se constituíremem grupospráticos,famílias produzidaspelohabitus conformeos camposem que eleoperaconferemcerta homogeneidade
(homogamia),clubes,associaçõese mesmo 'movimentos'sindicaise políticos"(OPS,137). às práticasdos agentesde urna mesmaclasseindependentementede qualquerintencionalidade.
Esteé o primeiroesquemacomqueBourdieuanalisaas classessociais,as classesdefinidas"no Issoporque,diferentementeda tradiçãomarxista,que vê na consciência~e classeo elo queliga
papel".Elede fatovai além.Tentamostrar,ademais,comoelasse manifestamna práticasocial. estruturae ação,Bourdieusublinhaque o habitus é muitomais um inconscientede classe,pois
O habitus é o elementomediadorentre as classesprováveise as práticas.Eleé um sistema operaem um nívelpré-reflexivo,aquémda representaçãoexplícita.
de disposiçõesde conduta duráveis e transponíveis,que funciona comoprincípio gerador O gostode classe- a "fórmulageradoraque se encontrana origemdo estilo de vidâ' - é o
de práticase representações.Elenão se confunde,pois, com o que é "habitual".Aoinvés,o ha- produtoda transponibilidadedo habitus(LDp,165).Assim,diziaBourdieuem seusestudossobre
bitus é um conjuntode esquemassubjacentesàs práticas diversase improvisaçõesreguladas, as camadas populares na França, as escolhas e práticas das classespopulares em diferentes
dentro de limitesassociadosàs condiçõessociaisde sua gênese.Vê-seaqui outra característica domíniosda vida socialexprimem o gosto de necessidade:"[a] submissãoà necessidadeque
do habitus: ele é produto da incorporaçãopelos agentesde uma condiçãode classe,que de- [...] leva as classes populares a uma 'estética' pragmática e funcionalista, recusando a gra-
corre,simultaneamente,de uma situaçãode classe,quer dizer,das "propriedadesintrínsecas" tuidade e a futilidade dos exercíciosformais e de toda espéciede arte pela arte, encontra-se,
a determinadascondiçõesde existência,e de umaposição de classe,ou seja,das propriedades, também, na origem de todas as escolhasda existênciacotidiana e de uma arte de viver que
relativamenteindependentesdas anteriores,que se devem às relaçõesque unem uma classe impõe a exclusão,comose tratasse de 'loucuras', das intençõespropriamenteestéticas"(LDp,
socialàs "outraspartes constituintesda estrutura social."Assim,a condiçãodo camponês,sua 353).Por meio do gosto de classe, as "preferênciasdistintivas" que compõem um estilo de
condiçãode classe,se deve,em parte, à situaçãode trabalhador da terra, que envolvecerto tipo vida exprimem "a mesma intenção expressivâ' em diversossubespaçossimbólicos(mobília,
de relaçãocom a natureza, "feitode dependênciae submissãoe correlativode determinados vestuário, alimentação,etc.) segundo as lógicas que lhes são específicas(LDp,165).
traços recorrentesda religiosidadecamponesâ', e, também, a sua posiçãona estrutura social, Omodeloteóricopropostopor Bourdieuimplica,portanto,na sobreposiçãode três esquemas
que "é sempredominadapela relaçãocom o citadino e com a vida urbana" (EIS, 4). analíticos:o espaçosocial,habitus e o espaçodos estilosde vida, sendo o habitus o elemento
Aspropriedadesde posiçãoestãoligadas,também,ao sentidoprovávelda trajetóriado agente que medeiaa transmutaçãodas diferençasobjetivasem signosdistintivos.Vê-se,assim, que o
e/oupela classea quepertence.Sobretudose essesentidoforvivenciadocomoparte de urna tra- espaçosocialé, simultaneamente,uma estrutura de relaçõesobjetivasque estána origemdos
jetória de classe,eletende a produzir,por meiodas disposiçõesde condutainscritasno habitus, esquemasde percepção,classificaçãoe ação que orientam a prática, e um conjuntode lugares
percepçõescomunsacercado passadoe do futuro e do valor conferidoa eles:"o grau em que os estratégicosa partir dos quais os agenteslutampelaapropriaçãode bens econômicose culturais
indivíd1;1os e os gruposestãovoltadospara o futuro,a novidade,o movimento,a inovação,o pro- e em torno da distribuiçãodos capitais.E comotais lutaspelaapropriaçãodosbens não passam
gresso[...] ou, ao contrário,estãoorientadospara o passado,movidospeloressentimentosociale de disputasem torno da possibilidadede apropriá-losenquantosinais distintivos,o espaçodos
peloconservadorismo, depende[...] de sua trajetóriacoletiva,passadae potencial[...]"(LDp,425). estilosde vida tende a exprimir "um balanço,em determinadomomento,das lutas simbólicas
CONATUS 125
124 COLLÉGE DE FRANCE
1-,,--------------------· ·-•---
"Para evitar a lógicada intenção conscienteque a palavra projeto evoca,nós falaremosde de um sistemade regras:por exemplo,a proibiçãodo incestoé interpretada,nesta perspectiva,
conatus, mesmo com o risco de aparentar uma afetação de linguagem" (MM,712). como a expressãoda regra do intercâmbio entre clãs.
Conatus é, portanto, uma noção correlataao conceitode habitus e à noção de amorfati SeBourdieusecongratulacoma rupturaepistemológica queo objetivismo,diferentementedo
(amour de son destin) também usada esporadicamentepor Bourdieu. Esta última para se conhecimentofenomenológico, operaemrelaçãoao sensocomum,elevaicriticá-lopor negligenciar
referir às expectativassubjetivasque escondemo papel determinante das condiçõesobjetivas o ponto de vista subjetivodos·agentese sua experiênciado conhecimentoprimeiro do mundo
de vida, às quais se ajustam perfeitamente. socialcomoevidente,ou por reduzirambosà categoriade "falsaconsciêncià',de "alienação".Essa
negligênciae, até mesmo,essemenosprezo,deve-seao queBourdieudesignarámais tarde - em
Le sens pratique (1980)e, posteriormente,em Méditations pascaliennes(1997)- por "viés
s2.CONDIÇÃO
DECLASSE intelectualistà'ou "viésescolástico",a saber,o esquecimento,pelo pesquisador,de sua própria
·······················································································································
condiçãoque o conduza projetaro modeloconstruídopor elesobreo real.Bourdieulembra,por
Ver: Classesocial exemplo,quese a línguaaparececomoa condiçãoda falado pontode vistalógico,intelectualista,
ocorre que, na prática,verifica-seo inverso:a língua, o sistemade regras, nunca se manifesta
53. CONHECIMENTO PRAXIOLÓGICO
··································· separadamentedas práticasque a encarname atualizam.E mais do queisso,a aprendizagemda
····················································································
GiseleSapiro
língua se fazpelafala,e esta se encontrana origemdas transformaçõesda língua.Alémdisso,o
intelectualismolevaa erigircomomodeloas situaçõesde compreensãoperfeitaque,na realidade,
Em Esquissed'une théoriede la pratique (1972),PierreBourdieudefineos três modos de são apenasum casoparticular das situaçõesde comunicação,em detrimentode todos os casos,
conhecimentoteóricode queo mundosocialpodeserobjeto,tendoem comumo fatode seoporem tão frequentes,de dissonânciacognitiva.Comefeito,a comunicação,a emissãoe a recepçãoda
aomodode conhecimentoprático,ou seja,ao sensocomum:o conhecimento"fenomenológico", 0 mensagem,o sentidoqueelaencerra,sãoamplamentedependentesda situaçãoe do contexto,ou
conhecimento"objetivistà'e o conhecimento"praxiológico". O conhecimento"fenomenológico" seja,das relaçõessociaisem que elasse insereme que condicionamtambém a forma da comu-
explicitaa familiaridadecom o mundo circundante,percebidocomonatural, óbvio,takenfor nicação.Recusando-sea escolherentreo "modelo"e a "situação"- segundoos termosdo debate
granted. Essemodo de conhecimentoé privilegiado,nas ciênciassociais,pelo interacionismo que,na época,opôsJean-PaulSartrea ClaudeLévi-Strauss-,Bourdieupreconizauma abordagem
simbólicoe pela etnometodologia.Semnegar o interessede tal abordagem,adotadano decorrer quenão reduza as práticasà execuçãomecânicade uma regra,independentementedessaregra
de sua formaçãoem filosofia,Bourdieuvai criticá-lapor permanecerno nívelsubjetivoou in- se referir a uma norma (juridicismo),a um inconscientecoletivoou a um modeloteórico.
tersubjetivo,semnunca se questionarsobreas condiçõesde possibilidadedesseconhecimento. Omodode conhecimento"praxiológico" visaprecisamentea reposicionara práticano âmago
O segundo modo de conhecimentoteórico identificadopor Bourdieu é o procedimento do questionamento.Semrejeitara construçãoobjetivista,comofazo humanismoingênuo- que,
"objetivista",ao qual elevai dedicar-sedurante um períodomais longo,considerandoa posição aliás,a consideracomoum "anti-humanismo"-, Bourdieupretendeintegrar as própriasrefle-
dominante que tal modalidadehavia adquirido no campo intelectualda década de 1960 com xõesao modo de conhecimentopraxiológico,superando-o:ele reintroduzo que o objetivismo
o marxismo e o estruturalismo. Esseprocedimento consiste em construir relaçõesobjetivas foiobrigadoa excluir,ou seja,a questãoda experiênciaprimeirado mundo comonatural, como
(econômicas,linguísticas) que estruturam as práticas e as representações independente- óbviae, portanto, o ponto de vista dos atorescomofazendoparte da realidadea ser observada.
men~e~a_sconsciênciasindividuais. Assim, no lado oposto da abordagem fenomenológica, Por conseguinte, seu objeto não é somente o sistema das relaçõesobjetivas,mas também o
o ob~e~1:1smo caracteriza-se precisamente por seu questionamento sobre as condições de processode interiorizaçãodessesistemasob a forma de disposições.Ao serviremde estrutura
possibilidadedo conhecimento,mas ao preço de uma ruptura com as evidênciasdo senso ao comportamento- encarnando-senas práticasindividuais- e à percepçãodos agentes,tais
comum - portanto, com os pressupostos que tornam o mundo familiar. Ele opera, assim, disposiçõesfazemcom que esse sistemalhes apareçacomonatural. O modo de conhecimento
uma "desnaturalização"da percepçãodo mundo. praxiológicoadota, assim, os meios de estudar as condiçõesde possibilidadeda percepçãodo
Esseé o caso do marxismo ao se interessar pelas relaçõesde forçaeconômicas.Da mesma mundo comoóbvia.Aspráticase representaçõesnão sãoapenascapturadasdoladode fora,mas
forma, a linguística saussuriana toma como objeto a língua enquanto sistema de regras que no processode sua interiorização- atravésda educação- soba formade estruturasestruturantes
torna possível a comunicação,em vez da fala, reduzida a manifestações individuais desse das disposiçõespara agir e percebero mundo.Vê-seaqui,em ação,o trabalho de construçãodo
sistema:assim, ela se colocado lado do ato de decifração,decodificação,e não do lado da ação conceitode habitusparaexplicaro princípiogeradordepráticase dasrepresentações estruturadas.
do locutor.Na história da arte, a iconologia(tal como é desenvolvida,por exemplo,por Erwin Se o conceitode "praxiologià',com conotaçãomarxista, irá bem cedodesaparecerda obra
Panofsky,1967) considera, da mesma forma, que o sentido objetivoda obra é irredutível à de Bourdieu,a abordagemque eledesenvolvesob esteconceitoirá permanecerfundamentalnão
von_tade~do,artista ou às percepçõessubjetivasdo espectador. Neste aspecto, a operação de só para a construçãode uma teoria da prática,mas também em sua práticasociológicapropria-
dec1fraçaoe colocadaainda no cerne do questionamento.Na esteirado modeloda linguística, mentedita; testemunhodissoé o lugarque Bourdieuatribuiao ponto devista dos agentes,à sua
a antropologiaestrutural de Lévi-Straussapreende,por sua vez, as práticas comoa execução visãodo mundo,na construçãodo objetoe na metodologiade investigação- ponto de vista que
é restituídopor entrevistasou fontesescritas-, cujailustração mais bem acabadaé seu livro La essa fórmula, Bourdieu procura reconciliar a estrutura com a ação: "Por estruturalismo
miseredu monde (1993).No entanto, fielà sua crítica do modo de conhecimentoprax:iológico, ou estruturalista, pretendo dizer que, no próprio mundo social - e não apenas nos siste-
Bourdieununca chegaráa endossaras abordagenssubjetivistasque limitam a análisecientífica mas simbólicos, linguagem, mitos, etc. ~, existem estruturas objetivas, independentes da
à explicitaçãodo ponto de vista dos indivíduos.Essa é, sem dúvida, a razão pela qual, na nova consciênciae da vontade dos agentes, que são capazes de orientar ou restringir as práticas
ediçãode Esquissed'une théoriede la pratique, em 2000, ele acrescentouum trecho em que ou representações desses agentes. Por construtivismo, quero dizer que há urna gênese
critica o subjetivismoou o intersubjetivismofenomenológicoque se tinha tornado dominante social de urna parte dos esquemas de percepção, de pensamento e de ação que são cons-
nas ciênciassociais,desde os anos 1980(emLe senspratique, 1980,sua crítica da antropologia titutivos do que designo como campos e grupos, nomeadamente do que é denominado,
imaginária do subjetivismoconcentrava-seem Sartre e nas teorias da açãoracional):de acordo de modo habitual, corno classes sociais" (CD, 147). Ele sublinha a complementaridade
com Bourdieu,de fato,a ciênciado mundo socialnão pode ser reduzida a construçõesde cons- entre essas duas abordagens,"em boa lógica,inseparáveis"(NE,7). Todavia,do ponto de vista
truções - ou construções de segundo grau -, como havia sugeridoAlfred Schütz,ou ainda a da construção do objeto, existe uma preeminência do momento objetivista, único meio de
accountsof accountssegundoHarold Garfinkel,porque ela não seria, então,nada além de um garantir a indispensável ruptura com o senso comum e a doxa.
"registrodo dado tal como elese dá, ou seja,da ordem estabelecida".O modo de conhecimento SeBourdieu fala de construtivismo em vez de subjetivismo,é para indicar que os agentes
praxiológicoexigeque se relacioneo ponto de vista dos indivíduos, assim como suas crenças, participam ativamente da produção e reprodução das estruturas sociais, que o mundo social
com suas condiçõeseconômicase sociais;nesse aspecto é que a sociologiado conhecimentoé, é efetivamenteconstruído pelas ações desses agentes.No entanto, isso não significa,de modo
"inseparavelmente,uma sociologiada política"no sentido em que ela revelaos "mecanismos algum, que o mundo social seja uma pura criação das decisões conscientesdos mesmos: "Se
gnoseológicosque contribuempara a manutenção da ordem estabelecida"(ETP,241). é convenientelembrar, contra certa visão mecanicista da ação, que os agentes sociais cons-
troem a realidade social, individual e também coletivamente,impõe-se não esquecer - como
Referência ocorre,muitas vezes, com os interacionistas e etnometodólogos-, que eles não construíram
PANOFSKY,E. Architecture gothique et pensée scolastique. Tradução e posfácio de P. Bourdieu. as categorias que estão empregando nesse trabalho de construção" (NE, 47).
Paris: Minuit, 1967. Emmatériadesociedade,o construtivismose opõeà naturalizaçãoda ordemsociale,portanto,
combinaperfeitamentecom a ideiade arbitráriocultural.O construtivismotem uma vantagem:
eledesfatalizapor implicar que a sociedadepoderia ser,certamente,construídade outra manei-
54. CONSTRUTIVISMO ra. Mas,podeter também uma desvantagemse induzir a acreditarque,por seremconstruídas,as
Denis Baranger estruturas deixam de ser reais - essaé a "rigidezdo mundo",diria RobertCastel(2003,p. 347)-,
e que a liberdade dos agentes para se livrarem dos determinismos sociais é ilimitada.
É na década de 1980que Bourdieu utiliza esta palavra. A seu respeito, conviria distinguir O mesmo ocorre no que se refere ao conhecimento científico.Em seu último curso mi-
dois sentidos, mesmo que estes não sejam totalmente independentes um do outro: por um nistrado no College de France (2000-2001),o termo "construtivismo" permanece quase
lado, trata-se da construção significativado mundo social, de acordo com o título original imperceptível,embora esse rótulo pudesse ser apropriado para designar a região do "campo
do livro de Schütz (1932),ou seja, da capacidade dos agentes de construir a sociedade; por das ciênciasda ciência"que Bourdieu torna como objetode estudo. Ele se assume ainda como
outro, continua sendo a construçãodo objeto bachelardiana.Assim, Bourdieu pode definir construtivistacontra o "paradigmanorte-americano"(SSR,41),mas essa era apenas a maneira
a ciência social como "uma construção social de uma construção social" (SSR,172);mas não de se diferenciar melhor do c~nstrutivismo radical e do relativismo, os quais unificam o
seria possível,de modo algum, qualificar Bourdieu como construtivista propriamente dito. subcampo pós-modernista na "guerra das ciências".O que Bourdieu rejeita absolutamente é
Para Bourdieu,à semelhançado que se passa com Bachelard,o oxímoro é a figura retórica a ideia de que as verdades científicaspossam ser reduzidas a relações de força políticas: em
prediletapara se desvencilharda armadilha de um binômio epistemológico.QuandoBourdieu, um campo científicoautêntico (portanto, autônomo),as proposiçõessó devemser tributárias
em sua conferênciaproferida em San Diego, escolhe o rótulo "construtivismo estruturalis- "da prova da coerência e do veredito da experiência" (MP,132-133).
ta" - ou "estruturalismo construtivista" - para caracterizar seu trabalho (CD,147),pode-se Aotornar o campo científicocomo objeto,Bourdieué levadoa rejeitartanto a visão realista
ver nessa postura uma transfiguração do binômio objetivismo/subjetivismo,presente desde ingênua quanto a visão construtivista relativista, superando assim "a alternativa do constru-
seus primeiros trabalhos, culminando emEsquisse d'une théorie de la pratique, nos "três tivismo idealista e do positivismo realista em favor de um racionalismorealista"(SSR,151).
modos de conhecimento teórico" (ETP,163). Para ele, isso tem a ver ainda com um oxímoro, já que se trata aqui, evidentemente, de um
Assim, o estruturalismo levisstraussiano seria uma forma particular de manifestação realismo epistemológico(e não ontológico,à semelhança do que ocorre com o de Popper).
do objetivismo(do mesmo modo que a linguística saussuriana, a serniologiae a estatística), F. Vandenberghe (1999,p. 62) refere-se a uma carta em que Bourdieu declarava que, "a
enquanto a fenomenologia e o pensamento de Sartre - assim como a etnometodologia, exemplode [Roy]Bhaskar,do qual havia descoberto recentementeos trabalhos, eletinha sido
o interacionismo e a rational choice theory - seriam expressões do subjetivismo. Com sempre um realista". Por sua vez, I. Hacking (2004, p. 161)evoca o realismo interno de H.
CONSTRUTIVISMO 129
128 CONSTRUTIVISMO
Putnam: "interno pelo fato de que todos os critérios da verdadesão internos a nossaspráticas Em dezembrode 1995desencadeou-sena Françaum grandemovimentosocial- marcado
científicas",explica ele. Bachelard não teria escolhido, certamente, a expressão, mas não pela greve,durante um mês, de diversosserviçospúblicos para protestar contra a revisão,
estaria assim tão longe da ideia. Hacking (2004,p."156)toma distância em relaçãoa Popper: pelo governo de direita, de "direitos sociaisjá adquiridos" e, em particular, dos regimes de
"Bourdieupretendeu transformar as lutas de confronto travadas no campo científicoem um aposentadoria.Alémdessesaspectos,o pensamentoneoliberalquestionava,no finaldas contas,
fator constitutivo da objetividadee, até mesmo, da verdade dos enunciadoscientíficos.Para o Estado-Providênciae seu papel na sociedade.Se Pierre Bourdieu,desde o início,pretendeu
Popper, a verdade é sempre uma correspondênciacom algo de diferente, algo de absoluto, que as ciênciassociaisdeveriamestar ativamentepresentesnos debatespolíticos,ocorre que,
enquanto Bourdieu rejeita qualquer espécie de teoria da verdade como correspondência". até o final dos anos 1980,sua participaçãose limitou, em grande parte, ao campo intelectuale
Hacking está cheio de razão ao opor, neste ponto, Bourdieu a Popper, mas vai talvez longe à produçãode obras, algumas das quais - cf. Les héritiers,1964;La reproduction,1970;La
demais quando concluipor sua rejeiçãode qualquer ideia de correspondência. distinction,1979,etc. - haviam obtidoalgum sucessoentre o público.No entanto,La misere
J.Bouveresse(2003,p. 29), por último, que se define de bom grado como discípulo e -du monde,livro publicadoem 1993,marca uma virada no sentidoem queBourdieumanifesta
amigo de Bourdieu, partilha com ele "a necessidadede reabilitar - e, se for o caso, contra mais diretamente sua preocupaçãoem se envolverna luta política,intervindopor meio de to-
os próprios sociólogos- uma filosofiadas ciências e uma teoria do conhecimento de tipo madasde posiçãopontuais,de artigosenviadospara a imprensa,de assinaturasde petição,etc.
realista" (BOUVERESSE, 2003,p. 132). No final de 1996,em consonânciacom as lutas sociais,elecria uma pequenaeditoramilitante
Bourdieu havia tomado sempre o partido da ciência contra os exagerosconstrutivistas - Éditions Raisons d'agir - por meio da qual pretendeprosseguir,em companhiade outros
que, em última instância, conduzem à negação da ciência social. Ele teria subscrito, sem autores,o combatecontra o neoliberalismoatravésda publicaçãode opúsculosbastante aces-
nenhuma dúvida, as simples questões de bom senso formuladas por Bernard Lahire (2001) síveis,redigidospor pesquisadores.Contre-feuxinscreve-se,pois, precisamentenessalógica.
a propósito da deriva construtivista pós-modernista: "Se o ator comum é maior sociólogo O livro é publicado em 1998e agrupa diversas intervençõespontuais de Bourdieu, cujo
que o sociólogo,que tipo de legitimidadetem o sociólogopara lhe atribuir um certificadode ponto de convergênciareside na denúncia dos lugares comuns e das falsas evidências,pro-
sociologia?Se o relato dos atores é mais completoe exprime melhor do que poderia ser dito duzidospela ideologianeoliberal. Entre outros, é de se destacar a importância do texto "La
pelo sociólogo,por que motivoesteúltimo correria o risco de destruir essaverdadeem estado main gaucheet la main droite de l'État",que abre a coletâneae torna explícitaa oposiçãoentre
bruto ao escreversobre o assunto? Se o ator comum revela-semais erudito que o cientista, uma pequena nobreza de Estado que, sofrivelmente,gerenciaos danos da políticaneoliberal
por que razão este continua vivendo como funcionário do Estado?"(SSR,111). empreendidapor uma alta nobreza do Estado privilegiada,e o texto principal que encerra
o livro, "Lenéo-libéralisme,utopie (en voie de réalisation) d'une exploitationsans limites".
Referências
BOUVERESSE, J. Bourdieu:savant et politique. Marseille:Agone,2003.
56. CONTRAFOGOS
2: PORUM MOVIMENTOSOCIALEUROPEU
CAST_EL, R. Pierre Bourdieu et la dureté du monde. In: ENCREVÉ,P.; LAGRAVE,R.-M. (Orgs.).
TravailleravecBourdieu. Paris: Flammarion, 2003.p. 347-355. (Contre-feux 2: pour un mouvement social européen)
•••••••• .. •••~••••••••••••••••••••••••••••••••••••n••••••••••••••••u•••••••••••n••••••••••--•••u•••••••--•••••••••••••••••••••••••u•••••••••••••n••••••••••••••••••••••• •
ENCREVÉ,P.;LAGRAVE, R.-M. (Orgs.).Travailleravec Bourdieu. Paris: Flammarion, 2003.
Patrick Champagne
HACKING,I. La scíencede la scíencechez Pierre Bourdieu. In: BOUVERESSE, J.; ROCHE,D. (Orgs.).
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LAHIRE,B. Leslímbes du constructívisme. Contretemps,v. 1,p. 101-112,2001.
SCHÜTZ,A. Der sinnhafte Aufbau der sozialen Welt: eine Einleitung in die verstehende Sozio-
Naprecedenteobra Contre-feux(1998),PierreBourdieuhaviaelaboradouma críticaradical
logie. [A construção significativado mundo social: introdução à sociologiacompreensiva]Viena: J.
do neoliberalismo,condiçãoprévia para qualqueração racional.Em Contre-feux2 (2001)ele
Springer-Verlag,1932.
reúne,segundoo mesmoprincípioadotadopara a primeiraobra,diversostextosde intervenção
VANDENBERGHE, F. "The Real is Relatíonal": an Epistemologícal Analysis of Pierre Bourdieu's
GenerativeStructuralísm. SociologicalTheory,v. 17,n. 1, p. 32-67,1999. quevisam lançar as bases de uma açãoem escalaeuropeia.Bourdieuexplicasua participação,
cada vez mais ativa e visível,no movimentosocial:"Acabeipor pensar que todos aquelesque
têm a oportunidadede dedicar suas vidas ao estudo do mundo socialnão podem permanecer
55. CONTRAFOGOS:
TÁTICAS
PARAENFRENTAR
A INVASÃONEOLIBERAL neutrose indiferentes,longedas lutas que põem em jogo o futuro destemundo",escreveelena
(Contre-feux:
propospour servirà la résistancecontrel'invasionnéo-libérale) introduçãoao livro. Os textos reunidos neste volumesão, em comparaçãocom o precedente,
menospontuais, mais longos,mais construídose mais elaborados,talvezpor se inscreverem
Patrick Champagne em lutas intelectuaisque, em sua essência,são "lutas teóricasnas quais os dominantespodem
contarcommilharesde cumplicidades".Em suas diversasintervenções,analisao novomodode
P.Contrafogos:
BOURDIEU, táticaspara enfrentara invasãoneoliberal.Riode Janeiro:JorgeZahar,1998. dominação,tão complexoquantorefinado,queo neoliberalismoimplantou:verdadeiramáquina
130 CONTRAFOGOS: TÁTICAS PARA ENFRENTAR A INVASÃO NEOLIBERAL CONTRAFOGOS 2: POR UM MOVIMENTO SOCIAL EUROPEU 131
(Contre-feux: propos pour servir à la résistance contre l'invasion néo-libérale) (Contre-feux 2: pour un mouvement social européen)
-------------·------
cegae sem condutor,na qual o poder simbólicoocupaum lugar importante,o quejustifica,em No artigo "Os três estados do capital cultural", Bourdieu destaca o estado incorporado
seu entender,o papeleminenteque os pesquisadoresdeverãodesempenharem um movimento comouma das três formas de existir do capital cultural e, mais ainda, afirma que este seria
socialeuropeuque ainda está por criar. O artigo central dessacoletâneade intervençãoé, sem seu estado fundamental. Ligado ao corpo e pressupondo sua incorporação, a acumulação
dúvida,aquelequese intitula:"Contrela politiquede dépolitisation".Nesselongotexto,Bourdieu desse tipo de capital cultural demandaria um trabalho de inculcação e de assimilaçãoque
mostra que aquiloque se encontradescritosob o nome de "globalização"é o efeito,não de uma custaria tempo de investimenfodo agentesocial,tal como um "bronzeamento"(EE,74).
fatalidadeeconômica,mas de uma políticadeliberada,inconscientede suas consequências,que Em Questões de sociologia (1980),por sua vez, aborda vários textos sobre a problemá-
visalibertaras forçaseconômicasde qualquercontrole.Contraessapolíticade despolitização,ele tica do corpo, as práticas corporais e a mimesis corporal.Refere-se,na obra, à história feita
preconizaa restauraçãoda política.Mas, doravante,convémagir em um nívelque se situa para coisae a história feita corpo, afirmando que "a história está inscrita nas coisas,ou seja, nas
alémdas fronteirasdoEstadonacional:o movimentosocialdeveposicionar-seem escalaeuropeia. instituições e também no corpo" (QS,74).Todo seu esforçoteria consistidoem descobrir a
história onde ela se escondemelhor, a saber,nos cérebrose nas dobras do corpo.
As reflexõessobre o corpo ainda se fazempresentes em Coisas ditas (1987),Meditações
57. CORPO
······················································································································· pascalianas (1987)e A dominação masculina (1998),onde se exploram o conhecimento
Cristina Carta Cardosode Medeiros pelo corpo, a incorporação das disposiçõese a coerçãopelo corpo.
Na abordagemsociológicadesenvolvidapor Bourdieuficaclaro que a maneira de estar no
A partir de uma genealogiadestetema nos escritosde Bourdieu,percebe-seque as reflexões mundo se devea um processode pertencimentosocial.O indivíduoé um coletivoencarnado,
sobreo corpojá estavampresentesdesdeos anos 1960,em suaspesquisasrealizadasna Argélia. um socialincorporado.A relaçãodo corpocom o mundo é, implícitae explicitamente,ligadaà
Foiobservandoque a inversãosimbólicaentre o interior e o exteriorda casacabilaera também imposiçãode uma representaçãolegítimado·corpo.Ocorposocialé o corpodoindivíduoportador
uma inversãogeométrica,e assim corporal, que Bourdieu (ETPp)começoua introduzir em do habitus, uma vez que as disposiçõesincorporadasmoldam o corpo a partir das condições
suas análisesuma sociologiado corpo.Paralelamenteàs investigaçõesna Argélia,eletambém materiaise culturais. Este é o processode socialização,produzindoum ser individualforjado
verificavao celibatodos filhosmais velhosno Béarn e desenhavaa condiçãocampesinaa partir nas e pelasrelaçõessociais,fazendoda própriaindividualizaçãoum produtoda socialização.Por
do corpo (BC).Realizandoa observaçãode determinadoseventossociais,descreveue interpre- issoa noção de habitus articula o individuale o coletivoe englobao corpo,porque,enquanto
tou as técnicascorporaiscomoverdadeirossistemassolidáriosa todo um contextocultural. disposição,passa a orientar as práticascorporaisque traduzemuma maneira de ser no mundo.
Em "Remarquesprovisoiressur la perceptionsocialedu corps"(1977),Bourdieuafirmaque "Oquese aprendepelocorponão é algoque, comoum saber,se possasegurar diante de si, mas
o corpo, comouma forma perceptívelque causa uma impressão,é, de todas as manifestações é algoque se é" (SP,123).Nessaafirmaçãoo autorse refereà ideiade que o saberaprendidopelo
do indivíduo,a que menos se deixa modificar,apesar de investimentosde ordem variada. O corpo,entendendoestesabercomoum esquemade sistemasde investimentosocialque o corpo
corpo deveser levadoem consideraçãopor significar,de maneira mais adequada,a natureza incorpora,não é palpável.O corpo não representaum papel,não interpretaum personagem,e
de uma pessoa,funcionando,portanto, como um meio de linguagemda identidadesocialem simse identificacomesteformatodeterminadosocialmente,constituindoa partir desteformato
que "seé falado,mais do que se fala"(BouRDIEU, 1977,p. 51).No corpo se leria a linguagemda a imagem de si. Reconhecidacomo sua maneira de ser, o agentenão consegueperceberque
natureza cultivadaem que se trai o mais escondidoe o mais verdadeiro,já que é o menoscons- grandeparte do investimentono corpoquevisa a sua construçãosocializadaé responsávelpor
cientementecontroladoe controlávele que contamina e determina as mensagenspercebidase determinar sua posiçãode ocupaçãono espas;osocial.
despercebidas.O corpo seria entãoum produto socialdesdeas dimensõesde sua conformação Bourdieu(LD)utiliza também em seu quadro teóricode análise a noção de capitalcorpo-
visível,derivadade condiçõessociais,até as formasde se portar e de se comportar,expressando ral, afirmando que as propriedadescorporaispodem funcionar como capitalpara a obtenção
toda a relaçãocom o mundo social. de lucros sociais, para conceder à representaçãodominante do corpo um reconhecimento
Em A distinção: crítica social do julgamento (1979),Bourdieu destaca que as aquisi- incondicional. Além das propriedades corporais, o capital corporal também abrangeria a
ções incorporadas são determinadas socialmentee se inscrevemno corpo na maneira de se habilidade corporal para a prática de esportes. A aprendizagemde uma habilidade especí-
movimentar e de cuidar do corpo. O sociólogodestaca a manipulação entre o ser e o dever ficaseria mais rentávelna medida em que se daria de forma precoce.A tradição familiar, a
ser em tudo que concerneà imagem ou à utilização do corpo, que conta com a cumplicidade postura, as técnicas de sociabilidadese a aprendizagemprecoce de uma habilidade motora
inconscientedaquelesque contribuempara a produçãode um mercadoinesgotávelde produtos podem interditar alguns esportes e práticas corporais às classespopulares.
que são oferecidospara impor uma nova hexis corporal, dimensão fundamental do senso Destacando a importância do que é apreendido pelo corpo e que se encontra velado à
de orientação social. Bourdieu (LD,210) afirma que "o gosto contribui para fazer o corpo compreensãodo agente,Bourdieu(1998,p. 3) escreveque "as injunçõessão particularmente
de class,e"pela cultura tornada natureza, ou seja, incorporada, que escolhee modifica tudo poderosasporque elasse dirigemprimeiramenteao corpoe não passam necessariamentepela
que o corpo ingere,digere e assimila. O corpo é, portanto, "a objetivaçãomais irrecusáveldo linguagem e pela consciência".A submissãoàs determinaçõesdas disposiçõesse origina na
gosto de classe"(LD,210). própria incorporação destas disposições.Esta submissão se aloja profundamente no corpo
L
socializado, sendo a expressão do que ele denomina a somatização das relações sociais de O uso da noção de crença passa por um desejo do autor de provocar e sensibilizar o olhar
dominação. Para o autor, a somatizaçãoprogressivadas relaçõesfundamentais que são cons- do observadorsocialsobre o caráter arbitrário e sagrado do universosimbólicodas sociedades.
titutivas da ordem social inscreve-sena hexis corporal, ou seja, nas posturas, disposiçõese De caráter naturalizado, as crenças são sempre coletivas e sempre produtos de construções
relaçõesdo corpointeriorizadaspelo indivíduo,induzindo sua maneira de agir,sentir e pensar. queremetem a um jogo de forçasentre agentesou grupos sociaisdiferentementeposicionados
Os efeitosda dominação se exercempor intermédio de uma relação de adesão corporal e na estrutura social. Derivam do conhecimento de uma "verdade", de seu conhecimento e
o vocabulário da dominação estaria repleto de metáforas corporais, sendo que a submissão a reconhecimentosocial e individual, que se realiza como umq segunda natureza. As crenças
uma "ginástica"da dominação encontra-se inscrita nas posturas, na maneira como se curva se constituem no pano de fundo que orientam as condutas, os pensamentos, um conjunto de
o corpo, onde a ordem social se inscreve de forma duradoura, e nos automatismos do cérebro disposiçõeséticas e estéticas que alimentam o sentido prático das ações individuais.
(BouRDIEU,1982).Os investimentos no corpo e em suas posturas têm destaque no processo Nessesentido, poderíamos afirmar que "crença"não é um simplesvocábulona estrutura
de dominação, como princípio de atuação do poder. A concretude desse investimento pode do pensamento de Bourdieu. Trata-se de um termo que revela significativa contribuição
ser verificada, por exemplo, nas instituições de ensino, onde se atesta a associacão de duas para se compreenderem os processos de construç.ãodo social, tornando-se um importante
formas de comunicaçãoe inculcação,a saber, os discursos e a modulagem de um ~orposocial . instrumental para perscrutar o universo inconsciente das ações individuais e coletivas.Não
encarnado em um corpo biológico,servindo de porta-voz das crenças socialmente determi- fazendouso das distinções entre as ciênciashumanas, Bourdieuentende que o cientista social
nadas e aceitas. É o que evoca a noção de "esprit de corps",fórmula que, segundo Bourdieu deve se armar de todo o tipo de ferramenta conceituai para penetrar na complexidadedas
(1982),é sociologicamentefascinante e aterrorizante. realidades sociológicas.Tudo leva a crer que a noção de crença encerra essa complexidade,
O efeito da dominação simbólica sobre o corpo é tratado por Bourdieu (DMp,50) como remetendo a um feixede condicionamentossocializadoresque mescla dimensões obJetivase
uma "força mágica",ou seja, uma força simbólica·como"forma de poder que se exercesobre materiaisbem como subjetivase simbólicasda vida grupal e individual. Semdúvida tal noção
os corpos, diretamente, e como que por magia, sem qualquer coaçãofísica;mas essa magia só é reveladorade um esforçooriginal de compreensãodas relaçõesdialéticas entre indivíduo e
atua com o apoiode predisposiçõescolocadas,comomolas propulsaras,na zona mais profunda sociedade,expressandoa força do pensamento interdisciplinardo autor bem comoseu esforço
dos corpos". É sob forma de esquemas de percepções e de disposições que se inscreve um em revelar os mecanismos de orquestração dos sentidos que tecem as urdiduras do social.
sistemade estruturas nos corpos dos dominados,tornando-os sensíveisa certas manifestações
simbólicas do poder e aptos a entrar no jogo social.A ordem social determina então a ordem
Referências
do corpo, tornando-o ao mesmo tempo lugar de investimento e princípio de sua eficácia.
DURKHEIM,E. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo:Martins Fontes,2009.
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59. CULTURA
Enio Passiani
ss. CRENÇA
······················································································································· Maria Arminda do Nascimento Arruda
Maria da Graça]acintho Setton
Oconceitode culturaelaboradopor Bourdieu,comotoda a sua obra,é o resultadodo esforçode
Herdeirodo pensamento sociológicoclássico,Bourdieuse apropria do termo "crença"para integraras tradiçõesdos "paisfundadores"da sociologia,Marx,Durkheime Weber.Dessemodo,
analisar o caráter mágico e oculto de processos de interiorização de valores sociais realizados a culturarefere-seaoselementossimbólicosda vida social,ou seja,um conjuntode representações,
em uma açãopedagógicaanônima extremamentepoderosa.Tributáriodo raciocíniode autores valoresmorais e ideaisque institui e organizaa sociedade.Os aspectossimbólicosde uma dada
comoMax Weber(1991)- carisma-, ÉmileDurkheim (2009)- conformismomoral e lógico-, organizaçãosocialnão existemacimados indivíduos,como"estruturaestruturadà', mas a partir
e Marcel Mauss (1974)- a economia das reciprocidades simbólicas -, Bourdieu faz uso da da açãodos própriosindivíduosuns em relaçãoaos outros,sujeitaa mudanças,como"estrutura
noção de crença para expressar mecanismos dialéticos de reforço entre estruturas sociais e estruturante".A ação, pois, não se resume à mera execuçãodeterminada pela estrutura, mas
estruturas mentais não facilmente identificáveis. Ainda que a análise desses autores, nesse toma-sea fonte da qual brotam as significaçõesdo mundo social,os seus possíveissentidos;em
particular, se refira, sobretudo, à esfera da vida religiosa e cultural dos grupos, Bourdieu · suma,a cultura é, a partir da açãodos agentes,a elaboraçãode esquemasde percepçãodo mundo,
vai além, extrapolando sua utilidade para outras dimensões da vida social - ou seja, todas uma maneira de descrevê-loe compreendê-lo.Os agentessociais,por sua vez,ocupam posições
aquelas responsáveispela produção dos sentidos (SP). objetivamentedefinidasna estrutura socioeconôrnicada sociedade;são suas posiçõesde classe,
134 CRENÇA
CULTURA 135
responsáveispor nelescriar certasinclinações,disposições,inclusiveas culturais.Essesistemade emsi mesmos.Asoposiçõesentreas classes,portanto,nãoserestringemà possedebensmateriais,
disposiçõesduráveis,transferíveis,mas não imutáveis(o habitus),determina,em boa medida, mastambémseverificamnos estilosde vida configuradospelaspráticasculturais,manifestações
as práticassubjetivasdos agentes.A cultura,assim,passapor um processosocialde objetivação, fenomênicasda cultura,principalmenteo gostoestético.A dominaçãode classe,nos termosde
ganhandomaterialidadee tornando-seo domíniodaspráticase bensculturais,quese comportam Bourdieu,supõea mobilizaçãode um poder simbólicoque consegueimpor certassignificações
comosuportesdos sentidos.O universosimbólicoconhecidocomocultura,espéciede instância comolegítimas.Dessaperspéctiva,asrelaçõessociaissãoigualmenterelaçõesdeconcorrênciaentre
metafísicae subjetiva,é objetivadoem práticasque se relacionamcom as posiçõesde classedos "arbítriosculturais",sãolutasde classificação.
É a lutaentreclassese fraçõesde classestranspostas
indivíduos,portanto,comsuascondiçõesmateriaisde existência.Oconhecimentoe o consumodos paraa dimensãocultural.A imposiçãodo arbitráriocultural,autênticoatode violênciasimbólica,
bensculturaissãoclassificantes, istoé,os agentessociaisse classificame se opõemreciprocamente garanteà cultura dominantese apresentarcomoúnica culturalegítima,tornando a dominação
no momentoem que se dedicama esta ou aquelapráticapor meiodas quaismanifestamos seus reconhecidae aceitapelosdemaisgrupos.As hierarquiasculturais (a alta cultura,a cultura das
gostos(estéticos):frequentaçãoaosmuseus,osusose a apreciaçãoda fotografia,osgostosliterário classesmédiase a culturapopular)reproduzem,de formaeufemizada,as hierarquiassociaise a
e musical,o tipo de vestimenta,a gastronomiae até mesmoa hexis corporal. estruturade dominaçãoda sociedade.Assim,osindivíduosnãopercebemquea culturadominante
Nessesentido,as capacidadesde produzir,reconhecer,consumir,admirar e apreciaros bens é a culturadas classesdominantes;elesacreditamqueelaé dominanteporqueé intrinsecamente
culturaisnão correspondema predisposiçõesou competênciasinatas,mas são arbitrárioscul- superioràs demais.Ouseja,os indivíduospercebemcomohierarquiassimplesmentesimbólicaso
turais inculcadospor processosde aprendizagemdesenvolvidospor instituiçõessociaiscomoa quesão,principalmente,hierarquiassociais.Atransfiguraçãodashierarquiassociaisemsimbólicas
familiae a escola:a primeira transmite comoherança às geraçõesmais jovensurna disposição permite,apontaBourdieu,a legitimaçãoe a justificaçãodas diferençassociais,revelandoque as
cultivadapor meiode experiênciasextraescolarese de modo muitasvezeslúdico,livredas obri- práticasculturaisnadatêm de ingênuasouinofensivas,poisestabelecem,de maneiradissimulada,
gaçõesimpostaspelaescola(éo capitalculturalincorporado),porém,ao mesmotempo,crucial uma lógicada distinçãoque é, ao mesmotempo,produtoe reprodutorade urnahierarquiasocial;
para garantir o bom desempenhoe o êxitoeducacionais;a segundaé responsávelpor transmitir por conseguinte,o significadodas coisas,o sentidodo mundosocialqueas práticasculturaiscar-
o conhecimentoe a cultura (obras,autores,cientistas,teorias,etc.)oficiaisde formametódicae regame difundemsãoaspectosda dominaçãosimbólicaexercidapelasclassesdominantes.Épor
organizada,sancionadose reconhecidosposterionnentepelosdiplomase certificadosescolares.Se meiodaspráticasqueas representaçõesdominantes- quecorrespondemao conjuntode opiniões
o volumede capitalculturalherdadoe acumuladovaria de acordocoma posiçãosocioeconômica comuns,crençasestabelecidas,ideiaspreconcebidas,definidocomodoxa - são objetivadase se
do agente,entãoseu consumocultural e gostoestéticovariam de acordocom as classessociais. impõem.Culturae política,para Bourdieu,apresentam-secomoelementosindissociáveis,urna
As elitesdetentorasde elevadocapitalcultural(quese encontraem estreitarelaçãocom o capital vezque é por meioda primeira quese torna possívelo exercícioeficazdo poder e da dominação.
escolar),provavelmentebem posicionadasna estrutura socioeconômicada sociedade,são as res- Suanoçãode culturase apresentacomouma via de acessoprivilegiadopara o conhecimentoda
ponsáveispor elaboraruma ideiade gostoe estéticalegítimos,que,num movimentode retorno, sociedade,das formasde poder e dominaçãoque a configurame sustentam.Issonão quer dizer
legítimamo própriocapitalculturalde que dispõem.O gostocultivadose manifestacomo"gosto quea culturasereduzaà simplesdeterminaçãoda políticae da economia,meroreflexodessasduas
puro",supostamentelivredaspressõese necessidadesda vidacotidianae independentede toda e instânciasdo mundosocial.Aocontrário,a culturapossuiurnalinguagempeculiare é dotadade
qualquerfunção,reforçandoa ideiade queas práticasculturaissãoinatas,manifestaçõesnaturais urna dinâmica,organizaçãoe regrasprópriasdefinidaspor aquelesagentese agênciassociaisque
de indivíduos,em tese,bem dotadosintelectualmente,portadoresde capacidadese competências compõemum campoespecíficoda sociedade,o campocultural.
queoutrosnãopossuem,ocultandoo fatode que,no interiordas sociedadescapitalistas,asvárias
formasde capital- o econômico,o cultural e o social- são desigualmentedistribuídosentre as
classese fraçõesde classe,comportando-secomorecursosexistentese acumuladosqueconstituem 60. CULTURA
POPULAR
o fundamentoda distinção.
Ana Maria de OliveiraGalvão
Em síntese,a posiçãosocialgera urna certa disposição,o habitus, que,por sua vez,tende a JulianaFerreirade Melo
fortalecera própriaposição,gerandoa distânciasocialentre indivíduose grupos.Taldisposição
correspondeà "objetividade interiorizada",
à estruturade classesinteriorizadapeloagentemediante Bourdieuraramente utiliza, em sua obra,-a expressão"cultura popular".Quandoo termo
o condicionamento exercidopor determinadasinstituiçõesaolongodetoda a suatrajetóriasocial, é usado, é posto sempreentre aspas,pois,para o autor,as noçõesque se referemao "povo"e ao
intimamenteassociadaa certascondiçõesdevida.Seas disposiçõessãoajustadasde acordocomas "popular"são"conceitosde geometriavariável",urnavezqueelespodemser ampliadosconforme
posiçõessociais,entãopode-seafirmarquesãoajustadasde acordocoma estruturade classes.Há a vontadede quem os usa (BouRDIEU, 1996).Nessadireção,Bourdieuchegaa afirmar,em outra
todo um sistemade relações(econômicas,sociaise culturais)ao qualtodas as classese fraçõesde publicação,que a "culturapopular"é "um sacode gatos",na medidaem que "asprópriascatego-
classe~se remetem.O estilode vida de urna classeganha sentidona medidaem que diz respeito rias empregadaspara pensá-la,as questõesquelhe são colocadassão inadequadas"(CDp,186).
à própriaclassee, ainda, na medidaem que se refereà outra classe,urna vezque um sistemade Segundoo sociólogo(BOURDIEU, 1978),a ambiguidadeda expressãoinicia-sena contradição
posiçõessociaisé semprerelacional,quer dizer,elesse definemuns em relaçãoaos outrose não existentenos própriostermos que a compõem,pois, se cultura significa"cultura dominante",
136 CULTURA
CULTURA POPULAR 137
a culturepar lepeuple somenteexistequando ela toma as formas reconhecidaspela "cultura a contenção (BouRDIEU, 1996).A palavra "popular",assim como outras que se encontram
dominante"comoas formasde uma cultura.Mesmoquandose evidenciaa existênciada culture reunidas no mesmo conjunto semântico - "baixo, inferior, para todos" - encontra-se, no
du peuple, que apresentaformasque não correspondemà definiçãonormalizada,o problema espaço social, em oposição ao que é "alto, legítimo, superior, raro" (BouRDIEU,1996),por
persistepor causada palavracultura.Na visãodo autor,o jogo entre essaspalavras- culturae um efeito,socialmenteconstruído, de crença.
povo- é,portanto,polêmico.Para ele,não fazsentidodiscutira existênciada "culturapopular" Muitas foram as crítiéas recebidas por Bourdieu em relação às suas formulaçõessobre
em si, mas somenteem relaçãoa modos dominantes de julgamentoe classificaçãoculturais, cultura popular (ver,por exemplo,GRIGN0N; PASSER0N, 1989).O próprio autor (CDp)de-
que a remetema um lugar de "empobrecimento". fende-sedaqueles que o acusaram de consagrar a diferença entre a cultura denominada de
Para Bourdieu,o uso das aspasservetambémpara demarcarque falar de "culturapopular" popular e a cultura erudita. Para ele, qualquer que seja a nossa opinião pessoal ~u o no~so
é, sobretudo, referir-sea uma sociologiada produção do discurso sobre a classepopular; ou julgamentode valor sobre essa dicotomia,ela existe,na realidade,sob a forma de h1erarq~ias
seja, a sociologiadas classespopulares é, em outras palavras, uma questão da sociologiados que estão inscritas na objetividadedos funcionamentossociais e na subjet~~id~~edos s1s~e-
intelectuaise de suas disputas simbólicas.O autor afirma que a maior parte dos discursosque mas de classificaçãoe dos gostos,elesmesmoshierarquizados.Afirma que e mutil denunciar
"foram ou são pronunciadosem favordo 'povo' são obra de produtores que ocupam posições verbalmenteessa hierarquia; o que é necessáriomudar são as condiçõesque a fazem existir,
dominadas no campo de produção" (CDp, 183).A preocupação dos dominados do campo na realidade e "nos cérebros".
intelectuale artístico em reabilitar as culturas socialmenteinferioresou formasminoritárias A problematização da expressão "cultura popular" feita por Bourdieu certamente tem
de cultura, tornando-as um "popular positivo"é, então, inseparável"da preocupaçãode seu trazido impactos, nas últimas décadas, para as áreas de conhecimento que normalmente
próprio enobrecimento"(CDp,182). dela se ocupam, como a antropologia, a história e os estudos sobre folclore.No campo da
Talvez,por essasrazões, é que a expressãoapenas apareçana obra do autor em momentos história,por exemplo,traz elementosimportantespara a história cultural que,principalmente
em que ele é provocado a falar sobre ela como em um colóquio organizado pelo Centre de a partir dos estudos de Michel de Certeau (1994) e de Roger Chartier (1990),tem co!ocado
Recherchede l'Éducation Spécialiséeet de l'AdaptationScolaire(CRESAS), em 1978,ou em o foco não apenas na análise dos diferentes objetos culturais, mas, sobretudo, nos diversos
um seminário realizado na Universidadede Chicago,em 1987.No conjunto de sua obra, é modos de apropriação dos mesmos objetos,renovando a tradição de estudos sobre o tema
mais comumenteutilizado o termo popular como adjetivonão da cultura, mas da estética, realizadosaté meadosdos anos 1960,como aquelede RobertMand~ou(1964),que tendiam a
dogosto e da língua/linguagem.Nessescasos,Bourdieu (LDp)refere-se,sobretudo,a estilos associar alguns desses objetos- os destinados, em sua produção, ao "povo"- a uma suposta
de vida, que encontram a sua mais elevada frequência nas classes populares e variam em "mentalidadepopular" (ver CHARTIER, 1995).
razão inversaao capital escolar.A estéticapopular, por exemplo,define-seem contraposição Certamente, a problematização realizada por Bourdieu, ao colocar no centro de sua
ao desinteresse,à fruição, ao distanciamento do mundo natural e social, quando se trata de análise as relações de poder e os processos de legitimaçãodas diferenças sociais, constitui
práticas culturais. Caracteriza-se,assim, por uma espécie de continuidade entre a arte e a um poderoso instrumento para a superação de ideias, ainda muito pr~sentes em ~studo~
vida. Nesse sentido, a apreciação de indivíduos das camadas populares, segundo o autor, contemporâneossobre cultura popular, que a vinculam, por um lado, a espontane1~ade,a
teria a tendência de seguir o princípio ético, que subordina a forma à função. Aplicando, pureza e à ingenuidade,e, P?r outro, ao "empoderamento"das camadaspopulares e as lutas
no espaço da cultura, os esquemas que opera na prática, o "povo"acreditaria nas coisas re- dos movimentossociais.
presentadas, enquanto os intelectuais acreditariam, sobretudo na representação,operando
com um desprendimento próprio do olhar puro. Os sujeitos que adquiriram a disposição Referências
estética, possívelapenas fora das necessidadeseconômicas,não se submeteriam, assim, às BOURDIEU,P. La sociologiede la culture populaire. In: Le handicap socio-culturel en question.
necessidadese pulsõesprimárias. Esse olhar puro implica, desse modo, "uma ruptura com a Paris: ESF,1978.p. 117-120.
atitude habitual em relação ao mundo que é, por isso mesmo, uma ruptura social (LDp,34). BOURDIEU,P. Vocêdisse "popular"?Revista Brasileirade Educação, São Paulo,v. 1,n. 1,P· 16-26,
Não se trata, portanto, de algo que está inscrito naturalmente nas pessoas, que pudesse ser jan./abr. 1996.
identificadoa um dom especialou a uma aptidão para a apreciaçãoestética. Para Bourdieu CERTEAU,M de. A invenção do cotidiano:artes defazer. Petrópolis, RJ:Vozes,1994.
(LDp),não há, então, possibilidadede atribuir a existênciaa um objeto apenas por critérios CHARTIER,R. A história cultural: entre práticas e representações.Lisboa:Difel;Rio de Janeiro:
puramente "artísticos"ou "estéticos".Ele entende que somente é possíveldefinir a "estética Bertrand Brasil, 1990.
popular"em relaçãoàs estéticaseruditase aosseus efeitosde legitimidade,que a desqualificam, CHARTIER,R. "Cultura popular": revisitando um conceitohistoriográfico.Estudos Históricos,Rio
atribuindo-lhe um julgamento negativo.Para aqueles que ocupam posiçõesdominantes na de Janeiro,v. 8, n. 16,p. 179-192,1995.
socied~de,o gostopopular é, dessemodo, considerado"bárbaro" e "rústico";para as próprias GRIGNON,C.;PASSERON, J.-C.Le savant et lepopulaire:misérabilismeetpopulisme en sociologie
camadas populares, é, por outro lado, uma afirmação, por exemplo,do masculino sobre a et en littérature. Paris: Gallimard/Seuil, 1989.
feminilidade,da linguagem crua/direta sobre o eufemismoou da festa/sociabilidadessobre MANDROU,R. De la culture populaire aux 17' et 18' siecles.Paris: Stock, 1964.
EnriqueMartín Criado
140 DENEGAÇÃO
DESENCANTAMENTO DO MUNDO (O): ESTRUTURAS ECONÔMICAS E ESTRUTURAS TEMPORAIS 141
No livro publicadopela Minuit (1977),com o título Algérie 60: structures économiques e promovidasna escolae as competênciasincorporadaspelosindivíduosde famíliasde classes
et structures temporelles, Bourdieu retoma as pesquisas realizadas na Argélia, especial- maisbaixas.Por essarazão,a escola,em vezde ofereceracessodemocráticoà cultura,acabapor
mente Travai! et travailleurs en Algérie (1963),para analisar o tipo de disposições que reforçaras distinçõessimbólicasde capitalcultural,comseus desdobramentosmateriais.
requer e fomenta uma atividade econômicacapitalista.Ele defendeque a busca do benefício Assim,ao contrário da máxima de que "gostonão se discute",ele deveser discutidoe cri-
econômiconão é uma racionalidade universal: encontra-se historicamente situada e supõe ticado.Na sociologiade BoÚrdieusobreojogode poder das distinçõeseconômicase culturais
condiçõesde possibilidadeque não ocorrem em todas as sociedadese estratos sociais.Ilustra numa sociedadehierarquizada,as distinçõesdo gostorevelam,antes de tudo, as desigualdades
tal afirmaçãoanalisando a passagemde uma racionalidadepré-capitalistaa uma capitalista da ordemsocial,em quediferençasde cultura e de origemsão convertidasem diferençasentreo
na situação colonialargelina.A racionalidadepré-capitalistanão media a atividadepelo seu bom e o mau gosto, que tanto em sua origemcomoem seu final se ligama destinosdiferentes.
rendimento econômico,e sim por sua função social dentro de uma ordem tradicional, sem
distinguir entre atividadesprodutivas e improdutivas. As lógicasimperantes eram a honra
e o intercâmbio de dons. A racionalidadecapitalista mede toda atividade por seu benefício
65. DETERMINISMO
·······················································································································
econômico,introduzindo o cálculo constante entre inversão e benefício.Ora, esta raciona- GiseleSapiro
lidade requer algumas condições- especialmenteuma segurança econômicaque permita a
projeção no futuro - que não ocorrem em todas as camadas sociais - como os subproletá- A sociologiade Pierre Bourdieué frequentementetachada de" determinista"por ter reve-
rios, condenadosa viver o dia a dia. As esperanças subjetivas dependem das possibilidades lado alguns determinismos sociaisque orientam a ação e as preferênciasdos indivíduos.No
objetivas:a disposiçãoao cálculoa longoprazo necessitade uma estabilidadeeconômicaque entanto,comosublinha o filósofoJacquesBouveresse(2004)no livro que dedicoua Bourdieu,
nem todas as camadas sociaispossuem. Bourdieutambém aplica esta análise às disposições o determinismo é uma postura metodológica sem a qual é impossível elaborar qualquer
políticas:perante aquelesque, como Frantz Fanon, confiam no subproletariadoe no campe- ciência.Em sua obra, Le métier de sociologue, Bourdieue seus coautoresse referiam, por
sinato para fazer avançar o socialismo,Bourdieuafirma que a nova ordem argelinahaveráde um lado, a ClaudeBernard, que considera que "a admissão de um fato sem causa - ou seja,
ser construída a partir daquelascamadas que, graças à sua estabilidadeeconômica- como a indeterminado em suas condições de existência é, nem mais nem menos, a negação da
classeoperária estável-, podem fazerprojeçõesracionaisno futuro. O livro introduz também ciência"(MS,31);e, por outro, a Émile Durkheim, para quem os fatos sociais estão ligados
uma nova análise das disposiçõese práticas frente ao realojamentode antigos faveladosque entre si de acordo com determinadas relações (MS,154-157).
não aparecia em Travai! et travailleurs en Algérie. A questãodo determinismo remeteao debatesobrea causalidadenas ciênciashumanas e
sociais.As oposiçõesencontradaspela sociologiaincipiente,na Françado séculoXIX,tinham
a ver com a recusa de considerar a ação humana como compelidapor causalidadesque lhe
64. DESTINO são exteriores.Eis por que, ao determinismo,é oposto muitas vezes o conceitode liberdade.
Na Alemanha, as "ciências da mente" constituíram-se, na mesma época, em oposição às
Maria Andréa Loyola
ciências naturais com base na ideia de que as ações humanas são orientadas em relação a
Destino é uma expressãoque pode ser usada para descrevero resultado das açõesimpul- valores e fins; por conseguinte, conviria privilegiar uma abordagem hermenêutica para o
sionadas pelo habitus, noção básica da teoria de Bourdieu. Os indivíduos não agem apenas estudo dos fenômenosculturais. Da mesma forma, a abordagemfinalista desenvolvidapela
sob a determinação de estruturas objetivas, mas de acordo com sistemas de disposições fenomenologiarejeita a causalidademecânica do behaviorismo.
duráveis, em parte assimilados das estruturas sociais e em parte como respostas próprias, Iniciado na fenomenologiano curso de sua formaçãoem filosofia,Bourdieuirá criticar o
individuais, a situações ocorridas em suas experiênciasde vida - o habitus. E, sendo este, estruturalismopor transformar os agentesem suportesmecânicosdas estruturas.É contraessa
além de esquemade ação,um sistemaadquirido de preferências,princípiosde visão e divisão, determinaçãomecânicaque ele desenvolveo conceitofinalista de estratégia.Mas trata-se de
e estruturas cognitivasduradouras, ele é princípio gerador que engendra também aquilo que uma liberdaderestringidapor determinaçõessociais:a estratégiatem a ver coma improvisação
se costuma chamar de gosto que, por sua vez, produz escolhas que, probabilisticamente, regulada,no âmbito de um espaçode possíveiscircunscritopelo habitus. A teoria do habitus
conduzem a um determinado destino social ou de classe (EE). permite-lhesuperar a oposiçãocausalidadee finalismo,entrereaçãomecânicaa determinações
Avariaçãodo gostoe das práticasculturaisentreas classessociaisé menosresultadode uma e ação racional. Como é explicadoem seu artigo intitulado "Avenirde classeet causalitédu
sensibilidadeinata do que fruto de um processoeducativoque acontecena famíliae na escola. probable",ela permite compreender"a lógicaespecíficade todas as açõesque trazem a marca
Indivíduosde um mesmogrupoou classetêmmaiorchancedevivenciarexperiênciassemelhantes da razão sem serem o produto de uma meta racionalizadaou, mais ainda, de um cálculora-
e, assim,~endema incorporarum habitus, um gosto,um destinosocialde grupoou de classe.Em cional;que são habitadas por uma espéciede finalidadeobjetivasem serem conscientemente
uma sociedadehierarquizadae desigual,poucassão as famíliasque dispõemde capitalcultural organizadasem relaçãoa um fim explicitamenteconstituído;[...] que são ajustadasao futuro
para transmitira suaprole,o quelevaa um descompassoentreas competênciasculturaisexigidas sem serem o produto de um projetoou de um plano" (BouRDIEU, 1974,p. 3).
DETERMINISMO 143
142 DESTINO
\
(
Segundoa teoria do habitus, as estruturas sociaissão interiorizadaspelos indivíduosno Assim,cornoeleexplicano mesmolivro:''.Apesarde não seremindiferentesaojogoe, ao mesmo
decorrerde sua socializaçãosob a formade disposiçõespara agir,pensarejulgar,orientandosuas tempo,capazesde nele instaurar diferenças,as disposições(preferências,gostos)só podem se
práticase escolhasem todas as áreas.Elaslevam,quase sempre,os indivíduosnão só a ajustar constituirem meio à relaçãocom as tendênciasimanentesde um universosocial,com as pro-
suas expectativassubjetivasàs possibilidadesobjetivas,mas também a renunciar de imediato babilidadesinscritas em suas regularidadese suas regras ou nos mecanismosque garantem a
ao que "não é para eles".Assim,longede detectar esquemasde causalidademecânica,pode-se distribuiçãodas oportunidades de ganho nos diferentes'mercados';e tais disposiçõespodem
dizer que a sociologiade Bourdieubaseia-seem urna causalidadeestrutural que determina engendraresperançasou desesperanças,expectativasou impaciências[...]" (MP,255).
probabilidades- por exemplo,as possibilidadesde acessoà universidadeque, de acordocom a Longe de uma conclusãopessimista sobre a condiçãohumana, a reflexãoempreendida
demonstraçãode Bourdieue Passeronem Les héritiers:les étudiants et la culture (1964),são por Bourdieu sobre as determinações sociais tem uma finalidade emancipatória, como é
desigualmentedistribuídassegundoa origemsocialdos estudantes- e leistendenciaisinerentes testemunhado por esta frase mediante a qual ele transpõe o paradoxo do conhecimentode
aosfenômenosde reproduçãoque,em compensação,as reforçampor urna causalidadecircular: sua própria condição,enunciado por Pascal: "Sendodeterminado (miséria),o homem pode
por exemplo,a propensãoda "noblessed'État" (1989)para se reproduzir. conhecersuas determinações (grandeza) e trabalhar para superá-las" (MP,157).
No entanto, o ajusteentre as disposiçõese as estruturas pressupõeque o indivíduoevolui
em um espaçosocialrelativamenteestabilizado,ou seja,que as estruturas sociaisque elehavia Referências
interiorizadoduranteseuperíodode socializaçãosãosemelhantesàquelasqueenfrentaenquan- BOURDIEU,P. Les sous-prolétaires algériens.Les Temps Modernes, v. 199,dez. 1962 [reproduzido
to adulto,o que é apenas "um caso particular do possível",de acordocom urna expressãoque emEsquisses algériennes. Paris: Seuil,2010.p. 193-212].
Bourdieu(1974,p. 5)tornade empréstimode GastonBachelard.Aoverificar-sealgumamudança BOURDIEU,P. Avenir de classe et causalité du probable. Revue Française de Sociologie, v. XV,
em tais estruturas, esseajustenão é automáticoe pode se tornar difícil,cornomostrouBourdieu p. 3-42, 1974.
(1962)no caso dos subproletáriosargelinos,antigoscamponesesque passam por grandes difi- BOUVERESSE, J.Bourdieu, savant & politique. Marseille:Agone,2004.
culdadespara se adaptar às estruturas temporaisde um capitalismoimpostopela colonização. RYLE,G. The Concept of Mind. Chicago:Toe Universityof ChicagoPress, 1949.
O quelevaa nos questionarsobreas condiçõesda mudança social.Comefeito,existeoutra
forma de causalidadeem Bourdieu:trata-se da causalidadehistórica, definida em seu livro
Homo academicus (1984),corno o encontro entre séries causais independentes que fazem 66.DIPLOMA
o acontecimento(no caso concreto,Maio de 1968).Aí, ocorre algo que nada tem a ver com Antônio Augusto Gomes Batista
um determinismo histórico:essesencontros entre séries causais independentes,que podem
caracterizar também o encontro entre urna trajetória e um campo concebidocorno espaço A análise bourdieusiana do diploma integra não apenas o estudo da reprodução das
dos possíveis,implica uma parcela de indeterminação que leva à elaboraçãode estratégias desigualdadessociais pela escola,mas também o das estratégias de reprodução dos grupos
individu~is e coletivas,mais ou menos ajustadas às situações e dispondo de um maior ou sociais por meio da escola, em contextos de inflação e desvalorização de diplomas (EE).
menor grau de possibilidadede sucessoface a outras. Eis a razão pela qual, no curso dado no Para o sociólogo,o diploma constitui um capital cultural institucionalizado,uma "certidão
Collegede France Sur l 'État (2012),Bourdieuexplicaque o trabalho de sociogêneseconsiste de competência cultural que confere ao seu portador um valor convencional,constante e
em reconstituir os possíveisnão ocorridos em determinada situação histórica. juridicamente garantido no que diz respeito à cultura" (EE, 78).
Ao retornar em seu livro Méditations pascaliennes (1997)a questãodo determinismo- A outorgadesse"título de nobrezacultural' (LDp)resultade um ato performático,baseado
lembrandoque não se trata de "urna questãode crença"(MP,14)-, Bourdieusugereestender na crença coletiva,por meio do qual uma instituiçãoproduz uma realidade,uma" diferença
à explicaçãodas condutashumanas uma proposiçãode GilbertRyle(1949):"Domesmomodo de essência",entre aquelesque têm seus conhecimentosreconhecidose aquelesque não o têm.
que não se devedizer que o vidro se quebroupelofato de ter sido atingidopor urna pedra, mas Ao criar €Ssadiferença,produz um efeitoestatutário, um "grupo como realidade" (EE,78),
que se quebrouquando a pedra o atingiuporque era quebrável,assimtambém, [...] não se deve transcendente aos indivíduos,marcado por uma fronteirajurídica e organizadopela crença
dizer que um acontecimentohistóricodeterminou urna conduta,mas que teve esse efeitode- em seu próprio valor e pela oposiçãoa outros-grupos.
terminanteporqueum habitus suscetívelde ser afetadopor esseacontecimentolhe conferiutal Sendoum tipo de capital,o diplomapode ser convertidoem outrostiposde capital.Evidente-
eficácia"(MP,177).Bourdieubaseia-sena attribution theory segundoa qual as causasque os mente,em capitaleconômico:"ele[o diploma]estabeleceo valor [...] do detentorde determinado
indivíduosatribuema uma experiênciaestão entre os determinantessignificativosda conduta diplomaem relaçãoaosoutrosdetentoresde diplomase,inseparavelmente, ovalorem dinheiropelo
que adotarão cornoresposta a essa experiência.No entanto, sublinha Bourdieu,se, por esse qualpode ser trocadono mercadode trabalho"(EE,79).Permitetambéma conversãoem capital
fato, o ffi;divíduoparticipana construçãoda situaçãoque o determina, deve-seter presentena simbólicoouprestígio.Apossede um diplomatambémimplicapossibilidades maioresoumenores
mente "que ele não escolheuo princípio de sua escolha",ou seja, seu habitus. A este respeito, de aquisiçãode um capitalsocial.Opróprioprocessode aquisiçãodo títulooferecepossibilidades
prossegueBourdieu,"ohabituscontribuitambémpara determinaro queo transforma"(MP,14). diferentesde aquisiçãode relaçõespermanentese úteis,capazesde permitir a mobilização,"por
144 DETERMINISMO
DIPLOMA 145
L
procuração,[d]ocapitalde um grupo" (EE,67).Permite a possibilidadede estabelecimentode
produtorespropõem,muitasvezes,bensquenãodiferemdosquesãooferecidospelosconcorrentes
ligaçõesduráveis,dentre elaso matrimônio,em cujomercadotende a funcionarcomoum dote
a não ser por tênues diferençasque, aliás, são valorizadasextremamentepor eles. Os agentes
(SINGLY,1977,1982).Por fim,apesarde o título escolarser,por definição,uma garantiade posse
estãoimplicadosem jogos sociaisque, por sua vez, se apresentamcomo conjuntosde opções
de um capital cultural, pode, elemesmo,induzir à aquisiçãode mais capitalculturalpor estu-
ou escolhasdesigualmentedistintivas:por exemplo,entre todos os esportes- que, em teoria,
dantescommenorcapitalculturalherdado.Bourdieu(LDp,28)denomina"autodida:x:ia legítima''
sepode praticar em determinadaépoca-, alguns são muito menos divulgadosdo que outros e
a um efeitosimbólicodo diploma,queconsisteno desenvolvimentode um conjuntode esforçose
pressupõemuma série de condições(a aquisiçãode uma técnica,o acessoa locaisespecíficos,
estratégiaspara ajustarcondutase práticasculturaisaosideaisorganizadosem tomo do diploma,
a parceiros...) que, de fato,os reservaa uma minoria. Em La distinction é sublinhadoque, em
sobretudoem matériade culturalivre,não ensinadadiretamentepelasinstituiçõesescolares.
determinadoespaço,o valor distintivode uma prática ou de um bem é tanto maior na medida
Referências em que sua apropriaçãopressupõepropriedadesou competênciasraras nesseespaço.
Os mecanismos de distinção resultam da relação entre bens e práticas desigualmente
SINGLY,F. de. Mobilité féminine par !e mariage et dot scolaire. Economie et Statistique, n. 91,
p. 33-44,juil./aout 1977. distintivos,por um lado, e, por outro, agentese grupos sociaiscuja existênciasó é possívelao
se distinguirem uns dos outros. Os agentes estão mais ou menos equipadospara identificar
F.de.Mariage,dot scolaireet positionsociale.Economie et Statistique, n. 142,p. 8-25,mars 1982.
SINGLY,
os bens e as práticas raros e suscetíveisde produzir ganhos de distinção. A propensão para
distinguir-seem determinadodomínioé inseparávelde uma competênciarara e específicaque
67. DISPOSIÇÃO é uma arte prática de perceberdiferençassutis. A capacidadedo amador de arte de identificar
······················································································································· "raridades"pressupõe,assim, a possibilidadede fazer distinções. Enquanto o não entendido
Ver:Habitus se limita a ver quadros indiferenciadas (ou estabelecediferenças inadequadas, estranhas à
história da arte), o conhecedorreconhecemovimentospictóricos,estilos pessoaisno âmbito
-~~...~.1-~_!l.~~-~o da mesma escola,períodose influênciasdiferentesno interior da obra de determinadoartista.
·································································································· O exemplo das classes médias recentemente escolarizadas que - segundo um mecanismo
Julien Duval chamado allodoxia em La distinction, tomam pelo qualificativode "grande arte" obras de
valor secundário -, constituem um caso de grupo que, desprovidodessa competência,faz
Atravésde sua análise dos mecanismosde distinção - em particular em seu livro de 1979, escolhasque, longede serem valorizadaspor seu valor distintivo,acabampor estigmatizá-lo.
La distinction -, PierreBourdieuintroduziuuma novanoçãonas ciênciassociaisque,às vezes,
O "sensoda distinção"culmina no topo do espaçosocial.A língua francesa,aliás, qualifica
é equiparadaao conceitode conspicuous consumption que Veblen(1899)tinha desenvolvido como"distinguidas" as maneiras de ser (maneiras de se comportar, de falar...) próprias das
para designaros consumosde luxopelo qual as classesmais ricas manifestama superioridade classesdominantes. Elas são, certamente, pelo menos, em parte, o produto do "processode
de seu status social. No entanto, ela é mais ambiciosae se situa em um contexto de análise civilização"analisado por Norbert Elias (1939)e se caracterizam por uma estilizaçãoque as
menos intencionalista.Bourdieunão deu uma definição explícitadessa noção, que, aliás, é torna muito diferentes das maneiras de ser mais "instintivas", que são as mais frequentes
acompanhadapor noçõesderivadas:"estratégiasdistintivas","ganhos [profits]de distinção", nos meios populares. Em vez de considerar essas maneiras de ser comouma espéciede qua-
"sensoda distinção"... Ela aparece,em primeiro lugar, como um produto de suas pesquisas.
lidades naturais ou inatas, Bourdieu vai concebê-lascomo um produto da educação que é
Ora'.se suas origens se encontram na filosofia(nomeadamente,escolástica),ela procede de prodigalizada, desde a primeira infância, nas camadas sociais mais elevadase que inscreve
um Jogosobre a polissemiaque - pelo menos, em francês - caracteriza o termo "distinção": nos corpos uma diferença distintiva em relação a todas as outras classes.
se, com efeito,este designa a operaçãocognitivapela qual se identificauma diferença entre Sem dúvida, particularmente acentuados na aristocracia e na grande burguesia, os me-
duas palavras, é também na linguagem corrente um meio de nomear a elegânciae-anobreza
canismos de distinção são atuantes em todo o espaçosocial e têm uma dimensão dinâmica
de maneirasde ser.Eledesigna,finalmente,recompensasque - por exemplo,à semelhançadas
(uma prática distintiva em determinado momento pode perder tal característica).Bourdieu
medalhas escolaresou militares-, atestam o valor social reconhecidoa determinada pessoa. desenvolveessetema desde a década de 1960; em um contextomarcado, na França,por forte
A atençãoprestadapor Bourdieuàs lógicasde distinção remeteà sua análise da existência crescimentoeconômicoe pelo acessode novas camadas sociaisa bens de consumo,até então
socialcomodiferença("existiré ser diferente").A vida socialé uma luta pelo reconhecimento;
reservadosaos mais privilegiados.Enquanto alguns sociólogosconsideravamtais alterações
no entanto, como mostra o exemplodas medalhas ou dos "ritos de instituição",o reconheci-
comoum fator de redução das desigualdadesentre os grupos sociais,Bourdieuenfatizaque
mento de um agentetem semprecomocontrapartida a relegaçãodos outros em uma forma de
a "democratização" dos bens de consumo tem como contrapartida um deslocamentodas
indifer~nciação(MP).Avida socialnão cessade instituir diferenças,de operar distinçõesentre
práticas distintivas. Ao adotar determinadas características do nível de vida das categorias
os agentessociais.A necessidadede se distinguirdos outrospareceserparticularmentefortenos
superiores, as classes médias encontram uma oportunidade para marcar sua distância em
camposquevalorizammais a "originalidade":nos domíniosda arte e da ciência,determinados relaçãoàs classespopulares. Por sua vez, as camadas privilegiadasconservamsua distância
146 DISPOSIÇÃO
DISTINÇÃO 147
atravésde diferentesestratégiasconscientesou inconscientes(por exemplo,o estigmados usos francesaa partir do inícioda décadade 1960,no âmbitodo centrode pesquisasqueeledirigiaem
que as classesmédias fazem dos novosbens a que têm acesso).As questõesmuit~ específicas Paris.Aliás,o livrobaseia-sena exploraçãoestatísticade uma sondagemrealizadanessecentro,
formuladasna pesquisa de La distinction confirmam essavisão das coisas:se, por exemplo, durantea décadade 1960,na continuidadedas pesquisassobreas relaçõesdos estudantescoma
o fato de escutar música clássicajá não é o monopóliodas camadas superiores,mesmo assim cultura,mas envolvendouma amostraqueabrangiatodaa populaçãofrancesa.Esselivroprolonga
subsistem fortes diferençasentre as classesquando se leva em conta, de forma mais sutil, a tambémas reflexõesque Bourdieutinha elaborado,na mesmaépoca- em junho de 1965-, em
amplitude dos conhecimentosmusicais ou a familiaridade com trechos pouco vulgarizados. companhiade economistase especialistasde estatísticasobrea questãoda democratizaçãodo
Emborapossa parecer tautológica,é muito importante a ideia d6 que os grupos que estão acessoaosbens econômicose culturais,na França,nas décadasdo pós-guerra(BoURDIEU, 1966),
mais orientadospara os bens distintivossão aquelesque possuem o mais sutil "sensoda dis- alémde retomar,sob uma novaforma,a análisedo "amorpelaarte",não comoum dom natural
tinção".Ela sublinha,por um lado, que o interessepelo~mecanismosde distinçãose inscreve ouuma capacidadeuniversal,mas comodisposiçãoherdadarelacionadacoma frequênciaprecoce
em uma análiseda tendênciaà reproduçãodo mundo social:na concorrênciapela distinção,os à culturalegítima,emparticular,nos círculoscultivados.La distinctionherda,simultaneamente,
~ai~ "~istintos"encontram-sena dianteirados outros.Alémdisso,elatransformaas lógicasde aspreocupaçõese osinstrumentosdesenvolvidos por Bourdieuno decorrerda décadade 1970:as
d1stmçaono produtode um sensoprático,de um habitus:o amador de arte que apreciaas rari- reflexõessobreas "classessociais"e sua reprodução(queaprofundavamas análisesdosanos 1960
dadesnão é movidopela obsessãode se distinguir do comum dos mortais, mas por uma forma sobreo sistemade ensino);e ostrabalhossobrea "opiniãopúblicà'.Olivrosebeneficiaigualmente
de instinto, um "amorpela arte" (AA)que pode ser muito sincero.Nessesentido,Bourdieunão doprogressoda "teoriados campos",sistematizadapor Bourdieua partir do inícioda décadade
diz, de modo algum, que a busca da distinçãoseria a mola propulsoradas condutashumanas 1970e que está associadaà técnicade análisedas correspondênciasutilizadaem La distinction.
(MP,161);a lógicadosjogossociais- por exemplo,aquelaquelevaos camposculturaisa propor Em resumo,esselivro é uma construçãofecundae complexa:do ponto de vista teórico,ele
aosconsumidoresuma ofertadiversificada,em constanterenovação- é queproduz a distinção. propõeuma teoriarelacionalda estruturasociale, ao mesmotempo,uma críticasociológicadas
Uma questão que podem colocar essas análises - aliás bastante úteis para os estudos tesesde ImmanuelKantsobreo juízode gosto.Dopontodevistaempírico,forneceuma descrição
históricos e sociológicosde diferentes setores, como a moda, a cultura, o esporte ou O con- extremamenteprecisada sociedadefrancesade seu tempoe das lutas que entãose travam entre
sumo - é a de saber se elas são generalizáveisa outras sociedades,além da França do século classese fraçõesde classes,abordando,paraalémdo domínioprivilegiadoda cultura,os consumos
XX.Alguns trabalhos, como o de Craig Clunas (1991)sobre a China dos séculosXVI e XVII, alimentares,os gostosesportivos,a competênciapolítica... La distinction que, por alguns de
fornecemos primeiros elementosde resposta. seusaspectos,evocatambémempreendimentosliterários- emparticular,o de MarcelProust-, é
igualmenteo produtodeuma reflexãoaprofundadasobrea escritaem ciênciassociais:a construção
Referências dasfrasese o uso intensivode documentos- trechosde entrevistas,recursosfotográficos, gráficos
CLUNAS,C. Superjluous Things:Material Culture and Social Status in Early Modern China. oriundosde análisesestatísticas...-visam não só conjugar,de uma formanova,a análiseabstrata
Cambridge:Polity Press, 1991. e a evocaçãoempírica,mastambémrestituira complexidadedosmecanismossociaisanalisados.
ELIAS,N. Überden Prozeflder Zivilisation:soziogenetischeund psychogenetischeUntersuchungen. A ideia central desselivro - por natureza, difícil de resumir - é a de que os agentessociais
Base!:VerlagHaus zum Falken, 1939. tendem a ter gostos relacionadoscom suas condições econômicase sociais. As opções que
VEBLEN,T. Theory of the Leisure Class:an Economic Study of Institutions. London:Macmillan elesfazem em domíniosdiversificados- estética,práticas esportivas,escolhasmatrimoniais,
Publishers, 1899. inclinaçõesde caráter moral, alimentação,política... - são produtos do mesmo princípio:o
habitus. Em tais condições,essas escolhas apresentam uma robusta coerênciae tendem a
exprimir a posiçãono espaçosocial.As diferençasde estilosde vida e os desacordosde gosto
69. DISTINÇÃO (A):CRÍTICASOCIALDOJULGAMENTO
são,destemodo,objetivamentejulgamentosde classe;elesparticipam de uma "luta simbólica"
(La distinction: critique sacia/e du jugement)
pela qual, cotidianamente,os agentese os grupos sociais,ao classificarembens de consumo,
..................................................................................................................................
não cessamde se classificaruns em relaçãoaos outros.La distinction mostra que os estilosde
Julien Duval vida identificáveisna Françada décadade 1970formamum espaçohomólogodo espaçosocial
BOURDIEU,P.A distinção:críticasocialdojulgamento. SãoPaulo:Edusp;Porto Alegre:Zouk,2007.
que é estruturado, em primeiro lugar,em função do volume,da estrutura e da antiguidadedo
capitalpossuído.Três capítulosdo livro incidem,sucessivamente,sobretrês estilosde vida e
Publicadaem 1979,La distinction. Critiquesocialedu jugement é, comLe senspratique suas variantes: "o senso da distinção" característicodas classesdominantes; "a boa vontade
(1980),um dos dois volumososlivros que Pierre Bourdieu publicou nas Éditions de Minuit cultural" associadaàs classesmédias; e "o senso do necessário"prevalecentenas classespo-
no meio ~e sua carreira acadêmicae nas vésperas de sua eleiçãopara o Collegede France. pulares. As transformações,no decorrer do tempo, do espaçodos gostos e do espaçosocial,
SeLe senspratique opera um retomo aos trabalhosde etnologiaempreendidosna Argélia, são abordadas igualmente em La distinction: determinadas práticas podem deixar de ser
La distinctioné uma espéciede síntesedas pesquisasefetuadaspor Bourdieusobrea sociedade distintivas - por exemplo,ao se "democratizarem"- e as transformaçõeseconômicas,assim
como as mudanças do sistema escolar,estão na origem de uma modificaçãodas relaçõesde PRIEUR,A.; ROSENLUND, L.; SKJOTT-LARSEN, J. Cultural CapitalToday:A CaseStudy from Den-
força ~~treas classesou as frações de classes.Um capítulo inteiro mostra também que - ao mark. Poetics, n. 36, p. 45-71,2008.
contrario do que pressupõemmuitas vezes a ciênciapolítica ou as sondagens- a capacidade ROSENLUND,L. Cultural Change in Norway: Cultural and Economic Dimensions. International
de formar uma opinião pessoal é tão pouco universal quanto o julgamento estético "puro": Journal of Contemporary Sociology, v. 37,n. 2, p. 245-275,2000.
ela depe~d~de ~ma competênciapolíticamuito desigualmentedistribuída no espaçosocial.
La drstmctwn exerceumuita influênciatanto na França quanto no exterior (asprimeiras
t:aduções integrais - para o alemão e, em seguida,para o inglês - datam de 1982 e 1984).o 10. DOM(Ideologia do)
·······················································································································
livro tornou-se uma referênciaclássicapara a sociologiada cultura, mas, também, às vezes, Kátia Maria Penido Bueno
para a s~c_iologiado esporte,para o estudoda participaçãopolítica...Suastesesforam objetode
comentanose debates.NaFrança,a obrafoidiscutida,em particular,por sua análisedemasiado Ao longo da década de 1960, Bourdieu formula uma severa crítica ao papel da escola,
"legitimista"da culturapopular (GRIGNON; PASSERON, 1989).Maisrecentemente,a coerênciado denunciando sua incapacidadede promovera igualdade de oportunidades entre os indiví-
h~bitu5_e ~os_e~tilosde vida tem sido questionadacom a noçãode" dissonância",que insistena duos. Suas pesquisas de então concluemque a instituição escolar desempenhauma função
d11Uensao mdmdual da formaçãodos gostos(LAHIRE, 2004).Umapesquisacomparativa,citada de reprodução(conservação)social,sancionando,legitimandoe perpetuando desigualdades
frequentemente,chegouà conclusãoque, se a análisedesenvolvidaem La distinction é, talvez, preexistentesa ela. É nesse contexto intelectual que surge sua crítica à ideologiado dom, a
ad~quadapara a sociedadefrancesa,ela não seria generalizávelpara um país como os Estados qual confere ao termo "ideologia"o sentido marxiano de falsa representaçãoda realidade,
Urudo~(LA'.'10NT, 1992).Alémdisso,a partir da décadade 1990,um grandenúmerode pesquisas apontando, desse modo, a mistificaçãoem que se incorre quando se atribui a propriedades
de soo~logiada cultura enfatizou na esteirados trabalhos de RichardPeterson(1992)- que individuais,e até mesmo inatas, aquilo que é social e culturalmente construído. Ao atribuir
as relaçoe~entre a~categorias~ruditas_ e a "culturapopular" podemter passado,desdeo tempo aos dons (dotes) pessoais a responsabilidade pelas diferenças de êxito verificadas entre os
das pesqmsasde PierreBourdieu,por llllportantestransformaçõescom,nomeadamente,0 de- alunos,a escolaerigea ideologiado dom em explicaçãolegitimadorapara resultadosescolares
senvolvimentoespetacularde um "ecletismocultural" nas regiõessuperioresdo espaçosocial. desiguais,mascarando .desigualdadesreais do ponto de vista das condiçõessocioculturais
A posteridadeinternacionalde La distinction passa também pelos trabalhos que constroem dos educandos.O sucessonos estudos assumiria, segundo ele,a aparê~ciaenganosade uma
e~paçosde estilosde vida em outroscontextosespaço-temporais:assim,pesquisasrecentestêm · essênciapessoal, e não sua real condiçãode produto de um contexto social e cultural.
sido empreendidasna Austrália(BENNET et al., 1999),Noruega(RoSENLUND, 2000), Portugal Em trabalhos posteriores,tal concepçãoe a referênciaà ideologiado dom se estenderão
(BORGES PEREIRA, 2005),Grã-Bretanha(BENNET et al.,2008)e Dinamarca(PRIEUR et al.,2008). à análise das disposiçõesestéticas e de outras habilidades correntes nos campos artístico,
esportivo, literário, acadêmico,jurídico, etc. Em suma, Bourdieu detecta na ideologia do
Referências
dom um viés substancialista,em que se faz abstração da estrutura das relaçõessociaise das
BENNETT,T.; EMMISON,M.; FROW,J. Accounting for Tastes: Australian Everyday Cultures. circunstânciasnas quais vivem os indivíduos.
Cambridge:CambridgeUniversityPress, 1999.
BENNETT,T.;SAVAGE, M.;Da SILVA,E.; WARDE,A.; GAYO-CAL,
M.;WRIGHT,D. Culture, Class,
Distinction. London:Routledge,2008. 11. DOMINAÇÃO
····································;··················································································
BORGESPEREIRA,J. V.Classes e culturas de classe das famílias portuenses: classes sociais e "mo- Ana Paula Hey
dalidades de estilização da vida" na cidade do Porto. Porto: Afrontamento/Instituto de Sociologia
da Faculdadede Letras da Universidadedo Porto, 2005. Da mesma forma que ocorre com outros constructos elaboradospor Bourdieu,derivados
~O,UR~~EU,P. Différences et distinction. ln: DARRAS.Le partage des bénéfices: expansion et de apropriações,interpretações e ajustes de autores diversos,desde clássicosda filosofia,da
megalite en France. Paris: Minuit, 1966. P: 117-129:Colóquio do "Cercle du Noroit d'Arras", em sociologia,da etnologia,passando por seus contemporâneosnestes domínios e em outros, e
colaboraçãocom Alain Darbel.
operacionalizadospor meio de inserçõesempíricasbastante diversificadas,a dominaçãonão
GRIGNON,C.; PASSERON, J.-C.Le savant et le populaire, Paris: Gallimard-EHESS,1989. pode ser descolada do processo generativopelo qual a abordagem ganha corpo. Trazendo
LAHIRE, B. La culture des individus: dissonances culturelles et distinction de sai. Paris: La para o debate a dominação como aquilo que permite a uma ordem social reproduzir-se no
Découverte,2004.
reconhecimentoe no desconhecimentoda arbitrariedade que a institui, ela é inscrita nas dis-
L~MONT,M. Money, Morais and Manners: the Culture of the French and American Upper- cussõesmais amplas acercade quais são os mecanismossociaisque produzem e reproduzem
Chicago:Toe Universityof ChicagoPress, 1992.
Mzddle C::Iass. as estruturas e como elassão (e estão)incorporadas nos indivíduos,agindocomoum sistema
PETERSON,R. Understanding Audience Segmentation: From elite and mass to omnivore and de disposiçõespráticas. A correlaçãoentre estruturas objetivase estruturas cognitivasseria,
univore. Poetics, n. 21,p. 243-258,1992.
para ele, a fundação de uma verdadeirateoria realista da dominação (Ri, 168).
DOMINAÇÃO 153
152 DOMINAÇÃO
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estruturalismo,representadospor "Lesmodesde domination"(1976),"Stratégiesde reproduction de formas de exercer o poder nas sociedadescapitalistas-democráticasque, sem recorrer à
et modesde domination"(1994)e o desenvolvido cóm LucBoltanski,"Laproductiondel' idéologie violênciafísica,permitem proteger os interessesde uma classee assegurar a dominação por
dominante"(1976).Apesarde aparentementeexporemmundosmuito distantes,estestrabalhos meio da visão de mundo incorporada a uma política (BOLTANSKI, 2008,p. 139).
discorremde formadireta comas batalhassimbólicaspara instituir formasde classificaçãoe de Ressalta-se,por fim,o papeldo Estadona dominaçãoque,alémde tornar possívela integração
visãodo mundosocialengendradasna práticacotidiana.Ointeressepelasestruturascognitivas, lógicae moral do mundo sociãl,age comoprodutor de sistemasclassificatórios,reivindicando
pelas taxionomiase pelas atividadesclassificatóriasdos agentesé enfatizadotanto ao expor a o monopóliodos princípiosde classificaçãosusceptíveisde serem aplicadosa todas as coisas
criaçãode estruturas objetivasque vão atenderao preceitode eficáciasimbólicada dominação do mundo social (SEp,227).Se o essencialda dominaçãopassa pela incorporaçãodas estru-
ao seincarnareminstitucionalmente(oEstado,o sistemade ensino,o aparatojurídico)comopor turas por meio da socializaçãoe pela introjeçãode princípiosde classificação,a investigação
atos de conhecimentoe reconhecimentodos agentes(o cabila,os camponeses,as mulheres,os dos mecanismosque permitem a submissãoao Estado,sem que este preciseexercera coerção
políticos,os especialistas)e peloEstadocomolegítimopara formataruma ordemsocial,tornan- permanente, inscreve-ocomo aqueleque contribui plenament_e para a ~eproduçãoda o~dem
do-a universale fornecendoa forma oficialpúblicapara essa ordem.Ao submetero conceitode simbólicae das ferramentas cognitivasde construção da realidade social.Dessa maneira, a
dominaçãoàs condiçõeshistóricasdas estruturassociais,destacaa funçãoideológicae políticado análise da dominaçãonão pode excluiro ato de submissãodóxicoà ordem estatal,e mais, de
simbólicona produçãode legitimidadepor meiodosdiversosdispositivosdeproduçãosimbólica. como o Estado exercea "função simbólicà' de produção de um consensoentre as estruturas
Nesse ponto, Bourdieu recorre às instituições - entendidas em sua dupla forma, na cognitivase as estruturasobjetivas,por meioda próprialógicade "funcionamentodesseuniverso
realidade e nos cérebros (SEp,228) -, envolvidasno trabalho de dominação simbólicapara de agentesde Estado que fizeram o discurso do Estado",revelandotambém os interessesque
demonstrar a translação de um modo de dominação simples para um mais complexo.Na elespossuíam em função da posiçãoque ocupavamno espaçodessaslutas (SE,239).
primeira situação,estratégiasconstantementerenovadasprecisamser instauradaspara garan- Afastando a ideia de que a dominação se instituiria pela razão imediata entre quem
tir as condiçõesde apropriaçãodireta do trabalho, dos bens, dos serviços,das homenagens, domina e quem é dominado, vale lembrar que "a dominação não é o efeitodireto e simples
uma vez que estão ausentes mecanismos indiretos, tais como o Estado, o sistema de ensino da ação exercidapor um conjunto de agentes (a "classedominante") investidos de poderes
e o aparato jurídico, caracterizando sociedadesdesprovidas de mercado autorregulado.No de coerção,mas o efeitoindireto de um conjunto complexode ações que se engendram na
outro modo de dominação,a mediação exercidapela posse dos meios - capital econômicoe rede cruzada de limitações que cada um dos dominantes, dominado assim pela estrutura
cultural - de se apropriar dos campos de produção econômicae cultural tende a assegurar do campo através do qual se exerce a dominação, sofre de parte de todos os outros" (RPp,
a própria reprodução deles por via exclusivade seu funcionamento,independentementede 52).Essa forma de pensamento exigedesvelarmecanismoshistórico-sociaiscomplexose os
qualquer intervençãointencionaldos agentes.Assim, continua Bourdieu (1976,p. 122),é no arranjos construídospara perpetuar modos de dominaçãocada vez mais eficazes,porquanto
grau de objetivaçãodo capitalsocialacumuladoqueresideo fundamentode todas as diferenças mais dissimulados,pelo fato de legitimarem uma ordem simbólicaque é incorporada.
pertinentes entre os modos de dominação - quer dizer, entre os universos sociaisem que as
relações de dominação se estabelecempor meio da interação pessoal e pelo uso do capital Referências
simbólico,e as formações sociais em que a dominação é mediada por uma estrutura que a BOLTANSKI, L. Rendre la réalité inacceptable.Paris: Demopolis,2008.
legitima.Osmecanismosobjetivose institucionalizadospromovema distribuiçãodesigualde BOURDIEU,P. Les modes de domination. ARSS, Paris, n. 2-3,p. 122-132,juin 1976.
recursos sociaise permitem seus usos diferenciaisno interior das classese fraçõesde classe. BOURDIEU, P.Stratégiesde reproductionetmodes de domination.ARSS,Paris,n. 105,p. 3-12,déc.1994.
Na mesma direção analítica, Bourdieu e Boltanski (1976)evidenciamo modo de domi- BOURDIEU, P.;BOLTANSKI, L.Laproductiondel'idéologiedominante.ARSS, Paris,n. 2-3,p. 3-73,juin 1976.
nação expostona filosofiasocialdas "fraçõesdominantes da classedominante" da sociedade CHAR,R. Fureur et mystere. Paris: Gallimard, 1967 [1948].
francesa dos anos 1970.Expondo o "bom senso" das visões de mundo dos políticos e seus PINTO,L. Pierre Bourdieu et la théorie du monde social.Paris: Albin Michel, 1998.
experts (economistas,demógrafos,politólogos,estatísticos, sociólogos),mas também dos SAINTMARTIN,M. de. Dominação social, dominação escolar.Educação & Realidade, v. 28, n. 1,
lugaresneutros (centrosde cálculose previsões,círculos de debates de conjuntura), escruti- p. 21-29,jan./jul. 2003.
nam atores e lugares que concebema "mudança"que será imposta a todos e cuja expressão
reside na ideia de "novas tendências".Esse modo de dominação, que consiste em "mudar
para conservar", comporta a passagem de uma forma simples, na qual as instâncias de n DOMINACÃOMASCULINA(A) (La domination masculine)
····················::: ...............................................................................................
..
.
poder são orientadas para a manutenção da ortodoxia e pelo afastamento da crítica, para
ClariceEhlersPeixoto
um modo mais aperfeiçoado,operando justamente pela incorporação da crítica ou de seus
traços mais superficiais;engajandodispositivosde poder (empresas,administrações,Estado)
BOURDIEU,P.A dominaçãomasculina.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
nas con~ínuasséries de reformas; incorporando-as a um processo de acompanhamento de
mudanças permanentes (BOLTANSKI, 2008, p. 139)e, sobretudo, recebendo o selo da visão Década e meia após a publicaçãode A dominação masculina, e numerosas críticaspu-
neutra atestada pelas competênciasdos especialistas.Demonstram, assim, a especificidade blicadasmundo afora, como redigir um verbete que dê conta da análise elaboradapelo autor
DOXA 157
156 DOMINAÇÃO MASCULINA (A) (La domination masculine)
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se deveuma reinterpretaçãosociológicadessaproblemática:tratava-se,para ele,de descrevera (BouRDIEU, 1972),cuja figura emblemáticaé o produtor e intérpretede sondagensde opinião,
parcelado evidente(takenfor granted) própriade nossaexperiênciaordinária,raramenteques- sãoeruditosde aparênciae das aparências,os "semieruditos"que dão ares de científicidadea um
tionada e explicitadaa não ser em situaçõesde estranhamentoou de crise.Taisevidênciasestão discursosobreo mundo socialbaseadoem pressupostosnão elucidados,os mesmosutilizados
baseadasna práticae estruturadas·poroperaçõesde tipificaçãoque favorecema compreensãoe pelospolíticos,jornalistas e ensaístas.Tal doxa, que pode eventualmenteassumir a forma sis-
a ação."Naatitudenatural, escreveAlfredSchütz,considerocomosendoevidenteque os outros temáticade um discursoideológico- a "opinião",expressãoe reflexo"democráticos"do povo-,
existam,que atuem sobre mim como eu atuo sobre eles, que a comunicaçãoe a compreensão tem a propriedadede acumular os lucrosdo rigor e os da evidência(QS).Para se desvencilhar
mútuas possam se estabelecerentre nós [...] tudo issograças a um sistemade signose símbolos das categoriasde pensamento próprias a esse universo,convémtrazer à luz as questõesque,
e no âmbitode uma organizaçãoe de instituiçõessociaisquenão são obraminha" (1962,p. 145). nas sondagensde opinião (ou em entrevistas),pressupõema posse universalde uma opinião
ParaBourdieu,é impossívelsecontentarcom"essaspoucasconstataçõesantropológicasgerais ("vocêacha que..."), de um códigocomum de noções unívocas (o "Estado",as "reformas",o
e a-históricas"(MP,208),mesmoque o projetode uma ciênciada experiênciaordináriamereça "déficitorçamentário",a "Europa"...). Essasperguntas impostas de fora a indivíduosdóceise
serlevadoa sério.A doxa contémo sentimentode familiaridadequeengendra,sobdeterminadas incapazesde reconheceros pressupostosdas mesmas e de contestá-los,suscitam uma forma
condições,o ajustedas estruturas do habitus às estruturas objetivas,da "históriafeita corpo" de adesãoilusóriabaseada na "allodoxia, que consisteem se reconhecererroneamentenuma
e da "históriafeitacoisa".Comotal, ela contribuipara reproduzira ordem existente,impondo formaparticular de representaçãoe de explicitaçãopúblicada doxa" (MP,221).
evidênciasque,por não seremda ordem dos pensamentos,acabamsendomais eficientes.Essa Por razões tanto científicasquanto políticas,a sociologiadeveempenhar-separa elucidar
é uma das razõespelas quais Bourdieuopõe a doxa à ideologia:"Seaos poucosfui banindo o 0 que diz e o que não diz a doxa, o que ela incita a pensar implicitamente;e isso é, em conso-
empregoda palavra 'ideologia',não é somenteem razão de sua polissemiae dos equívocosdaí nância com a exigênciade reflexividade,uma condiçãoprévia para a análise dos universos
resultantes.Ao evocara ordem das ideias,bem como da açãopelasideiase sobreas ideias,esse de produção simbólica.A não ser que se submeta a repetir, sob um modo erudito, o ponto de
termotendea cancelarum dosmaispotentesmecanismosdemanutençãoda ordemsimbólica,qual vista dos agentes, a sociologianão pode deixar de exercerefeitoscríticos sobre as visões do
seja,a dupla naturalização queresultada inscriçãodo socialnas coisase nos corpos"(MP,216). mundo social.Ela não propõe uma denúncia suspeitosaou desconfiadadas aparências,mas
Bourdieuesforçou-separa completaressa abordagemda relaçãopré-reflexivacom o mun- uma análise das crenças e das condiçõessociaisde produção das mesmas, a qual se inscreve
do, inspirada pela fenomenologia,com outra linha de inspiração,sobretudo durkheimiana. na tradição weberiana de análise da dominação e da legitimidade. \
O senso comum de um agente é determinado pela interiorização das oposiçõesobjetivasda Se o conhecimentocientíficocontribui para tornar menos evidente·arealidade social,ele
sociedadesob a forma de sistemas de classificação(alto/baixo,reto/curvo,masculino/femi- develevar em consideraçãoa força dos mecanismos sociais que tendem a manter a crença.
nino...). A adesão dóxica ao mundo social está baseada na relação de harmonia entre duas Eis o motivo pelo qual os intelectuais não devem superestimar o poder de sua crítica. Uma
ordens de coisas:as classese as classificações,as posiçõese as disposições,as probabilidades tomada de consciênciapode ser suscitada,sejapor acontecimentosbiográficossingulares,seja
objetivase as expectativassubjetivas,as estruturas objetivadase as estruturas incorporadas. por conjunturashistóricasque conturbam as referênciasanteriorese revelama arbitrariedade
Ninguémvivesem uma dose de "algoevidente",mas a mesma doxa não é compartilhada do que aparecia como a ordem natural das coisas.
por-todosos indivíduos:uma pessoapode sentir-seestranha ao universode outra. E o mesmo
ocorreem relaçãoa cadacampo:"Comoo campoartístico,cadauniversoeruditopossuisua doxa Referências
específica,conjuntode pressupostosinseparavelmentecognitivose avaliativoscuja aceitaçãoé BOURDIEU,P. Les doxosophes.Minuit, n. 1, p. 26-45, nov. 1972.
inerenteà própriapertinência"(MP,121).O grau de ajustepode ser apreendidoatravésdas ex- SCHÜTZ,A. CollectedPapers,I, TheProblemof SocialReality.LaHaye:MartinusNijhoff,1962,p.145.
periênciasque se distribuementre o polo da familiaridade,da facilidade,e o do incômodoe da
confusão.Comcerteza,a linha divisóriaentre o evidentee o inconcebível,longede ser fixa,não
cessade se deslocarsob o efeitode lutas e de "revoluçõessimbólicas"que oferecemnovosinstru- 74. DURKHEIM, ÉMILE(1858-1917) ........................
·······························································································
:;1entosde percepção.O que era evidente,até então,pode tornar-seobjetode discursoexplícito: Louis Pinto
O trabalhodos guardiõesda ordemsimbólica,que têm um trato como bom senso,consisteem
tentar restaurar,no modo explícitoda orto-doxia,as evidênciasprimitivasda doxa" (MP,224). Com seus escritos,Pierre Bourdieucontribuiupara dar a conhecera obra de Durkheim e
Deve-seprocedera uma distinçãoentre,por um lado, o sensocomumde que dispõem,sem dos durkheimianos. Alémdisso,providencioua republicaçãode algunstrabalhosdessesauto-
aprendizagemcodificada,todosos agentesno interiorde uma sociedadee queé a condiçãode um res em LesÉditionsde Minuit. No entanto, durante o período em que Bourdieuera estudante
mundocomum,suscetívelde sercontroladoe manifestadoe,por outro,as crençascompartilhadas de filosofia,Durkheim era consideradoum autor antiquado, sendo desacreditadotanto por
por gru~osde especialistasenvolvidosna produção,relativamentesistemáticae duradoura, de filósofosquanto por sociólogos.Foi,-emparticular, a obrigaçãode dar cursos sobreDurkheim
bens eruditos.Pode-seafirmar que qualqueruniversoerudito contémalgoindiscutido,sejana que,no inícioda décadade 1960,lhe permitiu descobriralgodiferentedo pensadorestérilque
forma de crençasteóricas,de valoresou de hierarquias institucionais,sociais.Os "doxósofos" eleesperavaencontrar.
1
L
Osdoissociólogos seguiramo mesmopercursoescolar(ÉcoleNormaleSupérieure,agrégation paradoxal,no caso de grupos desprovidosde meios objetivosde coesão.Assim,a unidade dos
de filosofia),sendo que o projetointelectualde ambos pode ser caracterizadoem termos quase estudantes,por não estarbaseadanem numa comunidadede trajetórias,nem na intensidadedo
idênticos,a começarpelarecusada mundanidadee da tradiçãoletrada.Enquantoracionalistas, enquadramentopedagógicoou na vitalidadede tradições,deve-seessencialmentea um conjunto
elesmostraram também relutânciano tocante às correntesrelativistasque assumem as apa- de ritos destinadosa manifestar a filiaçãoao grupo (frequênciaa determinadoslugares,inte-
rências radicais da liberdadee da imaginação.Contra adversários,tais cornoo empirismodo ressepelosgrandes debates,etc.)."Condenado,pela condiçãotransitória e preparatóriaem que
senso comum e o amadorismoerudito, eles criticaram a ideia de que seja possívelprescindir é colocado,a ser apenaso que projetaser ou, até mesmo,puro projetode ser",o estudanteestá
de "teoria".A ciênciase adquire contra a "pré-noção",contra o que é pré-construído,ao que destinadoa manifestarsua filiação,seu ser,mediante "comportamentossimbólicos"(LH,59).
ela opõe urna construçãoprópria. Elescompartilham também a ideia de uma unidade funda- A análise durkheimiana dos sistemas de pensamento e de classificaçãoconcerneprin-
mental das diferentesespecialidadesenvolvidasno conhecimentodo mundo social,a começar cipalmente à religião e ao conhecimento, estreitamente associados no livro Les formes
pela história.Para eles,o estudotanto do presentequanto do passadoé indissociável.Bourdieu élémentaires de la vie religieuse:deste ponto de vista, Bourdieu retorna o procedimento
pôde apoiar-sena ideia durkheimiana, ilustrada em L'Évolutionpédagogiqueen France,de de seu predecessor.Em relaçãoao sistema mítico-ritual cabila,Bourdieuformulou questões
que o inconscienteé um dos efeitosde urna história desconhecidamas sempreativa,ideia essa muito semelhantes àquelas que haviam sido abordadas por Durkheim e Mauss no famoso
que está no centro da sociologiada educaçãoe da sociologiado conhecimento,bastante inter- artigo sobre os sistemas de pensamento (DuRKHEIM; MAuss, 1969).A contribuição de
ligadas,segundoBourdieu.Váriasdécadasdepoisdas críticasde Durkheimao positivismodos Durkheirnconsistiu em enfatizar o trabalho cognitivo- nos sistemas simbólicos,em geral,
historiadorescontemporâneos(CharlesSeignobos),Bourdieudirigeacusaçõessemelhantesaos e na religião,em particular -, trabalho que tem o efeitode estruturar a ordem do pensável
historiadoresde sua época:culto excessivodos fatos e da precisão,relaçãoarnbivalentecom a graçasa um reduzidonúmerode esquemasmítico-rituais.No entanto,ao assumiruma postura
teoria, consideradaassunto de filósofose sociólogos(BOURDIEU; RAPHAEL, 1995). intelectualista,Durkheim é levadoa ignorar as "relaçõesde forçà', incapazde reconhecer,na
O preceito durkheimiano segundo o qual convém "explicar o social pelo social" deve sequência,que essas relaçõessó podem ser realizadas precisamentepor meio de "relaçõesde
ser entendido "unicamente" como "o lembrete da decisão metodológica de não abdicar sentido",que ele tem razão em sublinhar (contra Marx e Weber),mas que ele tende a tratar
prematuramente do direito à explicação sociológica [...] enquanto a eficáciados métodos de maneira idealista como termos últimos.
de explicaçãopropriamente sociológicanão tiver sido completamente comprovada" (MS, Aocitar Durkheim,Bourdieufaziaapelo,em seu livroMéditationspascaliennes,à noção
42). O antipsicologismotem um conteúdo puramente metodológico ou "provisório" (MS, aparentementeparadoxal de "condiçõessociotranscendentaisdo conhecimento"(MP,155'.
43), que diz respeito à fase inicial do trabalho de pesquisa. Durkheim poderia ter sido ci- 158),semelhante à "gramáticà' wittgensteiniana. A ideia segundo a qual o fundamento do
tado sobre este ponto, já que havia declarado o seguinte: se o sociólogo,"no início de seus valor só pode ser social,imanente ao mundo social para além do qual nada existe,pode ser
esforços,parece afastar-se do homem, é com a intenção de retornar a ele e para conseguir atribuída a Durkheim mesmo que os termos sejam diferentes (emvez de capital,Durkheim
compreendê-lomelhor [...]. Portanto, bem longe de ser estranha à psicologia,a sociologia falade grupo enquantofonteespecíficade uma autoridadequesó poderia ser supraindividual).
entendida assim chega, por sua vez, a ser urna psicologia,mas muito mais concreta e com- O campo é O lugar em que circula o capital,o valor coletivo:"Overdadeiro 'sujeito'das obras
plexa do que aquela elaborada pelos psicólogospropriamente ditos" (DURKHEIM, 1975,p. humanas mais bem-sucedidasnão é outro senão o campo" (MP,137).
185).Na esteira de Durkheirn, Bourdieuleva em conta a especificidadedo coletivosem cair Finalmente,Durkheimestápresenteemum trechoprivilegiadodeMéditationspascaliennes,
no "holismo",porque a oposição individual-coletivo é imanente ao mundo social; é essa na frasefinalem queBourdieuevocao capitalsimbólicocornoum capitaldas razões(sociais)de
oposição que é pertinente, mais do que cada um dos dois termos. Ela pode ser considerada existir.Essecapital,de que o Estadoé a garantiamáxima,não poderia ser confundidocomum
de um ponto de vista empírico. simplesacúmulode sinaisde distinção:eleé a medida e a expressãoda excelência,socialmente
O conceitode integraçãofoimobilizadodesdeos primeirostrabalhos destinadosa analisar reconhecida,de um indivíduo,de que sua existênciaestájustificada,que elamereceser vivida,
a coe~ã_o de grupos sociais,sua maneira de existir como grupo. As pesquisassobre fotografia imitada,honrada. "Cornose vê,Durkheimnão era tão ingênuocornose quer fazercrer quando
permitiram revelaro quanto a fotografiaestá associadaà família e seus temposfortes (festas, · dizia,assim cornoKafkapoderia tê-lofeito,que 'a sociedadeé Deus"' (MP,288).
batizados,casamentos).A probabilidadede possuir urna máquina fotográficaaumenta com
o tamanho da familia: enquanto os camponesessão um dos grupos mais apegadosaos usos Referências
familiaresda fotografia,as classessuperioresurbanas tendem a tornar distânciaem relaçãoa BOURDIEU,
P.;RAPHAEL,L. Surles rapports entre l'histoire et la sociologieen Franceet en Alemagne.
essesusos exclusivos.Essamesmalógicapresideas práticas"desviantes"própriasde indivíduos ARSS, n. 106-107,1995.
que,desprendidosde laçosfamiliaresou mais isolados,podem dedicar-secommaior empenho DURKHEIM,E. Elémentsd'une histoire sociale. In:___ . Textes. Paris: Minuit, 1975.Tome 1.
a utilizaçõesestetizantes,amplamenteliberadasdas cerimôniasfamiliares. DURKHEIM,E.; MAUSS,M. De quelquesformes primitives de classification.Contribution à l' étude
Osconceitosdurkheimianospodemfuncionarnão só no casode gruposobjetivae subjetiva- des représentations collectives. Année Sociologique, v. 6, p. 1-72. (Reproduzido em MAUSS,M.
menteunificados,tais cornoasfamíliascamponesastradicionais,mas também,de formabastante CEuvres.Paris: Minuit, 1969v. 2).
Na mesma direção do sociólogoalemão,as noções bourdiesianasde campo e habitus in- não é histórica no mesmo sentido que a de Elias;não obstante, ambos desenvolvemformas
tentam mostrar que a sociologiaenredara-senum falsodilema.De fato,Bourdieuevitapensar de temporalizaçãode seus objetos,que no primeiro funciona como garantia contra a inter-
a relaçãoentre agentee mundo socialconformeo modeloda dinâmica entre uma consciência vençãoindevida de categoriasmetafísicasno andamento da explicação,e no segundo remete
e seu objeto,porqueesteúltimo supõeum corte que não dá contada cumplicidadeefetivaentre à discussãosobre a natureza social do tempo herdada da tradição durkheimiana.
os termos da relação:há um entrelaçamentoontológicoentre as disposiçõesinternas do sujeito Do ponto de vista metodológico,um paralelo entre as obras levaria menos a marcar sin-
(habitus)e o espaço,limitadopela disputa de um poder específico(campo),cujafrequentação gularidades pelo uso desta ou daquela estratégia do que a notar a adoção de instrumentos
duradoura deu origem a elas. Cabe então à análise reconverteros paradigmas em tensão em adequadosao problema específicode pesquisa a ser enfrentado. Talveza coincidênciamais
momentosdo andamento do trabalho, que abandona provisoriamenteas representaçõesdos curiosa esteja na atenção ao momento instituinte de uma formação social como aspecto
agentespara construir o espaçode posiçõesvincadopela distribuiçãodesigualde recursosque condicionantede seu estado atual, o que nos leva de volta à importância da história. A título
condicionamas interaçõese representações;para, em seguida,reportar a ação exteriorizadaà de exemplo,lembremosque o interesse de Eliaspela sociedadede corte explica-seporque ela
estrutura subjetivado agentequea projetaa partir do interior,revelandoseu modode apreensão é vista como o berço dos paradoxos fundantes da modernidade; e que Bourdieudedica-seà
práticado mundo.Assim,o passoobjetivistaimplicanuma ruptura epistêmicada naturalização compreensãoda emergênciada autonomia do campo literário porque é esse o momento de
da ligaçãoentre agentee mundo socialvividode forma espontânea,e deveser completadopelo instauração da lei imanente que vai regular as relaçõesem seu interior até o tempo presente.
passo subjetivistaque correspondeà compreensãodas razões do agentedo interior,mas não
necessariamenteda consciênciaque tem de seus atos. Comodiz o autor, tudo se passa como
se a realidadesocialexistisseduas vezes,nas coisase nos sujeitos,de modo que a primazia da so.ELITES
análisesociológicanão está em nenhum deles,mas em suas relações. ····························································································
...----·····················
FrédéricLebaron
As afinidadesentre os autores tratados remetemjustamente a esse ponto crucial:ambos
procuram contornar a antinomia por meio de uma sociologiaradicalmente relacional,seja Se ele critica a noção de "elite" - tal como esta é empregada em pesquisas empíricas
incorporandoessa dimensãona descriçãodo objeto(Elias)seja evitandoelegerentre polos de internacionaisdos anos 1960,sob o impulso nomeadamentede Paul Lazarsfeld(1901-1976),
um contínuo ao propor que ação e estrutura (bem como o habitus, produto de sua interação) PierreBourdieunem por issodeixade ser considerado,acertadamente,co:rpoum dosprincipais
não têm peso substantivopróprio,existindode fato como e na relação.À sua maneira, os dois teóricose analistasda formaçãoe da "reprodução"das elites,desdeseustrabalhosda décadade
sociólogosencontram as ferramentas conceituaispara dizer ao mesmo tempo "homem na 1960,em particular,às pesquisassobreo sistemafrancêsdas GrandesÉcoles.Aliás,o subtítulo
sociedade"e "sociedadeno homem"ao referir-sea seu objeto.E, em ambos, essemodo de ver da tradução em língua inglesa de sua obra, La noblessed'État (1989)é Elite Schoolsin the
acarretapensaro podercomodimensãoindissociávelda condiçãosocial.EmElias,issose dá pela Field of Power (1996).Escolasde formaçãodas futuras elitessociais,as GrandesÉcolessão,
assimetriainescapáveldas relaçõesde dependênciarecíproca,queconferepoderao que depende antesde mais nada, ramos do ensinosuperiorelitizados,do ponto de vista escolare social,cujo
me~ossobre o que dependemais. Já Bourdieufilia-senesse aspectoà tradição da antropologia acessoé destinado a um reduzidonúmero de estudantesdas classespopulares,número ainda
soCialfrancesaque entende a troca como base da sociabilidade.Mas comentandoa tríade do menoselevadodo que ocorrenas universidades(comexceçãode setorescomoa medicina).
dom desenvolvidapor Mauss,Bourdieutemporalizaum processoque a tradiçãoestruturalista Para o estudodas elites,Bourdieuaventaa hipótese,inovadora,do papelcentralda "cultura",
via como puramente lógico:no circuito entre dar, receber e retribuir instaura-seum lapso de enquantoconjuntode disposiçõesinteriorizadas- um patrimônio,a um só tempo,linguístico
tempo entre o recebimentodo dom e a contraprestação,período em que o devedorassume a e comportamental- que facilitamnão só o "sucessoescolar",mas também a adoçãode estilos
posiçãode dominadoem relaçãoao doador.O fundamento da associaçãoremeteassim ao de- de vida específicos,propíciosa contribuir para a permanência das desigualdadessociais. O
curso do tempo e, portanto, à história,e as ligaçõessão geneticamenteassimétricas.A história capital cultural "pesa",assim, tanto quanto a posse de patrimônio ou de rendimentos eleva-
ganha relevânciano procedimentoanalítico, mas como fundamento último e não princípio dos. As "elites" ou "grupos dominantes" são, portanto, definidos por Bourdieu em termos
explicativopor excelência,diferençaimportante em relação a Elias.A própria racionalidade "relacionais",ou seja, a partir de sua dotação relativa, mais elevada,em diferentes espécies
científicadesenvolve-senas relaçõesde produçãodo conhecimentoque se objetivamno campo de capital:econômico,cultural, social e simbólico.Assim, as elites sociais são apreendidas
intelectual,não havendoqualqueroutra instância de produção da razão. de maneira multidimensional,levandocseem consideraçãoa diversidadede recursos que as
As poucas mençõescríticas expressasde Bourdieusobre a sociologiaeliasiana remetem caracterizam,o que conduza uma nítida distinção entre as diferentesfraçõesdas elites:elites
a essa diferençano estatuto da história, sobretudo na consideraçãodos macroprocessos(de culturais, elites econômicas,etc.
que O processo civilizador (1939),obra maior de Elias, é um marco fundamental),já que a A partir do final dos anos 1960,PierreBourdieue seus colegasdo Européenne(CSE,que se
mirada ~os desenvolvimentosdo mundo social em amplitude secular tenderia a nublar as tornou CSEC,Centrede Sociologiede l' Éducationet de la Cultureapós a ruptura comRaymond
diferenças,rupturas e descontinuidadessignificativas,abrindo o risco de fazer submergir o Aron, em maio de 1968)empreendem a elaboração de um conjunto de pesquisas coletivas
objeto em meio às generalidadescaptáveisnesse arco mais longo.A sociologiade Bourdieu sobre diferentes frações das "classesdominantes", de acordo com a terminologia utilizada
1
L
durante esseperíodo:professoresuniversitários,artistas, funcionáriosde alto escalão,patrões, uma tensãopotencialmentecadavezmais forte,no cernedeste,entreuma legitimidadeexperte
etc. Paralelamente,a pesquisa chamada "Gosto"dá lugar a análises sobre as diferenciações técnica(ados diplomadosem management)e uma legitimidadepatrimoniale prática(ocapital
entre as referidas frações em matéria de estilos de vida, as quais serão publicadas no artigo simbólicoe o capitaleconômicodos"herdeiros''da burguesia).Essacaracterística,observa-seno
''L'Anatomie du gout" (1976)e na obra La distinction (1979). âmagodopatronatofrancêsestudadoporBourdieue de SaintMartin,em 1978.Afraçãodominante
Cada vez mais, as pesquisas são realizadas a partir de dados prosopográficos(biográfi- dopatronatofrancêsé,na épõca,altamentediplomada(ENA,Polytechnique... ) e associadaao
cos) coletadosnos anuários específicos(emparticular, o Who's Who?) e em diversasfontes Estado,emparticular,aopolofinanceirodoEstado(oMinistérioda Fazenda,o BancoCentral... ).
(jornalísticas,etc.).Até hoje, com os trabalhos de François Denord, Paul Lagneau-Ymonete As relações entre as diferentes frações das elites são, portanto, mais facilmente com-
SylvainThine (2011),essa tradição de pesquisa prosopográficasobre as elites nunca chegou preensíveisse forem analisadas do ponto de vista da sociologiada educação,a qual se torna
a ser interrompida no âmbito do CSEC-CSE e, mais amplamente,da "escolabourdieusiana". assimuma peça central da sociologiado poder, comoé evocadopor Bourdieuem La noblesse
Pode-seacrescentar,ainda, as pesquisas de Luc Boltanski sobre os produtores de ideologia d'État.No seio do campopolítico,por exemplo,as elites"tecnocráticas"(na França,aquelesa
dominante (nomeadamente,os professoresde Sciences Po/Paris); as de Christophe Chade quem é atribuído o qualificativode énarques)sofrema concorrênciade novasfrações,diplo-
sobreas elitesda RepúblicaFrancesano séculoXIX;os trabalhos de Moniquede SaintMartin madas, notadamente, pelas escolasde comércio(businessschools)ou pelos departamentos
sobre a nobreza;além de numerosas teses de doutorado, cujotema incide sobre grupos espe- universitáriosde economiae gestão.
cíficos- escritores,economistas,jornalistas, etc. - no âmago das elites. A progressãoda economia e do management na formação das elites contemporâneasé
Essas diversas pesquisas coletivas vão conduzir Bourdieu, por um lado, a formalizar uma característicafrequentementeenfatizadaem numerosospaíses. Elaexplicaamplamente
a noção de "campo do poder", que é o ponto culminante de sua sociologiadas elites e, por a tendência para o economicismodos grupos de elite, ou seja, o predomínio em seu cerne
outro, a enfatizar a homologiaestrutural entre o campo do poder e o campo das "escolasda de uma visão centrada na esfera "econômicâ' definida de maneira restritiva, quase sempre,
elite" (GrandesÉcoles,na França). em termos, antes de tudo, financeiros.Ela conduz à constituiçãode um mercadomundial de
O campo do poder é o subespaçosocial compostopor agentesque lutam em prol do exer- ensino superior,focalizadonos MBA,e ao desenvolvimentode trajetórias acadêmicasinter-
cícioda dominação.Mas esse"princípiounificador",essa illusiocomum,é acompanhadopor nacionais,associadoa redes sociaistransnacionais. Os grupos dominantes que emergemdo
consideráveisdiferenças,em particular, aquela que se estabeleceentre um polo dominante processode globalizaçãosão, nomeadamente,os executivosda finan\a - traders, dirigentes
no plano econômicoe um polo dominante do ponto de vista intelectual,que os distingue em dos bancos e das instituições financeiras,etc. -, os consultores,os advogadosde negóciose
termos de estilos de vida, assim como de posiçõese de tomadas de posição. os economistas,os quais constituem grupos profissionaisfortemente internacionalizadose
Essaoposiçãoserá reencontradano campo das GrandesÉcolescom,por um lado, escolas relativamentehomogêneospara além das fronteiras nacionais.
voltadaspara a reproduçãodo poder intelectuale científico(em primeirolugar,N ormale Supé-
rieure); e,por outro, "escolasdo poder" econômicoe político(Hautes Études Commerciales, Referências
École Nationale d'Administration ... ). A evoluçãodas relaçõesde forçaentre essasdiferentes P. The State Nobility: Elite Schoolsin the Fieldof Power.Stanford:StanfordUniversity
BOURDIEU,
escolasilustra a transformaçãodo campo do poder,na França,e de maneira mais específica,o Press, 1996.
fortalecimentodo polo do poder diante da marginalizaçãodas escolas"intelectuais". BOURDIEU,P.;SAINTMARTIN,M. L'anatomiedu goíit.ARSS, v. 2, n. 5, p. 1-81,1976.
Se,dopontodevistaconceituale empírico,eleé inovador,Bourdieurespondetambéma questões BOURDIEU,P.;SAINTMARTIN,M. Le patronat. ARSS, v. 20-21,p. 3-82, 1978.
mais "clássicas",tais comoaquela- lancinantenos trabalhossobrea estratificaçãosocial- que DENORD,F.; LAGNEAU-YMONET, P.; THINE, S. Le champ du pouvoir en France. ARSS, v. 190,
incidesobreo fundamentoda existênciadas elites.Em sua construçãoteórica,a permanênciadas p. 24-57,2011.
classesdominantesremeteà noçãode modo de reproduçãoque caracterizariacada sociedade:
trata-sedas modalidadespelasquaisuma sociedadeorganizaa transmissãodas posiçõessociais
21. EMPREGO
dos pais aos filhos.Nesteaspecto,a transmissãohereditáriado patrimônio (a terra e o capital) ·······················································································································
desempenhatradicionalmenteo papelcentral.As sociedadesdominadaspelasforçaseconômi-
Ver: Trabalho
cas atribuem,assim,ao patrimônio,um lugar determinanteno acessoàs posiçõesdominantes.
Nassociedadescontemporâneas,esselugar - que não desapareceu- é contrabalançadopor
diversosprocessos:o papelcrescentedo sistemaescolare suatraduçãona ideologiameritocrática; 22. EPISTEMOLOGIA
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a ascensãodos executivose assalariadoscom alto nível de qualificaçãoque detêm expertises Denis Baranger
relati~amenteraras. Bourdieufala, então, de "modode reproduçãocom componenteescolar".
A acentuaçãoda competiçãoescolarconduzao incrementodo papeldo sistemaeducativono SeBourdieununca deixou de refletir epistemologicamente,elese recusou na maior parte
funcionamentoda ordemsocial,inclusiveentreas fraçõeseconômicas,tais comoo patronato.Daí do tempo a manter um discurso especificamenteepistemológico:"Odiscurso sobre a prática
científica, quando toma o lugar da prática científica propriamente dita, é completamente . our scientifiques", falava da "philosophie spontanée des savants" (filosofia espontânea dos
desastroso. A verdadeira teoria é aquela que se dissipa e se realiza no trabalho científico que ~ientistas [PSS, 1974]),enquanto em Le métier de sociologue,com todas as aparências de
ela permitiu produzir" (R,134-135). um eco, tratava-se de uma "sociologie spontanée des sociologues" (sociologia espontânea
É difícil falar da epistemologia de Bourdieu sem levar em conta suas opiniões a respeito dos sociólogos [SSS]).
da teoria e da metodologia na medida em que, em seu entender, se tratava de três níveis Do mesmo modo que· a PSS althusseriana, assim também a SSS é engendrada de
inseparáveis da prática científica, o que explica a razão pela qual ele denunciava tanto o maneira permanente e necessária pela prática social e, neste sentido, evoca ind~bita-
teorismo quanto "o absurdo científico que é designado por 'metodologia"' (R, 137). Se é velmente as "ideologias práticas" althusserianas: "[...] a familiaridade com o umverso
possível, sem dúvida, determinar afinidades eletivas entre epistemologia, metodologia e social constitui, para O sociólogo, o obstáculo epistemológico por excelência pelo fato de
teoria, no entanto, cada uma dessas instâncias mantém uma relativa autonomia, permitindo produzir continuamente tanto concepções ou sistematização fictíc~as q~anto as c,ondiçõe~
por exemplo que, em seus primeiros trabalhos sociológicos, Bourdieu tenha utilizado a de sua credibilidade. O sociólogo nunca conseguirá eliminar a soc10logia espontanea [...]
análise de variáveis de Lazarsfeld, sem ter deixado de rejeitar a epistemologia positivista (ALTHUSSER, 1968, p. 35). _
desse autor (BoURDIEU,1991,p. 247). Na realidade, a SSS, assim como a PSS, está enraizada em Bachelard, que nao
Bourdieu defendeu sempre uma sociologia científica, o que é considerado jocosamente aceitava de modo algum a ideia de uma metaciência que viesse a se pos~cionar ~a
por alguns comentaristas como uma postura cientificista e, até mesmo, positivista. No en- base das ciências. No entanto, a ideia de uma TCS em luta contra a SSS e essencial
tanto, quando ele subscreve com Passeron a fórmula de Bachelard, "o vetor epistemológico para a argumentação adotada em Le métier du sociologuee, por co_n~eguinte, ~ara a
[...] vai do racional ao real [...]" (MS, 14;BACHELARD, 2003), isso se dá por razões idênticas epistemologia de Bourdieu nessa época. Para não c:íre~ ~~ contradiçao, a soluç,~o do~
às de Popper, o qual defendia - diante da indutividade dos positivistas lógicos - a primazia autores dessa obra consiste em desdobrar o termo teona : por um lado, tem-se TCS
da teoria sobre os dados. Com efeito, é sobretudo na tradição francesa (fundamentalmente - formulação ambígua, de acordo com De Ípola (1970, p. 133), dado qu~ ela a~r~n~e,
antipositivista) da história e da filosofia das ciências que se pode encontrar a origem de suas de fato, nada menos do que a epistemologia - e, por outro, tem-se teona soc10,lo~ica
ideias epistemológicas. propriamente dita; Graças a esse artifício é que se realiza o milagre d~ Santissm_ia
É costume buscar a epistemologia de Bourdieu em seu livro, Le métier de sociologue Trindade, unindo Marx, Durkheim e Weber em uma única e piesma epistemologia.
(1968).Essa obra, concebida explicitamente como um manifesto antipositivista (BouRDIEU, Em suma, a epistemologia geral negada por Bachelard ressuscita como uma TCS que,
1991,p. 247), tem a desventura de começar por uma citação de Auguste Comte (MS, 7). Em supostamente, deveria ser defendida a contragosto pelos sociólogos. .
seguida, afirma-se que "a sociologia é uma ciência como as outras que esbarra somente em De fato, depois de Le métier du sociologue,a TCS é encontrada em Bourd~eu ~o-
uma dificuldade particular de ser uma ciência como as outras" (MS, 43). Uma tese que se mente em duas oportunidades: em sua obra, La reproduction,na qual um pnmeiro
0
presta a uma interpretação positivista, se a fórmula - como as outras - for entendida como axioma referente à força própria da violência simbólica é seguido por um escólio que
"unidade de método", e se se levar em consideração que o problema para as ciências humanas transforma em "um princípio da TCS" (LR, 18); e em uma entrevista com Otto Hahn,
não seria o fato de se deixar guiar por uma epistemologia das ciências naturais, mas por uma em que se trata da TCS e, ao mesmo tempo, do campo científico ~Bo~~DIEU, 197?, y-
representaçãofalsa de tal epistemologia (MS, 26). 13), o que faz com que esse texto possa ser considerado como um mdicio da transiçao
Mas o que é, afinal de contas, essa "dificuldade particular" da sociologia para ser uma de uma categoria para a outra.
ciência como as outras? Nesse livro, Le métier de sociologue,ela está na base da necessidade Já na conclusão dos "Preliminares epistemológicos", a TCS começava a dar lugar a uma
de uma teoria do conhecimento sociológico(TCS). Com efeito, Bourdieu, Chamboredon sociologia da sociologia: "A questão de saber se a sociologia é, ou não, uma ciência - ~ u~a
e Passeron não se limitam a retomar as principais categorias de Bachelard (o autor mais ciência como as outras deve ser substituída, portanto, pela questão do tipo de orgamzaçao
citado), complementadas por diversas fontes (francesas e outras) da filosofia das ciências, e de funcionamento da cidadela erudita mais favorável à aparição e ao desenvolvimento de
mas pretendem realizar também uma síntese das contribuições metateóricas dos três "pais uma pesquisa submetida a controles estritamente científicos" (MS, l~l). , .
fundadores" da sociologia: Marx, Weber e Durkheim. Trata-se de uma tentativa de constru- Em Le métier du sociologue,não é utilizada a noção de campo científico.Se nesse livro
ção dos princípios epistemológicos gerais que estes teriam implementado em suas teorias é possível encontrar o termo "campo" (p. 105), este não aparece no índice temático que se
parciais do social (MS, 55). Assim, os autores podiam afirmar a filiação da TCS à ordem de refere à cidadelaerudita e à comunidade.A ideia de cidadelacientíficavem de Bachelard,
uma metaciência sociológica. enquanto a de comunidade científicaé tomada de empréstimo principalmente de Polanyi
Nessa obra, Le métier de sociologue,tal noção de metaciência era referida explicitamente (Kuhn, Merton e Popper só aparecem em nota de rodapé).
a K. Polanyi (1983).No entanto, é possível também associá-la à distinção althusserianaentre Em 1975,Bourdieu publicou "Le champ scientifique", um artigo decisivo para a conforma-
Teoria(com T maiúsculo) e teorias,ou seja, entre o materialismo dialético e as ciências. So- ção de sua epistemologia, no qual ele define a característica fundament_al desse cam~o: o fato
bretudo porque, na mesma época (outubro de 1967),Althusser, em seu "Cours de philosophie de que nele o principal fator em jogo é intrinsecamente duplo, na medida em que O mteresse
EPISTEMOLOGIA 171
170 EPISTEMOLOGIA
dos agentesé aí tanto intelectualquanto político.Essa duplicidade,longede ser um obstáculo Tudo o que Bourdieu nos diz poderia ser resumido em uma única diferença para com
para o desenvolvimentodo campo, é a própria base do mecanismo que, de maneira natural, as ciênciasnaturais, diferença que consisteem uma resistênciaativa do objeto.Nas ciências
orienta seu funcionamento: "Aluta pela autoridade científica [...] deve o essencial de suas sociais, afirma ele, "impõe-se dar um passo suplementar, do qual as ciênciasnaturais po-
característicasao fato de que os produtores tendem a não ter outros possíveisclientesalém dem se eximir [...] é necessáriohistoricizar o sujeitoda historicização,objetivaro sujeitoda
de seus concorrentes [...] Isso significaque, em um campo científicofortemente autônomo, objetivação,ou seja, o tra~scendental histórico" (SSR,168).A necessidadeda socioanálise
um produtor particular só pode esperar que o reconhecimentode seus produtos [...] venha seria, finalmente,a única especificidadeda ciênciasocial.Se se concordacom a necessidade
dos outros produtores que, sendo também seus concorrentes,são os menos inclinados a lhe de "objetivar o sujeito",surge a questão de saber como proceder a tal objetivação.No que
conferir,sem discussão nem análise, tal reconhecimento"(BouRDIEU, 1975,p. 95).Esse é o diz respeito a Bourdieu, a resposta parece óbvia: a objetivaçãosó pode ser feita a partir das
mecanismo fundamental do campo científico,mecanismo que tinha sido, aliás, formulado ferramentas fornecidaspor sua própria teoria do espaçosocial e dos campos, o que faz com
anteriormente em termos semelhantespor Kuhn ([1968]1977,p. 143). que se volte incessantementeao ponto de partida.
É óbvio que, após Le métier du sociologue,Bourdieuleu Kuhn de maneira mais atenta: Maspor queatribuirtodo o ônusao sujeitoe não ao objeto?Semqueissosignifiquerenunciar
ele vai citá-lo em seis oportunidades, por necessidade de se distinguir de um pensamento a um conhecimentocientíficodo social,semvoltara cair na ilusãohermenêutica,pode-sepensar
que não lhe era assim tão estranho porque, em seu entender,tudo o que Kuhn havia trazido queexistemcaracterísticasdesseobjetoqueexigemabordá-lode maneiradiferentedas "outras"
de novo para o mainstream epistemológicoanglo-saxão já estava presente em Bachelard ciências.Esseé o sentidoadotadopor J.-C.PasseronemLe raisonnementsociologique(2006),
(BouRDIEU, 1975,p. 114).Elecritica o funcionalismode Kuhn, apresentandosua teoria corno a propósitodo estatuto argumentativoda sociologiaenquantociênciade um mundo histórico.
a simples contrapartida do positivismo (BouRDIEU, 1975,p. 106),e também se opõe a esta Mas,mesmoque Bourdieutenha reconhecido,no final,algum mérito a essa abordagem(SSR,
"prescriçãodissimulada:a existênciade um paradigma é um sinal de maturidade científica" 146),elenunca se resignoua aceitarque éjustamenteporqueas ciênciassociaisnão funcionam
(Idem,p. 114),à luz da qual as ciênciassociaisnão seriam científicas. "comoas outras" que é impossívelpara elas chegara um acordosobreum nomos unificado.
Em seu último curso no College de France, Bourdieumostra-se mais favorávelàs ideias
de Kuhn, com quem compartilha sua oposiçãoao logicismodos positivistase de Popper,ou Referências
seja, à ideia de que haveria "regras gerais a priori para a avaliaçãocientíficae'um códigode ALTHUSSER, L. Philosophieet philosophie spontanée des savants. Parisi Maspero, 1974.
leis imutáveispara estabelecera distinção entre ciênciaverdadeira e falsa" (SSR,12). BACHELARD, G. Le nouvelespritscientifique(1934).7. ed. Paris: PUF,2003.
No entanto, ele continuajulgando que o modelo de revoluçãocientíficade Kuhn é exces- BOURDIEUP.Lathéorie Entretien avecOtto Hahn. VH 101,Revue Trimestrielle,v.2, p. 12-21,1970.
sivamenteinternalista, além de reservar demasiadoespaçoaos fatoresirracionais.Bourdieu BOURDIEU,P. La spécificitédu champ scientifiqueet les conditions sociales du progres de la raison.
pensaquenão sepode compreendera mudançade paradigmacomoum processonão científico, Sociologie et Sociétés, v. 7, n. 1, p. 91-118,1975. [Novaed.: Le champ scientifique. ARSS, v. 2/3,
quando ela é realizadanão pelosmais desprovidos,mas pelos mais ricos em capitalcientífico p. 88-103,1976].
entre os recém-chegadosao campo,o que faz com que "o revolucionáriosejanecessariamente BOURDIEU, P.;KRAIS,B.Meanwhile,I HaveCometo KnowAli the DiseasesofSociological
Understanding.
alguém que tem capital [...] - ou seja,um enorme controledos recursos coletivosacumulados ln: BOURDIEU,P.; CHAMBOREDON,J.-C.;PASSERON,J.-C. The Craft of Sociology.New York: .
- e que,por isso,conservanecessariamenteconsigoaquilo que ultrapassa"(SSR,39).Bourdieu Walter de Gruyter, 1991.p. 247-259.
é, certamente, menos relativista que Kuhn e mais favorávelà ideia de progresso científico. DE íPOLA, E. Vers une science du texte social: le (re)commencement de la sociologie marxiste.
Nesse livro Bourdieu volta à questão das ciências sociais e parece estar mais inclinado Sociologieet Sociétés,v. 2, n. 1,p. 123-43,1970.
a atribuir-lhes um estatuto epistemológicodistinto (SSR,167).As ciênciassociais têm "um KUHN,T.S.ToeHistory ofScience(1968).InternationalEncyclopedia
of theSocialSciences,NovaYork:
objeto importante demais", o que as torna mais expostas à heteronomia. Devido à falta de CrowellCollier and Macmillan, p. 74-83,1977.
autonomiada sociologiapara com a sociedade,"uma liberdademuito grande é dada, inclusive PASSERON, J.-C. Le raisonnement sociologique:un espace non poppérien de l'argumentation.
no interior do campo, àqueles que contradizem o próprio nomos do campo" (SSR,171).A Paris: Albin Michel,2006.
conclusãode Bourdieu é a seguinte: ''Asociologiaé socialmentefrágil e, tanto mais, talvez, POLANYI,K. La grande transformation: aux óriginespolitiques et économiquesde notre temps.
quanto mais científicafor" (SSR,173).A verdade sociológica,em ruptura com o senso co- Paris: Gallimard, 1983.
mum, será aquela que mais dificuldadetem de se impor, em razão das oposiçõessuscitadas
por sua própria verdade. Não há nenhuma "força intrínseca à ideia verdadeira",lamenta-se
83. ESBOÇO DEAUTO-ANÁLISE (ESQU!SSE POURUNEAUTO-ANALYSE)
Bourdieu, inspirando-se em Spinoza. O problema, então, em vez de ser epistemológico,é ·······················································································································
polítiço. Observemosque essa afirmação considera resolvido o único problema realmente Afrânio Mendes Catani
importante:o da existênciade um nomos reconhecívelda sociologia.Seesse nomos - ou esse
único paradigma - existisse efetivamente,não haveria nenhum problema epistemológico. BOURDIEU,P. Esboçode auto-análise. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
Faladas dificuldades.queenfrentoucom os colegasna classepreparatóriano Louis-le-Grand Os escritos reunidos nesse volume constituem excelenteintrodução aos temas trabalha-
e que começoua praticar o rúgbi, com os colegasde internato, para evitar que seu êxito escolar dos por Bourdieu e tornaram acessívelsua abordagem teórica da educação e da reprodução
o afastasse da chamada comunidade viril da equipe esportiva, "único lugar [...] de verdadeira cultural, inclusive para estudiosos de outras áreas das ciências humanas que incorporaram
solidariedade,muito mais sólida e direta do que aquelavigente no universo escolar,na luta co- 0 aparato analítico e metodológico que fundam suas reflexõessociológicas.
mum pela vitória, no apoio mútuo em caso de briga, ou na admiração irrestrita pelas façanhas" Ordenados em temáticas-dedicadas a variadas dimensões do aparelho escolar em sua
(EAAp,123).A sala de aula "divide ao hierarquizar"; o internato "isola ao atomizar". relação com o contexto social e com a reprodução cultural, os artigos foram selecionados
Há páginassaborosassobreseu ingressono College de France e seu entendimentosegundoo procurando difundir aspectos seminais do sistema teórico elaborado por Bourdieu em dife-
qual "a ficçãoe a sociologiasão intercambiáveis,pelofatode possuíremo mundo socialcomorefe- rentes momentos de sua trajetória intelectual.Alguns textos apresentam e discutem conceitos
rente"(MICELI, 2005,p. 18).Retomandoo quese escreveuantes,atravésda evocaçãodas condições fundamentais para a compreensão da educação, enquanto outros se dedicam a análises de
históricasem que seu trabalho foielaborado,conseguiu"assumir o ponto de vista do autor",como pesquisas acerca de facetas dessa temática. . ·
dizia Flaubert.Isso implicaem "colocar-seem pensamento"exatamente"no lugar que, escritor, No conjunto, os artigos revelam a inovação que o pensamento de Bourdieu trouxe para a
pintor,operárioou empregadode escritório,cada um delesocupano mundo social"(EAAp,134). sociologiada educação, abrindo novas perspectivas para se proceder à reflexãodo processo
Miceli aponta o silêncio de Bourdieu "acerca de seu casamento, dos filhos, das mulheres de escolarização, articulando-o com as desigualdades de acesso aos estabelecimentos de
importantes em sua vida", falando que o pudor de classe lhe impediu isso: "elenão dispunha ensino por educandos de distintas frações das classes sociais, com a reprodução cultural,
da prontidão de habitus requerida para tamanha autocomplacência, que lhe teria habili- com o sistema de avaliação escolar e com análises de outros aspectos que incidem sobre o
tado a aprontar uma versão enevoada de sua experiência afetiva, similar àquela veiculada, sistema educacional.
por exemplo, nas narrativas memorialísticas de Sartre ou Leiris, tão ao agrado de letrados A pertinência e o alcance desses escritos podem ser documentados pela utilização que
estetas" (MICELI,2005, p. 18).A favor do trabalho sociológicodo autor, termino com a frase inúmeros pesquisadores têm feito deles e também pelo fato de esta coletânea ter experimen-
de Ricardo Piglia, que ilustra com felicidade o processo de autoanálise desenvolvido por tado várias reedições, o que constitui indicador significativoda repercussão desses textos na
Bourdieu: "A crítica é a forma moderna de autobiografia. A pessoa escreve sua vida quando área da educação_
crê escrever suas leituras [...] O crítico é aquele que encontra sua vida no interior dos textos
que lê" (2004, p. 117).
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Referências CláudioMarquesMartins Nogueira
MICELI,S.A emoçãoracionada_ln: BOURDIEU,P.Esboço de auto-análise. São Paulo: Companhia
das Letras, 2005_p. 7-20. A noção de espaço social é utilizada por Bourdieu (CDp;RPp; LDp) para se referir ao
PIGLIA,R_Formas breves.São Paulo:Companhia das Letras, 2004. sistema formado pelo conjunto das posições sociais ocupadas pelos agentes em uma dada
formação social. Influenciado pela perspectiva estruturalista, dominante nos anos 1960 e
70, o autor enfatiza que as propriedades sociologicamenterelevantes dos indivíduos ou das
s11. ESCOLA
........................................................................................................................ instituições sociais dependem, em grande medida, da posição relativa que eles ocupam na
estrutura social. Assim, o grau de prestígio, de riqueza ou de poder de um agente individual
Ver: Sistema de ensino
ou de uma instituição coletiva (uma universidade, um sindicato, uma igreja, uma família,
etc.) só poderiam ser considerados em termos das distâncias que esses mantêm em relação
~~~~-'-~?.~ _~-~-
-~~--- -~-~~-~~ÇÃO
................................................................................ aos demais agentes individuais ou coletivos.Ter uma escolarizaçãobásica numa sociedade
em que a maioria não teve acesso à escola pode ser suficiente,por exemplo,para se ocupar
GeraldoRomanelli
uma posição de prestígio ou mesmo para se garantir algum poder e renda_Indivíduos com
BOURDIEU,p_Escritos de Educação_Organizado por M_A-Nogueira e A_Catani. Petrópolis, RJ: esse mesmo nível de instrução numa sociedade altamente escolarizada tendem a ocupar, ao
Vozes,1998_ contrário, uma posição social subalterna_
É importante observar que na perspectiva de Bourdieu as posições no espaço social não
Escritos de Educação, coletânea cuja primeira edição é de 1998,trouxe ao público brasi- se definem apenas pela dimensão econômica.Contrapondo-seà tradição marxista, que tende
leiro doze ~extosde Bourdieu redigidos entre 1966e 1998,acompanhados de apresentaçãodos a considerar a localização dos agentes nas relações de produção como o critério definidor
organizadores esclarecendo o conteúdo de cada artigo e de dois anexos relevantes contendo da posição ou classe social dos mesmos, Bourdieu enfatiza que o espaço social se define a
informações acerca do sistema escolar francês. partir do modo como se distribuem numa dada sociedade diferentes formas de poder, ou
L
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passam decorrentesda homogeneidadede suas estruturas mentais, ou seja, do compartilha- corp ominantes,é visto comoelementoessencialà coesãodos gruposdominantes,c~nstlt~m~o
mento dos esquemasde percepção,de apreciação,de pensamento e de ação de sujeitos que solidariedadecapaz de amalgamar e fortaleceras elites,não obstante sua~div~rgencias
funda a conivênciade inconscientesbem orquestrados.Conformeo autor,o "espíritode corpo" . 1· posiçãodos princípios prevalecentesde dommaçao.
lIIl.
adequação das estruturas sociais atuais às do passado. É por isso que as situações de crise
nas ciênciassociais,os quais procedem quase sempre de maneira dedutiva.Outra originalidade provocam perdas de referência e dificuldades de ajuste desigualmente superadas. Operador
dess~obra:em a ver c~1=1 a trajetó~iasingular desse"aprendizde filósofo"que se tomou etnólogo: da improvisação regulada em situações sempre novas, o habitus permite compreender como
a articul~çaode descnçoesetnograficassutis com as inúmeras referênciasfilosóficasmobilizadas as práticas podem ser reguladas e regulares, sem ser o produto da obediência a uma regra,
pa~aapma~a refl~xãoteórica(Spinoza,Leibniz,Hegel,Husserl,Heidegger,Sartre,Merleau-Ponty, nem da ação orquestrada de Um regente. Contra a ilusão ocasionalista que tende a explicar
Wittgenste~, Qu~~---),ao ladode referênciasdas ciênciassociais(Durkheim,Mauss,Lévy-Bruhl, as práticas pela situação, Bourdieu sublinha, no entanto, que "a verdade da interação nunca
Weber,Schutz,LeVI-Strauss, Malinowski,Lowie,etc.). reside inteiramente na interação" (ETP,275),mas que esta reflete as relações objetivas entre
~nalisadas a ~artir da teoria dos jogos, a qual pressupõe a capacidade de antecipar as os agentes. O habitus sustenta as afinidades eletivas (simpatia, amizade, amor), como é con-
reaç~~sdos pa~ce1ro~,as condutas guiadas pelo sentido da honra são apreendidas como es- firmado pela homogamia de classe constatada com muita frequência, através da harmonia
tr~tegia~ q~e visam a reprodução do capital simbólico individual e coletivo nas sociedades dos ethos e dos gostos. O corpo é o principal operador prático dessas interações: um corpo
pre-:apltahstas. A noção de estratégia adquire, nesse trabalho, sentido no que diz respeito à socializado,habituado, adestrado (polidez,precedência, autocontrole),um corpo "geômetra''
relativa imprevisibilidade das trocas. Ao mesmo tempo em que se serve dos ensinamentos da (capaz de se situar em um espaço significante) e "estruturado temporalmente" (segundo a
abord~gemre~acion~ldo e~truturalísmo - aliás, implementado por ele no estudo seguinte-, lógicado prazo e do desvio, implicando a antecipação e o cálculo), que é o lugar de emoções
Bo~rdi~use distancia,_a~m, dessa corrente ao restituir aos agentes uma margem de improvi- e de manifestações somáticas, ocultadas pela abordagem intelectualista.
saçao diante da~ ~on~ic:o_nantes sociais, ao invés de transformá-los em simples suportes das Os modelos geométricos ou genealógicos,construídos pelo erudito, ocultam também a
es,tr~turas. Redigido m1C1almente para a coletânea de estudos, Mélanges, em homenagem a dimensão temporal das trocas que os inscreve na longa duração, tornando-os irreversíveis.
Lev1-Strauss,o estudo sobre a casa cabila complementa o precedente ao mostrar a inscrição Ora, é graças ao intervalo de tempo, gerador de incerteza, que a troca pode ser irreconhecida
da divisão sexuada [gendered] do mundo nas estruturas do habitat, o qual situa o feminino enquanto tal, como é ilustrado pelo exemplo paradigmático do dom e do contradom. Até
no lado de dentro, da obscuridade, da umidade, da natureza, enquanto o masculino fica do mesmo nas práticas mais ritualizadas, como a resposta à ofensa ou à vingança, a temporali-
lado de fora, da clareza, do seco e da cultura. O estudo sobre o parentesco é uma crítica ainda dade torna possível a implementação de estratégias, noção que Bourdieu coloca no lugar do
mais explícita, da a~tropologia estrutural. Baseando-se na regra do casamento com a,prima conceito de regra, a fim de romper com a concepção da ação como u~a simples execução.
paralela_para ques~10nar_ se~~pressupostos - ou seja, a noção de unifiliação e o princípio da O livro termina com uma crítica ao economicismo que oculta a dimensão simbólica das
exoga~i~ -, Bour~i_eu vai cnticar a antropologiaestrutural por negligenciaras funções sociais trocas nas economias chamadas pré-capitalistas, dime_nsãoque, no entanto, não deixa de ser
(econ~m~case ~ohticas)das relaçõesde parentesco e de seus usos. Desseestudo surgiu a crítica central em universos não diferenciados que se caracterizam pela convertibilidade do capital
da propna noçao de regra, que se encontra no âmago de sua teoria da prática. econômico e do capital simbólico (por exemplo, o prestígio e a reputação vinculados a uma
O_quese entendequandose diz"aregrasegmidoa qualeleprocede"?- questiona-seBourdieuem família, ou as condutas de honra). Portanto, o patrimônio da família ou da linhagem não se
Esquisse,retomandouma perguntaformuladapor Wittgenstein.A regra,no sentidojurídico,que reduz à terra, nem aos instrumentos de produção, mas inclui a parentela e a clientela, a rede
~sagent_es seguemde maneira consciente(norma)?Ou,ainda, aquelaqueelesseguemde maneira de alianças ou de relacionamentos que devem ser mantidos e que constituem um capital
mconsciente(esquema)e que a análise estrutural (modeloteórico)reconstitui?Ao observarO uso social. Eis a razão pela qual, de acordo com Bourdieu, "a teoria das práticas propriamente
polissê~icod~termopelaantropologiaestrutural,Bourdieucriticaseu "juridicismo",formulando econômicas é apenas um caso particular de uma teoria geral da economia das práticas".
a questaoda dif~r~nçaentre o modelode análise e a realidade:com a noção de "regra",desliza-se Assim, a teoria da prática redunda em uma economia dos bens simbólicos que Bourdieu
de fatosub-repticiamentedo modeloda realidadepara a realidadedo modelo.
desenvolveuparalelamente nessa época.
Or~, a imitação não se refere a modelos, mas às ações dos outros: tal é o postulado de Alguns anos mais tarde, Bourdieu vai retomar e sistematizar essa reflexão em seu livro,
B~urdieuq,~eo leva a el,aboraruma teoria da prática, superando a alternativa entre "situações" Le sens pratique (1980).Ele voltou a lançar Esquisse (2000)com algumas modificações,em
e modelos , a qual,na epoca, opunha Sartre e os interacionistas simbólicosaos estruturalistas. particular o acréscimo - antes da crítica ao objetivismoestruturalista, que omite de levar em
O mod~ d_e~onhecimento praxiológico que Bourdieu preconiza contra a abstração operada consideração a experiência dos atores - de uma crítica contra o subjetivismo (ETP,235-236),
pelo ~b3et1V1sm~ estruturalísta convida a passar do opus operatum para o modus operandi, que se tornou, nesse intervalo de tempo, o paradigma dominante no lugar do objetivismo
ou se3a,para a logica da ação.
que prevalecia na década de 1970.
. A_teoria do habitus, que nesse livro conhece sua primeira elaboração completa, tem o
:bJetivo ~e apreende~a m~i~r ou men~r capacidade dos agentes de se ajustarem às situações
Referência
m fun~ao d~ su~s ~isposiçoes, ou se3a,das estruturas cognitivas e comportamentais que BOURDIEU,P. La maison kabyle ou le monde renversé. ln: POUILLON,J.;MARANDA,P. (Orgs.).
el~sh~vi,ammte.:10r~zadono decorrer-de sua socialização primária e secundária (tendo as Échanges et communications. Mélanges ojferts à Cl. Lévi-Strauss pour son 60êmeanniversaire.
pni:ueiras expenencia~ um peso determinante) e que orientam suas estratégias de maneira
Paris-LaHaye:Mouton, 1970.p. 739-758.
mais ou menos consciente. As possibilidades de ajuste dependem, em grande parte, da
ESQUISSED'UNE THÉORIE DE LA PRATIQUE,
183
182 Esqu1~s~ D'UNE THÉORIE DE LA PRATIQUE, PRÉCÉDÉ DE TROIS ÉTUDES D'ETHNOLOGIE KABYLE
PRECEDE DE TRO/S ÉTUDES D'ETHNOLOGIE KABYLE
·;
i
Apesar de ter sido utilizada por Bourdieu apenas em La distinction (1979),a noçã,o_de
s1. ESTILO
DEESCRITA
DE BOURDIEU "estilode vida"não deixade desempenharnesselivroum papelimportante.No quadro teonco
quelhe é próprio,a noção de lifestyle- popularizadaa partir dos anos_1930 pelasramificações
Antônio Augusto Gomes Batista
da psicologiae da sociologia,associadasao marketing - parece ter sido reformuladapor ele
Tantoem seuslivrosquantona revistaActesde la Rechercheen SciencesSociales(ARSS), para designar O conjunto de práticas e de consumos que_tendema ser adotadospelo mesmo
Bourdieue sua equiperealizamexperimentosno modode comunicaçãoda pesquisasociológica. indivíduoou grupo.Convémobservar,no entanto,que noçõessemelhantesjá se encontramem
Embora recorram a procedimentosdo campo literário, respondem a problemassociológicos autoresclássicos,citadoscom frequênciapor Bourdieu.Em particular,MaxWeber,em trechos
comuns à prática de pesquisa de um grupo num determinado estado do acadêmicofrancês. deA éticaprotestante e o "espírito"do capitalismo(1905),trata da emergência,medianteos
Na medida em que, porém, a figura de Bourdieuse desprendedessegrupo, essas disposições imperativosde conduta-ascética,de um estilo de vida "moderno"ou "burguês",marcadop~la
estilísticasganham outros matizes e é mais correto falar, a partir de então, de um estilo de recusado luxoostensivoe por um retraimentoao espaçodoméstico.Da mesmaforma,Maunce
escritade Bourdieu. Halbwachs- sociólogofrancês durkheimiano do período do entre guerras - havia forjadoas
Exemplosdas experimentaçõesde caráter bourdieusianasão as "montagensdiscursivas" noçõesde "nívelde vida" (1913)e, em seguida,de "gênerode vida" (1930)~ue:à se~elhança do
(R,66).Muitofrequentesnos artigosdaARSS e especialmenteem livroscomoA distinção,são conceitode "estilode vida" em Bourdieu,chamam a atençãopara a coerenciae a mterdepen-
construídascomo"assemblages". Aoladodo textoanalítico,trechosde entrevistas,fotografias,e dênciafundamentaisdos elementos,aparentementebastanteheterogêneosque os constituem.
recortesde revistasbuscamforneceruma descriçãodo fenômenoanalisado,mas a partir de uma O "estilodevidà' em Bourdieué, comefeito,inseparávelda tesesegundoa qual os domínios
"intuiçãoimediatà' que é excluídada explicaçãoanalítica(R,66).Aoleitoré tambémpermitido da existência que, na aparência, obedecema lógicasmuito diferentes (consumode ali~en-
reconhecero mundo socialtal comolhe é familiar,mas essafamiliaridadeé, comonecessário, tos, práticas esportivas e culturais, concepçõeséticas e políticas do mundo...), s~ orgamzam
desfeitapelo conjunto.Tambémé exemplodessasexperimentaçõesliteráriaso uso do discurso de acordo com princípios homólogos. O estudo estatístico do consumo de alimentos ~os
indiretolivre(SPELLER,2012),especialmentequandoregistraclassificações do mundosocial,bus- diferentesgrupos sociais,de suas práticas esportivasou de seus lazeres,faz aparecer,a~sim,
candoapreenderosdistintospontosdevistadosagentessobreosdemais.Comoessetipode registro uma série de ecos.Em relação aos alimentos constata-se,por exemplo,na França da decada
do discursode outremnão empregaaspas,consegue-setransmitir uma fortecargaemocional. de 1970,uma oposição entre alimentos baratos e bastante nutritivos (carne de p~rco, pão,
A sintaxede Bourdieué o traço mais identificadocomseu estilo.Suassentençasnão apenas batatas...), consumidos particularmente nas categoriaspopulares, e alimentos mais caros e
sãolongas,mas possuemum grandenúmero de oraçõese apostosintercaladosque exigemuma mais leves (peixe,frutas...), preferidospelas classes superiores.Essa oposiçãobaseia-se_em
sobrecargada memóriaem seuprocessamentoe na hierarquizaçãodas informaçõesprincipais princípiosque se encontram, em parte, na área esportiva,domínio em que esportescoletivos
e secundárias.SegundoBourdieu,essas características,assim como a presençaconstante da que pressupõem um importante dispêndio físico e podem ser praticados pra_ticamenteem
negaçãoe do paradoxo,devem-sefundamentalmentea duas necessidadesdo trabalho socioló- qualquer lugar (tal como O futebol) se opõem a esportes individuais subm~ti~osa ,compe-
gico.Por um lado, o sociólogodeve se bater contra as representaçõesdo leitor sobre o mundo tições ritualizadas (esgrima, tênis...), cuja prática pressupõe recursos economico~,as ve~es
social,mas para issodeveusar o mesmomaterialquealicerçaessasrepresentações:a linguagem. bastante consideráveis,e que são praticados em lugares reservados do ponto de vista social.
\~ Assim,devecriar uma ruptura com a linguagemcotidiana.Em segundolugar,para Bourdieu, Uma oposição parcialmente similar opõe as atividades de lazer populares que: a exemplo
"-,~ que é complexo,hierarquizadoe articulado,precisaser dito de maneira complexa,hierarqui- das festas juninas, são acompanhadas da participaçãodo público,aos lazeresmais _refinados
,<la~'fortemente" articulada (CDp).Separa alguns (JENKINS, 1992)essestraços estilísticos e mais ritualizados que, na França, são apreciados,sobretudo pelas classessuperiores (por
~111 de .umabusca de distinção no campo intelectual francês, para outros (SPELLER, exemplo,o teatro ou a ópera).
ESTILOS DE VIDA 187
,TILO DE ESCRITA DE BOURDIEU
De maneirageral,Bourdieudefendea ideiade que os grupossociaisse opõem,nos diferentes que,muitasvezes,se faz dessanoçãono âmbitode uma simplespsicologiado consu.n:iidor. ~ém
domínios da existência,de acordo com lógicasque se referema princípiosque distribuem os disso,La distinctionpropõeuma descriçãoempíricadetalhadade um espaçodosestilosdevida:
agentese grupos no espaçosocialsegundo o volume,a estrutura e a antiguidadedos capitais sealgumasobservaçõessão,sem dúvida,específicasà situaçãoinvestigada,outras (p~rexem~lo,
que elesdetêm.Issopossibilitaa construçãode um "espaçodos estilosde vida" que, de alguma aquelasresultantesda distância da necessidadeeconômicaou a oposiçãoentre estil~sde vida
forma, resulta da sobreposiçãodos espaçosque cada domínio analisadoconstitui (alimentos, ascéticose hedonistas)são, coÍncerteza,transponíveispara outros contextos.Uma dificuldade
esportes,etc.).Umavez que ele concebeas práticas comoum produto do habitus e das condi- que pode surgir na aplicaçãodo conceitoé que ela exige_umi~por_tante~ateria! e~pí~ico,
ções econômicase sociaisda existência,Bourdieuconsideraque as práticas de determinado obtidopor métodosbastantevariados(osúnicosque permitema noçao funci~narem mvei~de
agentesocial,nos diferentesdomíniosda vida, tendem a ser o produto dos mesmosprincípios agregaçãomuito diferentes).Alémdisso,ela é solidáriaa uma tesebem consolidada'.q~~ sep, a
e a apresentarum "ar de familiâ' que faz a unidade do "estilode vida".Pelamesma razão, ele coerênciadas práticasinduzidaspelohabitus.A tesecontráriasegundoa qual os pnncip10sque
observaqueos agentesda mesmaclasse,pelofatode terem de enfrentarcondiçõesde existência orientamas práticas do mesmo indivíduo,nas diferentesesferasde sua e~stê~;ia,_pode~ s~~
muito semelhantes,tendem a ter as mesmaspráticas e o mesmotipo de "estilode vida". de tipos diferentes(LAHIRE,2004) obrigaria,sem dúvida,a reajustara noçaode estilode VIda.
A demonstraçãoempíricados "estilosde vida"combinao estudoestatísticoda distribuição
diferencialdas práticas em funçãodos grupos sociais,com observaçõesetnográficas.Segundo Referências
um exemplodado por Bourdieu,tais observaçõesmostram o quanto os diferentes aspectos HALBWACHS, M. La classe ouvríere et les níveaux de víe. Paris: Alcan, 1913.
da vida de um marceneiro (suamaneira de exercera profissão,seu cuidado com o corpo, seu HALBWACHS, M. Les causes du suicide. Paris: Alcan, 1930.
modo de falar...) são marcados pela mesma mistura de meticulosidade e de paciência.La LAHIRE,B. La culture des índívídus: díssonances culturelles et dístinctíon de soí. Paris: La
distinction apoia-seassim,simulta~eamente,em fontesestatísticas,entrevistase observações Découverte,
2004.
para identificar os estilos de vida peculiares a cada classe, para desvendar seus princípios WEBER,M. Die protestantische Ethik und der "Geist" des Kapitalismus.Archiv Für Sozialwíssen-
unificadores,assim como as variantes de acordo com as frações de classes.As práticas mais schaft Und Sozialpolítik, 1905.
específicasdas classespopulares,na Françada décadade 1970(futebol,truco, acordeão,vinho
tinto), compõem assim um estilo de vida marcado pelos efeitos da necessidadeeconômica
93 ESTRATÉGIA/ESTRATÉGIAS DEREPRODUÇÃO
e pela recusa do luxo. Ele se opõe ao estilo de vida prevalecentenas categoriassuperiores, .
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·····························································
Ernesto Seídl
materializando-senomeadamentena prática do bridge ou do tênis:a distânciada necessidade
econômicaengendra uma tendência a denegar as necessidadesprimárias e a adicionar uma
dimensãosimbólicaa qualquerprática. As classesmédias parecemreplicaresseestilode vida, A noção de estratégia ocupa lugar central no esquemaanalítico de Pierre_Bourdieue está
mas com menor grau de legitimidade:nelas predominam o gosto pela opereta (ao invés da conectadaao núcleo de sua teoria, primeiramente apresentadode forma articulada no texto
ópera),o consumo de cerveja(emvez de uísque),assim como tocar violão (em vez de piano). Esquissed'une théoriede la pratique (1972).Naquelemesmoano o autor t~m~,émpublica~a
Esses estilos de vida se especificamsegundo as frações de classes,de acordo com os re- o artigo "Les stratégies matrimoniales dans le systeme de reproduction (1972), cu~o
cursos específicosque cada uma delaspossui. No seio das classessuperiores,por exemplo,os título sugeria a importância daquela noção e sua associaçãoestreita com a de reproduçao
artistas ou os professoresdo ensino superior tendem a desenvolverum estilo de vida que, nos social.Aolançar mão da noção de estratégia,Bourdieuprocura enfrentar o problemado uso
diferentes setores, privilegia práticas relativamente pouco onerosas economicamente,mas da noção de regra, cara aos etnólogos,como crença na obediência exclus~vado~ agentes a
com um bom desempenho cultural. A prática do xadrez, de andar a pé ou das caminhadas regras, codificadasem leis ou não, e romper com uma visão racional da açao so~,ial. , . ,,
na montanha, assim como o gosto pelas culinárias "exóticas",materializam esse estilo de Aocontráriodo sentidoracionale utilitarista comumentesugeridopelotermo estrategia ,
vida bastante ascéticoque se opõe ao estilo de vida mais hedonista das fraçõeseconômicasda associadoà ideia de cálculointencional,ação conscientee planejadavoltada à maximização
burguesia,simbolizadopela equitação,pela caçaou pelo consumode champanhe.No interior de interesses,no esquemade Bourdieuessaperspectivaé praticamenteinverti~a.Isso ~or~~e
das frações de classes é possívelestabelecernumerosas distinções: diferenças de estilos de sua teoria da prática está calçada na ideia de ação social como fruto do habitu~, pnn~i~IO
vida separam, por exemplo,nos recintos esportivos ou políticos, a aristocracia e as antigas que organiza a relaçãodos agentescom o mundo social,fornecendo-lhesum s~ntidopratico.
frações da burguesia econômica,cuja orientação nacionalista é duplicadapor um gosto em Assim,embora as estratégiasreflitamobjetivamenteinteressessocialmenteonentad~s ma-
prol dos esportes de luta ou belicosos(aviação,boxe...), e as novas frações dos executivosde nutençãodo patrimônio econômico,reproduçãodo grupo familiar-, não são necessanamente
grandes empresas,mais internacionalizadase praticantes de esqui ou dos esportes de vela. objeto de reflexãocomo cálculo ou intenção estratégica pelos agentes que as levam a cabo,
Em resumo,La distinction faz um uso particularmenteelaboradoda noção de "estilode situando-se,na maioria das vezes,no nívelpré-reflexivoou infraconsciente.
vidâ'. A maneiracomoelase articulacomos conceitosde habitus e de espaçosocial,bem como Bourdieuempregacom frequênciaa metáforadojogo para esclarecersua visão das lógicas
a variedadedos domíniosabrangidospela obra opõem-se,assim,à utilizaçãomais rudimentar da ação sociale, em especial,das estratégias,comoproduto do domínioprático das formas de
200 FILOSOFIA
FOUCAULT, MICHEL (1926-1984) 201
Mesmoseparadospela origemsocial,mas compartilhandoexperiênciascomuns de certas Ainda no Esboço de auto-análise, Bourdieu se detém rapidamente na maneira como
geraçõesde intelectuais franceses, chegaram inclusivea ter grande proximidade pessoal e se situava em relação a MichelFoucault,mas novamenteexpressaaí uma relação ambígua,
política (EAAp). Enfim,Foucaulte Bourdieupoderiam ter encontradomuitos pontos de con- ao enfatizar tanto as proximidades quanto as diferenças que aproximariam os dois estilos
vergênciaem suas reflexões.No entanto,nem o diálogoexplícito,nem a cooperaçãointelectual intelectuais(EAAp,104-106).Afirma,no entanto,quebuscava,sobretudo,evitaras "aparentes
sistemáticaentre os dois realmenteefetivou-se.Essanão convergênciatalvezse expliquemais, semelhanças"e enfatiza, em êontrapartida, as "diferençasprofundas nas disposiçõese nas
no que diz respeitoà Foucault,pelo seu distanciamento em relaçãoà reflexãosociológicaem posiçõesrespectivas"(EAAp,106),ao indicarque,apesarde suas experiênciasd: engaja.~ento,
geral, ao passo que, em Bourdieu,de forma simétrica, se expliquepor sua postura crítica em Foucaultsempreteria permanecidorefémdas expectativasrelacionadasao eruditotradic10nal,
relaçãoà tradição filosóficaentão praticada na França no pós-guerra. ao passo que Bourdieuse autoatribui, comotraço intelectualfundamental, a ruptura com as
É conhecidaa reticênciade Foucaultem relaçãoà sociologia.Embora sua grande quanti- expectativase as exigênciasdo mundo intelectualparisiense. .
dade de livros, cursos e entrevistas tenham descortinado inúmeros novos temas e questões Seem Esboço de auto-análise Bourdieuestá muito preocupadoem demarcar a diferença
que tiveram significativaressonâncianas assim chamadas ciênciassociais - ao abrir novas de seu habitus intelectual em relação à postura consideradaainda por demais filosóficade
perspectivaspara os estudos de gêneroe sexualidade,acercadas relaçõesentre corpo, saúdee Foucault,em outrospequenostextos,em queprestahomenagema Foucault,apósa morte deste,
doença,sobre crime,desvioe punição,entre muitos outros temas -, o próprio Foucaultnunca outras possibilidadesde entrecruzamento dos dois percursos intelectuais aparecem ~~sc~r-
buscouum enfrentamentosistemáticodas investigaçõessociológicas.Em diversosmomentos, tinadas, pois Bourdieuexplicitamuito mais o que haveriade comum entre suas ex~enen~ia~
Foucaultmanifestou mesmo alguns déficitsem reláçãoà compreensãode autores da própria de pensamento. Em texto redigido poucosmeses após a morte de Foucault,Bourd:euatnbm
tradição sociológica,como no caso de Weber,lido de forma um tanto quanto inapropriada, ao filósofofrancês uma série de disposiçõesintelectuais que na verdade compartilhavam:o
ainda nos anos 1970,COIJlO admite um comentadorpróximo, como Paul Veyne(2008,p. 56), anticonformismoem relação a todas as categorizaçõese classificaçõesintelectuais, a busca
e só posteriormente visto como uma espéciede autor em paralelo com seu próprio projeto, por situar em termos materialistas as formas de conhecimento,a distância em rela?~º ~o
assim como os autores da assim chamada Escola de Frankfurt (FoucAULT, 2001). oportunismo político de certos intelectuais,o empenho em revelar o impensado da ciencia,
A recepção dos livros de Foucault pela sociologia francesa foi, igualmente, bastante o rompimento com o estilo tradicional de segmentar ciência e política, próprio do homo
ambígua. Se uma sociologiamais operatória irá empregá-loscada vez com mais frequência, academicus, etc. (BouRDIEU, 2013). \
por exemplo,para uma crítica da autoridade e das instituições e também em lutas setoriais, Em outro texto, apresentadonum congressona França,anos depoisda morte de F~ucaul:,
voltadasao problemadas prisões,dos serviçosde saúde, das normas sexuais,etc.,haveráuma Bourdieuse preocupa em desmontar as armadilhas que se interporiam a uma recepça~~ais
recepçãolimitada e por vezeshostil dos estudos de Foucault por parte da sociologiauniver- pertinente da obra de Foucault. Contra a fetichizaçãodo pensamento do a~~or,~ soci~l~go
sitária exemplificadapor algumas figuras emblemáticas,como Alain Touraine,Raymond francêsdefendeque seria necessáriosubmeteras_citaçõesrotineiras a uma criticasistem_atica,
Boudone MichelCrozier(BERT, 2006). questionar, como fez Foucault em diversas ocasiões,o estatuto mesmo da -~gura s?cial d~
Bourdieunão deixoude expressartal relaçãoambíguada sociologiafrancesacoma postura autor;afinal,o que seria "fazerfalar um autor"?(BouRDIEU, 1996).Para o soc10logo,so respei-
intelectual de Foucault,embora aspectos dessa postura possam ser explicadosigualmente a taríamos de fato um pensamento ao desfetichizarmosa relaçãocom os próprios pensadores,
partir de aspectosespecíficosdo próprio percurso intelectualdo sociólogofrancês,sobretudo ao evitarmos o comentárioritualístico e restituirmos o campo de produçãoe de recepçãodas
seu deslocamentoda formaçãofilosóficapara a pesquisa sociológica,sua busca por libertar ideias em jogo. De modo ainda mais interessante,Bourdieu_lançaa hipótese de que um dos
as ciênciassociais do imperialismo da filosofia(EAAp). desafios,em termos de recepção das ideias no ambienteuniversitário,consistiria e~ que ~s
Ao contrário de Foucault, que não se deteve nos trabalhos de Bourdieu, em diversas contemporâneosse leem pouco, que a recepçãode novas ideias pelos colegas,~elosJ~rnais,
passagens de seus escritos, o sociólogofrancês ensaia críticas aos trabalhos de seu colega pelosestudantes, ocorreria,sobretudopor meio de rumores intelectuais,Pº,~meiod:, c,~~u!a-
filósofo.Tais críticas, no entanto, são, com frequência,circunscritas a um momento da tra- ção de slogans, palavras-chaveou mesmo apenas pelostítulos dos livros - loucura , vigiar
jetória do pensamento de Foucault, como no exemplode Meditações pascalianas (2001), e punir", "panoptismo","saber-poder",etc. -, o que levaria ao empobrecime~todo debate
em que o Foucaultde As palavras e as coisas (FoucAULT, 1981)é visto por Bourdieucomo intelectual.Outro desafio,para a compreensãcfdeum autor entre seus pares, amda segundo
um representanteda postura estruturalista, que teria "o imenso mérito de se empenhar em Bourdieu,seria o de que uma obra está acessívelem sua totalidade apenaspostumamente;os
captar a coerênciados sistemassimbólicos,consideradoscomotais",mas "estaria condenada contemporâneos,em contrapartida, só teriam acessoa uma parte ínfima ~ostraba~os de um
a ignorar a dimensãoativa da produçãosimbólica"(MP,214).Ou no Esboço de auto-análise, autor, ao geralmenteignorar o conjunto das entrevistas, dos textos publicadosna _imprensa,
em que afirma que para "o Foucault da teoria pós-68 do poder, a fronteira com as ciências da correspondência privada, etc. Bourdieu abre, assim, a interessante perspectiva de _que
sociais, em especial,a sociologia,permanece socialmenteintransponível" (EAAp,49), sem, tanto o seu percurso intelectual quanto o de Foucaultpoderiam ser melhor compr~e~didos
no entanto, uma preocupaçãomaior,por parte do sociólogofrancês, em acompanhara lógica a partir de um trabalho meticulosofeitopela posteridade,por meio do qual as proxim~d.ades
dos deslocamentosde Foucault,da arqueologiapara a genealogiae a ética (DAVIDSON, 1988). e distâncias entre os diferentesestilosintelectuaispudessemser elucidadas.Tal exerc1ciode
Referências
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Yves Winkin
FOUCAULT, M.Aspalavrase ascoisas:uma arqueologia
dasciênciashumanas(1966).2. ed. SãoPaulo:
Martins Fontes, 1981.
Graças a Bourdieu é que as principais obras de Erving Goffmanforam traduzidas para
FOUCAULT, M. Qu'est-ceque IesLurnieres.ln:__ . Dits et écritsII, 1976-1988.Paris: Gallimard
o francês, entre 1968 e 1991,na coleçãoLe Sens Commun da LesÉditions de Minuit. Foram
2001.p. 1498-1507. '
publicadosexatamenteseislivros:Asiles,em 1968;La présentation de sai e Les relationsen
PINTO,L. PierreBourdieu e a teoria do mundo social. Rio de Janeiro: Ed. da FGV,2000.
public (tomos 1 e 2 de La mise en scene de.la vie quotidienne),em 1973;Les rites d'inte-
VEYNE,P. Foucault:sa pensée, sa personne. Paris: Albin Michel,2008.
raction,em 1974;Stigmate,em 1975;Façonsdeparler,em 1987;Les cadresde l'expérience,
em 1991.Além disso,Pierre Bourdieupublicouvários textos de Goffmanem ARSS:extratos
de GenderAdvertisements (n. 14, 1977);um capítulode sua tese de doutorado(n, 100, 1993);
e um comentário-sínteseque elaboreide "ToeArrangementBetweenthe Sexes"(n. 83, 1990).
Bourdieuiria, igualmente,acompanhar de perto a redação da primeira biografiaintelectual
de Goffman(WINKIN,1988).
Qual seria o motivo de tamanho interesse pela microssociologia, aparentemente tão
afastada de sua concepção do mundo social? Foi, no entanto, o próprio Bourdieu quem
escreveuem Esquisse d'une théorie de la pratique: ''A verdade da interação nunca reside
inteiramente na interação" (ETP,184).De fato, ele não visavaa Goffman,mas de preferência
aos interacionistassimbólicosradicais e aos etnometodólogos,cujostrabalhos estavam che-
gando a seu conhecimento.Contrariamente a um grande número de sociólogosfranceses,
Bourdieucompreenderámuito rapidamente que Goffmantinha uma visão durkheimiana
da sociedade,plenamente compatívelcom a sua, e bastante afastada, por exemplo,das con-
cepçõesde Blumer ou de Garfinkel. A hipersensibilidade comum a ambos em relação aos
"símbolosde status de classe",para fazer alusão a um texto de Goffman(1951)que poderia
ser lido como a sinopse de La distinctíon (1979),irá consolidar ainda mais a aproximação
entre eles. A homologiados habitus fará o resto: BourdieuconsideravaGoffmancomo um
irmão na resistência,lutando com suas palavras contra a sociologiadominante. Elesentia-se
próximo dos livros de Goffman que exprimiam o ponto de vista de diversas vítimas da
violênciasimbólica:os doentesmentais, os portadores de deficiênciae as mulheres.Exemplo
emblemático:Bourdieu fazia uma equiparação entre sua Leçon sur la leçon (1982) e "Toe
GOSTO 209
208 GOSTO
função da renda, além de consideraremque o equilíbrio entre oferta e demanda passa pelos As GrandesÉcolesconsomemcercade 30%do orçamentouniversitárionacional,sendo
preços.La distinction lembra que não existe o consumidor indiferenciado,postulado pelos responsáveispor quase 5% do total das matrículas em instituições de educaçãosuperior do
economistas. Na realidade, cada consumidor possui gostos específicosque orientam suas país.Os estudantesque desejamingressarnestas escolasnormalmentenecessitamrealizarum
escolhaseconômicase organizam a percepçãoparticular que ele tem da oferta. cursopreparatóriocoma finalidadede enfrentarexameem nívelnacio~al,que envolvegrande
competição.Talcurso,chamádoClassesPréparatoires aux Grandes Ecoles (CPGE),tem, em
Referências geral,a duração de dois anos, período no qual o candidatoé preparado atravésde intensivoe
KANT,E. Critiquede lafaculté dejugement (1790).Paris: Gallimard-Folio,1990. exaustivoprograma de estudos.A quantidadede trabalho exigidapor semanaé muito grande
RIVRON,V.Le goíit de ces choses bien à nous. ARSS, n. 181-182,p. 127-141,2010. e apenas quem obtémbom índice no baccalauréat- examerealizadono final do ensino se-
SOULIÉ,Ch. Anatomie du goíit philosophique.ARSS, n. 109,p. 3-28, 1995. cundário,necessáriopara o ingressona educaçãosuperior,divididoem três áreas:Scientifique
(para exatas e saúde), Sciences économiques et sociales (parahumanas)e ~ittéraire (para
literatura)_ pode se matricularno CPGE,ministradoem apenasalgunspoucosliceus.Talcurso
í o4. GRANDES
ÉCOLES equivaleaosdoisprimeirosanos de uma universidade.Assim,quemnão consegueaprovaçãoem
Afrânio Mendes Catani uma grande écoleapós a conclusãodo préparatoiretem a possibilidadede ingressarem anos
maisavançadosde um cursode graduação.A competiçãointernae a pressãosãofortíssimase ~s
Na grande maioria dos países as universidades se encontram no topo do sistema de alunosnecessitamdispor da capacidadede lidar com essasituaçãoestressantepara consegu1r
educaçãosuperior. Se alguém disser que ingressou em determinada universidade que goza sobrevivere ter êxitonos exames,que duram várias semanase envolvemprovasorais e escri-
de grande prestígio, certamente terá grande probabilidade, assim que obtiver seu diploma tas.Apenas poucascentenasde estudantessão admitidosem cadagrande écoleto~o~os anos.
e iniciar sua trajetória profissional,de receber como retribuição as gratificaçõesmateriais Entretanto,mais recentemente,observam-semodificaçõesnesseprocessode admissao,que se
e simbólicas esperadas. Entretanto, na França a situação é diferente. Isso porque o sistema abre a estudantesuniversitáriosoriundosde outras escolas,que obtiverembom desempenho
universitáriodo país é integradopor universidadese GrandesÉcoles.O decretodo Ministério escolar.A maioriadas GrandesÉcolesé gratuita (exceçãonas businessschools)e, em algumas
da EducaçãoNacionale da Cultura, de 27 de agosto de 1992,publicadono Journal Officiel outras (casosda ÉcolePolytechnique,da ÉcoleNationald'Administration,da ÉcoleNormale
de 11de setembro do mesmo ano, referente à terminologiada educação,defineuma grande Supérieure),os estudantessão pagospara estudar.
école como "um estabelecimentode ensino superior que recruta seus alunos por concurso As GrandesÉcolesde maior prestígiosão,além das citadasno parágrafo anterior,outras
e assegura a formação de alto nível". A qualidade da formação oferecida confere enorme que se inscrevemnos domínios da engenharia,da administração, da econom~a,da pol~tica,
prestígioa essasinstituições,sendonelas preparadas as elitespolíticase científicasfrancesas. etc., merecendo destaque a ÉcoleNationaleSupérieuredes Mines de Paris, a EcoleNat10nal
O termo "grandeécole"teve origem em 1794,após a RevoluçãoFrancesa,quando foram des Ponts et Chaussées,a Écoledes HautesÉtudes Commerciales,a ÉcoleCentrale de Paris,
criadas a ÉcolePolytechnique,a ÉcoleNormale Supérieure e o ConservatoireNational des o Institut d'Études Politiquesde Paris (SciencesPo),a ESSECBusinessSchool,além daquelas
Arts et Métiers.Tais es.colastiveram suas precursoras nos séculosXVIIe XVIII,devendoser voltadas às áreas militares. Entre as Grandes Écoles que não exigem curso preparatório,
mencionadasa Écoled'Arts et Métiers(1780);a Écoledes Mines de Paris (1783);a ÉcoleRoyale mas um excelenteresultado no baccalauréat e em outras provas, mencionem-se a École
des Ponts et Chaussées(1747);a Écoledes Ingénieurs-Constructeursdes VaisseauxRoyaux des Hautes Études en SciencesSociales,a École Nationale Supérieure des Arts Décoratifs,
(1741),além de academiasmilitares de engenharia e escolasde artilharia, estabelecidasno a ÉcoleNationale Supérieure des Beaux-Arts,etc. Com frequência,seus alunos acabam se
século XVII,como a Écolede l'Artillerie de Douai. Posteriormente,no início dos anos 1800, direcionando,em seguida, para escolasde administração e comércio. _
NapoleãoBonapartecriou a ÉcoleSpécialeMilitaire de Saint-Cyr,para a formaçãode oficiais Bourdieupublicou,sobre o tema, livro cuja leitura é indispensável:La noblessed'Etat:
do exército.Ao longo dos séculosXIX e XXmuitas outras foram constituídas, até alcançar, Grandes Écoleset esprit de corps,mostrando como a educaçãorecebidanestas escolasde
nos dias de hoje, um total aproximadode 250 estabelecimentos. eliteconsagra uma "nobreza"de novotipo, possuidorade títulos acadêmicosque a~segur~m
O objetivoda criação das Grandes Écoles ao longo da história francesa, não é demais sua própria exclusividadeatravés de rigorososmecanismosde seleçãoe filtros sutis. A~slffi,
demarcar, é o de fornecer as estruturas técnicas (e militares) dos mais elevadoscargos do os postos de trabalho acabamse definindoa partir dos estabelecimentos_esco~aresde on~e11:',
estado, nos domínios essenciais da sociedade: administração central, exército, pontes e desdeo modestoprofessorde escolaprimária de uma pequenacidadedo mtenor ao funciona-
estradas, agricultura, águas e florestas, minas, ciências médicas e veterinárias, formação rio de alto escalãona administração pública ou privada. Comojá fizera em outros trabalhos
de professores,portos e arsenais, etc. Atualmente, o Ministério da EducaçãoNacional, do (Osherdeirose Homo academicus),ele desnuda os segredosda magia social que assegura,
Ensino Superiore da Pesquisada França assegura a tutela dos cursos preparatóriosa todas as através da educação, a reprodução das hierarquias sociais. Não é por outra razão que no
GrandesÉcoles,mas estas se encontram sob a supervisão de outros ministérios, de acordo prólogode La noblessed 'État,intitulado "Estruturas sociaise estruturas mentais",_Bou~dieu
com a natureza de cada escola. escreveuque "a sociologiada educaçãoé um capítulo,e não dos menores, da soc10logiado
experiênciaduradourade desapossamentoeconômicoe de impotênciapolíticanuma pequena A noção ofereceinstrumentos para examinar o problemada transmissão intergeracional
cidadeem declíniono sul de Yorkshire,na Inglaterra.Lehmann (2002)traçou o modo comoas da cultura que, atribuída a processosde socializaçãoe aprendizagemna antropologiaclássica
disposiçõesmusicaisinculcadaspelotreinoinstrumentalse combinamcomdisposiçõesde classe e contemporânea, foi apenas raramente tomada como objeto de estudos em si. Na obra de
herdadas da famíliapara determinar a trajetóriae as estratégiasprofissionaisdos músicosno Pierre Bourdieu,ela constitui um dos organizadoresdo programa de pesquisa encarregado
interiordo espaçohierárquicoda orquestrasinfônica.Wacquant(2003)dissecoua produçãodo de examinar as condiçõesque presidema permanência e a mudança social.Mobilizara ideia
nexode competências,categoriase desejosincorporadosquecompõemo boxeprofissionalcomo de herança cultural nessa discussão representou uma ruptura em diferentesníveis com os
um ofíciocorpóreomasculinono gueto negro americano,revelandoque a feitura do habitus modos tradicionais de pensar a transmissão e sua relaçãocom a organizaçãosocial.
pugilisticoacarretanão só o domínioindividualda técnica,mas, mais decisivamente,a inscri- Apresentadade maneira explícitae mesmobrutal no título de Les héritiers, a noção per-
ção coletivana carne de uma ética ocupacionalheroicano interior do microcosmosdo ginásio mitiu mostrar que a reproduçãosocialnas sociedadescontemporâneasnão dependia apenas
de boxe.Estesestudosdemonstramque a convocaçãoe o empregodos esquemascognitivose da transmissão de bens materiais de uma geraçãoa outra, mas estava subordinada cada vez
motivacionaisque compõemo habitus é acessívelà observaçãometódica.Em última análise,a mais à transmissão de um patrimônio cultural. Ao mesmo tempo, ao identificar a escola
provado pudim teóricodo habitus deveconsistirem comê-loempiricamente. como instância encarregada de definir o maior ou menor valor dos diferentespatrimônios
transmitidos pelas famíli~s,como demonstrado em A reprodução, reveloua contribuição
Referências particular dada pelo Estado à reprodução social. Por fim, ao explicitar o ponto de vista dos
BOURDIEU,P. Making the EconomicHabitus: AlgerianWorkersRevisited.Ethnography,v. 1, n. 1, que estão submetidos aos processos de transmissão, sejam eles camponeses do Béarn, es-
p. 17-41, jul. 2000. tudantes das Grandes Écoles ou escritores,expôs as contradiçõese tensões que definem os
BOYER,R. Pierre Bourdieu et la théorie de la régulation.ARSS, Paris, n. 150, p. 65-78, fev.2004. processos de transmissão nas sociedades diferenciadas,nas quais herdar significaem boa
CHARLESWORTH, S. J.A Phenomenology of Working ClassExperience. Cambridge:Cambridge parte se distinguir dos pais e às vezesultrapassá-los.
UniversityPress, 2000. Discutidas à luz de duzentos anos de debates sobre o controle da herança dos bens
HUSSERL,E. ExperienceandJudgment(1947). London:Routledgeand KeganPaul, 1973. materiais que, atrelados a lutas por igualdade e pela neutralidade do estado em relação aos
LEHMANN,B. L'Orchestre dans tous ses éclats: ethnographie desformations symphoniques. interesses privados, haviam produzido na França uma das legislaçõesmais restritivas da
Paris: La Découverte,2002. Europa(BECKERT, 2008),tais revelaçõesrepresentaramum abalode proporçõessignificativas
220 HERDEIROS (OS): OS ESTUDANTES E A CULTURA HERDEIROS (OS): OS ESTUDANTES E A CULTURA 221
(Les héritiers: les étudiants et la culture) (Les héritiers: les étudiants et la culture)
da educaçãoinfantilà universidade,a açãodosfatoressociaisde desigualdadeculturale a pos · as ações dos grupos e dos indivíduos (sejaa crise da sociedade_ rural tradicional na Argélia
a vontadepolíticapara dar a todoschancesiguaisdiante do ensino"(LH,114-115). suu- ou no Béarn ou as transformações do sistema educacionalcom o crescimento do número
de alunos do ensino médio e superior nos anos 1960) estão permeadas semprepela duração
históricae por um movimentooriundo das tensõese da impossívelreproduçãoinalterada das
1ío. HfX/SCORPORAL relaçõesde dominação.A história é marcada pela discordânciaentre o habitus dos grupos
································
·················································································
ou dos indivíduos, produto de um estado antigo das estruturas sociais, e as novas condi-
Ver:Corpo; Habitus çõessociais emergentesque implicam "reconversões"ou adaptações das estratégias sociais
habituais. Eis o que explica a predileção de numerosos trabalhos de Bourdieu, ou de seus
estudantes,pelas situaçõesde crise em que as antigas estruturas ou os habitus manifestam
111. HISTÓRIA de modo tão explícitosua lógica específicaque são ameaçadosou se veem a contracorrente
······················································································································· das transformações- o que implica,por parte de seus defensoresou partidários, a elaboração
Christophe Charle de estratégias de defesa que os obrigam a explicitar seu impensado ou a justificá-lasdiante
"E.somente ~ história pode nos livrar da história" - P. Bourdieu, Aula inaugural daquelesque as questionam.A análise sociológicadeste ou daquelecampo é, portanto, uma
proferida no Collegede France, sexta-feira,23 de abril de 1982. forma de apreender, ao mesmo tempo, a história estrutural de tal campo e as relações de
Na França, as relações entre a história e a sociologia foram marcadas, durante muito força entre seus polos, assim como a transformação, realizada ou não de um campo, per-
te~po, por tensões ~ incompreensõesdesde as origens, inclusiveda sociologiauniversitária mite avaliar a dinâmica dos indivíduos ou dos grupos em competiçãotanto para definir os
na_epoca de Durkhe1m(1858-1917).Convémevocar,aqui, a polêmica de 1903 entre Charles respectivosdesafiose limites quanto para obter a posição dominante em seu seio. Todosos
Se1gnobos,d~f~nsorda história crítica, e o discípulode Durkheim, FrançoisSimiand,repro- elementosestão sempreem movimento e em questão,em função não só das lutas intestinas,
vando o empmsmo dos historiadores, suas prenoções e sua recusa em detectar leis sociais mas também da posiçãodessecampo no espaçosocialmais global- em particular, do campo
da evoluçãodas sociedadeshumanas, através de procedimentosrigorosose de comparações do poder - e da conjuntµra geral. Portanto, a história e a sociologiasão, segundo Bourdieu,
no tempo e no espaço.Essa tensão atenuou-seum pouco com o sucesso das ideias dos fun- ciências sociais praticamente indistintas, pelo menos no pressuposto de que lhes sejam
dadores da revista~nnales d'Histoire Économique et Sociale (primeironúmero publicado fixadosos objetivosde compreensãodinâmica das estruturas e das esfratégiascoletivasou
em ~929),em particular com o reconhecimentopor parte de seus diretores - Marc Bloche individuais:''A oposição(entre a história e a sociologia)é, a um só tempo, muito profunda
Luci~nF~bvre- da impo:tância dos trabalhos de Durkheim, Simiand e Halbwachspara por estar baseada em diferençasde tradição e de formação,além de completamentefictícia,
os hi storiadores que deseJavam,como eles dois, desbravar novos terrenos fora da clássica porque a sociologiae a história têm o mesmo objetoe poderiam ter os mesmosinstrumentos
hist~ria política e baseada em grandes acontecimentos. O interesse que a história acabou teóricos e técnicos para construí-lo e analisá-lo" (BouRDIEU, 1995, p. 111).A derradeira
suscrtand~entre os s~ciól~go~da geraçãoque precedea de Bourdieu,em particular Raymond diferençareside, em particular, segundo os assuntos e as épocas estudados,nas fontes e nos
Ar?~• assim como a mfluenciada antropologiasocial e da sociologiasobre os historiadores materiaisutilizadose, sobretudo,utilizáveis,já que a informaçãonecessáriapara a construção
proxu~os de Bourdi~u Jean-Pierre Vérnant, Pierre Vidal-Naquet ou Georges Duby -, do modelo de compreensãoé cada vez mais fragmentada, parcial, incompleta ou difícil de
redefin_rr~~de manerra duradoura as relaçõesentre essas duas disciplinas. interpretar, na medida em que o investigadorse afasta da sociedadeatual, em que é possível
No imc~o,a _reflexãode Bourdieusobrea históriafoi alimentadapor essenovoclima,ainda empreender diretamente a pesquisa, interrogar os atores e as testemunhas, além de cons-
~ueseus ~rimeirostrabalhos - pesquisasempíricasna Argéliae na regiãonatal de Béarn - se truir o questionário sem intermediário opaco (historiografiaanterior, arquivosprivados ou
tr~e~semmspirado,ini~ialmente,nos m~t~dosda etnologiae da antropologia,em um diálogo públicospré-construídos,etc.).
cnti~oco~ 0 es~ru~r~ismo de Cl~udeLev1-Strauss. Todavia,seuprimeirotrabalho de síntese, Apropósitodo Homo academicus - livro em que Bourdieutenta fazeruma análisecrítica
S~~wlogzede_l'Algene (1958),alem de suas pesquisas de campo anteriores, apoia-seem um de seu próprio círculo-, afirma:"Trabalheicomoum historiadorpor ter tomadopreviamente
solido conhecimentoda história e do passado colonial desse território que estavapassando uma decisãometodológica.Eu pretendia romper com a imagem do sociólogoenquanto revo-
por uma terrível guerra de independência (1954-1962). lucionárioou policial.Limitei-meportanto a utilizar fontesescritas e públicas,mesmo que o
. _Ahist~ri~é concebidapor Bourdieu - que, nesse aspecto, se posicionana linhagem das acessoa esse 'público'seja,muitas vezes,difícil. [...] No entanto, minha maneira de proceder
ideiasde S~mian_d ~ c~moum repertório de experiênciassociaisespecíficasna qual é possível distingue-sedo método dos historiadores.Pensoque não se pode compreendero que se passa
dete~tarleis soc10logrcas,cuja validade é mais ampla do que a simplesinterpretação de um no campo universitário se esse conteúdonão for reposicionadoem um espaçoque possa ser
caso isolado,construindo-se rigorosamenteo modelo estrutural dos fatorescomuns e diver- designadopor campo do poder ou espaçoda classe dominante" (BouRDIEU, 1985,p. 177).
ge~tes de um caso histórico em relação a outro. Embora a qualificaçãode "estruturalistas" Quantomaiorfoiseuprogressona obrateóricaou reflexiva,tanto maissolidamenteBourdieu
atribuída aos primeiros trabalhos de Bourdieu seja abusiva,as estruturas que condicionam se apoiou em material histórico emprestadode diversoscontextosa serem comparados,ou
1·12. HOMOACADEM/CUS
·······················································································································
crítico com os historiadores (BouRDIEU, 1995- nesse mesmo número há artigos de Carola Ana Paula Hey
Lipp,Hartmut Kaelble,C. Charle e E. François);os trabalhos e cursos sobre o Estado que se
baseiam em uma importante bibliografiae em reflexõeshistóricas tomadas de empréstimoa BOURDIEU,P. Homo academicus. Paris: Minuit, 1984.
diversoscontextos.Do mesmomodo,ARSS publicounumerososartigos escritospor historia-
dores e sociólogosda área da história para mostrar com maior nitidez a complementaridade Editadaem 1984,a obra focao sistemauniversitáriofrancêsnas duas décadasde expansão
e a convergênciadessas duas ciênciassociais, separadas artificialmentepela história e pela ocorridas até os anos 1970.Resultado de mais de 20 anos de pesquisas, insere-se em uma
organização universitárias, destacando-se as contribuições de Maurice Agulhon, Michael linhagemde análisesdo campo intelectual,debatendoas relaçõessubjacentesao inconsciente
Baxandall,Enrico Castelnuovo,RogerChartier, Robert Darnton, Eric Hobsbawm,Hartmut científicoque regula a prática e o poder dos professorescomoprodutores simbólicosespecí-
Kaelble,JürgenKocka,ErnestLabrousse,CarlSchorske,etc.Nessaprática,Bourdieusituava-se ficos.Ao trazer à tona tal universo, arrisca-se a tomar como objeto seu próprio mundo, sua
não só na longatradição de Durkheim (L'Évolutionpédagogique en France,1938),de Max posição e as relações aí geradas, para o qual mobiliza as ferramentas de objetivaçãode um
Weber(Economieet société,1971),de Marc Bloch(La sociétéféodale, 1939-1940, verdadeira campo composto por diferentes espéciesde capital que forjam a estrutura de distribuição
sociologiahistórica das sociedades medievais),mas também esforçava-sepor lutar contra de poderes particulares constitutivosdo princípio das tomadas de posiçãotanto intelectuais
"o confinamentoescolástico"em disciplinas e subdisciplinasque não cessoude se acentuar, quanto políticas. ,
desde os anos 1960,com o forte crescimentodo número de pesquisadorese de professores Nessa direção, duas maneiras distintas de leitura do livro emergem.'Aprimeira, relativa
universitários, e em razão do maior conforto de se criarem territórios confinados,ao invés à construção empírica do sistema universitário,realiza a distribuiçãodas faculdades- Ciên-
de se abordarem grandes questões em ampla escala ou na longa duração. Em seu entender, cias, Letras, Direito,Medicina- conformea posiçãode cada uma na estrutura universitária,
o conhecimento da história social de cada disciplina era a condição prévia para controlar por meio da classificaçãode poderes e de posiçõesali constituídos,bem como se dedica ao
melhor os impensados transmitidos pela tradição e livrar-se dos falsos debates e dos falsos ordenamento do espaço das disciplinas no interior das faculdades de Letras e de Ciências
conceitosherdados do passado:"Por conseguinte,somenteum uso reflexivoda história pode Humanas. Demonstrando as mudanças morfológicasdas faculdadese das disciplinas,visa
nos dar a liberdade em relação à história, pode nos fornecer algumas possibilidadesde não apreender as formas, os níveis da legitimidadee do poder universitáriose seus princípios de
veicular conceitosobnubiladospor sua historicidade"(BouRDIEU, 1999,p. 18). funcionamentoe de transformaçãoem interfacecom o campodo poder comoprincípiodeter-
A despeito do desaparecimentode Bourdieu e do inacabado de alguns de seus últimos minante do espaçosocial.A segunda refere-seao poder de cientificidadeda sociologiacomo
canteirosde obras em que a dimensãohistórica estavaparticularmente presente,a renovação mecanismo de objetivaçãopertinente e válido de uma "instituição socialmentereconhecida
da históriaglobale transnacionalentre os historiadoresdo mundo inteiroe o atrativocrescente comofundamentadapara operar uma objetivaçãoque aspiraà objetividadee à universalidade"
da sociologiahistórica entre alguns sociólogosdas jovens geraçõesconfirmam que o projeto (CD,144),inscrevendoa abordagem nas preocupaçõesdo autor sobre a natureza do métier
de convergênciada história e da sociologia,preconizado por Bourdieu,continua mantendo científico.Vista "comoum experimento sociológicoa propósito do trabalho sociológico",o
grande atualidade científicae, até mesmo, política. livro fornece princípios para a investigaçãocrítica e teórica, fundada na pesquisa empírica,
bem como para a defesa da autonomia do campo intelectual em relação às forças externas,
Referências sejam políticas, midiáticas ou religiosas.
BOURDIEU,P. Sur les rapports entre la sociologie et l'histoire en Allemagne et en France. ARSS, A discussãoempreendidabaseia-seno poder da Sociologiacomosocioanáliseao produzir
n. 106-107,mars 1995. ferramentas de objetivaçãoque podem neutralizar os vieses entre o observadorsociológico
BOURDIEU,P. Les professeurs de l'Université de Paris à la veille de mai 1968. In: CHARLE,C.; e seu objeto,visto que o observador ocupa uma posiçãonesse universo de investigação(WA-
FERRÉ,;R.(Orgs.).Le personnel de l'enseignement supérieur en France aux XIX' et XX' siecles. CQUANT, 1989).Ao se referir à sua publicação,Bourdieu afirma que o trabalho causou-lhe
Paris: CNRS,1985. mais problemas do que qualquer outro, uma vez que se corria o risco de reduzir ao terreno
da luta no interior do campo universitário uma análise cuja finalidade era objetivar esse
l
indubitavelmentepolêmico, funciona como uma pedagogia de pesquisa ao demonstrar o professoresdas distintas faculdadesse distribuem- conside:an~~o polodo ~oder econom=co
rigor na apreensão de um objeto que ultrapassa a experiência comum para chegar à expo- e político e O do prestígio cultural - segundoos mesmospnnc1p10sque as,d1~erentes fraç~es
sição lógica e empírica das condiçõesde realização do discurso científico.É nessa direção da classe dominante, ou seja, há o crescimentode propriedades caractensticas das fraçoes
que a obra se filia aos estudos voltados às condiçõessociais de produção da razão científica preponderantes das classesdominantes partindo das faculdades de Ciênciasàs faculdades
e, em particular, da análise sociológica,e ao entendimento da lógicado campo universitário de Letras e, dessas, às faculdades de Direitoe de Medicina.Demonstra, ainda, que a depen-
em relaçãoaos fundamentos das categoriasali geradas que o estruturam e possibilitamsua dênciaem relaçãoao campo políticoou econômicovaria em razão inversaà hierarquia social
permanência ou mudança. das faculdades,sendo que a sujeiçãoàs normas típicas do campo intelectualpredomina nas
A obra apresenta,de início,um escopoamplo que problematizaquestõesepistemológicas faculdadesde Letras e de CiênciasHumanas,emborade maneira desigual,segundoa posição
presentes na análise do espaço universitário, cuja relação de proximidade pode gerar um no espaço (HA, 57-58).A análise também desvelaque o campo univer~itáriose o~ganizade
efeitode exemplificação,sobretudo ao se tomar como foconomespróprios, incitando o leitor acordocom dois princípios de hierarquizaçãoopostos:a hierarquia social (determmadapelo
a reduzir o indivíduoconstruído "quesomenteexistecomotal no espaçoteóricodas relações capital herdado e pelo capital econômicoe político)se opõe à hierarquia e~pecífica(centra-
de identidade e de diferença entre o conjunto explicitamentedefinido de suas propriedades da no capital de autoridade específicaou de notoriedade intel~ctua_l). ~~slffi,as e~t~utur~s
e os conjuntos singulares de propriedades, definidas segundo os mesmos princípios, carac- do campo universitário estariam sujeitas ao confronto de dms prmc1p10sde l~git1maçao
terizando os outros indivíduos" (HA, 11)- ao indivíduo concreto. concorrentes.O primeiro, de caráter temporal e político,se impõe de modo ma1~dar~ ,d~s
Quantoàs categoriasteóricasem pauta, sobressainão só a noção de campo universitário- faculdades de Letras às faculdades de Direito e Medicina,tornando o campo umversitano
referindo-seao sistemade relaçõesem queum conjuntofinitode propriedades(científicas,eco- dependente de princípiõs vigentes no campo do poder; o segundo, fundado ~a au~o~omia
nômicas,políticas,institucionais)são atuantes e no qual as posiçõesse estabelecemmediadas da ordem científicae intelectual, se aplicade modo mais intenso quando se vai do Direitoou
pelohabitus e pelastomadasde posiçãocorrespondentes,istoé, entreo pontoocupadono espaço Medicina às Ciências(HA,70-71).
e o ponto de vista sobre o próprio espaço,que ageno presentee no futuro dele (HA,31)-, mas Referindo-seàs faculdades de Letras e de CiênciasHumanas, Bourdieu demonstra que
tambéma de uma espécieparticularde poder,o universitário,relacionadoao controleda reprodu- ambas se enquadram no princípio geraldo espaçodas faculdadesem seu conjunto,que opõe
çãoe das relaçõesali perpassadas,possívelde ser demonstradópelacoalizãoentredeterminantes agentes e instituições mais voltados à pesquisa e aos,contencios~scientífic?sou do c~mpo
objetivos,propriedadesque produzem efeitosno campo e determinantes relativosà postura intelectual e seus respectivoscontenciososculturais, aquelesmais voltados_a reproduça~~a
intelectuale científica,que sãomenospercebidos,mas eficazesno interiordo campoe foradele. ordemcultural e do corpodos reprodutorese em direçãoaos interessesassociadosao exerc1c10
Bourdieu expõe em detalhes a construção dos elementospara a distribuição de poderes do poder temporal na ordem cultural (HA,99-100).Assim,estas faculd~des~o~~títuem-seem
no campouniversitário,demonstrando o manuseiode fontesbastante diversificadasrelativas locusprivilegiadopara observar a disputa entre dois tipos de poder umversitano: o centrado
à morfologiadas faculdades e às transformações das disciplinas. A utilização de múltiplas no acúmulo de posições- que permitem controlar outras posiçõese seus ocupantes- e o que
informaçõesvisou abarcar os indicadoresprincipais e gerar as variáveisutilizadas na análise privilegiao prestígiocientífico.O primeiro é aquelepropriamente_~~iversit~r~o,dispo~tono
de correspondência.Os dados são organizados em relação aos diferentestipos de capital ali domínio dos instrumentos de reproduçãodo corpo professoral(3uns, comites),um tipo de
atuantes, tais como:anuários de universidades;Who's Who, da França; dicionáriosbiográ- capital adquirido na universidade,em particular na EscolaNormal_Superiore na Sorbonne,
ficos;perfis docentesrealizadospor instituições de ensino; notícias necrológicas;dossiêsde e detido pelos professoresdas disciplinas canônicas, tais como a Fílosofi~.~ segundo r~fe-
jornal acerca de personalidades marcantes; anuários de ex-alunos de escolasconsagradas; re-se à autoridade científica, ao prestígio e à notoriedade intelectual, cu3aenfase recai no
prêmios em concursos;obtenção de títulos; pertencimento às instituições de pesquisa e de reconhecimentopelo campo científico,sobretudo no exterior. Típicodas novas disciplinas
órgãos de financiamento;bancas de concurso;comitês de revistas científicas;frequênciade científicas,tais como Sociologiae Etnologia,se afirmam em princípios como"ciênciaco~t=a
publicações;obrastraduzidas;coleçõesde livro de grande difusão;índicesde citaçãocientífica; criação,trabalho coletivocontra inspiraçãoindividual,abertura internacionalcontra trad1çao
estágiosprofissionaisno exterior;participaçãoem emissõesde TV;publicaçõesem jornal e em nacional, esquerda contra direita" (HA, 155). _
revistasintelectuais;participaçãoem gabinetesministeriais; comissõesdo governo;apoiosa Ao realizar a classificaçãode seu própriouniversopor meio da materialidadedas relaçoes
abaixo-assinados,apoio à candidatura de presidentesda Repúblicae a causasligadas à uni- entre O habitus, a posiçãoe as tomadas de posiçãono campo universitário,ao mesmo tempo
versidade;frequênciaem colóquiossobre reformas de ensino; opinião sobre a universidade revela O movimento de transformação do estado de relaçõesde força dessas estruturas e o
e suas transformações,além de se recorrer a informantes e a entrevistas. modo de reprodução que ali se opera, contribuindo ora para a análise das condiçõessociais
Referência
BOURDIEU,P.ToeSentirnentofHonour in KabyleSociety.In: PERISTIANY,J.G. (Ed.).Honour and
Shame: The Valuesof Mediterranean Society.Londres:Weidenfeldand Nicholson,1965.p. 191-241.
·114. HYSTERESIS
·······················································································································
Cristina Carta Cardosode Medeiros
í 1&. ILLUS/O
·······················································································································
Andréa Aguiar
Referência
da Escola que, independentementede qualquer mensagem explícita, dota os indivíduos de
LÉVI-STRAUSS, C. Histoire et dialectique. In: ___ . La pensée sauvage. Paris: Plon, 1962.
pretensões estatutárias que levam a recusar as opiniõespré-fabricadasou a autoridade dos
porta-vozes,alémde "reivindicaruma opiniãopessoal"em matériade política;moral e religião.
119. INCORPORAÇÃO Finalmente, as transformações da estrutura das classessociais e dos modos de reprodução
..................................................................................................................... .
~
atribuíram importância crescenteao capitalescolar.Pode-secompreender,nessaperspectiva,
Ver: Capital cultural; Corpo; Habitus a predominância assumida pelas formas"brandas" de autoridadeque tendem a eufemizaras
relaçõesde força,dissimulando-aspor trás da celebraçãoda cooperação,do intercâmbioe da
criatividade individual. O que está em causa é a aparição de um modo de dominação onde
•i20. INCULCAÇÃO a competênciae a racionalidadesubstituíram a obediência,o conformismo,a autoridade.
·······················································································································
Dito isso, a forçados coletivoscontinuasendo muito importante, mesmo que venha a en-
Ver:Arbitrário cultural; Sistema de ensino veredar por vias menos solenese mais discretas.A modalidadeda adesãopode bem ser feita
mediante formasmais pessoais,comoescolhapuramente individual.Ocorreque a integração
das classesdominantesse efetua atravésdas escolasde prestígio,das instituiçõesde elite (La
121. INDIVÍDUO- SOCIEDADE
noblesse d'État, 1989),dos casamentosno seio de grandes famílias, dos clubesseletos,etc.,
·······················································································································
· Louis Pinto contribuindoassimpara a reproduçãodessasclasses,cujosmembrospodemnutrir o sentimento
de seguir seus sentimentospessoais.Por contraste, a demoliçãodos coletivosassociadosao
A oposiçãoindivíduo-sociedade,oriunda do senso comum, é para Bourdieu,assim como Estadosocial,descritaem La misere du monde (1993),teveo efeitode privar os membrosdas
para Durkheim, superficial,oposta às intenções descritivas e explicativasda sociologiae, classespopularesde referênciassimbólicase de precipitá-losem um isolamento,ao qual seria
portanto, fundamentalmente pré-científica:se o indivíduo é dado com seus talentos e seus inconvenienteatribuir o termo "individualismo".A única força de transformaçãosocialpara
sistemasde preferência,comoé preconizadopelo individualismometodológico,só restaria à os dominadosé a classemobilizada(opostaà classeno papel,para o teórico).
sociologiaconstatar a pluralidadedos indivíduose estudar sua "agregação";mas, esse "dado" A relaçãodo indivíduocomo grupoé uma questãoqueexigeser tratada de maneiraempírica
apresenta-se,então, como um mistério. e não metafísica.Para Bourdieu,assimcomopara Durkheim,cada indivíduoé duplo:por um
Bourdieuconsideravaas teorias individualistascomo uma simplesilustração da postura lado, pessoasingularizadapor um corpolimitado e perecível;por outro, membrode uma vida
"escolástica".Apesar de suas dúvidas em relaçãoà solidezteórica de tais concepções,ele não coletivada qual participa e que lhe proporcionareconhecimento,estima, identidadeoficiale
subestimava seu alcance político. Ao levar a sério o retorno do individualismo na filosofia pública. Os indivíduos singulares "participam da eternidade e da ubiquidadedo grupo, para
e na sociologia,ele o consideravacomo uma "espéciede profecia autorrealizante que tende o qual contribuem a fazer existir como algo permanente, onipresente,transcendente" (MP,
a destruir os fundamentos filosóficosdo welfare state e, em particular, a noção de respon- 287).Oritual regulamentaas relaçõesentre os dois aspectos:"Orito de investiduraexistepara
sabilidadecoletiva(nos acidentesde trabalho, no caso de doença, ou na miséria, que é essa tranquilizar o impetrante sobre sua existênciaenquanto membro de pleno direito do grupo,
conquista fundamental do pensamento social (e sociológico)"(CFl, 14).Com a ascensão do sobre sua legitimidade,mas também para reassegurar o grupo sobre sua própria existência
neoliberalismo,desde o início da década de 1980,o indivíduo foi posicionadona dianteira como um grupo consagrado e capaz de consagrar" (MP,287).Mesmoque tenha aparências
não só contra a sociedade,mas sobretudocontra o Estado,"jacobino"e "totalitário",contra as de transcendência, o grupo existe apenas através das crenças e expectativasdos membros;
"instituições"(partidos,sindicatos...). Elefoi associadoao retorno a uma "filosofiado sujeito" portanto, há diversos graus de integração, assim como de crença. A herança implica a pre-
que rejeitaa ambiçãodesmesuradadas ciênciassociaisno sentidode explicartudo pelosocial. sença do grupo que recorre ao herdeiro, cujo desejo consiste em herdar. Bourdieu designa
Pode-sedizerque toda a obrade Bourdieué uma superação"emato"da oposiçãoindivíduo- por capital simbólicoessa forma de capital acumulada pelo grupo e que proporcionavalor,
sociedadeou, se preferirmos,que tal superação é uma tarefa a ser retomada continuamente, legitimidade,razão de ser a seus membros.A importância desse capitalvaria com o volume
porque a sociologianão cessa de trabalhar contra os efeitosda naturalização do social que é dos capitais possuídos (econômico,cultural; social),reproduzindo à sua maneira a desigual
exercidasobre o indivíduo (ideologiasdo dom, da pessoa, etc.). distribuição dessescapitais:os dominantessão também aquelesque detêm mais valor social,
Comoé que a sociologiade Bourdieuse esforçapara analisar fenômenosmuito díspares, reconhecidosocialmente.É na sociedadeque se encontra o fundamento derradeiro do valor
reunidos sob o termo "individualismo"?A sociologiados gostose dos estilos de vida permite que arranca os indivíduos da insignificânciae da arbitrariedade.
mostrar o quanto as práticas de distinção fazem parte da relação com a cultura dos grupos Como analisar sociologicamenteos agentes concretos?Deve-secomeçarpor se livrar da
privilegiados,assombradospelohorror da "massa"e do "nivelamento".Tergostos"pessoais"é ilusão nominalista que consiste em partir do indivíduo singular consideradocomo o único
algoque está inscritonas posiçõessociaissuperioresque cultivamos valoresde originalidade verdadeiramente real, "indivíduo empírico" percebido na experiência ordinária e dotado
e de requinte. Essetipo de incentivos,associadoao ambiente familiar, é fortalecidopela ação de um número indefinido de características. Em vez de propor uma espécie de decalque
234 INCORPORAÇÃO
INDIVIDUO - SOCIEDADE 235
"empreendimento,aliás, infrutífero", o conhecimentoobjetivoconsiste em promoverprin- dominados (tema dos "intelectuais orgânicos"em Gramsci;dos "cãesde guarda'' em Nizan;
cípiosde inteligibilidade.Para retomar a terminologia de Homoacademicus(1984),pode-se dos intelectuais engajadosou "companheirosde estrada" em Sartre; ou dos intelectuais co-
dizer que "o indivíduoepistêmico"é metodicamenteconstruído pela ciência,graças à seleção munistas "a serviço do Partido"). As pesquisas empreendidaspor ele e seus colegassobre os
e à construção de certo número de variáveisdotadas de uma grande densidade informativa estudantes,aprendizesintelectuais,o convenceramda multiplicidadedos fatoresque entram
e de um elevadovalor explicativo (por exemplo,origem social, sexo).Salvo a limitar-se a emjogonas tomadasde posição,no intere.sseou no desinteresserelativamenteao compromisso
"enumerar os fenômenos",como dizia Kant, o sociólogonão pode evitar a construção de político ou ideológicoentre os jovens (ou menos jovens) intelectuais. As mobilizaçõesdos
classesde indivíduosrelativamentehomogênease baseadas no real. É na obra La distinction estudantes por ocasião da Guerra da Argélia (1954-1962)ou em torno dos acontecimentos
(1979)que se encontram as explicaçõesmais detalhadas sobre esse ponto. Em uma "classe de Maio de 1968demonstraram o quanto as sociologiasanteriores ou as análises políticas
construída'',as variáveisnão são justapostas, mas formam um sistema em que a significação clássicasa priori são insuficientesquando aplicam esquemas classistasou político-ideoló-
de cada uma depende da relação com as outras. Ao perguntar qual é a parte da profissão, gicos,ou recorrem a tipologiaspsicossociológicas.Bourdieupretende também reagir contra
sexo,religiãonesta ou naquela prática, corre-se o risco de formular uma pergunta artificial, a visão "romântica'' ou heroica que ressurge com a temática,na moda durante os anos 1960,
como faz a análise multivariada que pressupõe a independência de cada variável da qual do conflitode geraçõesou da rejeiçãodas instituições,mobilizadanos trabalhos da sociologia
ela pretende isolar a eficácia(grandes patrões e intelectuais ilustres têm frequentementea norte-americana sobre as novas formas de engajamentodos intelectuais,jovens ou menos
característica"nascidoem Paris", "estudante de GrandesÉcoles",etc.).A partir do conjunto jovens,a propósitode 1968.Para sair dessasaporiase simplificações,deve-sereconstituircom
das propriedadespertinentes, trata-se de construir uma "posição'!que só adquire sentido em paciênciaa rede das relaçõesentre os grupos e o espaçoestrutural do campo intelectual que
determinado espaço,já que é precisamente esse espaço que determina a natureza e a força orientam as opiniões preconcebidas.Convém,igualmente, produzir uma microssociologia
das propriedades:o sociólogonão impõe uma grade intemporal, mas planeja um conjunto das trajetórias e do habitus em conflitopara analisar plenamenteos modos de compromisso
de posições diferenciaisque é um produto histórico. A trajetória é a sucessão das posições dos intelectuais em uma dada conjuntura ou em determinado período.A Guerra da Argélia,
ocupadas,posiçõesquepodemreunir trajetóriasascendentes,descendentes,etc.Atravésdessas assim como as manifestações de Maio de 1968,forneceram uma ampla matéria para esse
posições,o que está em causa é o volume e a natureza dos capitais possuídos que permitem tipo de análise que combinacorte estrutural e história genética.Apesar de testemunha e ator
a "persistênciano ser" (social)e a reprodução da posição. dessascrisesque provocaramuma profunda divisãoentre os intelectuaisfranceses,Bourdieu
faz seu balanço apenas posteriormente,em particular no livro Homo academicus (1984)e
em Esquissepour une auto-analyse (2004),no que tange à Guerra da Argélia.
122. INTELECTUAIS Reconciliara abordagemindividualem profundidadecoma perspectivacoletiva;resenhar
ChristopheCharle
os invariantesgeraise as variaçõespeculiaresaos diversosgrupos ou subcampos(professores
universitários,intelectuais"livres",jornalistas,artistas, etc.);reposicioná-losnas conjunturas
A questão do tratamento sociológicodos intelectuais aparece,em Bourdieu,em meados históricas específicas(a crise social e política,na França, em torno de 1848,do ponto de vista
da década de 1960,no momento em que ele efetua várias pesquisas com seus colaboradores de Flaubert;no momentodo CasoDreyfus,1894-1906;ou nas décadasde 1930-40)- (OP;RA;
sobre os estudantes e, em seguida,sobre os professoresuniversitários;mas também quando CHARLE, 1990);Sapiro,1999;reencontrarcorrespondênciastrans-históricasentre determina-
ele começaa trabalhar sobre o campo literário. Essa questão era dominada, na época, pelos das configuraçõeshomólogasde opiniõespreconcebidas,ou de reaçõessociaise ideológicas
debates políticos e pela figura do intelectual engajado,encarnada por Sartre. Nessa mesma de alguns tipos de intelectuais,sem reduzi-losa simplesporta-vozesde "interessesde classe"
época encontravam-seas análises de tipo sociológicoderivadas de K. Mannheim (Ideologia ou de "ideologias"- serão essesos objetivosconstantesdas análisesteóricas,assim comodos
e utopia),J.Schumpeter(Capitalismo,socialismo ou democracia)ou Max Weber (Econo- estudosempíricosempreendidospor Bourdieue por seusdiscípulosa respeitodos intelectuais.
mia e sociedade),conhecidas,sobretudo na França, através de sua vulgarizaçãopelos livros A definição abstrata e sociológica- "fração dominada da classe dominante", proposta
polêmicosde RaymondAron (1955),com quem Bourdieu estabeleceuma relaçãoestreita, já em 1971e desenvolvidaem 1980(BouRDIEU, 1971,1980)-, assim comoos estudos empíricos
que este último dirige o Centro de SociologiaEuropeia, da VI seção da EPHE(EscolaPrática aprofundados sobre intelectuais ilustres, tentam sustentar as duas pontas desse programa
de AltosEstudos),da qual Bourdieufoi o subdiretor até o desmantelamentodessecentro após de pesquisa. Definir os intelectuais como "fração dominada da classe dominante" implica
os acontecimentosde Maio de 1968.A maneira como Bourdieuvai repensar a questão dos situá-los no espaço mais amplo do campo do poder, avaliar seu grau de autonomia e de
intelectuais situa-se no prolongamentoe em reação contra essas duas abordagens,parciais, unidade relativas, determinar as linhas de clivagemvariáveissegundo as relações entre as
unilaterais e marcadas fortementepor a priori ideológicose pelo confrontoentre marxismo diversasespéciesde capital- econômico,cultural, simbólico- em determinadasociedade.Ao
e funciqnalismo,teoricismoe empirismo.Contra a visão marxista ou marxizante, a análise mesmotempo, convémestar atento aos modos de designaçãoe de representaçãodessafração
dos intelectuais proposta por Bourdieu rejeita reduzi-los a sua origem social, a sua função segundo os momentoshistóricos e as sociedades,sob pena de extrapolar indevidamente_de
ideológicaou política de apoio à luta de classes,seja ao lado dos dominantes, seja ao lado dos um caso particular (aqui,o francês)para outros casosda Europaou do mundo.As conotaçoes
INTELECTUAIS 237
23 6 INTELECTUAIS
i
i
diferentesdo termo "intelectual",segundo as culturas políticas,sua aparição diferenciadade de conciliar ciência e compromisso, autonomia do pensamento crítico e vínculo com os
acordo com os países e as épocas, a divergênciade seus equivalentes,constituem importan- movimentos sociais que resistem às investidas das políticas neoliberais e autoritárias,
tes indicadorespara situar os intelectuais em relação ao campo do poder e às outras classes ameaçando liquidar o restante do Estado-Providência(ver Contre-feux, 1998; e Contre-
sociais, assim como para compreender as linhas de corte entre eles, retradução, segundo feux 2, 2001); para a importância da presença das ciências sociais no ensino médio, para
cada caso, de clivagensreligiosas,sociológicas,territoriais, políticas, etc. A experiênciada a defesa de um ideal aberto de ensino superior como mola propulsara de emancipação e
Argéliae da ambiguidadedos intelectuais autóctonesem uma sociedadecoloniale marcada de progresso social, além de espaço de formação dos futuros intelectuais, para a fundação
fortementepela presença do Islã;o conhecimentoindireto da sociedadebrasileira através da com C. Charle, em 1992, da Association de réflexion sur les enseignements supérieurs et
tese de SergioMiceli,elaboradano âmbito do Centrode SociologiaEuropeia(MrcELI,1981);a la recherche (ARESER),assim como a publicação de um livro coletivo (1997). Esse novo
leitura e a interpretaçãoaprofundada dos filósofose sociólogosalemães(Cassirer,Heidegger, combate dos intelectuais trava-se no plano não só nacional, mas também internacional,
Max Weber);a necessidadede se situar perante a sociologiaempírica dominante no mundo comopode ser observadoem seu Interventions, sciencesoeiale et actionpolitique (2002).
universitário,oriunda dos EstadosUnidos e defendidavigorosamentepor alguns sociólogos
concorrentesou adversáriosde Bourdieu- tudo isso acabou por torná-lo,bem cedo,sensível Referências
ao interesse e às dificuldadesdo método comparativopara esse tipo de temática. ARON,R. L'opium des intellectuels.Paris: Calrnann-Levy,1955.
As análises que Bourdieu dedicou a alguns grupos ou personalidades foram felizmente BOSCHETTI,A. Sartre et Les Temps Modernes. Paris: Minuit, 1985.
completadaspelosnumerosostrabalhos que seu método e suas sugestõessuscitaram em seus 'BOSCHETTI,A. (Org.).L'espaceculturel transnational. Paris: NouveauMonde, 2010.
estudantes,diretos ou indiretos, na França e no exterior.Todoesse corpusteórico e empírico BOURDIEU,P. Charnp du pouvoir, champ intellectuel et habitus de classe. Scolies, Cahiers de
permite esboçar uma verdadeira história social e estrutural dos intelectuais,em um período Recherchede l'ÉcoleNormaleSupérieure,v. 1,p. 7-26. 1971.
de média e longa duração, não só no âmbito francês (RA;CHARLE, 1998;BoscHETTI,1985; BOURDIEU,P. Cornment libérer les intellectuels libres? In: ____ .. Questions de sociologie.
SAPIRO, 1999,2011;PINTO,1995),mas também em escalaparcialmenteeuropeia(OP;CHARLE, Paris: Minuit, 1980.
1996; CASANOVA, 1999; SAPIRO, 2009; BoscHETTI,2010) e, até mesmo, internacional. Essa BOURDIEU,P. et al. Quelques diagnosticset remedes urgentspour une université en péril. Paris:
abordagemhistórico-sociológicapermite que Bourdieue aquelesque se inspiram em sua obra Liber-Raisonsd'agir, 1997.
e~c~pemao eterno presentedos ensaiospolêmicossobre os intelectuaisou à sociologiadepre- CASANOVA, P.La république mondiale des lettres. Paris: Seuil, 1999.
ciativae carentede perspicáciaque caracterizaa maior parte dessesescritosde circunstância. CHARLE,C. Naissance des "intellectuels"(1889-1900).Paris: Minuit, 1990.
Na última fase de sua obra, na medida em que sua notoriedade o levava a implicar-se CHARLE,C. Paris,fin de siecle.Paris: Seuil, 1998.
~m novas formas de engajamento,Bourdieu tentou igualmente definir uma nova figura do CHARLE,C.Les intellectuelsen Europeau XXe siecle,essaid'histoire comparée.Paris: Seuil,1996.
r~tel,e~tual, bas:ada nessas análisesteóricase históricas,embora adaptada à nova conjuntura MICELI,S. Les intellectuels et le pouvoir au Brésil (1920-1945).Paris: PUG/MSH,1981.
hrstonca das decadas de 1980 e 1990, marcadas pelo que ele designou como a restauração PINTO,L. Les neveux de Zarathoustra: la réception de Nietzsche en France.Paris: Seuil, 1995.
conservadora e neoliberal. Esta, tanto na França quanto em uma grande parte do mundo, SAPIRO,G. La guerredesécrivains(1940-1953). Paris: Fayard, 1999.
redundouem um novoataqueaos intelectuais,comoa Françatem conhecidoperiodicamente, SAPIRO,G. La responsabilitéde l' écrivain:littérature,droitet moraleen France(XIXIe.-XXe.siecle).
e no adventode figurasque lhes fazemconcorrência,submetidasaos imperativosdo mercado Paris: Seuil, 2011.
e do poder,para defendere ilustrar a ordem estabelecida:intelectuaismidiáticos,jornalistas, SAPIRO,G. (Org.).L'espaceintellectuel en Europe: de laformation des États-nations à la mon-
think tanks, peritos, etc. Diante dessa nova aliança entre poder, dinheiro e saber, Bourdieu dialisatíon XIXe.-XXIe. síecle.Paris: La Découverte,2009.
reafirmou tanto em seus livros e em suas intervençõesquanto em seus escritos militantes a
necessidadede criar um intelectual coletivo,apoiadonos conhecimentosdas ciênciassociais 123. INTERESSE
que estariam a serviçodo ideal universalista das Luzes e da defesados dominados, alicerce, ······································································································•··••············
al_iás,da t~adiçãodo intelectualde esquerdana França. Com efeito,na nova situaçãopolítica Ver:Illusio
e mternac10nal,as formas antigas, pontuais ou partidárias do compromissodeixaram de ser
suficientespela seguinte razão: o que está em jogo é a própria autonomiados intelectuais e a
apropriaçãodo saber pelos diferentesgrupos sociaisem luta. Eis aí a explicaçãopara o texto 124. INTERVENTJONS,
1961-2001:SCIENCE
SOCIALE
ETACTJON
POLJTJQUE
·······················································································································
que encerra o livro Les reglesde l'art, "Pour un corporatisme de l'universel";para a funda- Afrânío Mendes Catani
ção da _associação"Raisons d'agir"; para a publicação de opúsculos militantes na coleção
que exibe esse mesmo nome em particular, Sur la télévision (1996), que tem obtido
uma grande repercussão e suscitado numerosos debates midiáticos; para a necessidade BOURDIEU,P. Interventíons1961-2001:
scíencesocíaleet actíonpolítique.Marseille:Agone,2002.
JUVENTUDE 243
242 JOGO (Sentido do)
~einteligibilidadeem torno dosjovenssãotambémproduto do mundo social,sendonecessário
rr ~lém dess~~~rim~ir~s:lassifica ões. O que se anuncia por meio da construção "problema
da Juventude e a eX1stenc1a
7
de conJunturasem que a ordem sociale a ordem das geraçõesnão
estão asseguradas.Em contextosde forte mudança do modo de reproduçãoocorreriamcrises
de sucessão,tanto no sentidocronológicocomono sentidojurídico da herança legítima.
Referências
BOURDIEU,P. De quoi parle-t-on quand on parle du "probleme de la jeunesse"? In: PROUST,F.
(Org.). Lesjeunes et les autres: contributions des sciencesde l'homme à la question desjeunes.
Vaucresson/CRIV,1986.p. 229-235.
MÉTAILIÉ,A. Lesjeunes et lepremieremploi.Paris: Association de Ages, 1978.p. 520-530.
129. LEGITIMIDADE/LEGITIMAÇÃO
·······················································································································
Maria JoséBraga Viana
248 LÉVI-STRAUSS, CLAUDE (1908-2009) LIÇÕES DA AULA (Leçon sur la leçon) 249
Talpostura reforça,acredito,o exercíciopleno do compromissointelectual do autor, de não síntese, especialmente entre as partes I e II, preferiu-se aqui, em diferentes momentos, recor-
"pregar aos convertidos";talvez fosse esse o sentido, para ele, da "aula de uma aula inaugural rer aos artigos que originaram as partes, a saber: "Le fétichisme de la langue" (1975),que
de sociologiaconsagrada à sociologiada aula inaugural" (LL,34). raramente é citado nos estudos do sociólogosobre a linguagem,e ''L'Économie des échanges
linguistiques" (1977),publicado em número especial da revista Langue França ise sobre o
Referência tema. A escolha se deve a unia inflexão no pensamento bourdieusiano decorrente, acredito,
BOURDIEU,P. Leçon Inaugurale (fait !e Vendredi, 23 avril 1982).Chaire de Sociologie.Collegede da leitura da obra de Bakhtin-Volochinov (2006) - citado no artigo, numa primeira nota,
France. Paris, 1982.(Exemplairehors commerce, n. 370). que desaparece no livro. Avalia-se,aqui, que o procedimento permite acompanhar melhor
o pensamento de Bourdieu.
132. LINGUAGEM Para Bourdieu, o capital linguístico é uma dimensão do capital cultural, talvez uma das
······················································································································· mais dissimuladas, por diferentes razões. Por um lado, o aprendizado de uma língua é fruto
Ver:Linguístico (capital; mercado) de um aprendizado muito precoce no interior da família, não sendo, a partir de certo estágio
da construção do habitus primário (ou do estágio de formação do cérebro, de acordo com
pesquisas neurolinguísticas), facilmentemodificável- como comprovam fenômenoscomo o
í33. LINGUÍSTICO(Capital; Mercado)
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"sotaque"na aprendizagem de línguas estrangeiras ou a manutenção de traços regionaisestig-
Antônio Augusto Gomes Batista matizados, mesmo após uma longa escolarizaçãode sucesso (comoo R retroflexoou "caipira",
por exemplo).Por outro, e mais importante, para Bourdieu, o uso da língua é um fenômeno
De modo geral, o interesse de Bourdieu pela linguagem não se diferencia do movimento semióticototal em que o elementopuramente linguístico por assim dizer (a fonética, o léxico,
que o faz se interessar por fenômenos aparentemente díspares como a fotografia, as estraté- a morfossintaxe), não pode ser isolado do conjunto do corpo e da performance do falante,
gias matrimoniais, o campo acadêmico, o espaço, a literatura. Ao compreender seu trabalho que também funcionam como signos: o que escolhe dizer, o modo como inicia e interrompe
como uma "teoria científica",o sociólogodesejaprogressivamenteconstruir um "programa de. uma interação, como se comporta na troca de turnos, seu tom de voz, o modo de se sentar,
~ercepção e de ação - um habitus científico [...] que se revela somente no trabalho empírico. gesticular, a proximidade que guarda do outro, como se move, sua héxis corporal, em suma.
E um construto temporário que toma forma para e pelo trabalho empírico" realizado, tendo Todos esses signos, do uso de "diminói" em vez de "diminui", de "um tom de voz muito
em vista diferentes objetos e esferas do mundo social (Ri, 161). alto" ou de uma linguagem muito "elevada" ou "fluente" funcionam como indicadores da
De modo específico,porém, a atenção de Bourdieu à linguagem parece ter duas motiva- posição social do agente, desde que haja uma expectativa, garantida objetivamente, sobre
ções principais. Fundamentalmente, essa análise integra, para a construção de sua teoria da o desempenho esperado nas situações, nos distintos campos e esferas do mundo social. A
prática, sua crítica aos pressupostosdo estruturalismo, especialmenteaos daquela ciênciaque definição dessas expectativas é possívelpor meio da unificação de mercado linguístico.
se tornara, a partir de Ferdinand de Saussure e, mais tarde, de Noam Chomsky,o paradigma Primeiramente, em sua argumentação, Bourdieu se apoia em estudos históricos sobre a
das demais ciênciashumanas e sociais, da antropologia à psicanálise. É nessa empreitada que formação das línguas nacionais no espaço europeu. As "línguas", antes de serem associadas à
o sociólogositua, na primeira nota da Parte I de A economia das trocas linguísticas (1996) escrita e de constituírem um corpus literário, bem como antes de um trabalho de descrição,
o objetivo de seu trabalho: "Tentei analisar em outra parte o inconsciente epistemológico elaboraçãoe normatização, feito pelos gramáticos e lexicógrafos,existiriam apenas em estado
do estruturalismo, ou seja, os pressupostos que Saussure empregou com muita lucidez na prático. Existiriam apenas como habitus linguístico, de modo internalizado. É todo esse tra-
construção do objetopróprio da linguística, mas foram esquecidosou recalcadospor aqueles balho de objetivação de um determinado habitus linguístico, do grupo que assume o poder
que utilizaram ulteriormente o modelo saussuriano" (Ver SP,51;PVDp, 23). político na formação do Estado e por sua associação a instituições destinadas a representá-lo
A segunda e não menos importante motivação específicada atenção de Bourdieu à língua e responsabilizadas por transmitir essa língua objetivada e zelar por ela - como a escola e a
reside na própria compreensão do funcionamento do mundo social. Forma mais naturali- própria gramática e os dicionários -, tornando-a língua da nação, língua oficial,ou a língua,
zada, distintiva e, por isso, desconhecida, de capital cultural, a língua e práticas linguísticas língua legítima, que construiria, historicamente, um mercado unificado.
legítimas constituem um capital linguístico capaz de gerar lucros nos diferentes campos e de De modo correlato,todas as outras línguas - ou, mais precisamente,habitus linguísticos-
exercer uma das formas mais sutis e eficazesde violência simbólica. Por essa razão, o capital mais ou menospróximasque conviviamno mesmoespaçoou em espaçoscontíguos,quetambém
linguístico atravessa, com maior ou menor ênfase, praticamente toda sua obra. permitiama comunicaçãoentrediferentesfalantes,e quenão sofreramesseprocessode objetivação
O estudo sistemático desse tipo de çapital, porém, será feito por um conjunto de artigos, e de associaçãocom o Estado,tornaram-senão língua,desvios,erros,dialetos,variações.A língua
em parte posteriormente reunidos, com modificações,em 1982, em Ce que parler veut d ire: legítima ou oficialtorna-se o padrão a partir do qual se pode medir o desempenhode todos no
l 'économie des échanges linguistiques (traduzido no Brasil em 1996 como A economia das mercadodosbens línguísticose elaé garantidaobjetivamentepor um conjuntode instituiçõesque
trocas linguísticas: o que falar quer dizer). Embora na coletânea se note a busca de uma vão da gramáticaà escola,passandopela literatura e por toda a burocraciado Estado.
256 LIVRE-TROCA:DIÁLOGOS ENTRE Cl~NCIA E ARTE (Libre-écharnge) MANET. UNE RÉVOLUTION SYMBOLIQUE 257
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serve de Manet, sobretudo para fazer um contraponto (comodiz Edward Said) ao Flaubert dás repetidasrecusas do Salon, que constituía,então,a única instância de legitimaçãopara a
de Les regles de l'art (1992),obra que dedicouao campo literário, aproveitandoassim para se pintura. A época,a pintura acadêmicacom seus temas históricosou mitológicostriunfava na
debruçar, de um modo diferente,sobre o campo pictórico,consagrando à pintura um livro- França,emboraa burguesiapreferisse,para seusapartamentosde reduzidasdimensões,premiar
gêmeo, como diria Baudelaire.No entanto, segundo a explicaçãode Christophe Charle em os "paisagistas",tais comoCor<;>t: falsosrevolucionáriosque não chegarama alterar os hábitos.
seu posfácioà ediçãodo curso de Bourdieu,o sociólogonão logrourealizar tal objetivo,tendo Bourdieuenfatiza também as noçõesde "sensoprático",de habitus e de "disposição"ao
abandonadoessa ideia.Enquanto objetoteórico,Manet lhe permite igualmenterefletir sobre propor o conceitoe a teoria do "disposicionalismo",em oposiçãoà teoria intencionalista.Em
o campo pictórico,além de dar a compreender(o que ele fez também em seu artigo "L'Insti- um trecho do Curso no Collegede France, ele refaz Le déjeuner sur l'herbe, imaginando as
tutionnalisation de I'anomie",1987)que se passa do corpo ao campo: do corpo acadêmicoao disposiçõesculturais de Manet cujo conhecimentoe domínio da história da pintura eram
campo da pintura. Bourdieuse interroga igualmente sobre a razão e o modo como o campo muito mais aprofundados do que os de seus contemporâneos. Ele chega à conclusão - de
pictórico é dominado pelo campo literário (e,desseponto de vista, as relaçõesde Manet com maneira "materialista"- de que Manet era um olho,uma mão,uma cultura, um savoir-faire...
Zola e, sobretudo, com Mallarmé são prenhes de ensinamentos);e sobre o motivo pelo qual em síntese, um habitus inimitável. Ao inspirar-se na teoria das disposições,Bourdieu nos
a revoluçãonão ocorreu na Grã-Bretanha.Mas, acima de tudo, o caso Manet lhe permite - é ensina a observar a pintura de um modo totalmente diferente: não como uma obra feita
o que ele afirma nos cursos ministrados no Collegede France, entre 1998e 2000 - refletir (opus operatum), não comoum problemateóricoa ser resolvido,mas comouma obra a fazer
sobre a noção de "campo",como instrumento de análise e de compreensão. (modus operandi), um problemapráticopraticamenteresolvido.Eleacredita,assim,em uma
Uma revoluçãosimbólica,escreveele,sobretudoquando é bem-sucedida,torna difícilsua revoluçãoda crença e o colapsoda crença geral no âmbito daAcadémie.
explicaçãopor afetar as categoriasatravés das quais a pensamos. Quando Manet apresenta Comoobjetoautobiográfico(secreto),Manet enquanto "revolucionáriosimbólico"é uma
seus primeiros quadros (incluindoo famosoLe déjeuner sur l'herbe, que é insistentemente figurade identificaçãoquenos ensinaa conhecerBourdieucommaiorprofundidade.Osociólogo
mencionadopor Bourdieu)no Salon - espaçoem que, anualmente,eram mostradas todas as identifica-se,sem dúvida, com esse revolucionárioelegante,ligadoà família, culto e refinado,
obras francesasque o júri consideravadignas de serem expostase, entre as quais Manet fazia que não apreciamuito os "boêmios"barulhentos e desmazelados,mas que apesar disso abriu
absoluta questão que seus quadros viessem a figurar -, Le déjeuner parece incongruente e a porta para a arte e parã os artistas modernos;que recusouos clichêsda arte acadêmica,que
desencadeiarisadas e reaçõesescandalizadas.Não sabemosmais o motivoque teria levadoos transformouem profundidadea maneira de olhar a pintura, por interméd.iode quem os forma-
espectadoresde Manet a rir ou a se melindrar.E Bourdieuusa esse exemplopara demonstrar tos, os própriostemas,a hierarquiados temas,a maneira de pintar...foramtransformados.Em
o que é uma revoluçãosimbólica.Ele insiste na arte acadêmicacontra a qual Manet inscreve suma, alguém que obtevetamanho sucessoem relaçãoà "revoluçãosimbólicâ' em que esteve
sua obra, e seus desdobramentosrelativosao percurso, à estética, aos cursos, aos ateliês,ao envolvidoque nos fezesqueceros risos da multidãoe o motivodessareação.Essafigurailustre
trabalho árduo,aos temas e ao tratamento acadêmico,dizendoque se trata (por homologia,ou queBourdieutanto admiravaacaboupor ajudá-lo,sem dúvida,a ~anter comfirmezaseu ~o
seja,pela "semelhançana diferença")de uma arte de escola,portanto, de uma arte do Estado, quando, do mesmo modo, foi (e continua sendo) atacadosem treguas e provocouo escarmo
logo,de uma arte de homo academicus. Ele compara os ateliêsda Escolade BelasArtes aos da multidão que também não compreendiaa revoluçãoque ele estavaoperandona sociologia.
khâgnes (cursospreparatóriosàs Grandes Écoles), mostrando que, em ambos os casos,existe
a mesma submissãoà hierarquia, a mesma chantagemnos concursos,o mesmoconformismo Referência
nos temas e em seu tratamento. Há uma doxa, algo como "isso é assim mesmo",certas pre- P.L'institutionnalisation
BOURDIEU, del'anomie.Les Cahiersdu Musée National d'.ArtModerne,
cauçõescaracterísticasdo academicismo.E ele explicaque Manet, apesar de ter recebidosua p. 6-19, 19-29jun. 1987.
formaçãonaAcadémie, transformou-seem um blocoinquebrantávelCONTRAos imperativos
do academicismo,bem como contra a crença na onipotênciada Académie, apesar de conti-
nuar almejandoser expostono Salon. É impossívelcompreendera atitude de Manet, se não ..~•~·~·.<!.~!.~~!.~~~!.
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entendermosem que se apoiavao academicismo.Assim,Le déjeuner não satisfazos critérios GérardMauger
de formato,de tema, de "acabado",de modelado- ou seja,de estética-, de luz, de saber-fazer
(principalmente,em matéria de perspectiva),exigidospelaAcadémie. E Manet será recusado A obra de Marx estáinscritana históriada filosofiae no repertóriodos clássicosdas ciências
no Salon em numerosas ocasiõesporque, sem nunca ter feito concessãoà pintura acadêmica sociais.Nesse aspecto, ela mantém uma posiçãoindiscutívelno campo intelectual,não dei-
nem a seus critérios,que elenão reconhecia,o pintor ansioudurante toda a suavida ser exposto xando de ocupar também um lugar indubitavelmentesingular no campo político,no qual foi
no seio de uma instituiçãopara cujodescréditoele contribuiuconsideravelmente. e continuasendo,até certo ponto, a doutrina de referênciada esquerdasocialistae comunista.
Bo,urdieuinsiste no fato de que Manet não só era de origemburguesa,mas que mantinha Esseé o motivopelo qual a compreensãodas relaçõesde um autor com o marxismo tem a ver
muitos relacionamentosna alta sociedadeque o haviam ajudadoem diferentesmomentosde com o confrontode um habitus com um estado,simultaneamente,do campointelectuale do
sua carreira e, sobretudo, tinham-lhe servido de apoio, evitando que "ficasselouco",apesar campopolítico.As ligaçõesiniciaisde Bourdieucom o marxismo,comoestudanteda Khâgne
Referências
BOURDIEU,P. Quelquesremarques sur les conditions et les résultats d'une entreprise collectiveet
international de recherche comparative. ln: SAINTMARTIN,M.; GHEORGHIU,M. D. (Eds.).Les
institutions de formation des cadres dirigeants: étude comparée. Paris: MSH/CSE,1992.
BOURDIEU,P. Les conditions sociales de la circulation international des biens culturels. ARSS, n.
5, p. 3-8, 2002.
147. MUNDOSOCIAL
· · · · · ·NEOLIBERALISMO
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Michel Daccache
·148. Roberto Grün
num contextoem queo Estadoe ospatrocinadoresprivadosvãoprogressivamenteretomandoas conta dos espaçosdecisóriosda economia,como os bancos centrais (LEBARON, 2000, 2008).
rédeasdosprocessosde criaçãoatravésdo controledos recursosmateriaispara ela.Essasituação No interior da equipe de Bourdieu a atenção sobre esse grupo não diminui a necessidadede
representanada menos do que um retrocessocivilizatórioque deveser combatidocom todas observar outras comunidadesprofissionais,em especialaquelasligadas à esferajudiciária. É
as for~aspelosintele_ctuais e artistas que prezam o seu ofício(LE).É justamente a mobilização assim que YvesDezalayempreendeuma extensaanálise dos subgruposdas diversaselitesna-
das diversascategonasprofissionaiscujofazer está sendo afetadode forma negativapela nova cionais"produtorasde direito";vinculadosà internacionalizaçãoao mesmotempo da profissão
onda de "tecnocratização"que poderia combatereficientementea nova ideologialiberal.Para e do arcabouçojurídico. É no interior dessabatalha entre setorestradicionais mais ligadosàs
issoBourdieupreconizaa criaçãode associaçõesinternacionaisde artistas,intelectuaise demais tradições nacionais do direito e os grupos mais jovens, dotados de formaçãointernacional,
profissionaisqueapontem,comautoridademorale profissional,as deficiênciasdas intervenções que se produz o novo direito internacional e que por reflexotambém renova o nacional, que
neoliberaisnas suas respectivasáreasde atuação.A partir dessaconstruçãointernacionalalter- consagra o neoliberalismo. A prevalência do grupo mais jovem significapassar por cima
nativaBourdieuconsideravaserpossívelcontrabalançaro poder políticoe culturaldas agências das tradições e mecanismos de defesaqriecada comunidadenacional construiu no passado
internacionaisdominadaspeloseconomistase altosfuncionáriospartidáriosdo neoliberalismo. para se defender do império absoluto do mercado capitalista e essa institucionalizaçãodo
.Em termos heurísticos,Bourdieuvai, a partir de A miséria do mundo, progressivamente neoliberalismosó pode adquirir inteligibilidadesociológicaselevarmosem contaa dinâmica
lapidara partiçãoentre mão direita e mão esquerda do Estado.Essadivisãolança luz sobreas de atores que ela deflagra e consagra (DEZALAY; GARTH, 1996,2002a, 2002b,2010,2011).
diferençasdeperspectivae de açãoentreosagentesdo Estadoencarregadosda políticaeconômica,
próximosda lógicae dosagentesdo capital,queelechamade mão direitado Estado;e aquelesque Referências
seocupamdas diversasfunçõesde políticasocial,educacional,cultural,de segurança,ambientale BOURDIEU,P. La lecture de Marx. ARSS, v. 1, n. 5-6, p. 65-79,1975.
outras.A essesúltimosdenomina"mãoesquerdado Estado",sendoa divisãopropostaa partir da DEZALAY, Y.;GARTH,B. G. Dealing in Virtue: International Commercial Arbitration and the
observaçãodasdificuldades emesmododesesperodelesdianteda quaseimpossibilidade decumprir Construction of a Transnational Legal Order. Chicago: Universityof ChicagoPress, 1996.
suastarefasno contextoem quea "mãodireita"cerceiacadavezmais suasatividades(MM,222). DEZALAY, Y.;GARTH,B.G. Global Prescriptions: the Production, Exportation, and Importation
Na sua teoria geral do Estado,-Bourdieuchama a atenção para o papel fundamental des- of a New Legal Orthodoxy. Ann Arbor: Universityof MichiganPress, 2002a.
ses agentes do interesse geral na geraçãodos bens coletivosque tornam possívelo convívio DEZALAY, Y.;GARTH,B.G. The Internationalization of Palace Wars: Lawyers, Economists, and
civilizado.E é na corrosão dos fundamentos da atuação e da autoestima desses agentes que the Contest to Transform Latin American States. Chicago:Universityof ChicagoPress, 2002b.
poderia ser localizadauma das principaiscríticasqueBourdieufaz ao neoliberalismo.Imbuí- DEZALAY, Y.;GARTH,B. G. Asian Legal Revivals: Lawyers in the Shadow of Empire. Chicago:
dos da ideologianeoliberal,os agentesda mão direita do Estadoacabam criando mecanismos ToeUniversityof ChicagoPress, 2010.
cognitivosque obliteram a sua percepção dos problemas encontrados pela mão esqúerda e DEZALAY, Y.;GARTH,B. G. Lawyers and the Construction of Transnational Justice. NewYork:
acabam dessensibilizadospara os problemas que a omissão do Estado provocanas parcelas Routledge,2011.
da população menos bem providas de capitais econômicoe cultural. Essa ênfase na teoria LEBARON, F.La croyance économique: les économistes entre science et politique. Paris:Seuil,2000.
e~onômicacomomecanismoprodutor de cegueirainstitucional é próxima daqueladesenvol- LEBARON, F.CentralBankersin the ContemporaryGlobalFieldof Power:a "Social Space"Approach.
vida nos trabalhos históricos de E. P.Thompson(1993)sobre a economiamoral e sua relação The Sociological Review, v. 56, p. 121-144,2008.
coma teoria econômicanascente.Essaproximidadeé digna de nota,já que Bourdieupublicou THOMPSON,E. Modes de do.minationet révolutions en Angleterre. ARSS, v. 2, n. 2-3, p. 133-151,
esse autor marxista nos primeiros volumesde ARSS, quando ele era ainda pouco conhecido 1976.
fora da Inglaterra, no volumesobre a produção da ideologiadominante (THOMPSON, 1976). THOMPSON,E. P. Customs in Common. NewYork:New Press, 1993.
O espaçoempíricoqueBourdieuobservoufoiprincipalmenteo da construçãodas estruturas
da UniãoEuropeiadofinaldo séculoXX.A lógicada construçãodessasentidadessupranacionais 149. NOBLESSE D'ÉTAT(LA):GRANDES ÉCOLES ETESPRITDE CORPS
num período de predominânciacultural do neoliberalismoprivilegioua construçãodo espaço ·······················································································································
econômicocomume foio alvoespecíficodas principaisintervençõescríticasde Bourdieusobre Ana Paula Hey
º.tema. Ele observouque nesseprocessoas duas mãos do Estadovão se distanciandoprogres- Elisa Klüger
sivamentee o poder efetivovai se concentrandonaquelalocalizadana direita.Essaconstrução
supranacionalse torna uma oportunidadepara a experimentaçãoneoliberal. BOURDIEU,P. La noblesse d'État: Grandes Écoles et esprit de corps. Paris: Minuit, 1989.
Na lógica analítica de Bourdieu é impossívelpensar em construção institucional sem
especificarquem são os construtorese quais são os motivose as crençasque os impulsionam. O livro resulta de um conjuntode pesquisasdesenvolvidascom Moniquede Saint Martin
No caso do neoliberalismo,é ressaltado o papel dos economistasortodoxosna construçãoda sobre a estrutura do espaçode educaçãodas elitesna Françaa partir da segunda metade dos
doxa sobre como a economiadeve ser'gerida e de suas estratégias mais diretas para tomar anos 1960,estendendo-seà década de 1980,sendo parte dos textos já publicadosem ARSS
276 NEOLIBERALISMO NOBLESSE D'ÉTAT (LA}: GRANDES ÉCOLES ET ESPRIT DE CORPS 277
entre 1981-1987. No sistemade ensinosuperiorfrancêshá uma distinçãoentre grandes escolas A socializaçãoexperimentadapelos dominantes na instituição escolaré essencialpara a
(estabelecimentosseletivose competitivos,comvagaslimitadas e com classespreparatórias)e criaçãode uma cultura, de valorese de estilosde vida comunsque, fundados na coerênciado
as universidades(instituiçõesde massa,comingressoapós a conclusãodo ensinomédioa partir habitus, configuramos atributos sociaisnecessáriospara o exercíciodo poder.Ademais,esse
da classificaçãono exame nacional,o baccalauréat), que ensejam diferençasno processode espaçoconstituivínculossociaisduráveisque perfazemo "espíritode corpo",o sentimentode
recrutamentoformal(osexames)e social(aorigemsocial).Dedicando-seà análisedo campodas solidariedadee fraternidade que é condiçãode constituiçãodo capitalsocialpartilhado pelos
grandes escolase à produçãoe reproduçãodos grupos dirigentes,procedeao mapeamentoda grupos dominantes e base para a cooptaçãosucessivade pares para as posiçõesdirigentes.O
divisãoentre as grandes e as pequenasescolas,bem como à cisãoentre as instituiçõesvoltadas cultivodas disposiçõesrequeridaspara ocuparos postosde podercompõeum rito de instituição
ao cultivodos valoresintelectuaise aquelasdirecionadasà ocupaçãode posiçõeseconômicase do grau de elite, no qual os eleitossão submetidosa rigorososconstrangimentos,exercícios
políticas.Taishomologiaspermitema análisedas oposiçõese,aomesmotempo,das interconexões ascéticose formais, introjetando a capacidadede dominaçãoem sua natureza e adquirindo
que estruturam o espaçosocial,o sistemade educaçãoe o campo do poder (WACQUANT, 2007). a conduta que comprovaa sua distinção, expressano estilo,nas maneiras e na certeza de si.
A obra é organizadaa partir da análisede fontesdiversificadas,compreendendorelatóriosde A terceira parte dedica-se ao campo das grandes escolas,visando construir uma rede
professoressobreo desempenhode seusalunos,questionáriosaplicadosàs propriedadessociais de relaçõesobjetivasentre os estabelecimentosde educaçãosuperior: grandes ou pequenas
e dotaçãode capitaisdos estudantesde cada instituição,entrevistas,obituáriosde ex-alunosdas escolas,faculdades,classespreparatórias,etc. Para delinearo campo,procedeà coletae com-
grandesescolas,o relato da rotina de um grande empresário,etc.,valendo-seda etnografia,da paração de informaçõessobre o conjuntodas propriedadespertinentes, ou seja,aqu~lasque,
análisedocumental,da construçãode dados estatísticose da análisede correspondênciaspara analisadas de modo relacional,delimitamvariaçõessignificativasentre os estabelecimentos
elaborarempiricamenteo universodo ápicedo sistemade educaçãosuperior.Nessaedificação escolarese seus estudantes. A demonstraçãodessa estrutura de relaçõespor meio da análise
fornecegrandeparte doselementosepistêmicosquecaracterizamsuateoriasociológica: asnoções de correspondênciasobjetivaa distribuição das propriedadesou poderes ali atuantes.
de campo,habitus, estruturasociale estrutura mental,modosde dominação,reproduçãosocial Ao interpretar as clivagensobservadasno campo, Bourdieuafirma existir uma primeira
e escolar,violênciasimbólica,classessociaise cultura,Estadoe poder estãopresentesem sentido oposiçãoqueseparaas instituiçõesprestigiosase reconhecidasdasinstituiçõesmenos_ des:ac_a~as
prático,permitindorealizarum verdadeirodesenhode investigaçãoglobalcentradoem clivagens (asgrandesescolase aspequenasescolas)e uma segundaoposiçãoentre,de um lado,mstituíçoes
sociais,Estadoe educação.Apesardo âmbitoe do recheioempíricoreferirem-seà França,o caráter commaior autonomiaescolare científicaque configuramum polointelectuale científicamente
analíticoda obraé essencialmenteuniversalizante,fornecendo"um poderosoprojetoteóricoquea dominantedo campo,mas sociale economicamentedominado(escolasintelectuais);e, de outro,
situano epicentrode debatessobrepoder,culturae razãono fim doséculo"(WACQUANT, 2007,p. 38). instituiçõescom menor autonomiaintelectual,situadasno polo escolarmentedominado,mas
Divididoem cinco.partes,cadauma comportarecortesempíricosespecíficos, mas queseentre- sociale economicamentedominantedo campo(escolasdo podertemporal).A polarizaçãoentre
laçamdopontodevistaanalítico.Naprimeira,a partir das característicassociaise escolarese das osdetentoresdopodertemporale osdetentoresdopoderintelectualnãobloqueiaa gênesedeuma
redaçõesdos aprovadosno concursogeral- competiçãonacionalquepremiaos melhoresalunos solidariedadeorgânicaque os aproxima,sobretudoquandoos sustentáculosda estrutura social
do últimoano do ensinomédio,por disciplinae restritoa 8%do contingentede cadaescola-, em encontram-seameaçados.Essasolidariedadepermitequeprevaleçamos interessescoletivosdos
1966-1968e depoisem 1986,bem comodosjulgamentosdos professores,analisa-seo sistemade dominantesemdetrimentodosinteressesparticularesdasfraçõesquecompõemo campodopoder.
classificaçãosocialimplícitonas formasescolaresde classificação,
nas categoriasde entendimento Na quarta parte a análise se deslocada formação das disposiçõese oposiçõesnos esta-
professorale o efeitodeimposiçãosimbólicadessesesquemaspráticosdepercepçãoe de apreciação. belecimentospara o estudo da estrutura do próprio campo do poder para o qual as grandes
Ojulgamentoescolar,procura demonstrarBourdieuao analisaros veredictosqueos professores escolasdirecionamseusegressos.O autorrelacionaos padrõesde inserçãodos grandespatrões,
emitemsobreos alunos,estabelececlassificações escolaresquenão sãoapenastécnicase,portanto, dirigentes dos setores público e privado, às trajetórias por eles percorridas e à composição
indiferentesàs propriedadessociaisdosalunos.Aocontrário:elascorrespondemestreitamenteàs dos capitaispor elesacumulados,procurando desvendaros mecanismospráticosde c~st~ra
estruturassociaisque os estudantesincorporama partir de sua posiçãosocialde origem.Nesse da solidariedade entre os grupos dirigentes:os casamentos,as passagens do setor publico
sentidoé possívelpensarna educaçãocomoum sistemade reproduçãodosgruposdominantesque ao setor privado, os conselhos e domínios societários cruzados. Páginas densas expõem o
passarama transmitir sua posiçãosociale capitalsimbólico,tendo a escolacomointermediário. campo do poder comouma "rede cruzada de ligaçõesestruturais e funcionaisque entrelaçam
A segunda comporta o estudo das classespreparatórias às grandes escolas,utilizando- os espaçosdas escolasde elite com o das classesdirigentes"(WACQUANT, 2007,p. 40),sendo
se questionáriose entrevistas com alunos dessas classes,resultados de pesquisas anteriores que sua estrutura é definida pelo estado da relação de força entre as formas d~ po~er, pela
com estudantes de ciênciase de letras, entrevistas e depoimentosde professoresdas classes dependênciadas diferentesespéciesde capital mobilizadasnas lutas pela dommaçao e pelo
preparatórias e de faculdadesde Paris e do interior. A discussão focaessas classescomo caso peso relativoque esses capitais assumem na referida estrutura.
particular do universodas escolasde elite e como instituições encarregadasde conferir uma A quinta parte preocupa-seem examinarcomoo título escolaré ligadoao Estadoou como
formaçãoe uma consagraçãoàquelesque são chamados a participar do campo do poder, de manifestaçãoda magia do Estado, a outorgade um diplomacomo ato de certificação~u de
onde são, em sua maioria,já provenientes(NE, 102). validaçãopor meio da qual uma autoridadeoficialgarantee consagracerto estado de cmsase
278 NOBLESSE D'ÉTAT (LA): GRANDES ÉCOLES ET ESPRIT DE CORPS NOBLESSE D'ÉTAT (LA): GRANDES ÉCOLES ET ESPRIT DE CORPS 279
comoatestaçãopúblicade uma competência.As demonstraçõesdesenvolvidasdurante o livro eliteapresentadae reconhecidacoletivamentecomolegítima;A possedos títulos,juridicamente
culminamna análisedopodercomoconstituintede relaçõescomplexasentrecampos,nessecaso, garantidospeloEstadoe representativosdo exercíciode suaviolênciasimbólicalegítima,autentica
o universitárioe o burocrático,ou entre essescampose o econômicoe o político.Opoderpassa a competênciatécnicadosseusdetentorespara monopolizaremdeterminadasposiçõesde poder.
a ser coextensivoda estrutura do campo do poder,deixandode se encarnar nas pessoasou em Porém,em tal competênciaresideum conjuntode disposiçõessociaispolivalentes,materiaise
instituiçõesespecíficas,manifestando-see se realizandopor meiode um conjuntode campose simbólicas,do qual devemdisporaquelesquelogramobteros signosraros de distinção,que são
de espéciesde capitalunidospor uma solidariedadeorgânica,exercendo-sede maneirainvisível os diplomasde elite.Assim,a obra respondeao examedos modosde dominaçãonas sociedades
e anônima por mecanismosque asseguram a reproduçãodo capitaleconômicoe do cultural, complexasao demonstrarcomoas instituiçõesescolaresencarregam-seda tarefade consagração
de ações estruturadas de redes de agentese de instituiçõesconcorrentese complementares,e dasdivisõessociais,articulandoo sistemade relaçõesentreas estruturascognitivase as estruturas
engajadosnos circuitosde trocas legitimadorascada vez mais longase complexas(NE,554). sociais,o habitus e os campos,e a dinâmicaquelhe é imanente(R, 115).
A perspectiva adotada no livro é a de uma história estrutural, que não busca apenas
descrever as práticas existentes em um determinado momento e em um ponto do espaço, Referência
mas detectar qual a estrutura social existente e quais são as lutas travadas para assegurar WACQUANT, L. Lendoo "capital"de Bourdieu.Educação & Linguagem, SãoBernardodo Campo,SP,
a permanência ou provocar a transformação dessa estrutura. As escolhas e estratégias dos n. 16,p. 37-62,jul./dez. 2007.
agentessão constrangidaspela estrutura que, incorporada pelos indivíduos,se transformam
em esquemas geradores de práticas, percepções e preferências. Os capítulos costuram a
hipótese de que às estruturas mentais - princípios incorporados, e portanto inconscientes, 1so.NOBREZA
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de visão e divisão do mundo social que geram e unificam as tomadas de posiçãodos agentes
nos diversos domínios da prática - corresponderiam estruturas sociais. As preferências Ver: Classe social
estéticas,políticas,afetivas,escolares,profissionaise as ações que delas resultam tenderiam
a ser homólogasà posição ocupadapelo indivíduo na estrutura social.
O estudo do campo das instituições de ensino superior objetivaexplicar como as estru-
1s1.NOMOS ,
···························································································;···························
turas sociais e mentais são produzidas e reproduzidas em uma sociedadena qual a escolaé Cristina Cart~ Cardoso de Medeiros
reconhecidacomoo espaçolegítimoda transmissão de conhecimentose do credenciamento
dos indivíduosmais destacadospara ocupar as posiçõessociaisde maior prestígio.De acordo A noção de nomos, palavra que etimologicamentevem do verbo partilhar (em grego,
comBourdieu,sem compreendera funçãodesempenhadapor estas instituiçõesnão é possível némo ), aparece na abordagem sociológica de Pierre Bourdieu quando o autor explicita
entender comoo poder se estrutura, uma vez que operam uma alquimia socialao reproduzir o conceito de campo. Apontado como princípio de visão e de divisão constitutivo de um
uma hierarquia socialdissimuladana crençada inteligência,cujofundamento legitimaa do- campo, tal princípio atuaria como uma "lei fundamental" (RAp,78; MPp, 117),uma ordem
minação dos mais bem dotados em capital cultural atribuído pelo sistema escolare daqueles instituída nas estruturas objetivas de um universo socialmente regulado e nas estruturas
que têm maiores chances de acumular esse tipo de capital. mentais daqueles que nele se inserem e que tendem, por isso, a aceitar como evidentes as
A ilusão de democratizaçãoda possibilidadede ascensão social, gerada pela ampliação injunções inscritas na lógica imanente de seu funcionamento. Para o autor, o nomos não
do acesso ao sistema educacional,levaria os dominados a reconhecereme investirem-seno tem antítese por suas características de princípio legitimado e aplicávela todos os aspectos
jogoeducacional.Simultaneamente,desconhecemo caráter arbitrário da seleçãoque se opera fundamentaisda existência:"definindoo pensávele o impensável,o prescritoe o proscrito,ele
na escola que, em sua maioria, consagra - considerando talentosos,vocacionados,geniais, acabapermanecendoimpensado"(MPp,117),constituindo-seem matriz de todas as questões
excelentes- aquelesque são capazesde convertero capital cultural herdado no meio familiar pertinentes e incapaz de produzir as questõesaptas a questioná-lo.SegundoBourdieu(SPp),
em capital escolar.Se a reproduçãopela via escolar é mais permissívelà entrada de pessoas a necessidadearbitrária (nomô) pela qual o grupo se constitui e institui aquilo que o une e o
que não pertencem ao meio dominante do que a transmissão direta da posição social, seus separa, uma vez que a identidade socialse definee se afirma na diferença,é imposta por uma
mecanismos de transmissão são duplamente ocultos, uma dissimulaçãoda agregaçãoesta- adesãotácita. Para ele, o arbitrário se situa no princípio de todos os campos,mas os nomos,
tística e uma dissimulaçãoda transmissão direta do capital cultural, o que reforça a crença as leis fundamentais, diferem de um campo para outro, ou seja, "... cada campo confina os
na legitimidadedo mecanismo de seleçãooperado pela escola. agentesa seus próprios móveisde interesse os quais, a partir de outro ponto de vista, ou seja,
A tarefaà qualse entregao sociólogoé demonstraros processosde produçãode uma nobreza do ponto de vista de outro jogo, tornam-se invisíveisou pelo menos insignificantesou até
escolar,quetem o diplomacomopatentede culturae cujomonopóliogarantesuamobilizaçãonos ilusórios" (MPp, 117-118).A identificaçãodos ganhos propostospor cada um dos diferentes
espaçosdominantes.Namedidaem queatribuinomese títulosdistintivosaosmaisbem adapta- campose seus princípiosde visão e divisãoseriam, para o sociólogo,uma forma de identificar
dos,a seleçãoescolarinstitui fronteirasque apartam,de maneira duradoura,os comunsde uma os limites do campo que se situariam ao ponto onde cessariam seus efeitos(R).
NOMOS 281
280 NOBLESSE D'ÉTAT (LA): GRANDES ÉCOLES ET ESPRIT DE CORPS
Em terceiro lugar,explicacomo a experiênciasocialse filtra no sistema de categoriasque
organizama filosofiade Heidegger.O discursode Heideggerestárepletode oposiçõesprimi~vas,
mas destiladasaté o virtuosismoem um discursofilosófico.Portanto,as regrasda arte filosofica
semanifestamde modomagistralem Heideggersem quepor issoeledeixede ser um ideólogo.E
o fatoé queos duplossentidosda linguagemheideggerianacontinuamfuncionandoe a ideologia
reacionáriase aloja atrás das locuçõese polifoniasque estruturam um erudito comentáriode
Aristóteles.Assim,Bourdieuconseguemostrar que é o que torna políticauma grande filosofia,
ao mesmotempo em que expõetudo o que a separado ensaísmopanfletário.Entrea simplesex-
posiçãoensaísticade fantasmassociaise a formalizaçãofilosóficade um pensamentoexisteuma
grandedistânciaquea sociologianãopodedesconhecer.Otrabalhode formalizaçãofilosóficadas
pulsõesexpressivasaprimoraas produçõesculturais;a sociologiase equivocaassociando-seao
negóciodas reduçõesbrutaisdo filósofoà simplesideologia.Assimé:a censurareprimeaspulsões
s2. ONTOLOGIA POLÍTICADE MARTINHEIDEGGER (A) do autor,mas não as elimina.Continuamse instalandonosjogosde palavrase nas classificações
quesubjazemos mesmos.Por exemplo,a oposiçãoheideggerianaentre a existênciaautênticae a
(L'ONTOLOG!E POL!T!QUEDE MARTIN HEIDEGGER)
existênciainautênticase nutre do velhotópicoelitistada distânciaentreelitese massas,mas o faz
··························································•················································································•········•·········•···················
de um modo que proíbea leitura direta sem deixarde aludirsub-repticiamenteaosfantasmas-
JoséLuís Moreno Pestana
brutalmentesociológicos - queseencontramna suabase.Somenteuma duplaleitura,capazde dar
BOURDIEU,P.A ontologiapolítica de Martin Heidegger.Campinas, SP:Papirus, 1989. contado grau de censurado textotanto quantoda permanênciados significadosnegados,ainda
quenão eliminados,pode fazerjustiçaàs conquistasautônomasdo pensamentosem se inclinar
Heidegger foi uma das inspirações fenomenológicasda sociologiade Bourdieu. Além à mera celebraçãodos idioletosfilosóficos.
disso, foi um de seus objetosde análise sociológica.Ao filósofodedicouuma obra de enorme Em quarto lugar,delimitacomoHeideggerse situa no espaçode possi~ilidadesda tradição
repercussão (L'Ontologiepolitique de Martin Heidegger,1988).Nela, Bourdieu expôs as de discursos filosóficose de que modo defineuma posiçãoque terá êxitona filosofiadepoisdele.
linhas mestras de sua sociologiada filosofiaao mesmo tempo em que as aplicavaa um dos Heidegger é o filósofoilustrede uma posiçãodiscursivaque outorgaao filósofoo estatutodo ad-
maiores pensadores do século XX.Pode-se resumir em quatro movimentos a reconstrução ministradorde uma tradiçãode textosfilosóficos,suscetíveisde eternocomentárioe, ao mesmo
sociológicade Heideggerrealizadapor Bourdieu. tempo,emissorinspiradodo autênticosentidoda mesma.Dessemodo, Heidegger"conferesua
justificaçãomais elevadaa uma das mais prestigiosasformasda práticatipicamenteprofessoral
Em primeiro lugar, situa a produção filosóficade Heidegger em seu entorno especifi-
do comentário:tal teoriaautorizae encorajao lectora sepensarcomoum autênticoauctor"(MP,
camente filosófico.Desse modo, Bourdieu exigeda sociologiada filosofiauma análise não
58).Assim,graçasa Heidegger,muitosfilósofossentirãomais urgênciaem dissertarsobreuma
reducionista dos espaços culturais. Segundo Bourdieu, Heideggerproduziu uma revolução
traduçãodo gregoou do alemãodo que em saberalgode economia,sociologiaou física.E, para-
conservadora na filosofiaao colocar no centro do sistema kantiano a temporalidade exis-
doxalmente,issonãolhesimplicaránenhumobstáculoparasepermitiremdizerosdisparatesmais
tencial, convertendoo filósofode referênciado neokantismo positivista de seu tempo - para
peremptóriosacercade comoas ciênciasdeterminamnossomundosubordinadoà "erada técnicà'.
quem a filosofiadevia tirar as conclusõesde uma ciência que funcionava sem discussão -
em referente de uma filosofiaque recuperava sua posição de preeminência a respeito das
disciplinas positivas. 153. OPINIÃOPÚBLICA/SONDAGEM
Em segundo lugar, mostra como o talento de Heideggertem, entre suas condições de ·······················································································································
Patrick Champagne
possibilidade, uma trajetória socialmente rara. Heidegger foi um intelectual de primeira
geração,portanto resultado de um trajeto ascendente por mundos sociais variados, o que A posição de Bourdieu sobre a questão das sondagens chamadas "de opinião pública"
ajuda a compreendera capacidadepolifônicade sua mensagem, cheia de referênciaserudi- revela-seplenamente em uma breve conferênciaintitulada, de modo provocativo,"Aopinião
tas e de alusõespolíticas ocultas, de evocaçõespoéticas e de termos de ressonância rural. A públicanão existe",pronunciadaemjaneiro de 1971na cidadede Arras,na AssociaçãoCultural
linguagemacadêmicafuncionavaem Heideggercomo uma linguagemcom a qual mantinha Noroit. Essa conferênciaserá publicada na revista Les Temps Modernes (janeiro de 1973)
uma rel,açãodistante, como se ela se tratasse de uma segunda língua diferente da original: · e republicada no livro Questões de sociologia(1980).Tal conferência,que obteve grande
essadistância socialem relaçãoao mundo acadêmicoajudouseu autor a não ficar aprisionado . repercussão,ilustra perfeitamenteo papel que,segundoBourdieu,deveriaser desempenha~o
nas oposiçõesque organizavamo campo intelectual de sua época. pela sociologia:disciplina científica cujo objeto é o mundo social, a sociologianão devena
~onjunçõeshistóricas e adquirem aí um sentido que é desconhecido de antemão. Nenhum tese segundo a qual o desenvolvimentoda ciênciapode ser descrito a partir da transição dos
mstrumento analítico tem condições de fornecer uma visão exaustiva dessas realidade conceitossubstancialistas,típicosdo Mitoe, também,da filosofiaaristotélica,para os conceitos
históricas. Qualquer categoria enfatiza uma faceta da realidade e oculta as outras: ora, a: operativosou relacionaiscaracterísticosda ciênciamoderna.Osconceitossubstancialistas,diz
facetasde qualquerfe~ôme~osão inumeráveis.Dessemodo, é apenasmediante o autoengano Cassirer(1994,p. 339),são complicadose respondempelo "estadoconvoluto"dos primórdios
que so~os capazesde llllagmar que nossas categoriassão um reflexofidedignoda realidade. da experiênciahumana. A ciênciamoderna só foi capaz de constituir-se como tal a partir do
~XIste_ e continuaráexistindo,na opiniãode Passeron,uma tarefa epistemológicaque não Renascimento,quando introduziu um novo esquema de verdade:a simplicidadedecorrente
se deixa_d1ssolv~r ~asp~ecauçõe~,da ~ociologiado conhecimento:a de explicara razãopelaqual da abstração.A ciência,então, criou "uma novaforma de interpretaçãointelectual"do mundo
a pluralidadeteonca rema nas c1enc1as sociais,motivopelo qual as avaliaçõescientíficasnessa e isso não pode ser obtido a partir do "alargamento e enriquecimentode nossa experiência
~r~asó_~o~emser unificadasmediante a violênciaadministrativa.Em suma, a razão pela qual ordinária" (CASSIRER, 1994,p. 340). Essa nova forma de interpretar o mundo, conquistadaa
e tao difícilcomparar teorias diferentes.O problemadas ciênciassociaisnão tem a ver com partir de uma ruptura com a percepçãocomum, é o pensamento relacional.Como observa
0
fatode que os acontecimentosanalisadospor elasnão sejamcompletamenterepetíveis:a mesma Cassirer,a ciência avançou quando renunciou à busca por essênciase conquistou um novo
situação se verificacom as ciênciasnaturais. Mas, para comparar tais contextos,as ciências princípio de inteligibilidade,a saber, as relaçõesfuncionais entre as coisas.
sociaisnão dispõemde um paradigma transcontextuale trans-históricocapaz,sejade dizer 0 Na sociologia, o pensamento relacional, por vezes chamado funcional ou estrutural,
que deveser pesquisadoe de quemaneira,sejade enunciar os pontos de vista a partir dos quais considera que os fatos sociais não são explicáveisem si mesmos e por si mesmos, como se
eles devem ser comparados (PASSERON, 1994).Dessa consciência,oriunda de uma das redes fossem substâncias trans-históricas, mas são trazidos à luz por meio da apreensão das rela-
mais intensas de criatividadesociológicado séculoXX,surgiu um grandelivro de filosofiadas ções objetivas,o mais das vezes invisíveis,inscritas nas práticas e nas obras. Tais relações,
ciênciassociais,O raciocíniosociológico,uma obra escrita com Bourdieue contra Bourdieu. inacessíveisao senso comum,precisamser construídas,conquistadase validadaspela ciência
para se tornarem compreensíveis.É na estrutura das relaçõesobjetivas,portanto, que reside
Referências
o princípio de inteligibilidadecausal dos fatos sociais.
BARANGER, D. DeEl oficiode sociólogoa El razonamiento sociológico.Denis Baranger entrevista Além disso, o modq de pensar relacionaltrabalha por homologia,ou seja, pela compa-
Jean-ClaudePasseron. Revista Mexicana de Sociología,n. 2, abr./jun. 2004. ração e identificaçãodas semelhanças entre estruturas de espaços sociais diferentes e até,
GRIGNON,C.;PASSERON, J.-C.Le savant et lepopulaire:misérabilismeetpopulisme en sociologie aparentemente, muito distantes. Esta relação de relações "deve ser conquistada contra as
et en littérature. Paris: Gallirnard-Seuil,1989.
aparênciase construída por um verdadeirotrabalho de abstração e por meio da comparação
PASSERON, J.-C. De la pluralité théorique en sociologie:théorie de la connaissance sociologiqueet conscientementeoperada" (MSp,69). Consequentemente,é a comparação,preconizada por
théories sociologiques.Revue Européenne des SciencesSociales,v. 32, n. 99, p. 71-116,1994. Durkheim (1983) como método da prova na sociologia,que dá caução aos procedimentos
PASSERON, J.-C.Le raisonnementsociologique.Paris:Nathan, 1991[2.ed. Paris:AlbinMichel,2006]. técnicos e aos programas de investigaçãobaseados no pensamento relacional.
WEBER,M. Essaissur la théoriede la Science.Paris: LibrairiePlon, 1965. Bourdieuadota,desdemuitocedo,essalinhagemteórica,identificadatambémcomos traba-
lhosde ErwinPanofsky,de KurtLewin,dosformalistasrussos,de NorbertEliase,igualmente,de
1 ss.PATRONATO FerdinandSaussuree dosestruturalistas(OPS,65).Estaatitudemental,conformerevelao próprio
.......................................................................................................................
Bourdieu,estevena origemda criaçãoe empregosistemáticodo conceitode campode produção
Ver:Elites; Campo do poder material e simbólicacomo espaçoestruturado de relaçõesobjetivas.Bourdieucomeçacom a
análisedo processode autonomizaçãodo campointelectual,passa,em seguida,por homologia,
156. PEDAGOGIA RACIONAL ao estudo da gênesee estrutura do campo religioso(ETS),no qual, em oposiçãoà abordagem
······················································································································· interacionalistade MaxWeber,constróio camporeligiosocomoestrutura.de relaçõesobjetivas
Ver:Sistema de ensino capazde explicaras interaçõesqueWeberexplicavaa partir de tiposideais,e terminapor estender
essaatitudementale esseconceitoa diversosuniversosda produçãosimbólica,a saber,altacostura
1s1. PENSAMENTO
RELACIONAL (PC),literatura(RAp),filosofia(OPp),política(PCP),ciência(PBS),entreoutros,culminandocom
······················································································································· a construçãodo campomateriale simbólicodo mercadoimobiliário(SSE).Seao autorfoipossível
GilsonRicardode MedeirosPereira passar do campointelectualao mercadoimobiliário,foiporquea perspectivarelacionalpennite,
comoobservaBourdieu(OPS,67),"astransferênciasmetódicasde modelosbaseadosna hipótese
O modo de pensar relacional,ou pensamento relacional,defineuma atitude mental em de que existemhomologiasestruturaise funcionaisentretodosos campos".
ciência,marcada pela importância que concede às relações.A mais antiga referênciaa 'este Ao construir, a partir do modo de pensar relacional,os diferentes espaços de produção
modo de pensar é a de Ernst Cassirer,que em Substância eJunção, obra de 1910,defendea anteriormente mencionados, Bourdieu também construiu outro conceito, solidário ao de
288 PATRONATO
PENSAMENTO RELACIONAL 289
cam~o e a ele indissociável,qual seja, o conceitode habitus. Aproximando-seda gramática
gerativade Noam Chomsky,Bourdieufoi conduzidoa evidenciaras capacidadescriativasdos A versão norte-americana do livro de Bourdieuconstitui-seem edição ampliada da ori-
~gen:essociais,porém interpretando-as não como manifestaçõesde uma natureza humana ginal, Images d'Algérie (2003),contendo prefácio de Craig Calhoun, introdução de Franz
Imuta~el,ID_ª~como dis~osiçõesincorporadasde agentespráticos.Ao tomar para si o primado Schultheis (também incluindo entrevista realizada com o sociólogo em junho de 2001),
da razaopratica,produz_m tant~ uma teoria constructo-relacionalda prática (SP),aperfeiçoada comentário sobre as fotos de a~toria de Christine Frisinghellie relaçãodos 35 textos (livros,
ao longode t~~ª-a sua vida, assim comouma epistemologiacorrespondente(MPp). Uma das artigos acadêmicos,prefáciose intervençõesjornalísticas) que ele escreveusobre a Argélia.
grande_saqmsiçoesresult~nte da mobilizaçãopor Bourdieu dessa teoria é a explicitaçãodos Bourdieu chegou à Argélia em outubro de 1955,com 25 anos, para completar o serviço
mecamsmos ~e reproduçao das estruturas sociais e mentais em sociedades diferenciadas, militar. O envioao país africano foi,na realidade,uma puniçãopela sua oposiçãoà repressão
tal como realizada no estudo sobre o campo das "Grandes Écoles" (NE). que a França desencadeou contra sua então colônia, que lutava pela independência, numa
? ~odo de_pensar relacional conduziu Bourdieu, além disso, a descreveruma das mais sangrenta guerra revolucionária (1954-1962).Até meses antes de ser mobilizado ele se en-
notavei~~ropnedades ~os universos sociais, isto é, a relação de homologiaentre a estrutura contravalotado em Versalhes.Em 1956e 1957leu tudo o que pôde encontrar sobre a Argélia,
d~s.posiçoes,que constitui o espaçosocial,e a estrutura das atividadese bens, 0 espaçosim- terminou suas obrigaçõesmilitares, voltouà França, publicouSociologie de l'Algérie (1958)
b,oh~o.Nesseestu~o(~Dp),dotado de um enormeprotocoloempírico,além das mais variadas e voluntariamente retornou como professoruniversitário em Argel.
tecmcas de orgamzaçaode dados, uma preferênciasocial qualquer, a exemploda prática de A obra apresenta mais de 160fotostiradas por Bourdieuna Argéliaentre o fim dos anos
u~ esporte, da escolhade uma bebida ou do gostopela leitura, que parece intrínseca a deter- 1950e o início dos 1960,em plena agitaçãobélica e em momentoparticular de sua trajetória
m_madascla~~es_sociais, é apreendida como uma opção num universo de opçõesdisponíveis intelectual:sem se dar contaplenamente,estavase convertendoem cientistasocial,distancian-
e mterca~biaveis que c~nfiguram uma dada situação da oferta de bens e práticas possíveis do-sea passos largos de sua formaçãofilosóficarefinada.Na excelenteintrodução,Schultheis
nu~~ sociedadedeter_mmadae numa época determinada. Essa opção é feita a partir de uma fala que as fotografias - quase duas mil, muitas perdidas, outras sem negativos - ficaram
pos~çaono espaçoSOCial. T:~-se, portanto, um conjunto de posiçõessociaishomólogoa um guardadas em caixas empoeiradas durante 40 anos. Apenas algumas foram utilizadas por
co1:1unto d~tomadasde posiçao.A comparaçãosó é possívelentre sistemascujoscomponentes Bourdieu em seus livros - casos de Travai! et travailleurs en Algérie (com Alain Darbel
e_sta~ relacwnalmentedefinidos e, por sua vez, essas definiçõesrelacionaisconstituem dis- et al., 1963);Le déracinement: la crise de l'agriculture traditionnelle en Algérie (com
tmçoes e se~ar~çõesentre os componentes(indivíduos,instituições, gostos,classessociais, AbdelmalekSayad, 1964);Algérie 60: structures économiques et structures temporelles
etc.).A med~açaoentre ~ espaçosocial e o espaçosimbólicoé feita pelo habitus dos agentes, (1977)- e em artigos. As demais eram inéditas até a publicaçãode Images d'Algérie e das
que p~oporc10nama umdade entre as práticas e os bens - o estilo de vida dos indivíduos e exibiçõesque ocorreram no Institut du MondeArabe, em Paris (janeiro e novembrode 2003).
tambem, ~as class:s sociais.A habilidade de ver a diferençainscrita na própria estrutura d~ As fotografiasde Bourdieuforam tiradas, não raro, em várias situaçõesdramáticas, como
~spaçosocial,func10nandode modo dissimuladoe quase irreconhecívelcomo estilo de vida na região de Collo.Fotografaras pessoas era, entendia o pesquisador,uma maneira de dizer
ilustra a fertilidade heurística do modo de pensar relacional. ' a elas: "eu estou interessado em você, estou do seu lado. Irei ouvi-lo e testemunharei o que
você está vivenciando"(IA, 13).Taisfotos nos ajudam a entender melhor,para o caso argeli-
Referências no, as dimensões e consequênciasda situação econômicae da agitaçãosocial que afetavam
CASSIRER,E. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: crescentementesetoresinteiros da população do país, que se deparava com uma nova lógica,
Martins Fontes, 1994. com demandas totalmente flexíveis,que rompiam com a história e com os laços tradicionais
DURKHEIM,E. As regrasdo métodosociológico(1895).2. ed. São Paulo:Abril, 1983. que até então experimentavam (IA,4-5).Bourdieu explorae documenta a interdependência
entre as estruturas econômicase as estruturas temporais,interessando-sepela fenomenologia
158. PEQUENA BURGUESIA das estruturas emocionais,manifestas na análise das formas de sofrimento que resulta do
·············································································
·········································· conflitoentre as disposiçõesmentais e emocionais(ohabitus dos atoressociais)e as estruturas
Ver:Classesocial econômicase sociais da sociedadecolonial(IA, 3).
Olhando as fotosque documentam as abjetas condiçõese o sofrimentodo povo argelino,
bem como sua dignidade, graça e determinação, e lendo os excertosfundamentais da obra
159. P/CTURING ALGER/A
······································································ de Bourdieu que acompanham tais imagens, é possívelestabelecerum paralelo entre o fa-
·········································-······· zendeiro "desenraizado" da Cabila e o empregado desregulado e destruído dos dias atuais
Afrânio Mendes Catani
nas sociedades capitalistas. Basta comparar os testemunhos apresentados na obra coletiva
BOURDIEU;P. Picturing Algeria. Editado por Franz Schultheis e Christine Frisinghelli.NewYork: que ele organizou,A miséria do mundo, com aquelestranscritos nos livros sobre a Argélia,
ColumbiaUniversityPress, 2012. quarenta anos antes. É por esta razão que Bourdieu falou, sobre suas pesquisas argelinas, o
seguinte: "este é meu trabalho mais antigo e ao mesmo tempo o mais atual".
290 PEQUENA BURGUESIA
em que leva em conta essa faculdade de improvisação que não necessita ser recuperada pela uma das.vertentes críticas que derrubaram o predomínio da sociologia funcionalista norte-a-
consciência tética para operar eficazmente, o conceito de habitus traça os limites da liberdade mericana, a partir da década de 1960,tornando-se desde então referência para o entendimento
de ação e de controle simbólico da prática. da prática sociológica. . .
O conceito de habitus permite também passar da prática para as práticas e para seus Contra O empirismo e O convencionalismo- contra a dissociaçãoentre teona e pesqwsa, sua
prine:ípios de diferenciação. Nas sociedades de classe, os grupos de indivíduos diferem por representaçãocomo etapas sucessivaspredeterminadas e a limitação da epistemologiaclássicaà
suas práticas: hábitos alimentares, práticas de consumo, práticas culturais, eleitorais, etc. lógicada prova-, os autores querem transmitir "um sistema de hábitos intelectuais" q~e ~da-
Essas práticas estão fortemente ligadas entre si e constituem a manifestação do habitus de menta a ciênciasociológica,operando como princípios racionais de todo o processo de rnvestiga-
classe, como Bourdieu mostra em La distinction (1979). ção,ampliando, desse modo, a razão até a lógica da invenção. A ~oncepç~~supõe ~a ~dade
Enquanto sentido do jogo, o "senso prático" é também o que está em ação no encontro entre epistemológicaentre as ciências,que permite transferir o saber ep1stemologicoda~c1enc~as ,n~tu-
um habitus e um campo (cf. Le sens pratique). Com efeito, longe de se limitar unicamente rais para as ciênciashumanas, e a convergênciaepistemológicadas grandes te~nas so~1olog1cas
às práticas ritualizadas, a lógica da prática prevalece também nas atividades intelectuais e clássicas,em torno de uma teoriado conhecimentosociológico. Nessaperspectiva,mwtos textos
de criação. A aprendizagem prática desempenha um papel importante na preparação para epistemológicose teóricos, de filósofose de cientistas de diferentes áreas, compõe~ o :ºl~~ e
os ofícios artísticos (arte, música, dança), paralelamente à formação teórica que, aliás, nem devemser lidos junto com a exposiçãoprincipal, segirndo suas indicações,para a rntenonzaçao
sempre fornece os meios do controle simbólico da prática. Eis a razão pela qual o "projeto dessemodo de ver a lógica da produção de conhecimento racional do social.
criador", expressão extrema das teorias intencionalistas, é insuficiente para dar conta de uma Seguindo Canguilhem e Bachelard, a lógica da descoberta científica define-se como
obra como pretendia Sartre. O encontro entre o habitus do autor e o espaço dos possíveis que "polêmica incessante da razão" contra O erro, envolvendo a "vigilância epistemológica'', pela
o campo lhe oferece é um princípio explicativo muito mais poderoso que permite articular qual O pesquisador submete seus achados e instrumentos a "uma retificação metó~i~a per~~-
análise externa e interna das obras, com base em uma teoria da prática que enfatiza o modus -~~--~--i--=--• nente",e a sociologia do conhecimento, recurso essencial para esclarecer as cond1çoessoc1~1s
operandi ao invés do opus operatum, inclusive no caso de uma arte tão pouco ensinada de possibilidade do erro e do acerto. A definição de fato científico formulada na perspectiva
como a literatura (RP, 59-99). do racionalismo aplicado de Bachelard orienta O desenvolvimento da exposição dos autor_es.
Essa teoria da prática serve, assim, de fundamento a uma teoria geral da ação que vai Oprincipal obstáculo ao conhecimento sociológico é a familiarida~e com.º m~n~o so,CI_al,
desde a ação mais ritualizada até a mais inventiva, sem solução de continuidade. Teórico quegera tanto a sociologiaespontânea do senso comum, produtora de s1stemat1zaçoesiluso~ias
da prática, Bourdieu também empregou tais concepções na formação de seus alunos para a sobre O social e as próprias condições de sua credib_ilidade,quanto o senso comum erudito,
pesquisa, privilegiando a aprendizagem prática em relação ao ensino teórico (SAPIRO, 2004). que cede à tranquilizadora "explicação pelo simples", em uma relação ambígua com o grande
públicointelectual, alimentando o sentimentalismo do humanismo ingênuo (Nietzsche,~a~x).
Referências As técnicas de ruptura pela crítica das pré-noções (Durkheim) envolvem as defimç,o~s
BOURDIEU, P.Esquissed'une théorie de la pratique, précédé de Traisétudes d'ethnologiekabyle: provisórias, a estatística e a explicitação da filosofia do social incrustada no vocabulano
Le sens de l'honneur; La maison ou !e monde renversé;La parenté comme représentation et comme e na sintaxe da linguagem comum. A objetividade do conhecimento sociológico deve ser
volonté.Genebra:Droz, 1972.[Novaed. aum., Paris: Le Seuil,2000. (ColeçãoPoints Essais)]. conquistada contra a filosofia ingênua da ação. Sua condição primeira é o princípio da não
MAUSS,M. Les techniques du corps. ln: __ . Sociologieet anthropologie.Paris: PUF,1950. consciência:o sentido das ações pertence ao sistema completo de relações nas quais e pelas
SAPlRO,G.Laformationde l' habitus scientifique.ln: BOUVERESSE, J.;ROCHE,D. (Org.).La Liberté quais elas se realizam. Não são as representações dos sujeitos que conduzem ao princípio
par la connaissance.Paris: OdileJacob,2004. p. 317-325. explicativo da lógica das relações sociais; é, antes, a lógica objetiva de uma organização que
revela o princípio explicativo de seú funcionamento e das atitudes, opiniões e aspirações
166. PROFISSÃO DESOCIÓLOGO (A):PRELIMINARES EPISTEMOLÓGICAS de seus membros. É a crítica ao subjetivismo das filosofias da escolha que situa a ênfase
(Le métier de socio!ogue: Préa/ab!esépistémologiques) dos autores na necessidade de objetivação, pois certamente a construção do sistema de
················································--········································--·················--························
..--·•··.
..----·--··············----··--· relações visa explicar tanto a objetivação das subjetividades quanto a interiorização da
Sylvia GemignaniGarcia objetividade, articulando estrutura e ação. A ruptura, que põe em questão os fundamentos
das tradições teóricas consagradas segundo um desenvolvimento histórico descon_tínu~da
BOURDIEU,P; CHAMBOREDON, J.-C.A profissão de sociólogo:preliminares epistemológicas, razão, permite revelar a inconsistência da perspectiva de Parsons, que buscou sm~~t~zar
Petrópolis,RJ:Vozes,1999. ~s tradições em uma teoria universal dos sistemas sociais. Por outro lado, contra o h1p~-
rempirismo pontilhista", as grandes teorias clássicas fornecem os fundamentos da teo_na
Publicado no Brasil em 1999e tendo o título corrigido em edições posteriores para Ofício do conhecimento do social que rege as l'eorias parciais (limitadas a uma ordem defimda
de sociólogo:metodologiada pesquisa na sociologia,este livro representa exemplarmente de fatos), funcionando como princípio unificador do discurso sociológico.
298 PROFISSÃO DE SOCIÓLOGO (A): PRELIMINARES EPISTEMOLÓGICAS PROFISSÃO DE SOCIÓLOGO (A): PRELIM_INARES~PI_ST~MOLÓ~ICAS 299
(Le métier de sociologue: Préalab/es épistémologiques) (Le métier de sociologue: Prealables ep1stemolog1ques)
O "dogma da imaculada percepção" (Nietzsche) do hiperempirismo, favorecidopela Situandoas oposiçõesepistemológicasno sistema de posiçõesque relacionaminstituições e
aparência de rigor da codificaçãodas regras técnicas de utilização das técnicas, deturpa a gruposem um campo disciplinar,é possívelidentificaro horizonte de possibilidadesde cada
reflexãometodológicaem doutrina dos preceitos tecnológicos,enfatizando a manipulação pesquisador,segundo suas posiçõesobjetivasno campo e seus enraizamentos sociais, para
de categorias constituídas e ignorando as operações pelas quais elas foram constituídas. avancarna superação das várias formas de etnocentrismo,em direção à institucionalização
Essa renúncia ao objeto científico produz "meros artefatos" - gravações, questionários, davi~ância na sociologia,ou sej~,da "redecontínua de crítica"(Polanyi)capazde alimentar
entrevistas, medidas - que ora impõem aos informantes as categorias impensadas do a autonomizaçãoda razão sociológica.
pesquisador, ora consagram as categorias dos informantes como explicação do real, ora
confundem formalização (de resto, recurso profícuo de controle, contanto que utilizado
167. PROJETO
controladamente) com valor explicativo. ·······················································································································
Esses erros são retificados quando se define uma ciência por meio das relações concei-
Ver: Conatus
tuais entre os problemas que formula (Weber).Diversamente da aparência pré-construída
pela percepção, o objeto científico é construído em função de uma problemática teórica
que relaciona aspectos conscientementeselecionadosda realidade - como nos tipos ideais 168. PROPOS
SURLECHAMPPOLITIQUE
·······················································································································
weberianos,"ficçõescoerentes"que guiam a construção de hipóteses,enquanto construções Igor Gastal Grill
próximas do real (diversamente dos modelos miméticos, que reproduzem fenômenosde
modo aproximativo,limitando-se às semelhançasexteriores).Assim, a pesquisa consistede BOURDIEU,P.Propos sur le champ politique. Lyon:Presses Universitairesde Lyon,2000.
uma abstração que constrói as relações que definem um objeto,rompendo com afinidades
aparentes para propor analogias desconhecidas (modelosanalógicos),das quais depende, "Comopensar a política sem pensar politicamente?"Indagaçãodesafiadoraproposta por
em geral, toda invenção científica e, especificamente,a comparação sociológica,para for- PierreBourdieu e que pode orientar a leitura deste livro compostopor discussõese nuances
mular os princípios ocultos que permitem descrever, explicar e prever o funcionamento instigantes em torno de uma temática que parece sempre fadada a produzir obstáculos de
das realidades que investigam. diferentes ordens. Além de artigos sobre a "política", ganham destaque,a conferência de
Nada do que foi dito supõe uma ordem cronológicade um cicloexperimental composto Bourdieusobre "O campo político" e a entrevista que concedeu(datam de 11de fevereirode
de fasessucessivas.A hierarquia dos atos epistemológicosé de ordem lógica,pois o processo 1999),ambas conduzidaspor PhilippeFritsch,que assina o texto introdutório e ainda propõe,
todo de investigaçãoconstitui um "procedimentounitário". O racionalismoaplicadorompe nas páginas finais,uma bibliografiacom os "principaistrabalhos de Bourdieusobre as ques-
com a epistemologiaespontânea ao inverter a relação entre teoria e experiência,tornando tões de política".Sublinhada a intervenção de Fritsch, cabe ressaltar que a efetivaçãodesse
inteligívelque, na observaçãoou na experimentação,o procedimentoé tanto mais científico projetoparece ter sido tributária de aspectospróprios a uma etapa do itinerário de Bourdieu,
quantomais sistemáticosos princípiosteóricosque o guiam.A experimentaçãobem-sucedida da sua produção e dos "combates"que travou em um contexto histórico específico.Neste
confirma ou desmente um sistema de hipóteses que confere significaçãoaos fatos como"os casoevidenciam-se,notadamente, as ênfasesatinentes às relaçõesentre os campos político,
termos organizados de uma série" (Panofsky).É pela sistematicidadedo conjunto que tudo jornalístico e das ciências sociais, bem como à função política dos intelectuais. Conjuga-se
ganha sentido:fora dele, cada hipótese, dado ou fato isolado é insignificante(Duhem).Para a isso a possibilidadede atentar para o trabalho de formulaçãode um referencialanalítico
isso,o conjuntoprecisaser continuamentecorrigido,já queum dos méritosda provaé provocar a partir da problematizaçãodas condiçõesde apreensão do domínio especializadoda vida
certa dúvida acercade seu resultado (Russell).Assim,os resultadospositivosou negativosda socialem pauta. Ou seja, encontram-se aqui as bases do programa de pesquisaspara ponde-
pesquisa são, principalmente,um "ponto de reflexão"(Brunschvicg). rar sobre os condicionantessociais que configuram o microcosmoda política, os processos
Essa dialética de ajuste entre dados (fidelidadeao real) e categorias de apreensão dos de profissionalizaçãointervenientes,a constituiçãode regras específicasde funcionamento,
dados (coerênciateórica) torna-se visível a partir do ponto central da encruzilhada entre as condições de afirmação de determinadas competênciaspara o trabalho de mobilização
o realismo e o idealismo, perspectiva do racionalismo aplicado que desvela a comple- políticae as múltiplasestratégiasconcorrenciaisde imposiçãode princípiosde visão e divisão
mentaridade sistêmica dos opostos aparentes (tal como mostra a análise das afinidades do mundo social. Não por acaso, a essa elucidaçãodos entraves decorrentes das ilusões de
entre positivismo e intuicionismo), lugar da prática científica capaz de "superar em ato" uma "compreensãoimediata" da política corresponderam adesões e reações em universos
as oposiçõesentre as quais oscila uma sociologiasubmetida a uma imagem distorcida das acadêmicos,midiáticos, militantes e intelectuais.
ciências naturais.
Sem ser uma ciência de exceção,a sociologiaexige particularmente a ruptura, dada a
interpenetração entre "a cidadelaerudita" e a sociedademundana. Por isso a crítica episte-
mológica.depende também da análise das condiçõeshistóricas e sociais do erro e do acerto.
PROPOS SUR LE CHAMP POL/TIQUE 301
300 PROFISSÃO DE SOCIÓLOGO (A): PRELIMINARES EPISTEMOLÓGICAS
(Le métier de sociologue: Préa/ables épistémologiques)
110. RAZÕESPRÁTICAS:
SOBRE
A TEORIADAAÇÃO
169. QUESTÕES
DESOCIOLOGIA (Raisons pratiques: sur la théorie de /'action)
(Questions de socio!ogie)
. ··································································································································· Zaia Brandão
Cristina Carta Cardosode Medeiros
BOURDIEU,P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP:Papirus, 1996.
BOURDIEU,P. Questões de sociologia.Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.
Noprefácioà ediçãobrasileirade 1996(olivrofoipublicadooriginalmenteem 1994),Bourdieu
Comoconfirmadopelo autor no "Prólogo",Questõesde sociologiatraz a compilaçãode assinalaque o conjuntode textos apresentadosno livro tem o sentidode um.retornoreflexivo
transcrições orais a partir de entrevistas, intervenções em colóquios,conferênciase comu- sobreo conhecimentoacumuladoa partir das inúmeraspesquisasque desenvolveu.Trata-se,
nicaçõesem congressos,além de palestras em universidadese em instituições de pesquisa. portanto,de uma tentativade síntesedas questõesque o ajudarama elaborarconceitoscentrais
Destinadosa públicosnão especializados,essesdiscursos,em formamais simplificada,teriam da teoria da ação que atravessa boa parte de sua obra. Bourdieu adverte aos pesquisadores
a intenção de esclarecertemas, noçõese conceitosque já haviam sido tratados de forma mais sobreo equívocoque seria desenvolveruma leitura puramenteteórica do conjuntodos textos.
rigorosa e completaem outros trabalhos (artigos e obras) de Bourdieu.Tal preocupaçãoem Esclareceque os conceitospresentesna obra, na maioria das vezes,foram desenvolvidospara
decifrar e desvelarsempre esteveclara ao longoda trajetória desse sociólogo,convencidode resolverproblemas inseparavelmenteempíricose teóricos.Enfatizaainda a centralidadeda
que a sociologia,ciênciade acessibilidadeexigida,"não valeria uma hora de esforçose fosse perspectivarelacionalno âmbitoda sociologia,questionaastendênciassubstancialistas,comuns
um saber de especialistasreservado aos especialistas"(QS,7). Auxiliado pelo formato oral nas ciênciassociais,quando tratam como "fatos"- situações,posições,processos,etc. - aos
que aproxima autor e espectador e que, pela urgência e linearidade, poderia imprimir um quaissó se chegapela percepçãodas relaçõesque mantêm comoutros fenômenossociais.Para
ritmo de exposiçãomais dinâmico em que se acompanharia a construçãode seu pensamento o autor,as relaçõesobjetivasnão são percebidasdiretamente,mas precisamser (re)construídas
e suas argumentações,adaptadasao públicoao qual se dirige,Bourdieutrabalha váriostemas: por um rigorosotrabalho científicode articulaçãoentre os fenômenos.
da alta costura ao esporte, da sociologiada arte às pesquisas de opinião pública e defendeo Razõespráticasofereceaos leitorespalestras/textosque Bourdieurealizouno estrangeiroe
formatocrítico da sociologiapor sua função de desvelamentodas formas de dominaçãoe das no Collegede France. Entendoque o conjuntorepresentao aspectomais originalda construção
lógicas da ordem social. Apresenta ainda, em uma configuraçãoque se poderia classificar sociológicaempreendidapelo autor - ou seja,a hipótesede que a maioriadas açõesdos agentes
como didática, algumas propriedades dos campos, por considerar tal noção como dotada sociaistem por fundamentorazõespráticas.Paraele,asrazõespráticassãoderivadasdo habitus-
de grande força operacional.Os textos trazem também referênciasàs noções de habitus e disposiçõespara ação,fortementeincorporadaspelosagentesem suastrajetóriassociais- e resul-
de algumas modalidades de capitais.Em vários extratos Bourdieu aproveitapara esclarecer tam da posiçãosocial·dosagentese de suaspráticasusuais.No processode socialização(familiar,
algunspressupostosde sua abordagemsociológicaque foram criticadosou mal interpretados, escolar,profissional,etc.)osagentes/atores
adquiremformasdeagirajustadasàs exigências(regras)
podendoser mais bem exploradose esclarecidosa partir do estímuloprovocadopelasquestões doscampossociaisquecostumamfrequentare,por isso,fazemo queé esperadoem determinadas
dos entrevistadoresou do públicocom o qual dialoga.A maioria dos textos selecionadospara situações(circunstâncias/contexto),sem queprecisemrecorrerà razão(raciocínio)para agir con-
o livro apresenta,ao final, nota explicativa,onde podem ser obtidas, em outros trabalhos de formeas regras.Osconceitos"jogo","regrà',"costume","hábito","aprendizagem"(Wittgenstein)
Bourdieu,explicaçõescomplementaresdos temas tratados nas comunicaçõesorais. foramimportantesreferênciaspara o autorna elaboraçãodo núcleoconceitua!de sua obra.
REFLEXIVIDADE 305
304 RECONVERSÃO DE CAPITAIS
o quarto restante. Quais seriam então as condiçõessociais que levam a que nos detenhamos deliberadas ou impostas, ou ainda pelas inÍciativasdeliberadasde conversãodo habitus no
sobre nossas práticas? (MAUGER, 2009, p. 61-77). interior de "instituições totais" (asilos,prisões, seitas religiosas,etc.).
Para começar,podemossupor que a experiênciado mundo "comoalgoevidente",associada De maneira geral, quais são as condiçõessociaissuscetíveisde produzir_"frac~ssados".d~
ao senso prático que funciona sem obstáculos,é desigualmentedistribuída no espaçosocial. habitus? "O problema est~ no fato de que, no essencial,a ordem estabel~cidan~o constitm
Assim, segundo Bourdieu, "é provávelque os que se encontram 'em seu lugar' no mundo problema",diziaBourdieu(MP,217)."Nuncadeixeide me espantar,escreVIaele,diante do qu~
socialpossam mais e mais completamentese entregar ou confiar em suas disposições[...] do poderiaser designadocomoo paradoxoda doxa: o fatode quea ordemdo mundotal co~o :la e,
que os que ocupam posições em falso, tais como os arrivistas ou os desclassificados"(MP, com suas permissõese suas proibições,no sentidoprópriocomono figurado,suas obnga?oese
198).De maneira geral,pode-se aventar a hipótese de que o ajuste das disposiçõesàs posições suas sanções,sejagrosso modo respeitada,que não haja um maior número de transgres~oesou
óu do habitus interiorizados às situações defrontadas seja provávelnos dois polos opostos de subversões,de delitose "loucuras"(bastapensar na extraordináriacoordenaçãode milh~res
do espaço social - nas classes dominantes e nas classes dominadas - e que o desajuste e a de disposições_ ou de vontades- que se instala na circulaçãoauto1,11~bilístic~, durante cmco
substituição da reflexividadeao senso prático sejam muito mais prováveisnas regiõesinter- minutos,na Praça da Bastilhaou da Concorde,em Paris).Ou,o que e amda mais surpreenden-
mediárias desse espaço (as profissões"intermediárias" da pequena burguesia).Parece, com
efeito,que habitus burgueses e habitus populares confirmam duas propriedades genéricas
te, que a ordem estabelecida,com seus privilégiose suas injustiças,_ s: perpe:11e.
facilidade,com exceçãode alguns acidenteshistóricos,e que as mais mtole:aveiscondiçoes
existênciapossam ser tidas, com tanta frequência,como aceitáveisou, ate :11esmo,na~ra_is
~=
com t~~anha
REFLEXIVIDADE 30 7
306 REFLEXIVIDADE
"O reconhecimentoda legitimidadenão é, como acreditaWeber,um ato livre da consciência ações (no caso,de reproduçãosocial)cujaslógicasnão se ajustam necessariamentea normas
clara" (MP,215).A ideologiadominante concebidacomo empreendimentode racionalização explícitasou implícitas.Em muitos casos,inclusive,as práticas sociaisraramente condizem
(ou de "justificação")dos privilégios,das injustiças, das desigualdadessociais, situa-se na com as regras concebidas como norma geral ou mesmo como conduta exemplar. O casa-
ordem das representações,portanto, da "consciência".Da doxa à ideologiadominante, há mento com a prima paralela patrilinear na sociedade béarnaise fornece bom exemplo de
lugar para a reflexividade. uma estratégia matrimo~ial corrente em desacordocom as regras oficiaisde parentesco.A
Finalmente,a prolongaçãogeneralizadadas escolaridadesé outra razãopara universalizar noção bourdieusianade estratégia aparece assim como forma de objetivar cientificamente
o privilégioda reflexividade.Alémda quebra- ao menosrelativa- das divisõessociaisque ela as recorrências nas formas de ação que, independentemente de seu acordo com as regras,
. implica e, por isso mesmo, a percepçãoinevitáveldas desigualdadeseconômicase culturais, somente são inteligíveisà luz dos diferentesinteressesdos agentes,tais como a manutenção
além do acúmulo de instrumentos de expressãoe da aprendizagemda transcrição do ethos biológicada linhagem ou a garantia de transmissão do patrimônio.
em logos,a escolarizaçãoprolongadaimplicanuma aprendizagemda condiçãoescolásticae
na interiorização de disposiçõesreflexivasque facilitam a passagemdo distanciamento aci-
·174. REGRAS
DAARTE(AS):GÊNESE
E ESTRUTURA
DO CAMPOLITERÁRIO
dental a uma disposiçãopermanente: "Estandolivre da sanção direta do real, o aprendizado
(Les rêgles de /'art: genêse et structure du champ littéraire)
escolar [... ], escreveBourdieu, é a ocasião de adquirir, de lambujem, por força do hábito, a
..--·---·
····································································--··--····--········----········--···--·······----·····----··---
disposiçãopermanentepara operar o distanciamentodo real diretamentepercebido,condição GiseleSapiro
da maioria das construçõessimbólicas"(MP,28).
BOURDIEU,P. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário.São Paulo: Companhia
Referências
das Letras, 1996.
BOLTANSKI, L.;THÉVENO, L. De lajusti.fication:leséconomiesde lagrandeur.Paris:Gallirnard,1991.
BOURDIEU,P. De la dornination rnasculine.Le Monde Diplomatique, p. 24, aout 1998. Esse livro, publicado em 1992,analisa o modo de funcionamento do campo literário. A
BOUVERESSE, J.Bourdieu, savant et politique. Marseille:Agone,2004. primeira parte traça o processohistóricode autonomizaçãodo campoliterário no séculoXIX
BOUVERESSE, J.Regles,dispositions et habitus. Critique, n. 579/580,aout-sept. 1995. e, mais especificamente,sob o Segundo Império francês (1852-1870),na época de Flaubert
CHAUVIRÉ,C.Desphilosopheslisent Bourdieu.Bourdieu/Wittgenstein:la forcede l' habitus. Critique, e de Baudelaire.A segunda parte propõe os alicercesde uma ciência das obras, enquanto a
n. 579/580,aout-sept. 1995. terceira se concentra nas condiçõessociais da recepçãoestética.
GARFINKEL,H. Recherchesen ethnométhodologie (1967).Paris: PUF,2007. Bourdieu começoua trabalhar sobre o campo literário desde a década de 1960,com seu
MAUGER,G. Sens pratique et conditions sociales de possibilité de la pensée "pensante". Cités, artigo "Lemarché des biens symboliques"(1971).A pesquisasobreFlauberttoma forma com
Philosophie,Politique, Histoire, n. 38, p. 61-77,2009. ''L'Inventionde la vie d'artiste" (1975),enquanto ele desenvolvesua teoria do campo literário
MAUGER,G.Sur la violencesyrnbolique.ln: MÜLLER,H.-P.;SINTOMER,Y.(Org.).PierreBourdieu, em vários textos que figuram na obra Questions de sociologie(1980).O livro reúne textos
théorie et pratique. Paris: La Découverte,2006. p. 84-100. de diferentesperíodos (dos anos 1960ao início da década de 1990)em versões amplamente
retrabalhadas e sob títulos, às vezes,diferentes(por exemplo,o capítulointitulado "Lemarché
des biens symboliques"não retoma o artigo anteriormente publicado com esse título, mas
173. REGRA
·······················································································································
sim aqueleoriginalmente intitulado "Laproduction de la croyance":de 1977).
ErnestoSeidl
As regrasda arteapresenta,à guisa de prólogo,uma análisede L'Educationsentimentale
em que Bourdieu mostra que essa obra pode ser lida como uma autosocioanáliseelaborada
Em boa medida o esquemaconceituaide Pierre Bourdieudesenvolveu-secom base numa por Flaubert.Esse estudo aprofundadotraz à luz a estrutura oculta do livro que opõe os dois
percepçãodo mundosociale das práticasquerejeitaa noçãode regra,entendidacomo"princípio polos do campo do poder, ou seja, o polo da arte e o da política (simbolizadopelo Sr.Arnoux,
de tipojurídicoou quasejurídicomais ou menosconscientementeproduzidoe controladopelos 0 marchand de arte), por um lado e, por outro, o polo da política e dos negócios(encarnado
agentes".Ateoriada práticade Bourdieuopõe-seem especialaoformalismooujuridismode teorias pelos Dambreuse). O protagonista do romance, Frédéric Moreau, herdeiro que se recusa a
segundoas quaisa açãosocialé fruto da obediênciaexclusivaa regras,codificadasem leisou não. herdar a herança familiar sem romper n:almente com seu meio, encontra-se dividido entre
Nessesentido,propõequemesmoem sociedadesaltamentecodificadas,reguladasoficialmente por esses universos. Incapaz de fazer escolhas,como é ilustrado por suas relaçõesamorosas, ele
normase leis,a açãosocialé principalmenteresultadodo habitus,princípiogeradorque orienta exemplificaa indeterminaçãosocial- uma das possibilidadesque ameaçavaFlaubert em sua
a relaçãodos agentescom o mundo socialpor meiode um sentidopráticoirredutívelàs regras. juventude, se ele não tivesse optado de corpo e alma pela literatura. Com seu personagem,o
Assim, a observação de regularidades em determinadas práticas, como nas alianças escritorcompartilhauma ambivalênciaem relaçãoa todos aquelesque gravitamno campo do
matrimoniais do campesinato do Béarn na França, não significa obediência a regras, mas poder. Para Bourdieu,a tentativade controlar os efeitosincontroláveisdessaambivalênciae a
O argumentodialogacomas teoriasclássicassobreo poderpropostaspor Marx,Durkheim de propriedade; a instituição escolar,notadamente a organizaçãodo sistema de ensino e as
e Weber.Do primeiro,Bourdieuretém a ideia de que reproduçãosocialrefere-seà reprodução formas de obtençãoe valorizaçãodo diploma,etc. A importância desses mecanismosreside
das relaçõesentre as classes.Por reproduçãosocial, entende-sea reprodução das relaçõesde no fato de que são eles que definirão tanto os custos do investimentofamiliar quanto o lucro
força que estruturam as relaçõesentre os grupos sociais. A partir de Durkheim, acrescenta obtidopelo grupo em retorno.
que a reprodução se dá também pela reprodução do sentido, que, contra Durkheim, é vista Essa análise comparadaforo que permitiu a Bourdieurevelara importânciaque o sistema
como o resultado de uma luta entre as classespara imposição do sentido legítimo.Por fim, de ensino e, logo,o capitalcultural, havia assumidonas estratégiasde reproduçãodos grupos
propõe que a eficáciado reforço simbólicoàs relações de dominação reside, por um lado, a dominantes nas sociedades altamente diferenciadas onde se desenvolveuessa instituição
partir de Weber,no reconhecimento,pelos dominados, da legitimidade da dominação,um particular, o Estado burocratizado. Tal importância deriva diretamente do longo processo
dos resultados da luta pela imposiçãodo sentido e, por outro, para além de Webere de novo quedeu origemà emergênciado estado,caracterizado~ornoum "pr~~essode c~ncentra~ão_de
com Marx, no desconhecimentodas relaçõesde força que fundam tal legitimidade. diferentesespéciesde capital",particularmente o capital de forçafIS1ca,o capital economico
Para além disso, o argumento recusa a alternativa entre estruturalismo e interacionismo e, por fim, 0 capital cultural (BouRDIEU, 1993,p. 51).Trata-seaí de dinâmicas estreitamente
ou, mais precisamente,entre "saberse os sinais de submissãoque os subordinadosoferecem relacionadas.A concentraçãodo capital de força física, que correspondeao surgimento pro-
continuamente a seus superiores fazem e refazem continuamente, sem cessar, a relaçãode gressivodo exércitoe da polícia,dependeda concentraçãode capitalec_onô:11ico, co~cretizada
dominação ou se, ao inverso,a relaçãoobjetivade dominação impõe os sinais de submissão" numa estrutura fiscalcomplexa,que, por sua vez, dependede um capital mformacional- de
(BoURDIEU, 1994,p. 3).Supõe,então, que toda sociedadeexisteno tempo porque está apoiada que O capital cultural é um tipo particular - para ser gerida. A c~ndição de_sucesso de~sa
sobre "a relaçãoentre dois princípios dinâmicos, desigualmenteimportantes segundo a so- monopolizaçãoprogressivareside na concentração de um outro tipo de capital - o capital
ciedadeem questão.Um delesé inscrito nas estruturas objetivas[...] e outro, nas disposições simbólico objetivado, presente, por exemplo na prerrogativa, apropriada pelo Estado, da
[queos agentesapresentamcom relação]à reprodução"(BouRDIEU, 1994,p. 3).A reprodução nomeaçãoe da certificação. . · _ .
social é, nessa lógica, o resultado das estratégiasde reproduçãoque os indivíduos imple- Essas mudanças provocam uma transformação nas estratégias de reproduçao.O cresci-
mentam a partir do encontro entre essas duas dimensões. mentoem importânciado capitalcultural,por exemplo,correspondeà passagemde uma lógica
Asfamiliassãoas autorasdessasestratégias,quepodemse dar em domíniosmuitodistintos. dinástica, fundada num modo de reprodução familiar, a uma lógica burocrática, fundada
Elaspodemganhar a forma de um "investimentobiológico",comoé o casodaquelasque dizem sobreum modo de reprodução"comcomponenteescolar"(BoURDIEU, 1994,p.10).O processo
respeitoà fecundidadee que guiam as decisõesde se ter um maior ou menor número de filhos. de construção do Estado é, ao mesmo tempo, um processode desnaturalizaçãoassociadoao
Podemtambémestar associadasa estratégiassucessórias,queorientam,por exemplo,a definição rompimento progressivocom as lealdadesde base familiar. Com a desvalorização~os laços
do herdeiro,cujo objetivoé evitar grandes perdas no processode transmissão do patrimônio. familiares, o diploma deixa de ser "um atributo estatutário" para se tornar um bilhete de
Podemse apresentartambémcomoestratégiaseducativase/oucomoestratégiasde investimento entrada (BouRDIEU, 1994,p. 10).Estão reunidas, assim, as condiçõespara que o sistema de
econômico.Podem,igualmente,assumira formade investimentossociais- para estabelecere/ou ensino possa se tornar um elementofundamental dos processosde reprodução social.
cultivarrelaçõesquepossamsermobilizadasem algummomento.Podemser,por fim,estratégias O modo de reprodução com componenteescolar opera a partir de uma lógicaestatística:
de investimentosimbólico,que visam conservarou aumentar o capitalde reconhecimento.As "a escola só pode contribuir para a reprodução de uma classe (no sentido lógico do termo)
estratégiassãopensadascomoum sistema.Issosignificaquea maiorou menorênfaseatribuídaa se sacrifica alguns dos seus membros que poderiam ser poupados se estivesseem vigor um
uma pode ser efeitode operaçõesde compensaçãocomrelaçãoa outra.Estratégiasmatrimoniais modo de reproduçãomais controladopela família" (BouRDIEU, P:
1994, 10).Além disso.'ela
podemcompensarestratégiasde fecundidademalsucedidas,assimcomoestratégiasde investi- só pode desempenhar essa função se as crianças menos providas de capital cultural esteJam,
mentoeconômicopodem compensarestratégiaseducativasquenão deram certo. e não por acaso, mais inclinadas à autosseleção.Por conseguinte,o sistema escolar só pode
Apenasuma "análise histórica das estratégias que, em contextosmuito diferentes,agen- desempenhar suas funções de reprodução enquanto essa função for dissimulada.
tes [sociais]muito diferentes implementam" para garantir a continuidade que sua posição Vê-se, dessa maneira, como afirma mais explicitamente Passeron (1986),que o modo
dominante oferece;portanto, condiçõespara se compreendercomose dá a reproduçãosocial de reprodução com componenteescolar só pode funcionar enquanto a ilusão meritocrática
(BouRDIEU, 1994,p. 5). Analisar um sistema de estratégias exige,por um lado, examinar a estiver produzindo plenamente seus efeitossociais e simbólicos.
composiçãodo patrimônio que está sendo transmitido, descrevendomuito precisamenteo
peso relativo nesse patrimônio das diferentes espéciesde capital - cultural ou econômico, Referências
sociale simbólico,por exemplo.Por outro, é precisolevar em conta a dimensão institucional BOURDIEU,P. Esprits d'État. ARSS, v. 96-97,p. 49-62, 1993.
que enquadra tais estratégias.Bourdieurefere-sea essa dimensão como o "estadodos meca- BOURDIEU,P. Stratégies de reproduction et modes de domination. ARSS, v. 105,p. 3-12, 1994.
nismos de reprodução"num momento dado. Tais mecanismossão, entre outros, o mercado, J.-C.Hegelou le passager clandestin.La reproduction social et l'Histoire. Esprit, p. 63-81,
PASSERON,
em especial,o mercado de trabalho; o direito, principalmente o direito de herança e as leis juin 1986.
REPRODUÇÃO 315
314 REPRODUÇÃO
177. REPRODUÇÃO
(A):ELEMENTOS
PARAUMATEORIA
DOSISTEMA
DEENSINO faculdadesrealizadano Centre de Sociologie Européenne sob a direçãode Bourdieue publi-
cada em Les héritiersem 1964.A demonstraçãohavia sido feitatambém em outros países:nos
(La reproduction: éléments pour une théorie du systeme d'enseignement)
EstadosUnidos,peloRelatórioColernan,encomendadopeloU.S.OfficeofEducationem obediên-
cia ao CivilRightsAct de 1964e publicadoem 1966;na Grã-Bretanha,uma série de relatórios
Ana Maria Fonsecade Almeida
J encomendadospor órgãosdo governo- EarlyLeaving(1954),Crowther(1959),Robbins(1963).
BOURDIEU,P; PASSERON, J.-C.A reprodução:elementospara uma teoria do sistema de ensino. A contribuição particular do livro encontra-se na ambição em "tratar corno um objeto
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975. sociológicoaquilo que se apresentavano debatepúblico cornoum nó inextrincável de proble-
mas de política pedagógica" (PASSERON, 2007).Além disso, ele marca a posição singular do
Livroescrito por Pierre Bourdieue Jean-ClaudePasseron,A reproduçãoapresentaexten- grupo de pesquisadores reunidos no Centre de Sociologie Européenne frente aos debates
sivamente a teoria da violência simbólica, hipótese construída para explicar a contribuição sobre a reprodução social que mobilizavamautores de inspiração marxista. O livro apre~enta
da escola para a reprodução social. Publicado na França em 1970e traduzido no Brasil pela urna hipótese alternativa à que Althusser vinha desenvolvendoem seu seminário na ~cole
primeira vez em 1975,apresenta as conclusõesparciais de um percurso coletivode pesquisa Normale Supérieure, condensada no artigo "Idéologie et appareils idéologiques d'E:a~',
sobre o sistema de ensino que, desenvolvidodesde o início da década de 1960no Centre de também publicadoem 1970.Por fim, o livro se alimenta da decepçãodos autores com a eleiçao
Sociologie Européenne, havia dado origem a vários artigos e livros, entre os quais, Les do Plano Langevin-Walloncorno orientador do projeto de reforma educacionalda esquerda.
héritiers (1964). Essas rupturas são expressas no livro em diferentes níveis.'Em termos formais, elas
A reproduçãoé fruto de um contextoparticular que colocoua educaçãoescolarna linha de aparecem na concisão brutal do título, na ambiguidade da epígrafe, cuja reprodução do
frentedos debatesacadêmicose políticos.Por um lado,a derrota na SegundaGuerraMundiale o poema "Le pélican", de Robert Desnos, parece propor a revolução ("o pelicano de Jo~athan
lançamentodo SputnikpelaUniãoSoviéticaem 1957,em plenaguerra fria, alimentavana França õe um ovo de onde sai um outro pelicano que, por sua vez, põe um ovo de onde sai outro
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um discursotecnocráticosobreo rendimentoescolar.Por outro, crescia,desdeo iníciodo século pelicano e isso pode continuar por muito tempo se não se fizer a~tes urna omelete '.mas a
XX,a percepçãodas desigualdadeseducacionaiscornoum graveproblema social.Decorrente, partir de um poeta cuja notoriedade deriva também do seu rompimento com o movimento
pelo menos em parte, das transformaçõesna concepçãode justiça socialadvindas da revolução surrealista no momento em que este se aproxima do partido comunista, no final dos anos
russa, essapercepçãoera aguçadapelaspressõesoriginadasdas mudançasdemográficaspor que 1920.Finalmente, mas não menos importante, elas aparecem também n'o formato do livro,
passavaa sociedadefrancesano pós-guerra,em especiala chegadada geraçãodo baby boomaos composto por duas partes muito desiguais. A primeira reúne urna série ~e "proposiç?_es"a
anos finais do ensino primário, ao longoda década de 1950,forçandoo aumento de matrículas que se seguem observações complementares, "escólios",convidando o leitor a associa-lo a
no ensinosecundário.Elaera alimentadatambém por pressõesdas familiasdos grupos médios certos tratados filosóficos,apenas para desfazer essa impressão na segunda parte, quando
pelo alongamentoda escolarizaçãodos seus filhos, num contexto em que o desenvolvimento resultados substantivos de pesquisa empírica são apresentados como apoio e condição das
do setor terciário e o avanço da tecnologiapermitiam que as credenciaisescolarespudessem afirmações adiantadas anteriormente. .
ser vistas cornobilhetes de entrada para ocupaçõesmais rentáveis. Em termos substantivos,o livro desenvolvea teoria da violênciasimbólicacomo teona da
Tudo isso ajuda a explicar a difusão de um sentimento de "crise da educação" que a am- açãopedagógica,marcandourna ruptura substantivacom"todasas representaçõesespontâne~ e
biguidade das reformas emanadas do gaullisrno não ajudava a superar, na medida em que todasas concepçõesespontaneístasda açãopedagógicacomoaçãonãoviolenta''(LR,11).Focaliza
buscava ampliar simultaneamente a formação de elites técnicas e científicas e o acesso ao fundamentalmenteo exercícioda açãopedagógicae os arranjosinstitucionaisque permitem tal
ensino secundário e superior aos grupos médios até então excluídosdas trajetórias escolares exercícioem contraste,por exemplo,comLa noblessed 'État,queexaminaaquelesque a sofrem.
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de longa duração. Tais reformas deparavam-se com a oposição dos professores,sindicatos e A primeira parte do livro apresenta,ainda segundo os autores,o resultado de um es orço
partidos de esquerda. Esses últimos, na ausência de um projeto próprio, apoiavam-sesobre para constituir, num sistema passívelde controlelógico,por um lado, proposiçõesq~e foram
o plano de reforma elaborado por dois eminentes intelectuais ligados ao Partido Comunista construídas para e pelas próprias operaçõesde pesquisaou que a~a~ecer~~comologica~ente
Francês, Paul Langevin e Henri Wallon, ao final da ocupação nazista, segundo o qual a "de- necessáriaspara fundamentar seus resultadose, por outro,proposiçoesteoncas que permitiram
mocratização do ensino" necessária à implementaçãoda "justiça na escola""deveser coman- construir, por dedução ou por especificação,as proposiçõesdiretamente passíveisde cont:ole
dada" não mais pela classe social,mas pela "capacidade"individual de "preencher a função". empírico"(LR,9).A segundaparte, por suavez,reúneum conjuntode quatro artigos:onstrmdos
Concretamente,A reproduçãopoucoacrescentouà demonstraçãojá amplamenteconhecida em torno de análises empíricas que devem ser consideradas,segundo os autores, como urna
e debatida da desvantagemdas crianças oriundas dos grupos mais desfavorecidosno sistema aplicação, a um caso historicamente determinado, de princípios que, por sua generalida~e,
de ensino.,NaFrança, por exemplo,isso havia sido objeto dos estudos coordenadospor Alain autorizariam outras aplicações,ainda que essas análises tenham servido de ponto de par~da
Girard no Institut National d'Études Démographiques (INED),cujos resultados estavam à construção" dos próprios (LR,9). Cada artigo aborda uma dimensão do sistema de e~~mo,
sendo publicadosdesde o final dos anos 1950,e da pesquisa coletivasobre os estudantes das tratando sucessivamentesuas funçõesde comunicação,de inculcaçãode uma cultura legitima,
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REPRODUÇÃO(A): ELEMENTOSPARA UMA TEORIA DO SISTEMA D_EENSINO.
316 REPRODUÇÃO(A): ELEMENTOSPARA UMA TEORIA DO SISTEMA DE ENSINO. (La reproduction: éléments pour une théorie du systéme d'ense1gnement)
(La reproduction: éléments pour une théorie du systéme d'enseignement)
~e seleçãoe, p~r fim, de legitimação.Elespermitem explicitaro sistemade relaçõesque une "o as classificações,semprevisam à produçãode efeitossociaise, consequentemente,contribuem
sistemade en:~º e a estruturadas relaçõesentreas classessociais"(LR,9),pontocentralda obra para designar aquilo que descrevem.A linguagemtem o poder de instituir o mundo porque,
Sua amb1çao,como explicam os autores logo no preâmbulo é indicar por um lad " · ao nomeá-lo,contribuipara a estruturação da percepçãodo mundo.
"d d ' · d ' ' o, a
U~I a e teon~~ ~ todas as açõesde imposiçãosimbólica(LR,9), sejaela exercidapelo curan- Essa capacidadeque as práticas de categorizaçãotêm de produzir efeitossociais está no
deiro, pelo feitice~;º•pelo p~dre, profeta, propagandista, professor,psiquiatra, psicanalista cerne da teoria da magia de Bourdieu: "fazer coisas com palavras" na versão sintética que
e, por outro lado, o pertenc1mentodessa teoria das ações de violênciasimbóli·ca[ J o autor propõe da teoria linguística de John L. Austin sobre os efeitos performáticos dos
teona· gera1da v10
• l'encia e da violêncialegítima" (LR,9). ... a uma
enunciados (PC, 159).No entanto, se a análise do tipo austíníano tem para Bourdieuo mé-
Objetode recepçãocontroversana França e em outros países inclusiveno Bras1·1 a t · rito de subordinar a questão das propriedades retóricas do discurso à tese de sua eficácia,a
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con mua a ser mtensamente mobilizada nos estudos sobre a escola.
) ) eona investigaçãodessesefeitosnão pode encerrar-se,segundo ele,nos limites da linguística. Isto
porque a eficácianão está nem no formalismodo rito, nem na metalinguagemdo analista que
Referências reproduz,sob a forma de paráfrases, as representaçõesnativas;ela está fundada, ao contrário,
PASSERON, J.-C.Que reste-t-ildes Héritierset de la Reproduction(1964-1971)auJ·ourd. 'h ·, Q t· nas condiçõessociaisquedão poder à palavra"ritual".Opodersimbólicoda palavra- qualidade
,h d u1. ues 10ns,
met o es, conceptset réception d'une sociologiede]' éducation. SacialogicalResearchOnline que a torna apta a constituir o dado pela sua simples enunciação- reside em sua habilidade
Il. 6, p. 13, 2007. 'V. 12'
em "fazer crer".Para obter a persuasão implicadaem toda forma de crença, é necessário,no
entanto, respeitar certas regras de verossimilhança ou de aceitabilidade dos discursos. A
mais importante delas é deixar na obscuridade o arbitrário de toda classificação.A crença
178. RITO(de instituição)
depende da confiançana autenticidade do sistema de categorizaçãoposto em operação em
.. . ····················································································································
diferentescampossociais.Todaexibiçãodo artificialismodessaconstruçãoafetaseu poder de
Paula Mantera convencimentoe, consequentemente,sua eficáciasimbólica,arriscando-se o oficiantede ser
acusado de manipulador ou charlatão.A segunda, não menosimportante, é aceitar as regras
Na antropolog_ia po~í~ic~ de Pierre Bourdieuos ritos são tratados como práticas simbóli- tácitas do jogo do reconh~cimentoe da autoridade.A capacidadeperformativa das palavras
cas aptas ª confenr legitimidade social a coisas e pessoas. Nesse sentido, os ritos religiosos e dos ritos depende da autoridade de quem os profere. E esta não pode ser usurpada; deve,
repres~nta~ ap~n~sum caso particular de todo rito social. Retirando o conceitodo campo
!ª socwlogiar~hg10saonde ele foi tradicionalmenteelaboradoe aplicado,o rito se torna, na
bra de Bourdieu, um operador analítico-chavepara a compreensãodo funcionamento de
necessariamente,ser delegada.O simbolismoritual não agepor si mesmo,observaBourdieu;
a observância rigorosa do código litúrgico que rege os gestos e as palavras sacramentais
apenas representa esse contrato de delegaçãoque une o oficiantea seu público (PVD,115).
certas formas de poder em nossa sociedade.
Na teoria do poder simbólicode Bourdieu,o reconhecimentoconstitui, pois, uma condi-
. Lévi-St~auss (1971,P· 600-602)já haviadefinidoos ritos comoatosrepetitivosvinculadosaos
ção fundamental da eficáciados ritos. Para que a palavra, ou o rito, possa ser eficaz,aquele
mitos que tem por função condensarde maneira concretae unitária um sistemade ideiase de que o professadeve ser reconhecidocomo autorizado a falar, pois os enunciadosnão podem
r_epresentações. Aosubtrairgestose objetosde sua manipulaçãorotineira,0 ritual promoveuma
pretender impor-se apenas pela força.É preciso,sobretud~,que certas formas coletivamente
linguagem~~m forte eficáciasimbólica,isto é, dotada de capacidadede promovera convicção reconhecidasde autoridadetenham sido aceitascomolegítimas:"qualquerum não pode dizer
em sua habilidadepara produzir efeitosesperadossobre o mundo. A eficáciasimbólicareside qualquercoisa",observaBourdieu(PVD,68). Seesta condiçãoestá na base da eficáciamágica,
~enos no q~edize~ e~sesgestosdo queno modo comoelesdizem.SegundoLévi-Strauss,todo a análise de sua dinâmica não pode separar o poder simbólicoincorporado nas palavras das
1
: to lançamao de dmstiposde procedimento:o de divisão- atribuiçãode valoresdiscriminativos condiçõessociais que lhe conferiram sua razão de ser. Mas como opera o poder simbólico
as menoresnuances no interior de uma classede objetosou tipos de gestos- e o de repetição
nas práticas rituais? Sua dinâmica está fundada em duas operações básicas: s.eupoder de
de mesm~fórmulainfinitasvezes.Para Lévi-Strauss,o recurso sistemáticodo rito a essestipos instituição do social e seu poder de consagraçãoda autoridade.
de ~rocednnentoscomplementaresexplica-sepela oposiçãoentre as formasde pensar do mito,
A faculdadede instituição do socialinerente às práticas rituais deriva do fato de que elas
ma~sabstrat~s,e do rito, mais voltadaspara a fluidezdo vivido.Bourdieuinverteesta oposição estão investidas do poder que o grupo lhes conferiupor delegação.Apoiadoem um acordo
lev1sstr~uss1anaentre vida e pensamentona qual o rito representaapenaso "abastardamento
tácito entre oficiantee oficiadoa respeitodos esquemasde percepção,o ritual naturaliza a in-
c~nsentidod~~ensamento_quando submetidoà servidãoda vida" (LÉVI-STRAUSS, 1971,p. 603) corporaçãode certas maneiras de ver,de falar,de apreciar,porque o faz não sobreas ideiasou
e mve:~epos~tiv~mente a logicadas práticas das mesmas operaçõesmentais inerentesao rito. sobrea consciência,mas sobreo própriocorpo.Quantomais dolorosaessaformade instituição,
~s pra~cas rituais_passa~a ser compreendidascomo o produto do sensoprático e não de um observaBourdieu,quantomaior o sofrimentocorporal,a asceseou a exigênciade treinamento,
sistemaabstrato e mconsc1ente.Em seu livro Ce queparler veut díre (1982) Bo d' fir
di ·d· , ur 1eua ma mais fortementeo instituídose enraízano habitus. E ainda, quantomais enraizadonas formas
que VI Ir ou c1assificaré prática inerente ao senso comum e, por mais arbitrárias que sejam
e do consentimentodos dominados.
A antropologiapolíticade Bourdieupode ser decifradanessaleitura dosjogosde produção
de legitimidade,nas quais os ritos são instrumentos essenciais,como forma de desconheci- ·:19. SARTRE, JEAN-PAUL (1905-1980)
mento. Em sua crítica ao conceitode ritos de passagemde Van Gennep,o autor sublinha que 1 ·······················································································································
Gisele Sapiro
o maior efeitosocial do rito não é celebrar a passagem,mas sim consagrar uma diferençade
modo a fazê-la existir como distinção social ou como exclusão.Na verdade, o efeitosocial
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A figurae a obra de Sartre constituírampara Bourdieu,ao mesmotempo,um modeloe um
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do rito não é separar os que passaram por ele daqueles que ainda passarão, mas, sobretudo, repúdio (BoURDIEU, 1993)."Aspirantea filósofo"em uma épocaem que o existencialismoera
diferenciaraquelesquepodempassar daquelesque nunca o farão.Os ritos instituemfronteiras a corrente dominante no campo intelectual,o futuro sociólogoficoumarcado intensamente
e identidades;ao fazê-lo,consagram direitos,limites, competências.A ação política começa, por um pensamento que estava em contato com as coisas da vida corrente e com o mundo
pois, com a denúncia dessa adesãoimpensada ao arbitrário das classificações. contemporâneo.Apesar de nunca ter encontrado Sartre, Bourdieucolaborouem sua revista,
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1
Les Temps Modernes, na qual publicouquatro artigos, entre 1962e 1971.A partir dessa data
Referências J é que, abertamente, ele toma suas distâncias com o filósofo.
AUSTIN,J.-L.How To Do Things With Words. Oxford: Clarendon, 1962.
LÉVI-STRAUSS, C. L'Homme nu. Paris: Plon, 1971.
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O confrontocom a antropologiade Sartre,transformadapor eleno tipo idealdo subjetivis-
mo, teveuma incidênciaconsiderávelsobrea gêneseda teoria do habitus (SAPIRO, 2001;2004).
Ao mecanicismodas teorias behavioristasque explicamas emoçõespor suas causas, Sartre
t substitui,em Esquisse d'une théoríe des émotions (1938),uma abordagemde fenomenologia
l
psicológicaque privilegia uma explicaçãode tipo finalista, considerandoas emoçõescomo
condutasinferiores,mágicas,irracionais.Sartre rejeitatambém a abordagempsicanalíticaque
explicaa emoçãopor meio dos vínculos,simultaneamente,de causalidadee de compreensão
1 (a simbolização).Do mesmo modo, em L'Être et le néant, descarta a explicaçãofreudiana
do comportamento pelo inconsciente,substituindo-a pela noção de "má fé" para preservar
·J a transparência da consciênciaa si mesma e, portanto, sua liberdade.A partir de semelhante
J
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abordagemfinalistae antideterministadas condutas (mesmoirracionais),é que Bourdieuirá
desenvolvero conceitode estratégia, e encontramos em sua sociologiada adesão a ideia da
crençano jogodefendidapor Sartre.Em compensação,elerejeitao princípioda não sinceridade
da emoçãoe a radicalização,em L'Être et le néant, da tese sobre a liberdadede escolhaentre
a interpretaçãorriágicaou técnica do mundo, além de se insurgir contra a análise da má fé.A
indignaçãocontra o que Bourdieuirá definir,mais tarde, comoum erro intelectualistaé uma
das molas propulsarasde sua elaboraçãode uma teoria da prática e do conceitode habitus.
Tendoem vista superara oposiçãoentre subjetivismoe objetivismoque, nessemomento,se
apresentavasob as aparências,por um lado,da fenomenologiae, por outro,do estruturalismo.(e
do marxismo),o conceitode habitus, comoprincípiogeradordaspráticasindividuaisquepermite
Na perspectiva realista da sociologia como ciência da ciência, Bourdieu reconstrói a Essa é, sem dúvida, a razão pela qual invertendo a ordem de exposição de Esquisse,
problemáticada sociologiada ciência,que oscila entre o logicismoe o relativismoem torno que colocavaos estudos empíricosantes da discussãoteórica, Le sens pratique começapor
da questão da gênesecontingente de verdades universais. Entre "a visão encantada" de Ro- apresentar uma primeira parte epistemológicaque visa apontar tais vieses. Ao contestar
bert Merton e "o segredo de polichinelo" de Bruno Latour, destaca-se o lugar concedidoa no preâmbulo a oposição binária entre subjetivismo e objetivismoque serve de estrutura
ThomasKuhn, que aponta para uma soluçãosociotranscendentalda antiga oscilaçãoentre ao debate sobre a abordagem.adequadanas ciênciassociais,Bourdieu dedica um capítulo a
dogmatismo e ceticismo. cada uma dessas opçõespara mostrar seus respectivospontos fortes e limitações (cf.verbete
Interpretara ciênciacomoum campoé considerá-laum aparelhode construçãocoletivaque, "Conhecimentopraxiológico").
pelocontroledos mecanismosde admissão,fecha-sesobresi mesmo,impondo,internamente,a Se o _objetivismo tem o mérito de romper com a experiênciaprimeira do mundo social,ao
arbitragemdo "real".Analisaro campocientíficoé observarempiricamenteesseespaçosociocog- estudar as relaçõesobjetivasque a sustentam,issose dá ao preçoda ocultaçãodessaexperiência
nitivoextraordinário,estruturadopor uma espécieparticular de capitalsimbólicoque operana e de seu caráter pré-reflexivo.Tal ocultação acarreta um viés intelectualista ná medida em
comunicaçãoe na circulação,fundado,ao mesmotempo,no conhecimentoe no reconhecimento. que leva a aplicar ao real as categoriasconstruídas pela análise, colocandoentre parênteses
A lógicada concorrênciaentre pares impõe aos cientistas(unidospelosconflitosque os opõem as condições próprias à prática corrente, como a urgência, e as situações particulares em
entre si) a troca racionale o uso de todos os mecanismosacumuladosde universalização.O re- que ela se desenrola. As opções, os possíveis,nunca se representam aos agentes segundo a
conhecimentoda verdadeassentana experiênciacoletivareguladapor normas de comunicação, sistematicidadeque caracteriza a análise erudita. Para ilustrar seu ponto de vista, Bourdieu
argumentaçãoe verificação,de modo que a objetividadeé o produto intersubjetivodo campo, retorna aos exemplosdesenvolvidosem Esquisse:a linguística estrutural, que transforma
sendoo campocientíficoum lugarhistóricoqueproduzverdadestrans-históricas. a língua em seu objeto em detrimento da fala, e a antropologia estrutural, que passa das
Faceaos obstáculossociais à autonomizaçãoda ciência social,a socioanálisedo espírito regularidades à regra sem se questionar sobre as lógicas da ação, reduzida à execução.A
científicorevela as condiçõessociais de possibilidadeda construção sociológicado "real" e antropologia imaginária do subjetivismo,abordada no capítulo 2, é apreendida através da
do sujeito dessa construção.Assim, a reflexividade(comolei comum do campo sociológico) filosofiasartreana, que constitui sua forma mais extrema, com alusões ao interacionismo
é proposta comoprincípio de liberdade, de controle do erro. Aplicadaao exercíciode autoa- e à teoria do ator racional, que têm em comum uma propensão a conceberas práticas como
nálise, a reflexividadeexpõe o "habitus científicoclivado"do autor, produto do estado dos estratégias orientadas explicitamentepara fins definidospelo sujeitode maneira consciente.
campos da filosofiae das ciênciassociais na França e de uma trajetória pessoal de origem No capítulo 3, intitulado "Estruturas, habitus, práticas",Bourdieufornecea versãomais
provinciana, marcada pela experiência do internato, que situa seu enraizamento na visão elaborada da teoria do habitus. Contra a tendência do objetivismoa hipostasiar as relações
racionalistae também sua ambivalênciaem relaçãoao mundo intelectual. objetivasque ele reconstrói, e contra o subjetivismoque nega qualquer forma de determina-
ção exterior da ação, Bourdieupropõe pensar as práticas e as representaçõescomo produto
de um processo de interiorização das estruturas pelos indivíduos,na forma de disposições.
1s·1. SENSOPRÁTICO,
O (Le sens pratique)
······················································································································· Essessistemas de disposiçõesque compõemo habitus são "princípiosgeradorese organiza-
GiseleSapiro dores de práticas e de representaçõesque podem ser objetivamenteadaptadas a seu objetivo
sem supor a visada conscientede fins e o controle expressodas operaçõesnecessárias para
B0URDIEU,P. O sensoprático. Petrópolis,RJ:Vozes,2009. alcançá-los,objetivamente'reguladas' e 'regulares' sem em nada ser o produto da obediência
a regras, sendo por isso orquestradas coletivamentesem ser o produto da ação organizadora
Publicadoem 1980pelas Éditions de Minuit, essa volumosa obra retoma e sistematizaa de um maestro" (SP,88-89).Essa teoria permite explicar a correlação que se observa entre
teoria da prática que Bourdieuhavia começadoa desenvolverem Esquisse d'une théorie de as probabilidadesobjetivase as expectativassubjetivas,mas também as defasagensem caso
la pratique, publicadoem 1972pela Editora Droz. Ela é compostapor dois livros, Críticada de desajuste das disposiçõese das estruturas (em período de crise, de mudança social ou de
razão teóricae Lógicaspráticas,precedidospor um prefáciono qual Bourdieuretorna às con- confronto com outra cultura): é o efeitoda histeresedo habitus que resiste às mudanças, o
diçõesde produçãodessateorianumaArgéliaemguerra,às referênciasmarcantes- Lévi-Strauss, que implicamuitas vezessanções,comoé ilustrado pela figura emblemáticade Dom Quixote.
JacquesBerque,AndréNouschi,ÉmileDermengheme Charles-AndréJulien- querompiamcom O capítulo4 é dedicadoà crençaprática que Bourdieudefinecomoum" état de corps"(SP,
o etnocentrismopredominantena etnologia,mastambémàs limitaçõesencontradasna aplicação 115).A adesãoa um campo e o senso dojogoque elaimplicaconstituemsua melhorilustrç.ção.
dométodoestruturalaouniversocabila.A inadequaçãodas abordagensexistentespara dar conta Produto do encontroentre um habitus e um campo,essesenso do jogoé uma forma exemplar
da realidade observadalevou-oa analisar os vieses induzidos pela razão teórica quando ela do senso prático.Diferentementedos jogos,em que as regras são explícitas,o funcionamento
tenta pensar a prática: a distância em relação ao objeto reside menos na diferença entre as dos campos sociaisbaseia-se, com efeito,na crença, a illusio, que está na origem de um in-
tradiçõesculturais do que "na diferençaentre duas relaçõescom o mundo, teórico e prático" vestimento às vezes descrito como vocação.Realizaçãoda teoria dos jogos, o senso do jogo
(SP,30),e ela não é específicados objetosda etnologia. é também sua "negaçãoenquanto teoria" (SP,136),como explicaBourdieuno capítulo 5, "A
324 SENSO PRÁTICO, O (Le sens pratique) SENSO PRÁTICO, O (Le sens pratique) 325
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lógicada prática".Ao ter uma visão sinóptica e sincrônica (por meio de esquemas,gráficos, Referências
mapas) sobre uma realidade imanente à duração, a razão erudita dissimula a especificidade BOURDIEU,P. La maison kabyle ou le monde renversé. ln: POUILLON,J.;MARANDA,P. (Orgs.).
da prática, caracterizadapor sua estrutura temporal (irreversibilidade,ritmo, tempo)e pelas Échangeset communications. Mélangesoffertsà Cl.Lévi-Strausspour son601m'anniversaire. Paris-La
possibilidadesque ela oferecede jogo estratégicono decorrer do tempo, assim comopor uma Haye:Mouton, 1970.p. 739-758.
lógica da imprecisão que embaralha qualquer tentativa de reconstrução lógica perfeita. A BOURDIEU,P.Les stratégies matrimoniales dans le systemedes stratégies de reproduction.Annales
ação do tempo é o objeto e igualmente o título do capítulo 6: ela está estreitamente ligada à ESC,v. 4-5, p. 1105-1127,
jul./out. 1972.
incerteza que rege a prática em um mundo que obedece a leis de probabilidade e dá lugar a
diversostipos de estratégias,como é ilustrado pelos exemplosdo desafioe da réplica, ou do
dom e do contradom. É ela que, neste último caso, torna irreconhecívela relação de troca, 122. SISTEMADE ENSINO
dando-lheas aparênciasdo desinteresse.Essetrabalho de substanciaçãoservede fundamento Tânia de FreitasResende
à economiados bens simbólicos,que Bourdieudesenvolveno capítulo 7.Ao refutar o econo-
micismo, que reduz as trocas ao interesse material, ele reintroduz aí a dimensão simbólica, Pierre Bourdieuconstruiu, em grande parte com a colaboraçãode Jean-ClaudePasseron,
inseparávelem sua opinião, da lógicaeconômica."O capital simbólico",título dessecapítulo, uma teoriainovadorae potentesobreo sistemade ensinoe seupapelna sociedade.É verdadeque
constitui, de fato,um crédito,em sentidolato, que se baseia na crençado grupo. Na economia essenão foio objetocentralda obra de Bourdieu,já quesuasformulaçõesa tal respeitosurgema
pré-capitalista,na qual a reproduçãodo modo de dominaçãonão está assegurada,a autoridade partir do enfrentamentode preocupaçõesteóricasmais amplas,referentes,por exemplo,ao des-
política surge da dissimetria das trocas, ou seja, da redistribuição ostentatória,mas também velarnentodos mecanismosde dominaçãosociale à constituiçãode uma abordagemsociológica
de um conjunto de estratégias orientadas para a dominação das pessoas,pelos mecanismos que escapassesimultaneamentedo subjetivismoe do objetivismonas explicaçõesda realidade
próprios da violênciasimbólica,como Bourdieu explicano capítulo 8 ("Osmodos de domi- social(NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004).Entretanto,também é fatoque essateoria ocupapapelde
nação"). No capítulo seguinte retoma o problema do objetivismoe convida a reintegrar ao destaqueentre suas produções,tendo-setornado amplamenteconhecidae debatida,tanto no
estudo da realidade a relaçãosubjetivacom o mundo. A verdade objetivadas relaçõessociais âmbito da sociologiada educaçãoquanto nos camposcientíficoe educacionalde modo geral.
deve-setanto à relaçãode força objetivaquanto à forma denegadaque tal relaçãorevestesob As teses centrais de Bourdieu a respeito do papel da escolana sociedadeforam enuncia-
as aparênciasda legitimidade.Nessecapítulo,"Aobjetividadedo subjetivo",Bourdieudiscute das já em seus primeiros trabalhos, a saber: Les héritiers (1964)e La reproduction(1970),
o conceitoweberiano de "grupos de status" que, segundo ele, "em vez de serem uma forma ambos publicadosem coautoria com Passeron.No prefáciodo livro A reprodução, os autores
diferentede agrupamentodas classes",assemelham-se"a classesdominantes denegadasou, apresentam o princípio que constitui o eixo central da teoria do sistema de ensino por eles
se preferirmos, sublimadas e, por conseguinte,legitimadas" (SP,241). construída: a análise desse sistema considerandosuas relaçõescom a estrutura das relações
O segundo livro inclui três estudos dotados de um valor exemplar para ilustrar a lógica entre as classes(LRp). Assim,combatema ideiada escolacomoinstituiçãoneutra, responsável
própria da prática. Versãorevisada de um artigo publicado nos Annales (1972),o primeiro pela transmissão de um patrimônio cultural pertencentea toda a s·ociedadede modo indiviso.
mostra que as regularidadesdas condutas matrimoniais dos camponesesda região do Béarn Para eles, a tarefa de reprodução cultural precípua à escolanão pode ser dissociada de sua
não devemser analisadascomoo resultadoda obediênciamecânicaà regra sucessora!,segundo funçãode reproduçãoda estrutura social.Nas sociedadesde classes,não se tem "urna"cultura,
a qual o filho mais velho é o herdeiro, mas sim cornoestratégias de reprodução que, à seme- mas diferentes.variantesculturais (arbitrários)em disputa. A cultura consideradalegítimae
lhança do legado da terra ao mais velho,visam salvaguardar a integridade do patrimônio. O transmitida pelo sistema de ensino é, na verdade, o arbitrário cultural dominante, ou seja, a
segundo estudo apoia-sena inadequação da linguagem da prescriçãoe da regra para pensar cultura dos grupos dominantes, sem superioridadeobjetivaem relaçãoàs demais. Os alunos
o caso do casamentocom a prima paralela, que desafiaa regra de exogamiaestabelecidapela chegamà escolaem condiçõesdesiguaisquanto à posse de elementosdessa cultura (na forma
antropologiaestrutural, para se interrogar sobre "os usos sociais do parentesco",de acordo de conhecimentos,habilidades, gostos, disposições,etc. - nos termos de Bourdieu, capital
com os interesseseconômicose simbólicosemjogo.O último capítulo,intitulado "O demônio cultural) e o sistema de ensino, ao tratá-los cornoiguais do ponto de vista formal, acaba por
da analogia",revelaos limites do método estrutural ao ser aplicadoa esquemaspráticos, que reproduzir as desigualdadesiniciais.Mais do que isso,contribuipara legitimá-las,na medida
não têm nem a sisternaticidadenem a coerênciaque a teoria pretende lhes conferir. em que as diferençasnos desempenhosescolares,sob a aparência de neutralidade da escola
,Noapêndiceda obra Bourdieuretomouseu estudosobrea casa cabila(''A casaou o mundo e de suas formas de avaliação,são atribuídas ao mérito individual.
invertido"), escrito para Mélanges, em homenagem à Claude Lévi-Strausse reeditado em Nessaperspectiva,a escolaexercetambém uma funçãomistificadora,em pelo menos dois
Esquisse d'une théorie de la pratique, dando-lhe um estatuto particular corno ilustração sentidos:na medidaem queocultao caráterarbitrárioe socialmenteimpostoda culturaqueveicula
do estado <).nterior de sua reflexãosobre o método estrutural, cuja aplicaçãoé feita aqui com comoneutra e legítima;e na proporçãoem que transformadiferençassociaisem desigualdades
brilhantismo, e como introdução aos estudos mais complexos apresentados em Le sens socialmentelegitimadas,naturalizadascornodecorrentesde aptidõese/oudo esforçoindividuais,
pratique, onde ele mostra os limites desse método. negandoe camuflando,assim,o privilégioculturaldos alunosoriundo~das classesdominantes.
so B RE A TELEVISÃO 329
328 SISTEMA DE ENSINO (Sur la télévision, suivi de L'emprise du journa/isme)
<luzido,mas que não poderiam passar despercebidos- dedicados àquelesa quem Bourdieu do Estado se faz acompanhar pela acumulação maciça de informação - serviços secretos,
atribui o qualificativodefast thinkers,ou seja, os "intelectuais midiáticos",os produtores de pesquisas, recenseamentos,orçamentos,mapas, planos, genealogias,estatísticas -, conver-
fast food cultural, a quem, pela primeira vez, ele iria designar pelo nome justo, negando-se tendo o meta-poder em unificador teórico,um totalizador cujo instrumento por excelência
a atribuir-lhes o título de intelectual. é a escrita, a começar pelos registros de contabilidade.
Busca qualificar a ascensão da nobreza togada, na transição entre a nobreza feudal e a
184. SOBRE
O ESTADO.
CURSOS
NO COLLEGE
DE FRANCE(1989-92) nobrezamoderna, aquelaformada nas escolasde elitedo capitalismocontemporâneo.Subjaz
a esse escrutínio um dos mantras do autor, "a verdade de todo mecanismo políticoreside na
(Sur l'État. Cours au College de France [1989-1992])
••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••o•••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••
lógica de sucessão".Os juristas elaboraram as doutrinas da transição entre a razão monár-
quica e a de Estado, tendo de se haver,desde o início, com os riscos de estorno do patrimônio
SergioMiceli
público - corrupção, nepotismo, favoritismo -:-por parte daqueles grupos, inclusive eles,
BOURDIEU,P. Sobre o Estado. Cursosno Collegede France(1989-92).São Paulo: Companhia das propensos a fazer do Estado sua "casa".
Letras, 2014. Emvezda sucessãode tipodoméstico(o reie a famíliareal),no qualo patrimôniosetransmite
de pai para filho,a reproduçãodosjuristas,dos funcionários,dos intelectuais,passapelosistema
Em vez de cravar no primado do monopóliofiscal,militar e policial,Bourdieumobiliza escolar,pelomérito,pela competência,'pelo diploma.O Estadose opõeà famíliae condenao ne-
as evidênciase as razões capazesde deslindar o caráter e a eficáciados poderes de violência potismo,ao substituiroslaçosprimáriospor lealdadesformais,a sucessãodiretapelareprodução
simbólica exercidospelo Estado, espécie de meta-poder por cujo controle e apropriação se escolar,a designaçãopor instânciaslocaispelanomeaçãodeterminadapelopodercentral.
defrontam os grupos de interesse aptos a atuar no campo político. O Estadoé perpassadopela tensãoentre os herdeirose os arrivistas,entre os que dependem
Reiteraa dimensão simbólicado Estado, espaço de relações de força e de sentido, como dos laços de sangue e a nobreza togada, prensada por-sua vez entre os interesses coletivos
produtor de princípios de classificaçãosuscetíveisde serem aplicadosao mundo social.Tais da corporação em colisão com os apanágios da antiga nobreza e os interessesprivados que
categoriassão formasentranhadasem condiçõeshistóricasde produção,ou melhor,estruturas empurram os togados-ase aliar aos setores do antigo regime. Sendo a um só tempo árbitros
mentais em conexãocom estruturas sociais,comoque retraduzindoas tensõesentre os grupos e partes interessadas, os juristas exercemo papel decisivode legitimar o monarca sem abrir
em oposiçõeslógicas.O desígnio de formular uma teoria materialista do simbólicotem que mão da competênciatécnica em prol da universalizaçãode seus interessescomo detentores
dar conta dessa obediênciageneralizadade que se beneficiao Estado sem apelar à coerção. do capital particular de jurista.
A contundênciadessapegadaseevidenciana passagem,em finsda IdadeMédia,do momento Na condição de mestres do discurso, eles dispõem de um trunfo formidávelde poder:
em que coexisteminúmerasmodalidadesexclusivasde direito- a justiçado rei,a das comunas, fazer crer naquilo que dizem. Sua autoridade lhes permite dizer e fazer como verdadeiro
a das corporações,a da Igreja- à extensãoprogressivada jurisdiçãoreal com o surgimentodos aquilo que lhes interessa.Ao fazer crer que é verdadepara os que têm o poder de fazer existir
prepostos,dos magistradose do Parlamento.A Françae a Inglaterrado séculoXVIIjá exibemo o verdadeiro (os poderosos),os juristas podem tornar real aquilo que dizem. Contam com o
talhe característicodo Estadomoderno:um corpopolíticoseparadoda pessoado príncipe,bem direito como discurso de hálito universal e dispõem da capacidadeprofissionalde fornecer
como dos demais grupamentosatuantes no território da nação,inclusivea nobrezafeudale a razões, ou melhor, de converter evidênciasem arrazoados, pelo apelo a princípios univer-
Igreja.A diferenciaçãodo campojurídico,universosujeitoa leispróprias,sucedeem paraleloà sais, pelo recurso à história, aos precedentes,aos arquivos,à casuísticae às demais fontesda
concentraçãode poder na base do monopólioreal do poderjudiciárioperante as pretensõesdos jurisprudência. A construção do Estado se revela,portanto, indissociávelda emergênciade
senhores.Ajustiçarealarrebanhaas causascriminaisantessujeitasao arbítriodo proprietáriode corporaçõesque nele se enraízam.
terrasou da Igreja,emnomede argumentosad hoccomoa teoriadosrecursos.Em síntese,o cerne O processo de delegação,o qual consiste em parcelamento e multiplicaçãode poderes,
de sua concepçãoesquadrinhaa transiçãoentreo Estadodinástico-absolutista e o nascimentodo está na raiz da corrupção como elementoconstituinte na divisãodo trabalho de dominação.
modernoEstadodo bem-estar,pontuadopeloprotagonismoestratégicodosjuristas,dando a ver Assim como o rei se apropria da parte do leão, expedienteidêntico se reproduz em escalões
os rumosda diferenciaçãodepoderese da concorrênciaentreos corposde especialistasindispen- inferiores, cujos ocupantes se valem da autoridade concedidapara extrair lucros proporcio-
sáveisao exercíciodo mando na emergentedivisãodo trabalhode dominação. nais ao seu cacife. O caráter estrutural da corrupção deriva do fato de que as corporações
Os juristas se aferram à elaboraçãode justificativas em favor de uma única jurisdição, têm a ambição de se tornar dinásticas, pela aliança com os mandantes do antigo regime,
operando como advogadosdessa junção que lhes toca de perto como arautos do "desinte- pela aquisiçãovenal de cargosou pela transmissão hereditária dissimulada.A redistribuição
resse" e da universalização. A realeza se alia aos pleitos dos juristas cujo serviço-mor é a de poderes enseja inúmeros escapesnos circuitos de delegaçãoe, por conseguinte,propicia
formulação,de teorias legitimadorassegundo as quais o rei representa o interesse comum e espaçosde arreglo e de cobrança de pedágio.
deve segurança e justiça a todos. Restringem-seas esferas de competênciadas jurisdições A montagemdessedispositivoinstitucionalizadose apoia,tanto no antigo império chinês
feudal e eclesiástica:,doravante sujeitas ao comando da justiça a soldo do rei. O nascimento como em formações sociais da atualidade, no fluxo de fundos ilícitos que irriga o sistema
330 SOBRE_OESTADO. CURSOS NO COLLEGE DE FRANCE (1989-92) SOBRE O ESTADO. CURSOS NO COLLEGE DE FRANCE (1989-92) 331
(Sur l'Etat. Cours au Collége de France [1989-1992]) (Sur l'État. Cours au Col/ége de France {1989-1992))
1
?
de baixo para cima. O caixa dois vem a ser a extorsão legal de fundos destinados a cobrir como qualquer outro. Trata-se de "fazer sua própria sociologia"(SSR,184),reconstituindo o
as despesas pessoais e profissionaisdos funcionários, somados aos rendimentos auferidos espaçodos possíveisde cada campo e dos indivíduosque nele estão inseridos.Nesses~ntido,
pelos escalõesinferiores de que os primeiros dependem para exercersuas tarefas. Na lógica a Leçon sur la leçon (1982)é um exemploparadigmático de "distância ao papel social no
da corrupção institucionalizada, os mandachuvas têm meios de extrair lucros de grandeza exercíciomesmo desse papel social" (EAA,138).
incomensurávelàquela acessívelaos supervisoresde baixo escalão. A "relaçãodialética entré a autoanálisee a (sócio)análisese encontra no centro do traba-
A burocracia envergadupla armadura: a ambiguidade institucional como contrafaceda lho de objetivação"(SSR,181),permitindo não só ao sociólogoa objetivaçãode sua própria
fachada racional e transparente. Os burocratas efetuam a apropriaçãoprivada do universal posição,que o liberta dos determinismossociaisque pesam sobresi, mas também conferindo
("bem comum"), com frequência tida como abuso de poder e, não obstante, contribuem lucidezao agente, ao "colocara análise mais objetivaao serviçodo mais subjetivo"(EAA,8),
mesmo assim a fazer progredir o "interesse coletivo".As transações entre os notáveis e os dando aos dominados os meios de controlar ao menos a representaçãodo que lhes acontece.
burocratas, que azeitam o funcionamento do serviço público, exemplificamintercâmbios Socioanálisee autoanálisesão projetosdistintos, mas complementares.Enquanto a primeira
movidos por coerção estrutural, que pouco tem a ver com interações pessoais tão a gosto analisa as condiçõesde emergênciadas produçõescientíficas,objetivandosimultaneamenteo
dos sabichõesarredios às razões da história social. Os juristas são corretores que também campo acadêmicoe o sujeitodo conhecimento,a segundavisa objetivara trajetór_ia~~ agente
jogam na posiçãode terceiros,a meio caminho entre as demandas da monarquia e dos demais através da aplicaçãoefetivada reflexividadecrítica sobre si mesmo, sobre sua historia e sua
grupos, cobrandoproventospelo trabalho de mediação,comoresponsáveispela alquimiaque prática cotidiana, através de "todos os traços pertinentes [... ] necessários à explicaçãoe à
transmuta o dote privado em bem público. compreensãosociológicas"(EAA,11-12).
Bourdieusustenta a tese da constituiçãoprogressivade um conjuntode campos- jurídico, Os conceitos de socioanálise/autoanálise atravessam a obra bourdieusiana desde o
administrativo, intelectual,parlamentar -, cada um deles como espaço de lutas específicas, Esquisse d'une théorie de la pratique (1972).A primeira ,s~traduz partic~l_a~mentenos
uns competindo com os outros, enfrentamento em cujo transcurso se inventa esse poder livros que analisam o campo acadêmico onde o autor esta imerso: Les hentiers (1964),
"meta-campo"consolidadono Estado moderno. A inteligibilidadedesses campos foi objeto Homo academicus (1984),Leçon sur la leçon (1982),La noblessed'État (1989),Science
de investigaçãoem estudos seminais do autor - A nobrezade Estado,sobre a elite adminis- de la science et réflexivité (2001).A segunda, nas Méditations pascaliennes (1997) e no
trativa egressa das grandes escolas;Homo academicus, sobre a elite universitária -, cujo Esquissepour une auto-analyse (2004). . _ ,
fecho reflexivoimanta os cursos no Collegede France (1989-1992)enfeixados no volume O autor lembra que, "em uma sociedade dividida em classes, [...] a defimçao do real _e
Sobre o Estado. objeto de uma luta aberta ou latente entre as classes [...] pela imposiçãodos sistemas domi~
É dessa história de lutas que tratam os cursos de Bourdieu,ao reconstruir as circunstân- nantes de classificação".É a ruptura epistemológicacom relação ao senso comum que vai
cias em que sucedeu a transição do poder dinástico,voltado à preservaçãodas prerrogativas contribuir para assentar os "mecanismos gnoseológicosque contribuem à manutenção da
e dos interesses da casa real, ao poder do Estado, entendido como um espaço de confrontos ordem estabelecida"(ETP,239-241),contribuindo à produção de uma ciênciamais acurada
ancorado em instituições e corporaçõesàs quais foram delegadosmandatos de justificação e fornecendo uni potencial de resistência e emancipaçãopolíticas. A objetivaçãodeve ser
doutrinária e intelectual, no caso capital da configuraçãoda esferajudiciária, ou então, as conduzida em função dos três tipos de vieses que afetam a visão analítica do sociólogo:suas
demandas de se fazer ouvir e representar por meio da instância parlamentar. características pessoais (posiçãode origem, trajetória, pertencimentos de gênero ou etnia,
adesão social ou religiosa);a posição ocupada pelo agente,o status de sua disciplina dentro
185. SOCIEDADE dos diferentes estados do campo acadêmicoe sua relaçãocom o campo do poder; e os pres-
······················································································································· supostos inscritos nas operaçõesou práticas de pesquisa. . "
Ver:Mundo social Ele retoma esse conceito no prefácio de Le sens pratique (SP,40), ao dizer que todo
verdadeiro empreendimento sociológicoé inseparável de uma socioanálise e deve contri-
buir para que seu produto se torne também instrumento de uma socioanálise.Ao contribuir
186. SOCIOANÁLISE
······················································································································· à consciência das determinações, ao revelar "a verdadeira relação entre o observador e o
Angela Xavier de Brito observado e, sobretudo, as consequênciascríticas que incidem na prática científica",a so-
cioanálise "ofereceum meio, talvez o único [...] para a construção de algo que se assemelhe
Para Bourdieu,a socioanáliseé "o trabalho através do qual a ciênciasocial, ao se tomar a um sujeito"(SP,41, 57). Em Sciencede la scienceet réflexivité (p. 168-169),elevai evocar
por objeto,utiliza suas próprias armas para compreendere controlar a si mesma" (SSR,174), a necessidade de objetivação do "inconsciente transcendental", "condição do acesso da
num duploni,ovimentode crítica metodológicae de vigilânciaepistemológicaque visa tornar ciência à consciência de si, ou seja, ao conhecimento de seus pressupostos históricos [...] e
explícitoo que ordinariamente permanece em estado implícitona prática científica.Já a au- das determinações inconscientes inscritas no cérebro do cientista e nas condições sociais
toanálise é uma socioanáliseem que o indivíduo trata a si mesmo como se fosse um objeto dentro das quais ele produz".
334 SOCIOANÁLISE
SOCIOLOGIA 335
Ao mesmo tempo que beneficiou-se da formação intelectual obtida na École Normale acadêmica homogênea,já que a universidade francesa não oferecia,nesse.momento,cursos
Supérieure na década de 1950, simultaneamente investiu contra uma postura intelectual de graduação nesta área (VALADE, 2000, p. 25). Em função disto, persistiu a ausência de um
subjacenteà sua formaçãoacadêmica,ou seja, combateu um ethos filosóficoque ambicionava sentimento de unidade disciplinar. Ao mesmo tempo, ocorreu uma enorme dispersão de
explicar uma pluralidade de fenômenoshumanos e sociais, calcados,segundo ele, em proce- pesquisas empíricas sem uma consistentefundamentação teórica. Para ele, construiu-se uma
dimentos retóricos. Em sua percepção,a figura de Jean-Paul Sartre expressavaas disposições sociologiafragmentada, alicérçada numa nítida divisão de trabalho, estruturada a partir de
intelectuais peculiares a umfüósofo normalien (BoURDIEU, 1993;SSR;EAA). subespecializações, como sociologia do trabalho, da educação, da religião, rural, urbana,
Seuingressono campoda sociologiaocorreugradualmente.O distanciamentocom o espírito do lazer, etc. Como o meio universitário estava em larga medida preocupado pelas questões
filosóficofoi o resultado dos "acasosda existência"que o conduziram à Argélia,para servir na políticas da época, os engajamentospolíticosde pesquisadorescomprometeram a autonomia
missão de "pacificação"dessa colôniafrancesa (1993).Esta experiênciaestimulouseu interesse científica da sociologiae reforçaram sua posição marginal no campo. (SSR,192;EEA,52).
pelastransformaçõesda sociedadeargelinaa partir de uma perspectivacientíficae política.Nesse Seu projeto para a sociologia mantém certa continuidade com a fase inicial da "escola
contexto,produziu seus primeiros trabalhos de campo (SA;TTA;DR;ETP;WACQUANT, 2002). francesade sociologià',destacadamentecom a tradição durkheimianade imprimir um estatuto
O advento da abordagem estrutural de Lévi-Strauss foi saudado por Bourdieu como científicoao contextouniversitário (BERTHELOT, 2000,p. 30;KARADY, 1979),ao mesmo tempo
um acontecimento significativopara as ciências sociais francesas, uma vez que propiciou que renova e amplia intelectualmente este objetivo.A determinação intelectual de imprimir
respeitabilidade científica à antropologia. Seus dois primeiros ensaios etnológicos,Le sens uma dimensão científica à sociologiaperpassou sua trajetória acadêmica. A publicação da
de l'honneur e La maison kabyle ou le monde renversé, exploraram os esquemas inter- obra conjunta com Passeron e Chamboredon,Le métier de sociologue(1968),é emblemática
pretativos da análise estrutural elaborados por Lévi-Strauss, sendo que o derradeiro deles nesse contexto.Em um trabalho bastante posterior,Sciencede la scienceet réflexivité(2001),
constituiu o que Bourdieu denominou seu "último trabalho de estruturalista feliz".Longede ao mesmo tempo que reafirmou o caráter científicoda sociologia,assinalou a necessidadedo
negar a relevância do processo de objetivaçãodos fenômenos sociais, Bourdieu reconhecia processo de objetivação dos sociólogoscomo uma condição necessária para imprimir uma
nesse procedimento metodológicouma das contribuições fundamentais do estruturalismo autonomia científicaà disciplina. Para Bourdieu, o trabalho sociológicopressupõe uma série
ao processo de ruptura com o saber imediato. Concordava com a primazia das estruturas de rupturas com o saber espontâneo, cuja influência se manifesta insidiosamente no seio da
objetivasna explicaçãoda vida social. No entanto, distanciou-se da postura estruturalista à disciplina através de pré-noções do senso comum, da ilusão da transparência da realidade, da
medida que procurou reintroduzir em suas análises o agente, cujos sistemas de percepção, utilização da linguagem cotidiana, fato este que implicaa necessidadede criar uma linguagem.
apreciaçãoe ação são perpassados por injunções sociais. artificial, capaz de romper com os automatismos do saber familiar.
Ao realizar suas primeiras investigaçõesempíricas,Bourdieupercebia-secomoum filósofo A familiaridade do sociólogocom o universo socialconstitui um dos principais obstáculos
realizandotrabalho de campo. No entanto, surpreendeu-seao constatar que se tornara etnólo- epistemológicos da prática científica, uma vez que (re)produz continuamente percepções
go. A partir da metade dos anos 1960,quando retornou à França, em colaboraçãocom outros provenientes do saber imediato. Para ele, uma das principais fontes de erros na produção do
pesquisadores,produziuuma série de obras que, em sua apreciação,poderiam ser consideradas conhecimentosociológicoderiva da relaçãoincontrolada que o pesquisador mantém com seu
de natureza sociológicacomo Les héritiers (1964),Un art moyen (1965),L'Amour de l'art objeto de estudo, ignorando que a visão e a construção do objeto devem à posição ocupada
(1966).Procurou incorporar em seu projeto sociológicoo que havia assimilado da filosofiae pelo investigador no espaço social e no interior do próprio campo científico(MS,35-44).
da etnologia,a exemplode determinadas técnicas de investigação,como o uso da fotografia,a Quando os sociólogosanalisam certos objetos com os quais mantêm relação de proximi-
observaçãoetnográfica,o politeísmometodológico,ou seja,a combinaçãoda análiseestatística dade, tais como a cultura, a ciência,o mundo artístico ou o campo universitário, a vigilância
coma observaçãodireta de grupossociais,etc.Suaentrada no campoda sociologiae a disposição reflexivadeve se exercer com maior intensidade, buscando operar uma ruptura não apenas
de redefinir a posição da disciplina,visando enobrecê-la(SSR,196),induziu-o a criticar tanto com as representações espontâneas, mas também com as crenças íntimas, conscientes ou
as atividadesde ensino quanto as de pesquisa que predominavam na sociedadefrancesa entre inconscientes, dos profissionais do pensamento, com a doxa específica que estrutura as
os anos 1950e metade da década seguinte. tomadas de posição no campo das ciências sociais (HA, 11-33).
Para ele, a Sorbonne - que constituía o espaço central na disseminação da sociologia, Para Bourdieu, a história social da sociologia,ao possibilitar a explicitaçãoda gênese dos
uma vez que era ensinada nas Faculdadesde Letras - não conseguiuimpulsionar a disciplina, problemase dos objetos,das categoriasde pensamentoe dos instrumentos teóricose empíricos
uma vez que não introduziu a atividade de pesquisa no seu interior. Os três professores que de análise mobilizados pelo investigador, constitui um dos instrumentos fundamentais da
ocupavam a cátedra de sociologia, Georges Gurvitch, Jean Stoetzele Raymond Aron - de prática científica.Para realizar-se como ciência,a sociologianecessitaassumir-se a si própria
quem Bourdieu foi assistente nesta instituição - exploravam autores clássicosda sociologia como objeto passívelde ser analisado sociologicamente.Em sua visão, a sociologiada socio-
e/ou apresi;ntavamsuas próprias concepçõesteóricas (SSR,190;ARON,1983,p. 343). logia - concebidapor ele como uma das dimensões fundamentais de epistemologia- longe
Em sua avaliação, a nova geração de sociólogosque emergiu em meados da década de de ensejar um retorno intimista e um culto narcisista sobre a pessoa do sociólogo,deve propi-
1950modificou a posição dominada da disciplina, uma vez que não recebera uma formação ciar-lhe a elucidaçãode tudo que sua prática intelectual deve à sua inserção no mundo social
338 SOCIOLOGIA
SOCIOLOGIA
339
para enfrentar as complexase intrincadas mediações que permeiam as relações entre ator SWARZT,D. Culture and Power: the Sociologyof Bourdieu.Chicago: The University of Chicago
e estrutura social. Press, 1977.
O grupo de pesquisaque Bourdieuconstruiu expressousua disposiçãode criar um projeto WACQUANT,L. The Sociological Life of Pierre Bourdieu. International Sociology, v. 17,n. 4,
científicocoletivocapazdeintegraras aquisiçõesteóricase metodológicasda sociologia(ENCREVÉ; p. 549-556,2002.
LAGRAVE, 2003).O Centre de Sociologie Européenne, criado por ele em 1968,tornou-se WEBB,J.;SCHIRATO,T.;DANAHER,G. UnderstandingBourdieu.Londres:SagePublication,2002.
um espaço intelectualmente cosmopolitaao qual afluíam pesquisadores de diversas partes
do mundo. Ao mesmo tempo, criou em 1975,a revista Actes de la Rechercheen Sciences
Sociales, um periódico marcadamente interdisciplinar que expressava sua disposição de 189. SOCIOLOGIA
DA SOCIOLOGIA
restaurar a unidade das ciênciassociais,acolhendoa produçãode vasta rede de pesquisadores GiseleSapiro
franceses e internacionais.
Foi eleitoem 1981para o College de France, sendo que sua obra ultrapassouas fronteiras Para Bourdieu,a ciência,como a arte e a literatura, não escapaà análise sociológica.É um
de seu país, transformando-o em um dos sociólogosmais eminentes do século XX. Objeto universo socialsemelhante aos outros, do qual é preciso,no entanto, compreenderas lógicas
de avaliaçõescríticas e positivas, sua influência intelectual se estendeu internacionalmen- específicas.O conceito de campo permite apreender as implicações,os valores e as regras
te em várias disciplinas nas ciênciashumanas (ADKINs;SKEGGS, 2005;WEBB;SCHIRATO; que orientam as práticas nesses universos, e que são irredutíveis aos fatores econômicose
DANAHER, 2002;KING,2000;CALHOUN; LIPUMA; PoSTONE, 1993;DrMAGGIO, 1979;SWARTZ, 1997). políticos,mesmo que estesnão deixemde estar presentes.Para o autor de Homo academicus
(1984),que exibia uma visão desencantadados mecanismossociais em ação no mundo uni~
Referências versitário,o fato de produzir a sociologiadas atividadescientíficasnão leva necessariamente
ADKINS,L.; SKEGGS,B.Feminism after Bourdieu. Blackwell:Oxford,2005. ao relativismo:pelo contrário, ela deveser concebidacomoum instrumento de reflexividade
ARON,R. Mémoires. Paris: Julliard, 1983. e de vigilância epistemológica.Tal é a posição que Bourdieu irá desenvolverem seu último
BERTHELOT, J. M. La constitution épistémologiquede la sociologiefrançaise. In: __ . (Org.).La curso no Collegede France,publicadosob o título Sciencede la scienceet réflexivité(2001).
sociologiefrançaise contemporaine.Paris: PUF,2000. Comoexplicana sessãointrodutória de seu seminário de 1997sobrea história das ciências
KING,A. Thinking with Bourdieu against Bourdieu: a Practical Critique of Habitus. Sociological sociais (BouRDIEU, 2004),para ele a sociologiada sociologia(e das outras ciênciassociais)
Theory,v. 18,n. 3, p. 417-433,2000. não é uma ciênciacomo outra qualquer."Aobjetivaçãodo sujeitoda objetivação",de acordo
BOURDIEU,P. Le champ scientifique.ARSS, v. 2, n. 2-3,p. 88-104,1976. com o título dessa introdução, é um meio de controle simbólico da prática da pesquisa no
BOURDIEU,P. Les sciencessociales et la philosophie.ARSS, v. 47-48,p. 45-42, 1983. sentido em que ela desvelao inconscienteacadêmicoque está subjacentea essaprática. Longe
BOURDIEU,P. La scienceet l'actualité. ARSS, p. 2-3, 1986. de qualquer "complacêncianarcisistâ', a reflexividadeconsisteem revelaros determinismos
BOURDIEU,P. Esquisse d'un projet intellectuel:un entretien avec Pierre Bourdieu.French Review, sociais que pesam sobre a prática dos pesquisadores,com o fim de superá-los.
2, p. 194-205,1987.
V. 61,Il.
A sociologiada sociologiae das outras ciênciassociais compreendetrês momentos. Em
P.Vivela crise:forHeterodoxyinSocialScience.Theoryand Society,n. 17,p. 773-787,1988.
BOURDIEU, primeiro lugar, ela reinstala os sociólogosno mundo social em seu conjunto,reconstituindo
BOURDIEU,P. À propos de Sartre. French Cultural Studies, n. 4, 1993. suas trajetórias sociais, suas condiçõesde acesso à disciplina, suas escolhas de objetos e de
DiMAGGIO,P. On Bourdieu.American Journal of Sociology,v. 84, n. 96, p. 1460-1474,1979. métodosem função de suas disposições.Por exemplo,a oposiçãoentre a teoria e a empiria que
CALHOUN,G.;LIPUMA,E.; POSTONE,M. Bourdieu:CriticaiPerspectives.Chicago:TheUniversity servede estrutura à disciplinaé intensamentesexuada:os homens mostram maior propensão
of ChicagoPress, 1993. • à generalização,o que garante maiores lucros simbólicoscom menos esforços,enquanto as
DROUARD,A. Réflexionssur une chronologiedu développementdes sciencessociales en France de mulheres se dedicam ao laboriosotrabalho de coletae de análisedos dados.A divisãosexuada
1945à la findes années soixante. Revue Françaisede Sociologie,v. 23, n. 1, 1982. do trabalho intelectual se observa também entre disciplinas (ciênciasversushumanidades,
ENCREVÉ,P.;LAGRAVE, R. M. Travailleravec Bourdieu. Paris: Flammarion, 2003. filosofia versus literatura) e especialidades (sociologiadas ciências versus sociologia da
KARADY,V. Durkheim, les sciences sociales et l'université. Revue Françaisede Sociologie,v. 25, arte). O que leva ao segundo nível de análise, o do campo disciplinar, onde os sociólogosse
p. 267-311,jan./mars 1979. diferenciam dependendo da posição que ocupam (por exemplo,novato versus pesquisador
MARTINS,C. B. Notas sobre a teoria da prática em Pierre Bourdieu. Novos Estudos Cebrap,n. 62, reconhecido),de suas especialidadese de suas escolhas intelectuais, que são determinadas
p. 163-181,2002. não só por suas propriedades sociais, mas também pelo espaço dos possíveis.Esse espaço
POLLAK,M.,PaulLazarsfeld,fondateur d'une multinationale scientifique.ARSS, n. 25, p. 45-59,1979. dos possíveisé historicamente constituído e estruturado de acordo com as hierarquias entre
VALADE, B.Del' écolefrançaisede sociologieà la sociologiecontemporaineen France.In: BERTHELOT, disciplinas(por exemplo,entre filosofiae sociologia),especialidades,abordagens(teoriaversus
J-M (Org.).La sociologiefrançaise contemporaine.Paris: PUF,2000. empiria), métodos, escolase tradições intelectuais,marcadas muitas vezespor suas origens
340 SOCIOLOGIA
SOCIOLOGIA DA SOCIOLOGIA 341
"impuras" (por exemplo,o passado colonialno caso da etnologia- QS).Finalmente,em um esboçado por Bourdieu em pelo menos três oportunidades: "Confissõesimpessoais", em
terceiro nível, a sociologiada sociologiareinstala as práticas dos pesquisadores na lógica MP; "Esquisse pour une auto-analyse", em SSR (184-220);e em EAA. Rompendo com a
escolásticaque caracteriza os universos científicose que constitui uma fonte de erro intelec- ilusão do ponto de vista absoluto,a objetivaçãodo ponto de vista do pesquisador esforça-se,
tualista (o "viésescolástico"):essa lógicaacabapor conduzi-losfrequentementea projetar os assim, por contribuir para a construção "desse ponto de vista sem ponto de vista que é o
modelos que eles constroem na mente dos agentes que eles observam, sem se questionarem ponto de vista da ciência" (SSR,222). Identificar a posição ocupada no campo supõe uma
sobre a distância entre um modeloabstrato e a realidadeda prática. A sociologiada sociologia planta do campo que indique precisamente a posição relativa das diferentes disciplinas
é, portanto, inseparavelmenteuma sociologiado conhecimento. no campo das ciências sociais e, no campo da sociologia,as divisões em "especialidades",
em "escolas"etc. Caracterizar um habitus, tentar definir sua "fórmula genérica",supõe a
Referência reconstituição da sociogênese do sistema de disposições constitutivas de um habitus no
BOURDIEU,P. rObjectivation du sujet de I'objectivation (1997).ln: HEILBRON,J.;LENOIR,R.; decorrer de uma trajetória biográfica.
SAPIRO,G.(Org.).Pour une histoire des sciences sociales. Paris: Fayard, 2004. p. 19-23. O pertencimento a um campo - no caso concreto, o da sociologia - implica não só a
crença no interesse do jogo e no valor daquilo que está em jogo, ou seja, a participação na
190. SOCIOLOGIA E REFLEXIVIDADE "illusio específica" do campo e a interiorização do "habitus específico"do campo, mas
······················································································································· também a interiorização mais ou menos bem-sucedida da herança científica coletiva da
GérardMauger disciplina (problemas, conceitos, métodos). Uma prática reflexiva de pesquisa supõe a
compreensãodas opçõesteóricas e metodológicasadotadas:"o espaçodos possíveis,escreve
Se "a sociologiaé uma ciência como as outras, que encontra somente uma dificuldade Bourdieu,se realiza em indivíduos que exercemuma 'atração' ou uma 'repulsa' dependendo
particular em ser uma ciência como as outras" (MS,36), tal constatação se deve, segundo de seu peso no campo, ou seja, de sua visibilidade, e também do maior ou menor grau de
Bourdieu, a razões políticas e, simultaneamente, epistemológicas.Pelo fato de que, no seio afinidade dos habitus que leva a achar que seu pensamento e sua ação são 'simpáticos' ou
do mundo social, diferentes categoriasde agentesprocuram impor seu "ponto de vista" so- 'antipáticos"' (SSR,36).-
bre a realidade, a sociologia,queira ou não, é, com efeito,parte integrante das lutas que ela O campo científico,de acordo com a análise de Bourdieu, é um "m.undosocial como os
descreve.Pelo fato de que seu objeto - a representação do mundo social - é politicamente outros", parcialmente autônomo, com suas relaçõesde força e suas lutas de interesses, suas
estratégico,ela está constantementeexpostaà regressãopara a heteronomia e depara-se com coalizõese seus monopólios (o que é estudado pelo "programa forte"), e, ao mesmo tempo,
a contestação de sua pretensão à cientificidade.Finalmente, pelo fato de que a sociologiaé um "mundo à parte" dotado de suas própriasleis de funcionamentoem que a competiçãoestá
determinada simultaneamentepelas condiçõesde sua produção - mais ou menos autônoma/ submetidaa regulaçõesautomáticas(garantidaspelocontrolecruzado entre os concorrentes),
heterônoma- e pelasdeterminaçõesinscritasnas disposiçõesdo pesquisador,elaencontra-se, em que a libido dominandi (apetitede reconhecimento)devese converterem libido sciendi
a cada momento, exposta à "relativização". (apetite de conhecimento),em que a censura está na origem da sublimação.
O imperativode reflexividadeimpõe-seprecisamentecomotentativade livrar a sociologia A situação de skhole, "tempo livre e liberado das urgências do mundo que torna pos-
da relativização:ela deve assumir-se a si mesma como objeto,servindo-se de seus próprios sível uma relação livre e liberada com tais urgências e com o mundo", situação de "lazer
recursos (teóricose metodológicos)para se compreendere se controlar.Fazerda reflexividade estudioso",de levezasocial,neutralizando as urgências e os fins práticos (MP,26),condição
uma disposição constitutiva do habitus científico significa controlar, ao mesmo tempo, a social do "pensamento puro", está na origem da "disposiçãoe_scolástica" (MP,24). Ela leva
relação subjetivacom o objeto,os efeitosdas condicionantesexternas que se exercemsobre a que se coloque em suspenso as exigênciasda situação, as condicionantesda necessidade
a produção científica e a antropologia social inconsciente envolvidana prática científica. econômicae social,as urgências que ela impõe e os fins que ela propõe, e a entrar no mundo
Podem-se distinguir três ordens de pressupostos:aqueles que estão associadosà ocupação lúdico da conjetura teórica e da experimentaçãomental, que é a condiçãode todas as formas
de uma posição no espaço social e à trajetória particular percorrida para atingi-la; aqueles de especulação gratuita, sem outra finalidade a não ser elas mesmas. De maneira geral,
que estão ligados à posição ocupada no campo da pesquisa e ao "inconscienteacadêmico" os mundos escolásticos oferecem posições em que se podem encontrar boas razões para
da disciplina; aqueles que estão associadosao pertencimento ao universo escolásticoe, em apreender o mundo como uma representação,um espetáculo,para observá-lode longe e do
particular, "a ilusão da ausência de ilusão","a ilusão do ponto de vista absoluto"próprio de alto, para organizá-locomo um conjunto destinado unicamente ao conhecimento(MP,33).
qualquer ponto de vista que se ignora como tal. De forma mais concreta, a aprendizagemescolar aparece como a modalidade privilegiada
A autossocioanálise é, em primeiro lugar, uma tentativa de objetivaçãode seu próprio da interiorização de disposiçõesmais ou menos permanentes para operar o distanciamento
"ponto d<;! vista": trata-se de situar socialmente "o ponto" de onde "a vista" é tomada para do real diretamente percebido. Ao objetivar a disposição escolástica (e seus esquemas de
tentar discernir o que "a vista" deve ao "ponto de vista" e controlar os efeitospróprios de pensamento impensados),trata-se de explorar metodicamenteos limites que o pensamento
uma posição e das disposições que são importadas nessa operação - tal procedimento foi escolásticodeveàs condiçõesde sua emergência,tentandolivrar-sedeles.Em que a disposição
203. VEREDICTO
ESCOLAR
204. VIOLÊNCIASIMBÓLICA
GérardMauger
Referências
206. WEBER,
MAX (1864-1920)
Remi Lenoir
No que ele designacomouma "leitura interpretativa"da análise feitapor Webera respeito entre essa oposição e entre as sociedadestradicionais e pré-industriais - onde o princípio
dos agentesdo sistemareligioso(o feiticeiro,o padre e o profeta)e da passagemde uma religião de estratificação era, sobretudo, de ordem da qualidade (status) - e as sociedades de tipo
de tipo mágicopara uma religiãode tipo racionalizadoe sistematizado,Bourdieuopera duas capitalista onde o princípio diferenciadordeveser buscado principalmente no plano das di-
rupturas como procedimentode Weber.Em primeirolugar reconstituio procedimentointera- ferençaseconômicas,o autor de La distinction estende o empregodos dois conceitosa todas
cionistaadotado,"entrelinhas",por Weberem suas análisesdo fenômenoreligioso,rompendo as sociedadese também a todas as classesnas quais essa distinção é válida, embora de modo
coma lógicatipológicatal comoesteúltimo a concebia,mediante a qual os agentessão dotados desigual.Ainda que a teoria weberiana do grupo de status permaneça próxima das teorias
de qualidadesintrínsecas,de propriedadesde essência,apesar das numerosasexceçõesquesão subjetivistasdas classes,cujoprincípiodas divisõessociaisé baseado unicamente nos estilos
. continuamenteassinaladaspelo pensadoralemão.Com efeito,pelo fato de analisar os agentes de vida e nas representações,Weber não a enxergavacomo exclusivae colocavao problema
do sistemareligioso,uns apósoutros,Weberfoiobrigado,segundoBourdieu,a pensar não tanto do duplo fundamento da estratificaçãosocial na objetividadedas diferençasmateriais e na
suas inter-relações,mas sim suas característicasintrínsecas.Em consequênciadisso, o ponto subjetividadedas representações.No entanto, segundo Bourdieu,eleforneceua essa questão
de vista sobre o universoreligiosoque ele leva em consideraçãoem cada circunstânciaé o do uma solução ingenuamente realista ao estabelecera distinção entre dois "tipos" de grupos,
agente,a partir do qual analisao sistema.Dessemodo,Weberesqueceas relaçõesobjetivasque quando o que há é tão somente dois modos de existênciade qualquer grupo.
se estabelecementre os agentessociais,independentementede qualquerinteração,sendo que Bourdieu repetia frequentemente que seus trabalhos se inscreviam na continuidade
boa parte de seus comportamentose práticas só podem ser compreendidostendo em conta a dos grandes fundadores da sociologia.No autor de Economia e sociedade ele encontrou
posiçãona estrutura do espaçoreligiosoem que os agentesevoluem. os instrumentos conceituais que lhe permitiram construir a teoria geral da economia das
É nesse sentido que Bourdieu opera uma segunda ruptura para com a abordagem in- práticas, a economiados bens simbólicos,que representouseu projeto científicomaior e cujos
teracionista de Weber.A construção do sistema completo de agentes e das relações que se fundamentos foram localizadosem Max Weber.
instauram entre eles no interior de um campo não é apenas um procedimento heurístico,
permitindo estabeleceras relaçõesobjetivasentre as posiçõesque estruturam um campo,mas
quepermite também caracterizaro ponto de vista que se pode ter sobreo conjuntodo sistema. 207. WITTGENSTEIN, LUDWIG(1889-1951)
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Trata-sede tomar comoobjetonão uma posiçãoem um campo, mas o campo comoum todo, Louis Pinto
ou seja, o conjunto das posiçõesa partir das quais se engendram as estratégias dos agentes.
Bourdieu ambicionou elaborar uma teoria geral dos modos de dominação, das formas Associadona França,durantemuitotempo,aopositivismológico- correntetantodesconhecida
de poder e daquilo que lhe está inextricavelmenteassociado,uma sociologiacomparada dos quantodesdenhada-, Wittgensteinsó setornouum autorrealmenteimportantea partir dosanos
modos de legitimaçãodo poder e das formas de violênciasimbólicaque lhes são inerentes. 1970.Ele não faziaparte dos pensadoresque os estudantesde filosofiada geraçãode Bourdieu
Se o ponto de partida de sua análise é efetivamentea definiçãoweberiana do Estado, onde eram levadosa ler, tendo sido relegadoà obscuridadepelas tradições nacionais (filosofiadas
se concentra o exercícioda violênciafísica,ele não deixará de analisar, desde seus trabalhos ciências)e pelassucessivasvanguardas:fenomenologia,"estruturalismo"e "pós-estruturalismo"
sobre o sistema de ensino, outra dimensão do Estado, primordial a seus olhos, e da qual vai em suas diferentesvariantes.Nos últimosanos de sua vida, Bourdieudemonstroupreocupação
traçar a gênese e as funções: a monopolizaçãoda violência simbólica:para ele, a força age· coma assimilaçãodeWittgensteinaopós-modernismo,opondo-sea uma interpretaçãorelativista
pela coerçãofísicae também, consubstancialmente,pela representaçãoque dela têm aqueles das "formasde vida"tal comoela haviasidopropostapelospartidáriosdo "programaforte"em
que a suportam. A esse respeito,Bourdieucita frequentementePascal: qualquer efeitofísico sociologiadas ciências,comopor exemplo,DavidBloor(BOURDIEU, 2002).
é forçosamenteacompanhado de um efeitosimbólico. Inicialmente, Bourdieu havia pensado em dedicar a Wittgenstein o livro que, ao final,
Em sua opinião,Weberreduz a legitimidadeàs representaçõesda legitimidade.Nas socie- recebeu a denominação de Méditations pascaliennes. A análise minuciosa de jogos de
dades tradicionaisas relaçõesde dominaçãoocorremna e pela interaçãoentre as pessoas,ao linguagem de Wittgenstein é a ilustração de uma atitude filosóficaque rompe com o estilo
passo que nas sociedadescom forte divisão do trabalho social as relaçõessão mediadas por que Bourdieudesignavapor "escolástico".Aoinvés de puros exercíciosescolásticos,a ciência
mecanismos objetivose institucionalizados,tais como aqueles que produzem e garantem a e a filosofiapodem ser, antes, consideradas como maneiras de reformar nossos modos de
distribuiçãodos títulos de nobreza,monetários,escolares,registrosde propriedade,títulos de ver. Bourdieu encontra em Wittgenstein uma "boa parte de meus sentimentos a respeito da
crédito... , e tantas outrasaquisiçõesjuridicamentegarantidas,de tal modoque essaobjetivação filosofia",citando o próprio filósofoque escrevera:"Qual o interesse de estudar filosofia,se
asseguraa permanênciae a cumulatividadedas aquisiçõestanto materiaisquanto simbólicas. tudo o que ela faz por nós é nos tornar capazesde expressarde modo relativamenteplausível
A distinção entre esses dois modos de dominação é o alicerce dos dois princípios da certas questõesde lógicaabstrusas etc., e se isso não melhora nossa maneira de pensar sobre
estratificaçã~social dos tipos de sociedade distinguidos por Weber: o grupo de status e a as questões importantes da vida de todos os dias, se isso não nos torna mais conscientesdo
classesocial.Bourdieuapoia-senessa oposiçãopara questionar o princípiode uma hierarquia que qualquer jornalista no empregode expressõesperigosasque as pessoas dessa categoria
social única. Mas enquanto Weber, segundo Bourdieu, estabelecia uma correspondência utilizam para seus próprios fins?"(MP,53).
376
INDICE REMISSIVO 377
Causalidade do provável, 118 Formas de classificação, 154,273,359, 361, 230, 233-235, 251,258,263,264, 266-268, 293, Certificado escolar, 86, 105, 106, 136, 273
Ciência, 25, 30, 34, 35, 43, 45, 49, 50, 55, 62, 66, 362 295,297,309,313,319,322, 330,334,250, 351, Título escolar, 146, 178, 190, 279, 304
68-70, 72, 74, 78, 82, 90, 91, 92, 95, 99, 103, Lutas de classificação, 117, 123, 137,273 354,359,360,361,363 Direito, 46, 52, 67, 72, 86-88, 91, 92, 98, 101,103,
118,124, 128-130, 135,143,146,157,158,160, Princípios de classificação, 153, 155, 232, Corpo social, 133, 134, 294 107,131,152,160,180,192,195,196,221,225,
170-173, 177, 192, 199-201,203,210,212,225, 293,294,330,362 Técnicas do corpo, 213; 297 227,235,252,254,277,295,313,314,320, 330,
227,233,236,239,240,242,246,247,249,250, Sistema de classificação, 72, 111,139, 152, Esprit de corps, 61, 95, 134, 179, 211, 277 331,339,344,348,351,359
255,260,261,266,267, 269, 278, 282-289, 292, 158,161,185,209,278,333,349 Espírito de corpo, 179-181,279 Força do Direito, 86
299,300,302,309,310,312,323,324,333,335, College de France, 43, 95, 107,110, 112, 124, 125, Effet de corps,179, 180 Disposição, 23, 24, 26, 27, 29, 30, 35, 36, 39, 41,
337-343, 348,357,367,369 129,144,148,172,174,176,222,249,258,259, Crença,25,29,56,57,67,68, 70, 73, 78, 79,88, · 47, 56, 59, 60, 65, 68-70, 78, 81, 84, 88, 96, 101-
Ciência política, 90-92, 116, 150,284,285 264,303,313,323,329,330,332,340,341,357 91, 92, 94, 110, 112, 128, 134, 135, 137, 139, 105, 116, 120-122, 125, 127, 133-136, 136, 138,
Ciências sociais, 27, 34, 35, 43, 62, 71, 82, Competência, 30, 56, 66, 69, 76, 86, 87, 91, 97, 144,145, 157-159, 189,199,200, 231-233,235, 142, 144-146, 149,151,153,156,158,166,167,
83, 100, 107,108, 124, 126, 128, 130, 131, 98,102,104,105, 136,142,143,145,147, 149, 242,245,246,249,253,254,258,259,261,264, 175, 178-180, 182,186,193,196,198,200,201,
146, 149,164, 172, 173,175, 182,198,201, 150,155,162,163,180,198,214,216,218,219, 272,275,276,280,306,311,319,321,325,326, 203, 208, 213-216, 218-220, 229, 231-233,247,
202,204,223,224,234,238,239,246,247, 235,245, 253-255, 269,280,281,286,292,301, 259,260,263,264,267,279, 281, 290-292, 297,
328,335,337,343,351
249,259,269,271,287,288,301,303,312, 305,320,330,331,362 303,304, 306-308, 310-314,325,327, 334-336,
Produção da crença, 57
323-325,329,332,336,337,339-341,343 Conhecimento, 25, 26, 27, 34, 35, 36, 50, 59, 69, Cultura, 29, 30, 31, 34, 36-38, 43, 58, 59, 60, 62, 340-345,355,360,362,363,368
Classe, 25, 30, 31, 36-39, 42, 48, 56, 58, 59, 69, 70, 77, 83, 88, 93, 95, ll0, 112, 118, 126, 127, 63, 71, 73, 77,83,90, 101,103,105,132, 135- Distinção, 25, 28, 73-75, 79, 80, 88, 93, 94, 104,
72, 73-75, 77, 80, 84, 90, 92, 94, 95, 97, 104, 128,130,133, 135-137,139,145,148,152,154, 139, 143,145,146, 148-150, 156,164,167,174, 106, 108, 110, 114, 119, 121, 122, 132, 135, 136,
105,114,119-123,125,132,133,136-138,142, 156, 157, 160, 161, 166, 170, 174, 182, 185, 178,179,182,192,201,206,210,217-221,234, 137,143, 146-149, 158,161,163, 167, 170, 172,
143,146-150,153-155,158,160,167,176,178, 197, 199,200,201,203-205,212,214,222, 238,241,245,246,259,267,275,278-280,292, 186,188,190,196,228,234,246,247,252,
179, 183, 185, 187,188, 193, 195, 196, 205, 209, 224, 236, 238, 241-243, 245, 246, 252, 253, 294, 305, 317, 325, 327, 328, 337, 360 255,273,278,279,281,290,292,294,296,
214,216,220,221, 235-237,242,260,261,265, 259, 264, 266, 268, 270, 273, 274, 280, 287, Aculturação, 37, 220, 247 320,361,366,367
268,273,292,278,279,293-295,298,304,306, 288, 292, 293, 296, 299, 303, 312, 324, 327, Cultura escolar, 37, 196, 220, 221 Divisão do trabalho, 74, 93, 293, 323, 330, 331
314,315,318,322,323, 326-328, 333,347,356, 328,333-335,337,338,342,343,344,360, Cultura popular, 137-139, 150, 179, 287, Cultural, 105
362,363,367 361,363,365,368 Intelectual, 93, 341
345
Classe dominante, 36, 37, 48, 75, 76, 90, Atos de conhecimento, 34, 152, 154 Cultural, 29-31, 35-38, 43, 44, 46, 52, 55-57, 62, Internacional, 272
94, 105, 137, 147,149, 154, 155, 167, 168, Conhecimento científico, 34, 49, 129, 159, 68, 71, 72, 74, 77, 88, 89, 92, 95, 97, 101, 102, Social, 76, 366
178,184,223,227,235,237,246,272, 173, 247, 260 104, 105, 107, 108, ll0, 116, 119, 132-134, Dom, 30, 40, 55, 56, 138, 140, 142, 149, 151, 166,
273, 292, 306, 310, 322, 326, 327, 328 Conhecimento prático, 24, 28, 70, 95, 126, 136-139, 142, 143, 145, 150, 151, 154, 156, 183,196,228,241,248,263,264,266,296,
Classe social, 24, 29, 36, 37, 48, 63, 103, 253,313,344,349,361 167, 178, 184, 188, 218-222, 224, 227, 245, 326,335,350,351
115, 118-121, 123, 126, 129, 136, 140, Conhecimento praxiológico, 27, 126, 127, 246,254,259,269,270,274-276,282,283, Contradom, 55, 183, 228, 248, 263, 296,
142, 149, 177, 207, 212, 220, 235, 238, 128,182,292,325 285, 294, 305, 306, 308, 310, 311, 324, 327, 326,350,351
245, 261, 271, 278, 281, 290, 296, 306, Consagração, 50, 53, 56, 57, 67, 74, 94, 98, 99, Ideologia do dom, 103, 151, 221, 234, 248
328,330,346,353,363
316,318,328,329,339,366 104, 122, 124, 153, 181, 249, 255, 278, 281, Arbitrário cultural, 36, 37, 129, 136, 137, Dominação, 25, 44, 55, 69, 72-74, 76, 78, 82, 85,
Condição de classe, 120, 121, 126, 164, 310, 319, 320, 355 87, 94, 96, 98, 105, 134, 137, 151-157,159,168,
234,245,246,327,328
362,363 Consciência, 23, 25-27, 34, 40, 41, 45, 62, 93, Herança cultural, 37, 196, 217-219 181, 185, 190, 230, 240, 245, 260, 261, 265,
Consciência de classe, 121 96, 121, 126, 127, 129, 133, 166,214,221, 232, Legitimidade cultural, 37, 59, 246 266,268,273,279,280,292,293,302,306,
Frações de classe, 72, 81, 136, 153, 154, 233, 240, 252, 256, 267, 268, 286, 288, 298, Prática cultural, 29, 30, 32, 34, 37, 38, 42, 312,314,320,326,330,331,338,244,350,
178,185,261,355 299, 305-308, 313, 319, 321, 322, 333, 344, 59, 80, 81, 102, 104, 136-138, 142, 146, 351, 354, 359, 360
Habitus de classe, 75, 83, 163, 164, 298, 350,360,361,363 Dominação cultural, 42, 85, 152
187,298
356,362,363 Tomada de consciência, 159,255, 305, 323, Dominação masculina, 133, 155-157,230,
Denegação, 55-58, 107, 140, 230, 247, 263, 351
Posição de classe, 120, 135, 136, 164, 296 360 Destino, 98, 118, 120, 142, 143, 157, 197, 221, 339,346,360
Classificação, 25, 72, 77, 97, 104, 112, 121, Construção social, 54, 79, 128, 153 Dominação simbólica, 25, 87, 137, 152,
272,306,346,353,356
123, 138, 152, 153, 158, 179, 186, 191, 203, Construtivismo, 128, 129, 215 Determinação social, 74, 143,145,313,338 154,156,292
225,227,244,270,278,283,319,320,328, Corpo, 73-75, 80, 93, 94, 97, 99, 101, 102, 104, Diploma, 30, 67, 86, 97, 101, 102, 105, 106, Dominação social, 27, 28, 230, 327
349, 360, 361 105,124, 132-134, 147,151,158,180,181,183, 109,136,145,146,191,210,279,280,281, Efeitos de dominação, 87, 134, 253
Categorias de classificação, 248 188,193,198,202,208,214,219,221,222,227, Eficácia da dominação, 152, 154, 185
315,331
Mercado, 41, 44-46, 52, 56-58, 61,67,78-80, 85, Notoriedade, 227,238, 247,269, 317 296, 301,306, 309,310,317,318,320,326,329, 266,278,288,290,291,296,298,299,301,303,
89, 93, 94, 101-103,105, 106, 132, 145, 146, Objetivação,34, 35, 50, 53, 75, 96, 112,132,136, 333,336-339,342, 344, 345, 347,350,351,357 304,308,319,324-326,330,331,332,342-344,
154,163,169,184,190,191,213,238,250-255, 154,173,174,199,225,251,268,299,313,333, Posição, 24, 32, 33, 35, 36, 47, 54, 59, 65-69,72, 350,368,369
277,286,289,292,310,314,347,348,350,358 335-338,341-344,366 74, 76, 77,79, 80-82, 84, 87-89,91-94,96-101, Escolástica, 200, 344
Mercado linguístico, 163,250-255,267 Objetivismo, 24, 27, 81, 126-128,182,183,214, 103, 104, 110, 119, 120, 122, 126, 135, 136, Realpolitik da razão, 199,240, 344
Mercado simbólico, 52, 56, 156, 164,270, 233, 260, 262, 296, 321,325-327,368 152, 153, 155, 156, 158, 163, 164, 166, 168, Razões práticas, 174,247,290, 303, 304
294 Opinião pública, 149,243, 283-285,302 175,177-180,190-196,203,209,212,218,223, Reconhecimento, 37, 43, 46, 57-59,69, 70, 72,
Mérito/Meritocracia,92, 104, 105,107,173,199, Ordem social, 79, 94, 106, 121, 129, 134, 143, 225-227,236, 241-243,247-249,259,260,266, 80,86,88,90,101,102,105-108,110-112,124,
202,300,319,325,32~328,331,335 151, 153, 154, 168, 185, 192, 193, 195, 208, 270,274,278-283,286,290,294,295,301,303, 133,135,140,146,151,152,154,156,163,172,
Metacampo, 76 230,244,292, 293,302,307,335,351,361,365 304,306,310,313,314,31~329,332-339,341, 195,212,222,227,231,232,235,241,242,245,
Metacapital, 76, 184 Ortodoxia, 73, 89, 95, 154 343,350-352,354,355,35~362,363,366 24~252,266,293,294,308,310,314,319,324,
Metodologia,26, 107,126-128,170,268,298,347 Patrimônio, 37, 53, 97, 101, 167,168, 178, 183, Posição de classe, 120, 135, 136,296 343,35~360,368,369
Microcosmos sociais, 64 189-191,196,217,218,241,252, 309,314,326 Posição social, 23-26, 28, 68, 75, 80, 119, Desconhecimento,151,156,212,245,264,
Mídia, 43-45, 62, 69, 97,240, 243, 268-271,275, Patrimônio cultural, 103, 106, 217, 310, 125,133,136,149,168,177-179,191,198, 293,294,314,320,335,344
329,346,349,363 327,331 199, 234, 242, 243, 249, 251, 278, 280, Reconversão,106,191,223,273,355
Midiático, 61, 87, 103, 117,225, 238, 260, Patronato, 77, 108, 168, 169,190,288 284,290,303,305,322, 33~338,342, Conversão, 36, 47, 69, 82, 104, 106, 145,
269,270,301,329,330 Pedagogia racional, 221, 328 355,362 175,307, 355
Mimese, 41 Pensamento,26,35,36,42,43,55,83,92-94,99, Posições relativas, 114,118-120,177,190 De capitais, 191,304
Mimesis, 133,362 104,107,117,123,128, 129,131,134, 135,152, Prática, 23-27,29-32, 34, 35, 37-42, 46, 47, 51- Reflexividade, 33-35, 159, 174, 198, 268, 296,
Mobilidade social, 178,271, 306 155,156, 158,159,161,164, 172,176;177,180, 56, 58-60, 65, 68-70,75, 78-81,86, 90, 94-96, 305-308,312,313,324,333,334, 341-345,363
Monopólio,31,65, 66, 77,78, 92, 94-97,109,112, 191,199,200,202,203,206,213,233,234,239, 101,102,104,120-122,124,126,127,129,130, Regra, Regras, 23, 24, 27,40, 46, 52, 54, 59-61,
123,148,155,185,212,280,330,343 240,246,247,251,255,262,265,273,283,297, 133,136-138,141,142,144,146, 147,149,151, 65,66,70,72,73,88,89,91,92,124,126,12~
Da autoridade, 67 302,304,305,312,313,318,321,323,328,33~ 153,154,156,158,160, 163-166,169-171,174, 137,145,156,172,175,182-184,189,190,193,
Da competência, 56 339,343,344,349,356,362,365,368 179,181-183,186-189,191,193,194, 196, 199, 214,217,220,228,232,241-243,248,252,253,
Da violência, 41, 76, 359, 361 Pensamento escolástico, 260, 343 200,209,213-216,218,220,221,224,225,228, 256,272,283,290,296,297,300, 301,303,305,
Da violência simbólica, 72, 76 Pensamento relacional, 51, 288, 289 229,231-234,236,242, 245-248,250,252,255, 307-310,319,322,325,326,341,350,363,368
Do Estado, 184 Pequena burguesia, 59, 60, 122, 290, 306, 351 260-268,270,280,283,284,289,290,292, Relativização,342
Do saber, 93 Poder, 15, 25, 32, 43, 46, 47, 59, 62, 69, 71, 72, 294, 296-300,303-308,312,313,318,319,321, Religião,55, 58, 74,89, 93, 94, 161,164,175,235,
Movimentossociais, 43, 131,132, 139,239,240, 74-77,84, 87, 90, 92, 94-96, 98, 101,102, 105, 324-326,328, 332-334,337,339,341-344,346, 236,274,311,33~339,365,366
338,345,346 109,lll, 118,119,122, 134, 137,143,152-155, 348-352,355, 356, 361-363,366-368 Reprodução,23, 69, 70, 72, 73, 76, 77,84, 94, 95,
Mundialização, 45, 79, 81, 272-274 159,163,165,166,168, 169,174,177,180,181, Práticas sociais, 24, 34, 79, 98, 120, 171, 96, 99, 104-106,108, 115, 123, 144, 145, 149,
Mundo social, 15, 23, 26, 32, 35, 45, 71, 72, 88, 184,185,190,196,202,203,212,214,225-22~ 292,309,352,368 154, 155,157,162,167,168, 179-182,185,189,
91,93-96,104,112,122,123,126-132,135,137, 238,245,247,251,254,255,261,264,272,275, Prestígio, 42, 72, 74, 77, 82, 110, lll, 145, 177, 190,191,193,196,197,211,212,215,219,223,
140, 148,152-155,158-161,163,166,175,176, 276,278-281,292-295,312,314,318-320,322, 178,183,200,210,211,22~235,24~255,279, 226,227,235,236,247,260,261,268,273,278,
180,181,185,186,189-192,197,205,215,216, 328, 329-332, 335, 338, 344, 346, 349, 357, 280,283,294,338,345,357 280,290,292, 293,304, 313-317,326,327,329,
225,233,240-242,244,247,250-251,260, 261, 360,366,368 Privilégio, Privilégios, 29, 30, 34, 47,52, 87,98, 331,338,339
268,271,274,280,282,283,292-295,299,301, Poder simbólico, 72, 79, 95, 109,124,132, 104,108,219,221,240,242,276,307,308, 313, Estratégias de reprodução, 25, 40, 76, 189,
305-308,310,312,313,322,325,330,332,33~ 13~ 163, 185,200,266,292-295,319 32~328,335,344,359,363 190,191,196,197,228,273,304,314,315,
339,341-343,345; 351,360-362, 364 Relações de poder, 87, 95, 119, 139, 163, Projeto,23,30,39,43,6~74,86,88,92,96,116, 326
Neoliberal,44, 45, 58, 62, 78, 130, 131,238, 239, 261,313 125,126,143,158,160,161,165,174,181,184, Modos de reprodução, 76, 168, 196, 227,
266,276,346 Política,30, 34, 35,43-46,56, 58,61,63,65,69,71, 19~202,224,260,263,266,270,272,278,296, 235,244,315
Neoliberalismo,131,234,271,275-277,348 78,79,82-84,87,90-94,96-97,99, 107,116,117, 298,301,316,31~333-340,351,367 Reprodução cultural, 152, 164, 177,227,
Nobreza,76,87, 105,112,113,145,146,168,191, 122, 128, 129,131,132, 137,141,142,149,150, Razão,29,30,34,36,42,46,49, 76,83,8~99, 327
211,273,294,330,331,366 153-156,159,174,175,181,182,185,187,193, 110,lll,125,128,130,138,143,144,155,158, Reprodução escolar, 280,331
Nobre~ade Estado, 77, 87, 131,265, 332 202, 203, 209-211,214,216,217,222,224-226, 159,161,166,170,172,174,183,188,192,193, Reprodução social, 75, 94, 104, 106, 108,
Nobreza escolar, 82, 280 235-240,245,253,256,260,264,266,267,270, 199,200,201,211,214,220,224,226,22~230, 129,148,151-153,164,179,180,189,217,
Nomos,46, 7~ 172,173,201,281,310,369 272,275,276,278,280,282-285,289,292,295, 233,235,238,242,249-251,253,262,263,265, 278,293,309,314-31~32~350
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_OUTRAS
REFERÊNCIAS
DEPIERRE
BOURDIEU
UTILIZADAS CRONOLOGIA
DEPIERRE
BOURDIEU
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numa etnologiada sociedadecabila (populaçãocamponesa habitante das regiõesmon- 1979 - Publica, pela Editora Minuit, o livro La distinction, considerado por muitos como
tanhosas do norte da Argélia). sua obra magna e que lhe valerá a consagraçãointernacional. Trata-se de uma análise
1960 - Em função do agravamento do conflito colonial e diante das posições liberais que dos gostos e julgamentos éticos e estéticos das diferentes classessociais.
assume face à guerra de independência, Bourdieu é obrigado a voltar para a França, 1981 (13 de dezembro) - Em protesto contra a repressão que se abatia sobre a Polônia, Bour-
tornando-se Professor Assistente na Faculdadede Letras de Paris (Sorbonne). dieu lança - juntamente com MichelFoucault- um manifesto em favor do movimento
1962 (2 de novembro) - Casa-secom Marie-ClaireBrizard, sociólogae filha de um médico. Solidariedade.
Dessa união nasceram três filhos,Jérôme, Emmanuel e Laurent. 1981 - É eleito Professor Titular da cátedra de Sociologiado Collegede France.
1961-1964 - É nomeado professor e orientador pedagógicoda Faculdade de Letras de Lille 1982 (23 de abril) - Profere, no Collegede France, a provocadora aula inaugural Leçon sur
(cidadelocalizadano norte da França).Na Universidadede Lille,ministra, pela primeira la leçon (no Brasil:Lições da aula).
vez, cursos sobre os "pais fundadores" da sociologia (Durkheim, Weber, Marx), mas 1984 - Publica, pela Editora Minuit, o livro Homo academicus, obra sobre o universo das
também sobre a antropologia britânica e a sociologianorte-americana. Paralelamente, disposições e práticas dos professores universitários.
prossegueo trabalhode análisedos dados de campocoletadosdurante o período argelino
1989 - Publica, pela Editora Minuit, La noblesse d'État, seu último grande livro sobre o
e em suas constantes viagens de férias à Argélia.
sistema escolar.
1964 - Passa a lecionar na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS)de Paris,
1989 - Funda a Liber, "revista internacional de livros", editada em diversospaíses europeus
credenciando-se também como orientador de teses e estudos científicos.Ao assumir
e em nove Ifuguas, que dirigirá por dez anos. Seu objetivo era a difusão internacional
esse posto, aos 34 anos, tornou-se um dos mais jovens professores dessa instituição.
de trabalhos originais e inovadores no campo das ciênciashumanas e da literatura.
1964 - É indicado por Raymond Aron para sucedê-lo na direção do Centro de Sociologia
1989 - Recebeo título de Doutor Honoris Causa da Universidade Livre de Berlim.
Europeia.
1989-1990 - Preside u~a comissão nacional de reflexãoe estudos sobre os "conteúdos do
1964 - Torna-se diretor da coleçãoLe Sens Commun para a editora parisiense Minuit. Por
ensino", nomeada pelo então presidente da república, François Mitterrand.
mais de duas décadas, Bourdieu dirigiu essa coleção,na qual publicou obras clássicas
(de Durkheim,Mauss, Halbwachs,Cassirer,Bakhtin,entre outros), bem como traduziu 1990 -A partir da década de 1990, Bourdieu assume um papel combativo nos movimen-
e divulgou,na França,grandes autores contemporâneos(entre eles,Goffman,Bernstein, tos sociais antiglobalização e de apoio aos desempregados, aos trabalhadores do
Labov,Goody,Hoggart). campo, aos imigrantes ilegais na França, aos intelectuais perseguidos em diversas
partes do mundo.
1964 - Nessa mesma coleção,publica, em coautoria com Jean-ClaudePasseron, o livro Les
héritiers, sua primeira grande obra no campo da educação. 1993 - É lançada a primeira edição da coletânea, organizada por Bourdieu, A miséria do
mundo (no Brasil:A miséria do mundo), que, apesar de suas mil páginas, teve um
1967 - Funda o Centro de Sociologiada Edm:açãoe da Cultura (CSEC)na EHESS.Neste
enorme sucesso de vendas, tendo sido adaptada para o vídeo e para o teatro.
centro, Bourdieu congregou e dirigiu, por mais de trinta anos, uma grande equipe
de pesquisadores dedicados à compreensão das relações que se estabelecem entre o 1993 - Recebea Medalha de Ouro do Centre National de la Recherche Scientifique(CNRS),
universo da cultura e o campo do poder e das classessociais. um dos mais importantes símbolos de reconhecimento conferidos pela comunidade
científicana França.
1970 - Publica, mais uma vez em coautoria com Jean-Claude Passeron, aquele que se tor-
naria seu mais conhecidolivro no terreno da educação:La reproduction (no Brasil:A 1993 - Funda o Comitê Internacional de Apoio aos Intelectuais Argelinos (CISIA).
reprodução). Na década de 1970,dá início a intensas atividades acadêmicasno exte- 1995 (dezembro) - lança um "apelo dos intelectuais em favor dos grevistas"contra o plano
rior como convidado de instituições importantes, como as universidades de Chicago, governamental neoliberal que ameaçavaas políticas públicas do bem-estar social e da
Harvard, Princeton (EUA);Instituto Max Planck (Alemanha); Universidade de Todai seguridade na França.
(Japão), entre outras. 1996 _ Funda a editora Liber-Raisons d'agir, com uma política editorial que deveria asso-
1975 - Com o apoio de Fernand Braudel, então diretor da Maison des Sciencesde l'Homme, ciar a independência do trabalho científicocom a militância e o compromisso cívicos.
cria o periódico Actes de la Recherche en Sciences Sociales (ARSS),que dirigirá até 1996 - Recebeo título de Doutor Honoris Causa da UniversidadeJohann WolfgangGoethe
os mo~entos finais de sua vida. Esse periódico tornou-se uma das mais importantes de Frankfurt e da Universidade de Atenas. Recebeo Prêmio Erving Goffmanda Uni-
publicações em ciências sociais no mundo. versidade de Berkeley,na Califórnia.
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