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r e v i s ta

direitos
humanos
Dalmo de Abreu Dallari

Mary Robinson

Marco Antônio
Rodrigues Barbosa

Ricardo Brisolla Balestreri

Ana Rita de Paula


Izabel Maria Madeira
de Loureiro Maior

Carmen Silveira de oliveira


Maria luiza moura de oliveira

Baltasar Garzón

Augusto Boal

Sebastião Salgado

Edição comemorativa
60 Anos da Declaração Universal
dos Direitos Humanos
01
d e z e m b r o 20 0 8
Apresentação

N
asce uma nova revista sobre direitos humanos no Brasil. Já
existem importantes publicações, de diferentes perfis, voltadas
a distintos focos de interesse. Mas faltava uma, de abrangência
nacional, com abordagem mais diretamente centrada nos temas da Educação
em Direitos Humanos.
Ela tem caráter institucional, mas tal identidade não deve resultar em oficia-
lismo chapa branca. Governos democráticos não podem temer a convivência
com a crítica. A vocação da revista é desenvolver reflexões e um diálogo franco
com a sociedade civil. Seu formato e linguagem buscam um ponto intermediá-
rio entre a elaboração acadêmica e aquela mais sintética das lutas populares.
Os movimentos sociais e as ONGs dessa área, as instituições e autoridades
dos poderes públicos que cuidam do tema, os segmentos universitários perti-
nentes sabem que a Educação em Direitos Humanos é o eixo mais estratégico
para a construção de uma nova consciência nacional e de um novo patamar de
respeito à dignidade intrínseca da pessoa humana, consagrada na Declaração
Universal de 10 de dezembro de 1948.
O lançamento faz parte da agenda brasileira de celebração dos 60 anos des-
sa declaração, ao lado de marcantes eventos ocorridos em 2008, alguns com
forte marca de ineditismo, como a Conferência Nacional dos Direitos Humanos
do segmento LGBT, realizada em Brasília no mês de junho, por convocação do
presidente da República, que também presidiu um pioneiro encontro, em São
Paulo, no mesmo mês, com presidentes e dirigentes de grandes empresas,
convocando-os ao engajamento claro nos compromissos com os direitos hu-
manos orientados pelo Pacto Global da ONU.
Entre 15 e 18 de dezembro se realiza em Brasília a 11ª Conferência Na-
cional dos Direitos Humanos, com aproximadamente 1.400 participantes, cuja
pauta central é a revisão e atualização do Programa Nacional de Direitos Huma-
3
nos (PNDH), que o Brasil formulou em 1996 e ampliou em 2002.
Revista Direitos Humanos

Um desafio colocado para a terceira versão do PNDH é incorporar a agenda


programática resultante de grandes encontros nacionais ocorridos desde 2003
Aprese
sobre o vasto leque de questões relacionadas à proteção dos direitos humanos. Milha-
res de pessoas já participaram em alguma etapa das 50 conferências abordando edu-
cação, saúde, meio ambiente, igualdade racial, equidade de gênero, cidades, criança
e adolescente, juventude, segurança alimentar, desenvolvimento agrário, economia
solidária, muitos outros temas.
Em novembro, no Rio de Janeiro, nosso país sediou o mais importante congresso
mundial já realizado para articular o enfrentamento da exploração sexual de crianças
e adolescentes, reunindo nada menos que 170 países e 3.500 congressistas. Em
dezembro, ocorreu em Brasília a 2ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com
Deficiência, precedida pelas etapas estaduais, da mesma forma que as outras confe-
rências mencionadas acima. Em março de 2009 se completará o processo da 2ª Con-
ferência Nacional dos Direitos do Idoso, que já concluiu em 2008 sua fase federativa.
Temos um cenário de conquistas palpáveis, que encorajam nossa determinação
de avançar rumo a metas mais desafiadoras. Mas também presenciamos a repetição
de intoleráveis violações, dando a tônica no cotidiano nacional: violência criminal,
torturas e desmandos policiais, presídios, racismo, homofobia, discriminações e
violência contra a mulher, contra idosos e contra pessoas com deficiência, per-
sistência do trabalho escravo, desrespeito às normas do Estatuto da Criança e do
Adolescente, criminalização de movimentos sociais e assassinato de indígenas ou
lideranças de trabalhadores, e a impunidade ainda prevalece largamente sobre as
apurações exemplares.
Essa convivência entre avanços e violações tem sido marca constante desses 20
anos de reconstrução democrática do País, a partir da Constituição de 1988. Numa
trajetória de Estado, o Brasil já deu passos importantes no sentido de incorporar os
instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos ao nosso sistema nor-
mativo. Programas novos são iniciados a cada ano, em diferentes áreas. Mas os passos
já dados não superam o muito que ainda resta de caminhada.
entação
A revista é mais um passo. Pequeno ou grande, o passo vai na direção certa. O ani-
versário de 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos perpassa todas as
matérias deste primeiro número, que exibe diversidade de temas e reflexões muito ri-
cas. A tiragem inicial será de 8.000 exemplares, com o importante detalhe de que 500
deles serão em espanhol, porque não somos apenas Brasil. Somos Brasil e Mercosul,
somos Brasil e Unasul, somos um Brasil que está decidido e talhado à integração cres-
cente com nuestra America, dos sonhos de Bolívar, de Che e de Salvador Allende.
Buscando respeitar o tamanho de nossas pernas, a publicação nasce semestral.
Mas já planeja virar quadrimestral, quem sabe trimestral depois, ou bimestral, ou... O
certo é que ela vem para ficar. A montagem de seu Conselho Editorial foi concebida com
essa predestinação. Diferentes áreas, diferentes geografias, diferentes opiniões políticas,
partidárias, religiosas ou filosóficas estão refletidas na composição de seus 22 integran-
tes, que aceitaram incorporar mais esta trincheira a suas pesadas agendas.
Fica aqui registrado um enfático apelo aos futuros titulares da área de direitos hu-
manos do governo federal, para que não deixem a sequência ser interrompida. Uma
revista vale muito como série histórica. Só com o passar dos anos torna-se referência,
fonte para pesquisas e estudos posteriores, medição e fotografia dos debates que
prevalecem em cada período.
Na saudável alternância de partidos no poder, própria das democracias, é claro que
o voto popular autoriza os governantes a introduzir mudanças e ajustes, deslocando
prioridades. Mas o apelo vale como alerta no sentido de que, em direitos humanos –
talvez mais do que em qualquer outro segmento –, a acumulação ao longo dos anos, o
prosseguimento, a persistência e a perseverança compõem um imperativo categórico,
ao qual estamos todos obrigados.

Brasília, 10 de dezembro de 2008


Paulo Vannuchi
sum
ário sumário>>

8
Direitos humanos:
sessenta anos de conquistas
Dalmo de Abreu Dallari

17
12
Balestreri
Ricardo Brisolla

e Direitos Humanos
Segurança pública
Concretizando nossos
compromissos

Mary Robinson

26
6
Direito à memória
34
Revista Direitos Humanos

e à verdade
Um mundo
Marco Antônio Rodrigues Barbosa todos: Univ
direitos e d
Ana Rita de Paula
Izabel Maria Madeira
Expediente
Presidente da República

40
Luiz Inácio Lula da Silva
Ministro da Secretaria
Especial dos Direitos Humanos
Paulo Vannuchi
Secretário Adjunto
Maioridade para os direitos humanos Rogério Sottili
da criança e do adolescente
Conselho editorial
Carmen Silveira de oliveira
Maria luiza moura de oliveira Paulo Vannuchi (Presidente)
Aída Monteiro
André Lázaro
Carmen Silveira de Oliveira
Dalmo Dallari
Darci Frigo
Egydio Salles Filho
Erasto Fortes Mendonça
José Geraldo Souza Júnior
José Gregori

46
Marcos Rolim
Marília Muricy
Izabel de Loureiro Maior
Maria Victoria Benevides
A verdade, onde estiver Matilde Ribeiro
Nilmário Miranda
Baltasar Garzón Oscar Vilhena
Paulo Carbonari
Paulo Sérgio Pinheiro
Perly Cipriano
Ricardo Brisolla Balestreri
Samuel Pinheiro Guimarães

Coordenação editorial:
Erasto Fortes Mendonça
Mariana Bertol Carpanezzi
Patrícia Cunegundes
Paulo Vannuchi

Revisão:
Bárbara de Castro, Joíra Coelho, Luciana Melo

52
Projeto gráfico e diagramação:
Wagner Ulisses

Ilustrações:
Lívia Barreto
Augusto Boal
Entrevista

Produção editorial:
Jacumã Comunicação

Secretaria Especial dos Direitos Humanos

62
Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Edifício
Sede, sala 424
70.064-900 Brasília – DF
direitoshumanos@sedh.gov.br
www.direitoshumanos.gov.br
Sebastião Salgado
Imagens

Distribuição gratuita 7
Tiragem: 8.000 exemplares
Revista Direitos Humanos

de todos para Direitos Humanos é uma revista semestral


publicada pela Secretaria Especial dos Direitos
versalização de Humanos da Presidência da República do Brasil

direito à diferença As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade


exclusiva dos autores e não representam necessariamente a
posição oficial da Secretaria Especial dos Direitos Humanos
da Presidência da República ou do Governo Federal.

ra de Loureiro Maior Todos os direitos reservados. É permitida a reprodução


parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e não
seja para venda ou qualquer fim comercial.
artigo

Dalmo de Abreu Dallari – jurista e


professor emérito da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (USP), Dalmo de
Abreu Dallari é autor de vários livros – e, entre
eles, o clássico Elementos de Teoria Geral
do Estado. Entre outras atribuições, ocupa
atualmente assento no Conselho de Defesa
dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH).

Direitos humanos:
sessenta anos de conquistas
Dalmo de Abreu Dallari
1. A Declaração Universal de 1948: Na denominação dada ao documento e
compromisso humanista nas afirmações constantes do artigo primeiro

H
á sessenta anos a humanidade deu estão contidos alguns elementos esclarece-
início a uma nova fase em sua his- dores da mais alta importância, que dão o
tória, registrando num documento testemunho do extraordinário avanço já ob-
lúcido e objetivo a tomada de consciência tido, em comparação com dados anteriores.
do valor primordial da pessoa humana e Com efeito, o primeiro documento que teve
de seus direitos essenciais e universais, a denominação de Declaração de Direitos
inerentes à sua própria natureza. Isso já é foi o que a Assembléia Nacional da França
ressaltado, com muita evidência, em sua aprovou em 1789, num dos momentos mais
8
denominação, “Declaração Universal dos expressivos de afirmação da vitória da Revo-
Revista Direitos Humanos

Direitos Humanos”, e é enfaticamente pro- lução Francesa, que punha fim ao chamado
clamado em seu artigo primeiro, que inicia Antigo Regime e começava uma nova fase
com o seguinte enunciado: “Todos os seres na história da humanidade. O documento
humanos nascem livres e iguais em digni- então aprovado foi designado “Declaração
dade e direitos”. dos Direitos do Homem e do Cidadão”, o que
despertou reações veementes dentro da pró- qualquer exceção, nascem livres e iguais, 2. Os direitos humanos e
pria Assembléia, denunciando o seu caráter deixa expresso que a Constituição e o siste- os caminhos da História
discriminatório contra as mulheres. Isso foi ma legal que contiverem exclusões ou dis- Perde-se na origem dos tempos o reco-
negado pelos líderes da maioria, que eram criminações quanto aos direitos humanos nhecimento de que os seres humanos são
franceses brancos e ricos, mas o espírito dis- não têm o valor de documentos jurídicos criaturas especiais, que nascem com cer-
criminatório foi confirmado logo em seguida. autênticos, são falsificações maliciosas que tas peculiaridades, incluindo necessidades
Basta lembrar que, à semelhança dos Estados não merecem respeito e devem ser elimi- básicas de natureza material, psicológica e
Unidos da América, criados com a aprovação nadas. Os direitos humanos são atributos espiritual, que são as mesmas para todas as
da primeira Constituição escrita da história, naturais de todos os seres humanos, que pessoas. Entre tais peculiaridades encontra-
em 1787, a França impediu o acesso das
mulheres aos altos cargos do governo e da
Administração Pública. “Há pessoas que colocam suas
Assim, a afirmação de que os direitos
humanos declarados são de “todos os se-
ambições pessoais, sua busca de
res humanos” exclui qualquer espécie de poder, prestígio e riqueza acima
discriminação. Isso tem ainda grande im-
portância, para constatação dos avanços, dos valores humanos”
pelo fato de que tanto os Estados Unidos
quanto a França se basearam na afirmação nascem com eles e que a sociedade, o Es- se também a possibilidade de se desenvolver
da existência de direitos naturais das pes- tado, os governos ou quem quer que seja interiormente, de transformar a natureza e de
soas, primeiro deles o direito à liberdade, não podem restringir com legitimidade. E estabelecer novas formas de convivência.
sendo bem conhecido o lema da Revolu- aí se enquadra a dignidade humana, que Tudo isso levou à conclusão de que o ser hu-
ção Francesa, “Liberdade, Igualdade, Fra- é igual para todos e que é da essência da mano é dotado de especial dignidade e que
ternidade”, e na prática negaram por muito pessoa humana, não havendo qualquer di- é imperativo que todos recebam proteção e
tempo essa afirmação. Com efeito, ambos, ferença entre a dignidade do proprietário de apoio para a satisfação das necessidades bá-
Estados Unidos e França, usavam o traba- uma rica mansão ou suntuosa fazenda e a sicas e para o pleno uso e desenvolvimento
lho escravo em larga escala e continuaram do favelado ou do morador de rua e mesmo de suas possibilidades físicas e intelectuais.
mantendo a escravidão negra durante mui- do presidiário. Eles podem ficar sujeitos a Como decorrência de todos esses fatores, foi
tos anos. A mulher só foi admitida como regras legais diferentes, desde que isso não sendo definido um conjunto de faculdades
eleitora em eleições nacionais estaduni- ofenda a dignidade essencial de cada um. naturais necessitadas de apoio e estímulo
denses em 1920 e na França ela só foi ad- A Declaração Universal dos Direitos social, que hoje se externam como direitos
mitida como juíza em 1946. Além disso, os Humanos aprovada pela Organização das fundamentais da pessoa humana.
trabalhadores tiveram de enfrentar duríssi- Nações Unidas em 1948 foi, efetivamente, Mas apesar de serem direitos de todos
ma resistência, inclusive forte repressão um avanço para a humanidade. Existem ain- os seres humanos, o que deveria levar à con-
policial, para, no século XX, ser admitidos da resistências à sua efetiva aplicação, mas clusão lógica de que ninguém é contra tais
como “livres e iguais”. Como fica óbvio, a simples existência dessa declaração tem direitos, a história mostra coisa bem diferente
aquilo que se denominou enfaticamente Li- servido de apoio significativo para lutas tra- disso. Há pessoas que colocam suas ambi-
beralismo continha boa dose de hipocrisia, vadas por meios pacíficos e para denúncias e ções pessoais, sua busca de poder, prestígio
pois os direitos declarados eram os dos reivindicações buscando a concretização de e riqueza acima dos valores humanos. Isso 9
homens brancos ricos, excluindo grande mudanças nas Constituições, na organização explica as violências da Idade Média, com o
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parte da humanidade. das sociedades e nas práticas da convivência estabelecimento dos privilégios da nobreza e
Além da denominação, que abrange a humana constitucionais, visando à elimina- a servidão dos trabalhadores. Essa é, também,
universalidade dos seres humanos, a afir- ção das discriminações e à implantação da a raiz das agressões sofridas pelos índios da
mação de que todos, sem a possibilidade de justiça social. América Latina com a chegada dos europeus,
artigo Direitos humanos: sessenta anos de conquistas

a Declaração dos Direitos do Homem e do


Cidadão, afirmando, no artigo primeiro, que
“todos os homens nascem e permanecem
livres e iguais em direitos”, mas, ao mes-
mo tempo, admitindo “distinções sociais”,
as quais, conforme a declaração, deveriam
ter fundamento na “utilidade comum”. Logo
foram achados os pretextos para essas dis-
tinções, instaurando-se uma nova forma de
sociedade discriminatória com novas classes
de privilegiados, estabelecendo-se enorme
distância entre as camadas mais ricas da po-
pulação, pouco numerosas, e a grande massa
dos mais pobres.
A partir de então, as injustiças inces-
santemente acumuladas, as discriminações
impostas pela lei, excluindo da participação
política os não-proprietários e as mulheres,
o uso dos órgãos do Estado para sustentação
dos privilégios dos mais ricos e de seus ser-
estando aí, igualmente, o nascedouro das submetidos a condições indignas. Mas a fun- viçais, tudo isso acarretou mais sofrimento,
violências contra a pessoa humana, inspi- damentação teológica dos direitos humanos miséria, violências e inevitáveis revoltas. No
radas nos valores do capitalismo, que tenta foi usada maliciosamente, para sustentar que campo dos dominadores surgiram, entretan-
renovar agora sua imagem desgastada, pro- os direitos dos reis e dos nobres decorriam to, muitas disputas, sobretudo de natureza
pondo a farsa da globalização. da vontade de Deus e assim estariam justifi- econômica, em âmbito nacional e interna-
O excesso de agressões à dignidade da cadas as discriminações e injustiças sociais. cional. Essa produção de injustiças e esse
pessoa humana, em decorrência do egoísmo, Os séculos XVII e XVIII foram marcados choque de ambições levaram à perda da paz,
da insaciável voracidade, da insensibilidade por lutas contra esses privilégios. Grandes fi- com duas guerras mundiais no século XX,
moral dos dominadores, tem despertado re- lósofos políticos reafirmaram a existência dos chegando-se a extremos, jamais imaginados,
ações, tanto no plano das ideias quanto no direitos fundamentais da pessoa humana, so- de violência contra a vida e a dignidade da
âmbito da ação material. Desse modo surgi- bretudo os direitos à liberdade e à igualdade, pessoa humana.
ram teorias e movimentos revolucionários, mas dando como fundamento desses direitos
que foram contribuindo para que um número a própria natureza humana, descoberta e diri- 3. A Declaração Universal
cada vez maior de seres humanos tomasse gida pela razão. Na sequência dessas ideias, dos Direitos Humanos: avanços
consciência de sua dignidade essencial e dos a burguesia, que tinha força econômica, mas e resistências
direitos a ela inerentes. estava à margem do poder político, associou- Terminada a Segunda Guerra Mundial, es-
No final da Idade Média, no século XIII, se à plebe, pois ambas estavam igualmente tando ainda abertas as feridas da grande tragédia
aparece a grande figura de São Tomás de interessadas na destruição dos antigos privi- causada pelo egoísmo, pelo excesso de ambi-
10 Aquino que, tomando a vontade de Deus légios de que gozavam a nobreza e o clero a ções materiais, pela arrogância dos poderosos e
como fundamento dos direitos humanos, ela associado e seu valioso aliado político, pela desordem social que de tudo isso resultou,
Revista Direitos Humanos

condena as violências e discriminações, di- também beneficiário das injustiças. iniciou-se um trabalho visando à criação de um
zendo que o ser humano tem direitos naturais O ponto culminante dessas lutas foi a Re- novo tipo de sociedade, informada por valores
que devem ser sempre respeitados, chegando volução Francesa. No ano de 1789, colocado éticos e tendo a proteção e promoção da pes-
a afirmar o direito de rebelião dos que forem o poder nas mãos da burguesia, foi publicada soa humana como seus principais objetivos.
Foi instituída, então, a Organização das Nações trados acarreta sanções de várias espécies, superioridade política e social, sem qualquer
Unidas (ONU), com o objetivo de trabalhar per- como o fechamento do acesso a fontes in- consideração de ordem ética, os que preten-
manentemente pela paz. Demonstrando estar ternacionais de financiamento e aos serviços dem que seus interesses tenham prioridade
conscientes de que esse objetivo só poderá ser de organismos internacionais, além de outras sobre a dignidade da pessoa humana, esses
atingido mediante a eliminação das injustiças e consequências de ordem moral e material. resistem à implantação das normas inspira-
a promoção dos direitos fundamentais da pes- A partir da proclamação da igualdade de das nos princípios da Declaração Universal.
soa humana, os integrantes da Assembléia Ge- todos os seres humanos, em direitos e digni- Mas a realidade mostra um avanço conside-
ral da ONU aprovaram, em 1948, a Declaração dade, como está expresso no artigo primeiro rável na conscientização das pessoas e dos
Universal dos Direitos Humanos. da Declaração Universal dos Direitos Huma- povos, havendo razões objetivas para se acre-
A Declaração é um marco histórico, não nos, vários pactos e tratados dispuseram so- ditar que a história da humanidade está cami-
só pela amplitude das adesões obtidas, mas, bre situações específicas em que a igualdade nhando no sentido da criação de uma nova
sobretudo, pelos princípios que proclamou, vinha sendo negada, fixando regras e estabe- sociedade, na qual cada pessoa, cada grupo
recuperando a noção de direitos humanos e lecendo responsabilidades. Essa diretriz já social, cada povo verá seus direitos humanos
fundando uma nova concepção de convivên- penetrou nas Constituições, o que significa fundamentais reconhecidos e respeitados. O
cia humana, vinculada pela solidariedade. É um reforço, de ordem prática, da eficácia das que reforça essa crença é a constatação de
importante assinalar também que, a partir da normas, bem como facilidade maior para seu que vem aumentando incessantemente o
declaração e com base nos princípios que conhecimento e sua aplicação. número dos que já tomaram consciência de
ela contém, já foram assinados muitos pac- O que se pode concluir disso tudo é que que, para superar as resistências, cada um
tos, tratados e convenções, tratando de pro- a Declaração Universal dos Direitos Humanos de nós deverá ser um defensor ativo de seus
blemas e situações particulares relacionados marca o início de um novo período na história próprios direitos humanos. E por imperativo
com os direitos humanos. Esses documentos da humanidade. Os que procuram a preser- ético, mas também para defesa de seus pró-
implicam obrigações jurídicas e o descum- vação ou a conquista de privilégios, os que prios direitos, todos deverão ser defensores
primento dos compromissos neles regis- buscam vantagens materiais e posições de dos direitos humanos de todos.

11
Revista Direitos Humanos
artigo Concretizando nossos compromissos

Mary Robinson é presidente da


“Realizing Rights: The Ethical Globalization
Initiative” [Iniciativa para Globalização Ética]
e membro da “Elders”. A Sra. Robinson
foi Comissária das Nações Unidas para os
Direitos Humanos entre 1997 e 2002, e
Presidente da Irlanda (1990-1997).

Concretizando
nossos compromissos
Mary Robinson

E
Este ensaio foi baseado m 2008 celebramos o 60º aniversário evitar maior deterioração e impedir o avanço
da Declaração Universal dos Direitos dessa tendência se recuperarmos e fortalecer-
nos comentários feitos Humanos, oportunidade para que rea- mos a mensagem dos direitos humanos. Não
pela sra. Robinson na firmemos a importância vital dos padrões in- consigo imaginar forma melhor de fazer isso
ternacionais de direitos humanos para a cons- do que reafirmando a visão de direitos e res-
“Harvard Business School” trução de um futuro mais justo e sustentável. ponsabilidades da Declaração Universal, ins-
[Escola de Negócios da Entretanto, as tendências vislumbradas atual- trumento que representa um “padrão comum”
Universidade de Harvard], mente não são positivas no que concerne à re- para todos os povos e nações.
12 alização efetiva da promessa representada pela
em Boston, Massachusetts, declaração. Em parte por causa das respostas Reafirmando a Mensagem
Revista Direitos Humanos

em 28 de abril de 2008. nacionais e globais aos ataques terroristas de da Declaração Universal


11 de setembro de 2001, nesta década os di- dos Direitos Humanos
reitos humanos foram deixados de lado e, em Relembremos por um momento como era
alguns casos, ignorados. Todavia, podemos o mundo em 1948, ano em que surgiu. As
nações emergiam de uma devastadora guerra
mundial e do Holocausto. Pela primeira vez,
“A Declaração Universal tem
armas nucleares haviam sido empregadas constituído fonte de inspiração para
contra civis. A Guerra Fria começara. As pes-
soas buscavam laços comuns que unissem toda legislação internacional do pós-
as nações e aumentassem a segurança hu-
mana para todos.
guerra na área de direitos humanos”
Neste contexto, surgiu um grupo de homens
e mulheres com diferentes histórias, culturas e É claro, contudo, que esta avaliação posi- no mundo todo. Padrões trabalhistas básicos
crenças, liderado por uma mulher notável: Elea- tiva precisa ser contrabalançada. Cito, nesse são ignorados. A pobreza prende milhões a
nor Roosevelt. O mandato do grupo, como parte sentido, afirmação feita em publicação re- vidas de desespero.
da recém-criada Comissão de Direitos Huma- cente pelo Conselho Internacional de Política
nos da ONU, consistia em elaborar uma articu- de Direitos Humanos, uma das organizações Da Declaração à Ação: Realizing
lação internacional dos direitos e liberdades de parceiras do trabalho que agora está sob mi- Rights no Século XXI
toda a humanidade. nha responsabilidade, na Realizing Rights: Então, o que devemos aprender para os
Resultado desses esforços, a Declaração futuros esforços não só para proteger os di-
Universal dos Direitos Humanos ofereceu- “À medida que a reputação e a influência reitos humanos, mas também para fazer um
nos uma visão de humanidade comum e de dos direitos humanos aumentam, eles trabalho pró-ativo na sua concretização?
responsabilidades mútuas compartilhadas, passam a ser ativamente mais contes-
aplicáveis independentemente de lugar ge- tados, e por atores ainda mais podero- Primeira lição – uma verdade provavel-
ográfico, de cor, de religião, de sexo ou de sos... Antes eram tolerados por serem mente óbvia, mas normalmente não declara-
ocupação. Passados sessenta anos, a de- considerados marginais… As frequentes da, é o fato de que, como em grandes áreas
claração – e seu cuidadoso equilíbrio en- referências feitas aos direitos humanos no do mundo muitas pessoas continuam pobres
tre liberdades individuais, proteção social, contexto das relações Norte-Sul e, mais e seus governos são carentes de recursos, as
oportunidade econômica e deveres com a recentemente, a força das críticas legais populações precisam buscar apoio e assis-
comunidade – constituiu-se em instrumento aos direitos humanos na condução da tência em a suas próprias comunidades lo-
de direitos humanos reafirmado por todos os “guerra ao terrorismo” fizeram com que cais. Essencialmente, não há condições para
governos, e, mais recentemente, pela Cúpula muitos governos quisessem restringir ou que tais grupos reivindiquem seus direitos na
Mundial da ONU, em 2005. reverter a aplicação dos direitos humanos. forma prevista nos instrumentos de direitos
Um dos temas mais subestimados da As críticas aos direitos humanos vêm se humanos. Pensemos sobre isso no contexto
história dos direitos humanos nas últimas tornando mais disseminadas e explícitas, do mundo do trabalho: a grande maioria dos
seis décadas consiste na identificação do principalmente nos países mais ricos… A trabalhadores do mundo – inclusive os mais
quantum de influência moral, política e le- oposição e a influência cresceram juntas, pobres, os que mais necessitam de prote-
gal exercida por aquele texto no mundo. A levando a um grau de desorientação.” 1 ção–, está no setor informal. Esse fato cria
Declaração Universal tem constituído fonte um sério desafio prático para os governos.
de inspiração para toda a legislação inter- Bem sabemos que, a despeito do desen- Para criar condições de proteção dos
nacional do pós-guerra na área de direitos volvimento da legislação internacional de di- direitos humanos das comunidades muito
humanos. Seus dispositivos têm servido de reitos humanos nos últimos sessentas anos, pobres ou marginalizadas, os governos preci-
modelo para constituições e leis, regulamen- massivas violações a esses direitos conti- sam encontrar novos caminhos para alcançá- 13
tos e políticas internos de defesa dos direitos nuam a ser perpetradas nos dias de hoje. A las e atendê-las. Além disso, as organizações
Revista Direitos Humanos

humanos. Acima de tudo, a declaração tem elaboração de legislação formal não resultou de direitos humanos precisam encontrar no-
sido um símbolo de esperança para milhões em proteção universal aos direitos humanos. vas formas de conquistar a confiança dessas
de pessoas no decorrer de longos períodos O genocídio voltou a acontecer. As mulheres comunidades. A meu ver, a única maneira de
de opressão. e as minorias sofrem ampla discriminação fazê-lo é por meio da celebração de parcerias
artigo Concretizando nossos compromissos

dos por um espaço de atuação da sociedade


civil e dos defensores dos direitos humanos,
tanto quanto pela garantia de que entre tais
sistemas formais e institucionalizados de de-
fesa e promoção dos direitos humanos e tais
atores da sociedade configure-se verdadeira
e efetiva dinâmica de relacionamento.
Os direitos humanos não podem ser
concretizados na ausência de instituições
efetivas e transparentes. Se os tribunais são
corruptos, sobrecarregados e ineficientes, os
direitos civis básicos reputam-se violados.
Se os ministérios sociais não têm recursos
e autonomia suficientes, ou seu quadro fun-
cional não é qualificado, os direitos básicos
de assistência à saúde, educação e moradia
adequadas não podem ser devidamente exer-
cidos. A construção e a reforma dos aparatos
institucionais do Estado não tarefas fáceis ou
particularmente notáveis, embora essenciais.
O tema do incentivo à capacitação de ins-
tituições me leva a refletir sobre um terceiro
desafio: definir as obrigações internacionais
com organizações que estejam presentes há Resguardar os direitos daqueles que vivem na mais concretamente. Nas últimas décadas
tempos nessas comunidades, tais como enti- pobreza é um desafio que todos devemos en- vem sendo amplamente reconhecida a ne-
dades religiosas, grupos comunitários, ONGs frentar, se quisermos criar sociedades mais cessidade de criação de uma espécie de
e outras. inclusivas, prósperas e justas. autoridade supranacional legítima, uma vez
A batalha pelos direitos humanos é ine- Assim, chegamos a uma segunda lição que a ação tomada em nível exclusivamen-
vitavelmente uma batalha por poder, e esta e a um desafio – fazer mais para apoiar os te nacional não parece apta a resolver vários
batalha está geralmente ligada a batalhas países em desenvolvimento na construção de complexos problemas mundiais. Conhece-
correlatas por recursos. Assim, a promoção seus próprios sistemas nacionais de proteção mos muitos desses problemas, como a mu-
sustentável de todos os direitos humanos de- aos direitos humanos. Por sistemas nacionais dança climática, o comércio desigual, a dis-
pende de políticas e programas que abordem de proteção, refiro-me aos arranjos institu- seminação de pandemias e novas doenças,
as desigualdades econômicas e sociais. cionais que, sob a égide regulamentadora do o comércio ilegal de armas e de pessoas, a
Descobrir maneiras de resguardar os di- ordenamento jurídico nacional e inspiração regulamentação e o monitoramento da tecno-
reitos garantidos por lei é outro aspecto vital nos compromissos internacionais assumidos logia nuclear, entre outros.
para o empoderamento dos marginalizados. pelo Estado, têm como objetivo garantir o Em todos esses casos, a coordenação
No ano passado, 2007, trabalhei para a Co- exercício e a proteção dos direitos humanos internacional e a ação coletiva se fazem ne-
14 missão de Empoderamento Legal dos Pobres, dos cidadãos. Incluem-se aí os tribunais, o cessárias se quisermos alcançar mudanças
presidida por Hernando de Soto e Madeleine Poder Legislativo, as instituições ou comis- positivas. A realidade é que hoje os Estados
Revista Direitos Humanos

Albright. A comissão enfatizou a importância sões nacionais de direitos humanos. Incluem- são incapazes de chegar a uma cooperação
do acesso à Justiça e às demais garantias se, ainda, os sistemas de saúde e educação, efetiva, à exceção de casos envolvendo evi-
do Estado de Direito como condições para o assim como outros serviços públicos. Esses dentes interesses nacionais de curto prazo.
concreto exercício de todos os outros direitos. sistemas nacionais devem ser complementa- Tal fragilidade é também observável na seara
da legislação de direitos humanos, que ainda bais e a capacidade de atingir resultados uma sociedade estável e regrada é essen-
não alcançou patamar de desenvolvimento provavelmente aumentará, trazendo efeitos cial para o bom andamento do empreen-
suficiente para lidar com as responsabilida- cada vez mais nocivos para as pessoas e dimento. As empresas precisam assegurar-
des transnacionais dos Estados. comunidades, assim como para a credibi- se que seus contratos serão devidamente
Vejamos os urgentes dilemas de direi- lidade política dos governos. observados, com o respaldo dos juízes e
tos humanos que nos são colocados pela A atual ausência de governos nacionais tribunais de justiça, e que suas proprieda-
mudança climática. Poucos negariam que o legítimos em muito locais, agravada pela des e investimentos serão protegidos.
fenômeno tende a enfraquecer a capacidade governança internacional ineficiente, tem Quanto mais nos envolvemos nessas
de exercício de uma ampla gama de direitos direcionado o foco, cada vez mais, sobre as questões, mais percebemos que muito res-
humanos protegidos internacionalmente – o responsabilidades dos atores não estatais em ta ainda a fazer. Iniciativas voluntárias de
direito à saúde e mesmo à vida, o direito à matéria de direitos humanos. Dados seu po- responsabilidade corporativa, por exemplo,
alimentação, à água, à habitação e à proprie- der e influência no mundo de hoje, o setor como o Pacto Global das Nações Unidas, se
dade; os direitos dos povos indígenas e tra- corporativo ocupou o centro deste debate. expandiram muito nos últimos anos, mas ain-
dicionais, bem como os direitos associados Definir de maneira mais precisa a natureza e da não conseguiram a adesão de empresas
à sobrevivência e à cultura, à migração e ao estatais de países com economia de mercado
reassentamento e o direito de segurança pes- emergentes, os quais vêm se tornando atores
soal em caso de conflito. “Os direitos cada vez mais importantes no cenário global.
Os impactos mais drásticos da mudança Ao mesmo tempo, esforços empreendidos
climática provavelmente ocorrerão – e já es- humanos não por vários atores internacionais, coletivamen-
tão sendo vivenciados – nos países mais po- te, no intuito de construir responsabilidades
bres, nos quais os mecanismos de proteção a podem ser corporativas claras em questões temáticas
direitos costumam ser frágeis. As populações tais como violações aos direitos trabalhis-
cujos direitos são pouco protegidos têm me-
concretizados tas, ameaças à segurança pessoal e liber-
nos condições de conhecer e de preparar-se
para os efeitos da mudança climática, bem
na ausência dade de expressão, entre outros, geralmen-
te não se desenvolvem a ponto de firmar
como para demandar de maneira eficiente
ações do governo nacional ou da comunida-
de instituições mecanismos reconhecidamente legítimos
de comunicação e prestação de contas ao
de internacional. Somada a isso, a responsa- efetivas e público. Esses são enormes desafios que
bilidade pelos impactos nos países mais vul- ainda precisam ser enfrentados.
neráveis costuma não recair sobre o governo transparentes” Também é importante mencionar que o
mais próximo, mas sobre atores difusos, esforço necessário para integrar os valores
tanto públicos quanto privados, muitos dos de direitos humanos à cultura corporativa
quais estão distantes dos limites estatais. A o escopo das responsabilidades corporativas demanda recursos significativos para pro-
legislação de direitos humanos nem sempre é um quarto desafio para o futuro. gramas de treinamento e melhoria contí-
consegue ultrapassar as fronteiras para impor Todos sabemos que há diversos fatores nua. Passar aos funcionários uma mensa-
obrigações em questões como essas. subjacentes à grande ênfase que o setor gem de que a empresa acredita na ampla
Apesar do interesse crescente de de- empresarial vem emprestando aos direitos agenda de direitos humanos, que deve ser
fensores de direitos humanos e organis- humanos: fortes convicções éticas de alguns uma peça essencial nas decisões comer-
mos legais internacionais pelas chamadas executivos líderes, cálculo de risco para a ciais em todos os níveis, é muito mais fácil 15
obrigações “extraterritoriais”, novas regras reputação, o impacto da opinião pública, o na teoria do que na prática.
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e práticas comuns nessa nova área devem comportamento dos pares e concorrentes, a John Ruggie, professor da Harvard’s Ken-
demorar a constituir-se. No curto prazo, a lealdade e o desempenho dos funcionários nedy School of Government [Escola Kennedy
“lacuna de oferta” entre a necessidade de e as novas políticas internacionais. Os lí- de Governo da Universidade de Harvard], no
ação internacional efetiva em questões glo- deres de empresas reconhecem, ainda, que exercício de sua função como Representante
artigo Concretizando nossos compromissos

Especial do Secretário-Geral das Nações Uni- cadas ao emprego, à atividade econômica e to sustentável no futuro. Algumas grandes
das em direitos comerciais e humanos, tem à igualdade, além de maior cooperação com empresas, por exemplo, vêm se preparando
contribuído de forma inestimável nos últimos organizações especializadas nessas áreas, para analisar toda a sua cadeia de valores em
três anos ao enfatizar que todas a empresas como sindicatos e empresas. países em desenvolvimento, para descobrir
têm responsabilidade de respeitar os direitos Como podemos aumentar o poder dos como podem mudar seus processos locais
humanos. Em seu relatório mais recente, o mercados para os pobres? Se o principal de compras ou distribuição de modo a criar
professor Ruggie apresentou um marco polí- patrimônio desse segmento é o trabalho, mais empregos locais sustentáveis. Espero
tico que se baseia em três princípios: Prote- como podemos apoiá-los por meio de uma que possamos desenvolver mais essas me-
ger, Respeitar e Remediar. O marco envolve a legislação sobre trabalho decente –, ou seja, todologias no futuro.
obrigação do Estado de proteger contra os abu- um aparato legal que inclua não somente
sos aos direitos humanos cometidos por atores prevenção ao trabalho infantil e escravo, mas Uma Oportunidade de Reafirmar o
corporativos, a responsabilidade corporativa de também a criação de “condições justas e Direito Comum de Nascimento
respeitar todos os direitos humanos, e a neces- favoráveis de trabalho”, assim como “remu- O 60º aniversário da Declaração Univer-
sidade de emprego de medidas corretivas que neração justa e favorável”, capaz de prover a sal neste ano é uma oportunidade para que as
sejam efetivas. O professor Ruggie sugere que existência humana digna, como determina a organizações, governos, universidades, gru-
a responsabilidade corporativa deve respeitar Declaração Universal dos Direitos Humanos? pos religiosos, empresas e outras instituições
todos os direitos humanos, e que deve ser efeti- Como podemos reafirmar a importância da no mundo todo reafirmem a importância dos
vada pelas empresas por meio de um conjunto liberdade de associação e crescimento nos direitos humanos como garantias inerentes a
definido de ações, tais como: EUA e na Europa, se essa importância é ata- cada ser humano, e para que colaborem no
• Adoção de uma política de direitos hu- cada hoje em dia? estabelecimento de uma agenda positiva para
manos. Nós, da organização Realizing Rights, esses direitos no século XXI.
• Adoção de medidas pró-ativas para apoiamos os esforços da Organização Interna- Para aproveitar ao máximo esta oportu-
entender como as atividades atuais e cional do Trabalho e de um número crescen- nidade, a Elders – grupo de líderes forma-
propostas podem afetar os direitos hu- te de atores da sociedade civil que se unem do no ano passado por Nelson Mandela, do
manos. em torno do conceito de “trabalho decente”. qual tenho o orgulho de participar – lançou
• Realização de atualizações periódicas Acreditamos que a ampla comunidade de ati- a campanha Todo Ser Humano tem Direitos.
sobre o impacto e desempenho em direi- vistas em direitos humanos tem um impor- A campanha nos convida a um compromis-
tos humanos. tante papel a desempenhar, refletindo com so de viver pelos princípios da Declaração
• Oferecimento ao público de mecanis- os líderes do setor privado sobre os desafios Universal. Eu os convido a conhecer melhor
mos eficientes de denúncia para lidar de gerar oportunidades de emprego decente, a campanha e a se envolver pessoalmente,
com os supostos casos de violação aos capazes de contribuir para o desenvolvimen- acessando o site www.everyhumanhasrights.
padrões de direitos humanos. org. Trabalhamos com vários parceiros com
Por fim, vou me referir brevemente a um o intuito de ajudar a reafirmar e recuperar a
quinto desafio. Esse diz respeito ao papel da “Algumas grandes importância dos compromissos e obrigações
geração de emprego e riqueza para a efetiva- baseados na Declaração Universal.
ção de uma série de direitos humanos. Até empresas vêm se Todos os seres humanos nascem livres e
agora, especialistas em direitos humanos
pouco disseram sobre essa questão. Valioso
preparando para iguais em dignidade e direitos. É isso que diz
o Artigo 1º da Declaração Universal. A frase
16 trabalho aplicando a perspectiva de direitos analisar toda sua é tão significativa e importante hoje quanto
humanos à análise orçamentária e à aloca- foi em 1948. Assumamos os direitos de que
cadeia de valores
Revista Direitos Humanos

ção de assistência, por exemplo, vem sendo somos titulares desde nosso nascimento e o
construído; nos próximos anos, entretanto, em países em usemos como pretendiam os elaboradores da
será necessário o desenvolvimento de novas declaração Universal: para garantir os direitos
formas de análise dos direitos humanos apli- desenvolvimento” humanos a todas as pessoas.
Segurança pública
e direitos humanos
Ricardo Brisolla Balestreri é secretário nacional de Segurança Pública, membro
“Creio firmemente que
do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos (SEDH), do Comitê Nacional para
Combate à Prática da Tortura (SEDH) e da Comissão Estruturadora da Universidade Federal
enquanto os homens não
Latino-Americana (Unila – MEC). As opiniões pessoais do autor, reproduzidas no presente
texto, não representam posições do Governo Federal ou de qualquer das instituições de que o conseguirem encontrar
ele faça parte.
uma forma de desistir da
violência para resolver
seus conflitos, e não
encontrarem uma forma
de conviver sem recorrer à
violência, quer se trate da
violência das instituições,
quer da violência daqueles
que tentam destruir essas

H
á 60 anos, por decisão da Organiza- pródigo em termos de direitos civis e políticos
ção das Nações Unidas, o mundo deu – um viés avaliativo obviamente herdado do
mesmas instituições, o
um salto gigantesco em sua história marxismo mecanicista vulgar, que considera
moral, aprovando a Declaração Universal dos os elementos “estruturais” como determi-
curso da história continuará
Direitos Humanos. nantes dos “superestruturais”. Por essa visão,
Pela primeira vez, um roteiro formal, su- tudo o que não reordene o modo de produção
a ser o que sempre foi,
ficientemente consensual entre as nações, e não gere, imediatamente, melhor distribui-
ou seja, uma monótona e
reconheceu direitos individuais e também ção de riquezas, merece desconfiança e des-
17
coletivos, superando teoricamente milenares dém. Os resultados de tal equívoco conceitual
quase obsessiva tragédia de
privilégios e preconceitos classistas, étnicos, e prático, os conhecemos através da história
Revista Direitos Humanos

sexistas, etários, culturais. do “socialismo real”. Há quem insista, contu- lágrimas e sangue.”
Infelizmente, há quem desdenhe dessa do, nessas fórmulas jacobinas, verticalistas,
vitória, por julgar tal roteiro como insuficiente autoritárias, sempre frutos da “magia” de um (Norberto Bobbio)
no campo dos direitos sociais e econômicos e poder emanado, invariavelmente, de cima.
artigo Segurança Pública e Direitos Humanos

Quem o faz, no mais das vezes, pensa estar “de baixo para cima”. Assim, princípios que
criticando, “pela esquerda”, as “ingenuidades garantam, por exemplo, as liberdades de or-
pequeno-burguesas” da militância dos direitos ganização e expressão, incidem, sempre, ne-
humanos. Sem querer, repete a lógica lampe- cessária e obrigatoriamente, sobre o aprofun-
duzana que, veladamente, nas novas formas, damento da democracia também no campo
preserva os velhos conteúdos, “mudando tudo social e econômico. Bem-estar se conquista.
para que nada mude”. Na verdade, sempre que Não se ganha de brinde, por conta de benfei-
não se critica a dinâmica do poder, particu- torias das classes dominantes.
larmente sua verticalidade tradicional, se está A Declaração Universal de Direitos Hu-
replicando uma forma conservadora de pensar manos fez bem, portanto, em destacar os
e ordenar o mundo. Uma lógica “de direita”, direitos civis e políticos. É por eles que se
portanto (aliás, antes que – por modismos de pode superar a heteronomia, construindo
pretensa pós-modernidade – me censurem e conquistando o caminho para um mundo
pelos termos aqui utilizados, preciso declarar mais justo. Obviamente, portanto, continua
total adesão a Norberto Bobbio quanto à con- sendo uma inócua candura clamar por algum
tinuidade da adequação da díade “esquerda” e tipo de declaração universal de melhor distri-
“direita” para uma compreensão analítica, um buição das riquezas.
posicionamento axiológico e uma postura de Como percebe o leitor, iniciei este artigo
intervenção no mundo contemporâneo: pela crítica ao conservadorismo de esquerda,
no que atine à avaliação da luta pelos direi-
“Como já afirmei várias vezes a propósito tos humanos. O objetivo é tentar identificar
daquilo que chamei de ‘as grandes dico- as causas do isolamento e fragilização de
tomias’ em que qualquer campo do saber tal luta no contexto da sociedade brasileira
está dividido, também da dupla de termos contemporânea para, na sequência, arrolar
antitéticos direita e esquerda pode-se fa- elementos de auto isolamento e auto fragi-
zer um uso descritivo, um uso axiológico, lização, particularmente no que se refere à
um uso histórico: descritivo para dar uma relação da militância tradicional de DH com o
representação sintética das duas partes poderoso drama que se desenvolve no cam-
em conflito; axiológico, para exprimir um po da segurança pública. É claro que, antes
juízo de valor positivo ou negativo sobre disso, precisamos passar também pela crítica
uma ou outra das partes; histórico, para ao pensamento predominante (quase “pensa-
assinalar a passagem de uma parte a ou- mento único”, em que pese uma qualificada
tra da vida política de uma nação. O uso presença pessoal, mas inorgânica e ideologi-
histórico, por sua vez, pode ser descritivo camente insípida – ímpar em termos histó-
ou valorativo... A árvore das ideologias ricos – de políticos de esquerda em postos
está sempre verde.... Além do mais, não executivos e legislativos) no Brasil presente:
há nada mais ideológico do que a afirma- o pensamento da direita.
ção de que as ideologias estão em crise.” Emmanuel Rodríguez, autor de El gobier-
18 (Direita e Esquerda. Norberto Bobbio). no imposible, trabajo y fronteras en las metró-
polis de la abundancia, durante o Seminário
Revista Direitos Humanos

Evidentemente, na história humana, as Nueva Derecha: Ideas y Medios para la Con-


verdadeiras transformações (diferentemente trarrevolución, ocorrido em 2006 na Espanha,
das meras “mudanças”) se dão, invariavel- destacou a predominância mundial, nos dias
mente, em verticalidade anti-hegemônica, que seguem, de uma “nova direita”, forte-
“Bem-estar se conquista. Não
se ganha de brinde, por conta
de benfeitorias das classes
dominantes”
mente fundada no populismo e na demagogia Nueva Derecha: Ideas e Medios para la Con-
e emanada principalmente dos Estados Uni- trarrevolución-Espanha, 2006).
dos, tendo se espraiado, inclusive, pela Eu- Penso que tal característica está forte-
ropa. O risco representado por tal movimento mente presente também no Brasil, onde o
é, no mais das vezes, subestimado. Contudo, pensamento da direita (se é que se pode de-
há nele potência germinal para desestabilizar nominar assim tal presente conjunto de clichês)
os consensos de governabilidade entre forças é quase um mero sinônimo de senso comum.
progressistas e conservadoras mais tradicio- Não se suponha, contudo, que por suas carên-
nais, presentes nas democracias ocidentais. cias conceituais e filosóficas, por seu empiris-
Em meio a um momento em que o sis- mo, por sua arrogância moldada na ignorância,
tema democrático representativo vive uma seja um pensamento de pouca expressão e de
forte crise de legitimidade, o discurso dessa pouca extensão. Ao contrário, vitima-nos, como
nova direita logra estabelecer uma ponte de dissemos acima, praticamente como pensa-
comunicação direta com setores muito am- mento totalitário e totalizante.
plos da sociedade, seduzindo e congregando Por ser senso comum, igualmente, não
pessoas de segmentos bastante diversos (in- se suponha – em equívoco de ingenuidade
cluindo muitas que, outrora, se encontravam espontaneísta – que provenha da “malta”. Em
à esquerda). É uma retórica marcadamente sociedades do tipo da nossa, tecidas de com-
agressiva, não comedida, rupturista, que tra- plexos mosaicos desordenados, urbanizadas,
balha a incorporação de categorias “morais” industrializadas, de serviços, consumistas
como fatores de alavancagem emocional do mas excludentes, desenraizadas, “americani-
debate político, aproveitando-se, paradoxal- zadas” no arremedo, midiatizadas e idiotiza-
mente, da crise crônica de anomia inerente ao das, onde os “sistemas de ensino”, a par da
estado neoliberal que sustenta. Em tal dire- fragilidade conteudística, caracterizam-se por
ção, propõe “medidas excepcionais”, trocan- um enorme vazio no campo do que Piaget de-
do a liberdade pela segurança, por exemplo, finiu como “juízo moral”, o senso comum se
com o fito de combater fantasmas externos (o molda no tecnicismo universitário sem trans-
terrorismo, no mundo rico) ou internos, em versalidade humanística, nas banalidades,
todas as partes (o narcotráfico, a delinquên- futilidades, silêncios e histerias dos meios
cia, a imigração, a pornografia, etc.). de comunicação, na “cultura” de mercado
“Lo más paradójico”, sublinhou Emma- e de manada. O senso comum, no Brasil, é
nuel Rodríguez, “es que esta nueva derecha, de elite. Obviamente, replica-se nas classes 19
en un tan perverso como eficaz circulo vicioso populares. Daí, sua aplastadora força.
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de autolegitimación, ha logrado aprovecharse Como quase todo pensamento ordinário,


de los miedos y miserias morales que provo- o nosso também aninha vasta gama de pre-
can las políticas neoliberales para justificar conceitos, de mitos manipulatórios, de ódios e
sus propias medidas represivas” (Seminário rancores, de “certezas” e “explicações totais”.
artigo Segurança Pública e Direitos Humanos

O senso comum, como expressão emocional za tantos “autos de resistência” dos pobres, televisión, publicaciones periodísticas,
das massas, no mais das vezes, se nutre de nem tanta pena de morte de fato, nem tanto tanto digitales como en papel, weblogs...)
sombras. Por isso, sobrevaloriza o poder e a “ladrão de galinha” se estragando em ex- como instrumentos propagandísticos”.
força bruta, encara como fragilidade a com- temporâneas e criminógenas masmorras Además lo ha hecho re-apropiándose
paixão, enerva-se com a inteligência, ojeriza a medievais. É claro que estranhamos quando de herramientas contrainformativas que
ousadia, a criatividade e a diferença. essas coisas atingem gente “nossa” – das empezó a desarrollar la izquierda radical
Por isso rejeita os direitos humanos e a classes média e alta – pelo que levantamos en las décadas de los sesenta y los se-
sua militância. grandes ondas hipócritas de indignação tenta. Así, frente al rigorismo formal de
É um notável paradoxo o fato de nosso passageira! A mídia nos acompanha: fala los medios “serios” convencionales, des-
país, cada vez mais progressista e moder- quando consensuamos e cala quando con- pliegan una retórica hiperbólica y agresiva
nizado, cada vez mais “encaixado” na eco- vém. Nos retroalimentamos. A maioria dos que abusa del sarcasmo y de la soflama
nomia global, expressar-se de forma tão nossos especialistas midiáticos, aliás, só y basa sus denuncias en hipótesis y es-
intensamente anacrônica e pobre no campo expressa o conceito de organicidade quando peculaciones fuertemente tendenciosas y
das humanidades, das “ideias de fundo”, dos se trata da vinculação com a própria mídia. escasamente contrastadas (pues su obje-
projetos de sociedade. Atacar nas sístoles indignadas e sumir nas tivo no es la búsqueda de la verdad, sino
Por aqui, a sociedade reage de forma diastólicas fases alienadas. el desgaste del adversario)”. Seminário
blasé em relação a crimes ocorridos no Resultados? Nada de novo, nada de pro- Nueva Derecha: Ideas e Medios para la
período ditatorial. Não nos horrorizamos, positivo. Contrarrevolución–Espanha, 2006.
20 como em outros lugares. Por aqui, repercute
pouco a presença de gente agressivamente “La nueva derecha”, aseguró Emmanuel Em tal quadro, como surpreender-se que
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fascista, exibindo sua pobreza de espírito Rodríguez, “ha sido capaz de adecuarse se tratem os direitos humanos como “defesa
nas ruas, vestindo camisetas com fotos de perfectamente al nuevo orden mediático, de bandidos”? (Em setores mais conservado-
generais ditadores e os dizeres: “Eu era feliz utilizando todo tipo de medios comuni- res das polícias e das forças armadas também
e sabia”. Por aqui, não é causa de estranhe- cativos (emisoras de radio, cadenas de são tratados como “coisa de veados”).
“Como chocar-se diante da
violência doméstica, das mulheres
apanhando e sendo traídas, das
crianças e idosos vilipendiados?”
Obviamente, não estamos sozinhos no erroneamente, fundamenta-se em dores e
quadro internacional, como afirmamos acima. restrições reais que precisam ser cuidadas.
Somos, contudo, uma espécie de replicação É aí que entra a galvanizadora questão da
piorada, pela falta de alternativas relevantes à segurança pública.
burrice única. Uma espécie de corpo que se Quero afirmar, com isto, uma genérica
vai desenvolvendo, formando musculatura, falta de compreensão histórica da mili-
mas sofrendo de anencefalia. Coisa de cultu- tância de direitos humanos em relação ao
ra periférico-dependente. tema da segurança como pauta positiva e
Procurei caracterizar, até aqui, a falta de propositiva, da sua importância não ape-
“cobertura” para a nossa causa, à esquerda nas para o Estado, mas para a Nação, de
e à direita. sua relevância para a democracia e para o
desenvolvimento. Tal incompreensão levou
Mais: como chocar-se diante da violência No dizer de Marco Mondaini (Direitos nossa dedicada e abnegada comunidade de
doméstica, das mulheres apanhando e sendo Humanos, Editora Contexto, São Paulo, DH, em poucos anos de democracia, a um
traídas pelos machões, das crianças e idosos 2006), “seja na sua versão neoliberal, dramático isolamento, revelado nas evidên-
vilipendiados? Como pasmar à frente do pre- que procura identificar nos direitos hu- cias empíricas do dia-a-dia, mas também
conceito racial, homofóbico, estético? É bas- manos uma barreira à realização racional em inúmeras pesquisas de opinião sobre
tante óbvio que, nesse contexto, se naturalize da lucratividade pelo livre-mercado; seja diversos temas que nos são atinentes.
a violência para “acabar com a violência”, se através da matriz marxista ortodoxa, que Diante disso, ao invés de revermos
prestigie a “lógica da eliminação” dos crimi- busca observar nos direitos humanos nossas metodologias e particularmente
nosos mas também dos diferentes. Dá tudo nada mais do que um conjunto de forma- nossos processos de comunicação, nos
na mesma e está “tudo dominado”, pela via lidades responsáveis pelo encobrimento empedernimos na certeza do acerto de
direita (que, por sua inconsistência teórica, da estrutura de classes e da luta entre nossas posições e na convicção do atraso
de maneira geral, não se sabe e nem se as- estas no seio da sociedade capitalista, e do reacionarismo da mesma sociedade
sume como tal). sendo, por isso mesmo, nada mais que que defendemos. E, ainda que tenhamos
Lamentavelmente, o mesmo Brasil que direitos das classes dominantes; ou ainda razão, vamos justificando e agravando o
ruma celeremente para o primeiro mundo, na linha extremamente vulgar que define dizer bíblico: “São como pastores sem re-
no campo econômico, dele se encontra pa- os direitos humanos como ‘direitos de banho, que se apascentam a si mesmos”.
teticamente distanciado no campo simbóli- bandidos’, o que se percebe claramente É claro que a comunidade de direitos
co. Em que país civilizado ou em verdadeiro é a incapacidade de compreender a fundo humanos não é um bloco monolítico e
processo civilizatório se poderia encontrar seu caráter universal e democrático.” nem todos os segmentos se enquadram 21
tanta aversão a direitos humanos? Esse é, na categoria acima. Lamentavelmente,
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contudo, o nosso cenário real e – ainda que O quadro poderia não ser tão ruim, contudo, parece-me que a maior parte
doa – creio ser necessário olharmos corajo- contudo, se não tivéssemos ajudado a de nós – do ponto vista da compreensão,
sa e criticamente as nossas piores misérias: agravá-lo com nossa incompreensão de dos conhecimentos, da identificação com
as “espirituais”. que o senso comum, ainda que conclua a causa da segurança pública como tam-
artigo Segurança Pública e Direitos Humanos

bém uma causa popular e de direitos hu- de ordem material mas também daqueles disposição para entrar quartéis, delega-
manos – encontra-se paradigmaticamente de ordem subjetiva: balizamentos legais cias, salas de aula de academias, conse-
paralisada nos anos 70, quando vivíamos e éticos, mediação de conflitos, educa- lhos comunitários de segurança, postos
na zona de risco da ditadura, mas igual- ção pública de qualidade, liberdades de de polícia comunitária, não para atacar-
mente na zona de conforto da aprovação expressão, de organização, de ir e vir, de mos os policiais (o que abreviaria muito
popular, heróis e heroínas de um mundo criar e empreender. nossa presença junto a eles), mas para
bipolar. Tal crítica, a faço com respeito e Tal vácuo de presença do estado de- ajudá-los a construir modelos alternativos
compaixão, uma vez que, por anos, estive mocrático de direito gerou ambiência para de policiamento e atendimento das comu-
“preso” na mesma torre. o estabelecimento de “governos” totalitá- nidades, modelos com a cara da demo-
Não foi fácil descer dela e ir para a rios do crime organizado, que se utilizam cracia, sempre teremos algum programa
planície da democracia, enfrentando a vida de tais áreas para estoque de armas e de TV nos chamando para a crítica, mas
como a vida é, com sua complexidade, drogas, venda varejista e recrutamento de não teremos uma polícia de proximidade,
contradições e desafios suprapessoais. mão-de-obra barata, além de outras ati- cuidando com cidadania dos cidadãos.
Não foi fácil, no início, encontrar, nas salas vidades criminosas associadas. Assim,
de aula, a polícia da qual eu tinha tantas grande parte dos pobres deste país se en- ...”Torna-se inquestionável a priorida-
vezes apanhado e muito menos aquela que contra, ainda, sob o tacão de uma ditadura de na garantia de segurança para os
por dois sofridos anos me havia processa- empresarial ilícita, covarde e sanguinária. pobres. Estes são os mais atingidos
em tudo, espremidos que estão entre
“Grande parte dos pobres deste a violência da polícia (são os eternos
suspeitos) e a violência da criminalidade
país se encontra, ainda, sob o comum. São eles as principais vítimas

tacão de uma ditadura empresarial do narcotráfico, das balas perdidas, dos


assaltos e estupros, da violência nas
ilícita, covarde e sanguinária” escolas” (Benevides, Maria Victoria, Di-
reitos Humanos:Desafios para o Século
do. Foi, contudo, um enfrentamento deses- São eles, os que não possuem recursos XXI, in Educação Em Direitos Humanos:
quizofrenizante e necessário como serviço para enclausurarem-se em condomínios Fundamentos Teórico-Metodológicos, vá-
a uma democracia que precisa devolver a privados e seguros, as maiores vítimas da rios, Editora Universitária, João Pessoa,
sua polícia ao povo. Mais do que parte do insegurança pública. São, também eles, 2007).
problema, optei, com vários outros com- as maiores vítimas de padrões de policia-
panheiros e companheiras, por fazer parte mento equivocados, invasivos, reativos, A par de tudo isso, três fatores vêm sen-
das soluções. truculentos, criminalizadores da pobreza. do apontados por expoentes da comunidade
Creio que, a estas alturas, faz-se neces- Os nossos eventuais “escrúpulos” em não acadêmica internacional como gêneses do de-
sário o resgate de uma aparente obviedade nos aproximar da polícia não os ajudam em senvolvimento nacional: a formação de redes
que, contudo, é insuficientemente enfrenta- nada. Ao contrário, mantêm-nas presas de de voluntariado e engajamento cidadão, o livre
da: por quê o tema da segurança pública se um sistema servil, junto aos criminosos e empreendedorismo popular e o acesso demo-
tornou tão crucial para a nação brasileira, de pânico, quando da presença policial. crático à educação de qualidade, construtora
como revelam as pesquisas de opinião? Nossas meras atividades de denúncias, da autonomia intelectual e do juízo moral dos
22 Inicialmente, porque a maioria dessa que sempre serão imprescindíveis para o indivíduos.
nação se encontra, historicamente, na or- aprimoramento democrático, têm se reve- Pesquisas do Departamento de Estudos
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fandade em relação aos poderes públicos, lado insuficientes, e mesmo pífias, quando Internacionais de Harvard, conduzidas pelo
vivendo em áreas de carência ou mesmo se trata da mudança de um sistema que, professor Robert Putnam (um dos referen-
de quase total ausência de políticas públi- mais do que “consertado” pontualmente, ciais teóricos do PNUD/ONU), comprovam
cas, alcançadoras não apenas dos direitos precisa ser transformado. Se não tivermos que o desenvolvimento dos países passa,
ao longo da história, necessariamente, Várias pesquisas feitas nas duas últimas intimidador e dissuasório do estímulo e da
pela edificação das chamadas “redes de décadas comprovam a importância da criati- coragem para abrir negócios, para empreen-
engajamento cívico”, ou seja, pelas teias vidade e do empreendedorismo popular, no der. Assim, prejudicado ou impedido está o
de voluntariado social organizado que de- campo econômico, como elementos defla- segundo elemento indispensável do “caldo
belam a cultura de passividade popular e gradores dos processos de desenvolvimento de cultura” do desenvolvimento.
constroem alternativas popularmente sus- nacional. É o caso da realizada pelo historia- O terceiro e último, igualmente impor-
tentadas de bem-estar. Tais teias enrique- dor David Landes, também da Universidade tante, é o direito e o acesso à educação
cem e estimulam a qualidade das ações do de Harvard, sobre a riqueza e a pobreza das pública de qualidade. Aqui, encontramos
Estado que, de alguma forma, as reflete. nações, bem como de diversos outros estu- uma das raras unanimidades no campo das
Por essa razão, se almejamos que as de- dos, especialmente aqueles que versam so- ciências históricas e sociais. Praticamente
mocracias representativas contemporâne- bre as causas do bem estar contemporâneo todos os estudos e pesquisas acadêmicos
as agreguem caráter socializador de bens de países da Europa do Norte. contemporâneos sobre desenvolvimento
e serviços, precisamos aumentar, nelas, Da mesma forma que no item anterior, nacional comparado creditam à educação a
os espaços e os saberes acumulados pela o predomínio, em bolsões geográficos, do diferença entre o atraso e o desenvolvimen-
participação direta. poder de organizações criminosas representa to. Educação envolvendo “escolarização”,
um interdictu à criatividade e aos empreendi- mas não apenas. A escolarização é uma
Conforme Putnam, ”as comunidades se mentos dos segmentos pobres da população, necessidade, mas não é, necessariamente,
desenvolvem, em resumo, devido às re- em nossa realidade a ampla maioria. É pre- educação. Para que o seja, é preciso que
des e associações. Nessas comunidades, ciso obter licenças dos grupos delinqutes e, se desenvolva, através do currículo objetivo
os cidadãos são engajados nos negócios em muitos casos, tornar a atividade subsidi- (com suas temáticas e metodologias), do
públicos, confiam uns nos outros e obe- ária pelo pagamento de “pedágios” e propi- “currículo oculto” (com suas práticas re-
decem à lei. Solidariedade, participação nas, em espécie ou em gêneros. Até mesmo lacionais) e dos “saberes prévios e locais”
cívica e integridade são valorizados. Elas a violência da criminalidade ordinária e de- dos sujeitos do processo, buscando a cons-
se tornaram ricas porque havia civismo sordenada, que tanto aplasta o dia-a-dia das trução de sua autonomia intelectual e de seu
e não o contrário. O engajamento cívico populações urbanas, funciona como fator juízo moral dos mesmos.
parece ser condição do desenvolvimen-
to, independentemente de estruturas de
governo, estabilidade social, partidos po-
líticos ou ideologia.”

É gravíssimo, contudo, o interdictu re-


presentado pela violência das organizações
delinquenciais à livre expressão e organi-
zação popular. Nos bolsões habitacionais
onde domina o crime, são escassas as pos-
sibilidades do soerguimento quantitativa-
mente significativo de lideranças populares
autônomas, que não estejam contidas ou
corrompidas pelas práticas criminosas.
Obstaculiza-se, assim, o primeiro ele-
mento indispensável do “caldo de cultura”
que leva ao desenvolvimento.
O segundo elemento é o livre empreen-
dedorismo.
artigo Segurança Pública e Direitos Humanos

Isso significa que a escola precisa ascender política e economicamente. Ora, “Os Governos são demasiado burocráti-
constituir-se em instância crítica de pro- com as maiorias excluídas de uma educa- cos. Suas reações são muito demoradas.
vocação intelectual e ética, em instituição ção de qualidade, fecha-se a terceira pas- Eles estão envolvidos em tantas relações
de reserva moral, em campo contra-hege- sagem para os caminhos do desenvolvi- exteriores que requerem consultas e acor-
mônico de contestação do discurso único, mento. A segurança pública, uma vez mais, dos com aliados, e têm de atender a tantos
da banalização perversa da violência, da é fator preponderante para a qualidade do grupos nacionais de interesse político que
“lógica da eliminação”, da competitivi- crescimento que almejamos. demoram demais a reagir a iniciativas toma-
dade destrutiva, do machismo e do ethos Assim, ao lado do emocionalismo na das por senhores das drogas ou fanáticos
guerreiro masculino, da opressão das di- maior parte das vezes rancoroso e direitista religiosos e terroristas.
ferenças individuais, do consumismo e do do senso comum (no sentido da replicagem Em contrapartida, muitos dos Gladiadores
narcisismo hedonista, do predomínio da da retórica demagógica e mistificadora, que Globais, guerrilheiros e cartéis de drogas
força sobre a compaixão e a inteligência. apresenta paradoxalmente a violência como em particular, não são burocráticos e são,
Ora, tal cultura crítica, humanista, políti- fator refreador ou eliminador da própria até, pré-burocráticos. Um só líder carismá-
ca, autonomizante, não se coaduna com a violência) em relação à segurança pública, tico dá as ordens com rapidez e com um
indústria da violência e do crime. Uma es- sobrevive uma intuitiva sabedoria popular efeito arrepiante – ou mortal. Em outros ca-
cola com tais características dificilmente que precisamos resgatar e elevar ao pata- sos, não está claro quem realmente são os
sobreviverá, como enclave libertário, em mar da inteligência, da articulação racional. líderes. Os Governos saem cambaleando,
meio a comunidades pobres, dominadas, Essa intuição se apresenta nas pesquisas confusos, dos conflitos com eles.”
por exemplo, pela tirania do narcotráfico. de opinião, dando conta de que segurança
Qual a segurança dos operadores por ex- é a maior demanda e preocupação popular. Recordemos, ainda nesse contexto, que tal
celência desse sistema, os professores? É razoável acreditar que, na prática, o povo desvantagem paira sobre as cabeças dos cida-
Como poderão ousar intelectualmente, compreende que sem segurança será im- dãos como uma permanente tentação autori-
favorecer atividades associativas, ques- possível expressar-se e organizar-se livre- tária por parte dos governos em democracias
tionar o entorno, em escolas cercadas, mente, reivindicar, criar, empreender, fazer mais jovens e inseguras, às vezes escudada no
infiltradas, invadidas ou eventualmente negócios, aprender e ensinar. Sem seguran- senso comum, disposto a abdicar de liberda-
fechadas por confrontos entre gangues e ça, o povo percebe que é refém. des em nome de maior segurança.
grupos criminosos ou entre estes e a po- Como um derradeiro argumento aos par- Quis elencar, neste breve texto, uma série
lícia? Como trabalharão com seus alunos ceiros de luta pelos direitos humanos, su- de motivos para que nos dediquemos a estudar
o respeito ao próximo, a auto estima e a blinhador da centralidade, em tal campo, do mais e a atuar mais no campo da segurança
auto preservação, os limites diante dos direito à segurança pública, quero lembrar pública, a partir da ótica dos direitos humanos.
direitos humanos pessoais e alheios? que o desenvolvimento amplo de uma cultu- Se aí residem os nossos maiores problemas,
Conforme pesquisa do Ibope (divulgada ra de respeito e promoção da dignidade in- residem também as melhores soluções. Re-
em junho de 2007), seis em cada dez bra- dividual e coletiva só é possível em contex- side, talvez, a própria recuperação de nossa
sileiros acima dos 16 anos acham que a es- tos democráticos, e que o crime organizado, credibilidade entreàqueles que são os sujeitos
cola não é um lugar seguro (Ibope, Pesquisa com seus processos transversais de poder e da intervenção de nossa militância.
Telefônica Nacional sobre Educação para a corrupção, constitui-se na maior e mais real De minha parte, tenho procurado manter
Agência Nova S/B). ameaça às democracias no mundo inteiro. coerência com estas palavras, por meio das
Se não há liberdade de ensinar e apren- Nesse sentido, destaco a lúcida análise de ações da Secretaria Nacional de Segurança
24 der, particularmente de construir valores Alvin Toffler, reveladora das incontornáveis Pública. Neste momento, 140 mil policiais,
solidários, pode haver escola, mas não dificuldades oficiais nos sistemas formais bombeiros, agentes penitenciários e guardas
Revista Direitos Humanos

haverá educação. Uma vez mais, em tal democráticos, sujeitos à transparência e ao municipais se encontram participando de nos-
quadro, os pobres são sobre, vitimados, controle público e, portanto, submetidos a sa rede de ensino a distância e, pelo segundo
perpetuando-se seu afastamento das pos- estruturas mais burocráticas, ao lado da ce- ciclo consecutivo, o curso de direitos huma-
sibilidades de compreender criticamente e leridade informal do crime: nos é o espontaneamente mais procurado. Em
outra ação inédita no contexto internacional – inteligência, a técnica, a racionalidade, as Ao encerrar, quero salientar que ações
em uma avaliação justa e sem qualquer ufanis- dimensões preventiva e pedagógica. transformadoras de cultura, como essas, não
mo – reunimos, financiamos e orientamos 66 As notícias também não chegam porque são uma exclusividade do Estado. Certamente,
instituições de ensino superior e 82 cursos de a maioria dos intelectuais que conhecem de o estado faz muito em extensão, mas as ongs,
pós-graduação latu sensu em segurança pú- perto o valor dessas iniciativas, evita, na mídia, fundações, grupos culturais, sindicatos, movi-
blica. Estamos articulando os primeiros onze qualquer forma de reconhecimento. O temor mentos e também os indivíduos que assumem
cursos de graduação e os primeiros mes- da suposta condição de “chapas-brancas” os uma perspectiva militante no campo dos dire-
trados. Para os policiais que tenham ficha faz apresentarem-se na perspectiva exclusiva tos humanos são os grandes semeadores da
limpa, queiram estudar e recebam baixos da crítica e da desconstrução. Preservam, as- qualidade do processo. Por isso, pautar como
salários, a União acresce R$ 400,00 men- sim, seus espaços e simpatias com os pautei- prioridade a questão da segurança pública,
sais por cinco anos (o “Bolsa Formação”) ros e editores, ainda que soneguem à nação o no âmbito da convergência e do protagonis-
e ainda oferece um plano habitacional que fato de que, ao lado de tantas coisas negativas mo da causa dos direitos humanos, a par de
poderá chegar a 37 mil residências dignas, – que devem ser criticadas – também há es- romper o cerco do isolamento e conquistar
com prestações um pouco superiores a perança, também há gente trabalhando muito fatias maiores de apoio social, acrescerá força
R$ 200 mensais. Todos os nossos cursos para fazer a diferença, para não plantar “mais na construção de uma ambiência para que o
são transversalizados pelo tema gerador do mesmo” e colher os mesmos resultados. A povo brasileiro possa se desenvolver em paz.
dos direitos humanos, que também aparece falta da socialização das pautas positivas, além Deixo-vos, pois, nesta linha, com a lucidez, a
com explicitude em todos. Nossos policiais de aplastar a população no sentimento de im- sabedoria e o bom desafio de Paulo Freire, ele
pós-graduandos, por exemplo, têm estudos potência, abre espaço para que boas políticas mesmo um vitorioso nos grandes desafios:
obrigatórios sobre a igualdade racial, sobre públicas de Estado fiquem sob maior risco
a questão de gênero (não apenas em rela- histórico, estando à mercê das sucessões e “É absolutamente indispensável que o
ção aos direitos da mulher, mas também à eventuais leviandades de governos. Na socie- povo todo assuma, em níveis diferen-
análise crítica do ethos guerreiro masculino, dade do espetáculo, joga-se mais pela fama e tes, mas todos importantes, a tarefa de
inclusive dentro de suas corporações), sobre menos pela responsabilidade. Conheço diver- refazer a sua sociedade, refazendo-se a
combate à homofobia e à liberdade de orien- sas figuras referenciais que sabem do muito si mesmo também. Sem esta assunção
tação sexual (há também um módulo sobre que se está realizando, que particularmente da tarefa maior – e de si mesmo na as-
o tema no ensino a distância) e sobre direi- aprovam com entusiasmo diversos programas, sunção da tarefa – o povo abandonará
tos etários (crianças, adolescentes e idosos). mas que, publicamente, dizem que “nada a pouco e pouco a sua participação na
Hoje, todos os projetos estaduais que analisa- saiu do papel”. Uma pena, mas não diminui feitura da história. Deixará, assim, de
mos estão obrigados à construção de malhas a intensidade e nem os efeitos nas bases. Elas estar presente nela e passará a ser sim-
de policiamento de proximidade e estamos al- mesmas, com o tempo, terão voz. plesmente nela representado”.
cançando quase 30 mil policiais formados em
cursos especiais de polícia comunitária. Não
BIBLIOGRAFIA
seria adequado, aqui, continuar a lista. A inten-
ção é apenas apresentar alguns drops ilustra- 1.BOBBIO, Norberto. As Ideologias e o Poder em Crise. Editora UNB, Brasília, 1999.
tivos de uma praxis. Possivelmente, a maioria 2.BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda. Editora UNESP, São Paulo, 1995.
dos leitores não saiba disso. A mídia brasileira, 3.RODRÍGUEZ, Emmanuel. El Gobierno Imposible - Trabajo y fronteras en las metrópolis de la
hoje, tem pauta muito negativa e desconstru- abundancia. Editora Traficantes de Sueños, Madrid, 2003.
tora. Notícias assim não têm espaço. Mas nem 4.MONDAINI, Marco. Direitos Humanos. Editora Contexto, São Paulo, 2006. 25
por isso deixam de significar uma revolução 5.Vários. Educação em Direitos Humanos: Fundamentos Teórico-Metodológicos. Editora Uni-
Revista Direitos Humanos

silenciosa na cultura da segurança pública versitária, João Pessoa, 2007.


brasileira. Os resultados, com certeza, vi- 6.PUTNAM, Robert. Comunidade e Democracia. Fundação Getúlio Vargas Editora, 1996;
rão junto com uma nova geração de líderes 7.TOFFLER, Alvin. Powershift-As Mudanças do Poder. Editora Record, Rio de Janeiro, 2003.
policiais, que privilegiará a cientificidade, a
artigo Direito à memória e à verdade

Marco Antônio Rodrigues Barbosa é


advogado. Foi presidente do Conselho Estadual de Defesa
da Pessoa Humana e presidente da Comissão de Justiça e
Paz de São Paulo. Atualmente, é presidente da Comissão
Especial sobre Familiares de Mortos e Desaparecidos.

direito à memória
e à verdade
Marco Antônio Rodrigues Barbosa
Introdução órica, discursiva e de enunciados; são também Ainda por direitos humanos não devemos

F
ormulo as seguintes premissas como de natureza prática, sem os quais não há paz. considerar somente aqueles em favor do in-
pontos de partida para as demais re- Entendo, por fim, que tais direitos só têm sen- divíduo como criatura, mas também os que
flexões sobre o objeto deste trabalho: tido, para a consecução do bem comum, com pertencem a cada um de nós enquanto inte-
entendo que os direitos humanos, cujo dis- a plena realização e promoção da dignidade grantes de uma coletividade. A liberdade, um
curso tem longa tradição, além de seu conte- humana. Aliás, assim reconhece a Constitui- dos direitos humanos fundamentais, mesmo
26 údo ético e moral, são parte integrante de um ção Federal de 1988, ao fixar princípios e ao nas democracias mais tolerantes e abertas, é
contexto histórico, pois estão inseridos em estabelecer normas comprometendo o Brasil, racionalmente limitada em razão da indispen-
Revista Direitos Humanos

uma determinada realidade, com componentes sua sociedade e seu governo com a busca sável convivência com o exercício de todos os
históricos, políticos e sociais; considero tam- de uma nova forma de organização social, na direitos individuais e da necessária igualdade
bém que os direitos humanos não devem ser qual a pessoa humana é considerada como o entre os cidadãos. Daí exsurge o bem comum
compreendidos apenas como mera questão te- primeiro dos valores. que deve se sobrepor ao bem próprio, inte-
grante de projeto pessoal. Todo e qualquer Com base no conjunto das situações e transformação social, com o objetivo de cons-
pacto, por mais legítimo que se apresente e, na realidade atual, pode-se afirmar que os di- truir uma sociedade mais justa, e como um ins-
sobretudo, diante da necessária igualdade reitos humanos, entre os quais estão aqueles trumento de luta pelo total respeito aos valores
entre os cidadãos, traz consigo uma par- que a Constituição de 1988 enumerou como democráticos e aos princípios republicanos da
cela de renúncia à liberdade do homem. direitos fundamentais, ainda não vigoram em cidadania, tais como a liberdade e a igualdade.
Trata-se de falácia, portanto, quando se diz sua plenitude para um grande número de bra- Este texto não pretende suscitar questões
que uma liberdade termina quando se ini- sileiros. Passadas duas décadas da promul- meramente teóricas. A perspectiva deste tra-
cia a de outrem, pois a liberdade deve ser gação da Constituição Federal, grande parte balho, ao relacionar a luta pelos direitos huma-
exercida conjuntamente e com igualdade. de seus dispositivos, especialmente aqueles nos aos princípios da cidadania, democracia,
E os que matam, os que torturam, os que relacionados com a garantia de efetivação justiça, liberdade e igualdade, é exprimir com
estupram, os que desaparecem com seres dos direitos econômicos, sociais e culturais, especificidade que tais valores também não
humanos devem ser punidos. que constituem condição de igualdade e li- podem subsistir sem a plena vigência do “Di-
Os direitos humanos, em sua formula- berdade, ainda continuam sem ser aplicados. reito à Memória e à Verdade”, principalmente
ção discursiva, vão surgindo com a con- Infelizmente, ainda subsistem muitas exclu- porque nosso país nunca teve a vocação para
tínua valorização da pessoa humana e do sões, marginalizações e injustiças, apesar preservar a sua memória, muito menos para
ideal de liberdade, através de sucessivas de a sociedade brasileira estar mudando e tornar exemplar a trajetória daqueles que lu-
gerações, com forte ênfase no século as camadas mais pobres da população esta- taram por uma sociedade mais justa. Isto é
XVIII, quando então tais direitos foram ex- rem adquirindo consciência de seus direitos, o que acontece, por exemplo, num passado
pressos pelas revoluções liberais demo- além de terem avançado no sentido de sua mais recente, com a memória dos feitos da-
cráticas, a americana (1776) e a francesa organização, à medida que, aos poucos, vão queles que foram presos, torturados e mortos
(1789). Os direitos humanos constituem descobrindo a importância da solidariedade. durante o regime militar iniciado em 1964,
uma conquista da civilização e, hodier- Por outro lado, forçoso é reconhecer que assim como, num passado mais remoto,
namente, tais direitos se apresentam me- o Brasil atualmente conta com um governo ocorre com a memória de indígenas, negros
diante a configuração jurídica, remetendo comprometido com a integração social, em- e com a memória daqueles que participaram
à ideia de norma. bora ainda não tenha chegado ao nível do dos primeiros movimentos pela independên-
A par do aspecto discursivo, é preciso acesso social à informação. cia nacional, que cinicamente seguem sendo
reconhecer que, na prática, ao longo da his- Ademais, como assinala Dalmo de Abreu chamados de movimentos de inconfidência,
tória universal, é trágico o desrespeito aos Dallari, tal como ocorre com a Inconfidência Mineira
direitos humanos. Na história latino-ame- – desfeita, em 1789, em Ouro Preto (MG),
ricana, em geral, e na brasileira, em parti- (...) um conjunto de circunstâncias (...) logo em seu nascedouro e cujo único prota-
cular, é notável a negativa desses direitos, várias ações do governo federal, desen- gonista, que foi enforcado e esquartejado, era
sobretudo aos cidadãos menos favorecidos cadeadas nos últimos cinco anos, já co- um militar – e com a Inconfidência Baiana,
economicamente, com total desrespeito meçaram a produzir efeitos positivos, be- iniciada em Salvador, em 1794, e que se pro-
à promoção da dignidade humana. Trata- neficiando, sobretudo, as camadas mais longou durante quatro anos.
se de uma história marcada por profundas pobres da população brasileira.
desigualdades entre os que tudo têm e os Reflexões sobre o direito à memória
que nada possuem, compondo, os primei- De qualquer forma, no contexto histórico- A proposta deste capítulo é ressaltar,
ros, uma estrutura político-social elitizada e político, mesmo atual, e em particular no Brasil, em primeiro lugar, que o direito à memória
oligárquica, resistente a transformações es- a plenitude da vigência dos direitos humanos, com verdade, se desrespeitado, afeta todos 27
senciais para melhorar a qualidade de vida incluindo-se aí o direito à memória e à verdade, os cidadãos, influindo no cotidiano de suas
Revista Direitos Humanos

dos últimos, economicamente mais fracos, deve ser considerada como instrumento pri- vidas. A proposta é também demonstrar a
e inseridos no âmbito de um sistema explo- mordial da realização e promoção da dignidade importância da memória nos seus mais
rador que, muitas vezes, quando ameaçado, humana. E essa plenitude deve ser permanente, amplos e diversos sentidos, isto é, como
também tortura e mata. entendida como uma poderosa ferramenta de acontecimento histórico, psicológico, in-
artigo Dreito à memória e à verdade

dividual e coletivo e, em especial, fazer Ao contrário do esquecimento, a memó-


a correlação entre o direito à memória e à ria individual e a coletiva, como forma de
comunicação ou direito à informação com requalificação das referências que compõem
verdade, realçando a importância dessa a identidade brasileira, são os eixos primor-
correlação, seja como um dever moral e diais e a forma de aplicar na prática os funda-
ético, seja como um ato político de resis- mentos dos direitos humanos, libertando de
tência e de luta, pois, como assinala Bal- nossos corações as lembranças nefastas do
tasar Garzón: passado, tais como a tortura.
O esquecimento, ao contrário da me-
A condição humana consiste em lutar cons- mória, já consideravam os gregos da Grécia
tante e permanentemente para mudar o Arcaica como a mais dolorosa das experiên-
mundo e melhorar nossa própria existência, cias. Irmão da morte e do sono, os gregos
no sentido de reduzir ou eliminar a explora- mencionavam o esquecimento como a ver-
ção de uns seres humanos por outros, em dadeira morte, o portador do silêncio, da in-
todas as partes, desde as políticas às crimi- diferença e da obscuridade, e entendiam que
nais, ou ao menos assim deveria ser. um homem morre quando o esquecem, vive
quando o lembram. Entendiam também que,
A preservação da memória, por ser um para que o nome de um homem de bem não
registro de fato ou acontecimento histórico viesse a fenecer, era essencial resgatar-lhe a
e mesmo psicológico, individual e coleti- memória, elogiá-lo, lembrar os seus feitos
vo, exerce função primordial na evolução em benefício da pólis.
das relações humanas: trata-se de um ato Para o escritor austríaco Imre Kertéz,
político, de resistência e de luta, que cons-
titui a base sobre a qual a sociedade pode (...) enquanto o homem sonhar – as coi-
afirmar, redefinir e transformar os seus va- sas boas ou ruins –, enquanto o homem
lores e ações. Nesse sentido, aliás, ensina tiver histórias sobre as origens, lendas
Carmen Lúcia Vidal Pérez: universais, mitos, haverá literatura, a des-
peito do que e do quanto falem da sua
Rememorar é um ato político. Nos crise. A verdadeira crise é o completo es-
fragmentos da memória encontramos quecimento, a noite sem sonhos (...).
atravessamentos históricos e culturais,
fios e franjas que compõem o tecido Neste ano, em que se comemora o
social, o que nos permite ressignificar sexagésimo aniversário da Declaração
o trabalho com a memória como uma Universal dos Direitos Humanos, apro-
prática de resistência. (...) São nas au- vada em 10 de dezembro de 1948 pela
sências, vazios e silêncios, produzidos Assembléia Geral da ONU, e o vigésimo
pelas múltiplas formas de dominação, aniversário da Constituição cidadã, pro-
que se produzem as múltiplas formas mulgada em 5 de outubro de 1988, uma
28 de resistência (...) que, fundadas no das tarefas primordiais da Comissão sobre
inconformismo e na indignação peran- Mortos e Desaparecidos Políticos, criada
Revista Direitos Humanos

te o que existe, expressam as lutas dos pela Lei nº 9.140/95, além de colaborar
diferentes agentes (pessoas e grupos) para proteger esta Carta Magna contra os
pela superação e transformação de contumazes violadores de direitos huma-
suas condições de existência. nos, é também colaborar para resgatar e
preservar a memória daqueles que tomba- um dos aspectos mais execráveis do caráter
ram por um ideal democrático, valorizan- nacional, que é a tentativa de supressão de-
do os seus feitos; é também de lutar pela finitiva da memória, a recusa dos donos do
punição daqueles que praticaram crimes poder de ajustar contas com o passado, a
contra a humanidade, tais como a tortura manutenção da ignorância, sobretudo entre
e os desaparecimentos forçados. os jovens, provocada pela intencional omis-
A reconstituição da memória, fundada na são de fatos históricos inclusive nos currí-
verdade, é essencial: é o meio pelo qual se culos escolares.
pode readquirir o sentimento de identidade, É preciso insurgir-se contra essa supres-
tanto individual quanto coletivo, na medida são da memória, contra esses pactos de si-
em que ela fornece o elo de continuidade lêncios e de concessões mútuas, conscien-
e de coerência de uma pessoa ou de um tizando a geração atual e, por conseguinte,
grupo em sua reconstrução de si. Resgatar as futuras, de sorte que estas tenham pleno
a memória com verdade também é funda- conhecimento dos fatos históricos que avil-
mental para elucidar o que é inconsciente taram seres humanos, tais como as ditadu-
e irracional, passando-os à consciência ras que nos atormentaram, cujo surgimento
para transcendê-los. Reavivar a memória pode ter muitas causas, dentre elas estão
histórica de um passado mais recente, quase sempre a descrença na democracia e
relativa às atrocidades praticadas pela a crença ilusória em promessas milagrosas.
ditadura militar que vigorou no Brasil por É preciso que tais gerações tenham cons-
21 anos, é premente para dar voz ao que ciência de que as ditaduras, qualquer que
ficou imanente e obscuro, submerso no seja o pretexto de que se valham, são muito
ambiente internacional de rivalidade entre parecidas: não toleram os opositores, cer-
duas potências – União Soviética e Esta- ceiam as liberdades, censuram a imprensa,
dos Unidos –, que dividiam o mundo em violam os direitos humanos, prendem, tor-
dois blocos e, submerso pelo que emana- turam e matam.
va da “doutrina de segurança nacional”, Tanto a história recente do Brasil, marcada
frequentemente utilizada para justificar por violações dos direitos humanos no perío-
violações aos direitos humanos nos anos do ditatorial, como a de outros períodos mais
de governo autoritário que antecederam a remotos, com o cerceamento dos direitos de
vigência da Constituição de 1988. amplos segmentos da sociedade, estão a exi-
Na realidade, mesmo ao retomar-se gir ações efetivas na identificação, preserva-
a ordem democrática, representada pela ção e difusão das memórias de centenas de
promulgação da Constituição de 1988, os brasileiros que lutaram por ideais democrá-
brasileiros ainda se veem diante da doloro- ticos. É relevante a formação de uma cons-
sa perda da memória do País. É conhecida ciência coletiva, no sentido de se saber que
a estratégia dos regimes de força: as dita- a tortura foi historicamente utilizada no Brasil
dura, tais qual a que infernizou milhares de como instrumento de repressão política e de
brasileiros durante 21 anos, criam raízes, manutenção do poder: a propósito, a chamada 29
projetam-nas no futuro, produzem a supres- Inconfidência Mineira e a denominada Incon-
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são da memória que se prolonga diante de fidência Baiana, Canudos e o Estado Novo são
um pacto de silêncios e concessões mútu- exemplos bastante claros e conhecidos.
as, acomodando precariamente os sobrevi- A tortura foi largamente utilizada con-
ventes da guerra suja e mantendo intocado tra os setores marginalizados da população
artigo Direito à memória e à verdade

desde a época da Colônia: é o que ocorreu trágica história vivida no Brasil, nos cha- Reflexões sobre o direito à verdade
com os índios, cuja população extermina- mados anos de chumbo, têm o direito de A primeira reflexão que faço em re-
da girava em torno de 5 milhões, ou como ocultar os fatos, entorpecer a memória. lação à verdade é conceitual. Conceitu-
ocorreu com milhares de negros escraviza- A proibição de restaurar a memória com almente, podemos chamar de verdade
dos. Durante a ditadura militar, a tortura foi verdade é o primeiro passo em direção ao aquilo que não podemos modificar. Me-
sistematizada e institucionalizada. A partir precipício. Trata-se de proibição de resga- taforicamente, na expressão de Hannah
de 1964, centenas de cidadãos passaram te da memória ou de ignorância dos acon- Arendt, ela é o solo sobre o qual nos co-
a ser ilegalmente presos e submetidos às tecimentos históricos, por trás da qual se locamos em pé e o céu que se estende
mais bárbaras torturas, com a conivência de escondem a mediocridade e a impossibi- acima de nós.
toda uma estrutura montada para acober- lidade de vencer a força das ideias. Sobre a verdade, ensina Paulo Klautau Fi-
tá-las. O golpe de 1964 inaugurou a fase É inescusável, portanto, o resgate da me- lho que, “se na vida privada, o dever de dizer
do requinte, da especialização no méto- mória com verdade e sua preservação, para a verdade consiste num imperativo da moral;
do de torturar, matar e desaparecer com que as violações aos direitos humanos, com na vida pública, esse dever será tratado, pelo
pessoas. Os regimes de segurança nacio- mais ênfase às ocorridas em nosso passado menos, com o mesmo rigor”.
nal na América Latina, dos quais o Brasil recente, mais precisamente durante a ditadu- Citando ensinamentos de Kant e de Han-
foi o primeiro, não hesitaram em adotar ra militar, sejam reconhecidas e sancionadas, nah Arendt, ele acrescenta: “O homem público
30
a tortura como técnica de combate. Tais não apenas porque deva haver justiça para não pode se eximir da verdade, nem pode cul-
Revista Direitos Humanos

regimes escreveram a história de sangue as famílias, mas também porque isso é in- tivar o segredo (...) e a publicidade deve ser
e violência inimagináveis: é a história da dispensável para consolidar a reconstrução considerada como a solução para o ‘conflito
própria negação do conteúdo dos direitos do Brasil como um país verdadeiramente da política com a moral’”. A publicidade – en-
humanos, que é o direito à VIDA. democrático e republicano. Queremos que a tende esse insigne doutrinador – se traduz no
Nem os algozes, nem as vítimas da tragédia não se repita nunca mais. princípio de que “são injustas todas as ações
que se referem ao direito de outros homens, Lúcia de Fátima Guerra Ferreira ensina mentais e ignora os anseios da cidadania pela
cujas máximas não se harmonizem com a pu- que, na linha do “(...) sentido mais amplo do construção de uma memória coletiva e pelo
blicidade”. A publicidade – conclui – constitui direito à informação, aparecem não só os di- acesso a informações estruturais para as vidas
a garantia certa da moralidade da ação, porque reitos ligados à liberdade de imprensa, mas o individuais de milhares de cidadãos brasilei-
a declaração pública de uma ação injusta a tor- direito às informações referentes ao passado ros. A reconstituição da memória, fundada na
na por si mesma impraticável. A publicidade e ao presente”. verdade, é consequentemente um instrumento
tem a dupla função de revelar a injustiça da Conforme expressou José Augusto Lind- necessário e inarredável.
ação e de torná-la impraticável. É a verdade gren Alves, Em que pese a lacuna da plena reconstitui-
advinda da comunicação que impede a injusti- ção da memória, fundada na verdade e, portan-
ça. Como tal, trata-se de uma exigência neces- o restabelecimento do sistema demo- to, na verdadeira e correta elaboração de nossa
sária para tornar possível uma prática política crático de direito – dos direitos políti- história, já tivemos, importantes iniciativas,
adequada aos ditames da moral. cos e a mobilização da sociedade na dentre as quais destaco a) a Comissão Justiça
A comunicação da verdade é o que cola- busca de novos padrões inspirados na e Paz de São Paulo, fundada em 1972 por ini-
bora para extinguir a ignorância; seu papel é ética – permitiu revelar a verdade. Foi ciativa do Cardeal D. Paulo Evaristo Arns, que
fundamental para resgatar a consciência de possível, assim, verificar com muito teve papel preponderante na defesa dos direi-
responsabilidade dos indivíduos e da coleti- mais clareza o estado deplorável dos tos humanos; b) o Grupo Tortura Nunca Mais
vidade, de respeito para com a vida humana direitos humanos e o grau de ameaça (surgiu em 1985 no Rio e se espalhou, a par-
e a natureza, a partir da requalificação dos va- que isso significa à instabilidade tanto tir de 1990, por diversos estados brasileiros,
lores fundamentais dos quais os direitos hu- doméstica quanto internacional. como São Paulo, Pernambuco, Minas Gerais,
manos genuínos são alguns de seus pilares e Bahia, Alagoas, Paraná); c) o projeto Brasil
sem os quais não há possibilidade de paz. A No Brasil, entretanto, após passadas mais Nunca Mais, da Arquidiocese de São Paulo e
negativa de comunicação ou informação, ao de duas décadas do término do regime au- d) o livro-relatório, intitulado Direito à Memória
revés, em estrita consonância com a verdade, toritário, ainda não se restaurou por inteiro a e à Verdade, elaborado pela Secretaria Espe-
importa em censura, que, se cometida por verdade, pois, por exemplo, ainda não foram cial dos Direitos Humanos da Presidência da
funcionários do governo ou por outras instân- totalmente disponibilizados à população os República – ato de justiça e não de vingança,
cias do Estado, nega o princípio democrático assim chamados arquivos da ditadura e, por- que sinaliza nova etapa no reconhecimento
do poder transparente e a democracia não tanto, a totalidade das informações pertinentes do direito à verdade e à memória, ao contar
medra em terreno onde sua existência é con- a qualquer cidadão. Ainda não se mostrou, as histórias dos mortos e desaparecidos polí-
dicional. Todo governo deve prestar contas integralmente, o que realmente se passou no ticos, a partir dos julgamentos, realizados com
de seus atos à cidadania e a condição desse período ditatorial. Resistências internas em fundamento na Lei nº 9.140, de quase 500
imperativo é a livre imprensa, pois, sem ela, abrir os arquivos da ditadura ainda subsistem e casos pela Comissão Especial sobre Mortos
é impossível avaliar os governantes ou obter têm gerado controvérsias no âmbito do Estado. e Desaparecidos Políticos. Além disso, lembro
informações por qualquer cidadão a respeito Contudo, nenhum governante tem o direito de ainda as várias medidas tomadas no âmbito
de si próprio. O direito de saber o que fazem ocultar a verdade dos fatos. A negação injusti- judicial, que ajudaram a recuperar a verdade e,
os administradores não é cedido a ninguém ficada do amplo e livre acesso a esses arqui- por conseguinte, a memória de acontecimen-
pelo povo soberano. A censura é tutela que vos viola preceitos básicos de direitos funda- tos que por si só mudaram o curso da história,
reduz o cidadão à menoridade. A imprensa li-
vre está na essência do regime democrático.
Nele, “nenhum indivíduo humano transfere o “A censura é tutela que reduz o 31
seu direito natural a um outro (em proveito do
cidadão à menoridade. A imprensa
Revista Direitos Humanos

qual ele aceitaria não mais ser consultado).


Ele transfere ao todo da sociedade da qual é
parte. Os indivíduos permanecem, assim, to-
livre está na essência do regime
dos iguais, como no estado de natureza”. democrático”
artigo Direito à memória e à verdade

“Perdão é ter consciência, é Ainda segundo outro ensinamento de


Paulo Klautau Filho, em obra já citada nes-
revitalizar a memória de que a te trabalho, tal como a dignidade da pessoa
humana constitui o núcleo essencial dos
vida não pode ser regida por uma direitos humanos, o princípio da veracidade,

relação de dor e ódio ” como corolário da pessoa humana, constitui


razão justificadora do direito à liberdade de
tais como as sentenças proferidas nos casos nacional, que só pode se fundar na verdade. expressão (art. 220 da Constituição). Para
Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho. O País não deve mais conviver com fantas- esse jurista, a dimensão social da liberdade
Como dito acima, é importante a restau- mas e feridas não-cicatrizadas. É inadmissível de expressão e de informação exige que seu
ração da verdade, como um ato histórico, para que a pseudossegurança da sociedade e do exercício se dê com intenção de veracidade,
perpetuação da memória, em homenagem aos Estado sirva de pretexto para proteger os in- sob pena de frustrar o alcance de sua fina-
que tombaram e deram suas vidas pela demo- teresses e assegurar a impunidade de pessoas lidade republicana e democrática. Por isso,
cracia. Ter acesso à verdade, formar a memória e categorias ligadas a órgãos do Estado e às conclui: é vedado o anonimato, sendo as-
coletiva são atitudes indispensáveis, como corporações militares. É preciso que as Forças segurado o direito de resposta (a busca da
forma de redefinir o passado, refletir o pre- Armadas, em especial o Exército, adquiram verdade no livre debate de ideias) e a inde-
sente e projetar o futuro. Lembrar, desvendar e consciência de que a reconciliação no Brasil nização por dano material e/ou imagem, à
esclarecer são anseios da cidadania, não para exige clara posição institucional, exige partici- vida privada e à honra das pessoas. Além de
alimentar o ódio, a raiva – o que faz mal. Tam- pação na chamada mesa de diálogo, para, com garantias individuais, esses limites à liberda-
pouco para perdoar ou esquecer. O perdão não civilidade, se discutir os temas da tortura e dos de de expressão são garantias, também, do
é esquecimento, não é o pingar de um ponto desaparecimentos forçados. As Forças Arma- acesso à informação verdadeira para toda a
final numa história. Perdão é ter consciência, é das brasileiras, que contam nos seus quadros sociedade. Tais limites e garantias concreti-
revitalizar a memória de que a vida não pode com muitos comandantes e oficiais honrados, zam, no corpo da Constituição, a velha crença
ser regida por uma relação de dor e ódio. Não não têm por que continuar suportando o ônus de que a mentira destrói a dignidade do ser
se trata de revanchismo ou ódio, mas, sim, e tampouco se confundirem com aqueles que humano. Enfim, no que tange à relação entre
de criar uma racionalidade capaz de sublimar praticaram crimes contra a humanidade, ao veracidade e liberdade de expressão, pode-
aquela tragédia que é a bestialidade humana. infligirem inomináveis sofrimentos a centenas se deduzir que: 1) exige-se que o princípio
O reconhecimento dessa verdade históri- de cidadãos. veracidade seja respeitado e protegido; 2) se
ca é essencial para a conscientização de que a liberdade de expressão não se aplicasse, o
condenar a tortura no Brasil e no mundo não O direito à verdade na Constituição princípio da veracidade não seria respeitado,
é apenas necessário, mas um dever de cada Federal nem protegido e 3) exige-se a aplicação da
cidadão que respeite a justiça e os direitos hu- Vejamos agora a questão da verdade à luz liberdade de expressão. Pode-se, daí, con-
manos. Ser contra a tortura não envolve ape- da Constituição Federal de 1988. Já em sua cluir que as normas constitucionais que dis-
nas uma posição política. É mais do que isso: abertura, no artigo 1º, clara está a afirmação põem sobre a liberdade de expressão, uma
consiste em uma questão ética, de princípio, da opção política em favor dos princípios re- que se fundamentam, também, no princípio
que precisa ser trabalhada para conscientizar publicanos e democráticos. Esses princípios, da veracidade, integram o conjunto de dispo-
o conjunto da sociedade de que a tortura é um assim como os fundamentos enunciados sitivos que compõem o direito à verdade do
crime que lesa a humanidade, e cada vez que nos cinco incisos, devem nortear a condu- cidadão, perante o poder público em nosso
32 uma pessoa é torturada, degradada e aviltada ta do poder público da República Federati- ordenamento.
na sua condição de ser humano, a sociedade va do Brasil, o que supõe um compromisso Ainda no que concerne ao direito à verda-
Revista Direitos Humanos

como um todo é igualmente atingida. Somen- incondicional com a verdade, em virtude de de, ressalte-se agora o direito que qualquer
te o conhecimento pleno do que efetivamente o direito à verdade decorrer do princípio fun- cidadão tem, perante os órgãos públicos,
ocorreu nos chamados anos de chumbo será damental e constitucional da dignidade da de obter informações de caráter particular,
capaz de promover a verdadeira reconciliação pessoa humana (CF, art. 1º, inc. III). conforme assegura o art. 5º, inciso XXXIII, da
Constituição Federal. Essa regra constitucio- com espírito democrático, necessitam com- Insisto que a reconstituição da memó-
nal importa na rejeição ao segredo e à mentira preender que, no passado, por ação de parte ria, fundada na verdade, é um instrumento
governamental, pois o reconhecimento do di- de seus membros, foram utilizadas indevida- necessário e fundamental. Questões es-
reito à informação, em última análise, conduz mente e que sua imagem, perante a sociedade, senciais serão relegadas ao esquecimento,
ao reconhecimento do direito à verdade do estará definitivamente restaurada quando elas se não houver um processo permanente de
cidadão e a um dever governamental de dizer próprias se convencerem de que são as pri- recuperação da memória, que, segundo
a verdade, o que configura um princípio fun- meiras interessadas em apurar toda a violência ensinou Norberto Bobbio,
damental em nossa Constituição, vale dizer: praticada durante a ditadura militar. Quando
o direito à verdade justifica-se com base nos isso ocorrer, serão reconhecidas como parte (...) é a fonte inesgotável de reflexões
princípios éticos republicanos e democráti- fundamental em um Estado de Direito. Impõe- sobre nós mesmos, sobre o universo
cos, decorrendo e buscando essencialmente se, ademais, que a sociedade civil, de forma em que vivemos, sobre as pessoas e os
a promoção e proteção da dignidade humana, organizada, continue a propugnar por legisla- acontecimentos que, ao longo do cami-
conforme anota Paulo Klautau Filho, citando o ção infraconstitucional adequada e a exigir o nho, atraíram nossa atenção (...) O mun-
professor Fábio Konder Comparato, em obra respeito aos princípios democrático e republi- do do passado é aquele no qual, recor-
aqui já mencionada. cano, por meio da efetiva possibilidade de ob- rendo a nossas lembranças, podemos
Deixo de aprofundar a análise relativa à tenção, por qualquer cidadão, de informações buscar refúgio dentro de nós mesmos,
legislação infraconstitucional. Ressalto apenas revestidas de veracidade. Agindo assim, será debruçar-nos sobre nós mesmos e nele
que o legislador não exerceu corretamente sua preservada a verdadeira memória nacional. reconstruir nossa identidade (...).
tarefa constitucional de regulamentar o inciso
XXXIII do art. 5º da Constituição Federal em
nenhum de seus aspectos: não houve, quanto
à exceção da imprescindibilidade do sigilo, a REFERÊNCIAS
definição de situações e a criação de critérios
1 DIAS, José Carlos. Democracia e Violência. Publicação da Comissão Theotônio Vilela, p. 125,
aptos a orientar a inversão (em favor da segu-
Editora Paz e Terra Política.
rança) da prevalência do direito à plena infor-
2 DALLARI, Dalmo de Abreu. Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodoló-
mação governamental, que integra o feixe de
gicos. Editora Universitária, p. 48.
direitos ligados ao direito à verdade dos cida-
3 GARZÓN, Baltasar. Un Mundo sin Miedo. Plaza Janés, Ed. 2005, p. 12.
dãos em face do poder público, em concreti-
4 PÉREZ, Carmen Lúcia Vidal. O lugar da memória e a memória do lugar na formação de pro-
zação ao princípio da veracidade. As vítimas e
fessores: a reinvenção da escola como uma comunidade investigativa. In: Reunião Anual da
parentes de pessoas que sofreram os horrores
Anped, 26, 2003, p. 5. Disponível em : <http://www.anped.org.br/reunioes/26/trabalhos>.
da ditadura, em nome da segurança nacional,
Acesso em:
embora, num Estado de Direito Democrático,
5 KERTÉZ, Imere. A língua exilada.
têm o direito à verdade. Os conceitos de se-
6 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2006.
gurança da sociedade e do Estado continuam
7 KLAUTAU FILHO, Paulo. O Direito dos cidadãos à verdade perante o poder público. Editora
a ser utilizados para proteger os interesses e
Método, p. 66 e p. 68.
assegurar a impunidade de pessoas ligadas a
8 SPINOZA, Tratado Teológico-Político. p. 16.
órgãos do Estado e às corporações militares,
9 FERREIRA, Lúcia Guerra. Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológi-
que, no passado, durante a ditadura, atuaram
cos. p. 135.
como torturadores, infringindo-se, assim, o 33
10 ALVES LINDGREN, José Augusto. Os Direitos Humanos como tema global. São Paulo: Pers-
princípio democrático do poder transparente.
Revista Direitos Humanos

pectiva, 2007.
11 BOBBIO, Norberto. O Tempo da Memória. De senectude e outros escritos biográficos. 9ª ed.,
Conclusão
Rio de Janeiro: Campus, 1997.
Reitero que as Forças Armadas, cuja maio-
ria de seus integrantes é composta de pessoas
artigo Um mundo de todos para todos: Universalização de direitos e direito à diferença

Um mundo de
todos para todos:
Universalização de direitos
e direito à diferença.
Ana Rita de Paula
Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior

34
Revista Direitos Humanos
Ana Rita de Paula, psicóloga, é consultora da Sorri-Brasil há 15 anos, além de continuamente o número dos que por ela
outras organizações não-governamentais e órgãos públicos municipais, estaduais e são marginalizados, inclusive nos países de-
federais. Recebeu, entre outros, o Prêmio Direitos Humanos da Universidade de São senvolvidos. Assim como a mecanização da
Paulo, em 2001 e o Prêmio Nacional de Direitos Humanos, outorgado pela Secretaria agricultura provocou o êxodo rural, inflando
Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, em 2004. Mestre e pós- cidades e suas periferias, a racionalização
doutoranda em Psicologia Social, doutora em Psicologia Clínica, pela Universidade atual da produção empurra os pobres ainda
de São Paulo (USP). Há 30 anos faz parte da liderança do movimento pela defesa dos mais para as margens da economia, a infor-
direitos das pessoas com deficiência. matização crescente da indústria torna supe-
rado o trabalho não especializado e contribui
Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior é médica fisiatra e neurologista, para o desemprego estrutural. Nas socie-
docente do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, dades emergentes, alega-se a necessidade
especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do Ministério do desmonte da previdência pública como
do Planejamento, e especialista em Bioética da Universidade de Brasília. É titular da sendo necessário à eficiência da gestão go-
Academia Brasileira de Medicina de Reabilitação, conselheira titular do Conselho vernamental, transformando a exclusão em
Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência e, desde 2002, está no cargo de contrapartida aceitável da competitividade
coordenadora-geral da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de nacional.
Deficiência (CORDE), órgão da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência Já no campo do pensamento, a valoriza-
da República. Recebeu diversos prêmios e condecorações dos estados e instituições ção da pluralidade das ideias e a relativização
brasileiras e foi eleita em 2002 membro do Conselho de Honra da Rehabilitation da verdade consolidam o antiuniversalismo
International. Pertence ao movimento de luta das pessoas com deficiência desde 1987. pós-moderno, opondo-o ao período histórico
Está à frente das atividades da convenção como orientadora do processo e participou da anterior, ou seja, a modernidade.
7ª e da 8ª sessões do Comitê da ONU que elaborou a Convenção sobre os Direitos das Considerando que a Declaração Univer-
Pessoas com Deficiência. sal dos Direitos Humanos surgiu durante a
modernidade, com sua tentativa de identificar

A
lguns estudiosos identificam na con- tabeleceram. Como todo período histórico, uma situação ideal e universal para o homem,
temporaneidade características que a pós-modernidade possui uma face positiva esse documento se tornou um instrumento
determinam um período histórico e outra negativa. Convivem, lado a lado e si- importante para a efetivação dos ideais ilumi-
denominado pós-modernidade. Uma dessas multaneamente, a valorização do multicultu- nistas de liberdade, igualdade e fraternidade.
características é o pluralismo das ideias e a ralismo, as atividades terroristas e o uso da Nesse contexto, a Declaração de 1948
aproximação e valorização das diferentes cul- mão-de-obra de países subdesenvolvidos inovou a gramática dos direitos humanos, ao
turas do planeta. pelas corporações multinacionais. introduzir a chamada concepção contempo-
Segundo Boaventura de Souza Santos, Lindgren Alves afirma que as caracte- rânea de direitos humanos, marcada pela uni-
a pós-modernidade se caracteriza como um rísticas da globalização deste fim de sécu- versalidade e indivisibilidade destes direitos.
período de transição, uma vez que os valores lo são bastante conhecidas, assim como Universalidade porque clama pela extensão
da modernidade estão em crise. Ao mesmo são reconhecidos seus efeitos colaterais. A universal dos direitos humanos, sob a crença
tempo, novos paradigmas ainda não se es- busca obsessiva da eficiência faz aumentar de que a condição de pessoa é o requisito úni-

“A valorização da pluraridade das ideias e 35

a relativização da verdade consolidam o


Revista Direitos Humanos

antiuniversalismo pós-moderno, opondo-se ao


período oposto anterior, ou seja, a modernidade”
artigo Um mundo de todos para todos: Universalização de direitos e direito à diferença

co para a titularidade de direitos e considera violações de direitos, exigem uma resposta Destacam-se, segundo Flávia Piovesan,
o ser humano como um ser essencialmente específica e diferenciada. Nesse cenário, as
moral, dotado de unicidade existencial e dig- mulheres, as crianças, as populações afro- três vertentes no que tange à concepção da
nidade. Indivisibilidade porque a garantia dos descendentes, os migrantes, as pessoas com igualdade: a) a igualdade formal, reduzida
direitos civis e políticos é condição para a deficiência, dentre outras categorias vulnerá- à fórmula “todos são iguais perante a lei”
observância dos direitos sociais, econômicos veis, devem ser vistas nas especificidades e (que, ao seu tempo, foi crucial para a aboli-
e culturais, e vice-versa. Quando um deles é peculiaridades de sua condição social. ção de privilégios); b) a igualdade material,
violado, os demais também o são. Os direitos Apesar de reconhecer as transformações correspondente ao ideal de justiça social e
humanos compõem, assim, uma unidade in- históricas não podemos negar que a Decla- distributiva (igualdade orientada pelo critério
divisível, interdependente e interrelacionada, ração Universal dos Direitos Humanos tem socioeconômico); c) a igualdade material,
capaz de conjugar o catálogo de direitos civis sido argumento daqueles que não têm voz e correspondente ao ideal de justiça enquanto
e políticos com o catálogo de direitos sociais, os direitos humanos refletem um construído reconhecimento de identidades (igualdade
econômicos e culturais. axiológico, a partir de um espaço simbólico orientada pelos critérios de gênero, orienta-
Essa característica da Declaração é ex- de luta e ação social. No dizer de Flores, os ção sexual, idade, raça).
pressa em seu próprio titulo. É a única de- movimentos compõem uma racionalidade de
claração da ONU que recebeu o nome de resistência, na medida em que traduzem pro- Essas concepções invocam uma plata-
universal e não internacional como ocorreu cessos que abrem e consolidam espaços de forma emancipatória voltada à proteção da
com as demais. Almejava-se, desde a sua luta pela dignidade humana. dignidade humana.
formulação, que esse documento se tornas- Não se trata de propor a reforma de um Segundo Bueno e Paula, vale a pena
se um instrumento da modernidade racional, documento tão importante como a Declaração ressaltar aqui que a discussão sobre a valo-
secular, democrática e universal. Universal dos Direitos Humanos, embora re- rização da diversidade pode ter uma leitura
Porém, como falar atualmente de um ho- conheçamos a necessidade de contextualizar distorcida e ser utilizada para escamotear
mem universal depois que a psicanálise, a sua produção, considerando que se trata de processos de exclusão social. É preciso
antropologia, a etnologia e a própria filosofia um documento datado, ou melhor, histórico, cuidado ao discutir este tema para não
já demonstraram a ilusão da concepção de como toda produção humana, e não atempo- incorrer em um discurso ufanista que pre-
indivíduo como ser único, indivisível e natural ral como parece pretender ser. É inegável que coniza a tolerância a supostas diferenças
e as consequências nefastas dessa forma de a Declaração Universal dos Direitos Humanos individuais. Quando falamos de diferenças,
pensar? Na contemporaneidade falamos da influenciou positivamente o mundo, nos últi- temos consciência de que, ao apontá-las,
determinação pelas estruturas econômicas, mos 60 anos. estamos descortinando um processo his-
sociais, culturais, linguísticas de um sujeito Necessitamos, sim, do reconhecimento tórico de desvalorização e exclusão social
dividido psiquicamente. dos direitos das mulheres, dos direitos das apoiado em características como gênero,
Tornou-se fundamental para os movi- pessoas com deficiência e de outras mino- raça e etnia. Não se trata, portanto, de con-
mentos sociais de luta das minorias falar, por rias, como parte integrante dos direitos hu- siderar todas as diferenças como próprias
exemplo, das diferenças de gênero. Homens manos universais, engajando-nos na luta pla- da natureza humana, e sim do enfrentamen-
e mulheres habitam corpos e mentes diferen- netária pelos direitos fundamentais de todos to do processo histórico da transformação
tes, suas realidades mentais e corporais, por os seres humanos. É necessária a compatibi- da diferença em desigualdade. O debate
sua vez, são construídas dentro da cultura. lização entre o particularismo das culturas e a sobre diversidade só se torna consequente
Torna-se insuficiente tratar o indivíduo de ideia de direito universal. quando não oculta os fatores produtores da
36 forma genérica, geral e abstrata. Faz-se ne- Ao lado do direito à igualdade, surge, desigualdade e da pobreza. Todos somos
cessária a especificação do sujeito de direito, diferentes e é preciso denunciar quando
Revista Direitos Humanos

também, como direito fundamental, o direito


que passa a ser visto em sua peculiaridade à diferença. Para que haja, de fato, uma igual- essas diferenças são usadas para manter
e particularidade. Nessa ótica, determina- dade de condições é de suma importância o grupos sociais marginalizados.
dos sujeitos de direitos, ou determinadas respeito à diferença e à diversidade. Ao longo da história, as mais graves vio-
lações aos direitos humanos tiveram como qual se pretende chegar, tendo como ponto das em 13 de dezembro de 2006, em
fundamento a dicotomia do “eu versus o de partida a visibilidade às diferenças. Isto homenagem ao 58° aniversário da De-
outro”, em que a diversidade era captada é, essencial mostrar e distinguir a diferen- claração Universal dos Direitos Huma-
como elemento para aniquilar direitos. ça e a desigualdade. nos. A mais recente das Convenções
Vale dizer, a diferença era visibilizada para Boaventura de Souza Santos acrescenta: dirigidas a um segmento marginaliza-
conceber o “outro” como um ser menor do da sociedade – nem por isto redu-
em dignidade e direitos, ou, em situações temos o direito a ser iguais quando a zido em tamanho – entrou em vigência
limites, um ser esvaziado mesmo de qual- nossa diferença nos inferioriza; e te- em 3 de maio de 2008, após ultrapas-
quer dignidade. mos o direito a ser diferentes quando sar o mínimo de vinte ratificações. O
A emergência conceitual do direito à a nossa igualdade nos descaracteriza. processo de elaboração, aprovação e
diferença e do reconhecimento de identi- Daí a necessidade de uma igualdade ratificação pelos países que culminou
dades é capaz de refletir a crescente voz que reconheça as diferenças e de uma neste documento é um exemplo desta
dos movimentos sociais e o surgimento diferença que não produza, alimente nova concepção e geração de direitos,
de uma sociedade civil plural e diversa no ou reproduza as desigualdades.. trazendo especificidades que tornam
marco do multiculturalismo. efetivos para as pessoas com defici- 37
Se, para a concepção formal de igual- Izabel Maior afirma: ência os direitos e as garantias funda-
Revista Direitos Humanos

dade, esta é tomada como pressuposto, mentais do texto de 1948. A leitura de


como um dado e um ponto de partida abs- A Convenção sobre os Direitos das cada um dos 30 artigos da Declaração
trato, para a concepção material de igual- Pessoas com Deficiência foi homolo- Universal dos Direitos Humanos está
dade, esta é tomada como um resultado ao gada pela Assembléia das Nações Uni- referida diretamente nos 40 artigos de
artigo Um mundo de todos para todos: Universalização de direitos e direito à diferença

conteúdo da Convenção estreante na


ordem jurídica internacional, incluídos
“Nada aconteceu por acaso.
os artigos do Comitê e da Conferência No Brasil, cada resultado foi
dos Estados Partes. Agora este seg-
mento da humanidade pode dizer que marcado pela luta ininterrupta,
é parte dos iguais na diversidade e no notadamente, a partir de 1980”
valor inerente de cada pessoa.

A Convenção sobre os Direitos das Pes- Tão importante quanto a convenção é dois turnos de votação no Senado Federal.
soas com Deficiência foi valorizada pelo o Protocolo Facultativo, pois, se não fo- Nas sessões do Congresso não houve voto
Estado brasileiro desde a sua concepção rem suficientes as instâncias nacionais, o contrário e, como resultado, a Convenção
no momento da abertura das assinaturas na Comitê da Convenção atuará no monitora- dos Direitos das Pessoas com Deficiência
sede da ONU em Nova Yorque, em 30 de mento e na apuração de denúncias de vio- e o Protocolo Facultativo passam à história
março de 2007, quando o Brasil firmou a lações dos direitos humanos, individuais e como o primeiro tratado de direitos hu-
posição de ratificar a Convenção e o Proto- coletivas, oriundos dos países signatários manos tornado constitucional no Brasil. O
colo Facultativo, assumindo compromisso do documento opcional. Decreto Legislativo n° 186, de 9 de julho
em casa e no cenário internacional. O caminho da incorporação do tratado de 2008, promulgado pelo presidente do
Interessante salientar que não se ma- às leis brasileiras teve início quando o po- Senado Federal, é o documento que passa
nifestaram vozes divergentes a respeito da der Executivo, por meio da Mensagem Pre- a orientar toda e qualquer regra jurídica a
ratificação da convenção, pois foi um texto sidencial n° 711/2007, encaminhou a Con- respeito das pessoas com deficiência.
construído por 192 países, o qual reflete venção da ONU à Câmara, solicitando a sua De acordo com Izabel Maior, é impor-
costumes, crenças e estágios diferentes tramitação com a equivalência de emenda tante comentar o artigo 4º das obrigações
de respeito pelas liberdades fundamentais constitucional, com base na Emenda Cons- gerais dos Estados Partes, que precisa ser
e dignidade inerente das pessoas com de- titucional nº 45/2004. aplicado em conjunto com o artigo 3º dos
ficiência. A convenção é um tratado atual, Após intenso trabalho de articulação princípios gerais. Entende-se que dos prin-
um documento internacional pela vida ple- da área governamental, liderada pela Co- cípios derivam todas as questões definidas
na do segmento a que se destina. ordenadoria Nacional para Integração das no rol das obrigações gerais e, posterior-
Mesmo para alguns países que já estão Pessoas com Deficiência - Corde e pelo mente, em cada um dos artigos temáticos
em estágio avançado de promoção social Conselho Nacional dos Direitos das Pesso- que demonstrarão a forma mais adequada
desse conjunto da população, como o Bra- as com Deficiência - Conade, instâncias da de garantir direitos fundamentais para as
sil, a convenção traz em seu bojo a obriga- Secretaria Especial dos Direitos Humanos pessoas com deficiência, devido às parti-
toriedade de não discriminar e de dar todas da Presidência da República, e por forte cularidades que são inerentes a elas.
as oportunidades e apoios necessários à pressão do movimento social, o processo As afirmações dos princípios e das
inserção dessas pessoas na vida social e de tramitação foi alcançado a partir de um obrigações gerais são os pontos centrais a
no processo de desenvolvimento do país. acordo das lideranças partidárias, tanto na ser analisados no aspecto da congruência
Apesar de não serem aspectos novos para a Câmara dos Deputados como no Senado ou não entre a Convenção e a legislação
nossa legislação, a confirmação de diversos Federal. nacional. Assim, dentre os princípios da
pontos específicos de direitos e de dignidade Foram vitoriosos os esforços para que Convenção estão: o respeito pela dignida-
38 das pessoas com deficiência confere maior o rito escolhido fosse realmente aquele de inerente, a independência da pessoa,
destaque à política de inclusão do governo que consta no § 3° do artigo 5° da Consti- inclusive a liberdade de fazer as próprias
Revista Direitos Humanos

federal. Com o advento da convenção, os tuição Federal, com equivalência à emenda escolhas, e a autonomia individual, a não-
governos passam a ter obrigações gerais que constitucional, ou seja, votação e aprova- discriminação, a plena e efetiva participa-
precisam ser traduzidas em políticas públi- ção por 3/5 dos deputados em dois turnos ção e inclusão na sociedade, o respeito
cas, planos, programas e ações concretas. e, igualmente, o quorum qualificado nos pela diferença, a igualdade de oportunida-
des, a acessibilidade, a igualdade entre o
homem e a mulher e o respeito pelas capa-
cidades em desenvolvimento de crianças Referências
com deficiência. ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos na pós-modernidade. São Paulo, Pers-
A Lei nº 7.853/1989, que instituiu a pectiva, 2005.
Política Nacional para Integração da Pes- BUENO, Carmen Leite Ribeiro e PAULA, Ana Rita. Os Paradigmas da gestão da diversidade e as
soa Portadora de Deficiência, apresenta, no
pessoas com deficiência. Disponível em http://www.sorri.com.br/artigos/OsParadigmasDeGes-
capítulo das normas gerais, a garantia do
taoDaDiversidade.pdf, acessado em 31 de outubro de 2008.
exercício dos direitos e da efetiva integra-
ção social das pessoas com deficiência, FLORES, Joaquín Herrera. Direitos Humanos, Interculturalidade e Racionalidade de Resistência,
bem como os valores básicos da igualdade Revista Sequência, Número 4, Ano 2, dezembro de 1981, disponível http://www.buscalegis.
de tratamento e oportunidades, da justiça ufsc.br/arquivos/direitos%20humanos,%20interculturalidade.pdf, acessado em 31 de outubro
social, do respeito à dignidade da pessoa de 2008.
humana e outros, indicados da Constitui- MAIOR, Izabel Maria Madeira de Loureiro. Apresentação (Im) A convenção sobre Direitos das
ção Federal de 1988.
Pessoas com Deficiência Comentada. Coordenação de Ana Paula Crossara Resende e Flavia
A comparação entre os dois artigos,
Maria de Paiva Vital. Brasília, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Coordenadoria Nacio-
respectivamente o da convenção adotada
nal para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, 2008.
pela ONU e o da lei federal brasileira, reve-
la estreita relação ao escolherem os termos PIOSEVAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. São Paulo, Editora Saraiva, 2006.
e seus significados: dignidade humana e SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade.
igualdade de oportunidades. Todavia, a di- São Paulo, Editora Cortez, 1997.
ferença de dezoito anos entre esses docu-
mentos enfatiza a evolução dos processos
para a cidadania das pessoas com defici- 1988, que originou a Lei n° 7.853/1989, processos de tomada de decisão, deverão
ência, por meio da evolução de integração posteriormente regulamentada pelo De- ser consultadas as pessoas com deficiên-
para inclusão social. Da mesma maneira, creto n° 3.298/1999. Esses documentos cia, inovando a convenção quando se re-
mostrando atualização, a questão de gêne- nacionais, junto a outros, com destaque fere inclusive às crianças com deficiência,
ro e de crianças, por se tratar de grupos para as Leis n° 10.048 e 10.098, de 2000 e que, por intermédio de suas organizações
vulneráveis. o Decreto n° 5.296/2004, conhecido como representativas, passam ativamente a tomar
No artigo 1º da lei federal, encontra-se o decreto da acessibilidade, colocam-nos parte nas deliberações que se relacionam
menção expressa sobre afastar discrimina- em igualdade com o ideário da Convenção às suas vidas.
ções e preconceitos, enquanto a convenção da ONU. Também cabe repetir que as ques- Nada aconteceu por acaso ou como
de 2006 explicita a não-discriminação. tões referentes às pessoas com deficiên- benesse. Muito ao contrário, no Brasil,
Fica evidente que os princípios gerais cia são conduzidas na esfera dos direitos cada resultado foi marcado pela luta inin-
estão assentados na valorização da diver- humanos desde 1995, quando passou a terrupta, notadamente a partir de 1980,
sidade humana e na não-tolerância com existir, na estrutura do governo federal, a quando teve início o movimento social
as mais diversas formas de discriminação Secretaria Nacional de Cidadania do Minis- das pessoas com deficiência em defesa
contra as pessoas com deficiência. tério da Justiça. de seus direitos. Sob o lema “Nada so-
Continuando, no que concerne à po- Para esclarecer, estão em perfeita con- bre nós, sem nós”, as pessoas com defi- 39
lítica brasileira voltada às pessoas com formidade o comando do novo tratado in- ciência escreveram e ainda escrevem, no
Revista Direitos Humanos

deficiência, alguns aspectos não podem ternacional e as normas brasileiras quando Brasil e na ONU, a sua história, cada vez
ser esquecidos. Em nosso país, a política estabelecem que na elaboração e na imple- com mais avanços e conquistas que se
de inclusão social das pessoas com de- mentação da legislação e das políticas para traduzem em redução das desigualdades
ficiência existe desde a Constituição de executar a presente convenção e em outros e equiparação das oportunidades.
artigo Maioridade para os direitos humanos da criança e do adolescente

Carmen Silveira de oliveira é psicóloga, doutora em Psicologia Clínica (PUCSP).


subsecretária de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria Especial
dos Direitos Humanos da Presidência da República, ex-presidente e atual vice-presidente
do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente - Conanda.

Maria luiza moura de oliveira é psicóloga, mestre em Psicologia Social


(ucggo), presidente do Conanda, representante do conselho federal de psicologia,
professora e pesquisadora da Universidade Católica de Goiás (UCG).

Maioridade para os direitos humanos


da criança e do adolescente
Introdução: brasileira, pois colocou os direitos da po- no artigo 227 da nova Constituição: a criança

E
m 2008 comemora-se o aniversário de pulação infanto-juvenil inscritos na agenda e o adolescente como sujeitos de direitos, a
maioridade do Estatuto da Criança e do contemporânea dos Direitos Humanos. Esta sua priorização absoluta, bem como a respon-
Adolescente (ECA). Na sua emergên- construção revolucionária foi resultado de sabilidade compartilhada de proteção integral
cia, em 1990, destacam-se dois cenários. um longo processo de mobilização social, entre a família, a sociedade e o Estado.
De um lado, a mobilização social diante das que promoveu transformações profundas Esta iniciativa pioneira minimizou a “es-
graves violações dos direitos infanto-juvenis, principalmente na concepção da criança e do quizofrenia jurídica” referida por Méndez
como a chacina de meninos e meninas de rua adolescente como seres humanos em desen- (2001), no caso dos países que conviveram
da Candelária e as sucessivas denúncias de volvimento, reafirmando a condição peculiar com a vigência simultânea de duas leis, regu-
torturas no sistema Febem. De outro lado, te- que lhes assegura a proteção integral. lando a mesma matéria, de forma antagônica:
mos a luta pela redemocratização, cuja alian- A convergência de lutas em favor da resti- a Convenção e a velha legislação de meno-
ça social fecundou o ECA, considerado um tuição dos direitos permitiu que o Brasil fosse res. Para Barcellona (1997), o Brasil também
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dos filhos diletos da gravidez democrática no a primeira nação a promulgar um marco legal inovou na tradição sociojurídica da região, ao
Revista Direitos Humanos

País, na medida uma vez que foi concebido em sintonia com a Convenção sobre os Direi- apontar que a capacidade de produzir leis é
e partejado em meio à formulação da nova tos da Criança, aprovada seis meses antes, ao uma competência social e não somente uma
Constituição Federal de 1988. final de 1989, no âmbito das Nações Unidas. prerrogativa dos parlamentos.
Nesse contexto, o Estatuto da Criança Isso porque os princípios mais importantes Dessa forma, esses novos mecanismos
e do Adolescente inaugurou um novo para- que estavam sendo discutidos no documento de produção do direitos influenciaram outras
digma ético-político e jurídico na sociedade internacional foram praticamente sintetizados reformas legislativas. Calcula-se que o ECA
tenha inspirado no mínimo 15 legislações Isso parece fazer ainda mais sentido no nal entre os adolescentes pode ser um bom
latino-americanas, coincidindo também com caso brasileiro, pois o Código de Menores de exemplo comparativo das diferenças entre
o período de enfrentamento dos governos 1979 pode ser considerado como “dispositi- essa legislação menorista e a garantista dos
autoritários na região. Nessa medida, para vo central na política social do autoritarismo direitos. O velho sistema era, fundamental-
aqueles autores, o novo marco legal pode militar das décadas passadas” (MÉNDEZ, mente, “correcional” e as sanções eram arbi-
ser entendido não somente como condição 1999). Isso não quer dizer que o direito de trárias, tanto por prever a nebulosa categoria
necessária para a melhora da situação de “menores” possa ser considerado um sub- de “situação irregular”, quanto pela inexis-
crianças e adolescentes, mas também para a produto das ditaduras militares dos anos 70, tência de fundamentação do magistrado, do
qualidade da vida democrática. mas apenas que ele se adaptou muito bem a contraditório ou do direito de defesa. Já no
Contudo, partindo da perspectiva de que esse projeto social. novo marco legal, os delitos são tipificados,
uma boa legislação é apenas um primeiro pas- O Estatuto da Criança e do Adolescente a medida socioeducativa é limitada na dura-
so (e nem sempre o mais importante ou o mais (ECA) é uma Lei que traduz a determinação ção e na intensidade e os adolescentes têm
difícil, em especial no caso brasileiro em que política que pauta os princípios da doutri- as mesmas garantias processuais que as do
proliferam leis que “ficam no papel”), cabe in- na de proteção integral, contrapondo-se ao direito penal de adultos. Isso favorece “uma
dagar quais os efeitos dessas novas premissas antigo modelo dos Códigos de Menores de verdadeira educação para a legalidade”:
legais tanto na cultura quanto, de uma forma 1927 e 1979, que se dirigiam “à infância em
mais pragmática, nas políticas públicas e nas situação irregular”. Ou seja, o Estado só re- “... al respeto de las reglas, se obtiene
próprias condições de vida de crianças e dos conhecia como seu dever e responsabilidade sobre todo respetando al adolescente,
adolescentes no Brasil, decorridos 18 anos de o cuidado com o “menor” quando esse ne- incluso infractor, como ciudadano res-
implementação do estatuto. cessitava de amparo ou tutela nas situações ponsable, y exhibiendo el respeto y, por
caracterizadas por ato infracional ou omissão lo tanto, el valor de las reglas em la pro-
O ECA e a refundação social por parte da família. pia respuesta punitiva a sus infracciones.”
É importante destacar, em primeiro lugar, Nesse sentido, o ECA afirma a noção de (FERRAJOLI, 1999, p. XVIII)
que no plano legislativo essa refundação, de “criança e adolescente como sujeito de di-
um direito da infância e adolescência, rompe reitos”, preconizando a garantia ampla dos Entretanto, se os espectros dos governos
com uma tradição jurídica do velho Estado seus direitos pessoais e sociais assumida autoritários já não rondam os tempos atuais,
liberal, em que, na esfera privada. “meno- por toda a sociedade, como estabelecido as diretrizes da Convenção e do ECA enfren-
res” e mulheres estavam alheios ao direito em seu artigo 3º: tam renovados obstáculos ideológicos nos
e submetidos às dinâmicas espontâneas de anos 2000, decorrentes de uma situação que
relações afetivas e tutelares, sejam familia- A criança e o adolescente gozam de todos pode ser traduzida na máxima “Estado social
res, como no caso do poder absoluto do pai- os direitos fundamentais inerentes à pes- mínimo e Estado penal máximo”, expressão
patrão, sejam extrafamiliares, a exemplo das soa humana, sem prejuízo da proteção in- utilizada por Wacquant (2001) para designar
intervenções policiais ou caritativas (FERRA- tegral de que trata essa Lei, assegurando- a tendência de judicialização das questões
JOLI, 1999). se-lhe, por lei ou por outros meios, todas sociais ou, como prefere o autor, de “crimi-
O autor sinaliza que esse paradigma tra- as oportunidades e facilidades, a fim de nalização da miséria”.
dicional, por sua natureza informal e ausência lhes facultar o desenvolvimento físico, Assim, observa-se no Brasil, por exem-
absoluta de regras, se revelou discricionário mental, moral, espiritual e social, em con- plo, uma preocupante tendência à redução
e favoreceu os piores abusos e arbitrarieda- dições de liberdade e de dignidade. da maioridade penal e ao aumento das taxas
des. Ele chama atenção para o fato de que, de internação no sistema socioeducativo, em
no contexto latino-americano de pobreza A abordagem da prática do ato infracio- especial da adolescência pobre, o que serve
endêmica e de desigualdades sociais, essas
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funções do direito empurraram milhões de
crianças e adolescentes a institucionaliza- “O Estatuto da Criança e do
Revista Direitos Humanos

ção, adoções ou a uma relação adulta com


a sociedade, tal como o trabalho infantil ou
Adolescente traduz a determinação
a criminalidade. Por isso, Ferrajoli refere que política que pauta os princípios da
essa antiga legislação era, ao mesmo tempo,
paternalista e repressiva. doutrina de proteção integral”
artigo Maioridade para os direitos humanos da criança e do adolescente

não apenas para uma expulsão forçada de


convívio social com vistas a neutralizar essa
pobreza sem destino na globalização, mas
também para aplacar a comoção pública à
medida que se sugere que “algo foi feito”.
Cabe ressaltar, todavia, que a insegurança
que move a maioria da população para de-
mandas punitivas tem uma capacidade de
autopropulsão, como refere Bauman (2008),
isto é, o pressuposto da sua vulnerabilidade
depende mais da falta de confiança nas de-
fesas disponíveis do que do volume ou da
natureza das ameaças reais.
Dessa forma, é preocupante a prolife-
ração de abrigos na última década no País,
inclusive por motivo de pobreza e por longa Menores quanto do ECA. Por isso, Méndez populares, processo marcado por momentos
permanência, como indicou o mapeamento (1999) propõe que é necessária a renovação importantes ao longo da história, nas diferentes
nacional realizado pelo IPEA em 2002, ao le- entre os operadores jurídicos com vistas ao conjunturas dos séculos XVIII, XIX e XX, bem
vantar cerca de 40 mil crianças e adolescen- novo direito, aliada à refundação urgente no como ao agravamento da questão social com
tes nessa condição. É pertinente lembrar que, campo dos operadores sociais. Isso porque, o advento da industrialização/urbanização, ou
na vigência da legislação menorista, a segre- segundo ele, “la história es muy clara mos- seja, a constituição da sociedade capitalista, que
gação dos pobres estava inclusive sugerida trar las peores atrocidades contra la infância impôs a exploração abusiva à classe operária,
e estimulada, ao prever que o “menor” em cometidas mucho más em nombre del amor de onde provinham crianças e adolescentes, e a
“situação irregular” deveria ser encaminhado y la protección, que en nombre explícito de precarização das condições de vida a que eram
à autoridade judicial competente, ou seja, la propia represión”. É assim que os maio- submetidos esses operários. Dessa maneira, foi
quando a criança ou adolescente estivesse res investimentos nas políticas públicas se estabelecendo e se consolidando a prática da
privado de condições essenciais para sua brasileiras continuam sendo feitos para via- institucionalização destinada a um público-alvo
subsistência, saúde e instrução obrigatória, bilizar as últimas medidas protetivas (como de “exclusão social” a quem a “cultura da insti-
inclusive quando eventualmente a privação a construção de mais e mais unidades de tucionalização” assegura sua existência.
fosse em razão de manifesta impossibilidade internação socioeducativa ou abrigos) e não Portanto, a refundação social a partir da
de pais ou responsáveis para esta provisão. aquelas que constituem a base da promoção convenção e do estatuto deve priorizar, como
Ao contrário, o ECA estabelece que “a mera dos direitos de crianças e adolescentes. objeto de intervenção no campo da cultura, a
falta ou carência de recursos materiais não Além do ônus financeiro dessa opção, os necessária desinstitucionalização de crianças
poderá jamais constituir um motivo suficiente resultados se mostram tão inócuos quanto e adolescentes, uam vez que as marcas tute-
para a perda ou suspensão do pátrio poder”. “enxugar gelo”. Ao contrário, tais iniciativas lares vêm sendo continuamente agenciadas e
Como explicar, então, a não observância des- institucionalizantes reforçam os sintomas de reavivadas no próprio ambiente de sua imple-
ta diretriz? desfiliação e apartheid e não levam em conta mentação. Também está em jogo a percepção
Sugere-se que a persistente institucio- que, para milhões de crianças e adolescentes adultocêntrica da infância e da dolescência,
nalização observada nessas duas situações que são vitimas de violações dos direitos no na persistente perspectiva de miragem das
aqui analisadas se deva tanto a uma dis- Brasil, o que está em jogo não é tanto a po- crianças e dos adolescentes como cidadãos
cricionariedade jurídica, quanto a outra, de breza, mas processos complexos que trans- menores, conforme se pode observar na qua-
42 natureza pedagógica. Dito de outra maneira, cendem as fronteiras das classes sociais, se ausência de sua participação, ainda hoje, na
couberam aos juízes na doutrina da situação como demonstram a incidência dos castigos formulação das políticas públicas a eles desti-
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irregular desenhar e executar as políticas corporais ou do abuso sexual, por exemplo. nadas e, acima de tudo, como sujeitos ativos
para a infância pobre, mas os operadores No Brasil, a cultura da institucionalização de de um novo pacto social, desnaturalizando sua
sociais também sustentaram políticas com- crianças e adolescentes pobres vem associada “incapacidade política” e confrontando o papel
pensatórias reforçadoras de práticas institu- à questão da regulamentação legal e social na de consumistas preferenciais destinado pelo
cionalizantes, tanto no marco do Código de gestão da infância e adolescência de camadas mercado globalizado.
O novo direito e as condições de
vida da infância e da adolescência
Um segundo eixo possível de avaliar
a implementação do ECA se refere a seus
“É preocupante a proliferação de
efeitos na materialidade da existência das abrigos na última década no País,
crianças e dos adolescentes brasileiros. An-
tecipadamente, parece razoável supor que um inclusive por motivo de pobreza e
período de dezoito anos é insuficiente para a
superação das extremas dificuldades de ga-
por longa permanência”
rantir a proteção integral de aproximadamen-
te 62 milhões de crianças e adolescentes no
Brasil, com a maior população infantil das do debate plural e dinâmico frente às deman- do 92% dos municípios e 5.004 conselhos
Américas, a quinta maior dimensão territorial das de uma sociedade contraditória, em seu tutelares em 88% das cidades brasileiras,
e uma história secular de graves desigualda- projeto político de reconhecimento do sujeito muito embora a maioria deles funcione de
des sociais, como a condição de pobreza de criança e adolescente como ator social. forma muito precária, como aponta a Pes-
metade dos brasileiros entre 0 e 17 anos. Por outro lado, a (re)constituição de di- quisa Bons Conselhos, realizada pela SEDH/
Mas nesse curto intervalo temporal algu- ferentes órgãos no poder público se revelou Conanda em 2006.
mas iniciativas foram implementadas, a co- uma tarefa imensa e ainda inconclusa. A es- Cabe lembrar que a organização de con-
meçar pela constituição do chamado Sistema timativa é de que esse contingente de pro- selhos de direitos com caráter deliberativo e
de Garantia dos Direitos, uma das novidades moção e defesa dos direitos de crianças e paritário e de conselhos tutelares eleitos pela
apresentadas pelo marco legal brasileiro na adolescentes some, hoje, cerca de 100 mil própria comunidade, bem como a realização
interpretação da convenção. O advento do es- pessoas, entre conselheiros e operadores da de conferências bienais, são experiências
tatuto retirou da Justiça e da assistência so- justiça. Outras centenas de milhares de técni- ainda inéditas no cenário internacional e re-
cial a centralidade da política de atendimento cos operam nas políticas sociais básicas, seja ferência para as Nações Unidas. Até hoje, a
e, de certa forma, estimulou a criação de na gestão pública direta, seja em parceria. proposição de um conselho paritário e deli-
inéditos mecanismos de defesa dos direitos Entretanto, a previsão de varas especiali- berativo pode ser considerada muito ousada,
da infância e da adolescência, tais como os zadas no eca, por exemplo, não foi suficiente ainda mais se considerarmos o seu papel
conselhos de direitos, centros de defesa, as para garantir a sua criação, pois elas existem de formulador das políticas públicas e não
frentes parlamentares e a rede de jornalistas em apenas 1/3 das comarcas dos municípios apenas deliberador, como se observa entre
amigos da criança, entre outros. de grande porte, num total de 92 unidades, outros conselhos setoriais. Da mesma for-
Nessa perspectiva, vale ressaltar a criação, com evidentes prejuízos para a garantia do ma, os conselhos tutelares, propostos como
em 12 de outubro de 1991, do Conselho Na- acesso à justiça da população infanto-juvenil. independentes de qualquer poder constitu-
cional dos Direitos da Criança e do Adolescente Também na maioria das capitais brasileiras ído e eleitos de forma direta pelas próprias
(Conanda), órgão do Estado brasileiro, de com- inexistem defensorias públicas voltadas para comunidades são, por definição, ouvidorias
posição paritária, de caráter deliberativo e con- esse segmento, o que cerceia o direito à de- comunitárias. Entretanto, o próprio comitê
trolador das ações de promoção, de proteção e fesa técnica, em especial nos setores mais de acompanhamento da implementação da
defesa de direitos da criança e do adolescente, pobres. Alguns autores apontam certa rela- convenção ainda não assimilou o alcance
incumbindo-se, assim, de zelar pela efetiva- ção entre condições materiais da infância e dessa proposição e, assim, sistematicamen-
ção das políticas sociais públicas destinadas à condições jurídicas. Países em que onde as te aponta ao Brasil a necessidade de incluir
criança e ao adolescente. crianças apresentam condições de vida pre- a figura do ombudsman em seu Sistema de
Ao instituir os conselhos de direito e os tu- cárias, são observadas condições jurídicas Garantia dos Direitos, uma medida ainda a
telares, o estatuto, em uma experiência singu- semelhantes, demandando un proceso brutal ser devidamente analisada, considerando a 43
lar em comparação com outros países, estabe- de exigencias de naturaleza casi milagrosas a dimensão continental do país e a sua condi-
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leceu um espaço de participação democrática la nueva ley, segundo Méndez (1999). ção federada.
e de incidência política da sociedade civil na Já os conselhos de direitos e os tutelares Quanto aos indicadores, observam-se
construção de políticas públicas. Esse espaço contam com aproximadamente 77 mil conse- vários avanços, a começar pelos dados rela-
é demarcado por tensionamentos dialéticos, lheiros. São 5.104 conselhos municipais dos tivos ao direito à vida. Uma criança brasileira,
que se produzem na construção democrática direitos da criança e do adolescente, cobrin- do sexo masculino, nascida em 1990, tinha a
artigo Maioridade para os direitos humanos da criança e do adolescente

expectativa de vida projetada para 62,3 anos,


enquanto os bebês nascidos em 2006 tiveram
“O ECA acrescentou novos
6,2 anos acrescidos a essa média. No caso das
mulheres, a expectativa aumentou em 7 anos,
conteúdos ao conjunto de direitos
evoluindo de 69,1 para 76,1 anos. A taxa de da criança e do adolescente”
mortalidade de crianças menores de um ano
teve um decréscimo de 44,9% nesse intervalo dos direitos nessa faixa etária acontece pela sexual, a experiência brasileira vem sendo
de tempo, diminuindo de 46,9 para 24,9 mor- ausência de melhor acompanhamento. reconhecida, como demonstra o fato de o
tes em cada 1.000 crianças nascidas. Também Por outro lado, o Índice de Desenvolvi- Brasil ter sido escolhido para sediar neste
houve redução na taxa de mortalidade abaixo mento Infantil (IDI), calculado pelo Fundo das ano o maior congresso mundial na área. Uma
dos 5 anos de idade – de 59,6 para 29,9 – o Nações Unidas para a Infância (Unicef), mos- das inovações foi a abordagem intersetorial.
que possibilitou ao País melhorar sua posição tra que em 2006 nenhum estado brasileiro Desde a década de 1990, o governo federal
no ranking mundial, saindo da 86ª para a 113ª apresentou um índice baixo, ou seja, menos vem desenvolvendo iniciativas específicas, a
posição, em decorrência de ações básicas de de 0,500, muito embora persistam as iniqui- exemplo do Programa Sentinela, atualmente
saúde saneamento e Segurança alimentar. dades regionais no interior de cada estado designado Serviço de Enfrentamento à Vio-
Os bons resultados dos programas de e também as desigualdades étnico-raciais, lência, Abuso e Exploração Sexual Contra
transferência de renda dirigidos a grupos como no caso da maior vulnerabilidade das Crianças e Adolescentes. Atualmente estão
vulneráveis permitiram que o País chegasse crianças e dos adolescentes indígenas e afro- em curso mais de 30 ações envolvendo di-
aos índices mais baixos de pobreza e extrema descendentes. retamente 10 ministérios, que compõem a
pobreza desde 1987, com a menor desigual- Na área de proteção a crianças e ado- primeira comissão intersetorial, da qual par-
dade de renda dos últimos 25 anos. Atual- lescentes vítimas da violência, novos ins- ticipam ainda representantes do Conanda, da
mente, 4,7 milhões de crianças até seis anos trumentos foram formulados em sintonia sociedade civil organizada e dos organismos
são beneficiadas pelo Bolsa Família, o que com o estatuto. O velho modelo Febem vem internacionais. Semelhante experiência inter-
corresponde a mais da metade das crianças sendo gradualmente reordenado a partir do setorial é desenvolvida com o Sinase e com
pobres nesta faixa etária. Sistema Nacional de Atendimento Socioe- o Plano Nacional do Direito à Convivência
Muito embora se observe uma melhoria ducativo (Sinase) e do Plano Nacional do Familiar e Comunitária.
de indicadores de desenvolvimento humano, Direito à Convivência Familiar e Comunitária,
como a redução da pobreza, alguns autores destacando-se a recente iniciativa do governo Os novos cenários e desafios
apontam os riscos de transformar os cida- federal no lançamento da Agenda Criança e Conclui-se, portanto, que três doutrinas
dãos em clientes. Por isso, preconizam uma Adolescente, com ações de 14 ministérios e inspiraram o Estado e a sociedade em sua rela-
inversão massiva em educação, o que equi- orçamento em torno de R$ 3 bilhões. ção e forma de tratar a criança e o adolescente:
vale ao desafio, em uma sociedade da infor- No trabalho infantil, o Brasil chegou a atingir a Doutrina do Direito Penal do Menor; a Doutrina
mação, de universalizar o acesso, mas com em 1992 o seu mais alto nível histórico, com da Situação Irregular e a Doutrina da Proteção
qualidade, como aponta o Plano de Desen- 9,6 milhões de crianças e adolescentes tra- Integral. Cada uma delas trouxe uma forma
volvimento da Educação, lançado pelo MEC balhadores, ou seja, 22% do total nessa faixa própria de concepção de criança e de adoles-
no ano passado. etária. Decorridos 14 anos, foram retirados do cente, demarcando o processo social percorrido
Os avanços na educação ainda são tí- trabalho infantil cerca de 5 milhões. Em 2005, ao longo da história. Nesse percurso, um dos
midos, mas com melhor acesso à educação 18,7% das crianças com idades entre 5 e 17 aspectos fundamentais foi a passagem da po-
infantil entre 4 e 6 anos, atingindo 76% do anos trabalhavam, tendo esse número sido re- pulação infanto-juvenil da condição de objeto e
total das crianças, bem como ao ensino fun- duzido, em 2006, para para 11,1%, e em 2007 “menor” (objeto e vítima) para a condição de
damental, que evoluiu de 79% em 1990 para caído para 10,8%. Contudo, a queda é desigual criança/adolescente (sujeito de direitos).
44 98% em 2006. Destaca-se que, no caso da para pobres, negras e moradoras das zonas Nesse processo, o ECA acrescentou
educação infantil, o ECA é a primeira lei fede- rurais do País, demandando maior ênfase nas novos conteúdos ao conjunto de direitos
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ral que assegura direito à creche. Entretanto, políticas de combate às inequidades de gêne- da criança e do adolescente, contemplando
muito ainda precisa ser efetivado, uma vez ro, etnia e setor produtivo, com destaque para a pontos como: políticas sociais básicas; po-
que que somente 15% das crianças até 3 anos agricultura e trabalho doméstico. líticas de assistência; proteção especial e
estão matriculadas e a maioria das violações Também no enfrentamento da violência garantia e defesa de direitos. Isso reafirma o
ECA como uma lei revolucionária no campo os recentes casos de violência veiculados na Mercosul, com o GT Iniciativa NiñoSur, e do
dos direitos coletivos, sociais, econômicos e mídia nacional, mas que ocupam o primeiro Instituto Interamericano da Organização dos
culturais, visando à superação do assisten- lugar no ranking das denúncias dos conse- Estados Americanos (OEA).
cialismo e do clientelismo. Constituiu-se em lhos tutelares e do Disque 100 em mais de E, principalmente, torna-se urgente a for-
um dos instrumentos que vem contribuindo 60% dos casos; mulação de uma Política Nacional dos Direitos
para o desenfoque da criança-problema, pos- - a urgente universalização e integração da Criança e do Adolescente, em favor de um
sibilitando a ampliação da concepção que de sistemas de informação, em especial para Sistema de Proteção Integral, a fim de não su-
alcançou todas as crianças e adolescentes notificação de casos de violência, sistema perespecializar e fragmentar as políticas, mas
enquanto oportunidade e não-risco. socioeducativo, rede de conselhos tutelares também para romper, com maior radicalidade,
Por último, cabe uma análise prospec- e de abrigamento; a ideia menorista de um desenho voltado para
tiva. O processo de globalização modificou - a necessidade de maiores investimentos a infância e a adolescência pobres. Aliada a
não apenas o compromisso entre o Estado e em sistemas locais de promoção dos direitos isso, é fundamental definir uma agenda de
o mercado, como deslocou alguns temas da da criança e do adolescente, em especial pela longo prazo, a exemplo de um plano decenal,
agenda de direitos humanos. A categoria in- condição federativa do Brasil e pela maior capi- rompendo com o imediatismo e a perspectiva
fância, por exemplo, tem sido marcadamente laridade das políticas públicas nos territórios; de gestão de um mandato governamental, em
influenciada pelo contexto contemporâneo. O - o fortalecimento de instâncias estaduais favor de uma estratégia de Estado.
fenômeno da adolescência, colocada como e municipais de articulação das políticas de
ideal social nos anos 2000 (CALLIGARIS, direitos da criança e do adolescente, a exem-
2000) influenciou o encurtamento da infân- plo do papel exercido pela SPDCA e Conanda “É fundamental
cia, uma vez que crianças orbitam em torno em nível federal;
de uma estética juvenil e se alimentam dos - a mobilização e o apoio aos espaços de- definir uma
apelos midiáticos para uma erotização pre-
coce. O consumismo exacerbado, por sua
mocráticos de articulação da sociedade civil na
constituição de redes de proteção destinadas
agenda de
vez, seduz os adolescentes ao acesso a bens à repactuação em favor da população infanto- longo prazo,
e signos, intangíveis para a maioria dos bra- juvenil, em especial na busca de novos atores
sileiros, restando a frustração e a desquali- estratégicos, universidades, empresários, asso- a exemplo do
ficação diante daqueles mais privilegiados,
reforçando o apartheid social, que favorece
ciações comunitárias e de famílias, associações
profissionais, sindicatos de trabalhadores e de-
Plano Decenal,
a distinção entre “nós” e “eles” e sedimenta
estratégias excludentes da “cidade para al-
mais movimentos sociais;
- consolidação de estratégias de coo-
rompendo com
guns” (OLIVEIRA et al., 2006). peração internacional, como no âmbito do o imediatismo”
Em tal contexto, identifica-se um conjun-
to de desafios de aprimoramento do ECA e
da implementação das políticas públicas de Referências
promoção dos direitos humanos de crianças BAUMAN, Zigmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008.
e adolescentes: CALLIGARIS, Contardo. Adolescência. São Paulo: Publifolha, 2000.
- o enfrentamento dos novos cenários BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Ado-
de violência contra crianças e adolescentes, lescente, e dá outras providências. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília,
como a drogadição e o envolvimento com o DF, 27 set. 1990.
narcotráfico, a exploração sexual no turismo, FERRAJOLI, Luigi. Prefácio. In: MÉNDEZ, Emilio Garcia; BELOFF, Mary. Infância, Ley y Demo-
a pornografia infanto-juvenil na internet, as cracia em América Latina. Buenos Aires: Editorial Temis, 1999.
crescentes taxas de mortalidade por violência 45
MÉNDEZ, Emilio Garcia. Infância, Ley y Democracia: uma cuestión de justicia. In: MÉNDEZ,
entre crianças e adolescentes, sobressaindo-
Revista Direitos Humanos

Emilio Garcia; BELOFF, Mary. Infância, Ley y Democracia em América Latina. Buenos Aires:
se os homicídios e acidentes;
Editorial Temis, 1999.
- a constituição de estratégias diferen-
OLIVEIRA, Carmen S. de et al. Criminalidade juvenil e estratégias de (des)confinamento na
ciadas diante da reiterada violação dos di-
cidade. Revista Katálysis. Florianópolis: Editora da UFSC, v. 9, n.1, janeiro/junho 2006.
reitos humanos de crianças e adolescentes
no ambiente doméstico, como demonstram
artigo A verdade, onde estiver

A verdade,
onde estiver
Baltasar Garzón é juiz de Instrução na Audiencia Nacional, tribunal penal de máxima
instância na Espanha. Sua trajetória na magistratura tem sido caracterizada pela afirmação dos
direitos humanos em casos envolvendo genocídio, corrupção, narcotráfico e terrorismo, entre
outros. Ganhou especial projeção, em 1998, quando emitiu ordem de detenção dirigida ao
ex-presidente chileno, general Augusto Pinochet.

Recentemente, o magistrado conduziu procedimento investigatório a respeito de 114 mil


pessoas desaparecidas durante a Guerra Civil Espanhola e dos doze primeiros anos do
regime franquista. Como resultado de seu trabalho, apresentou em 18 de novembro de 2008,
extenso relatório no qual identificou 20 fossas coletivas onde foram enterrados opositores do
regime, nomeou um corpo de peritos para realizar as atividades de exumação e identificação
dos corpos e determinou que as investigações que dirigia passassem a ser conduzidas
pelo Governo espanhol e pelas autoridades provinciais dos locais onde as covas coletivas
foram encontradas. A decisão judicial, embora também tenha determinado a extinção da
responsabilidade penal de Franco e de outros oficiais de Estado ligados ao regime de
repressão, em razão do falecimento dessas autoridades, recebeu o apoio público de figuras
como José Saramago e Ernesto Sábato, que a reconheceram como verdadeiro libelo pela
investigação de crimes contra a humanidade e pela efetivação dos direitos humanos, em
especial do direito à memória e à verdade.

O Juiz Baltasar Garzón visitou o Brasil a convite da Secretaria Especial dos Direitos Humanos
da Presidência da República (SEDH/PR) na segunda quinzena de agosto de 2008. No breve
período em que esteve no país, realizou duas palestras sobre o tema do direito humano à
memória e à verdade. A primeira delas, promovida pela SEDH/PR, a revista Carta Capital e
a UNESP, no hotel Renaissance, em São Paulo, e a segunda, no auditório da Faculdade de
Direito da Universidade de Brasília (UnB). Este ensaio foi transcrito a partir da palestra Direito
46 à Memória e à Verdade, proferida pelo sr. Garzón na tarde do dia 18 de agosto de 2008 na
capital paulista.
Revista Direitos Humanos
T
odos os que aqui estamos temos uma mei contato com ele numa data concreta – 28 Outra coisa é o debate político que se produz
vocação universalista para a justiça, de março de 1996. Nesse dia, decidi admitir sobre essas normas, mas que deve produzir-
a responsabilidade, a verdade, a me- o trâmite, como juiz central de instrução, de se antes de sua criação, de modo que quando
mória, a luta contra a impunidade e contra a uma iniciativa por crimes de genocídio, terro- as normas finalmente emergem num texto le-
repressão. Mas haverá muitos que amanhã rismo e tortura contra as Juntas Militares ar- gal, presume-se que houve, já, a ocorrência
– se é que a eles chegarão as notícias mais gentinas, aforada pelas vítimas da repressão prévia de um debate reflexivo. Assim deveria
atuais sobre o evento de hoje – se pergun- durante os anos indicados no processo. ser em democracias.
tarão: “Quem é que vem falar de algo que já Naquele momento a iniciativa teve reper- Todavia, não devemos esquecer que nem
está superado? De algo que não é moderno? cussão, mas não em demasia. Na imprensa, tudo está permitido nos sistemas democráti-
Quem é que vem falar disso?” inclusive, dizia-se que o que se fazia era “um cos. Há um limite. São inaceitáveis as inter-
Isso foi o que sucedeu na Espanha, cujo brinde ao sol”. No uso espanhol, a expressão pretações que rompem com o Direito Interna-
processo de transição democrática, um pro- indica algo importante, mas que não serve cional dos Direitos Humanos, com o Direito
cesso chamado modelo em muitas partes do para nada, que é uma perda de tempo, algo Internacional Humanitário, com o Direito Pe-
mundo, avocou um esquecimento que ainda posto em marcha por uma pessoa louca. E nal Internacional – as normas que constituem
perdura. O esquecimento da justiça. diz-se assim porque, se é certo que existem a espinha dorsal do Direito Internacional – e
O afã da modernidade, de entrar na Europa, as normas que aí estão para ser cumpridas, admitem, como válidos, como eficazes, como
a ideia de que seria mais progressista olhar na há dois tipos de juristas: os que acreditam legais e como legítimos, sistemas como o de
direção do futuro, em vez de fazê-lo na direção nessas normas e as aplicam, interpretando- Guantánamo, por exemplo.
do passado, levou a uma transição que, no plano as num ou noutro sentido, e outros, que as- Se no dia de hoje há pessoas defendendo
político, foi modelar e, no social, nos deu a en- sumem que as normas existem, que estão a legitimidade e a própria ideia de legalidade
trada para o clube dos países democráticos, mas em um livro, mas que esse livro se coloca na de um sistema de violação sistemática dos
que deixou pendente uma conta com a justiça. A biblioteca e não há nada mais a fazer. direitos fundamentais por meio de práticas
justiça não esteve à altura das circunstâncias. A essa segunda categoria normalmente como a tortura, o tratamento desumano e de-
Minha aproximação desses temas não pertencem às normas do Direito Internacio- gradante, a verdade é que vamos buscá-la,
foi uma aproximação científica. Como juiz, nal, sobre as quais se debate em todo lugar. onde estiver.
até 1996, meu conhecimento das consequ- Os governantes apelam à defesa dos direitos O que conseguimos no século XX, o
ências das ditaduras do Chile, da Argentina, humanos, ao compromisso de luta contra a século mais violento de toda a história da
do Brasil, do Paraguai, do Uruguai, etc., era impunidade, mas quando se trata de aplicar humanidade, foi uma consciência universal
uma aproximação de intelectual interessado, essa doutrina em carne própria, se esquecem dos direitos humanos. É verdade que pade-
de estudante rebelde dos últimos anos da de tudo que deveria ser lembrado. A lei está cemos, no século XX, particularmente na sua
ditadura franquista. lá, mas não se aventure ninguém a aplicá-la, última porção, muito depois do Holocausto e
Naquela época, decidimos manter uma porque imediatamente se alega que isso con- da Segunda Guerra Mundial, em datas mais
indignação ativa diante de um sistema que já figuraria uma intromissão, uma ingerência no recentes, no coração da Europa ou na África
era anacrônico em todos os sentidos, e que princípio da soberania e do territorialidade de ou na América Latina – me refiro mais espe-
nunca deveria ter existido. Os acontecimentos outro país. cificamente aos casos da ex-Iugoslávia ou de
que naquela época se produziram com o gol- “Como aplicar o princípio da justiça uni- Ruanda –, padecemos de cenas que rompem
pe de Estado do Chile, ou das Juntas Milita- versal quando se trata das relações econô- com o sentido mais elementar de defesa dos
res argentinas, com a repressão feroz contra o micas de um país com outro? Como aplicar Direitos Humanos e de consciência universal
povo maia, na Guatemala, e em outros casos, essas normas, se tais relações econômicas de defesa quanto a eles. E isso na década em 47
era notícia não demasiadamente frequente e podem ver-se deterioradas?” Com essas que conseguimos, como sabem, decidir, no
Revista Direitos Humanos

tampouco de interesse. Em meu país havia perguntas, distorce-se o debate, levando-o a estatuto do Tribunal Penal Internacional, pôr
“outras coisas” mais urgentes a atender. uma esfera que é a do debate político. Uma fim aos crimes contra a humanidade.
Minha aproximação com este tema foi coisa é discutir sobre normas legais, que têm Na sessão inaugural de julgamento con-
consequência da minha atividade judicial. To- interpretação jurídica, e, neste caso, judiciais. tra os responsáveis por crimes de genocídio
artigo A verdade, onde estiver

e contra a humanidade do Tribunal Penal lidade penal em alguns casos e foram feitas Não estava previsto, ninguém havia pre-
Internacional da ex-Iugoslávia, o promotor prisões em outros. Segundo: oxalá tivésse- visto, mas o fato é que já não vivemos mais
Richard Gloston disse uma coisa certa: que mos um Nelson Mandela em cada um dos em fendas compartimentadas. Estas existiam
nunca imaginamos que depois da Segunda países que padeceram. com a repressão. Fala-se hoje muito sobre al-
Guerra Mundial poderiam ocorrer fatos como Um dos argumentos utilizados para cri- deia global. Então falemos de aldeia global e
aqueles que havíamos visto outrora e que ticar a ação judicial é a fragilidade do siste- falemos de globalização. Eu não gosto desta
nunca imaginamos não estar preparados para ma democrático que sai de um sistema de palavra, mas gosto mais quando falamos dela
fazer frente. ditadura, com a ameaça de possível reversão simultaneamente à universalização, pois esta
Sou juiz e, portanto, tenho de defender o para um novo estado de repressão. Apesar última me apraz. Falemos de universalização
lado da magistratura, o lado do que faço. por disso, uma autêntica democracia tem de se dos direitos humanos. E falemos do concei-
essa razão, vou advogar pela compatibilidade arriscar para se consolidar em direção ao to universal de vítima. Falemos também do
entre as distintas formas de responder a fatos futuro. Não é uma questão de passado, mas caráter internacional dos crimes que foram
gravíssimos contra os direitos humanos, a uma questão de consolidação e de prevenção cometidos e que se cometem. E falemos da
crimes produzidos durante etapas de repres- para o futuro. investigação – por que não? – desse tipo de
são, de ditadura, depois desses períodos se A ideia de que vale tudo, ou de que “aqui crime, quando tais crimes afetam a comuni-
haverem concluído. Essa forma de justiça não há limite para a vontade de quem decide dade internacional.
transicional que defendo compatibiliza, por violentar os direitos básicos das pessoas” é Quando se trata de investigação de crimes
um lado, a memória e a verdade – com a uma doutrina gravíssima, que nos traz à me- como, por exemplo, de narcotráfico, ninguém
criação das Comissões de Verdade e Memó- mória a doutrina da Segurança do Estado, a jamais se questiona sobre sua caracterização
ria – e, por outro, a resposta penal. doutrina da Escola das Américas, a doutrina como crime internacional. Todos a festejam e
Há um erro muito generalizado sobre que, desde então e até agora, alguns ainda promovem a cooperação entre os juízes, entre
esse assunto. Quando se cria uma Comissão praticam. os fiscais e entre os sistemas policiais para
de Verdade, uma comissão sobre a verdade Vocês devem recordar a decisão que foi que atuem pró-ativamente.
histórica, se toma sempre o exemplo da Áfri- tomada na Argentina imediatamente após a Por que, quando se trata de crimes muito
ca do Sul como base para que se argumente queda das Juntas Militares. Em 1985, o pre- mais horrendos, como crimes contra a hu-
favoravelmente a soluções de continuidade, sidente Raúl Afonsín aprovou, consentiu e manidade, genocídio, massacres contínuos e
como se esta fosse a única forma de enfrentar propugnou a aprovação das “leis de perdão”, outros, surge o sentimento nacionalista e a
os fatos do passado. Inclusive – e incluo a sob o argumento de que delas dependia a proteção daqueles que violentaram todos os
Espanha entre esses países – aprovam-se as segurança do povo argentino. O resultado sistemas de direito?
chamadas “leis de memória histórica”. Na histórico foi bem diferente. Aqueles que, de Custa-me entender como não se vê que,
Espanha, por exemplo, em 2007, tal lei não boa-fé, como Raúl Afonsín, interpretaram a lei justamente em decorrência da universaliza-
contou com o consenso das forças políticas. como segurança e conveniência para manter ção dos direitos humanos na comunidade in-
O partido da oposição, o Partido Popular, se o poder e a democracia, equivocaram-se, ternacional, já não há mais espaço para a im-
desvinculou da iniciativa e, deste ponto de porque as vítimas e os coletivos de direitos punidade relativamente a crimes que são, ou
vista, incorreu em erro, porque os temas de humanos não se calaram. podem ser, catalogados como crimes contra
memória coletiva, de memória de um povo, Tentaram fazê-los calar durante a ditadura a humanidade. Eles não podem ter uma res-
são eles mesmos uma questão de Estado. e depois dela, mas houve o ciclone das mu- posta que se afaste do princípio da igualdade
Devem ser, portanto, assumidas por todo o lheres com os lenços em suas cabeças, que perante a lei. Não é tão complicado.
48 Estado, já que se trata de crimes contra o tinham um clamor que era muito mais alto do Além disso, não é certo – e o digo com o
povo, livres de prescrição. que o de qualquer outra voz que se alçasse máximo respeito a quem eventualmente dis-
Revista Direitos Humanos

Muitos decidem que apenas com uma no horizonte. Tanto foi assim, que elas não corde da minha posição, mas também com
Comissão nos moldes da África do Sul ter- chegaram apenas aos organismos interna- a máxima contundência –, não é certo que
mina a tarefa da Justiça. Há, aí, dois erros. cionais. Elas chegaram também à justiça de os sistemas democráticos se quebra quan-
Primeiro: na África do Sul houve responsabi- outros países e lá aforaram suas ações. do a ação da justiça se produz. É mentira, é
exatamente o contrário, e as provas históricas Humanos, no caso Velásquez Rodrigues,
estão dando razão a meu argumento. Há, em e, depois desse caso, em uma infinidade
muitos países, processos abertos e nada su- de sentenças. Foi o que disse, mais recen-
cede neles que enfraqueça a democracia. temente, a mesma Corte Interamericana,
O que sucede, sim, é que se está conhe- quando prolatou duas sentenças memoráveis
cendo o que realmente aconteceu. Sucede a respeito das auto anistias de Fujimori – a
que quando as provas afloram, nos damos primeira, no caso Barrios Altos; a segunda,
conta da imensidão do mal que se produziu. no caso La Cantuta, de 14 de março de 2002.
Sucede que quando há torturas sistemáticas Àqueles que se aproximam desses temas, eu
em Abu Ghraib, no Iraque, e elas são colo- aconselho encarecidamente que as leiam.
cadas a limpo, sobre a mesa, no princípio Sabem qual foi o resultado dessas sen-
os responsáveis negam as evidências, mas tenças? O resultado é que Fujimori está sen-
quando as provas são reveladoras, eles colo- tado no banco dos réus, está sendo julgado,
cam as mãos na cabeça e se perguntam: “O e ao presidente do tribunal querem afastá-lo,
que está acontecendo aqui?” porque está, nem mais nem menos, exigindo
Essa consciência democrática, eu, do que se faça um julgamento justo. Isso não
ponto de vista de minha experiência como foi permitido noutra época, e agora o está
juiz, venho comprovando e ainda comprovo. sendo. Então que se questione, inclusive, o
Em todos os países a discussão é a mesma. presidente do tribunal, mas que relembremos
Por exemplo: se estamos diante de crimes que esse questionamento provavelmente não
contra a humanidade, ou não. Se há prescri- teria sido permitido naquela época. Naquela
ção para os crimes contra a humanidade, ou época tal presidente provavelmente teria de-
não. Se é possível aprovar uma lei de anistia saparecido.
que proteja os perpetradores e, se aprovada Uma resposta está sendo produzida e essa
essa lei de anistia, é possível aplicar o cri- resposta saiu das mãos do Sistema Interame-
tério da permanência delitiva desses crimes, ricano de Direitos Humanos, desconhecido de
reivindicando sua atualidade. Fujimori, que não aceitava a competência da
Para aqueles que não são técnicos em Corte. Mas nenhum poder é indefinido, nem
Direito, a permanência delitiva de um crime mesmo o dos ditadores. E, afinal, a grandeza
é uma categoria que se aplica principalmente do sistema democrático, do Estado de Direi-
ao caso da desaparição forçada de pessoas. to está em quem responde, não com ânimo
Segundo essa tese, enquanto não se dê razão de vingança, senão de justiça. E essas são
certa do paradeiro da vítima por aqueles que coisas perfeitamente separáveis e distintas.
produziram a desaparição, ou pelas autorida- A vingança é um sentimento, mas a justiça
des do Estado que a consentiram, propicia- é um valor, um valor fundamental, dos mais
ram ou não a evitaram, e posteriormente por nucleares entre os princípios democráticos.
aqueles que detêm controle dos eventuais Não sou eu quem dirá que a justiça rege
dados, provas, documentos, etc., e não co- tudo, ou que há de reger quase tudo. Se qui-
loquem essas informações à disposição da sermos, poderemos falar da justiça e criticá- 49
Justiça, o crime permanece sendo cometido. la, e não faltarão razões para isso, no que
Revista Direitos Humanos

Isso eu disse, já em 1988, quando aca- concerne à lentidão, à falta de compromisso,


bava de começar meu destino atual, com à falta de razão ou à falta de consciência que
sete anos de profissão como juiz. Disse isso nós, juízes, muitas vezes podemos ter frente
também a Corte Interamericana de Direitos perante os problemas da sociedade e a res-
artigo A verdade, onde estiver

posta que devemos dar a todos e a cada um Pensam alguns que a proibição conduz chet e sua família. Logo depois de haver sido
dos fenômenos com caráter criminoso que necessariamente ao resultado desejado. ordenada por mim a detenção de Pinochet e
nos são apresentados. Isso ocorre, atualmente, no caso das imi- o bloqueio de todos os seus bens, em 1998,
Nós, juízes, não podemos selecionar grações. Pensam alguns que, estabelecen- uma comissão instituída em decorrência da
nossos casos. Justiça à la carte não é Justiça. do normas duríssimas contra a imigração, Lei Patriótica, nos Estados Unidos, investigou
E, definitivamente, aqueles que desejam pas- podem “colocar portas no campo”. A imi- o banco Riggs, que era onde Pinochet depo-
sar por cima de alguns casos, o que pedem é gração vai continuar acontecendo enquanto sitava seu dinheiro.
uma Justiça à la carte. E ninguém, ninguém não forem solucionadas suas matrizes, suas Reuniram-se os senadores. O senador
está acima da lei. Isto que é dito há muitos causas reais. Wilson, que liderava essa comissão, disse:
séculos é, também, um princípio que está em No caso do decreto argentino, o que ele “Bem, ocorre que lembro que há uma reso-
todos os textos internacionais. enfrentou foi uma inércia judicial já iniciada, lução de um juiz espanhol bloqueando os
Falava do caso Barrios Altos, mas peço que não podia parar e que nos obrigou a inven- bens de Pinochet. Como é possível que, no
que voltemos ao caso da Argentina. A iniciati- tar, ou, mais que inventar, a encontrar novas ano 2000, oito milhões de dólares das contas
va de derrogação das leis de Ponto Final e de formas de cooperação dentro do marco legal do senhor Pinochet e de sua família desapa-
Obediência Devida a princípio deu um passo internacional que se nos dava. E consegui- reçam? Quem autorizou essa reintegração de
tênue, mas o que sobreveio foi sua anulação mos. Juízes e promotores argentinos coopera- dinheiro?” Perguntou-se isso e rapidamente
pela Corte Suprema de Justiça. Foi uma de- ram com juízes espanhóis, franceses, italianos, as autoridades chilenas começaram as inves-
cisão que não impôs nenhuma fratura ao Es- etc., na investigação desses crimes. tigações contra Pinochet e contra sua família
tado e nem à sociedade. Vejamos as voltas que a história dá. E isto por crime fiscal, porque evidentemente não
Houve, ademais, uma grande ação histó- é o que quero que guardemos hoje – o fato de haviam declarado nada à Fazenda Pública,
rica de assinatura de um decreto com refe- que negar-se à evidência da necessidade de não haviam pago os impostos.
rência a mim, o que é uma honra. Por meio justiça pode ser uma arma contra si próprio. Uma das consequências da investiga-
50
desse decreto, qualquer cooperação da justi- Aquela justiça que era negada no caso Pino- ção foi o direcionamento de nove milhões
Revista Direitos Humanos

ça argentina para a investigação dos crimes chet, assim como aquela cooperação que se de dólares para as vítimas. É que, como
que eu adiantava naquela época, na Espanha, negou no caso da Argentina, foi que deter- consequência dos trabalhos da comissão,
foi proibida. Esse decreto foi anulado por Er- minou, ao final, o início de investigações de uma ação contra o banco Riggs foi afora-
nesto Kirschner. crimes fiscais e desvio de bens contra Pino- da. E, de meu lado, tive de determinar, ou
aprovar, o acordo entre vítimas e, nesse seus vínculos com os paramilitares, seu fi- acontecimentos se produziram.
caso, o banco federal dos Estados Unidos, nanciamento e enriquecimento – aquilo que Há uma frase, um pensamento que a mim
em nove milhões de dólares, depositando se dizem “delitos conexos”. Quando se fala me chamou poderosamente a atenção e que
na conta da Fundação Salvador Allende, a de delitos conexos, é difícil admitir que um descreve bastante bem quais são os limites
quem encarreguei de distribuir o pagamento crime contra a humanidade seja conexo com que qualquer Estado de Direito deve deter,
proporcionalmente a todas as vítimas que outro crime, que poderia ser o crime políti- diferentemente do que sucede a qualquer
compareceram. Vejamos, então, as voltas co. Melhor: em todos os casos deveria ser Estado que não seja de Direito, ou no qual a
que dá a vida. Quem pensaria que esse re- o contrário. repressão esteja instalada.
sultado seria produzido? Essas iniciativas polêmicas, que estão Essa frase foi dita pelo general Della
Diz o capítulo primeiro do Livro-Relatório sendo tomadas, incluem uma resposta ju- Chiesa na época do sequestro de Aldo Moro,
da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos dicial e uma resposta reparadora das víti- presidente da República italiana, em 1978.
Políticos do Brasil: “Só conhecendo profun- mas. Reparadora nas esferas moral, ética, Aldo Moro havia sido sequestrado pelas
damente os porões e as atrocidades daquele econômica, no direito à verdade – com Brigadas Vermelhas, organização terroris-
lamentável período de nossa vida republicana audiências públicas, com confissão da ver- ta italiana, e o general Della Chiesa era o
o país saberá construir instrumentos eficazes dade dos fatos cometidos – e uma resposta responsável máximo da seção anti terrorista
para garantir que semelhantes violações dos penal, escassa por certo, que, de acordo naquele momento. Posteriormente esteve
direitos humanos não se repitam nunca mais”. com o princípio da proporcionalidade da em Palermo, Sicília, onde, em 1982, foi
Estou absolutamente de acordo. Pelo papel pena, vem sendo muito questionada, já assassinado pela Máfia. Esse mesmo assas-
de juiz histórico que se desvela, se postula que o limite de pena que tal norma estabe- sinato foi investigado por Giovanni Falcone,
e se reafirma nesse relatório, não é apenas o lece é de apenas oito anos. Mas inclui uma depois, mas isto é outra história.
máximo aquilo a que se pode aspirar. complexa realidade de penas alternativas A história de 1978 foi que, quando de-
O máximo a que se pode aspirar em que, com a participação das vítimas, está tido um dos presumidos sequestradores de
qualquer sistema democrático, partindo e ganhando cada vez mais espaço. Aldo Moro, alguém sugeriu ao general Della
afirmando sua consistência, é que a ação da Vê-se, nesta seara, o enfrentamento que Chiesa que seria permitido torturá-lo, que ele
Justiça não tem por que ser uma justiça de se faz entre a Corte Suprema da Colômbia podia pressioná-lo e dessa maneira obter in-
máximos, mas apenas de si mesma. Como e o presidente Uribe. Um presidente com formações e salvar Aldo Moro. A resposta do
no aforismo latino, dura lex, sed lex, a lei é uma popularidade de aproximadamente general Della Chiesa foi: “A Itália não pode
dura mas é a lei, essa lei deve ser interpreta- 90%, e que é digno de muita admiração e permitir a prática da tortura”.
da e nós, juízes, temos a obrigação de fazê- respeito, em muitos casos está fazendo um Esta reflexão indica quais são os limi-
lo. Há possibilidade de resposta por meio da enfrentamento com a Corte Penal Suprema, tes, quais são as fronteiras inquebrantáveis.
via judicial. Há respostas que estão sendo uma confrontação que tem atingido limites Ademais, o que traduzem, o que transmitem
dadas em outros países, e que estão sendo muito perigosos. é o que deve ser a resposta das instituições
criticadas e são polêmicas, mas que estão Mas uma resposta está sendo produzida. e, principalmente, ainda que não apenas, do
sendo abordadas. Portanto, cada um, em seu próprio âmbito, Poder Judiciário e do Ministério Público, para
Por exemplo, a Lei de Justiça e Paz, na tem possibilidade de dar essa resposta, sem- encabeçar essa ação regeneradora e de pro-
Colômbia, que possibilitou a desmobilização pre tendo em mente aquilo que eu dizia no teção real às vítimas, que o merecem.
de 36 mil paramilitares e de 19 mil guer- princípio, ou seja, a constatação de que não O problema com as vítimas não é só o de
rilheiros das Farc. É verdade que gerou po- vivemos sós, em apenas um país. Vivemos terem-nas matado, torturado, ou de as terem
lêmicas importantes, e está gerando porque, em todos os países e as vítimas não são só feito desaparecer, mas é também a segunda 51
como consequência dela, uns 60 legislado- brasileiras, espanholas, argentinas, francesas tortura aplicada a elas, a denegação da Jus-
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res da atual Câmara de Representantes e de ou iraquianas, mas são vítimas universais, e, tiça, e a terceira, fazê-las responsáveis por
outras esferas municipais e governamentais portanto, tanto a comunidade internacional qualquer mal que possa acontecer a um Es-
da Colômbia estão sendo investigados pela tem direito de exigir que a justiça se cumpra, tado, quando esse Estado se declara incapaz
Corte Suprema. E estão sendo investigados quanto o tem o cidadão do lugar onde esses de protegê-las.
entrevista
Augusto Boal
Salete Hallack

MOVIMENTO HUMANOS DIREITOS – Esta en- MHuD – E a discussão atual sobre os crimes
trevista é uma alegria enorme para o Movi- de tortura, sobre anistia dos torturadores?
mento Humanos Direitos. Vamos começar com BOAL – Eu estou preocupado. As pessoas usam as
a questão da tortura. Quanto tempo você ficou palavras e todas as palavras são apenas meios de
preso? Sabia do que estava sendo acusado? transporte. Você tem de explicar o que está dentro
52 AUGUSTO BOAL – Fiquei quase quatro meses de cada palavra, qual a carga que cada palavra leva
preso. Um mês eu fiquei isolado em uma cela de dentro de si. A palavra pode transportar o contrá-
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segurança máxima, que tinha dois portões gran- rio daquilo que está no dicionário. Você diz com
des, dada a minha “extrema periculosidade”… uma intenção e a pessoa entende o contrário. A
Olhem só a minha cara. Eu não sabia do que es- gente tem de ter todo o cuidado quando fala, espe-
tava sendo acusado, mas desconfiava. A gente ia cialmente a jornalistas e a juízes. Está se falando
fazendo algumas coisas importantes, mas nunca muito se a tortura prescreve ou não prescreve. A
elas eram aprovadas pela ditadura. Declaração Universal dos Direitos do Homem diz
Em 1971, Augusto Boal, criador do Teatro do Oprimido, foi preso, torturado e exiliado.
Morou na Argentina de 1971-1976, onde dirigiu o grupo El Machete de Buenos Aires e
montou as peças O Grande Acordo Internacional do Tio Patinhas, Torquemada (sobre a tortura
no Brasil) e Revolução na América do Sul, de sua autoria. Foi nesse período que iniciou
intensas viagens pela América Latina, onde começou a desenvolver novas técnicas do Teatro
do Oprimido: Teatro-Imagem, Teatro-Invisível e Teatro-Fórum.
Em 1976 mudou-se para Lisboa, onde dirige o grupo A Barraca. Dois anos depois é
convidado para lecionar na Université de la Sorbonne-Nouvelle. Em Paris, cria o Centre du
Théatre de l´Opprimé-Augusto Boal, em 1979.
Trabalhou em diversos países europeus e desenvolveu a técnica introspectiva do Teatro
do Oprimido: o Arco-Íris do Desejo. Antes de regressar definitivamente ao Brasil, montou no
Rio de Janeiro O Corsário do Rei (de sua autoria, letras de Chico Buarque, música de Edu
Lobo) e Fedra de Racine. A convite do então secretário de Educação do Estado do Rio de
Janeiro, professor Darcy Ribeiro, Boal voltou ao Brasil em 1986 para dirigir a Fábrica de Teatro
Popular. O objetivo era tornar a linguagem teatral acessível a todos, como estímulo ao diálogo
e à transformação da realidade social. Ainda em 1986, criou, com artistas populares, o Centro
de Teatro do Oprimido (CTO-Rio), para difundir o Teatro do Oprimido no Brasil.
O Movimento Humanos Direitos (MHuD),
No CTO-Rio, desenvolveu projetos com ONGs, sindicatos, universidades e prefeituras.
que entrevistou Augusto Boal para esta
Em 1992, candidatou-se e foi eleito vereador da cidade do Rio de Janeiro pelo PT, para fazer
primeira edição, é um coletivo da sociedade
civil, formado por 43 associados, que realiza Teatro-Fórum e, a partir da intervenção dos espectadores, criar projetos de lei: é o Teatro
e executa projetos e programas de proteção e legislativo.
defesa dos direitos humanos. Composto por A partir de 1996, fora da Câmara dos Vereadores, Boal e o CTO-Rio seguiram na
militantes de diferentes áreas profissionais consolidação do Teatro Legislativo. Em 1998, conseguiram o apoio da Fundação Ford, para
– atores, produtores, fotógrafos, professores a criação de grupos comunitários de Teatro do Oprimido. Boal também realizou diversas
e outros –, o MHuD tem como propósito Sessões Solenes Simbólicas, de Teatro Legislativo, no exterior.
fortalecer o espírito de cidadania na Em 1999, transformou a ópera Carmem, de Bizet, em Sambópera, uma experiência
sociedade brasileira, agindo em cooperação inovadora que traduziu as músicas originais para ritmos genuinamente brasileiros.
com outras organizações, promovendo e Sua mais recente pesquisa é a Estética do Oprimido, programa de formação estética que
incentivando o debate público e a reflexão integra experiências com som, palavra e imagem.
sobre o tema dos direitos fundamentais. Para
A Estética do Oprimido tem por fundamento a certeza de que somos todos melhores do
garantir foco e maior efetividade, as ações
que pensamos ser e capazes de fazer mais do que aquilo que efetivamente realizamos: todo
desenvolvidas pelo movimento concentram-
se em quatro eixos prioritários: a erradicação ser humano é expansivo.
tanto do trabalho escravo quanto do trabalho A principal criação de Augusto Boal, o Teatro do Oprimido, é hoje uma realidade mundial,
infantil, a demarcação das terras indígenas e sendo a metodologia teatral mais conhecida e praticada nos cinco continentes.
dos territórios quilombolas e a promoção do Nessa conversa com Bruno Cattoni, Dira Paes, Generosa de Oliveira, Ricardo Rezende
sócioambientalismo no país. e Salete Hallack, do Movimento Humanos Direitos (MhuD), ele fala sobre tortura, direitos
humanos, segurança pública e sobre teatro, claro.

assim: “Ninguém será submetido a tortura, nem eles eram um país escravocrata, quando as mu- tirania e a opressão”. Nossa rebeldia e nossa rebe-
a tratamento ou castigo cruel, desumano ou de- lheres não votavam, os estrangeiros eram escravos lião eram legítimas. O Brasil democrático assinou a
gradante”. Então, é proibido pela Declaração Uni- ou metecos e também não votavam. Era uma de- declaração que a ditadura, depois, negou. Quem era,
versal dos Direitos Humanos torturar. O Brasil é mocracia restrita. então, subversivo? As Forças Armadas, é lógico. Fo-
signatário, então, logicamente, não pode torturar. ram elas que subverteram o Estado de Direito, legal,
Mas ouvi alguém importante dizer que tem de ver MHuD – Era uma democracia direta de uma que existia até 1964. Eram subversivos e chamavam 53
os dois lados. Diz a declaração: “Considerando população muito pequena. os legalistas de subversivos. Agora algumas pessoas
Revista Direitos Humanos

essencial que os direitos humanos sejam prote- BOAL – Pinochet disse uma vez que eles eram um andam dizendo: eles foram terroristas! Mas quem foi
gidos pelo Estado de direito, etc.”. A ditadura não país democrático, porque as decisões eram tomadas que instaurou o terror? Foi a ditadura!
era um Estado de Direito. A semântica é um campo em conjunto. Conjunto de quem? Dos três chefes das O terror do Estado foi instaurado por um grupo
de batalha onde cada um quer se apropriar do sig- Forças Armadas. Tem uma coisa bonita na Declara- de civis e militares – a gente não pode esquecer
nificado das palavras. Por exemplo, democracia. ção que diz assim: “...para que o homem não seja que muitos civis estavam no poder e alguns con-
Os atenienses inventaram essa palavra quando compelido, como último recurso, à rebelião contra a tinuam, ainda. Então, esse argumento de que os
entrevista Augusto Boal

dois lados eram iguais não é verdadeiro. Vivíamos MHuD – Agora, não querem dizer onde estão os estigma. O pessoal do meu centro conseguiu fazer
em um país democrático e eles subverteram esse arquivos. Dizem até que não existem arquivos. um espetáculo de Teatro-Fórum na praça, no meio
regime e impuseram um regime que não era de BOAL – Talvez não tenham as provas documentais, da cidade, com esses presos – com esse tipo de
Direito, era regime de força. E depois nos cha- mas existem as testemunhais e elas também são preso que às vezes pode sair no domingo. A platéia
maram de subversivos. Impuseram o terror e nos válidas. As pessoas que foram torturadas e as pes- era de gente livre, moradores do local, que entrava
chamaram de terroristas. Quem se rebelou contra soas que assistiram. em cena tentando achar soluções para os problemas
a ditadura estava amparado no texto de validade mostrados na peça e improvisava. –“Ah, se eu es-
universal, assinado por quase 200 países. MHuD – Mas você acha que de fato não existem tivesse preso, faria tal coisa, assim, assim e tal”. E
No meu próximo livro, A Estética do Opri- arquivos? todos improvisavam juntos, presos e cidadãos livres.
mido, eu transcrevo a Declaração Universal dos BOAL – Eles devem ter escondido, não é? Isso Depois disso, como houve esse contato humaniza-
Direitos Humanos inteirinha – é uma coisa linda. sim. E devem ter queimado. Parece que já queima- dor, acabou em parte, aquele ostracismo.
Se o mundo fosse realmente guiado por ela, seria ram alguns, uma parte. Eles têm tanta vergonha!
um mundo maravilhoso, porque ela dá todas as Além de covardes estão envergonhados do que MHuD – Mas houve a inclusão, depois, desses
garantias para o indivíduo se desenvolver como fizeram. Medalhas ostentam-se no peito, arquivos ex-detentos ou detentos em regime progressi-
ser humano. se escondem. Se a gente pensar tendo as ideias vo? Houve a inclusão na sociedade?
claras, quem for contra a punição de crimes está BOAL – Alguns deles já tinham o privilégio de po-
MHuD – Você é a favor da punição do tortura- sendo a favor do crime continuado. Se você não der ir para casa e voltar, não eram presos perma-
dor, da abertura dos arquivos? pune, você é a favor do crime continuado. É o que nente. Estava na cadeia, mas podiam, vai trabalhar
BOAL – “O sertanejo é antes de tudo um forte”, está acontecendo. Não com presos políticos, mas em tal lugar, sempre sob custódia. Outros vinham
escreveu Euclides da Cunha. Parafraseando, eu presos comuns estão sendo torturados. de outras cidades. Mas o que sentimos foi a qua-
diria: “O torturador é antes de tudo um covarde”. O meu centro trabalhou durante muito tempo se extinção do opróbrio. Em um outro espetáculo,
Porque ele não tortura em igualdade de condições, com o Departamento Penitenciário Nacional, do um preso encenou o seu caso: estava há um ano
ele não combate. Ele tortura uma pessoa que já Ministério da Justiça(Depen), em muitas prisões, na cadeia e não tinha cometido crime nenhum. O
está vencida, que não tem mais defesa, e nunca e a gente via o que acontecia lá dentro. advogado já tinha provado que não era ele, mas
tortura sozinho. Eu mesmo fui torturado por seis A verdade é terapêutica. Se você não fala a ele continuava preso. Quando fizeram o espetácu-
ou sete homens armados. Puni-lo é uma neces- verdade, não quer saber a verdade, dá úlcera. É lo, por coincidência havia uma juíza que assistiu a
sidade também das Forças Armadas, que devem melhor não ter úlcera, é melhor dizer a verdade. É cena na platéia e aí ela acionou o alvará de soltura
expurgar covardes do seu meio. A gente quer um uma terapia social, não terapia individual só, não. dele. Ele não voltou àcela nem para pegar a escova
Exército de gente corajosa. Aeronáutica, Marinha O fato de a discussão continuar mostra que ela de dentes, foi direto para casa.
com gente de coragem. Se existem covardes no está muito viva. Na Argentina, os juízes julgaram,
meio deles, devem ser excluídos e julgados. Sem- um por um, todos os torturadores. Na África do MHuD – E toda a cidade participava bem disso?
pre dentro da lei do Estado brasileiro. Não existe Sul, fizeram tribunais da reconciliação: o tortura- BOAL – Muita gente, a praça cheia. A gente es-
nenhuma lei no Brasil que autorize a tortura. Então, dor que fosse lá e confessasse, e se dissesse que teve também em outra prisão, em Campo Gran-
é evidente que a primeira coisa a fazer é limpar as estava arrependido do que tinha feito, era absolvi- de (MS), e não tinha onde fazer o espetáculo. O
Forças Armadas de covardes, de torturadores. Se do. A punição qual era? Era que todo mundo ficava único lugar viável era em frente a uma cela com
existe um crime, tem de haver punição. Se você sabendo. O castigo era obrigar o torturador a dizer 200 presos lá dentro, grades imensas. Só tinha
não pune o crime, as pessoas saem dizendo que a verdade, castigo moral. Todo mundo ficava sa- aquele espaço. Tinha depedir autorização aos
se devia não só torturar, mas matar, como aquele bendo que havia sido torturador. presos para fazer o espetáculo na frente deles. Aí
Bolsonaro. Temos de saber quem foi torturador. E pensamos: “Eles vão ficar chateados, vão gritar,
se houve algum guerrilheiro que torturou, eu tam- MHuD – Vamos falar sobre o tema da segurança atrapalhar, vão ficar com raiva da gente”. O grupo
bém acho covardia. A tortura é covardia. pública neste momento no Brasil. De que forma de teatro explicou: “É uma forma de teatro em
você vê esse tema e os direitos humanos? que você apresenta um problema para imaginar
MHuD – Mas você acha que o crime é pres- BOAL – Os direitos humanos incluem, é claro, o soluções; quando termina, começa a mesma
critível? direito à educação, à saúde, à moradia digna e ao peça outra vez, e o espectador pode dizer ‘para’,
54 BOAL – Em lugar nenhum se diz que esse crime trabalho, à cultura e à arte, enfim, tudo que está na entrar em cena, substituir o protagonista e impro-
é prescritível. famosa Declaração de 1948. Mas, objetivamente, visar soluções”. Os presos e eles toparam. Então
Revista Direitos Humanos

sobre a segurança, quero contar um episódio, ou fizemos o espetáculo na frente da cela. Quando
MHuD – Agora, para saber quem é o torturador dois. Em Presidente Prudente tem uma prisão bem terminou a peça, começou o fórum. Entrou um
tem de abrir os arquivos. perto da cidade que era como se fosse um lepro- espectador daqueles convidados que tinham vin-
BOAL – É, tem de ter as provas. Podem ser teste- sário. Ninguém queria nem chegar perto. Mesmo do conosco, depois outro, mais outro. Daí a pou-
munhais ou documentais. depois que eram soltos, os presos carregavam o co, um preso de dentro da cela falou: “Para, eu
tenho uma ideia!”. O carcereiro não hesitou, abriu – “A gente já sabe que sacrificou muito vocês, televisão. Sou antigo. Tinham grandes romances.
a porta, o preso saiu, entrou em cena, fez a sua agora é a vez de vocês”. Não acredito que os cem Por exemplo, Os três mosqueteiros, O conde de
intervenção e voltou para a cela. E mais dois ou homens mais ricos do mundo da revista Forbes, Monte Cristo. O Correio trazia todos os sábados
três presos: - “Eu também tenho uma ideia!”. Foi de repente, vão ter um acesso de humanismo e dois ou três capítulos, minha mãe recebia e lia,
uma alegria para nós, porque parecia uma metá- vão distribuir metade das suas fortunas para os gostava muito de ler.
fora do Teatro do Oprimido. A gente não quer que miseráveis desta terra. Isso não vai acontecer
o espectador fique prisioneiro na sua cadeira. nunca. Se você não está organizado e não faz MHuD – Em fascículos?
Quer que ele tenha a liberdade de invadir a cena a sua organização atuar politicamente, vai con- BOAL – Fascículos. Foi encenando o Conde de
e dizer o que pensa e se manifestar. E ali, naque- tinuar sempre submetido. Os bancos que estão Monde Cristo com meus irmãos, irmãs e primos
la prisão, conseguimos a liberdade de imaginar, se fundindo. Para quê? Para favorecer o cliente que estreei como diretor de teatro. Eram cenas
de pensar juntos. Conseguimos estabelecer um que vai lá e deposita seu dinheiro? Não. É para curtinhas, de dez minutos. Depois do almoço de
diálogo humano. Entraram em cena convidados, mais ainda enriquecer os próprios bancos e seus família, as pessoas sentavam e assistiam. Come-
carcereiros, prisioneiros: seres humanos. acionistas. Todas as grandes fusões que estamos cei assim a gostar de teatro.
vendo são para fortalecer os mais fortes. Se os
MHuD – Mas, e a segurança pública? mais fracos, oprimidos, não se fortalecem, não MHuD – E seus colegas não tinham a mesma
BOAL – Direitos Humanos são para todos, sem ex- vão se libertar nunca. Penso que pelo diálogo condição financeira. Vocês moravam na Pe-
clusão. Nas prisões, fazemos questão de trabalhar teatral as pessoas podem ser levadas a enten- nha. Imagino que as crianças eram muito po-
com presos e também com funcionários, que tam- der melhor as alternativas para sua situação de bres e você era filho de um padeiro, de modo
bém têm seus problemas, de segurança e econô- opressão e a pensar com a própria cabeça. que tinha uma condição um pouco melhor.
micos. Mas veja uma criança que nasce em uma Como era isso?
comunidade pobre: sua única chance de se inte- MHuD – Como é que você descobriu o teatro? BOAL – Meu pai tinha duas padarias, mas também
grar tem sido a de entrar para o tráfico. Ou passar BOAL – Na minha infância não tinha novela, nem não era rico.
fome. Isso eu estou falando porque é prática nossa. Salete Hallack

Muitas peças que os jovens com que trabalhamos


já fizeram são sobre eles mesmos: jovens que não
têm outra saída. Peças sobre crianças que são ex-
ploradas, sexual e economicamente. Vem alguém
e fala: – “Você quer ser o aviãozinho? Você vai ga-
nhar por semana o que um operário não ganha por
mês.” Eles vão mesmo. Não têm uma escola que
dê um embasamento, não têm saúde e às vezes
não têm nem família. A situação está mudando,
mudando bastante, mas ainda é assim.
A gente se enganava no começo quando per-
guntava a um jovem: – “Você tem família?” Ele
respondia: – “Tenho! A gente tem pai, tem mãe”.
Mas quando a gente perguntava pela família, cada
um pensava na sua. Eu pensava no meu papai,
minha mamãe, na mesa dos domingos onde todo
mundo se reunia com primos, tios. Para ele, fa-
mília era um pai que sumiu ou era bêbado, um
desempregado, a mãe que trabalhava como louca,
a filha que se prostituía ou que havia engravidado
menina. Família para ele é isso.
55
MHuD – Como é que você vê esse embate da
Revista Direitos Humanos

hegemonia e do pensamento contra-hegemôni-


co no mundo?
BOAL – Acredito que só os oprimidos vão liber-
tar os oprimidos. Não acredito que, de repente,
os homens vão ser bonzinhos com as mulheres:
entrevista Augusto Boal

MHuD – Mas havia interação? não eram negros, eram muito pobres. Então eu nesse telegrama. Como uma das acusações contra
BOAL – Sim, mas eles não vinham para o teatro escrevia sobre eles. Eu vivia no meio dos oprimi- mim era a de que eu teria levado artigos contra a
não. Com eles era o futebol no meio da rua em dos. Não era tão oprimido como eles, mas vivia na ditadura e entregue ao Sartre para que os publicas-
frente: os carros, que passavam de meia em meia Penha (Zona Norte do Rio de Janeiro) que era um se na sua revista, Les Temps Modernes, Sartre es-
hora, paravam até a gente fazer um gol. Teatro bairro pobre. Na minha rua não tinha nem esgoto. creveu afirmando que não tinha sido eu o portador
mesmo, era dentro da família, coisa familiar. daqueles artigos “contra a sangrenta ditadura que
MHuD – Você teve ligação com o Partido Co- enxovalhava o Brasil”. O militar leu o telegrama no
MHuD – E sua relação com o Abdias Nasci- munista? tribunal e falou assim: “Tá vendo, até preso você
mento? BOAL – Não. Eu nunca fui de nenhum partido, a está fazendo subversão”.
BOAL – O Abdias é o meu mais velho amigo, mui- não ser quando fui vereador e entrei para o Partido
to querido e admirado. A gente se conheceu em dos Trabalhadores. Dentro do Teatro de Arena havia MHuD – E as ideias do Nelson Rodrigues e as suas
1948. Por coincidência, foi o ano da Declaração vários atores que eram do Partido Comunista. ideias, como conviviam pessoas tão diferentes?
dos Direitos Humanos. Esse é um dos direitos fun- BOAL – A cabeçadas e bicadas, viu? Eu nunca
damentais: a amizade! MHuD – Guarnieri (Gianfrancesco), por exemplo? concordei com o Nelson, em nada. Eu só concor-
BOAL – Guarnieri sempre disse que era, e era dava que ele era um cara muito amigo. E eu era
MHuD – O Abdias é do Teatro do Negro, não é? mesmo, todo mundo sabia. Guarnieri, Vianinha muito amigo dele também.
BOAL – Teatro Experimental do Negro. O Solano (Oduvaldo Vianna Filho), havia vários. Mas eu
Trindade, aquele poeta negro, que também era ex- nunca concordei com o Partido Comunista. MHuD – E muito brilhante também.
celente, era de São Paulo. Eu fazia peças e dava BOAL – Muito brilhante, inteligente, eu gostava
para o Abdias. MHuD – Por que? demais dele e ele me ajudou bastante. E nós torcí-
BOAL – Uma das razões principais é que eu não amos pelo mesmo time, que é o Fluminense.
MHuD – Mas quando você o conheceu, em acreditava muito na história de que havia duas bur-
1948, como foi? guesias brasileiras, entreguista e nacionalista. Eu MHuD – Ele aceitava as suas ideias revolucio-
BOAL – Em frente à Associação Brasileira de Im- achava que os oprimidos não deviam entrar nes- nárias para o teatro?
prensa tem um bar que se chamava Vermelhinho. sas nuances, deviam lutar pelos seus direitos que BOAL – De maneira nenhuma. Nem as minhas,
Não sei se tem ainda, mas tinha. Era ponto de en- eram – e são – legítimos. nem as do Vianinha, nem as de ninguém. Mas
contro de pessoas de teatro. Eu conheci o Nelson admirava a gente. Ele foi sempre muito bacana
Rodrigues lá. Sou engenheiro químico. Não pare- MHuD – Mas certamente você era um materia- comigo, mas desastrado também.
ço, mas tenho diploma e tudo, até da Columbia lista dialético, assim como eles.
University, veja só! Eu era diretor do Departamento BOAL – Eu nunca me classifiquei assim. MHuD – Em que sentido?
Cultural da Escola Nacional de Química, na Praia BOAL – Um mês depois que eu estava preso, já
Vermelha (Urca). Fui procurar o Nelson para ele MHuD – Mas os existencialistas gostavam mui- estava na cela coletiva, com mais 15 pessoas lá,
fazer uma conferência para os alunos da Química, to de você, porque o Sartre chegou a te defen- às vezes 17, ele escreveu um artigo para me de-
mas ali na sede do Serviço Nacional de Teatro, em der quando você foi preso. fender. Só que a defesa dele dizia que eu nunca
frente ao botequim. Lembro-me que a gente esta- BOAL – Não é que ele gostasse, é que ele defendia tinha me metido em política, que eu só falava de
va na porta, esperando chegar o pessoal, e vinha qualquer um que lutasse pelos Direitos Humanos. teatro, era um anjo celestial. Disse que uma vez
um, dois, três, quatro, cinco, dez pessoas. Chegou eu e ele estávamos no velório de um amigo co-
uma hora em que o Nelson disse pra mim: “Você MHuD – Quer lembrar um pouco dessa história mum e eu, em vez de falar com a viúva sobre as
não prefere que a gente faça essa conferência ali com o Sartre? qualidades do morto, só falava de teatro, na fren-
no Vermelhinho, comendo uma média com pão e BOAL – Com o Sartre o contato que eu tive foi te do caixão. Ele sempre foi amigo de verdade,
manteiga?” Eu morri de vergonha. Depois o Abdias uma vez só, em uma conferência que ele fez e a mas era um reacionário que Deus me livre! Ele
quis montar uma peça minha com o Grande Otelo. gente debateu alguma coisa sobre Brecht. Eu dizia defendia a ditadura. Era muito impossível engolir
Também fiquei muito amigo do Grande Otelo. uma coisa, ele dizia outra. Não me lembro o que as ideias políticas dele. A gente já nem discutia
dizíamos, mas acho que eu tinha razão... mais. É engraçado quando você tem um amigo
56 MHuD – E você já tinha sensibilidade do social, de quem você gosta demais, mas o cara pensa o
tinha preocupação com os Direitos Humanos? MHUD – Ele mandou uma mensagem quando oposto de você.
Revista Direitos Humanos

Boal – Tinha ter. Porque perto de onde eu mora- você foi preso.
va tinha o Curtume Carioca e a padaria servia os BOAL – Foi um movimento que se fez, realmente MHuD – A estética pressupõe uma ética.
operários de lá. Eu trabalhava com o meu pai na muito importante para me soltar. Ele mandou um BOAL – A estética sempre revela uma ética. Em
padaria e via o pessoal chegando, conversava. A telegrama para o tribunal. Um dos militares que teatro, mais ainda, porque quando você vê espe-
maior parte deles era de negros e mesmo os que estava me julgando leu o que o Sartre tinha escrito táculo, não é uma coisa estática. A peça mostra
o movimento de um grupo social e esse movimento meçaram a trabalhar comigo em cima dessa ideia: metrô e ninguém protesta nem faz nada”. Começa-
vai de um lado para outro, no sentido de aumentar a como é que se transforma a ata de uma assembléia, vam a provocar o jovem ator e o rapaz se defendia.
opressão, ou no sentido de eliminar a opressão. O te- uma cena da Bíblia, qualquer material escrito, além Criava-se uma confusão danada. Um dia o rapaz
atro, por meio da empatia, transfere as ideias da peça das notícias de um jornal, em teatro. A gente desen- fugiu com as moças atrás dele e ficou cercado no
para o espectador: esse é o perigo ético do teatro. volveu muitos grupos em São Paulo que faziam isso. fundo do corredor da estação, todo mundo desceu
Foi quando eu fui preso. Depois fui para Buenos Ai- para ver o desenlace da cena. Mas isso a gente
MHuD – Nesse sentido é que se criou o Teatro res. Cecília é argentina, ela tinha família lá. Ficamos fez, digamos, 10 vezes. Tinha de ser 100 ou 200,
do Oprimido? cinco 5 anos. Lá eu desenvolvi o Teatro Invisível, por- mil. Aí vira um fato político importante. A gente ia
BOAL – O Teatro do Oprimido, na verdade, foi que queria fazer teatro na rua. e voltava na mesma linha de metrô, com o mesmo
criado sempre pela relação com a realidade. Por grupo. Mudavam os espectadores. No metrô as
exemplo, a primeira forma de teatro oprimido foi lá MHuD – Isso em que ano? cenas têm de ser curtinhas porque se abrem as
em São Paulo. Porque todas as peças que a gente BOAL – Em 1971. portas a cada dois minutos.
fazia, a polícia proibia. Eu me lembro de um espe-
táculo que se chamava Feira Paulista de Opinião. MHuD – Qual é a função social desse teatro MHuD – Você teve experiência no Brasil e in-
Tinha peças de Guarnieri, Bráulio Pedroso, Plínio invisível? ternacional. O teatro tem uma linguagem uni-
Marcos, Lauro César Muniz, Jorge Andrade e eu. BOAL – A função é revelar o escondido. A opres- versal?
Músicas de Gil, Caetano, Sérgio Ricardo, Sydney são existe muito mais insidiosamente quando é BOAL – No caso do Teatro do Oprimido, ele hoje é
Miller, Edu Lobo, e artes plásticas de todos os invisível, não se vê. Então você revela o que não mundial mesmo. Tem um site internacional, www.
jeitos de 15 ou 20 artistas. Em cena estavam a se vê, mas existe. Na Alemanha a gente fez, per- theatreoftheoppressed.org, e lá você vê, se não
Miriam Muniz, Antonio Fagundes, Garnieri, Renato to de Frankfurt, onde muitos imigrantes não têm me engano, 55 países onde se pratica o Teatro do
Consorte, a Cecília Thumim, um grande número onde morar, uma cena no meio da praça com uma Oprimido. Nós conhecemos mais uns 20. E se vê
de ótimos atores. O espetáculo era um mural em boliviana que queria ficar no país. Os transeuntes os grupos que praticam: 150, mais ou menos. A
que a gente perguntava: “O que é que você acha do vinham e começaram a discutir o problema teatral- gente sabe que tem muitos mais. Na África, nós
Brasil de hoje?”. E cada artista respondia da sua mente. É um instrumento político. A gente nunca trabalhamos em Moçambique, Angola, Guiné Bissau,
maneira, sempre com uma obra de arte. faz pegadinhas, nunca obriga ninguém a entrar e existe anualmente o Festival do Teatro do Oprimido
Eu me lembro que tinha uma escultura que em cena, não humilha ninguém, nem ridiculariza. no Senegal, onde sempre algum de nós está lá par-
era um túnel que se chamava Milagre Brasileiro. A E tem um texto, a gente estuda o texto. A gente ticipando. Eu fui à Índia em 2006 para a inauguração
pessoa entrava em uma cadeira de rodas e, no fim, representa a peça, só que não diz que é peça. Os da Federação Indiana de Teatro do Oprimido e tinha
a cadeira de rodas apertava um interruptor e acen- passantes vêem aquilo e participam, têm vontade 12 mil pessoas no desfile que eles fizeram e lotaram
dia a imagem de Nossa Senhora Aparecida. Então, de participar e se instaura um debate político civi- a Wellington Square para ouvir a gente falando. No
a pessoa tinha de sair andando, não podia voltar lizado. Mas ninguém é obrigado a nada. primeiro semestre deste ano trabalhei em oito paises
para trás. O milagre era: quem anda de cadeira de diferentes. O TO é mundial mesmo.
rodas rezando, sai a pé. Um quadro era a bandeira MHuD – E a função pedagógica? Porque o MST,
brasileira que se transformava na bandeira ameri- por exemplo, está usando o Teatro do Oprimido. MHuD – Voltando aos desdobramentos do Teatro
cana. Tinha também uma banana enorme, que era BOAL – Eles trabalham com a gente há vários do Oprimido, fale da sua parceria com a Cecília.
o símbolo do tropicalismo, logo na entrada. E a anos. A função do nosso teatro é sempre essa, a BOAL – A Cecília trabalhou comigo, sobretudo em
peça foi proibida. de trazer à consciência das pessoas o tema escon- um ateliê que durou dois anos, em Paris, 1980-
Depois houve uma greve geral lá em São Pau- dido que você está querendo tratar. Porque o mais 1982, sobre o Arco-íris do Desejo, que é a parte
lo, centenas de artistas vieram para nosso palco difícil é você mostrar o que todo mundo já olhou, do Teatro do Oprimido que trata das opressões in-
e a Cacilda Becker proclamou o estado de deso- mas não viu. Então você tem de fazer ver aquilo ternalizadas. Não é terapia (Cecília é psicanalista),
bediência civil. Foi uma coisa extraordinária. Mas que apenas se olha. mas pode ser terapêutico. Isso foi lá em Paris, ela
veio Médici. Começaram a proibir tudo, a gente Agora, para ter eficácia política, você tem de ainda estava na faculdade lá.
não podia fazer mais nada. Aí a gente começou a fazer cem vezes no mesmo dia. Aí explode. Em Pa-
inventar o Teatro Jornal: por meio de notícias de ris a gente fazia uma cena sobre a violência contra MHuD – Quantos anos vocês têm de casados?
jornal, fazíamos cenas de teatro. as mulheres no metrô. Era um cara que começava BOAL – 42 anos. 57
A Cecília Thumim, minha mulher, e Heleny a bolinar uma moça, ambos atores, a moça re-
Revista Direitos Humanos

Guariba (que foi depois assassinada pela ditadura) clamava e ninguém ajudava. Duas outras atrizes MHuD – É importante a ideia do amor no seu
davam aulas no nosso curso de teatro, com alunos que estavam lá, quando a moça ia embora – e o teatro, ou só a política, a ética?
que beiravam os 18 anos, gente novinha, entre provocador atrás dela –, diziam: “Olha, esse ra- BOAL – A política é amorosa. Ou pode ser. Devia
eles Celso Frateschi, Denise del Vecchio, Dulce paz aqui como ele é bonito. Vamos lá provocar ele ser. A política é uma forma de amor. Ou de ódio.
Muniz. Convidei todos no fim do curso e eles co- também, porque é permitido bolinar as pessoas no O que vocês estão fazendo não é política? O Movi-
entrevista Augusto Boal

mento Humanos Direitos não é política? Claro que guas, com várias sociedades dentro do próprio eu falava a palavra família, era aquela mesa da mi-
sim, mas por quê? Por amor! Brasil. Que homem é esse que dialoga com a nha infância que vocês estão vendo ali no meio da
diferença e que consegue realizar tanto? minha sala. Aos quatro anos eu me escondia em-
MHuD – Você deve ser um homem de muita fé. BOAL – É a minha ética. Eu sempre digo para o baixo, até que a minha mãe me achava. Para mim,
Você tem religião? Acredita em Deus? meu grupo que o importante não é o tamanho do família era essa mesa com meu pai, minha mãe,
BOAL – Nem desacredito. passo, é a direção desse passo. Se você está dan- todo mundo em volta. Para eles, era outra coisa.
do um passo na direção certa, mesmo pequeno, Eles faziam diferente, esculpiam o corpo de uma
MHuD – Você é agnóstico? isso é bom. Agora, se você dá um passo imenso pessoa trabalhando, outra se embriagando, outra
BOAL – É difícil explicar. Todas essas formulações na direção errada, quanto maior pior. Às vezes a fazendo qualquer outra coisa. A gente trabalhava
das religiões dão uma explicação que é mais ou gente faz uma coisa que é muito pequena, mas só com imagens. Essa foi a primeira técnica; hoje
menos lógica. Eu sou amigo do Frei Betto. Quan- que está na direção certa. É bom. temos dezenas de técnicas muito mais sofistica-
do eu estava preso, ele já estava preso antes de Na Estética do Oprimido quando a gente faz das, mas simples de usar.
mim. Às vezes vinha na minha cela e conversava um trabalho com as crianças e pede para fazerem Quando eu trabalhei em Buenos Aires, eu ti-
sobre Jesus Cristo enquanto ser humano, vivendo a bandeira do Brasil, elas são levadas a fazer um nha um grupo que se chamava Machete, aquele
em determinada época. A gente conversava muito quadro igual ao modelo. Depois, a gente pede para instrumento de cortar cana. Em Portugal, trabalhei
sobre religião. Eu adorava essas conversas. Não é fazer a bandeira do Brasil do jeito que elas acham com a Barraca; em Paris, fundei o Centro do Teatro
que eu seja agnóstico, mas não tenho nenhuma que devia ser, ou como elas acham que é o Brasil. do Oprimido de Paris, depois eu vim de volta ao
religião. Alguma explicação as pessoas precisam Elas mudam tudo. Pintam revólver, fuzil, violên- Brasil e fundei o Centro do Teatro do Oprimido.
ter para compreender por que estão neste mundo cia, drogas. Um menino disse: – “Eles ensinam
e que mundo é este em que estão. As religiões for- pra gente uma porção de coisas, mas a gente vê MHuD – A gente não chegou a falar direito da
necem metáforas de alguma coisa desconhecida. que a verdade não é essa”. Aquele menino abriu Cecília.
Eu disse que a palavra é um meio de transporte os olhos para a realidade por meio da pintura, para BOAL – Ela me ajudou muito na elaboração das
e digo que a palavra Deus é um imenso navio de uma realidade que estava sendo negada. Diziam: técnicas do Arco-Íris do Desejo que trata das
carga. Transporta muita coisa contraditória. Tem “O amarelo é o ouro; o verde é a mata amazônica; o opressões interiorizadas. Ao mesmo tempo traba-
gente que diz que acredita em Deus e vai ver quem azul é o céu”. E ele: – “Não é nada disso, porque o lhava comigo como atriz, é uma excelente atriz,
é Deus para cada um deles. São deuses projetados céu está poluído, a riqueza está na mão dos outros nas peças que eu dirigi no Brasil, na Argentina, em
por cada um. e estão devastando a Amazônia”. Quando o meni- Portugal, na França. Mas, como tinha de aprender
no pensa isso, quando está pintando a bandeira, uma língua nova a cada mudança provocada pelo
MHuD – Santo Agostinho dá a ideia de que o naquele momento ele deu um passo gigantesco exílio, acabou desistindo da profissão. Quando nós
amor faz a ética. para entender o Brasil e para entender o mundo. morávamos em Buenos Aires, ela trabalhava em
BOAL – Agora mesmo eu estava discutindo o que Já que estávamos falando de religião, a Ma- teatro na sua língua materna e eu, quando podia,
é ética e o que é moral. Na verdade, a moral são os dre Tereza de Calcutá disse uma frase que eu acho viajava por toda a América Latina e desenvolvi o
costumes. A escravidão já foi moral no Brasil e nin- muito linda: - “Tudo o que a gente faz é uma gota Teatro-Fórum no Peru, onde dirigi a parte do tea-
guém discutia. Era um direito do cidadão que com- de água no oceano, mas se nós não fizéssemos tro no programa de Alfabetização Integral baseado
prou outro ser humano no mercado, pagou o preço nada, faltaria uma gota de água no oceano”. no método do professor Paulo Freire, que é uma
convencionado, ter direito sobre vida e morte dessa
pessoa. Então era moral, ninguém se espantava com MHuD – Vamos retomar a questão do diálogo
isso. É verdade que ética e moral parecem a mesma com as diferentes culturas?
coisa, mas quando Aristóteles define a ética, ethos, BOAL – Foi justamente trabalhando com comuni-
ele a define como sendo aquilo que a sociedade almeja dades indígenas, no Peru, na Bolívia, na Colôm-
como perfeição. A palavra ética é uma coisa de hoje para bia, na Venezuela, e no México, que eu conver-
o futuro, é o que eu desejo. Moral é aquilo que existe, a sava com as pessoas e me dava conta de que as
ética é aquilo que se deseja fazer existir e começa a exis- palavras não tinham o mesmo sentido para mim
tir com esse próprio desejo. Você quer que a humanida- e para elas. Eu falava espanhol, mas espanhol é
58 de se humanize. Então você tem uma ética humanística, minha segunda língua, não a primeira; eu tinha de
que vai contra o lado predatório, que ainda subsiste em fazer uma tradução. Eles falavam aquelas dezenas
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muito ser humano. Mas isso não tem a ver necessaria- de línguas que têm. Comecei a ver que não nos
mente com a ideia de Deus. entendíamos com palavras e comecei desenvolver
Teatro-Imagem, sem menosprezar a palavra, falar
MHuD – Você é um homem além – fronteiras, com imagens, a imagem do corpo deles próprios e
você conseguiu se comunicar com várias lín- suas relações com as coisas. Por exemplo, quando
enorme influência mundial. Eu sinto muito orgulho excepcionais, mas nunca vi um ator tão sincero lavra. Não nos deixam brincar depois de uma certa
por saber que nos Estados Unidos, todos os anos, quanto aquele que fazia o marido quando gritava: idade, temos de falar sério, e ficamos cada vez mais
desde 1994, se realiza uma Pedagogy and Théâtre “Me perdoa, nunca mais, nunca mais eu vou te reduzidos à expressão verbal. O Teatro do Oprimi-
of the Oppressed Conference, com a participação enganar!”. do quer restaurar aquilo que você já tem. Só que
de centenas de professores e de gente do teatro, tem escondido dentro de você. Temos grupos, por
juntando os dois métodos que têm tantas seme- MHuD – Esse é ator mesmo! exemplo, de empregadas domésticas, que traba-
lhanças. BOAL – Era personagem... e pessoa. Eu percebi lham com a gente há 10 anos. Uma delas disse uma
que a invasão do espectador em cena era meta- coisa maravilhosa. A gente fez um espetáculo e elas
MHuD – Já havia tido um encontro com ele? fórica das transgressões que você tem de fazer na pediram para fazer dentro de um teatro. Fizemos um
BOAL – Nós fomos amigos 40 anos. Ele dizia que vida real para se libertar das suas opressões. Você festivalzinho no Teatro Glória. Quando terminou, me
éramos amigos desde sempre. No Peru além da não pode se libertar se continua exatamente na disseram que uma delas estava chorando. Fui ver o
alfabetização com o método do Paulo Freire, tinha mesma estrutura opressiva. Você tem de fazer uma que era: “Por que você está chorando?” “Nós so-
alfabetização em cinema, em serigrafia e eu alfabe- transgressão. Se não fizer, não se liberta. Aquela mos ensinadas a não falar, a ser invisíveis; e hoje
tizava em teatro. Uma vez a gente estava tentando invasão foi uma metáfora dessa verdade social. a gente estava aqui representando, ensaiando, tinha
fazer dramaturgia simultânea. A gente fazia a peça um homem na escada dizendo: “Eu quero iluminar
e depois perguntava à plateia: “O personagem agiu MHuD – Pensando em uma estratégia educa- você melhor. Vai mais pra frente”. Nós somos invi-
direito ou não? O que você acha que ele deveria ter cional, você considera o teatro como elemento síveis, mas lá ele estava querendo que nosso corpo
feito?” Os espectadores davam sugestões e a gen- fundamental para alfabetizar? fosse visto. A gente é ensinada a não falar nada. A
te improvisava cada sugestão que eles davam. Nós BOAL – Quando eu falo alfabetizar, falo na própria família está discutindo coisas, eu quero dar opinião,
tentávamos várias maneiras que a plateia sugeria, linguagem do teatro. não poso. E no ensaio tinha um cara pondo micro-
mas a gente guardava o poder da cena. fonezinhos nos nossos vestidos e dizendo: “Fala
Até que uma mulher violenta, grande, deu MHuD – Na linguagem do teatro como um direi- alto, para que se possa ouvir lá em cima nas gale-
uma sugestão e a gente tentou a sugestão dela. to à sensibilização. A gente trabalha com comu- rias.” Eu perguntei: “Foi por isso que você chorou?”
Ela ficou furiosa: “Eu não disse isso. A protago- nidades carentes. Carentes de tudo, de cultura, - “Não, não foi por isso não. De noite, a gente estava
nista foi enganada pelo marido. Ela tem de ter uma de sensibilidade, de acesso à sensibilidade. representando, eu entrei em cena com a luz, com o
conversa clara com ele e depois ela perdoa”. A Será que a gente não pode pensar, falando da microfone e tudo. E a família para quem eu trabalho
gente fazia, e a mulher: “Mas eu falei uma con- origem do problema, na implantação de uma há 15 anos estava toda lá embaixo, no escuro, me
versa clara!”. Depois de três tentativas, eu fiquei educação cultural? vendo. E foi a primeira vez que me viram de verda-
nervoso e disse para ela mostrar que raio de con- BOAL – Claro, esse meu novo livro tem um subtí- de.” Um de nós perguntou: “Foi por isso que você
versa clara era aquela. Ela entrou em cena, pegou tulo que é O Pensamento Sensível e o Pensamento chorou?” - “Não, não foi.
uma vassoura, agarrou o ator que fazia o marido: Simbólico na criação artística. Existem duas formas ”Então, por quê? “Eu chorei porque quando
“Vamos ter uma conversa clara!”. E começou a de pensar. Uma forma de pensar simbólica, quan- acabou o espetáculo e vim pro camarim e olhei no
baixar o cabo de vassoura no marido. Essa era a do se usa sobretudo as palavras e certos gestos. espelho. E eu vi uma mulher.” Silêncio. - “Foi a
conversa clara que nós não havíamos entendido. Palavra é um som que você produz ou é um traço primeira vez que eu vi uma mulher no espelho”.
Eu já trabalho há meio século com atores, alguns que se faz no papel. Uma palavra não tem existên- “O que você via antes? “Antes eu via uma em-
Salete Hallack cia. Você vê um traço, lê, porque se convencionou pregada doméstica.”.
que aquela coisa é um “a”, aquele é um “b”. A
criança, quando nasce, começa a conversar com MHuD – Isso é genial!
a gente. Só que a linguagem dela é a linguagem BOAL – Genial! Ela se olhava como empregada
sensível, não é a linguagem das palavras. Ela se doméstica. Ela não era a Maria, era Maria empre-
comunica, está dizendo alguma coisa. Você põe gada doméstica. De repente ela olhava e via uma
uma música, ela dança, usa arte normalmente, seu mulher. Ela disse: “Sabe que até que sou bonita?”
comportamento é estético, pensamento estético, Ela não tinha percebido que era bonita.
pensamento sensível desde o nascimento. Não
temos de ter medo da palavra Estética porque ela MHuD – É o teatro invadindo a alma e cumprin- 59
significa simplesmente a comunicação sensorial. do o seu papel, que é revelar. Eu me lembrei,
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com isso, da parceria com o Chico (Buarque).


MHuD – Para relembrar esse momento sensí- Você não fez uma peça com o Chico que era
vel, que está adormecido... Mulheres de Atenas?
BOAL – A capacidade de expressão artística vem BOAL – Eu escrevi a peça que tinha quatro can-
da infância. Depois é oprimida pelo poder da pa- ções. Perguntei se ele queria musicar, ele falou
entrevista Augusto Boal

que sim e começou a musicar. A peça ia ser feita MHuD – Naquele momento de resistência, o espetáculo com minha peça, Revolução na Amé-
logo, dois ou três meses mais tarde. Ele começou Chico Buarque era muito companheiro seu? rica do Sul, na concha acústica do Castro Alves,
a musicar e fez a primeira, que era essa. Aí o pro- BOAL – A gente se via muito. É engraçado, no exí- em Salvador, para mais de 5 mil pessoas. O Lima
dutor desistiu de fazer a peça. E eu falei com ele lio você vê muito mais as pessoas do que quan- Duarte dizia que, quando a plateia ria, ele sentia
que, já que estava com a mão na massa, por que do você está aqui. Quando você está aqui, tanto como se fosse gol: explosão. Ele falava e vinha
não fazia as outras três? “Eu vou fazer, vou fazer.” você como os outros têm mais o que fazer. Mas o aquela onda sonora. Até balançava com o espetá-
E depois nunca mais fez. Chico, em qualquer lugar onde a gente estava culo, você estava acostumado com um certo ritmo
exilado, em Buenos Aires, Lisboa, Paris, a gente e tinha de parar um pouquinho assim, e depois
MHuD – Você estava na inquietação da igual- sempre se via. Aqui a gente mal se vê. Fernando vinha outra onda.
dade entre homem e mulher? Peixoto era outro que eu via em toda parte quando
BOAL – É sempre uma das coisas que eu acho tínhamos o Oceano Atlântico pelo meio e agora MHuD – O público é público que fala, “especta-
mais extraordinárias. O porquê de as mulheres que ele mora em São Paulo não vejo mais. As pes- atores”
serem tão oprimidas. Em toda parte do mundo, soas se encontram muito quando trabalham jun- BOAL – Você não pode ser espectador na vida. A
é impressionante. Na Índia, uma mulher disse tas: hoje, meus grandes companheiros de trabalho própria ideia da palavra teatro, teatron, em grego,
para o meu filho, o Julián, que sempre trabalha são os Curingas do CTO. já tem um elemento imobilizador, porque teatron é
comigo na Europa, que não era oprimida por- o lugar onde se vê. Você vai para ver. Eu não sou
que “o meu marido não me bate mais do que MHuD – Quem foram seus parceiros, quem são? contra isso, eu gosto de escrever peças e gostaria
eu mereço”. É terrível. Teve uma norueguesa, BOAL – Alguns atores, como o Guarnieri, Lima que fossem mais montadas até. Mas temos que
da cidade de Mo I Rana, quase dentro do cír- Duarte, eu trabalhei com eles 10 anos pelo menos. fazer um outro teatro também, mais livre, em que o
culo ártico, que nos respondeu, sobre a rela- Eram os mesmos atores, sempre. O Guarnieri, saía espectador seja espect-ator.
ção de homens e mulheres, que lá na Noruega e voltava, saía e voltava. O Lima também, mas so-
não tinha problema nenhum. Perguntei: “Mas mando tudo deu mais de 10 anos. Paulo José, eu MHuD – Quantos Curingas no CTO existem hoje?
vocês ganham a mesma coisa que os homens trabalhei muito com ele, com a Dina Sfat, a Isabel BOAL – Atualmente são oito pessoas que impul-
pelo mesmo trabalho?”. Ela falou: “Não, não, os Ribeiro. Juca de Oliveira também, bastante, Flávio sionam o Teatro do Oprimido – trabalham em to-
homens ganham mais que nós”.Eu falei: “Bom, Migliaccio, Miriam Muniz, Antonio Fagundes, Mil- dos os estados, menos Amazonas e Pará, porque
isso é opressão”. “Não, não é opressão porque ton Gonçalves... Esse pessoal todo, atores exce- é longe e as passagens são caras. Eu devo a eles
os noruegueses são muito bons maridos e tra- lentes. Flávio Império, maravilhoso cenógrafo. essa enorme expansão do TO por todo o terri-
tam a gente muito bem”. tório nacional e na África. Tem mais uns quatro
Ela não tinha entendido que a opressão não MHuD – Naquele momento você já tinha cons- Curingas que estão agregados. Então seriam 12.
está no exercício do poder, está na posse do po- ciência de que estavam fazendo e marcando a Tem dois em São Paulo, um em Recife, curingas
der. Se você tem o poder de oprimir, mas você história do teatro brasileiro? locais. Temos várias vertentes no nosso trabalho.
é bonzinho, você não vai oprimir, mas tem o po- BOAL – Na verdade, não. O que a gente tinha era Uma são os Pontos de Cultura – a gente trabalha
der de oprimir, isso já é opressão. Outra, sueca, aquela ética. A gente tem de falar do Brasil para em 16 estados. Somos o que eles chamam Pon-
essa foi mais engraçada, porque a sueca também brasileiros. A gente admirava muito o TBC, o Te- tão de Cultura. Os pontos que têm alguma coisa
protestou. Ela falou também que não havia opres- atro Brasileiro de Comédia, mas admirava como para mostrar para os outros são os pontões: nós
são lá. “Vocês ganham a mesma coisa que os coisa que não tinha a ver com a gente. Os atores temos o Teatro do Oprimido. Esse projeto é pa-
homens?” Ela respondeu: “Não, no Brasil e na falavam até com uma entonação meio italiana. Os trocinado pelo Ministério da Cultura, que já criou
França as mulheres ganham menos que os ho- diretores do TBC eram italianos, eles tinham um mais de mil pontos. Depois trabalhamos em um
mens. Aqui não, aqui eles ganham mais do que jeito italiano de fazer e faziam muito bem. A gente projeto com o Ministério da Saúde, com a Saú-
nós”. E ela não percebia que era uma oprimida a não queria isso, a gente queria fazer um teatro bra- de Mental, nos Centro de Atenção Psicossocial
mais, mesmo na Escandinávia. sileiro, sobre problemas brasileiros. A gente não (CAPS), onde a gente trabalha sobre a possível
estava querendo fazer história. Estávamos vivendo superposição entre o delírio patológico e o de-
MHuD – Você esperava o sucesso da música o presente, que era duro. lírio artístico e o uso dos ritmos na criação de
Mulheres de Atenas? diálogos e de estruturas sociais. O teatro em ge-
60 BOAL – A música é uma denúncia do conformis- MHuD – Que público era esse que ia assistir ral já é uma forma delirante de arte. A gente já
mo, mas tinha gente que entendia literalmente: aos espetáculos? fez algumas experiências muito lindas. Às vezes
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sigam o exemplo das mulheres, elas sofrem e isso BOAL – Tinha dois tipos. Um era um público mais as pessoas perguntam: “Mas cadê o resultado?”
é bom. A peça estava denunciando isso, mas teve pequeno-burguês, que vinha ao próprio Arena, que O resultado é que, em muitos desses CAPS que
gente que disse: “Ah, você está contra as mulhe- tinha 160 lugares. O outro era quando a gente ia a gente trabalha, o consumo de drogas, de me-
res, você está pedindo que sejam boazinhas”... para o Nordeste ou para o interior de São Paulo, dicação baixa em até 80%. Quer dizer, alguns
Deus me livre! quando a gente fazia teatro na rua. Nós fizemos um 20%, outros 50% e chega até a 80% de redução.
O teatro não cura, mas substitui, tranquiliza e dá MHuD – O importante é que você trabalhou pe- com as telas que reproduzem o que foi dito em voz
mais um pouco de felicidade para as pessoas, los Direitos Humanos a vida inteira. alta; depois as telas se tornam independentes e
para não ficarem tão angustiadas. A gente tam- BOAL – É uma forma de viver. Mas aquele é um prê- discutem sozinhas, depois troca a tela e a pessoa,
bém trabalha em escolas com a Estética do Opri- mio político. Quem ganha, em geral, são políticos. e assim por diante. O que é muito teatral, extre-
mido e publicamos Metaxis, uma revista sobre mamente teatral. E chama-se Imagem-Tela. Tem
cada projeto que fazemos. E existe a Fábrica de MhuD – Nós, do Movimento Humanos Direitos, uma técnica que se chama Arco-íris do Desejo.
Teatro Popular, que a gente tem em três estados estamos extremamente felizes com esta opor- Quando você tem uma relação com uma pessoa,
do Nordeste, patrocinada pela Petrobras. tunidade de chegar mais próximo de você. essa relação é como um Arco-Íris, não é de uma
E tinha o trabalho com o Depen, mas a buro- BOAL – E eu de vocês. Agora eu queria acrescen- cor só. Você ama, mas também odeia, tem inveja,
cracia atrapalhou. Eles dizem que nunca tiveram tar uma coisa só, que vocês perguntaram e eu aca- admiração, etc. Então você separa essas cores do
programas tão bons como esses que a gente fazia, bei respondendo só pela metade, quero responder desejo com os atores que representam cada uma
mas agora está parado porque uma das nossas a outra metade agora. Quando fui para a França, eu dessas cores. Primeiro, um de cada vez, depois
Curingas é professora primaria de 16 horas de estava acostumado com as opressões latino-ame- dois juntos, depois o desejo contra a vontade, a
jornada. Segundo eles, a professora não podia ricanas. Sempre tinha a história da polícia, chega vontade contra o desejo. As pessoas vinham com
participar. Existe uma lei que permite. Não poderia a polícia, aí vem a polícia. Quando eu fui para a problemas e a gente tinha de inventar a técnica
se fossem 40 horas, que é tempo integral. Ela é França, comecei a trabalhar em vários países da mais adequada a esse problema. Nós inventamos
professora de português e fazia o Teatro do Oprimi- Europa e sempre vinham pessoas que também fa- durante dois anos técnicas novas. No meu livro
do nos nossos programas. Temos toda razão. Mas lavam da polícia. Arco-Íris do Desejo tem doze.
mesmo que estivéssemos errados – o que não é o Mas vinha gente que dizia sobre opresso-
caso, – os burocratas teriam de ver qual é o bem res que eu não conhecia. Falava assim: - “A minha MhuD – Quando foi isso?
maior. O Tribunal de Contas da União pergunta o opressão é que eu não consigo me comunicar”. Eu BOAL – 1980 até 1982.
que significa Curinga. Aí você tem de explicar o brincava e dizia: “Vem cá, você está me comunican-
que é Curinga, tudo bem, só que demora meses do e não consegue se comunicar... Já é o começo da MhuD – Com a Cecília? O casamento ideal
até que venha a resposta e a aceitação do termo. comunicação”. A pessoa dizia: “Tá vendo, você não mesmo...
Um dos direitos humanos é acabar com a buro- me entendeu, não foi isso que eu disse”. Tinha outro BOAL – Mas depois a gente veio para cá e ela agora é
cracia, porque a burocracia é um peso morto que assim: “A minha opressão é o medo do vazio”. Essas psicanalista, tem o consultório dela lá no Leblon.
atrapalha os próprios projetos do governo. Este duas coisas vinham sempre.
governo teria tido um resultado ainda melhor nos Que medo do vazio, que nada! Eles não co- MhuD – Mas as técnicas desenvolvidas ficaram.
setores culturais se não fosse tão violenta a buro- nhecem as boas opressões latino-americanas, BOAL – Ficaram e depois a gente desenvolveu
cracia. Fiscalização sim, burocracia não. ficam inventando opressões. Eu soube, então, mais outras técnicas que não existiam. Agora,
Você tem um projeto enorme e útil, mas eles que na Europa, em países ricos, a percentagem de no Centro do Teatro do Oprimido, eu e os meus
nunca pensam no bem maior. Por exemplo, a gente suicídios era maior que na América Latina com as Curingas estamos querendo fazer uma coisa muito
ia fazer uma plataforma no meio da arena, no meio ditaduras. Aqui se matava muito, mas lá as pes- importante, que é ir até o mais fundo possível, o
da sala e, em vez disso, fizemos arquibancadas soas se suicidavam mais. Tive de levar a sério. A mais íntimo dos protagonistas, e chegar até o Tea-
móveis para a plateia sentar. Gastamos o mesmo Cecília, minha mulher, e eu resolvemos fazer uma tro Fórum, o mais social e político.
dinheiro, nem mais nem menos, tudo comprovado oficina que durou dois anos. A gente queria desco-
e aceito. Mas no projeto original estava “no meio brir novas técnicas para ajudar essas pessoas com MhuD – Boal, você tem alguma preocupação
da arena” e eles disseram: “Por que não pediu esses tipos de problemas. especial com o futuro, da humanidade princi-
autorização?” Você pede autorização e leva quatro Vinha uma pessoa que dizia assim: – “Olha, o palmente?
meses para vir a resposta. E os operários estavam meu problema é que eu não consigo me comunicar BOAL – A vida inteira sempre foi assim, todas as
lá, esperando... com fulano, porque a gente vive há muito tempo sociedades sempre foram assim: conflituais. A
juntos”. Cada um projetava no outro uma imagem utopia não foi feita para a gente alcançar. O sonho
MHuD – A gente precisa falar do Prêmio Nobel. que já não era mais o outro. Duas pessoas que é para você ir atrás dele – não se alcança. Utopia
Qual foi a sensação de ter sido indicado? vivem juntas há muito tempo, projetam telas um e sonho nos estimulam a ir mais longe. A utopia
BOAL – O que mais me alegrou é que eu tive in- no outro. Você não fala mais com o outro, você fala é muito útil, o sonho é muito útil, tem de sonhar 61
dicações que vieram dos cinco continentes. Isso com a tela que você projetou. Então, Cecília e eu para poder chegar lá ou pelo menos o mais perto
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foi genial. Mas eu não tinha a menor esperança. inventamos uma técnica que trata desse problema: possível. Temos de lutar por ele, sim. A vida é procu-
Meu nome continua indicado, pode ser o ano que os participantes criam telas, que são representa- rar cada vez mais. E se um dia alcançarmos o nosso
vem. Mas eu também não tenho a menor esperan- das por outros participantes na posição do corpo, sonho, então temos de sonhar mais alto ainda! Temos
ça. Nunca vou ganhar o Prêmio Nobel da Paz, meu na fisionomia, etc., que ficam na frente do outro de ser cidadãos e eu penso que ser cidadão não é
nome vai ficar lá rodando. Não é ruim não. e os protagonistas devem conversar em voz baixa viver em sociedade: é transformá-la!
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imagens
Sebastião Salgado

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Trabalhadores da Allana
Coffee Curing Works.
Karnataka, sul da India,
2003
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Uma mulher mal alimentada e desidratada
espera a sua vez no hospital em Gourma
Rharous. Mali, 1985

F
ilho de pecuaristas, Sebastião Salgado é o único filho homem entre sete irmãs. Mudou-se para São Paulo para
estudar economia na Universidade de São Paulo, tornando-se mestre em economia em 1968. Em Paris, passou
a estudar na Escola Nacional de Estatísticas Econômicas, onde obteve o doutorado em 1971. Passou a trabalhar
na África, para a Organização Internacional do Café, atividade a que se dedicou até 1973. De volta a Paris, começou a
trabalhar como repórter fotográfico free-lancer. Passou depois a trabalhar para agências de prestígio, como a Magnum
Photos, em 1979. De 1979 a 1994 dedicou-se a vários projetos, entre os quais a cobertura da guerra de Angola, o se-
questro de israelenses em Entebe e o atentado ao presidente Ronald Reagan, dos EUA. Viajando pela América do Sul,
captou imagens que resultaram na exposição e no livro Outras Américas, em 1986. Ainda na década de 1980, trabalhou
15 meses com o grupo francês Médicos sem Fronteiras durante a seca na região do Sahel, na África. Na viagem, produziu
Sahel: O Homem em Pânico (1986), um documento sobre a dignidade e a perseverança de pessoas nas mais extremas
64 condições. Em 1993 dedicou-se a um projeto sobre a extinção do trabalho manual, em 26 países, do que resultou o
álbum Trabalhadores. Em seguida, produziu Terra: Luta dos Sem-Terra (1997), sobre a luta pela terra no Brasil, e Êxodos
Revista Direitos Humanos

e Crianças (2000), retratando a vida de retirantes, refugiados e migrantes de 41 países. Sebastião Salgado fundou sua
própria agência, a Amazonas Images, em 1994, e realizou diversas viagens para documentar populações marginalizadas
de 41 países. Atualmente, dedica-se ao projeto Gênesis, no qual busca fotografar o “planeta original”, lugares do mundo
intocados pela destruição.
Criança trabalhando na
plantação de chá Mata,
Ruanda, 1991
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Revista Direitos Humanos
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Colheita de chá numa plantação perto de Cyangugu, Ruanda,1991

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Orfanato ligado ao hospital no campo de refugiados Número Um de Kibumba. Goma, Zaire, 1994
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Uma jovem Marubo


na aldeia de Maronal.
Amazonas, Brasil.
1998

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Comunidade de Yuracruz.
Província de Imbabura.
Equador. 1998

Envoltos em cobertores para


se defender do vento frio
matinal, refugiados esperam
em frente do, campo de
Korem. Etiopia, 1984
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Revista Direitos Humanos
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Muitas vezes os locais


de abastecimento
de água ficam muito
longe dos campos
de refugiados. Goma,
Zaire. 1994

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Declaração Universal dos Direitos Humanos
Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III)
da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948
Preâmbulo Artigo X Artigo XXII
Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segu-
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, rança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação
todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e ina- para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Esta-
lienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, acusação criminal contra ele. do, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.
humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência Artigo XI
da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens 1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser Artigo XXIII
gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada 1.Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de em-
a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido prego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra
aspiração do homem comum, asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. o desemprego.
Considerando essencial que os direitos humanos sejam prote- 2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão 2. Toda pessoa, sem qualquer distinção, tem direito a igual re-
gidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou muneração por igual trabalho.
como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão, internacional. Tampouco será imposta pena mais forte do que aquela 3. Toda pessoa que trabalhe tem direito a uma remuneração
Considerando essencial promover o desenvolvimento de rela- que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso. justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma
ções amistosas entre as nações, existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescen-
Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Artigo XII tarão, se necessário, outros meios de proteção social.
Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na 4. Toda pessoa tem direito a organizar sindicatos e neles ingres-
valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sar para proteção de seus interesses.
mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra
condições de vida em uma liberdade mais ampla, tais interferências ou ataques. Artigo XXIV
Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a Toda pessoa tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação
desenvolver, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito uni- Artigo XIII razoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas.
versal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observân- 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de locomoção e residên-
cia desses direitos e liberdades, cia dentro das fronteiras de cada Estado. Artigo XXV
Considerando que uma compreensão comum desses direitos e 2. Toda pessoa tem o direito de deixar qualquer país, inclusive 1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de asse-
liberdades é da mis alta importância para o pleno cumprimento desse o próprio, e a este regressar. gurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação,
compromisso, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indis-
Artigo XIV pensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença,
A Assembléia Geral proclama 1.Toda pessoa, vítima de perseguição, tem o direito de procurar invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de sub-
A presente Declaração Universal dos Diretos Humanos como e de gozar asilo em outros países. sistência fora de seu controle.
o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, 2. Este direito não pode ser invocado em caso de perseguição 2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistên-
com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, ten- legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos cia especiais. Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimô-
do sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e contrários aos propósitos e princípios das Nações Unidas. nio, gozarão da mesma proteção social.
da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e,
pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacio- Artigo XV Artigo XXVI
nal, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância univer- 1. Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade. 1. Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita,
sais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, 2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução ele-
quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição. nem do direito de mudar de nacionalidade. mentar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessí-
vel a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.
Artigo I Artigo XVI 2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvi-
Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e di- 1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer retrição mento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos
reitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matri- direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução pro-
umas às outras com espírito de fraternidade. mônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao moverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações
casamento, sua duração e sua dissolução. e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações
Artigo II 2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno con- Unidas em prol da manutenção da paz.
Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liber- sentimento dos nubentes. 3. Os pais têm prioridade de direito n escolha do gênero de
dades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer instrução que será ministrada a seus filhos.
espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou Artigo XVII
de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou 1. Toda pessoa tem direito à propriedade, só ou em sociedade Artigo XXVII
qualquer outra condição. com outros. 1. Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida
2.Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade. cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo
Artigo III científico e de seus benefícios.
Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Artigo XVIII 2. Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais
Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consci- e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou
Artigo IV ência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião artística da qual seja autor.
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão, a escravidão ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo
e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas. ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coleti- Artigo XVIII
vamente, em público ou em particular. Toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional em
Artigo V que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração
Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo Artigo XIX possam ser plenamente realizados.
cruel, desumano ou degradante. Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este
direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de pro- Artigo XXIV
Artigo VI curar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e 1. Toda pessoa tem deveres para com a comunidade, em que o
Toda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhe- independentemente de fronteiras. livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível.
cida como pessoa perante a lei. 2. No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará
Artigo XX sujeita apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o
Artigo VII 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de reunião e associação fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liber-
Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer dis- pacíficas. dades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem
tinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção con- 2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação. pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.
tra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra 3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma,
qualquer incitamento a tal discriminação. Artigo XXI ser exercidos contrariamente aos propósitos e princípios das Nações
1. Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de sue país, Unidas.
Artigo VIII diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos.
Toda pessoa tem direito a receber dos tributos nacionais com- 2. Toda pessoa tem igual direito de acesso ao serviço público Artigo XXX
petentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos funda- do seu país. Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser inter-
mentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei. 3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; pretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pes-
esta vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por soa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato
Artigo IX sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que as- destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui
Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado. segure a liberdade de voto. estabelecidos.
Revista Direitos Humanos

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