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Mariana Cavalcanti
Antropóloga, professora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da
Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV)
O artigo toma o tiroteio na favela como ponto de The article Shootouts, legibility and urban
partida para tecer uma etnografia do modo como space: Ethnographic notes from a favela in Rio
o medo e a incerteza relacionados à “violência ur- de Janeiro takes shootouts in Rio shantytowns
bana” (como representação social) vêm sendo in- as a point of departure for an ethnography of
ternalizados por seus moradores. Seu núcleo analí- the ways in which fear and uncertainty related to
“urban violence” (conceived here as a social rep-
tico recai sobre a perspectiva do espaço da favela, resentation) are incorporated by favela residents.
tal como vivido e experimentado pelos moradores. The hypothesis developed here is that the social
A hipótese desenvolvida é a de que, da perspectiva (re)production and construction of the space of
da experiência vivida, a (re)produção e construção the shantytown is pervaded by dynamics and
social do espaço da favela são atravessadas por routines to a great extent imposed by the drug
uma série de dinâmicas e rotinas em grande parte trade, but are also reproduced by public, private
impostas pela ação do tráfico, mas também repro- and “third sector” actors – including residents’
duzidas pela ação de atores públicos, privados ou own quotidian risk avoidance routines. The analy-
do terceiro setor, incluindo aí as estratégias cotidia- sis of such routines and spatial tactics brings to
nas dos moradores de evitar riscos. A análise de tais light a certain territoriality that is productive of
rotinas e dinâmicas traz à tona uma certa territoria- practices that aim at rendering the city space vis-
lidade que produz noções e práticas de visibilida- ible and intelligible. Finally, this article examines
de e inteligibilidade do espaço físico urbano, cuja how this reading and interpretation has become
leitura e interpretação passam a constituir uma a hermeneutic activity that is constitutive of the
atividade hermenêutica constante e constituinte habitus of favela residents – within and outside
do habitus de seus moradores – dentro e fora das the communities in which they live.
comunidades onde vivem.
N
o Brasil em geral – e de modo mais acentuado no Recebido em: 30/06/08
Aprovado em: 10/07/08
Rio de Janeiro – os temas da segurança pública, da
criminalidade e da “violência” urbana, em suas múl-
1 A pesquisa na qual o pre-
tiplas interseções, vêm constituindo um campo em franca sente artigo se baseia foi de-
expansão nas ciências humanas desde os anos 90, o que, senvolvida graças ao apoio
da Fundação Capes, através
por sua vez, reflete a força política e a magnitude dos efeitos de bolsa de doutorado ple-
desses fenômenos sociais (e particularmente de suas repre- no no exterior entre 2001 e
2005, e da Foundation for
sentações) sobre o cotidiano da cidade. Se, de um lado, essa Urban and Regional Stu-
dies (FURS), através de um
não é uma prerrogativa exclusiva do Rio de Janeiro, posto studentship concedido no
que o boom em estudos sobre violência e criminalidade, bem período 2005-2006.
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como o imaginário das “obsessões criminais” (COMAROFF
e COMAROFF, 2004) como fato e representação social que
os acompanha, pode ser verificado tanto nas grandes me-
trópoles dos países ditos centrais quanto nas cidades do “sul
global”, é fato que o vasto campo de estudos da “violência ur-
bana” ou da “segurança pública” vem se fincando como uma
das principais frentes de trabalho das ciências sociais.
Hoje sabemos bastante sobre os modos de funcionamen-
to das quadrilhas de traficantes (DOWDNEY, 2003; MISSE,
1997; ZALUAR, 1985; 1996; 2004), do mercado de armas ile-
gais (DOWDNEY, 2003; RIVERA, 2004), sobre diversas ini-
ciativas locais, estatais e conjuntas que visam amenizar, con-
ter, ou reverter os avanços da criminalidade (JUNIOR, 2003;
CUNHA, 2006), sobre os movimentos de vítimas da violên-
cia – tanto no “asfalto” (BIRMAN e LEITE, 2004) quanto
na “favela” (NOBRE, 2005; FARIAS, 2007), sobre a atuação
policial e suas práticas de profiling social e racial (RAMOS
e MUSUMECI, 2005), sobre os novos dilemas que a crimi-
nalidade violenta vem colocando para a institucionalidade
democrática não só nas favelas, mas também em outras áreas
habitadas por populações de baixa renda (MACHADO DA
SILVA, 2002; 2004; MACHADO DA SILVA e LEITE, 2004;
2007; LEITE, 2000; PERALVA, 2000), sobre os novos espaços
fortificados e as formas de sociabilidade por eles engendra-
das (CALDEIRA, 2000; RIBEIRO, 1997); e sobre as imagens
construídas pela mídia do tema (RAMOS e PAIVA, 2005),
bem como os efeitos de realidade de tais representações
(CAVALCANTI, 2001; VAZ e LISSOVSKY, 2007; VAZ et al,
2005a, 2005b).
Sem a intenção de fazer uma revisão bibliográfica ou
sequer de propor uma listagem que esgote as temáticas, or-
ganizando o campo, o propósito desse brevíssimo panorama
é chamar a atenção para como a justaposição do medo, da
criminalidade e da insegurança é em si mesma produtora de
novas formas sociais – que, por sua vez, se oferecem como
objetos de investigação. Em jogo em tais estudos está uma
série de proposições sobre usos, disputas, apropriações e mo-
dos ou regimes de ordenar o espaço da cidade. Este último,
no entanto, raramente aparece como objeto de análise em si.
Ainda que a questão da criminalidade violenta implique jus-
tamente a produção de novas experiências, rotinas, e dispu-
Eu acho que você tem que ter seu pé no chão, né? Se você tá
fazendo a sua parte, você não tem porque ter que ficar aturando
humilhação de pessoas, né. Se você tá fazendo direitinho... Não,
não aturo não. A pessoa [“patroa”, quando se trata de “casa de fa-
mília”] assim... não é [bem] nervosa, [é] sem paciência. Aí pra não
discutir, eu prefiro sair. Não é?
M: Isso. E quando...
[tiros]
S [interrompendo]: Tiro.
M: Isso é tiro? Cadê eles [as crianças]?
S [para Clara]: Chama lá ele pra mim, Clara. [já levantando para
sair] Deixa que eu... [saindo] Isso é tiro.
[Sonia corre; eu pulo em direção à porta. Clara ofega. Sonia tropeça
em um balde d’água, que quase vira. De fora vem o barulho de mais
tiros e a voz de Sonia chamando seu filho: Leo! Leo!]
Clara [para mim]: Melhor ligar que a tia Samanta deve tá que tá...
M: Isso, melhor dizer que tá tudo bem, a gente tá aqui...
[Sonia e Leo entram]
S: Caraca, muito tiro...
M: Muito. [mais tiros, o som mais abafado com tudo fechado]
S: Cadê o alicate? Ali onde eu botei! [Riu] Desligou, Mariana, ou
continua gravando?
M: Continua...
[Sonia ri mais ainda ao ver a água esparramada]
S: Engraçado, foi muito engraçado agora… Caraca, muito tiro.
Clara: Cadê o celular?
M: Tá aí, não tá? Não tá ali na parte de trás?
S: Tá brincando? É por isso que eu não deixo as crianças soltas
do lado de fora, tá vendo? Eu não gosto de deixar eles lá. [mais
uma rajada] Ó.