Documentos de Académico
Documentos de Profesional
Documentos de Cultura
A imagética pretérita:
perspectivas teóricas sobre a Arqueologia da Imagem
39
40
Nesse sentido, a construção de um modelo referente muitas vezes não é mais que
teórico do referencial visual pertinente à Arqueo- perceptível e nem efetivamente percebi-
logia tem como ponto de partida aquilo que o do. O referente pode não ser perceptível
estudioso considerou definidor de toda a pela simples razão de ser destituído de
imagem e de toda obra e sem o qual ela não toda realidade sensível, ele surge do que
pode existir, justamente aquilo que, de acordo os franceses precisamente chamam a
com ele, o “pan-semioticismo reinante”, muitas imaginação. A imagem não serve apenas
vezes, negligenciou: sua “tecnicidade”. Em para reproduzir com maior ou menor
seguida, explicou a escolha do termo genérico exatidão os aspectos do sensível de um
de referente: referente, mas para dar um aspecto
sensível aos referenciais dos quais eles
Definida, a grosso modo, como
são desprovidos, dentro da realidade
imitante, a imagem é, por sua vez,
não imagética. Porque a imagem é um
necessária à coisa imitada. É preciso um
produto necessariamente técnico em
termo para designar genericamente
relação a um referente, é preciso
aquilo que, na imagem, a técnica usa
distinguir aquilo que nela cabe ao
como trajeto, o que ela tem por fim
referente, e que chamo de tema; e aquilo
mostrar o aspecto. A palavra modelo
que cabe à técnica e que eu chamo de
tornou-se uma concepção muito
esquema. Em outros termos, o tema não
particularizada das ciências humanas e,
é, cabe entender, o próprio referente,
sobretudo, supõe que a imagem deva
mas sua marca na imagem, que visa
representar, sempre, uma realidade
mostrar seu aspecto; o esquema é a
previamente sensível, o que não é o
ordenação dos pontos, linhas, superfíci-
caso. Acho mais cômodo o termo
es ou volumes, próprios a produzir
referente, mas se fiz aqui esse empréstimo
ilusoriamente a aparência do referente,
da linguística, não é devido à atual
resultante do modo como os meios são
mania de encontrar em tudo a semânti-
ordenados final e reciprocamente
ca, nem por confusão induzida da arte e
(Bruneau 1986: 257-258).
da linguagem. É porque, precisamente
nesse ponto, a imagem, que serve para As estruturas teóricas propostas para a
mostrar o universo das coisas, está para análise imagética por Panofsky (1955) e
ele não numa relação idêntica, mas Bruneau (1986) são apresentadas na Tabela 1.
análoga àquela da palavra, que serve ao De acordo com a teorização de Bruneau
dizer (Bruneau 1986: 256-257). (1986: 259), as imagens ou “todas as obras” podem
ser classificadas temática ou esquematicamente.
Assim, o estudioso verificou que a técnica
Essa distinção entre “esquema e tema é funda-
está duplamente associada ao princípio da
mental à análise imagética, pois todo estudo da
imagem, tanto na própria imagem quanto em
imagem supõe a escolha de um ou outro ponto
seu referente, mas que isso não modifica em
de vista, uma vez que tais realidades distintas,
nada a sua relação com a referência. Bruneau
mas dialeticamente solidárias, estão mescladas
(1986: 257) citou o caso extremo da réplica
de modo concreto na imagem” (Bruneau (1986:
definida como algo dotado da mesma eficácia
261). Essa concepção da imagem é essencial,
ergológica que seu referente, mas que não tem
uma vez que se opõe a outras propostas que
em comum o mesmo status sociológico. Em
tendem a confundir a imagem com o referencial
suas palavras:
– o esquema com o tema. Muitos equívocos
A referência não supõe, de modo interpretativos residem, justamente, na ausên-
algum, a realidade da percepção, é por cia de distinção entre esquema e tema. Isso
isso que preferi qualificar a imagem ocorre, segundo Bruneau (1986: 266, 268),
como referencial ao invés de imitativa. O devido ao esquecimento da formalização
41
Tabela 1
A Imagem de acordo com Panofsky e Bruneau
História da Arte
(Panofsky)
Tema Primário Tema Secundário Significado Intrínseco
ou Natural ou Convencional ou Conteúdo
Forma Pura Mundo das Imagens Mundo dos Valores
Simbólicos
Mimese e Grama
ESQUEMA TEMA
Formalização técnica Ordenação Mundo Real ou Imaginário
das Unidades Formais Mínimas
técnica; da interposição do esquema entre a não apenas na mimese, mas também em algo
representação não imagética – o referencial e a que ele denominou o grama – as inscrições que
imagem, “uma prática costumeira entre os acompanham a imagem. Nas suas palavras:
arqueólogos” que conceberam a imagem como Tais inscrições nominais, que apare-
uma simples ilustração dos textos ou ainda cem na imagética grega, não são mais
atribuíram-lhe o papel de transcrição exata e que a tecnicização facultativa de um
visível daquilo que representa. componente constitutivo da imagem. Se
A noção de esquema e sua função mediado- a imagética recorre, tão frequentemente,
ra foi também discutida por Sartre (1987: 64- à escrita, que tem por fim tecnicizar a
65), que o chamou “imagem abreviada, inter- linguagem, é de se esperar que uma
mediária entre o puro sensível individual e o tenha qualquer coisa a ver com a outra.
puro pensamento”, a estabelecer uma continui- Na falta de inscrições inclusas, a imagem
dade entre dois tipos de existência que, em quase sempre possui um título constituí-
última análise, são inconciliáveis, ele “supera e do por palavras, por vezes, inscrito,
resolve em seu seio os conflitos entre imagem e posteriormente, sobre uma etiqueta de
pensamento”. museu. Em suma, está claro que a
A função mais evidente da imagem, na imagem não passa de uma única mimese,
teorização de Bruneau (1986: 269) é a de resultante da representação visual do
produzir uma imitação da realidade percebida referente; ela também resulta de sua
e, nesse sentido, ela é qualificada pelo pesquisa- representação verbalizada, aculturada
dor como mimese. Ocorre que o tema implica pela linguagem. Aquilo que, no tema
42
43
44
às palavras. Nós não podemos mais ção de massa foi tema exaustivamente tratado
reconstruir a experiência de ouvir uma por estudiosos da semiótica.
performance de Homero ou Stesícoros, Ao mesmo tempo, esta função sintética foi
ou assistir a uma peça de Ésquilo, como interpretada, por Molyneaux, como a inércia da
os atenienses do século V o fizeram. Ao imagem:
olhar o vaso grego, no entanto, pode-
O fortalecimento de idéias em
mos ter certeza de que estamos vendo o
algumas imagens é muito poderoso.
mesmo objeto que o comprador original
Representações históricas ou religiosas
e seus amigos viram. Nesse sentido, as
de indivíduos, episódios ou eventos
artes visuais dos gregos, nos falam mais
importantes, fornecem um resumo
imediatamente e diretamente do que a
intenso, denso e engajado de eras
poesia poderia. No entanto, existe aí,
inteiras e situações bastante complexas.
também, um perigo, pois nós estamos
Cada imagem captura literal ou figurati-
olhando os objetos com olhos distintos
vamente, um momento congelado no
e pressupostos culturais, estéticos e
tempo, mas que pode eventualmente
perceptivos diferentes (Shapiro 1994: 10).
durar uma eternidade. Trata-se de um
Como observou Bérard (1974, p. 46-47), conceito estranho: a compressão de
em relação à qualidade semântica dos vasos, tempo e espaço em uma única imagem.
não se trata de negar o valor artístico dos vasos O problema é que a imagem supera o
no plano da História da Arte, mas de verificar tempo e a academia, ao capturar a
uma outra importante função da imagem: “a essência imaginada de um evento de
imagética retém o tema – a história narrada que forma facilmente lembrada, replicada e
pretende transmitir, assim, enquanto a história transportada. Se for um evento huma-
faz os tipos evoluírem, o estilo de cada época os no, é ainda mais resistente à mudança.
modifica”. Nós tendemos a descartar ferramentas e
Não é nenhuma novidade que o acesso aos tecnologias que não são mais necessári-
textos escritos na Antiguidade era muito mais as, mas preservamos a arte, como
reduzido e limitado às elites do que as imagens. símbolos que ainda são válidos à experi-
A linguagem escrita requer um conhecimento ência humana. Imagens e outras
anterior, bem mais específico e vagaroso, para representações visuais possuem, portan-
compreensão efetiva do discurso. A leitura da to, uma inércia tremenda, um poder de
imagem, por sua vez, também exige um conhe- permanência, que pode persistir por
cimento prévio, mas este se dá de modo muito tempo, após as idéias por trás
distinto daquele que é necessário à leitura do delas saírem de moda. Essa persistência
texto. Como recordou Sparkes (1997: 132), nas e, frequentemente, anacronismo, pode
sociedades iletradas ou parcialmente letradas, ser observado na arte ao longo da
as imagens têm um papel importante. Entre os história (Molyneaux 1997a: 6).
gregos, observou o estudioso, o grande impulso
A continuidade ou capacidade de perma-
verificado na oratória e nas imagens indica que
nência da imagem foi abordada por Shanks
o ouvir e o olhar eram mais influentes na vida
(1997) a partir do conceito de retórica do discurso
cotidiana do que o ler. Na atualidade, isso se
imagético engendrado pelas fotografias,
confirma quando observamos que a população
geralmente consideradas um poderoso instru-
tem acesso muito mais facilitado às formas de
mento retórico para estabelecer objetividade.
expressão visual que literárias, ou constatamos
sua utilização indiscriminada na mídia, por Elementos de retórica incluem
meio de agentes do discurso verbal invariavel- técnicas de persuasão, estilos de apresen-
mente congregados ao discurso visual. A tação, formas de argumentação e
influência da imagem nos meios de comunica- arquivos para referência e apoio. Assim,
45
46
47
48
49
50
51
Ela imita tão bem o visto, que visualiza representações teatrais, mas que ao mesmo
o dito. Se a técnica for colocada de lado, tempo era um reflexo da dinâmica interna
as representações visuais e verbalizadas dessa forma de arte.
são, na realidade concreta, muito Outro estudioso a fornecer uma importan-
intimamente mescladas, para que uma te teorização sobre a linguagem imagética foi
preceda ou domine a outra. Por outro Snodgrass (1982: 5; 1987: 11, 13) que também
lado e, sobretudo do ponto de vista que trabalhou com a linguagem narrativa das
nos importa, a técnica, sem a qual não imagens. O autor identificou quatro tipos
haverá imagem, pode indiferentemente principais de métodos narrativos – sinótico,
servir à mimese e ao grama. O esquema monocênico, cíclico e contínuo – utilizados no
não distingue imagens realistas e imaginá- processo de construção da imagética grega.
rias (Bruneau 1986: 175). Esses modos de narração também são encontra-
dos nos repertórios imagéticos das demais
Em relação à análise imagética e textual, sociedades antigas.
Steiner propôs uma reconciliação: O método sinótico é uma convenção por
Os textos são necessários porque meio da qual se representa, em um campo
apenas as fontes literárias contemporâ- delimitado, uma narrativa de episódios que
neas são capazes de nos fazer entender são sucessivos nas versões orais ou literárias;
como os gregos conceituavam a escultu- porém, (condição muito importante) sem
ra; e, as imagens são necessárias aos que uma figura individual apareça duas
textos porque, sem elas, não podemos vezes (o protagonista é apresentado uma
compreender o papel da escultura – única vez na cena). Ele envolve a combina-
como uma classe de objetos. E, em ção de diferentes momentos ou episódios de
certos casos, como um instrumento uma história em uma única representação,
literário utilizado na poesia, retórica e na qual não existe unidade temporal ou
filosofia. A escultura é uma tipologia mesmo espacial. A ação é articulada em
única, a sua tridimencionalidade, a diferentes momentos e lugares, exprimindo
ocupação do mesmo espaço real que o relações de espaço e tempo com grande
espectador habita, e seu lugar central economia de meios, mas dotada de riqueza
nas práticas sociais, políticas, religiosas semântica, capaz de garantir articulação e
e mágicas, imbuem-na de facetas compreensão. A imagem corresponde a um
únicas. Os textos contemporâneos momento impossível que não poderia ser
fornecem informações a respeito das fotografado.
práticas rituais e tradições anedóticas a O método monocênico, por sua vez, é a
respeito das imagens antigas. Textos representação de um episódio isolado e
posteriores possuem mentalidades e preserva a unidade de tempo e espaço, no
programas diferentes. Por isso, existe a momento culminante da ação, também
chamado fotográfico.
necessidade de uma abordagem mais
Em seguida, no método cíclico, a narração
ampla, em que o todo gere uma
dos episódios se dá por meio de quadros
narrativa mais coesa e completa do
sucessivos, separados fisicamente, com a
papel das estátuas na vida cotidiana,
repetição da figura do protagonista e outros
nos pensamentos e práticas dos antigos
personagens em cada cena.
espectadores (Steiner 2001: xiv).
Finalmente, o método contínuo é uma
A análise de Shapiro (1994: 6), da mesma variante do cíclico, no qual não há limites
forma, demonstrou que o repertório do físicos entre os episódios individuais. Ele não
pintor possuía um fluxo constante que era foi uma invenção grega, mas do Oriente
em parte uma resposta ao estímulo externo, Próximo e reaparece, por exemplo, na Arte
como as novas obras literárias ou, mais tarde, Romana (ver Moret 1975: 299).
52
53
Em alguns casos, as unidades não ocorrem atravessada pelo olhar que se carrega de
em número suficiente para permitir que o tema sentido é aniquilada enquanto imagem
surja claramente a partir do esquema, ou seja, de pelo olhar-leitor. No significante mítico,
forma que a imagem possa ser identificada. As a forma é vazia, mas presente, o sentido
dificuldades provêm precisamente, acredita o está ausente e, portanto, pleno. A
estudioso, das tendências erradas adotadas imagem tem, de alguma maneira, o
pelos arqueólogos que procuram descrever papel de catalisador, despertando no
apenas aquilo que está relacionado às imagens espírito mecanismos reminiscentes e
– o esquema –, ao passo que são as unidades associativos que fazem com que o
formais mínimas que criam os elementos espectador conecte a cena que tem
diferenciais geradores dos temas – o sentido. diante dos olhos a um contexto familiar
Assim, diferente do sistema linguístico, o (Barthes 1970: 195, 209).
sistema iconográfico é fechado porque a imensa Nesse sentido, Sarian observou que:
maioria das unidades formais mínimas,
suscetíveis de combinação, não é arbitrária. Na narração e na transmissão de
A mesma idéia foi compartilhada por mitos e ritos, o pintor imprime nas
Moret (1975: 4), outro estudioso da Imagem, imagens uma versão que corresponde às
pois “longe de ter um papel passivo o especta- crenças coletivas, aquelas que se cristali-
dor também constrói a cena que tem diante dos zaram na aceitação popular. O universo
olhos em função dos esquemas preexistentes”. imagético tinha, por isto, um grande
O conhecimento que ele tem do mito ou que, alcance: inspirado na tradição e voltado
em alguns casos precisamente, não tem, dita o para o grande público estava na conflu-
seu comportamento diante da imagem: ele ência dessas direções, o meio propulsor
projeta sobre a mesma aquilo que já sabe, e o meio receptor. A tal ponto que para
aquilo que espera encontrar. Nos vasos, o o grego antigo, identificar imagem
observador não saberá o sentido se não mítica ou religiosa era reconhecer o seu
conhecer antes o tema e entender de mitologia próprio patrimônio espiritual (Sarian
grega para decifrar o conteúdo das representa- 1987: 48).
ções. Mesmo o especialista, diante de uma cena
que não é descrita nos textos ou cujas fontes
não fornecem um testemunho correspondente, 5. A semântica imagética: continuidade e
será incapaz de encontrar a chave para a inovação na imagem
interpretação. Para esse arqueólogo:
O elemento visual é, sem dúvida, O modo como o repertório imagético
primordial, mas é apenas um modo de evolui, seja na forma ou significado, sincrônica
representação. A imagem tem uma ou diacronicamente, é algo extremamente
semântica de segundo grau. A leitura é pertinente e abordado de modo recorrente
sempre referencial, ou seja, ela remete a pelos estudiosos da Imagem. Assim, a verifica-
um dado que não está inteiramente ção dos elementos intrínsecos ou extrínsecos
contido na imagem. O termo leitura é, que condicionam a estabilidade ou as modifica-
nesse sentido, mais que uma metáfora ções esquemáticas e temáticas e que afetam
na medida em que há uma assimetria diretamente a semântica imagética merecem
entre a leitura e a visão (Moret 1975: 299). algumas considerações.
Como observou Focillon, pode-se conceber
Tal fenômeno foi explicitado por Barthes, a iconografia de muitos modos:
que observou:
Seja como a variação das formas
A imagem se torna escrita no instante sobre um mesmo sentido, seja como a
em que se torna significativa, ao ser variação dos sentidos sobre a mesma
54
55
56
jogo de ações e reações exercidas pelo mito provar que o pintor não se inspirou em uma
sobre a imagem, e da imagem sobre o mito, tradição literária que não chegou até nós”
ocorre a metamorfose de duas entidades. É por (Moret 1975: 301). Como vimos, uma origem
isso que o estudioso afirma que na iconografia nas fontes textuais é apenas uma das diferentes
só se pode falar de sinonímia em sentido possibilidades existentes para a gênese de uma
figurado, situando essa identidade de significa- representação, prová-la ou não nem sempre está
ção para além da cena representada. A escolha ao alcance do pesquisador.
dos temas responde a um plano premeditado e Autônoma, a tradição figurativa evoluiu
as cenas lendárias, em vez do valor em si independentemente da tradição literária. Essa
mesmas, convergem em direção a uma mesma liberdade não causou, imediatamente, a
idéia, na qual o sentido se manifestará apenas desintegração dos tipos nem a ruína da imagética
na unidade do programa ao qual ela será lendária, mas, nesse processo de fusão e
subordinada. padronização, as cenas foram banalizadas. O
Em relação ao fenômeno da homonímia, repertório de temas representados torna-se
Moret (1975: 298) o descreveu como “as sempre mais restrito em meios novos de
imagens de aspecto idêntico, ou quase idêntico, expressão. Aí reside a razão do emprego de
às quais são atribuídos sentidos distintos”. O esquemas iguais para temas diferentes. Assim,
equivalente linguístico seria o da poesia ou dos segundo Moret, o fenômeno de sobrevivência
esquemas métricos fixos, sobrepostos aos da forma apesar da morte do conteúdo origi-
códigos comuns e suscetíveis a receber conteú- nal, descrito por Focillon, era impossível de
dos semânticos diferentes. Na expressão escrita, acontecer no período de formação da mitologia
a precisão não é a mesma, os sentidos se figurativa:
cristalizam com a ajuda de elementos ou de
Forma e conteúdo ainda não eram
signos secundários. Na iconografia esses traços
elementos independentes, associados
precisos também existem: são os elementos
ocasionalmente, mas componentes
decorativos, os atributos ou elementos secundá-
indissociáveis de uma mesma e única
rios que permitem estabelecer a situação
realidade: a representação. Inseparáveis,
lendária em questão.
os dois termos eram função um do
Assim, pode-se falar de determinação
outro, a significação do episódio era
contextual. Do mesmo modo que na linguagem
amplamente condicionada pela maneira
o sentido de uma palavra depende do contexto
como era representado e, inversamente,
em que aparece, na iconografia, um motivo
o meio de expressão era ditado por seu
pode mudar de acepção de acordo com a cena
tema. (...) A variação dupla só é viável
em que é empregado. O contexto deve indicar
em um estado avançado de evolução, em
com clareza sem que reste qualquer dúvida. A
que os dois termos em jogo, tipo formal
cena deve ser lida em sua totalidade para poder
de um lado, situação lendária de outro,
precisar o valor do motivo e determinar aquele,
adquiriram uma rigidez suficiente
entre os sentidos, que convém à ocorrência. Do
(Moret 1975, p. 305).
contrário, a ausência de todo traço pertinente
conduzirá a uma ambiguidade irredutível. A abordagem de Lissarrague e Schnapp
No momento em que o pintor esboça a (1981: 285), por sua vez, seguiu outra direção.
cena, lembrou Moret, ele também se refere ao Para os autores, a imagem não pode ser lida
mito específico, do qual tem um conhecimento como uma mera ilustração – de um texto, de
mais ou menos preciso. A menos que ele copie um ritual ou de um evento político –, mas
uma outra representação figurada, ainda assim, como um conjunto de signos com sua lógica
trata-se de uma transcrição por referência: “as própria. Por isso, lhes interessam as fórmulas,
inovações ocorrem, quase sempre, nos detalhes, as repetições, mais que os detalhes, ou as
mesmo no caso de uma situação inteiramente singularidades. Assim, o lugar da imagem no
nova e, até então, desconhecida, não podemos vaso e sua relação com as demais cenas figura-
57
das no mesmo vaso, remetem a uma significa- representação em relação aos demais, maior a
ção tão importante quanto a evolução ou a probabilidade de ele ser encontrado e observa-
difusão da própria imagem. do pelo espectador. A distribuição e visibilidade
Essas questões remetem aos conceitos de relativa dos elementos materiais dessa informa-
intertextualidade e, por conseguinte, de ção representada podem, portanto, ter uma
intericonicidade. A intertextualidade, termo relação demonstrável com a sua significância
cunhado por Kristeva (1967: 438-465), foi comunicativa (cf. Molyneaux 1997b: 112).
utilizada pela linguística para designar a Acontece, como observou Molyneaux
influência ou a utilização de um texto, ou de (1997b: 103, 114-115), que a representação da
uma multiplicidade de textos, ou excertos de informação em si é sensível ao estímulo
textos preexistentes, que são utilizados como ideológico durante a situação da produção.
modelo ou ponto de partida e cuja interação Assim, as forças ideológicas atuantes em uma
resulta na elaboração de um novo texto sociedade afetam a posição que o artista toma
literário. A intericonicidade, por extensão de em relação a temas específicos e, portanto,
significado, remete aos processos de produção influenciam a organização da significação social
de uma imagem, a partir da reutilização de nas representações. As representações ampliam
outra imagem preexistente, ou dos elementos e reforçam mensagens existentes que aparecem
formais de uma imagem na elaboração de uma em outras formas. A análise da paisagem social,
nova imagem. Assim, uma imagem, ou ima- apresentada pelo autor, decorre do estudo da
gens, é transportada para outro contexto interação social e das relações de status presen-
imagético diferente daquele original e tais tes nas representações visuais, por meio das
representações podem até, nos casos mais quais o artista consegue comunicar o status
extremos, adquirir uma outra significação. A individual das figuras utilizando a forma. Isto é,
intericonicidade está, portanto, associada não o esquema formal é utilizado como um instru-
apenas ao contexto de produção artística, no mento de estímulo na paisagem metafórica da
qual se deu sua aplicação, mas também remete imagem, como meio de chamar a atenção para
a todos os aspectos da dinâmica social, política seus aspectos significantes.
e ideológica do período em que se desenvolve.
O artifício compositivo mais direto a
Nesse sentido, o conceito de intericonicidade
informar o status e poder da realeza é a
refere-se à assimilação de diferentes padrões
visibilidade, pois esta é representada em
iconográficos, de origem autóctone ou estran-
escala monumental para chamar, num
geira, anterior ou contemporânea, em uma
primeiro momento, a atenção do
determinada representação ou conjunto
espectador. Mas o artista recorre a
imagético, capaz de criar diálogos distintos dos
estratégias mais sutis que a escala, para
originais e favorecer o desenvolvimento de
dirigir o olhar do espectador a outros
novos esquemas iconográficos.5
elementos compositivos: o movimento
(Molyneaux 1997b: 116-117).
6. Visibilidade e proporcionalidade imagética: Assim, as diferenças nas relações ideológi-
a análise proxêmica cas presentes no âmbito social são sinalizadas
pelas distinções na visibilidade dos respectivos
Algumas teorias da percepção aplicadas à indivíduos ou elementos no campo da arte.
imagem consideram-na um processo de varre- Uma análise dos fatores informacionais, externos
dura visual que envolve atenção seletiva sobre ao significado, favorecem a verificação dos
elementos informativos específicos. Assim, ajustes visuais presentes em diferentes situações
quanto mais visível está um elemento em uma ideológicas, num longo período de tempo.
Segundo Molyneaux (1997b: 122-123), é
possível analisar e interpretar a visibilidade relativa
(5) Para uma aplicação dessas teorias, ver Aldrovandi 2006. das figuras de uma maneira neutra e objetiva,
58
Referências bibliográficas
59
60
61