Está en la página 1de 146

INTRODUÇÃO À TEORIA DO

ENUNCIADO CONCRETO
DO CÍRCULO BAKHTIN/VOLOCHINOV/ MEDVEDEV
USP – UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Reitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi
Vice-Reitor: Prof. Dr. Hélio Nogueira da Cruz

FFLCH – FACULDADE DE FILOSOFIA,


LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
Diretor: Prof. Dr. Francis Henrik Aubert
Vice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz

FFLCH/USP
CONSELHO EDITORIAL ASSESSOR DA HUMANITAS
Presidente: Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento (Filosofia)
Membros: Profª. Drª. Lourdes Sola (Ciências Sociais)
Prof. Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura (Filosofia)
Profª. Drª. Sueli Angelo Furlan (Geografia)
Prof. Dr. Elias Thomé Saliba (História)
Profª. Drª. Beth Brait (Letras)

DEPARTAMENTO DE LINGÜÍSTICA
Chefe: Profª. Drª. Diana Luz Pessoa de Barros
Suplente: Profª. Drª. Esmeralda Vailati Negrão

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA


Coordenadora: Profª. Drª. Margarida Maria Taddoni Petter
Vice-Coordenadora: Profª. Drª. Ana Lúcia de Paula Müller

Vendas
LIVRARIA HUMANITAS-DISCURSO
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 – Cid. Universitária
05508-900 – São Paulo – SP – Brasil
Tel: 3091-3728 / 3091-3796

HUMANITAS – DISTRIBUIÇÃO
Rua do Lago, 717 – Cid. Universitária
05508-900 – São Paulo – SP – Brasil
Telefax: 3091-4589
e-mail: pubfflch@edu.usp. br
http://www.fflch.usp. br/humanitas

Humanitas FFLCH/USP – abril 2002


ISBN 85-7506-060-0

INTRODUÇÃO À TEORIA DO
ENUNCIADO CONCRETO
DO CÍRCULO BAKHTIN/VOLOCHINOV/ MEDVEDEV

2ª edição

Geraldo Tadeu Souza

2002

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO • FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


Copyright 2002 da Humanitas FFLCH/USP

É proibida a reprodução parcial ou integral,


sem autorização prévia dos detentores do copyright

Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH/USP


Ficha catalográfica: Márcia Elisa Garcia de Grandi CRB 3608

S715 Souza, Geraldo Tadeu


Introdução à teoria do enunciado concreto do círculo Bakhtin/
Volochinov/Medvedev / Geraldo Tadeu Souza.- 2. ed. - São Paulo :
Humanitas/FFLCH/USP, 2002.
149 p.

Originalmente apresentado como dissertação (mestrado) do


autor – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP.

ISBN 85-7506-060-0

1. Lingüística 2. Metalingüística 3. Bakhtin, Mikhail


Mikhailovich 4. Enunciados 5. Gêneros narrativos I. Título

CDD 410
CDD 320.1

HUMANITAS FFLCH/USP
e-mail: editflch@edu.usp. br
Telefax.: 3091-4593

Editor Responsável
Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento
Coordenação editorial e capa
Mª. Helena G. Rodrigues – MTb n. 28.840
Projeto Gráfico e Diagramação
Selma M. Consoli Jacintho – MTb n. 28.839
Revisão
do autor
A meus pais
A Vera
A Kim e ao Caíque
Agradecimentos

Este trabalho foi apresentado como dissertação de mes-


trado ao Departamento de Lingüística da Faculdade de Filoso-
fia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,
em abril de 1997.
Gostaríamos de agradecer aos Professores Doutores Irene
Machado e José Luiz Fiorin pelas contribuições e apreciação crí-
tica enquanto membros da banca examinadora e, ainda, ao Prof.
Dr. Boris Schnaiderman pela ajuda no cotejo com a edição russa
de algumas obras do Círculo e pela prosa sempre enriquecedora.
Agradecemos também à CAPES (Coordenação de Aperfei-
çoamento de Pessoal de Nível Superior) pela bolsa de estudos que
nos possibilitou executar esta dissertação e, especialmente, à Prof.
Dra. Elisabeth Brait que nos iniciou e orientou nas trilhas do
pensamento do Círculo.
Sumário

Prefácio ------------------------------------------------------------------- 11
Introdução -------------------------------------------------------- 13

I - O Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev ----------------- 19

1. Os textos disputados ------------------------------------- 24

2. O percurso teórico ---------------------------------------- 28

3. O problema da tradução --------------------------------- 42

II - A Linguagem -------------------------------------------------------- 55

1. O subjetivismo idealista, o objetivismo abstrato


e o enunciado concreto ----------------------------------- 58

2. A frase e o enunciado concreto -------------------------- 68

3. O enunciado concreto como base material da


Metalingüística: o dialogismo ---------------------------- 73

III - A Teoria do Enunciado Concreto -------------------------- 85

1. Gêneros do Discurso ------------------------------------- 97

2. Tema ------------------------------------------------------ 108

3. Expressividade ------------------------------------------ 116

4. Estilos ---------------------------------------------------- 123

5. Entonações ---------------------------------------------- 129


Considerações Finais ------------------------------------------ 137

Bibliografia do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev --- 143

Bibliografia Geral ----------------------------------------------- 147


Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

Prefácio
Em meio às vozes que assediam Bakhtin, uma pes-
quisa teórica pertinente e original
Beth Brait
(USP/PUC-SP)

A obra do pensador russo Mikhail Bakhtin tem sido, desde


há alguns anos, objeto da atenção em várias áreas do conheci-
mento. Esse interesse, gradativo e multifacetado, advém da ri-
queza de uma concepção de linguagem que pouco a pouco deixa
ver sua amplitude e suas aberturas para o contato com as infini-
tas nervuras que constituem as relações homem-mundo. E é nesse
conjunto que é preciso localizar a importância do trabalho de
Geraldo Tadeu Souza, inicialmente uma tese de mestrado que
agora, merecidamente, se transforma em livro, um objeto cultu-
ral cujas formas de circulação possibilitam uma repercussão mais
compatível com a profundidade da pesquisa.
É preciso, antes de falar do trabalho em si, e aí todos sabem
que o prefácio é uma pretensiosa antecipação do que está muito
melhor no texto, dizer que o interesse de Geraldo por Bakhtin e por
seu círculo começa bem antes do mestrado e está tendo continui-
dade no doutorado, o que pode dimensionar a motivação para esse
olhar com lupa sobre uma obra que, na maioria das vezes, serve,
especialmente num mestrado, como a simples pretexto para leitu-
ras de diversos objetos. Já na graduação, que tendo sido feita em
Lingüística possibilitou a passagem por várias teorias da lingua-
gem, por várias tendências dos estudos lingüísticos, o então estu-
dante optou por Bakhtin e por um maior conhecimento de sua
obra e das intrigantes assinaturas que aí surgiam.
No mestrado, integrado ao projeto maior “História dos Es-
tudos Enunciativos no Brasil: o papel de Bakhtin e Benveniste”
(CNPq/CAPES-COFECUB), por mim coordenado, passa a desen-

11
Geraldo Tadeu Souza

volver pesquisas cujo objetivo principal era discutir a obra do


Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev a partir do núcleo comum
que une esses teóricos russos em torno de uma mesma concep-
ção de linguagem e do seu produto: a obra verbal. De imediato a
tarefa mostrou as suas dificuldades, reveladas na questão das
traduções e da maneira como chegaram ao Ocidente e especial-
mente ao Brasil, no enigma da autoria, e mesmo na especifici-
dade conceitual apresentada por termos como sentido, significa-
ção, enunciado, enunciação, metalingüística ou translingüística.
A cada problema, Geraldo incluía, como bom pesquisador, um
item a seu trabalho, cada vez mais convencido de que realmente
um olhar com lupa se fazia necessário para uma melhor com-
preensão da concepção de linguagem, das propostas e das pers-
pectivas de análise abertas por Bakhtin e por seu círculo.
E é a partir desse mergulho reflexivo que Geraldo chega à
hipótese, central em sua pesquisa, de que o núcleo bakhtiniano se
empenha na elaboração de uma “Teoria do Enunciado Concreto e
de sua arquitetônica conceitual, a qual funciona como uma engre-
nagem dinâmica onde interagem, entre outros, os conceitos de
gêneros do discurso, tema, expressividade, estilo e entonação”. Para
atingir seu objetivo, o trabalho, em meio a muitos aspectos polêmi-
cos e difíceis de serem elucidados, discute a questão da autoria,
considerando a individualidade intelectual de cada um dos mem-
bros, persegue a trajetória teórica do Círculo, levanta alguns pro-
blemas de tradução, incluindo as formas de participação de dife-
rentes pontos de vista científico com os quais o círculo vai dialogar,
como é o caso da Lingüística, do Formalismo, da Estilística, da
Fenomenologia, da História, do Marxismo e da Estética.
Como conseqüência dessa perseguição teórica, desse verda-
deiro trabalho de detetive que tanto pode colaborar para a discus-
são dos trabalhos assinados por Bakhtin e por outros componen-
tes do círculo, a reflexão sobre a metalingüística ou translingüística
aparece como uma espécie de análise dialógica do discurso, sem
que essa expressão tenha sido mencionada, nem pelos pensado-
res estudados e nem por Geraldo, para caracterizar a natureza da
investigação e a construção dos princípios conceituais que hoje,
das mais diferentes maneiras, tem penetrado os estudos sobre a
linguagem.
Beth Brait

12
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

Introdução

“Quando estudamos o homem, buscamos e encontra-


mos o signo em toda parte e devemos tentar compreen-
der a sua significação” (23, 341).

“a scientific work never ends: one work takes up where


the others leaves off. Science is an endless unity. It cannot
be broken down into a series of finished and self-sufficient
works. The same is true of others spheres of ideology”
(7, 129-130).

“Life can be consciously comprehended only in concrete


answerability. A philosophy of life can be only a moral
philosophy. Life can be consciously comprehended only as
an ongoing event, and not as Being qua a given” (2, 56)

Um estudo aprofundado das obras do Círculo Bakhtin/


Volochinov/Medvedev nos leva ao encontro de uma série de trans-
formações sociais, científicas e culturais que tiveram curso na
Rússia no período em que elas foram elaboradas – anos 20 aos
anos 70 deste século. Se tomarmos algumas observações cons-
tantes na extensa obra desse Círculo e concordarmos com elas,
perceberemos que “cada época e cada grupo social têm seu re-
pertório de formas de discurso na comunicação sócio-ideológica”
(10, 43), e nosso intuito aqui, é de tentar observar o repertório de
discursos científicos com os quais o Círculo dialogava.
Nosso objetivo é tentar descobrir como um grupo de inte-
lectuais, cujo líder Mikhail Bakhtin foi exilado durante o expur-

13
Geraldo Tadeu Souza

go de 1928, promovido por Stalin, conseguiu manter viva a in-


vestigação da heterogeneidade discursiva numa época de
homogeneidade1 , e penetrando nesse sistema como um vírus,
metamorfoseando-se em caráter marxista, construir uma obra
de tal qualidade que, ainda hoje, seus parâmetros teóricos per-
manecem novos.
Para desenvolver essa dissertação tivemos que escolher
um tema, dentre muitos, para perseguir o fio que leva a uma
reflexão em torno do todo concreto da obra do círculo. Nos deti-
vemos, então, no percurso de elaboração de uma Teoria do Enun-
ciado Concreto. Não devemos esquecer que a base de investiga-
ção do círculo é o pensamento concreto. Nesse sentido, o enun-
ciado que será a base deste texto é o enunciado concreto, dialógico
– interior e exterior, cotidiano, artístico, o enunciado enquanto
um acontecimento na existência, um acontecimento social.
Essa investigação dialógica nos incita a pensar o todo do
objeto de análise como um objeto vivo. Então, a sua natureza,
além de dialógica, deve ser tridimensional obedecendo aos se-
guintes aspectos que compreendem um todo orgânico:

1) o micro-diálogo, ou seja, o diálogo interior a cada uma


das obras do Círculo;
2) o diálogo exterior, o diálogo com o outro composicio-
nalmente expresso e que é inseparável do diálogo inte-
rior;
3) o grande diálogo das obras como um todo.

Essa metodologia de análise vai nos ajudar a acompanhar


as características imanentes à cada obra; as relações que unem
uma obra a outra, e, finalmente, a compreender as relações que,

1 Nos referimos aqui ao período posterior às manifestações concretas


da heterogeneidade discursiva que dava o tom ao período revolucio-
nário até o início dos expurgos stalinistas de 1928.

14
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

existentes entre as obras, não foram objetificadas, e que se tor-


naram um dos fortes argumentos para atribuir o todo das obras,
ou como preferem outros, todas as obras, a Mikhail Bakhtin.
Mas a intenção de elaborar uma investigação concreta dos
fatos da linguagem, ou seja, da vida verbal, traz no seu bojo a
crítica a outras construções científicas, que se norteiam pelo
pensamento abstrato ou idealista na análise dos fatos da lin-
guagem como: a lingüística, a psicologia, a estética e a estilística.
Essas críticas têm uma característica importante: não retirar a
legitimidade dessas ciências no interior de um pensamento abs-
trato ou idealista, mas de complementá-las com uma aborda-
gem de outra natureza – fenomenológica, histórica, sociológica,
dialógica – no âmago da realização concreta da palavra, do sig-
no, do discurso, enfim, do enunciado concreto.
A abordagem dos fatos concretos da linguagem implica
uma série de dificuldades, visto que é preciso um mínimo de
estabilidade para que o investigador encontre uma base para
apoiar sua interpretação desses fatos. Por outro lado, nós, en-
quanto participantes de uma comunidade discursiva determi-
nada, desenvolvemos uma capacidade de compreender os enun-
ciados dos outros membros dessa comunidade, e sabemos como
respondê-los, ou seja, entendemos, em um certo nível, o funci-
onamento dinâmico dessa comunidade e nos comunicamos com
ela, não passivamente, mas como um membro ativo.
O que as obras do Círculo nos mostram é o esforço de des-
cobrir qual é o papel da linguagem em cada acontecimento da
existência humana: na vida cotidiana, na arte, na ciência, na
religião de uma época determinada. Essa compreensão sincrônica
da linguagem nos permite identificar numa série diacrônica, pelo
conhecimento de fatos anteriores dessa sociedade, a evolução
dessa sociedade, do ponto de vista econômico à realidade lingüís-
tica, das relações sociais aos gêneros do discurso.
Embora a maioria das obras tratem do enunciado literário,
os enunciados concretos que servem como base para as investi-
gações do Círculo, que compõem os gêneros primários, são os

15
Geraldo Tadeu Souza

enunciados cotidianos, tomadas as ressalvas feitas por Volochinov


no ensaio “A estrutura do Enunciado”2 devido a recorrência ao
enunciado cotidiano em sua representação literária: “o procedi-
mento que consiste em analisar um enunciado como se ele fosse
um enunciado cotidiano e atestado na história é, evidentemente,
perigoso de um ponto de vista científico, e ele não pode ser utili-
zado senão excepcionalmente. Mas na ausência de um registro
no gramofone, que nos forneça um documento autêntico sobre
as conversas de personagens vivos, se deve recorrer ao material
literário, levando em conta, naturalmente sua natureza específi-
ca” (16, 309). Atualmente, esse problema pode ser contornado
com a utilização de materiais gravados como os do projeto NURC/
USP por exemplo, ou numa perspectiva mais contemporânea, os
enunciados cotidianos virtuais, desenvolvidos concretamente por
intermédio de INTERNET, telefones, etc.
Na hora de escrever a monografia que trata da obra desses
excepcionais teóricos russos, alguma coisa ainda nos impede de
iniciar a tarefa. Buscamos maiores referências, tornamos a ler
algumas coisas, e mesmo assim, não nos damos por satisfeitos.
Muito vai ficar de fora, pois o trabalho de pesquisador não encon-
tra, ainda, um eco estável na escrita, não assumiu um gênero,
um tom, um estilo, enfim, um enunciado concreto.
A hora da criatividade, de remexer o “dado” e transformá-lo
no criado, no ato fenomenológico, único, que tornará forma a
seguir, reflete uma preocupação: levantar questões para discus-
são da obra, primeiro no interior do Círculo (de uma maneira um
tanto monológica, mas que se justifica para tentar perceber no
seu mais alto grau a dimensão das idéias desses teóricos), e de-
pois, deixar a impressão dialógica que modifica, transforma e
retransmite idéias que, nos anos 20 deste século, principiaram
no interior da União Soviética, e que se renovam agora na “grande
temporalidade” onde nada está morto.

2 Ou “A construção do Enunciado” [Constrúctzia viskázivania]


(33, 19).

16
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

Nossa proposta, então, é de discutir no interior do todo da


obra do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev as seguintes
abordagens:

1) a polêmica em torno da autoria das obras;


2) os pontos de vista que eles utilizam para investigar o
enunciado concreto;
3) quais os conceitos que permitem uma interpretação do
enunciado concreto.

A princípio, discutiremos o “Círculo Bakhtin/Volochinov/


Medvedev” e alguns pontos de vista de estudiosos franceses, ame-
ricanos e brasileiros sobre esse tema, bem como os problemas de
autoria dos textos, o percurso teórico e os problemas de tradu-
ção. Na segunda parte, abordaremos o problema da linguagem e
algumas dificuldades conceituais em relação a esse estudo. E por
fim, na terceira parte, trataremos da Teoria do Enunciado Con-
creto que se articula, na obra desses teóricos, em torno dos con-
ceitos Gêneros do Discurso, Tema, Expressividade, Estilos e
Entonações, numa perspectiva ética, fenomenológica, histórica,
sociológica e dialógica.
Não temos o intuito de apresentar aqui uma investigação
aprofundada dos fatos que encontramos, e sim, dar uma intro-
dução ao pensamento do Círculo nos limites de uma Teoria do
Enunciado Concreto. Acreditamos ser essa uma forma de cha-
mar a atenção para o todo da obra, ao invés de permanecer em
investigações onde essa mesma obra tem um valor periférico –
seja no estruturalismo francês ou na Análise do discurso de li-
nha francesa, com o aproveitamento legítimo de uma ou outra
obra do círculo. Nosso intuito é mesmo de provocar discussões,
de dialogar, de polemizar, e se conseguirmos esse feito, essa
monografia terá cumprido sua finalidade.

17
Geraldo Tadeu Souza

18
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

19
I. O Círculo Bakhtin/Volochinov/
Medvedev

“Nosso estudo poderá ser classificado de filosófico so-


bretudo por razões negativas. Na verdade, não se trata
de uma análise lingüística, nem filológica, nem literária,
ou de alguma outra especialização. No tocante às razões
positivas, são as seguintes: nossa investigação se situa
nas zonas limítrofes, nas fronteiras de todas as discipli-
nas mencionadas, em sua junção, em seu cruzamento”

(23,329).

O encontro de Bakhtin, Volochinov e Medvedev ocorreu,


provavelmente, na Universidade de Petrogrado, ou São Peters-
burgo3 . Nessa universidade, Bakhtin estudou no Departamento
de Letras Clássicas, no período 1914-1918, e Volochinov e Med-
vedev se formaram na Faculdade de Direito.
Era muito comum na Rússia, nessa época, a cultura dos
Círculos. Bakhtin e Volochinov participaram do Círculo de Nevel
(1918-1920), e Medvedev se juntou ao grupo no Círculo de Vitebsk
(1921-1924), onde foi ser reitor da Universidade Proletária, de-
pois de ter sido voluntário do Exército Russo na I Guerra Mun-
dial. São dessa época as publicações da fase fenomenológica de
Bakhtin – “Arte e Responsabilidade” (1919) e “Sobre a Filosofia

3
A cidade de São Petersburgo teve seu nome alterado durante a
Revolução Russa para Petrogrado, e posteriormente para Leningrado.
Hoje, ela voltou a ser chamada pelo nome anterior a revolução.
Geraldo Tadeu Souza

do Ato” (1919-1921)- os quais, numa abordagem ético-fenome-


nológica, tratam das relações da vida cotidiana e da vida da arte
na unidade da pessoa responsável por seus atos.
Em 1922, Medvedev retorna a Petrogrado para trabalhar
na Editora do Estado. Mais ou menos no mesmo período,
Volochinov volta a Universidade de Petrogrado para se graduar
na Faculdade de Filologia. Bakhtin consegue ir para Petrogrado,
em 1924, após receber uma pensão do estado devido às compli-
cações de sua saúde, não sem antes terminar os ensaios “O
autor e o herói” (1922-1924) e “O Problema do conteúdo, do
Material e da Forma na Criação Literária” (1924).
É em Leningrado, ou no Círculo de Leningrado (1924-1929)
conforme aponta a biografia de Michael Holquist e Katerina Clark,
que o Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev publica a maioria
de seus livros e ensaios. E são, também, essas publicações que
se tornaram, posteriormente, alvo da polêmica em torno da au-
toria.
Algumas observações sobre Volochinov nessa biografia,
levam-nos a duvidar de que ele não seja o autor dos ensaios e
obras publicados com seu nome. Durante esse período do Cír-
culo de Leningrado, ele se graduou na Faculdade de Filologia da
Universidade de Petrogrado, em 1927, e desenvolveu trabalhos
de metodologia dos estudos literários no Instituto de História
Comparada de Literatura e Línguas do Oeste e do Leste. Esse
Instituto “representava uma “aproximação marxista nova” aos
estudos lingüísticos, que contestava outras formas de aborda-
gem como a Formalista” (34, 110). Há, ainda, a informação de
que Volochinov se tornou marxista no mesmo ano, embora nunca
tenha sido membro do partido comunista, e que o tema de sua
dissertação tenha sido, provavelmente, o problema do discurso
citado4 .

4
O problema do discurso citado – enunciado de outrem – é um dos
eixos fundamentais na articulação da Teoria do Enunciado Concreto
desenvolvida pelo Círculo.

20
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

As obras assinadas por Volochinov e Medvedev nesse pe-


ríodo caracterizam-se, realmente, por uma aproximação marxis-
ta nova dos estudos da linguagem, acrescentando aos estudos
histórico-fenomenológicos de Bakhtin – se pensarmos no todo da
obra do Círculo – uma abordagem sociológica – o método socioló-
gico- e ideológica – o marxismo- e também um aprofundamento
das críticas à psicologia, à lingüística e ao formalismo, como tam-
bém, à aplicação da metodologia dessas disciplinas aos estudos
literários.
É no interior desse projeto que podemos compreender os
livros assinados por Volochinov – Freudianism. A critical Sketch
(1927) e Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929), bem como o
livro assinado por Medvedev – The Formal Method in Literary
Scholarship. A Critical Introduction to Sociological Poetics (1928),
sem nos esquecermos de que essa abordagem já se prenunciava
no ensaio “Le discours dans la vie et le discours dans la poésie”
(1926), o qual também era assinado por Volochinov. Todos esses
textos, além dos outros ensaios de Volochinov – “Beyond the So-
cial” (1925) e “The Latest Trends in Linguistic Thought in the
West” (1928) – formam o todo dos textos cuja autoria é atribuída
a Bakhtin, embora nunca tenha havido uma confirmação de sua
parte quando indagado sobre esse problema5 .
Essa aplicação do método sociológico, no seu viés marxis-
ta, presente nas obras de Volochinov e Medvedev, não aparece na
obra de Bakhtin, caracterizada em interação com o marxismo.
Ele reconhece a importância do método sociológico e sua aplica-
ção à análise da obra literária – e é o que ele faz em Problemas da
Obra de Dostoievski (1929) e em “Rabelais na História do Realis-
mo” (1940), mas não se encontram nessas obras, com sua assi-
natura, referências ao marxismo. Talvez tenha sido esse um dos
motivos de sua prisão em 1929 e seu exílio para Kustanai em
1930, por quatro anos. E também, o fato de, ao final do exílio, ele

5
No Prefácio de Marxismo e Filosofia da Linguagem, Jakobson inclui
o ensaio de 1930 – “A estrutura do enunciado” – entre as obras em
disputa (28, 9).

21
Geraldo Tadeu Souza

ter que pedir permissão e obter autorização para qualquer movi-


mentação no interior do país, no que contava com a ajuda de
Medvedev para interceder em seu favor junto às autoridades.
Durante o período de exílio de Bakhtin, Volochinov de-
senvolveu carreira acadêmica como professor do Instituto Peda-
gógico Herzen, e como pesquisador senior do Instituto Estatal
para Dialetos Culturais. Com o agravamento da tuberculose,
que o acompanhava desde 1914, ele veio a falecer em 1936.
Medvedev se tornou professor titular do Instituto Históri-
co e Filológico de Leningrado, do Instituto Pedagógico Herzen –
o mesmo onde Volochinov lecionou –, e da Academia Militar
Tolmachev, onde foi chefe do Departamento de Literatura. Em
1937, ele foi preso durante um expurgo, provavelmente, na Fa-
culdade da Academia Militar e veio a falecer em 1941 em local
desconhecido (34, 264-265).
Bakhtin lecionou, a partir de 1936, no Instituto Pedagógi-
co da Mordóvia, em Saransk, no Departamento de Literatura
Mundial, onde era o único professor. Apesar do seu passado
político, Bakhtin conseguiu fazer conferências sobre Shakespeare
na Casa da Literatura, em Moscou (1940), e sobre “O Discurso
no Romance” (1940)6 e “O romance como gênero literário (1941)7
no Departamento de Teoria Literária e Estética do Instituto Gorki
da Literatura Mundial, também em Moscou (34, 262).
Em setembro de 1941, quando já era o único sobrevivente
do Círculo a que se refere nossa pesquisa, Bakhtin começou a
lecionar alemão em Savelovo, sendo autorizado a lecionar russo,
a partir de setembro de 1945. É nesse período – II Guerra Mun-

6
O ensaio sobre esse tema, com o mesmo nome, tinha sido escrito por
Bakhtin entre 1934 e 1935 (17).
7
Segundo a biografia de Holquist e Clark, esta conferência foi desdo-
brada em dois artigos: “Da Pré-história do discurso romanesco” (1940)
e “Epos e Romance (Sobre a metodologia do estudo do romance)”
(1941), que estão incluídos em Questões de Literatura e de Estética. A
teoria do Romance (1993) (20).

22
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

dial – que ele escreve, entre outros ensaios, a sua dissertação de


doutorado para o Instituto Gorki de Literatura, com o título
“Rabelais na História do Realismo”8. Holquist e Clark dizem:
“Bakhtin nunca foi, formalmente, um estudante graduado pelo
instituto, mas ele se beneficiou do direito que tinha de apresentar
um trabalho para a pós-graduação, mesmo sem ter feito os estu-
dos formais de graduação” (34, 263). Esse fato talvez tenha leva-
do a banca examinadora a conceder-lhe o título de “candidato a
doutor” (34, 324) quando da apresentação da referida disserta-
ção.
Bakhtin retorna a suas funções de professor do Instituto
Pedagógico da Mordóvia, em Sarank, no departamento de Litera-
tura Geral, aí permanecendo de 1945 a 1961, quando se aposen-
ta por problemas de saúde. É dessa época o ensaio “Os gêneros
do Discurso” (1952-1953).
A partir de 1960, um grupo de estudantes do Instituto Gorki,
que tinham redescoberto o livro de Dostoievski e a dissertação
sobre Rabelais nos arquivos deste instituto, começa a fazer es-
forços para sua republicação. Ao descobrirem que Bakhtin ainda
vivia, entram em contato com ele e discutem a possibilidade de
republicação dessas obras. Bakhtin inicia, então, uma revisão do
livro sobre Dostoievski entre 1961 e 1962, o qual é publicado
com sucesso, em 1963, como Problemas da Poética de Dostoiévski.
O mesmo ocorre com a sua dissertação sobre Rabelais, publica-
da em 1965 com o título A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais.
Bakthin dedica seus últimos anos à revisão de seus textos
que acabam sendo publicados postumamente em Questões de
Literatura e de Estética. A teoria do Romance (1975) e Estética da
Criação Verbal (1979), vindo a falecer em 07 de março de 1975
após sérias complicações de seu estado de saúde.

8
Uma versão revisada dessa dissertação foi publicada em 1965, com o
título A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto
de François Rabelais (19)

23
Geraldo Tadeu Souza

1. Os textos disputados
Há um assunto que permanece obscuro na história das
obras do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev: a questão da
autoria de algumas das obras. Intricados caminhos, que mais
parecem uma empreitada para Sherlock Holmes, levam à ques-
tão do “inacabamento”, deixando o “diálogo inconcluso” pela
impossibilidade mesma da assinatura do autor para dar fim à
polêmica.
De um lado pesquisadores como Michael Holquist e Katerina
Clark, que em sua biografia de Bakhtin – Mikhail Bakhtin (1984)
– assumem que todas os textos disputados são de Bakhtin. Eles
apresentam “provas” que confirmam essa hipótese, chegando a
dizer que não podem revelar certas fontes. Por outro lado pesqui-
sadores como I. R. Titunik, Gary S. Morson e Caryl Emerson, que
questionam todas as argumentações de Holquist e Clark, referin-
do-se à biografia deles como uma espécie de “hagiografia” e não
uma simples “biografia”, considerando que as obras “disputa-
das” são de Volochinov e Medvedev, conforme publicadas na pri-
meira edição das obras e artigos em disputa.
Assim, por exemplo, Marxismo e Filosofia da Linguagem é
atribuída apenas a Volochinov no original russo (8) e na versão
inglesa (11), e nas edições francesa (9) e brasileira (10) apare-
cem com as duas assinaturas – Bakhtin (Volochinov). No prefá-
cio dessa obra, Roman Jakobson diz: “Acabou-se descobrindo
que o livro em questão e várias outras obras publicadas no final
dos anos vinte e começo dos anos trinta com o nome de
Volochinov – como, por exemplo, um volume sobre a doutrina
do freudismo (1927)9 e alguns ensaios sobre a linguagem na
vida e na poesia, assim como sobre a estrutura do enunciado10

9
Ver Volosinov, V. N. (1927) Freudianism. A Critical Sketch (6).
10
Estes ensaios estão publicados em Todorov, T. Mikhaïl Bakhtine. Le
principe dialogique. Suivi de écrits du cercle de Bakhtine: “Le discours
dans la vie e le discours dans la poésie” (5, 181-215); e “La structure
de l’énoncé” (16, 287-316) com a assinatura de Volochinov.

24
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

– foram na verdade, escritos por Bakhtin (1895-1975) […] Ao


que parece, Bakhtin recusava-se a fazer concessões à fraseologia
da época e certos dogmas impostos aos autores” (28,9)11 .
Na introdução do mesmo livro, Marina Yaguello trata essa
questão como fonte de um desejo de Volochinov e Medvedev,
discípulos de Bakhtin, em ajudá-lo, pois devido à oesteomielite,
ele estava impossibilitado de trabalhar regularmente (29,11)12 .
Valendo-se de argumentos do professor V.V. Ivánov, Yaguelo
divulga dois motivos pelos quais Bakhtin aceitara a publicação
de suas obras sob o nome de seus discípulos: “em primeiro lu-
gar, Bakhtin teria recusado as modificações impostas pelo edi-
tor; de caráter intransigente, ele teria preferido não publicar do
que mudar uma vírgula; Volochínov e Medviédiev ter-se-iam,
então, proposto a endossar as modificações. A outra ordem de
motivos seria mais pessoal e ligada ao caráter de Bakhtin, ao
seu gosto pela máscara e pelo desdobramento e também, pare-
ce, à sua profunda modéstia científica” (29,12). De qualquer
maneira, “é difícil afirmar com exatidão quais as partes do texto
que se devem a Volochínov. Sempre segundo o professor Ivánov,
que deve a informação ao próprio Bakhtin, o título e certas par-
tes do texto ligadas à escolha deste título são de Volochínov”
(29,13).
Vejamos como alguns pesquisadores brasileiros têm se
posicionado sobre essa questão polêmica. O professor Boris
Schnaiderman conta que em sua viagem a Rússia, em 1972, teve
oportunidade de visitar Bakhtin, acompanhado do semioticista
russo V. V. Ivanov – o mesmo citado por Jakobson e Yaguello.
Após esse encontro, Ivanov transmitiu a ele “com muita convic-
ção, a versão de que vários livros assinados por membros do

11
Jakobson não faz referência a obra The Formal Method in Literary
Scholarship que também é alvo de disputa. A edição americana a
atribui a Bakhtin e Medvedev (7).
12
Os dados constantes da biografia revelam o contrário, Bakhtin sempre,
apesar das condições políticas desfavoráveis, conseguiu continuar o
seu trabalho.

25
Geraldo Tadeu Souza

grupo de Bakhtin, seriam, na realidade, da autoria deste […] se-


gundo Ivanov, no período em que Bakhtin caiu em desgraça13 , os
livros assinados pelos seus amigos propiciaram-lhe alguns re-
cursos para a manutenção” (33, 10-11). Para o professor Boris,
“esta tese encontrou também alguns opositores. Em todo caso,
na minha opinião, torna-se difícil para nós outros, com a nossa
indigência bibliográfica, o nosso desconhecimento das circuns-
tâncias em que os fatos ocorreram, emitir opinião categórica so-
bre este assunto, por mais que simpatizemos com esta ou aquela
versão” (33,20).
Flavio R. Kothe (1977), em “A não-circularidade do Círculo
de Bakhtine”, critica em nota a atribuição de Marxismo e Filosofia
da Linguagem a Bakhtin na edição francesa. Segundo esse pes-
quisador, “mesmo que tenha havido uma forte influência de Bakh-
tine, há diferenças entre este e Volosinov, diferenças que seriam
incoerências caso a tese francesa prevalecesse” (27,19)14 .
Em “Bakhtin e a sabedoria” (1988), Luiz Roncari apresenta
a questão da autoria da seguinte maneira: “… creio que uma
consideração de princípio aqui também se faz necessária: é a da
relatividade da autoria individual na concepção dialógica de
Bakhtin. Ele mesmo não se preocupa muito em enclausurar en-
tre aspas todas suas citações […] Assume muitas delas, que de-
pois encontramos em outros autores, principalmente entre críti-
cos e teóricos russos da época, como “idéias do tempo”, idéias
difundidas e comentadas e que já não se ligam mais a fontes e
autores originais” (35,41).
Para Beth Brait (1994), “se restam pouquíssimas dúvidas
sobre a atribuição das obras a Bakhtin, especialmente por ele
ser o pensador do grupo, não há como negar que, mesmo a

13
Bakhtin foi preso, em 1929, por motivos religiosos, acusado de cons-
pirar contra a revolução (34, 141).
14
O pesquisador se orienta pela edição alemã – Marxismus und
Sprachphilosophie – que, assim como a edição inglesa – atribui esse
livro apenas a Volochinov (27,19)

26
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

circunstância biográfica especial faz retornar, e de forma bas-


tante concreta, a questão das vozes que estão disseminadas na
configuração de um discurso” (41,14). Irene Machado (1995) no
mapeamento das obras de Bakhtin revela: “além disso, há os
escritos polêmicos que, embora tenham sido publicados com os
nomes de V. N. Volochinov e P. N. Miedviediév, acredita-se se-
rem de Bakhtin” (43,26).
A polêmica em torno da autoria consegue um feito que
merece destaque: tornar-se um exemplo concreto da própria
teoria dialógica que envolve o todo da obra do Círculo Bakhtin/
Volochinov/Medvedev. Nesse sentido, é importante considerar
o que se chama hoje de Dialogismo como uma obra de várias
vozes – Mikhail Mikhailovich Bakhtin, Valentin Nikolaevich
Volochinov e Pavel Nikolaevich Medvedev, preservando a auto-
ria sob a qual cada obra foi originalmente publicada, ou mesmo
editá-las como fruto do diálogo desses três pensadores como
tem ocorrido com algumas dessas obras em edição francesa,
inglesa e brasileira.
Embora essa polêmica nunca tenha sido definitivamente
resolvida, não há dúvida do prestígio de Bakhtin, hoje, como um
dos mais importantes pensadores do século XX. É em torno de
sua personalidade que são publicadas biografias e estudos valio-
sos sobre a obra do Círculo, buscando ora um princípio dialógico
(Todorov), ora uma arquitetônica da respondibilidade ou respon-
sabilidade (Holquist), ou, ainda, uma criação da prosaica (Morson),
uma teoria da cultura, uma teoria da ideologia etc… enfim, um
número infinito de aproximações que só se tornam possíveis quan-
do estamos diante da obra dos grandes filósofos.
De qualquer forma, não podemos esquecer da interação
orgânica que une Bakhtin, Volochinov e Medvedev, que para nós
está articulada no interior de uma Teoria do Enunciado Concre-
to. Nesse sentido, não podemos apagar os nomes de Volochinov e
de Medvedev do todo da obra, sob o risco de estarmos sendo
precipitados. Em primeiro lugar, porque eles continuam a apare-
cer na capa das obras disputadas, nem que seja entre parênte-

27
Geraldo Tadeu Souza

ses, bem como em outros ensaios de Volochinov que, mesmo não


sendo alvo de disputa, conservam, em grande parte, como todos
os escritos do Círculo, uma relação dialógica com a evolução do
pensamento teórico do grupo e com suas propostas básicas. E
em segundo lugar, se formos coerentes com a teoria da lingua-
gem desenvolvida por esses três pensadores, devemos concordar
que o nosso próprio enunciado é um enunciado citado de ou-
trem, e a cada momento único em que criamos um enunciado,
uma obra, mesmo que repetindo as mesmas palavras do outro,
estamos assinando um ato responsável e renovando, não o prin-
cípio adâmico da autoria, mas a palavra do outro numa relação
dialógica de concordância e de evolução.

2. O percurso teórico
O projeto do Círculo encontra suas primeiras formulações
em Toward a Philosophy of the Act (1919-1921). Nesse ensaio,
Bakhtin investiga a natureza do ato ou da ação em sua realização
efetiva, concreta e apreciativa, por um ato consciente, na realida-
de única, concreta e irrepetível, ou seja, a compreensão do ato no
seu sentido completo. Essa perspectiva, ética e histórico-
fenomenológica, se opõe à divisão entre duas correntes de pensa-
mento: a primeira – pensamento abstrato – que propõe uma in-
vestigação do sentido objetivo, e a segunda – pensamento idealis-
ta – que investiga o processo subjetivo que engendra um ato con-
creto.
A interação orgânica entre essas duas correntes de pensa-
mento vai encontrar eco no que Bakhtin chama de Arquitetônica.
Para ele, o mundo é dividido em uma arquitetônica apreciativa
entre o “eu” – o contemplador, que se situa fora da arquitetônica
e – e os outros – fundados por esse “eu”, e que se encontram no
interior da arquitetônica. Nesse sentido, Bakhtin define o seu
projeto, que mais tarde será incorporado pelo Círculo, da seguin-
te maneira:

28
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

“Não é nossa intenção construir um sistema de valores logica-


mente unificado com o valor fundamental – minha participação
no ser – situada na cabeça, ou, em outras palavras, construir
um sistema ideal de vários valores possíveis. Nem propomos
fornecer uma transcrição de valores que têm sido realmente, e
historicamente reconhecidos pela humanidade, com intuito de
estabelecer tais relações lógicas entre eles como subordinação,
co-subordinação, etc., isto é, com intuito de sistematizá-las. O
que pretendemos fornecer não é um sistema, e nem um inven-
tário sistemático de valores, onde conceitos puros (idênticos em
conteúdo) estão interconectados na base de uma correlação ló-
gica. O que pretendemos fornecer é uma representação, uma
descrição da arquitetônica concreta e real do mundo experien-
ciado, governado por valores – não com uma base analítica na
cabeça, mas com esse centro concreto, real (espacial e tempo-
ral) no qual os valores, as asserções, e os atos acontecem ou se
dão, e onde os membros constituintes são objetos reais,
interconectados por relações de eventos concretos na única ocor-
rência do evento do ser (nesse contexto as relações lógicas cons-
tituem apenas um momento junto aos momentos concreto, es-
pacial, temporal, e emotivo-volitivo)” (2, 61).

Esse projeto de buscar no acontecimento real os funda-


mentos de sua teoria já embute uma reflexão em torno da rela-
ção eu/outro na esfera de uma arquitetônica do valor, ou
“arquitetônica apreciativa”. Nessa arquitetônica, o homem, a sua
consciência, é um centro concreto de valores. Sendo assim, o
estético se complementa com o extra-estético, o verbal com o
extra-verbal, na unidade do homem que experiencia a vida, a
ciência e a arte. Para Bakhtin, “tudo neste mundo adquire sig-
nificação, sentido e valor somente em correlação com o homem
– com isso que é humano” (2, 61). A arquitetônica de um acon-
tecimento, por exemplo, um enunciado concreto, não é acabada
nem rígida; ela possui estabilidade apenas na criação e na
respondibilidade do meu ato.
Essa forma de se relacionar com o mundo, essa estética
arquitetônica da relação eu/outro se desenvolve na obra do Cír-

29
Geraldo Tadeu Souza

culo como uma Estética da Criação Verbal. A dimensão do criado


reside na esfera do enunciado único e concreto, que tem um au-
tor – um criador que se utiliza do dado (a língua, os outros enun-
ciados) –, um destinatário – real ou virtual, um gênero do discur-
so relacionado com alguma atividade humana, um estilo e uma
entonação determinadas no interior de um tema e em interação
orgânica com esse gênero do discurso.
Essa representação da arquitetônica real, que Michael
Holquist chama de Arquitetônica da Respondibilidade ou da
Responsabilidade, nos fornece a natureza do projeto que será
desenvolvido pelo Círculo: a investigação do enunciado concre-
to. É essa visão do particular, do evento único criado – estético
– como um acontecimento ético, fenomenológico, histórico, so-
ciológico, psicológico, dialógico, etc. que compõe, em linhas ge-
rais, o projeto do Círculo e seus desdobramentos.
O eixo que nos permite aprofundar no percurso teórico do
Círculo é a investigação do enunciado artístico concreto como
um acontecimento sociológico. É nesse sentido que, durante a
leitura das obras do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev,
percebemos a presença de um “método sociológico” aplicado à
literatura – poética sociológica, à psicologia – psicologia objeti-
va, e à ciência da linguagem – metalingüística. Esse método,
anterior a Revolução de 1917, foi desenvolvido por, entre ou-
tros, G. V. Plekhanov (1856-1918), com intuito de “fundar uma
nova ciência da literatura baseada nos estudos contemporâ-
neos em sociologia” (1,322-323). Participavam do grupo de
Plekhanov os seguintes críticos: V. M. Friche (1870-1929), P. N.
Sakulin (1868-1930), e V. F. Pereverzev (1882-1958).
Em 1924, no ensaio “O Problema do Conteúdo, do Mate-
rial e da Forma na Criação Literária”, Bakhtin reconhece a im-
portância de tal método, embora pense que seu significado cien-
tífico ultrapasse os limites de uma análise estética: “mas tanto o
elemento ético como também o cognitivo podem ser isolados e
transformados em objeto de uma investigação independente,

30
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

ético-filosófica ou sociológica, o qual pode também tornar-se


objeto de apreciações atuais, morais ou políticas (apreciações
secundárias e não primárias, também indispensáveis para a con-
templação estética)” (4,43).
Ainda nesse ensaio, começam a aparecer referências ao
Método sociológico. Podemos dizer que esse ensaio se situa na
fronteira entre as discussões fenomenológicas e éticas da obra
de arte, isto é, do enunciado artístico concreto, e um enfoque
sociológico do acontecimento ético que transcende os limites da
estética, ou seja, extra-estético. Esse método, na concepção de
Bakhtin, teria as seguintes tarefas:

a) transcrever o acontecimento ético no seu aspecto so-


cial, já vivido e avaliado empaticamente na contempla-
ção estética;
b) sair dos limites do objeto e introduzir o acontecimento
em ligações sociais e históricas mais amplas; e
c) ultrapassar os limites da análise propriamente estéti-
ca. (4, 43).

Esse embrião de aplicação do método sociológico à poéti-


ca, ou seja, ao enunciado artístico concreto, será retomado e
detalhado nas obras posteriores do círculo, no desenvolvimento
de uma poética sociológica, de uma estilística sociológica, de
uma psicologia social objetiva, enfim, de uma Sociologia do Dis-
curso. Esse ponto de vista exterior ao objeto será utilizado, tam-
bém, na problematização de sua aplicação à ciência da lingua-
gem.
Discutiremos a seguir alguns aspectos importantes da
aplicação do método sociológico, como aparecem na obra de
Bakhtin, Volochinov e Medvedev, retomando o lugar de uma
Teoria do Enunciado Concreto nesse ponto de vista de investi-
gação da linguagem artística, científica e cotidiana.

31
Geraldo Tadeu Souza

O ensaio de Volochinov, “Le discours dans la vie et le


discours dans la poésie” (1926) tem por subtítulo “Contribution
à une poétique sociologique” e trata das possibilidades de apli-
cação desse método aos problemas colocados pela “Poética his-
tórica”, ou seja, ao “conjunto de problemas que tratam da forma
artística vista sob seus diferentes aspectos (o estilo, etc.)” (5,181).
Volochinov critica opinião partilhada por alguns marxistas, de
que “o método sociológico é verdadeiramente legítimo quando a
forma poética artística, enriquecida pelo aspecto ideológico –
isto é, pelo conteúdo –, começa a se desenvolver historicamente
no quadro da realidade social exterior; quanto à forma, tomada
nela mesma, ela possui sua natureza própria e se determina
segundo leis específicas, que são artísticas e não sociológicas”
(5,181). Essa ruptura entre forma e conteúdo provoca, segundo
Volochinov, uma ruptura entre teoria e história, que contraria o
próprio fundamento do método marxista – o seu monismo, ou
seja, o que se aplica ao todo pode ser aplicado às suas unida-
des, e o seu historicismo. A forma e o conteúdo estão, na pers-
pectiva do Círculo, sempre em interação orgânica.
Nesse mesmo ensaio, Volochinov analisa uma obra do pro-
fessor Sakulin15 – O método sociológico nos estudos literários –
de 1925, na qual Sakulin distingue dois pontos de vista para
estudar a literatura e sua história: 1) a série imanente (interior)
– que possui uma estrutura e uma determinação específicas e
próprias, e que evoluem de forma autônoma, segundo sua na-
tureza; e 2) a série causal – ação do meio social extra-artístico. O
primeiro deve ser estudado pelo método formal, e o segundo,
que considera a literatura como um fenômeno social, deve ter a
sua causalidade estudada pelo método sociológico.
Volochinov propõe, então, um outro viés marxista para o
método sociológico, no sentido de dotar a estrutura “imanente”
do enunciado artístico de uma orientação sociológica. Para ele,
“a ciência da ideologia, de acordo com a essência do objeto que

15
Como já informamos anteriormente, P. N. Sakulin fazia parte do
grupo de Plekhanov.

32
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

ela estuda, não pode pretender o rigor e a precisão das ciências


naturais. Mas, voltada ao método sociológico, entendido segundo
sua acepção marxista, ela permite, pela primeira vez, que nos
aproximemos bem perto de um estudo verdadeiramente cientí-
fico das produções ideológicas… As formações ideológicas são
de natureza sociológica de maneira intrínseca e imanente. (5, 184).
Começa a se instaurar no percurso teórico do Círculo uma
Sociologia do Discurso, entendendo-se aqui “formações ideoló-
gicas” como uma semente do que, mais tarde, será chamado de
Gêneros do discurso. A estética, entendida como uma formação
ideológica, é para Volochinov, uma variedade do social. Assim, a
teoria da arte só pode ser uma sociologia da arte (5, 185). Para
uma aplicação correta e fecunda da análise sociológica na teo-
ria da arte, Volochinov propõe que se renuncie a duas concep-
ções redutoras da estética:

a) a fetichização da obra de arte como coisa; o criador e


os receptores estão fora do campo de estudo, redução
ao estudo do material;
b) o psiquismo individual do criador e do receptor.

No caso da primeira concepção estaríamos no interior do


pensamento abstrato e de suas análises formalistas e lingüísti-
cas; e na segunda, encontraríamos a abordagem estilística tra-
dicional do pensamento idealista, as quais serão criticadas em
quase todas as obras do Círculo.
Para se contrapor a essas duas concepções, que tentam
descobrir o todo na parte, Volochinov descreve, assim, a natu-
reza da poética sociológica:

1) na realidade, o fato “artístico” considerado na sua to-


talidade não reside nem na coisa nem no psiquismo do
criador, tomado isoladamente, nem no psiquismo do
receptor, mas ele contém esses três aspectos. O fato

33
Geraldo Tadeu Souza

artístico é uma forma particular e fixada na obra de


arte por uma relação recíproca entre o criador e os re-
ceptores;
2) a “comunicação artística” se enraíza na infraestrutura
que ela reparte com as outras formas sociais, mas ela
conserva, não menos do que essas outras formas, um
caráter próprio: ela é um tipo particular de comunica-
ção que possui uma forma que lhe é própria e bem es-
pecífica. Assim, a tarefa da poética sociológica é compre-
ender esta forma particular de comunicação social que
se encontra realizada e fixada no material da obra de
arte.(5,187).

Toda essa problematização, visando compreender a obra


de arte enquanto objeto de comunicação, enquanto um deter-
minado gênero do discurso, aparecerá em toda a obra do Círcu-
lo em torno de uma Teoria do Enunciado Concreto, na qual
podemos compreender o fato artístico como um enunciado ar-
tístico concreto.
Ao inserir a obra de arte numa relação de comunicação
“artística” – o todo da obra, Volochinov a define, sociologica-
mente, pelas seguintes características:
n produto da interação criador/receptor;
n momento essencial do acontecimento que constitui essa
interação;
n não é uma obra isolada, participa enquanto unidade
do fluxo da vida verbal;
n reflete a infraestrutura econômica geral;
n participa, juntamente com as outras formas de comu-
nicação, de um processo de interação e de trocas de
formas.16

16
Essas mesmas características estarão presentes na articulação dos
conceitos Gêneros do Discurso, Tema, Expressividade, Estilos e

34
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

Essa perspectiva de análise do todo, pelo método sociológi-


co em seu viés volochinoviano, orienta a evolução do pensamento
ético-fenomenológico desenvolvido anteriormente por Bakhtin e,
também, as críticas formuladas pelo Círculo ao formalismo lin-
güístico e às concepções psicológicas abstratas: “a essência con-
creta, sociológica do discurso, que sozinha determina sua verda-
de ou sua falsidade, sua baixeza ou sua grandeza, sua utilidade
ou inutilidade, resta, ainda que abordada de uma ou outra ma-
neira, incompreensível e inacessível” (5, 198). E é em busca da
compreensão dessa essência que os pensadores russos irão
despender esforços no sentido de encontrar formulações teóricas
adequadas à investigação desse fenômeno.
Ainda nesse ensaio de 1926, começa a se definir o aspecto
extralingüístico do enunciado concreto. O enunciado comporta,
por um lado, um aspecto verbal – a língua, a palavra, e, por outro
lado, um aspecto extra-verbal – o horizonte espacial comum (de
um determinado grupo social); o conhecimento e a compreensão
da situação, e o valor comum. O aspecto extra-verbal, ou seja, a
situação de produção do enunciado “se integra ao enunciado como
um elemento indispensável à sua constituição semântica” (5, 191).
Aparece aqui, também, a distinção entre enunciado cotidi-
ano e enunciado artístico, fundamental para o desenvolvimento
de uma poética sociológica e a articulação posterior entre gê-
neros do discurso primários e secundários no interior de uma
Sociologia do Discurso e de uma Arquitetônica da Representação.
Um outro tema importante de uma Teoria do Enunciado
Concreto é a que trata desse enunciado como um acontecimento
subjetivo, ou seja, um enunciado interior. Isso implica num certo
ponto de vista em relação à psicologia. Esse viés da teoria orien-
ta-se por uma crítica à teoria freudiana, realizada por Volochinov
no livro Freudianism. A Critical Sketch (1927), cujo objetivo é apli-
car um “ponto de vista dialético e sociológico” à psicologia, bus-
cando compreender o comportamento humano a partir de um

Entonações, os quais, em conjunto, formam o alicerce do Enunciado


Concreto, seja ele artístico, científico ou cotidiano.

35
Geraldo Tadeu Souza

viés sociológico objetivo, o que redunda numa “psicologia objeti-


va”.
Para Volochinov , a psicologia freudiana orienta-se por
um tipo especial de interpretação dos enunciados, que pretende
penetrar nos níveis profundos da alma. Ele faz as seguintes crí-
ticas à psicologia freudiana:

1) não toma os enunciados no seu aspecto objetivo;


2) não procura raízes fisiológicas17 ou sociais nesses enun-
ciados; e
3) procura encontrar os motivos do comportamento no
interior dos enunciados (o paciente dá informação so-
bre o inconsciente). (6, 76)

Ele justifica da seguinte forma as suas críticas: “qualquer


produto da atividade do discurso humano – do simples enuncia-
do cotidiano aos trabalhos elaborados da arte literária – deriva
em forma e significação, em todos os seus aspectos essenciais,
não das experiências subjetivas do falante, mas da situação so-
cial na qual o enunciado aparece. A língua e suas formas são
produtos de uma prolongada comunicação social entre os mem-
bros de uma dada comunidade discursiva” (6, 79).
Analisando a sessão psicanalítica como um tipo de rela-
ção de comunicação entre um médico e um paciente, ou seja,
um gênero de discurso determinado, Volochinov formula a se-
guinte crítica ao produto dessa relação: “o que é refletido nesses
enunciados não é a dinâmica da psique individual mas a dinâ-
mica social das inter-relações entre o doutor e o paciente. Aqui
está a origem para o drama da construção freudiana” (6, 79-80).
Ele propõe, então, que se atinja as raízes das reações verbais,
ou seja, do comportamento, “com a ajuda de métodos objetivos-

17
Eles se referem aqui ao processos fisiológicos no sistema nervoso e
nos órgãos de fala e de percepção que compõem, no interior da
psicologia, as reações verbais. (6, 21).

36
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

sociológicos que o marxismo criou para a análise de vários sis-


temas ideológicos: lei, moral, ciência, mundo exterior, arte e re-
ligião” (6,87). A concepção de psicologia que norteia as formula-
ções teóricas do Círculo, traz no seu bojo, então, uma perspec-
tiva sociológica.
Após essa crítica à psicologia, um outro livro do Círculo,
The Formal Method in Literary Scholarship (1928), assinado por
Bakhtin/Medvedev, vai centrar suas críticas no formalismo e sua
aplicação nos estudos literários. Como sempre que o Círculo vai
discutir um enunciado secundário, ou como nesse caso, um enun-
ciado literário, a base concreta da reflexão é o enunciado cotidia-
no, aqui chamado enunciado prático. Para os teóricos russos, “a
literatura se funda na interação real e ativa com outras esferas
da ideologia, no mínimo com todos os enunciados práticos” (7,
103).
Essa outra obra tem por subtítulo “A Critical Introduction to
Sociological Poetics”. Aqui, Bakhtin/Medvedev reclama da falta
de “uma doutrina sociológica desenvolvida das características
distintas do material, da forma, e propósitos de cada área da
criação ideológica” (7, 3).
A partir de uma base marxista, ele propõe o desenvolvi-
mento de “um método sociológico específico que pode ser adapta-
do às características de diferente áreas ideológicas, no sentido de
dar acesso a todos os detalhes e sutilezas das estruturas ideoló-
gicas” (7, 4). Esse também era o objetivo de Volochinov: cada área
da criação ideológica deve ser entendida, do ponto de vista de
uma Sociologia do Discurso, como um gênero do discurso deter-
minado, e a sua compreensão e análise deve levar em conta essa
especificidade.
Esse método sociológico, que já apresentamos anteriormente
na concepção do professor Sakulin, o qual distingue duas con-
cepções autônomas – a série imanente e a série causal –, se ca-
racteriza aqui, como em Volochinov, pela interação entre a histó-
ria da literatura e a poética sociológica. Essa formulação é im-
possível para o professor Sakulin. Já para Medvedev, “a poética

37
Geraldo Tadeu Souza

fornece direções à história da literatura na especificação da pes-


quisa material e nas definições básicas de suas formas e tipos. A
história da literatura completa as definições da poética, tornan-
do-as mais flexíveis, dinâmicas e adequadas à diversidade do
material histórico” (7,30).
Esse caráter complementar entre pontos de vista, um utili-
zando os resultados das análises do outro é uma característica
constante das obras do Círculo e de sua articulação em torno de
um pensamento concreto que leva em consideração as contribui-
ções dos pensamentos abstrato e idealista.
As tarefas da poética sociológica, para Bakhtin/Medvedev,
são as seguintes:

1) especificação: isolar a obra literária e revelar sua es-


trutura;
2) descrição: determinar as formas possíveis e variações
dessa estrutura;
3) análise: definir seus elementos e suas funções. (7,33)18

Até aqui, o Círculo já direcionou suas críticas, sempre a


partir de uma concepção específica do método sociológico, à esté-
tica, à psicologia e ao método formal. Agora, uma outra ciência se
torna alvo das indagações de Bakhtin/Volochinov/Medvedev: a
ciência da linguagem.
Em Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929), Bakhtin/
Volochinov coloca um subtítulo – “Problemas fundamentais do
Método Sociológico na Ciência da Linguagem” – que provoca uma
relação dialógica com as obras anteriores. Definido o ponto de
vista – o método sociológico no seu viés marxista – os componen-
tes do Círculo vão alternando os gêneros do discurso científicos a

18
Essas tarefas são devenvolvidas, posteriormente, nas duas obras de
aplicação da poética sociológica: Problemas da Poética de Dostoiévski
e A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais.

38
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

serem criticados: ora a Estética, ora a Psicologia, agora a Filoso-


fia da Linguagem19 .
Tendo como interlocutores o Marximo e a Filosofia da Lin-
guagem, Bakhtin/Volochinov diz que “a única maneira de fazer
com que o método sociológico marxista dê conta de todas as pro-
fundidades e de todas as sutilezas das estruturas ideológicas
“imanentes” consiste em partir da filosofia da linguagem concebi-
da como filosofia do signo ideológico. E essa base de partida deve
ser traçada e elaborada pelo próprio marxismo” (10,38). Nesse
sentido, Bakhtin/Volochinov observa as seguintes regras meto-
dológicas:

1. Não separar a ideologia da realidade material do signo


(colocando-a no campo da “consciência” ou em qual-
quer outra esfera fugidia e indefinível).
2. Não dissociar o signo das formas concretas da comuni-
cação social (entendendo-se que o signo faz parte de
um sistema de comunicação social organizada e que
não tem existência fora deste sistema, a não ser como
objeto físico).
3. Não dissociar a comunicação e suas formas de sua base
material (infra-estrutura) (10, 44).

Uma outra tarefa do marxismo se refere a uma concepção


nova da psicologia, ou seja, de uma psicologia objetiva: “uma das
tarefas mais essenciais e urgentes do marxismo é constituir uma
psicologia verdadeiramente objetiva. No entanto, seus fundamen-
tos não devem ser nem fisiológicos nem biológicos, mas SOCIO-

19
Estamos levando em consideração o fato de cada um desses discursos
científicos serem o tema central de um determinado ensaio ou livro.
Mas não podemos esquecer que em todos eles há uma interação
orgânica no que se refere ao Enunciado concreto. Assim sendo, ao
falar da Filosofia da Linguagem são abordadas também, dessa
perspectiva, os outros discursos científicos como a Estética, a
Psicologia, o Formalismo, a Sociologia, o Marxismo, etc.

39
Geraldo Tadeu Souza

LÓGICOS” (10, 48). É com base nessa psicologia que o Círculo


vai analisar o enunciado interior.
Nesse sentido, Bakhtin/Volochinov desenvolve nesse livro
a estrutura “sociológica” do enunciado, seja ele interior, exterior,
ou de outrem, contrapondo-a ao ponto de vista lingüístico e esti-
lístico então dominantes nos estudos da linguagem, e que repre-
sentavam as correntes de pensamento abstrato e idealista, ou
objetivismo abstrato e subjetivismo idealista, respectivamente,
como veremos mais tarde.
A coerência metodológica entre as obras do Círculo quanto
à forma de aplicação do método sociológico fica evidente na intro-
dução ao livro Problemas da obra de Dostoievski (1929). Bakhtin
define assim os propósitos de sua análise: “en la base de nuestro
análisis está la convicción de que toda obra literaria tiene interna-
mente, inmanentemente, un caráter sociológico. En ella se cruzan
las fuerzas sociales vivas, y cada elemento de su forma está im-
pregnado de valoraciones sociales vivas. Por eso también un
análisis puramente formal ha de ver en cada elemento de la es-
tructura artística el punto de refracción de las fuerzas vivas de la
sociedade, cual un cristal fabricado artificialmente cuyas facetas
se construyeron y se pulieron de tal manera que puedan refractar
los determinados rayos de las valoraciones sociales, y refractarlos
bajo un determinado ángulo” (12, 191), ou seja, um ponto de vista
consideravelmente adequado ao viés marxista adotado pelos ou-
tros dois membros do Círculo20 .

20
Em entrevistas publicadas no jornal Chelovek (1993) datadas de 1973-
74, Bakhtin rememora sua juventude, na descrição de Caryl Emerson:
“Bakhtin claims he had always wanted to be a moral philosopher, a
“myslitel” (thinker); literary scholarship was for him a safe refuge from
politics during those years when others were being harassed,
“organized,” recruited. He insists that as a young college student in
Petrograd he had been “absolutely apolitical.” He lamented not only
the October Revolution but the prior February abdication as well; he
predicted that it would end badly and “extremely”; he went to no
meetings, profoundly distrusted Kerensky, and continued to sit in

40
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

Problematizar uma poética sociológica implica considerar


como sociológicos todos os elementos envolvidos no interior des-
sa poética. É assim que, analisando o discurso no romance, no
ensaio de mesmo nome (1934-1935), Bakhtin diz que “a única
estilística adequada para esta particularidade do gênero roma-
nesco é a estilística sociológica. A dialogicidade interna do dis-
curso romanesco exige a revelação do contexto social concreto, o
qual determina toda a sua estrutura estilística, sua “forma” e seu
“conteúdo”, sendo que os determina não a partir de fora, mas de
dentro; pois o diálogo social ressoa no seu próprio discurso, em
todos os seus elementos, sejam eles de “conteúdo” ou de “forma””
(17, 105-106).
A união orgânica de uma poética sociológica com uma
estilística sociológica permite a Bakhtin realizar um dos seus mais
ambiciosos projetos: um estudo sociológico da heterogeneidade
discursiva representada na obra literária e da heterogeneidade
real da cultura popular no seu livro A cultura popular na Idade
Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1940;
1965). Situando esse período histórico no limite de três línguas –
latim clássico, latim medieval e as línguas nacionais, Bakhtin
nos diz que “nos limites das três línguas, a consciência do tempo
devia tomar formas excepcionalmente agudas e originais. A cons-
ciência viu-se na fronteira das épocas e das concepções de mun-
do, pôde, pela primeira vez, abarcar largas escalas para medir o
curso do tempo, sentir com cuidado o seu “hoje” tão diferente da
véspera, as suas fronteiras e perspectivas. (20, 412).
E ainda, retomando a sua opção pelo pensamento concre-
to, ele diz: “as línguas são concepções do mundo, não abstratas,
mas concretas, sociais, atravessadas pelo sistema das aprecia-
ções, inseparáveis da prática corrente e da luta de classes. Por
isso, “cada objeto, cada noção, cada ponto de vista, cada aprecia-

libraries and read books. The image of a learned, apolitical, urbane,


witty, fastidious and aristocratic young Bakhtin that emerges from these
memoirs is in some tension, of course, with the mass-oriented Bakhtin
popular in Western radical circles” (45, 108).

41
Geraldo Tadeu Souza

ção, cada entoação, encontra-se no ponto de interseção das fron-


teiras das línguas-concepções do mundo, é englobado numa luta
ideológica encarnecida. Nessas condições excepcionais, torna-se
impossível qualquer “dogmatismo lingüístico e verbal”, qualquer
“ingenuidade verbal” (20, 415).
Pelo percurso teórico aqui mencionado, podemos elaborar
uma base teórica para reflexão em torno de uma Teoria do Enun-
ciado Concreto, seja ele, cotidiano, artístico ou científico. Toda a
investigação desses gêneros de enunciado, ou gêneros do discur-
so, deve levar em conta os aspectos éticos, fenomenológicos, his-
tóricos, ideológicos, sociológicos e dialógicos em interação orgâ-
nica. Nesse percurso teórico, poderíamos dizer que se encontra o
cronotopo21 para a construção da Metalingüística, ou seja, de
uma disciplina que empreenda uma investigação verdadeiramente
científica do enunciado concreto22 .

3. O problema da tradução
Um problema que se coloca para quem estuda as obras
dos teóricos russos em português é o da tradução e da falta de
uniformidade terminológica. Se estudamos a obra do interior dela
mesma, percebemos o sentido que aí adquire um determinado
conceito. Mas é na relação com as outras obras do círculo que
alguns conceitos ficam comprometidos, visto que em uma obra

21
Para Bakhtin, o cronotopo (tempo-espaço), termo emprestado das
ciências matemáticas, é “a interligação entre as relações espaciais e
as relações temporais” (19, 211).
22
A busca de uma investigação científica do enunciado, ou num sentido
largo, de um determinado domínio da cultura, já era prenunciada em
Toward a Philosophy of the Act, quando Bakhtin dizia que uma “filosofia
científica só pode ser uma filosofia particular, isto é, uma filosofia
dos vários domínios da cultura e de sua unidade na forma de uma
transcrição teórica de dentro dos objetos da criação cultural e da lei
imanente de seu desenvolvimento” (2, 19).

42
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

ele é representado por x e em outra por y, o que de certa forma


pode dificultar a compreensão ativa do conjunto da obra.
Isso pode se dever ao fato de que cada edição brasileira tem
um tradutor diferente, além de derivar ora do original russo, ora
da tradução francesa, recorrendo, às vezes, à tradução inglesa,
conforme apresentamos a seguir, em ordem cronológica de pu-
blicação da primeira edição:

n Bakhtin, M. (Volochinov) (1979). Marxismo e Filosofia


da Linguagem. Trad. do francês (edição de 1977) com
recorrências constantes à edição americana de 1973,
por Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira;
n Bakhtin, M. (1981). Problemas da Poética de Dostoiévski.
Trad. do original russo (edição de 1972), por Paulo Be-
zerra;
n Bakhtin, M. (1987). A cultura popular na Idade Média e
no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad.
da edição de francesa de 1970, por Yara Frateschi;
n Bakhtin, M. (1988). Questões de Literatura e de Estéti-
ca. A teoria do romance. Trad. do original russo de 1975,
por uma equipe de tradutores formada por Aurora F.
Bernardini e outros; e
n Bakhtin, M. (1992) Estética da Criação Verbal. Trad.
do francês, por Maria Ermantina G. B. Gomes Pereira.

Enquanto Bakhtin se diz interessado pela “variação ter-


minológica” que abrange “um único e mesmo fenômeno”, as
edições brasileiras revelam uma “variação terminológica” para
uma única e mesma palavra russa, comprometendo a unidade
temática que orienta as formulações teóricas do Círculo, preci-
samente no que se refere a uma Teoria do Enunciado Concreto.
A importância que o pensamento do Círculo vem adqui-
rindo nos estudos lingüísticos brasileiros implica a necessidade
de iniciar um processo de discussão em torno da terminologia e

43
Geraldo Tadeu Souza

dos conceitos que articulam as suas formulações teóricas. Se,


por um lado, a língua russa é inacessível para a maioria dos
pesquisadores, por outro, existe a possibilidade de comparar
traduções em outras línguas, bem como comparar os conceitos
com as outras obras do Círculo publicadas em português.
Para demonstrar o problema, escolhemos as palavras rus-
sas vyskazyvanie e rechevye zhanry – ou apenas zhanry, as quais
estão diretamente relacionadas ao tema de nossa dissertação. A
primeira palavra foi traduzida, nas edições francesa e brasileira
das obras do Círculo, ora por enunciado ora por enunciação, e a
segunda por gêneros do discurso – ou apenas gênero, além de
modos de discurso, categorias de atos de fala, fórmulas, etc.
O que acontece nas edições brasileiras das três obras onde
encontramos esse problema é uma falta de critério quanto à tra-
dução por um ou outro conceito. Isso acontece, provavelmente,
porque cada obra tem um tradutor ou equipe de tradutores dife-
rentes, o que de certa maneira dificulta um acompanhamento
aprofundado de outras obras do Círculo que não aquela que é
objeto da tradução.
A primeira obra que apresenta esse problema é Marxismo e
Filosofia da Linguagem (1979), assinadas por Bakhtin e
Volochinov. Nessa edição traduziu-se o conceito vyzkazyvanie
por enunciação, em todas as ocorrências, conforme justifica em
nota a tradutora francesa Marina Yaguello:

Rappelons que le russe jazyk désigne le langage, la langue, et la


langue-organe, le russe rec désigne la parole, la langue, le langage,
le discours. J´ai traduit jazyk tantôt par “langage” comme dans le
titre, tantôt par “langue”. Cependant, por supprimer l´ambiguité,
Bakhtine a fourgé un nom composé: jazyk-rec (le langage) qu’il
oppose à jazyk kak sistema form (la lange) et vyskazyvanje
(l’énonciation ou acte de parole) (N.d.t.) (9, 90).

Comparando as citações de Marxismo e Filosofia da Lin-


guagem que localizamos na obra de Todorov Mikhail Bakhtine. Le

44
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

principle dialogique. (1981)23 com as da edição de Yaguello, en-


contramos no lugar de enunciação, o conceito enunciado, articu-
lado no interior de uma Teoria do Enunciado que é desenvolvida
no capítulo 4 do referido livro:

L’énoncé se construit entre deux personnes socialement


organisées, et s’il n’y a pas d’interlocuteur réel, on le présuppose
en la personne du représentant normal, pour ainsi dire, du groupe
social auquel appartient le locuteur. Le discours est orienté vers
l’interlocuteur… (30, 70)

En effet, l’énonciation est le produit de l’interaction de deux


individus socialement organisés et, même s’il n’y a pas un
interlocuteur réel, on peut substituer à celui-ci le représentant
moyen du groupe social auquel appartient le locuteur. Le mot
s’adresse à un interlocuteur… (9, 123)

Todorov reserva o conceito enunciação para se referir ao


contexto de produção do enunciado, ao “contexto de enunciação”
(30, 68), ou ainda à interação verbal24 , articulando, no interior da
obra do Círculo, uma Teoria do Enunciado e não uma Teoria da
Enunciação como aparece na tradução de Yaguello.
Na edição da obra de Bakhtin Problemas da Poética de
Dostoiévski (1981), traduzido do russo por Paulo Bezerra, encon-
tramos os dois conceitos – enunciado e enunciação – sendo que,
na comparação com a edição francesa – La Poétique de Dostoievski
(1970)- descobrimos que aí enunciação se apresenta como énoncé

23
As traduções do russo constantes no livro de Todorov foram feitas
por Georges Philippenko com a coloboração de Monique Canto. (31,
177)
24
Essa relação é apresentada no Prefácio de Estética da Criação Verbal:
“é nos mesmos anos que Bakhtin se empenha em lançar as bases de
uma nova lingüística, ou, como dirá mais tarde, “translingüística” (o
termo em uso hoje seria antes “pragmática”), cujo objeto já não é
mais o enunciado, mas a enunciação, ou seja, a interação verbal”
(39, 15)

45
Geraldo Tadeu Souza

– enunciado – em quase todas as ocorrências, como mostra o


exemplo abaixo:

Sempre que no contexto do autor há um discurso direto, o


de um herói, por exemplo, verificamos nos limites de um con-
texto dois centros do discurso e duas unidades do discurso: a
unidade da enunciação do autor e a unidade da enunciação do
herói. (13, 162)

La où, dans le texte d’un auteur, interviént le discours direct,


celui d’un personnage par exemple, nous trouvons à l’intérieur d’un
seul contexte deux centres, deux unités de discours: l’énoncé de
l’auteur et l’énoncé du héros. (14, 244-245)

Finalmente, no livro de Bakhtin Questões de Literatura e


de Estética. A teoria do romance (1993), traduzido do russo, loca-
lizamos no ensaio “O discurso no romance”, de 1934-1935, tam-
bém, a presença dos dois conceitos: enunciado e enunciação.
Nesse caso, comparamos com a edição francesa Esthétique et
théorie du Roman (1994) onde encontramos, também, os concei-
tos énoncé e énonciation. O problema é que na maioria das ocor-
rências não existe coincidência entre as duas traduções.
Há casos em que a ocorrência enunciação em português
aparece como énoncé na edição francesa:

O verdadeiro meio da enunciação, onde ela vive e se forma, é


um plurilinguismo dialogizado, anônimo e social como lingua-
gem, mas concreto, saturado de conteúdo e acentuado como
enunciação individual. (17, 82).

Le véritable milieu de l’énoncé, lá ou il vit et se forme, c’est le


polylinguisme dialogisé, anonyme et social comme le langage, mais
concret, mais sature de contenu, et accentué comme un énoncé
individuel. (18, 96).

Também há ocorrências em que nas duas edições encon-


tramos o conceito enunciação/énonciation, mas a ocorrência
enunciado é a que aparece mais vezes:

46
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

A filosofia da linguagem, a lingüística e a estilística postulam


uma relação simples e espontanêa do locutor em relação à “sua
própria” linguagem, única e singular, e uma realização simples
dessa linguagem na enunciação monológica do indivíduo (17, 80).

La philosophie du langage, la linguistique et la stylistique,


postulent une relation simple et spontanée du locuteur à “son
langage à lui”, seul et unique, et une réalisation de ce langage
dans l´énonciation monologique d’un individu (18, 94).

Nas duas outras obras do círculo, assinadas por Bakhtin,


que estão publicadas no Brasil – A cultura popular na Idade
Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1987)
e Estética da Criação Verbal (1992) não existe esse problema,
sendo que nesta última, no ensaio “Os gêneros do discurso”,
toda a segunda parte é dedicada ao enunciado, tendo por título
“O enunciado, unidade da comunicação verbal”, não havendo aí
qualquer ocorrência de enunciação:

O estudo do enunciado, em sua qualidade de unidade real


da comunicação verbal, também deve permitir compreender
melhor a natureza das unidades da língua (da língua como sis-
tema): as palavras e as orações. (21, 287).

L’étude de l’énoncé, en sa qualité d’unité réelle de l’échange


verbal, doit permettre aussi de mieux comprendre la nature des
unités de langue (de la langue en tant que système) – les mots
et les propositions. (21a, 272).

Enquanto conceito, ou seja, enquanto um elemento do dis-


curso científico na tradição dos estudos lingüísticos a partir de
Benveniste, enunciado e enunciação tem acepções diferentes:
enquanto enunciado se refere ao produto do discurso, enuncia-
ção se refere ao processo ou “situação” de discurso. Ou mais
explicitamente, como afirma Benveniste no artigo “O aparelho
formal da enunciação”: “é o ato mesmo de produzir um enuncia-
do, e não o texto do enunciado, que é nosso objeto” (36, 82). Essa

47
Geraldo Tadeu Souza

distinção entre produto e processo não encontra eco na obra do


Círculo, onde o todo do enunciado concreto compreende o pro-
duto – o material verbal – e o processo – a situação – em interação
orgânica. Para o Círculo, o enunciado concreto é um elo da ca-
deia de comunicação verbal, ou seja, ele é produto – um aconte-
cimento único na existência – e processo – uma unidade da ca-
deia de comunicação verbal – simultaneamente.
Embora esse contexto científico, a Teoria da Enunciação
de Benveniste, seja posterior a maioria das obras do Círculo nas
quais ocorre o problema, sem dúvida ele tem grande importância
no fluxo da obra do Círculo no Ocidente, e, principalmente, em
três dos seus divulgadores na França: Julia Kristeva25 , Marina
Yaguello e Tzvetan Todorov26 , todos eles com forte ligação e en-
volvidos com as idéias de Benveniste em relação a enunciação.
O outro problema relacionado com a tradução, trata da
palavra russa rechevye zhanry – ou apenas zhanry, as quais de-
saparecem da obra de Bakhtin/Volochinov Marxismo e Filosofia
da Linguagem (1929). Nesse obra, a interação orgânica entre os
conceitos enunciado, diálogo e gêneros do discurso se desintegra.
Logo no segundo capítulo que trata da relação entre a infra-
estrutura e as superestruturas, os teóricos russos dizem o se-
guinte: “Mais tarde, em conexão com o problema da enunciação e
do diálogo, abordaremos, também, o problema dos gêneros lin-
güísticos”(10, 43). Comparando com a tradução inglesa – “later
on, in connection with the problem of the utterance and dialogue,
we shall again touch upon the problem of speech genres” (11,
40), percebemos que enunciado – utterance – se torna enunciação

25
Foi Julia Kristeva que, em 1966, introduziu a obra de Bakhtin na
França, como demonstra François Dosse em seu História do
Estruturalismo vol. 2 (42, 74-76).
26
Todorov chega a promover uma relação dialógica entre o ensaio “Se-
miologia da Língua” (1969), de Benveniste, e os “Apontamentos 1970-
1971” (24), de Bakhtin, sugerindo que esse possa ter emprestado a
Benveniste a noção de interpretante. (30, 81).

48
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

e gêneros do discurso – speech genres – se torna gêneros lingüísti-


cos, e mais tarde, modos de discurso, categorias de atos de fala,
discursos menores, modelagem, fórmulas, fórmulas estereotipa-
das, enfim, tantas acepções que a importância desse conceito no
contexto do interior dessa obra, e, mais ainda, na sua relação
com as outras obras do círculo se desintegram de sua interação
orgânica com o enunciado concreto.
Nesse sentido, resolvemos comparar as citações que apre-
sentam essa dificuldade de tradução, recorrendo à forma que
elas aparecem citadas em um outro ensaio de Volochinov “La
structure de l’énoncé” (1930), deixando em nota, a forma que
adquirem na edição americana:

(1) La question bien formée, l’exclamation, l’ordre, la prière, voilà


les formes les plus typiques d’énoncés de la vie quotidienne,
qui soient des totalités. Ils exigent tous – et, surtout, l’ordre et
la prière – un complément extra-verbal, mais aussi bien un
commencement de nature elle-même extra-verbale. Chacun de
ces petis genres d’énoncés, qui ont cours dans le quotidien,
suppose, pour être accompli, que le discours soit en contact
avec le milieu extra-verbal, d’une part, et le discours d’autrui,
d’autre part (16, 290).
(1a) Uma questão completa, a exclamação, a ordem, o pedido são
enunciações completas típicas da vida corrente. Todas (parti-
cularmente as ordens, os pedidos) exigem um complemento
extraverbal assim como um início não verbal. Esses tipos de
discursos menores da vida cotidiana são modelados pela frição
da palavra contra o meio extravebal e contra a palavra do
outro (10, 124)27 .

27
“The full-fledged question, exclamation, command, request – these are
the most typical forms of wholes in behavioral utterances. All of them
(especially the command and request) require an extraverbal
complement and, indeed, an extraverbal commencement. The very type
of structure these little behavioral genres will achieve is determined
by the effect of its coming up against the extraverbal milieu and against
another word (i.e., the words of other people)” (11, 96).

49
Geraldo Tadeu Souza

(2) Ainsi, la façon dont est formule un ordre est déterminée par les
éléments qui peuvent faire obstacle à la réalisation de celui-ci,
par le degré de soumission qu’il peut rencontrer, etc. Le genre
prend donc sa forme achevée dans les traits particuliers,
contingents et uniques, qui définissent chaque situation vécue
(16, 290-291).
(2a) Assim, a forma da ordem é determinada pelos obstáculos que
ela pode encontrar, o grau de submissão do receptor, etc. A
modelagem das enunciações responde aqui a particularida-
des fortuitas e não reiteráveis das situações da vida corrente”
(10, 125)28

(3) Mais on ne peut parler de genres constitués, propres au


discours quotidien, que si l’on est en présence de formes de
communication qui soient, dans la vie quotidienne, quelque peu
stables et fixées par le mode de vie et les circonstances (16,
291).
(3a) Só se pode falar de fórmulas específicas, de estereótipos no
discurso da vida cotidiana quando existem formas de vida
em comum relativamente regularizadas, reforçadas pelo uso
e pelas circunstâncias” (10, 125)29 .

(4) Ainsi, on peut observer un type de genre constitué, tout à fait


spécifique dans le bavardage de salon: cette conversation
superficielle, qui n’engage à rien, entre gens du même monde,
où le seul critère qui différencie ceux qui y ont part – l’auditoire
– est la distinction entre hommes et femmes. Là s’élaborent
des formes spécifiques de discours: l’allusion, les sous-entendu,
la répétition de petits récits connus de tous comme frivoles, etc.
(16,291).

28
“Thus, the form of a command will take is determined by the obstacles
it may encounter, the degree of submissiveness expected, and so on.
The structure of the genre in these instances will be in accord with the
accidental and unique features of behavioral situations” (11, 96).
29
“Only when social custom and circumstances have fixed and stabilized
certain forms in behavioral interchange to some appreciable degree,
can one speak of specific types of structure in genres of behavioral
speech” (11, 96-97).

50
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

(4a) Assim, encontram-se tipos particulares de fórmulas estereo-


tipadas servindo às necessidades da conversa de salão, fútil e
que não cria nenhuma obrigação, em que todos os partici-
pantes são familiares uns aos outros e onde a diferença prin-
cipal é entre homens e mulheres. Encontram-se elaboradas
formas particulares de palavras-alusões, de subentendidos,
de reminiscências de pequenos incidentes sem nenhuma im-
portância, etc.” (10, 125)30 .

(5) Un autre type de genre constitué se forme aussi dans la con-


versation entre mari et femme ou entre frère et soeur. Suppo-
sons une file d’attente, où se trouvent réunis par hasard des
gens de catégorie sociale différente, dans une administration
quelconque, ou en quelque lieu que ce soit, on entendra, dans
chaque cas, des déclarations et des répliques qui se distin-
guent radicalement les unes des autres par leur début, leur fin
et la structure même des énoncés qui les composent. Les veillés
villageoises, les sautreies dans les villes, les entretiens des
ouvriers pendant la pause de midi connaissent des types de
genre qui leur sont propres (16,291).
(5a) Um outro tipo de fórmula elabora-se na conversa entre mari-
do e mulher, entre irmão e irmã. Pessoas inteiramente estra-
nhas umas às outras e reunidas por acaso (numa fila, numa
entidade qualquer) começam, constroem e terminam suas de-
clarações e suas réplicas de maneira completamente diferen-
te. Encontram-se ainda outros tipos nos serões no campo,
nas quermesses populares na cidade, na conversa dos operá-
rios à hora do almoço, etc.” (10, 125-126)31 .

30
“So, for instance, an entirely special type of structure has been worked
out for the genre of the light and casual causerie of the drawing room
where everyone “feels at home” and where the basic differentiation
within the gathering (the audience) is that between men and women.
Here we find devised special forms of insinuation, half-saying, allu-
sions to little tales of an intentionally nonserious character, and so on.”
(11,97).
31
“A different type of structure is worked out in the case of conversation
between husband and wife, brother and sister, etc. In the case where
a random assortment of people gathers – while waiting in a line or

51
Geraldo Tadeu Souza

(6) Toute situation de la vie quotidienne possède un auditoire, dont


l’organisation est bien précise, et dispose donc d’un répertoire
spécifique de petits genres appropriés. Dans chaque cas, le
genre quotidien s’adapte au sillon que la communication so-
ciale paraît avoir tracé por lui – et cela, pour autant qu’il repré-
sente le reflet idéologique du type, de la structure, du but et de la
constitution propres aux rapports de communication sociale (16,
291).
(6a) Toda situação inscrita duravelmente nos costumes possui um
auditório organizado de uma certa maneira e conseqüente-
mente um certo repertório de pequenas fórmulas correntes. A
fórmula estereotipada adapta-se, em qualquer lugar, ao canal
da interação social que lhe é reservado, refletindo ideologica-
mente o tipo, a estrutura, os objetivos e a composição social do
grupo” (10, 126)32

(7) Le genre quotidien est un élément du milieu social: qu’il s’agisse


de la fête, des loisirs, des relations de salon, d’atelier, etc. Il
coïncide avec ce milieu, il s’y trouve limité et il est aussi déter-
miné par lui en tous ses composants internes” (16, 291).
(7a) As fórmulas da vida corrente fazem parte do meio social, são
elementos da festa, dos lazeres, das relações que se travam no
hotel, nas fábricas, etc. Elas coincidem com esse meio, são por
eles delimitadas e determinadas em todos os aspectos” (10,
126)33 .

conducting some business – statements and exchanges of words will


start and finish and be constructed in another, completely different
way. Village sewing circles, urban carouses, workers’ lunchtime chats,
etc., will all have their own types.” (11, 97).
32
“Each situation, fixed and sustained by social custom, commands a
particular kind of organization of audience and, hence, a particular
repertoire of little behavioral genres. The behavioral genre fits
everywhere into the channel of social intercourse assigned to it and
functions as an ideological reflection of its type, structure, goal, and
social composition” (11, 97).
33
“The behavioral genre is a fact of social milieu: of holiday, leisure
time, and of social contact in the parlor, the workshop, etc. It meshes
with that milieu and is delimited and defined by it in all its internal
aspects” (11, 97).

52
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

Poderíamos apresentar mais uma série de exemplos nos


quais enunciado e enunciação concorrem para uma expressão
mais adequada da expressão russa vyskazivanie, bem como gê-
nero do discurso, ou apenas gênero é a tradução mais coerente
para rechevye zhanry – ou apenas zhanry, mas com isso perderí-
amos o objetivo de nossa dissertação que é de discorrer de ma-
neira introdutória sobre a Teoria do Enunciado Concreto desen-
volvida pelo Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev. Nesse sen-
tido, deixaremos a resposta à questão que intitula este capítulo
em aberto, lançando mão de outros argumentos para contextua-
lizar mais francamente a nossa opção pelos conceitos enunciado
e gêneros do discurso.

53
II. A linguagem

“A interação verbal é a realidade fundamental da


linguagem” (30, 71).

A investigação dos conceitos que articulam a Teoria do


Enunciado Concreto implica em cada um deles preencher uma
certa extensão de sentido: ele tem de ser dinâmico, histórico-
fenomenológico, sociológico, ideológico e, finalmente dialógico.
Se tomarmos alguma definição de linguagem, dada pelo Círcu-
lo, encontraremos, em cada uma delas, todas as características
acima citadas.
A linguagem é dinâmica, ou seja, “é um produto da vida
social que não é de nenhum modo congelado ou petrificado: ela
está em perpétuo vir a ser e, em seu desenvolvimento, ela segue a
evolução da vida social” (16, 288). Ela é um fenômeno histórico-
fenomenológico e sociológico: “a essência verdadeira da lingua-
gem é o acontecimento social que consiste em uma interação
verbal, e se encontra concretizada em um ou mais enunciados”.
(16, 288)34 . A linguagem é ideológica, ela “procede da organização
social do trabalho e da luta de classes” (16,287). E como todo

34
Esse enunciado já havia aparecido em MFL (1929), quando da crítica
ao objetivismo abstrato e ao subjetivismo idealista: “A verdadeira
substância da língua [linguagem] não é constituída por um sistema
abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação [enunciado]
monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção,
mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da
enunciação [enunciado] ou das enunciações [enunciados]” (10, 123).
Geraldo Tadeu Souza

conceito do Círculo, ela também é dialógica: “a linguagem vive


apenas na comunicação dialógica daqueles que a usam. É preci-
samente essa comunicação dialógica que constitui o verdadeiro
campo da vida da linguagem” (13, 158), “o diálogo – a troca de
palavras – é a forma mais natural de linguagem” (16,292).
Se promovermos uma relação dialógica entre essas pro-
postas teóricas do Círculo e as dificuldades encontradas por
Saussure em torno de uma trabalho científico da linguagem – o
que o obriga a criar a dicotomia língua/fala e escolher a primeira
como objeto da lingüística – encontraremos, nesse último, al-
guns princípios sobre a linguagem:

a) A linguagem tem um lado individual e um lado social,


sendo impossível conceber um sem o outro (44, 16);
b) A cada instante, a linguagem implica ao mesmo tempo
um sistema estabelecido e uma evolução: a cada ins-
tante, ela é uma instituição atual e um produto do pas-
sado. Parece fácil, à primeira vista, distinguir entre es-
ses sistemas e sua história, entre aquilo que ele é e o
que foi; na realidade, a relação que une ambas é tão
íntima que se faz difícil separá-las (44, 16);
c) se estudarmos a linguagem sob vários aspectos ao
mesmo tempo, o objeto da Lingüística nos aparecerá
como um aglomerado confuso de coisas heteróclitas,
sem liame entre si. Quando se procede assim, abre-se
a porta a várias ciências – Psicologia, Antropologia,
Gramática Normativa, Filologia etc. –, que separamos
claramente da Lingüística, mas que, por culpa de um
método incorreto, poderiam reivindicar a linguagem
como um de seus objetos (44, 16).

A primeira e a segunda observação de Saussure implicam


uma relação de concordância do Círculo para com o teórico
genebrino, na medida em que todos os elementos do todo do enun-
ciado concreto se encontram em interação orgânica. Já a terceira

56
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

observação não encontra eco nas formulações teóricas do Círcu-


lo, cujo percurso teórico observa a linguagem sob vários aspectos
ao mesmo tempo, todos esses aspectos em interação orgânica.
Nesse sentido, as portas são abertas para uma Psicologia Objeti-
va, uma Antropologia Filosófica35 , uma Sociologia do Discurso, e,
finalmente, uma Metalingüística.
Saussure vai eleger a língua como “norma de todas as ou-
tras manifestações da linguagem” (44, 16-17), como uma parte
determinada e essencial da linguagem que é “a parte social da
linguagem, exterior ao indivíduo, que, por si só, não pode nem
criá-la nem modificá-la; ela não existe senão em virtude duma
espécie de contrato estabelecido entre os membros da comu-
nidade” (44, 22).
Essa visão estática e abstrata da linguagem que Saussure
utiliza para constituir a Lingüística não se confunde com a abor-
dagem dinâmica e concreta da vida da linguagem promovida pelo
Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev. Para Bakhtin, por exem-
plo, “toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de
emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artísti-
ca, etc.), está impregnada de relações dialógicas. Mas a lingüísti-
ca estuda a “linguagem” propriamente dita com sua lógica espe-
cífica na sua generalidade, como algo que torna possível a comu-
nicação dialógica, pois ela abstrai conseqüentemente as relações
propriamente dialógicas. Essas relações se situam no campo do
discurso, pois este é por natureza dialógico e, por isto, tais rela-
ções devem ser estudadas pela metalingüística, que ultrapassa
os limites da lingüística e possui objeto autônomo e tarefas pró-
prias” (13, 158-159).
Todas essas observações nos servem de parâmetro inicial
para a discussão das críticas formuladas pelo Círculo não só à

35
Ver Cap. 7 “Anthropologie Philosophique” em Todorov, T. Mikhaïl
Bakhtine. Le principe dialogique. suivi de écrits du cercle de Bakhtine.
(31, 145-172), e Faraco, C. A. “O dialogismo como chave de uma
antropologia filosófica” (47, 113-126).

57
Geraldo Tadeu Souza

lingüística, mas também à estilística tradicional. Considerar a


linguagem enquanto um fenômeno vivo, concretizado em enun-
ciados, vai exigir do Círculo o estudo de outros gêneros científi-
cos de investigação desse mesmo objeto, os quais vão ser carac-
terizados aqui como oriundos de um pensamento abstrato – ob-
jetivismo abstrato – e de um pensamento idealista – subjetivismo
idealista, contrapondo-se ao pensamento concreto que orienta as
investigações de Bakhtin, Volochinov e Medvedev.

1. O subjetivismo idealista, o objetivismo abstrato e o


enunciado concreto
Quando procuramos compreender o todo da obra do Cír-
culo Bakhtin/Volochinov/Medvedev nos encontramos no inte-
rior de uma arquitetônica, que reflete e refrata, ao mesmo tempo,
as concepções monológicas do pensamento abstrato e do pensa-
mento idealista, no que se refere ao enunciado concreto. É como
se a crítica promovida pelo Círculo penetrasse no mais íntimo
aspecto de cada disciplina científica investigada – o outro, e ani-
masse os conceitos interiores de um ponto de vista exterior. E
essa investigação complementar, ou situada na fronteira das dis-
ciplinas, como eles costumam dizer, que possibilita a percepção
do enunciado concreto, do acontecimento real da linguagem, é
fundamental para compreender o “relacionismo”, ou o “dialogismo”
entre o pensamento concreto, o pensamento abstrato e o pensa-
mento idealista, e suas respectivas tarefas autônomas.
A forma como cada um desses pensamentos – concreto,
abstrato, idealista – se defrontam sobre o material verbal vai im-
plicar num determinado gênero. Esses gêneros científicos – me-
talingüístico, estético, lingüístico, formalista, psicológico, estilís-
tico, etc. – vão dar um acabamento específico a esse material,
considerando-o sob diferentes formas e conteúdos.
Desde a obra do período fenomenológico de Bakhtin, Toward
a Philosophy of the Act (1919-1921), já existe uma abordagem

58
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

dos pensamentos abstrato/concreto/idealista, no sentido de bus-


car uma compreensão do ato concreto em oposição à pureza lógi-
ca do pensamento abstrato, ou à criatividade idealista. Para o
teórico russo, “qualquer expressão é muito mais concreta do que
uma significação pura – ela distorce e embota a pureza e a valida-
de do sentido em si mesmo. É por isso que nós nunca entende-
mos uma expressão, em seu sentido total, no pensamento abs-
trato” (2, 31).
Um dos medos de Bakhtin era que uma Filosofia do Ato
responsável se revertesse em uma abordagem psicologista ou
subjetivista: “o subjetivismo e o psicologismo são diretamente
correlatos do objetivismo (objetivismo lógico) e [uma palavra ilegí-
vel36 ] apenas quando o ato responsável é dividido abstratamente
em seu sentido objetivo e no processo subjetivo de sua realiza-
ção. Do ponto de vista do ato, tomado em seu todo indivisível,
não há nada que seja subjetivo e psicológico. Na sua responsabi-
lidade [respondibilidade], o ato apresenta em si sua própria ver-
dade [pravda] como algo para ser acabado – uma verdade que
une os momentos subjetivo e psicológico, da mesma forma que
une o momento do que é universal (válido universalmente) ao
momento do que é individual (real). Essa verdade [pravda] unitá-
ria e única do ato responsável realizado é posto como algo para
ser acabado qual uma verdade [pravda] sintética” (2, 29).
Essa busca da interação orgânica entre o subjetivo e o psi-
cológico, ao mesmo tempo que entre o universal e o individual
também permeia a crítica ao racionalismo quando esse pensa-
mento contrapõe o que é objetivo, como sendo racional, ao que é
subjetivo, individual, singular considerado esses últimos como
irracionais e fortuitos: “a racionalidade inteira de um ato respon-
sável ou ação é atribuído aqui […] ao que é objetivo, ao que foi

36
Algumas palavras ou grupos de palavras de Toward a Philosophy of
the Act estavam ilegíveis no manuscrito original, o qual segundo
Bocharov, seu editor russo, encontra-se em condições precárias (2,
XVII).

59
Geraldo Tadeu Souza

separado abstratamente do ato responsável, enquanto tudo que


é fundamental e que sobra após essa subtração, é considerado
como um processo subjetivo. Entretanto, a unidade transcendental
inteira da cultura objetiva é, na realidade, irracional e elementar,
totalmente divorciada do centro unitário e único constituído por
um ato consciente. Evidentemente, um divórcio total é, na reali-
dade, impossível, e até onde pensarmos, realmente, essa unida-
de brilha com uma luz emprestada da nossa responsabilidade.
Somente um ato ou ação tomado, do exterior, como um fato fisi-
ológico, biológico, ou psicológico, pode se apresentar como ele-
mentar e irracional, como qualquer ser abstrato. Mas do interior
de um ato responsável, o único que responsavelmente, realiza o
ato, conhece uma luz clara e distinta, na qual ele realmente ori-
enta a si mesmo” (2, 30).
Nos dois parágrafos anteriores, tivemos uma amostra das
críticas formuladas ao subjetivismo idealista e ao objetivismo
abstrato, a partir do ponto de vista do ato concreto, da constru-
ção do enunciado concreto como um todo. E os elementos cons-
tituintes desse todo já aparecem aqui numa concepção ética-
fenomenológica que já sugere os pontos de vista sociológico, ide-
ológico e dialógico, que serão aplicados mais tarde ao enunciado
concreto.
Para Bakhtin, “o evento inacabado pode ser claro e distin-
to, em todos os seus momentos constituintes, para um partici-
pante no ato ou ação que ele realiza” (2, 30). O autor desse ato
conhece as pessoas e os objetos presentes a esse acontecimento
concreto, ao mesmo tempo que os valores reais e concretos des-
sas pessoas e objetos. Segundo o teórico russo, “ele [o autor] intui
a vida interior deles [os outros participantes da situação] como
também os seus desejos; ele compreende o sentido real e neces-
sário da inter-relação entre ele e essas pessoas e objetos – a ver-
dade [pravda] do estado de relações dada – e compreende a ne-
cessidade de seu ato realizado, isto é, não a lei abstrata desse
ato, mas a necessidade real e concreta condicionada pelo seu
único lugar no contexto dado do evento inacabado. E todos esses

60
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

momentos, que compõe o evento em sua totalidade, estão pre-


sentes para ele como algo dado e, também, como algo para ser
acabado numa luz unitária, numa consciência responsável, uni-
tária e única, e eles são realizados num ato responsável, único e
unitário” (2, 30).
As implicações do todo do enunciado concreto – do ato –
nos seus elementos vão adquirindo outros desdobramentos nas
discussões em torno do problema do conteúdo, do material e da
forma, e da interação orgânica entre esses problemas. Pensar
cada um desses problemas isoladamente implica em não perder
a visão do todo. E essa é uma das críticas que o Círculo direciona
regularmente à lingüística e a sua concepção abstrata do ato
concreto, do enunciado concreto.
Para o teórico russo, a lingüística opera com enunciados
neutros, “vê neles somente o fenômeno da língua, relaciona-os
apenas com a unidade da língua, mas não com a unidade de
conceito, de prática de vida, da História, do caráter de um indiví-
duo, etc. (4, 46). Em oposição a esses enunciados neutros da
lingüística, Bakhtin diz que “o enunciado isolado e concreto sem-
pre é dado num contexto cultural e semântico-axiológico (cientí-
fico, artístico, político, etc.) ou no contexto de uma situação isola-
da da vida privada; apenas nesses contextos o enunciado isolado
é vivo e compreensível: ele é verdadeiro ou falso, belo ou disfor-
me, sincero ou malicioso, franco, cínico, autoritário e assim por
diante” (4, 46).
Essa busca da verdade, da compreensão do todo do enun-
ciado concreto, adquire contornos sociológicos e ideológicos em
Marxismo e Filosofia da Linguagem. Nessa obra, Bakhtin/
Volochinov tece, de um ponto de vista sociológico e ideológico,
críticas às concepções abstratas e idealistas, denominando-as
Objetivismo Abstrato e Subjetivismo Idealista. Para os teóricos
russos, as posições fundamentais da primeira – Subjetivismo Ide-
alista (A) – e da segunda – Objetivismo Abstrato (B), são antíteses
uma da outra, conforme apresentamos a seguir:

61
Geraldo Tadeu Souza

1A – A língua é uma atividade, um processo criativo


ininterrupto de construção (“energia”), que se materia-
liza sob a forma de atos individuais de fala. (10, 72)
1B – A língua é um sistema estável, imutável, de formas
lingüísticas submetidas a uma norma fornecida tal
qual à consciência individual e peremptória para esta.
(10, 82)
2A – As leis da criação lingüística são essencialmente as
leis da psicologia individual. (10, 72)
2B – As leis da língua são essencialmente leis lingüísticas
específicas, que estabelecem ligações entre os signos
lingüísticos no interior de um sistema fechado. Estas
leis são objetivas relativamente a toda consciência sub-
jetiva. (10, 82)
3A – A criação lingüística é uma criação significativa, aná-
loga à criação artística. (10, 72).
3B – As ligações lingüísticas específicas nada têm a ver com
valores ideológicos (artísticos, cognitivos ou outros).
Não se encontra, na base dos fatos lingüísticos, ne-
nhum motor ideológico. Entre a palavra e seu sentido
não existe vínculo natural e compreensível para a
consciência, nem vínculo artístico. (10, 82).
4A – A língua, enquanto produto acabado (“ergon”), enquan-
to sistema estável (léxico, gramática, fonética), apre-
senta-se como um depósito inerte, tal como a lava fria
da criação lingüística, abstratamente construída pelos
lingüistas com vistas à sua aquisição prática como ins-
trumento pronto para ser usado. (10,73).
4B – Os atos individuais de fala constituem, do ponto de
vista da língua, simples refrações ou variações fortui-
tas ou mesmo deformações das formas normativas.
Mas são justamente estes atos individuais de fala que
explicam a mudança histórica das formas da língua;
enquanto tal, a mudança é, do ponto de vista do sis-

62
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

tema, irracional e desprovida de sentido. Entre o sis-


tema da língua e sua história não existe nem vínculo
nem afinidade de motivos. Eles são estranhos entre
si. (10, 83).

Tanto as teses do Subjetivismo Idealista – a língua enquanto


criação – quanto as do Objetivismo Abstrato – a língua enquanto
norma – não são suficientes para dar conta do projeto do Círculo,
ou seja, de uma investigação do enunciado concreto. É nesse
sentido que vamos apresentar as críticas formuladas por Bakhtin/
Volochinov a cada uma dessas orientações do pensamento lin-
güístico, aproveitando, ao mesmo tempo, para construir o ponto
de vista específico da investigação promovida pelo Círculo.
Bakhtin/Volochinov formula as seguintes críticas ao
Objetivismo Abstrato:

a) a compreensão que o indivíduo tem de sua língua não


está orientada para a identificação de elementos
normativos do discurso, mas para a apreciação de sua
nova qualidade contextual (10, 103).
b) a enunciação [enunciado] monológica fechada consti-
tui, de fato, uma abstração. A concretização da palavra
só é possível com a inclusão dessa palavra no contexto
histórico real de sua realização primitiva. Na enuncia-
ção [enunciado] monológica isolada, os fios que ligam a
palavra a toda a evolução histórica concreta foram cor-
tados (10,103).
c) a reflexão lingüística de caráter formal-sistemático foi
inevitavelmente coagida a adotar em relação às línguas
vivas uma posição conservadora e acadêmica, isto é, a
tratar a língua viva como se fosse algo acabado, o que
implica uma atitude hostil em relação a todas as inova-
ções lingüísticas. A reflexão lingüística de caráter for-
mal-sistemático é incompatível com uma abordagem
histórica e viva da língua (10,104).

63
Geraldo Tadeu Souza

d) as formas que constituem uma enunciação [enunciado]


completa só podem ser percebidas e compreendidas
quando relacionadas com outras enunciações [enunci-
ados] completas pertencentes a um único e mesmo do-
mínio ideológico. (10, 105).
e) a forma lingüística somente constitui um elemento abs-
tratamente isolado do todo dinâmico da fala, da enuncia-
ção [enunciado]… A enunciação [enunciado] como um
todo não existe para a lingüística (10, 105).
f) o sentido da palavra é totalmente determinado por seu
contexto. […] os contextos possíveis de uma única e
mesma palavra são freqüentemente opostos […], encon-
tram-se numa situação de interação e de conflito tenso
e ininterrupto (10, 106-107).
g) o objetivismo abstrato coloca a língua fora do fluxo da
comunicação verbal […] Entretanto, a língua é
inseparável desse fluxo e avança justamente com ele.
Na verdade, a língua não se transmite; ela dura e per-
dura sob a forma de um processo evolutivo contínuo.
Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser
usada; eles penetram na corrente da comunicação
verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa
corrente é que sua consciência desperta e começa a
operar (10, 107-108).
h) o objetivismo abstrato […] não sabe ligar a existência da
língua na sua abstrata dimensão sincrônica com sua
evolução. […] Torna-se, assim, impossível a conjunção
dialética entre necessidade e liberdade e até, por assim
dizer, a responsabilidade lingüística. Assenta-se, aqui,
o reino de uma concepção puramente mecanicista da
necessidade no domínio da língua (10, 108).
i) na base dos fundamentos teóricos do objetivismo abs-
trato estão as premissas de uma visão do mundo
racionalista e mecanicista, ao menos favoráveis a uma

64
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

concepção correta da história; ora, a língua é um fenô-


meno puramente histórico (10, 108-109).

O principal aspecto das críticas reside na incapacidade


dessas duas tendências do pensamento lingüístico – o objetivismo
abstrato e o subjetivismo idealista – em perceber, ou querer en-
frentar a realidade ética, histórica-fenomenológica, sociológica,
e enfim dialógica do enunciado concreto, incluindo aí o proble-
ma da criatividade lingüística e da teoria da expressão subja-
cente ao subjetivismo idealista – ou subjetivismo individualista
–, o qual é criticado pelo Círculo nos seguintes termos:

a) a teoria da expressão subjacente ao subjetivismo indivi-


dualista deve ser completamente rejeitada. O centro or-
ganizador de toda enunciação [enunciado], de toda ex-
pressão, não é interior, mas exterior: está situado no
meio social que envolve o indivíduo. […] A enunciação
[enunciado] enquanto tal é um puro produto da intera-
ção social, quer se trate de um ato de fala determinado
pela situação imediata ou pelo contexto mais amplo que
constitui o conjunto das condições de vida de uma de-
terminada comunidade lingüística. (10, 121).
b) o subjetivismo individualista tem razão em sustentar
que as enunciações [enunciados] isoladas constituem a
substância real da língua e que a elas está reservada a
função criativa da língua. Mas está errado quando igno-
ra e é incapaz de compreender a natureza social da
enunciação e quando tenta deduzir esta última do mun-
do interior do locutor, enquanto expressão desse mun-
do interior. (10, 122)37 .

37
Um trecho desse enunciado aparece em Todorov, T. Mikhaïl Bakhtin.
Le principe dialogique: “… Mais le subjectivisme individualiste a tort
en ce qu’il ignore et ne comprend pas la nature sociale de l’énoncé, et

65
Geraldo Tadeu Souza

c) A estrutura da enunciação e da atividade mental a ex-


primir são de natureza social38 . A elaboração estilística
da enunciação [enunciado] é de natureza sociológica e a
própria cadeia verbal, à qual se reduz em última análise
a realidade da língua, é social. Cada elo dessa cadeia é
social, assim como toda a dinâmica de sua evolução.
(10, 122).
d) O subjetivismo individualista tem toda a razão quando
diz que não se pode isolar uma forma lingüística do seu
conteúdo ideológico. Toda palavra é ideológica e toda
utilização da língua está ligada à evolução ideológica.
Esta errado quando diz que esse conteúdo ideológico
pode igualmente ser deduzido das condições do
psiquismo individual. (10, 122).
e) o subjetivismo individualista está errado em tomar, da
mesma maneira que o objetivismo abstrato, a enuncia-
ção [enunciado] monológica como seu ponto de partida
básico. (10, 122).

As formulações teóricas das duas orientações e a forma


com que se debruçam sobre a linguagem não servem aos propó-
sitos de Bakhtin, Volochinov e Medvedev em relação a uma in-
vestigação científica do enunciado concreto.
Nesse sentido, Bakhtin/Volochinov chama atenção para o
fato de que “ao considerar que só o sistema lingüístico pode dar
conta dos fatos da língua [linguagem], o objetivismo abstrato re-
jeita a enunciação [enunciado], o ato de fala, como sendo indivi-
dual. Como dissemos, é esse o proton pseudos, a “primeira men-
tira”, do objetivismo abstrato” (10, 109).

qu’il essaie de le déduire du monde intérieur du locuteur, comme


expresssion de ce monde intérieur.” (31, 56).
38
Idem, “La structure de l’énoncé, ainsi que celle de l’experience
exprimable même, est une structure social” (31,56)

66
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

Pelo mesmo motivo, para explicar a realidade concreta da


linguagem, os teóricos do Círculo irão rejeitar a outra corrente de
pensamento lingüístico: “o subjetivismo individualista, ao con-
trário, só leva em consideração a fala. Mas ele também considera
o ato de fala como individual e é por isso que tenta explicá-lo a
partir das condições da vida psíquica individual do sujeito fa-
lante. E esse é o seu proton pseudos” (10, 109).
Rejeitando tanto a tese quanto a antítese, resta ao Círculo
promover uma síntese dialética: “na realidade, o ato de fala, ou,
mais exatamente, seu produto, a enunciação [enunciado], não
pode de forma alguma ser considerado como individual no senti-
do estrito do termo; não pode ser explicado a partir das condições
psicofisiológicas do sujeito falante. A enunciação [enunciado] é
de natureza social” (10, 109).
Não podemos esquecer que o enunciado que serve de base
para as formulações do ponto de vista do Círculo é o enunciado
concreto, que tem um autor e um interlocutor, ou seja, que é
uma unidade da comunicação verbal. É na estrutura ética, histó-
rico-fenomenológica, sociológica e dialógica desse enunciado que
eles irão fundamentar as seguintes formulações teóricas:

a) A língua com sistema estável de formas normativamente


idênticas é apenas uma abstração científica que só pode
servir a certos fins teóricos e práticos particulares. Essa
abstração não dá conta de maneira adequada da reali-
dade concreta da língua [linguagem].
b) A língua constitui um processo de evolução ininterrup-
to, que se realiza através da interação verbal social dos
locutores.
c) As leis da evolução lingüística não são de maneira algu-
ma as leis da psicologia individual, mas também não
podem ser divorciadas da atividade dos falantes. As leis
da evolução lingüística são essencialmente leis socioló-
gicas.

67
Geraldo Tadeu Souza

d) A criatividade da língua não coincide com a criativida-


de artística nem com qualquer outra forma de criativi-
dade ideológica específica. Mas, ao mesmo tempo, a
criatividade da língua não pode ser compreendida in-
dependentemente dos conteúdos e valores ideológicos
que a ela se ligam. A evolução da língua, como toda
evolução histórica, pode ser percebida como uma ne-
cessidade cega de tipo mecanicista, mas também pode
tornar-se “uma necessidade de funcionamento livre”,
uma vez que alcançou a posição de uma necessidade
consciente e desejada.
e) A estrutura da enunciação [enunciado] é uma estrutura
puramente social. A enunciação [enunciado] como tal
só se torna efetiva entre falantes. O ato de fala indivi-
dual (no sentido estrito do termo “individual”) é uma
contradictio in adjecto. (10, 127).

É a partir de uma concepção sociológica do enunciado con-


creto, como a realidade material da linguagem, ou seja, com um
ato que se constitui organicamente de uma parte verbal – a língua
– e uma parte extraverbal – a situação – que Bakhtin/Volochinov/
Medvedev podem distinguir entre esse enunciado e o enunciado
monológico isolado – a frase, a sentença, a oração – bem como,
conceber a criatividade lingüística não como um ato puramente
individual, mas como uma criatividade sociológica e dialógica,
realizada na interação verbal, ou seja, na dimensão do diálogo
entre falantes de uma determinada comunidade lingüística.

2. A frase e o enunciado concreto


É fundamental distinguir, na compreensão do todo da obra
do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev, o enunciado concre-
to da frase, sentença, oração lingüísticas, bem como do ato de
fala individual (o ponto de vista do subjetivismo idealista). Essa
distinção é um dos eixos das críticas formuladas ao pensamento
abstrato, ou objetivismo abstrato, que norteia as investigações

68
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

lingüísticas e formalistas, por exemplo, visto que o pensamento


do Círculo não vai investigar a frase enquanto uma unidade lin-
güística pura, como uma unidade independente do todo dinâmi-
co do enunciado. Por outro lado, essa mesma investigação do
todo dinâmico do enunciado não vai considerar o enunciado con-
creto – o ato de fala – como sendo individual, como é próprio ao
pensamento idealista – ou subjetivismo idealista – de que fala
Bakhtin/Volochinov.
Em 1924, ao tratar do problema do material verbal no inte-
rior da lingüística, Bakhtin diz: “… até hoje a lingüística ainda
não ultrapassou cientificamente a oração complexa: este é o mais
longo fenômeno da língua já explorado lingüística e cientifica-
mente: tem-se a impressão de que a língua precisamente lingüís-
tica e metodicamente pura de repente termina ali e de repente
tem início a ciência, a poesia, etc.; entretanto a análise lingüísti-
ca pura pode ser levada mais adiante, por mais difícil que pareça
e por mais tentador que seja introduzir aqui pontos de vista alheios
à lingüística” (4, 47). Portanto, é importante distinguir entre as
formas da língua e as formas do enunciado concreto.
A frase é percebida pelo Círculo como um enunciado mo-
nológico, fechado, que não tem relação com o exterior, não tem
autor, não tem conceito. Ela é retirada do funcionamento real
para ser desconstruída em unidades menores como palavra,
fonemas, morfemas, etc. E essas categorias lingüísticas “só são
aplicáveis no interior do território da enunciação [enunciado]; elas
deixam de ser úteis quando se trata de definir o todo. O mesmo
se dá com as categorias sintáticas, por exemplo a oração: “a cate-
goria oração é meramente uma definição da oração como uma
unidade dentro de uma enunciação [enunciado], mas de nenhu-
ma maneira como entidade global” (10, 140). Segundo Bakhtin/
Volochinov é impossível encontrar na oração os elementos que a
converte em um enunciado concreto.
Para os teóricos russos, a lingüística promove um estudo
do enunciado monológico isolado com as seguintes caracte-
rísticas:

69
Geraldo Tadeu Souza

a) procura as relações imanentes no interior do enuncia-


do;
b) o alcance máximo da análise é a frase complexa;
c) as relações exteriores aos limites do enunciado são ig-
noradas;
d) há um fosso entre a sintaxe e os problemas de compo-
sição do discurso;
e) a frase, a oração são unidades convencionais.

Em contraposição aos estudos puramente lingüísticos, o


estudo promovido pelo Círculo, com base no enunciado concreto,
é um estudo complementar, ou seja, metalingüístico. Para
Bakhtin, “o estudo do enunciado, em sua qualidade de unidade
real da comunicação verbal, também deve permitir compreender
melhor a natureza das unidades da língua (da língua como sis-
tema): as palavras e as orações” (21, 287). Ele considera que a
abstração científica da lingüística não pode ser tomada como um
fenômeno real e concreto, porque assim ela pode cair na ficção.
Podemos dizer, então, que a natureza abstrata da reflexão lin-
güística não consegue refletir o todo do enunciado concreto, per-
manecendo aí, no interior de uma reflexão objetiva-abstrata.
No ensaio “Os gêneros do discurso” (1952-1953) são expli-
citadas as diferenças entre a oração (unidade da língua) e o enun-
ciado (unidade da comunicação verbal), as quais distinguem tam-
bém, por um lado, a natureza do pensamento abstrato da natu-
reza do pensamento concreto, e por outro, o estudo do híbrido
desses dois pensamentos, isto é, a passagem da oração ao enun-
ciado completo, onde ela se torna uma resposta ou uma com-
preensão responsiva de outro locutor.
A distinção entre a frase e o enunciado se torna mais clara
nessa citação de Bakhtin, onde ele esboça a síntese entre o dado
– a oração, a frase, a sentença – e o criado – o enunciado: “as
pessoas não trocam orações, assim como não trocam palavras
(numa acepção rigorosamente lingüística), ou combinações de

70
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

palavras, trocam enunciados constituídos com a ajuda de unida-


des da língua – palavras, combinações de palavras, orações; mes-
mo assim, nada impede que o enunciado seja constituído de uma
única oração, ou de uma única palavra, por assim dizer, de uma
única unidade da fala (o que acontece sobretudo na réplica do
diálogo), mas não é isso que converterá uma unidade da língua
numa unidade da comunicação verbal” (21, 297).
Mas quais são as características da frase, sentença, ora-
ção que as impedem de se tornar uma enunciado? Para respon-
der a essa questão, precisaríamos encontrar características dis-
tintas entre uma e outra categoria. Vejamos com quais caracte-
rísticas podemos definir a frase, a oração e a sentença:

1) é um fato gramatical, é dado;


2) é uma unidade da língua;
3) tem um acabamento gramatical, abstrato do elemento,
pode ser reproduzida ilimitadamente;
4) não é marcada pela alternância de sujeitos falantes, ou
seja, não leva em conta a comunicação verbal real e viva;
5) o contexto da oração é o contexto do discurso de um
único e mesmo sujeito falante (o locutor).
6) não pertence a ninguém e não se dirige a ninguém, ou
seja, não tem autor nem destinatário.

Todas essas características não permitem a investigação


do enunciado concreto, visto que as categorias frase, oração, sen-
tença se encontram no eixo de abstração, retiradas do funciona-
mento real e concreto da linguagem, sendo produtos da constru-
ção teórica abstrata. Já o enunciado concreto se define por carac-
terísticas distintas:

a) é um fato real, é criado;


b) é uma unidade da comunicação verbal, isto é, uma
unidade do gênero;

71
Geraldo Tadeu Souza

c) apresenta um acabamento real, ou seja, são irrepro-


duzíveis (embora possam ser citados);
d) as suas pausas são pausas reais;
e) tem autor (e expressão) e destinatário.

Essas características, presentes na investigação do todo


do enunciado concreto, refletem também a necessidade de se dis-
tinguir entre língua e discurso. No ensaio “O problema do texto”
(1959-1961), Bakhtin resume, de maneira bastante clara, a rela-
ção entre língua e discurso, entre oração e enunciado: “O sujeito
falante (a individualidade “natural” generalizada) e o autor do
enunciado. A alternância dos sujeitos falantes e alternância dos
locutores (dos autores de um enunciado). Pode-se estabelecer um
princípio de identidade entre a língua e o discurso, porque no
discurso se apagam os limites dialógicos do enunciado, mas ja-
mais se pode confundir língua e comunicação verbal (entendida
como comunicação dialógica efetuada mediante enunciados). É
possível a identidade absoluta entre duas ou mais orações (so-
brepostas, como duas figuras geométricas, elas coincidem). Há
mais: qualquer oração, mesmo complexa, dentro do fluxo ilimita-
do do discurso pode ser repetida ilimitadamente e de uma forma
perfeitamente idêntica, mas, enquanto enunciado (ou fragmento
de enunciado), nenhuma oração, ainda que constituída de uma
única palavra, jamais pode ser repetida, reiterada, duplicada: sem-
pre temos um novo enunciado (mesmo que em forma de citação)”
(23, 334-335). É, talvez, por isso que o fenômeno do discurso
citado – o enunciado de outrem – é tão importante nas formula-
ções teóricas do Círculo.
O sentido fenomenológico do enunciado concreto, criado
no momento único de sua existência, implica num esforço para
compreender a dinâmica da sua construção, da sua arquitetônica:
“dentro dos limites de um único e mesmo enunciado, uma oração
pode ser reiterada (repetição, autocitação), porém, cada ocorrên-
cia representa um novo fragmento de enunciado, pois sua posi-
ção e sua função mudaram no todo do enunciado” (23, 335), ou

72
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

seja, a noção do enunciado como um acontecimento, como uma


criação única, implica a adoção de um ponto de vista dinâmico
para sua investigação.
O material que serve de base de investigação para o pes-
quisador é sempre um material representado, isto é, o enunciado
de outrem. Em outras palavras, todo discurso é um discurso ci-
tado. Portanto, resta ao pesquisador encontrar um ponto de vista
para investigar esse discurso citado, e esse ponto de vista nós
acreditamos que pode ser encontrado se considerarmos o enun-
ciado concreto, seja ele de qual gênero for, como a base material
com a qual pode interagir uma Arquitetônica da Representação.

3. O enunciado concreto como base material


da Metalingüística: o dialogismo
Um dos conceitos mais importantes da obra do Círculo é o
diálogo. Talvez seja esse mesmo conceito a base de toda investi-
gação do enunciado concreto desencadeada por Bakhtin/
Volochinov/Medvedev. Se pensarmos em conceitos como enun-
ciado, comunicação – verbal, social, ideológica, dialógica, artística
–, interação verbal, situação, encontraremos em sua base concre-
ta a dimensão de um diálogo, pois “o todo do enunciado se cons-
titui como tal graças a elementos extra-lingüísticos (dialógicos), e
este todo está vinculado aos outros enunciados” (23, 335-336),
ou seja, é na dimensão do criado – o enunciado enquanto um
acontecimento, uma interação verbal entre sujeitos falantes, que
encontramos a natureza dialógica da linguagem.
Pensar o enunciado como unidade real, concreta, da co-
municação verbal significa tomar os elementos dialógicos como
fonte de uma compreensão ativa e científica. Um dos problemas
colocados pelo Círculo é de saber se a ciência “pode tratar de
uma individualidade tão absolutamente irreproduzível como o
enunciado, que estaria fora do âmbito em que opera o conheci-

73
Geraldo Tadeu Souza

mento científico propenso a generalização” (23, 335). Segundo


Bakhtin, isso é possível, e ele nos dá três argumentos:

a) qualquer ciência, em seu ponto de partida, lida com


singularidades irreproduzíveis e, em toda a sua traje-
tória, permanece ligada a elas;
b) a ciência, e acima de tudo a filosofia, pode e deve estu-
dar a forma específica e a função dessa individualidade;
c) esse estudo científico do particular deve levar em con-
ta “a absoluta necessidade de uma correção perma-
nente que previna de uma pretensão a uma análise
abstrata totalmente exaustiva (lingüística, por exem-
plo) de um enunciado concreto” (23,335).

O campo desses estudos situa-se na fronteira entre a aná-


lise da língua (o enunciado isolado) e a análise do sentido (o enun-
ciado dialógico). E esse campo “é uma campo que pertence a
ciência” (23, 335). Bakhtin chama esse campo de estudo de Me-
talingüística.
Para ele, “as pesquisas metalingüísticas, evidentemente
não podem ignorar a lingüística e devem aplicar os seus resulta-
dos. A lingüística e a metalingüística estudam um mesmo fenô-
meno concreto, muito complexo e multifacético – o discurso, mas
o estudam sob diferentes aspectos e de diferentes ângulos de
visão. Devem completar-se mutuamente e não fundir-se. Na
prática, os limites entre elas são violados com muita freqüência”
(13, 157).
Esse caráter de complementaridade entre as disciplinas é
enfatizado por Bakhtin: “a lingüística conhece, evidentemente, a
forma composicional do “discurso dialógico” e estuda as suas
particularidades sintáticas léxico-semânticas. Mas ela as estuda
enquanto fenômenos puramente lingüísticos, ou seja, no plano
da língua, e não pode abordar, em hipótese alguma, a especifici-
dade das relações dialógicas entre as réplicas. Por isto, ao estu-

74
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

dar o “discurso dialógico”, a lingüística deve aproveitar os resul-


tados da metalingüística” (13, 158).
Tudo o que, anteriormente, era chamado de aspecto extra-
verbal, extra-lingüístico, subentendido do enunciado e que, ge-
ralmente, compreendia o conceito situação, encontra na Metalin-
güística uma expressão mais adequada, e esses aspectos, pela
própria tradição de estudos de um campo de fronteira de discipli-
nas, passam a ser chamados de aspectos metalingüísticos, e mais
precisamente, relações dialógicas.
O objeto de estudo da Metalingüística caracteriza-se, en-
tão, como relações dialógicas. Essas relações são extralingüísticas,
“ao mesmo tempo, porém, não podem ser separadas do campo
do discurso, ou seja, da língua enquanto fenômeno integral con-
creto. A linguagem vive apenas na comunicação dialógica daque-
les que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica que
constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem” (13, 158). É
por se situar no campo do discurso, que é por natureza dialógico,
que as relações dialógicas “devem ser estudas pela metalingüísti-
ca, que ultrapassa os limites da lingüística e possui objeto autô-
nomo e tarefas próprias” (13, 159) Eis algumas dessas tarefas:

a) estudo dos aspectos e das formas da relação dialógica


que se estabelece entre os enunciados e entre suas for-
mas tipológicas (os fatores do enunciado): a forma do
enunciado;
b) estudo dos aspectos extra-lingüísticos e não significan-
tes (artísticos, científicos e outros) do enunciado: a fun-
ção social do enunciado;
c) estudo da palavra de outrem: “a orientação da palavra
entre palavras, a sensação distinta da palavra do outro
e os diversos meios de reagir diante dela” (13, 176).

Numa definição mais específica do conceito relações


dialógicas, Bakhtin diz que ela “é uma relação marcada por uma
profunda originalidade e que não pode ser resumida a uma re-

75
Geraldo Tadeu Souza

lação de ordem lógica, lingüística, psicológica ou mecânica, ou


ainda a uma relação de ordem natural. Estamos perante uma
relação específica de sentido cujos elementos constitutivos só
podem ser enunciados completos (ou considerados completos,
ou ainda potencialmente completos) por trás dos quais está (e
pelos quais se expressa) um sujeito real ou potencial, o autor do
determinado enunciado” (23, 354).
Ao estudar o discurso, os enunciados completos e concre-
tos, que são as unidades da comunicação verbal, e que são, tam-
bém, irreproduzíveis (embora possam ser citados), estamos na
realidade, por uma necessidade científica, estudando o enuncia-
do no interior de alguma relação dialógica, na qual necessaria-
mente, o pesquisador tem um papel exterior, o papel de terceiro
no diálogo. É nesse sentido que, para o pesquisador, só existem
enunciados citados.
Pensando o diálogo como uma grande unidade de reflexão
do pensamento concreto, ou seja, o todo do diálogo encontramos,
em interação orgânica, de um lado, a comunicação social e sua
base econômica, e de outro, a comunicação verbal ou interação
verbal realizada em enunciados concretos.
Como já vimos anteriormente, o todo do enunciado concre-
to é o produto da interação entre falantes num determinado con-
texto e no interior de uma situação social complexa. Este é o
cenário, onde o enunciado concreto, o discurso deve ser compre-
endido. Segundo Volochinov, “o discurso é como que o “cenário”
do ato imediato de comunicação no processo no qual ele é engen-
drado, e esse ato de comunicação é, por sua vez, um fator do
largo campo de comunicação da comunidade da qual provém os
falantes” (6, 79).
O enunciado é dialógico, o discurso é dialógico, a comuni-
cação é, também, dialógica. Nesse sentido, é importante salientar
que todo o projeto de investigação dialógica do enunciado concre-
to é uma investigação dinâmica. Conseqüentemente, o seu con-
ceito de comunicação difere daquele – completamente pronto e
estático, e segundo o Círculo, radicalmente incorreto – desenvol-

76
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

vido pelos formalistas nos anos 20. Vejamos a comparação entre


uma e outra perspectiva:

Formalistas: Dados dois membros da sociedade. A (o autor) e R


(o leitor); a relação social entre eles são constantes
e estáveis num momento dado; é dado também
uma comunicação pronta X, que será simplesmente
transmitida de A para R. O “que” (conteúdo) dessa
mensagem X difere do seu “como” (forma), e a
“orientação pela expressão” (“como”) é caracterís-
tica da palavra artística.
Círculo: “Na realidade, a relação entre A e R está mudando e se
desenvolvendo constantemente, e ela muda no proces-
so comunicativo.
E não existe uma comunicação X pronta. Ela se desen-
volve no processo de comunicação entre A e R.
Além disso, X não é transmitida de um para outro, mas
é construída entre eles como um tipo de ponte ideológi-
ca, ela é construída no processo da interação deles. E
esse processo causa ao mesmo tempo: a unidade temá-
tica do trabalho desenvolvido e a forma de sua realiza-
ção real. Isso não pode ser separado…
Se separarmos objetos, trabalhos prontos do processo
social vivo e objetivo, nós nos encontraremos com abs-
trações que prescindem de qualquer movimento, cria-
ção e interação” (7, 152).

Pensar a linguagem, em sua configuração dialógica, signi-


fica considerá-la como um acontecimento social, fruto de alguma
atividade de comunicação social (trabalho) realizada na forma de
uma comunicação verbal determinada, isto é, da interação verbal
de um ou mais enunciados construídos num processo dialógico
de alternância dos sujeitos envolvidos, e não na concepção está-
tica apresentada, como vimos, pelos formalistas neste período.
Nesse sentido, é importante compreender como o Círculo articu-
la as relações de comunicação social que vão ser um dos funda-
mentos do “cenário” que compreende o todo do enunciado con-
creto.

77
Geraldo Tadeu Souza

Numa tipologia geral de relações de Comunicação Social,


Volochinov sugere a seguinte:

a) a comunicação artística;
b) as relações de produção (nas usinas, nos ateliers, nos
kolkhoses, etc.);
c) as relações de negócios (nas administrações, nos orga-
nismos públicos, etc.);
d) as relações cotidianas (os encontros e conversas na rua,
nas cantinas, consigo mesmo, etc.); e
e) as relações ideológicas strictu sensu: propaganda, es-
cola, ciência, a atividade filosófica sobre todas as suas
formas. (16, 289).

Assim sendo, encontramos na estrutura arquitetônica do


enunciado o abrigo para diferentes tipos de atividade humana,
ou seja, de comunicação social. Devemos enxergar no enunciado
espaços organizados e animados, ou seja, dinâmicos, compostos
de uma certa atividade humana (Comunicação Social) e de uma
certa atividade de linguagem (Comunicação Verbal) – gênero do
discurso – engendradas num determinado enunciado ou enun-
ciados na dimensão de um diálogo. Para o Círculo, todos os dis-
cursos são dialógicos.
Para melhor compreender a linguagem, precisamos com-
preender que a sua verdadeira substância “não é constituída por
um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pelo enunciado
monológico isolado, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção,
mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através
do enunciado ou dos enunciados” (10, 123).
Essa perspectiva dialógica, sociológica, fenomenológica e
histórica, nos leva a uma outra observação de Bakhtin/Volochinov:
“a compreensão é dialógica por natureza”, ou seja, “a compreen-
são está para o enunciado assim como uma réplica está para a

78
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

outra no diálogo” (10, 132). Em um outro ponto, eles dizem “o


problema do diálogo começa a chamar cada vez mais a atenção
dos lingüistas e, algumas vezes, torna-se mesmo o centro das
preocupações em lingüística. Isso é perfeitamente compreensí-
vel, pois, como sabemos, a unidade real da língua que é realizada
na fala (Sprache als Rede) não é a enunciação [enunciado]
monológica individual e isolada, mas a interação de pelo menos
duas enunciações [enunciados], isto é, o diálogo” (10, 145-146).
Toda essa discussão, realizada na dimensão dialógica, pode
ser resumida no seguinte esquema, apresentado no ensaio “La
structure de l’énoncé” (1930), o qual implica uma interação orgâ-
nica entre os seus elementos, e, ao mesmo tempo, preenche a
natureza ideológica, sociológica, dialógica e lingüística envolvi-
das no todo do enunciado concreto:

Organização econômica da sociedade



A comunicação social

A interação verbal (comunicação verbal)

Os enunciados

As formas gramaticais de linguagem

Após apresentar esse esquema, Volochinov diz que ele “ser-


virá de fio diretor no estudo dessa unidade concreta, que releva
da parole e que nós chamaremos enunciado” (16, 289). É, então,
o enunciado concreto que se torna a unidade de base para a
compreensão do esquema estruturado acima.
A interação orgânica entre o enunciado concreto e a intera-
ção verbal é um dos princípios básicos do pensamento do Círcu-
lo. É na interação verbal (comunicação verbal) que eles encon-
tram a realidade fundamental da linguagem. Para Volochinov,

79
Geraldo Tadeu Souza

“toda comunicação, toda interação verbal se realiza sob a forma


de uma troca de enunciados, isto é, na dimensão de um diálogo”
(16, 292). Esse é um dos motivos da crítica à lingüística e ao seu
objeto – a língua – formulada por Bakhtin: “o objeto da lingüística
é formado pela matéria isolada, pelos meios da comunicação verbal
sozinhos – mas não pela comunicação verbal, nem pelos enunci-
ados enquanto tais, nem pelas relações (dialógicas) que existem
entre eles, nem pelas formas da comunicação verbal nem pelos
gêneros verbais” (30, 79).
Mergulhando no todo da obra podemos aproximar os con-
ceitos discurso, comunicação e diálogo, e encontrar os seus pon-
tos de convergência para com o objetivo de explicar o funciona-
mento do enunciado concreto. Nesse sentido, apresentamos três
citações: a primeira de Volochinov, a segunda de Bakhtin/
Medvedev e a terceira de Bakhtin/Volochinov:

“O discurso verbal, não no sentido estreito da lingüística, mas no


seu sentido sociológico largo e concreto – este é o meio objetivo no
qual o conteúdo da psique é apresentado” (6, 83).

“Se tomarmos a palavra “comunicativo” no seu sentido mais lar-


go e mais geral, então, todo enunciado é comunicativo… A comu-
nicação, compreendida nesse sentido largo, é um elemento cons-
titutivo da linguagem como tal.” (7, 93-94)

“O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro,


senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da
interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo”
num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em
voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação
verbal, de qualquer tipo que seja” (10, 123).

Essa compreensão, tanto do discurso, como da comunicação


e do diálogo, no sentido largo, reflete a necessidade de compreen-
der o enunciado concreto em três dimensões. Podemos dizer que
no interior do enunciado concreto, que no todo de sua articula-
ção, os conceitos têm sempre um caráter tridimensional, e nesse

80
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

caso, existem três dimensões para se pensar as suas relações


dialógicas:

a) o micro-diálogo: o diálogo interior;


b) o diálogo no sentido estrito: o diálogo exterior realizado
numa determinada situação;
c) o diálogo no sentido largo, ou seja, o grande diálogo: o
diálogo infinito em que não há nem a primeira nem a
última palavra.

Se observarmos atentamente o todo da obra, veremos que


os conceitos principais atuam dessa maneira e, então, podemos
formular o seguinte esquema de reflexão:

enunciado concreto diálogo tempo


interior micro-diálogo pequena temporalidade
exterior diálogo imediato
de outrem grande-diálogo grande temporalidade

A vida do enunciado concreto se encontra realizada nes-


sas três dimensões de diálogo. Do ponto de vista do pesquisa-
dor, podemos dizer que:

a) A primeira não é acessível ao pesquisador, embora ele


saiba de sua existência concreta por experiência própria.
Sendo assim, ela só pode ser observada em sua repre-
sentação literária no diálogo do herói com ele mesmo.
b) A segunda compreende o diálogo de duas ou mais pes-
soas onde a resposta é, em geral, imediata, existe
alternância de sujeitos. Nesse caso, o pesquisador é o
terceiro, cujo olhar exterior consegue perceber a relação
eu/outro efetivada no diálogo;
c) A terceira corresponde a dimensão de resposta não ime-
diata, onde as relações dialógicas entre os enunciados

81
Geraldo Tadeu Souza

concretos, vivos, constrói o fenômeno, estudado exaus-


tivamente pelo Círculo, do discurso de outrem – do enun-
ciado de outrem – que adentra a estrutura do enun-
ciado, isto é, o interior do meu discurso. Essa dimensão
aparece também em um ponto da obra sob a denomina-
ção de “diálogo inconcluso”.

Derivado do conceito de diálogo e de uma concepção


relacionista do mundo, da natureza dialógica da consciência e da
vida humana, Bakhtin nos diz que “el diálogo inconcluso es la
única forma adecuada de expresión verbal de una vida humana
autêntica. La vida es dialógica por su naturaleza.Vivir significa par-
ticipar en un diálogo: significa interrogar, oír, responder, esta de
acuerdo, etc. El hombre participa en este diálogo todo y con toda su
vida: con ojos, labios, manos, alma, espíritu, con todo el cuerpo, con
sus actos. El hombre se entrega todo a la palavra y esta palavra
forma parte de la tela dialógica de la vida humana, del simposio
universal. Las imágenes cosificadas, objetuales, son profundamen-
te inadecuadas tanto para la vida como para la palavra. El modelo
cosificado del mundo se está sustuyendo por el modelo dialógico.
Cada pensamiento y cada vida lheam a formar parte de un diálogo
inconcluso. Tambíen es impermisible la cosificación de la palavra:
sua naturaleza también es dialógica” (24, 334).
Essa busca pela não coisificação da palavra é necessária
para fugir ao procedimento puramente mecânico, o qual, segundo
Bakhtin, não permite perceber as relações dialógicas. Ainda se-
gundo o mesmo teórico, “não se podem contemplar, analisar e
definir as consciências alheias como objetos, como coisas: comu-
nicar-se com elas só é possível dialogicamente. Pensar nelas im-
plica em conversar com elas, pois do contrário elas voltariam ime-
diatamente para nós o seu aspecto objetificado: elas calam, fe-
cham-se e imobilizam-se nas imagens objetificadas acabadas”
(13, 58). Essa fuga da coisificação, da fetichização, encontra eco
nas observações de Volochinov aqui citados na segunda parte do
primeiro capítulo dessa dissertação.

82
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

De acordo com Bakhtin, “o enunciado existente, surgido


de maneira significativa num determinado momento social e his-
tórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos
existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de um
dado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante
ativo do diálogo social. Ele também surge desse diálogo como seu
prolongamento, como sua réplica, e não sabe de que lado ele se
aproxima desse objeto” (17, 86)39 .
Para que o enunciado toque pelo menos alguns desses fios
dialógicos e ideológicos, é necessário haver, por parte do pesqui-
sador, uma atitude responsiva ativa, visto que “a compreensão
de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada
de uma atitude responsiva ativa […]; toda compreensão é prenhe
de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz:
o ouvinte torna-se o locutor” (21, 290), ou seja, o pesquisador é o
observador que se situa no exterior, no grande diálogo, lugar e
tempo – grande temporalidade – onde pode promover as mais
variadas relações dialógicas, e promovendo essas relações
dialógicas acaba criando um novo elo nessa cadeia da comunica-
ção verbal.
É por isso que o caráter humanista, de negação da coisifi-
cação como explicação das ciências humanas, sempre encontra
um lugar ativo e importante no interior de cada obra do Círculo,
como por exemplo nesta citação de Bakhtin/Volochinov: “a vida
começa apenas no momento em que uma enunciação [enunciado]
encontra outra, isto é, quando começa a interação verbal, mesmo
que não seja direta, “de pessoa a pessoa”, mas mediatizada pela
literatura” (10, 179), ou como aparece ainda em outra obra, assi-

39
Em francês, não há a ocorrência enunciação: Un énoncé vivant,
significativement surgi à un moment historique et dans un milieu social
déterminés, ne peut manquer de toucher à des milliers de fils dialogiques
vivants, tissés par la conscience socio-ideologique autour de l’objet de
tel énonce et de participer activement au dialogue social. Du reste,
c’est de lui que l’énoncé est issu: il est comme sa continuation, sa
réplique, il n’aborde pas l’objet en arrivant d’on ne sait où…. (18, 100).

83
Geraldo Tadeu Souza

nada por Bakhtin; “ser significa comunicarse” (24, 327). É a in-


vestigação da vida da língua, dos gêneros do discurso, enfim da
linguagem viva que está sendo, a todo momento, instigada pelo
Círculo.
Podemos dizer que o que Bakhtin formula é um ponto de
vista da linguagem, que leva em consideração os aspectos cientí-
ficos da língua na sua generalidade, mas que insiste numa abor-
dagem do funcionamento real da linguagem, onde podemos en-
contrar a “verdade” do acontecimento particular e único de um
enunciado concreto. Essa linha de pensamento vai atravessar
todo o desenvolvimento da obra do círculo, desdobrando-se nos
conceitos Gêneros do Discurso, Tema, Expressividade, Estilos e
Entonações que orientam a investigação do enunciado concreto e
que também vão adquirindo uma extensão de sentido adequado
à cada obra, seja de Bakhtin, Volochinov ou Medvedev, no senti-
do de construção de uma nova disciplina: a metalingüística. Esse
mesmo escopo teórico que adentra às obras dos três pensadores
russos é, também, um dos argumentos utilizados para requerer
a autoria de todas elas para Bakhtin, como já foi tratado ante-
riormente nessa dissertação.
Buscar a verdade do enunciado concreto implica compre-
ender a arquitetônica de sua representação em sua natureza éti-
ca, histórico-fenomenológica, sociológica e dialógica. O que pre-
tendemos no terceiro capítulo dessa dissertação é procurar a ver-
dade desse enunciado concreto na dimensão dos conceitos prin-
cipais definidos pelo Círculo com essa finalidade.

84
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

III. A Teoria do Enunciado Concreto

“A língua penetra na vida através dos enunciados con-


cretos que a realizam, e é também através dos enuncia-
dos concretos que a vida penetra na língua”.
(21, 282)

Para discutir a Teoria do Enunciado Concreto do Círculo


Bakhtin/Volochinov/Medvedev, tornou-se importante uma inves-
tigação da evolução do pensamento do círculo, ou seja, uma aná-
lise diacrônica do todo da obra no que se refere ao conceito enun-
ciado. Esse conceito estável intercambia-se e se une a outros
conceitos: palavra-enunciado, signo-enunciado, ato de fala-enun-
ciado, obra-enunciado, texto-enunciado, discurso-enunciado,
expressão-enunciado, idéia-enunciado, enfim, uma série de con-
ceitos que aqui se encontram na fronteira de várias disciplinas
que tratam da linguagem e que recobrem pontos de vista históri-
co-fenomenológico, sociológico, ideológico, ético, estético e meta-
lingüístico, num processo de interação orgânica.
Essa estratégia de escolher um conceito – enunciado – para
dialogar com todas as outras disciplinas que se debruçam sobre a
linguagem, e que nas edições francesas e brasileiras aparece tam-
bém como enunciação, se revela altamente produtiva no sentido
de facilitar a compreensão do caráter dinâmico do pensamento de
Bakhtin, Volochinov e Medvedev. O que procuraremos, a seguir, é
levantar algumas dessas relações dialógicas com intuito, também,
de justificar a nossa opção pelo conceito enunciado.
Cada conceito do Círculo é um “eu” da Arquitetônica, cada
definição de conceito permite enxergar a extensão do todo, ou

85
Geraldo Tadeu Souza

seja, os outros conceitos. É por isso que há uma interação orgâ-


nica entre os conceitos no interior desse todo. A importância in-
dividual do conceito reflete e refrata as suas relações com todos
os outros, a partir do interior – da reflexão metalingüística, ética,
ideológica e sociológica, e também, no exterior, pela comparação
do mesmo com sua definição lingüística, estética, psicológica,
formalista, etc. .
Num primeiro momento, vamos nos debruçar no percurso
que o conceito enunciado desenvolve na obra do Círculo, tentan-
do abarcar todas as definições com que ele é definido, mesmo
que ainda não com esse nome.
Um dos primeiros textos do Círculo, Toward a Philosophy
of the Act (1919-1921), já prenunciava a preocupação com o todo.
Nesse texto, Bakhtin nos dá a dimensão da palavra completa, da
unidade da palavra enquanto todo, a qual, segundo ele, compre-
enderia os seguintes aspectos:

a) aspecto conteúdo/sentido: conceito – a designação de


um objeto;
b) aspecto expressivo: imagem;
c) aspecto emotivo-volitivo: entonação – expressa minha
atitude valorativa sobre o objeto.40

Esses aspectos já indicam que, para o Círculo, não há enun-


ciados neutros. Eles consideram que “um enunciado isolado e
concreto sempre é dado num contexto cultural e semântico-
axiológico (científico, artístico, político, etc.) ou no contexto de
uma situação isolada da vida privada; apenas nesses contextos o
enunciado isolado é vivo e compreensível: ele é verdadeiro ou
falso, belo ou disforme, sincero ou malicioso, franco, cínico, au-
toritário e assim por diante” (4, 46).

40
Esses aspectos do todo da palavra vão encontrar, posteriormente,
um lugar dentre as caractéristicas do enunciado concreto.

86
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

Voltando ao problema da palavra, do material verbal, en-


contramos no ensaio, “Le discours dans la vie et le discours dans
la poésie” (1926), assinado por Volochinov, o lugar onde ela se
torna elemento integrante do enunciado. Tratando aqui do enun-
ciado cotidiano, Volochinov nos diz que o todo do enunciado é
composto de uma parte verbal – a palavra (forma composicional)
e de uma parte extra-verbal que corresponde à situação (forma
arquitetônica). Essa parte extra-verbal – a situação – “se integra
ao enunciado como um elemento indispensável à sua constitui-
ção semântica” (5, 191).
A situação, a forma arquitetônica do enunciado, compre-
ende os seguintes elementos:

a) elemento espacial: horizonte espacial comum;


b) o elemento semântico: o conhecimento e a compreen-
são da situação (Tema);
c) o elemento axiológico: o valor comum.

Esses elementos extra-verbais do enunciado concreto, ali-


ados aos aspectos composicionais da palavra – o conceito, a ima-
gem, a entonação – se tornam uma unidade orgânica. A investi-
gação da parte verbal, imanente ao enunciado, deve ser relacio-
nada a esses elementos extra-verbais. O horizonte social (valor) é
que organiza, por um lado, a forma – a escolha da palavra e a sua
disposição, e também, por outro, a entonação.
Um outro aspecto importante desse ensaio é que, no funci-
onamento da sociedade, alguns valores não precisam ser enun-
ciados: “na verdade, os principais valores sociais, que enraízam
imediatamente nas particularidades da vida econômica do grupo
social dado não são mais enunciados: eles entram na carne e no
sangue de todos os representantes deste grupo; eles organizam
as ações e condutas das pessoas; eles são de algum modo solda-
dos às coisas e aos fenômenos correspondentes; é por isso que
eles não requerem uma formulação verbal particular” (5, 193), de

87
Geraldo Tadeu Souza

qualquer maneira esses valores se realizam em algum material


semiótico, seja pela mímica, gestualidade, expressão facial e ou-
tros, que são também de natureza extra-verbal.
A abordagem do Círculo nasce do esforço de aplicar o mé-
todo sociológico à forma composicional do enunciado concreto,
de maneira a promover uma análise imanente e encontrar nele
os elementos que permitem a sua interação orgânica enquanto
um todo concreto. Para Volochinov, “toda a estrutura formal do
discurso depende em larga medida da relação entre o enunciado
de uma parte, e de outra parte a comunhão de valores que supo-
mos existir no meio social ao qual o discurso é dirigido” (5, 195).
Para compreendermos todos os aspectos do enunciado
verbal – como eles se organizam e tomam forma – precisamos
observar a dupla orientação do locutor: 1. em direção ao ouvinte,
e 2. em direção ao objeto do enunciado – o tema. Segundo
Volochinov, “toda palavra realmente pronunciada – e não sepul-
tada no dicionário – é a expressão e o produto da interação social
de três participantes: o locutor (o autor), o ouvinte (o leitor) e isto
de que se fala (o herói)41 ” (5, 198).
Perseguindo a noção de enunciado concreto, tema de nossa
dissertação, percebemos já nesse ensaio uma explicação dessa
unidade da comunicação verbal que serve de base para as refle-
xões do Círculo: “O enunciado concreto (e não a abstração lin-
güística) nasce, vive e morre no processo da interação social dos
participantes do enunciado. Sua significação e sua forma são
determinadas, essencialmente, pela forma e pelo caráter dessa
interação” (5, 198).
Se vimos até agora a estrutura do enunciado exterior, ou
seja, na relação locutor/ouvinte, como o Círculo resolveria, en-
tão, o problema do enunciado interior, ou seja, a dimensão psico-
lógica e subjetiva do enunciado?

41
Ou o tema, como aparece em Marxismo e Filosofia da Linguagem.
(10, 128-136)

88
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

Como podemos compreender, então, um discurso monoló-


gico como, por exemplo: o discurso de um orador, o curso de um
professor, o monólogo de um autor, as reflexões em voz alta de
um homem sozinho, o cinema, a televisão?
Segundo as formulações do Círculo, todos os discursos
são dialógicos pela sua estrutura semântica e estilística. A opo-
sição entre um discurso dialógico e um discurso monológico só
é possível na perspectiva da forma exterior, ou seja, se no mo-
mento da sua realização a resposta não é imediata, e o todo do
enunciado, do diálogo, se completa na grande temporalidade,
no grande diálogo.
A mesma orientação se reflete no discurso interior, ou seja,
no funcionamento concreto do enunciado interior. Segundo
Volochinov, por exemplo, há um elemento sociológico inerente à
consciência humana, a suas “emoções” e a sua expressão. Nesse
sentido, o discurso interior reflete e refrata a sociedade, na qual o
indivíduo vive, criando um ouvinte virtual, uma sociedade vir-
tual. Esse auditório virtual pode refletir o ponto de vista pessoal –
a visão de mundo própria ao grupo social ao qual pertenço; a
divisão em ideologias diferentes – quando duas classes sociais
disputam com igual força a minha consciência –; ou, ainda, a
situação onde o indivíduo perdeu seu ouvinte interior – ocorrên-
cia da desagregação da consciência devido a conflitos violentos
entre discurso interior e discurso exterior.
O discurso interior, o enunciado interior, assume, da mes-
ma forma que o enunciado exterior “um ouvinte e se orienta em
sua construção em relação a esse ouvinte. O discurso interior é
um tipo de produto e expressão da comunicação social como é o
discurso exterior” (6, 79). Ele pressupõe um ouvinte virtual, com
o qual trava um diálogo interior.
Não podemos esquecer das críticas formuladas por
Volochinov à psicanálise freudiana. Para ele, em primeiro lugar,
“todo enunciado concreto reflete sempre o pequeno evento social
imediato – o evento de comunicação, de troca de palavras entre
pessoas – do qual ele procede diretamente” (6, 86). Nesse sentido,

89
Geraldo Tadeu Souza

Volochinov faz a seguinte observação em relação a sessão psica-


nalítica e sua análise do discurso interior: “o que é refletido nes-
ses enunciados não é a dinâmica da psique individual mas a
dinâmica social das inter-relações entre o doutor e o paciente.
Aqui está a origem para o drama que é a construção freudiana.”
(6, 79-80). O teórico russo não acredita no acesso ao inconscien-
te, e, sim, na consciência: “o conteúdo da psique humana – um
conteúdo que consiste de pensamentos, sentimentos e desejos –
é dado numa formulação feita pelo consciência e, conseqüente-
mente, na formulação do discurso verbal humano” (6, 83).
Há também no todo da obra do Círculo, uma série de refle-
xões em torno do enunciado cotidiano. Para analisar um enun-
ciado prático42 , ou cotidiano, devemos ter em mente: as caracte-
rísticas sociais da comunidade discursiva e a complexidade con-
creta do horizonte ideológico – conceitos, crenças, etc. onde cada
enunciado prático é formado. O enunciado para Bakhtin/
Medvedev é uma construção comunicativa, diferentemente da lin-
güística que o toma como uma construção abstrata onde forma
seus conceitos de língua e seus elementos para seus próprios
propósitos teóricos e práticos.
Numa crítica ao formalismo, Bakhtin/Medvedev diz que
“todo enunciado concreto é uma unidade fonética compacta e
singular” (7, 101). Ele acredita que o corpo fonético da obra, o
todo fonético é organizado em tempo e espaços reais e sociais e
que esse tempo e esse espaço são eventos da comunicação so-
cial. Por isso, propõem uma “sociologia do som significativo”,
onde “o estudo da organização do corpo fonético da obra não
pode ser separado do estudo da comunicação social organizada
que o implementa” (7, 103).

42
Bakhtin/Medvedev critica a distinção, feita pelos formalistas, entre
linguagem prática e linguagem poética: “nós sabemos que a construção
prática não existe, e que os enunciados da vida, a realidade que subjaz
a natureza das funções comunicativas da linguagem, se formam em
várias direções, dependendo das diferentes esferas e propósitos da
comunicação social” (7, 93).

90
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

O enunciado concreto é “um material individual complexo,


fonético, articulado, complexo visual e, simultaneamente, é tam-
bém uma parte da realidade social” (7, 120). Mais uma crítica à
lingüística, ciência piloto da época, é formulada aqui: “a palavra,
a forma gramatical, a sentença, e todas as definições lingüísticas
em geral, tomadas em abstração do enunciado histórico e con-
creto, se tornam signos técnicos de uma significação que é so-
mente possível e ainda não individualizada historicamente” (7,
121). Para Bakhtin/Medvedev, “se tomarmos o enunciado con-
creto fora de sua criação histórica, em abstração, estaremos nos
desviando do que estamos procurando” (7, 126).
E o que o Círculo está procurando? O que vamos perce-
bendo, na medida em que vamos evoluindo na leitura das obras,
é que essa noção de enunciado concreto serve de base para que
Bakhtin, Volochinov e Medvedev reflitam sobre a realidade da
palavra-enunciado e os vários gêneros do discurso engendrados
por ela no processo da comunicação verbal a partir de uma cer-
ta relação de comunicação social: o enunciado poético, o enun-
ciado prático, o enunciado cotidiano, o enunciado científico, o
enunciado interior, etc. É considerando o enunciado concreto
como uma unidade da comunicação verbal que podemos anali-
sar cada uma dessas manifestações do material verbal, ou seja,
cada um desses gêneros do discurso.
A obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929), assinada
por Bakhtin/Volochinov discute o enunciado sob os seus mais
variados aspectos: o enunciado enquanto signo ideológico, pala-
vra, enunciado interior, enunciado dialógico/monológico e enun-
ciado de outrem. Todos esses aspectos são discutidos a partir do
enunciado concreto – vivo, real e humano – conforme as várias
direções para as quais se encaminham as investigações dinâmi-
cas do Círculo. É esse tipo de investigação dinâmica que irá se
refletir na definição do conceito signo. O signo é de natureza inte-
rindividual e a sua relação com a consciência é a seguinte:

“a própria consciência só pode surgir e se afirmar como realidade


mediante a encarnação material em signos. Afinal, compreender

91
Geraldo Tadeu Souza

um signo consiste em aproximar o signo apreendido de outros


signos já conhecidos; em outros termos, a compreensão é uma
resposta a um signo por meio de signos. E essa cadeia de criati-
vidade e de compreensão ideológicas, deslocando-se de signo em
signo para um novo signo; é única e contínua: de um elo de natu-
reza semiótico (e, portanto, também de natureza material) passa-
mos sem interrupção para um outro elo de natureza estritamen-
te idêntica. Em nenhum ponto a cadeia se quebra, em nenhum
ponto ela penetra a existência interior, de natureza não material
e não corporificada em signos” (10, 34).

O signo, o material semiótico, que tem como característi-


cas: a pureza semiótica, a neutralidade ideológica, a implicação
na comunicação humana ordinária, a possibilidade de interiori-
zação, a presença obrigatória, como fenômeno acompanhante,
em todo ato consciente, é o fenômeno ideológico por excelência, é
a PALAVRA. Essas características permitem que a palavra seja
um material flexível, veiculável pelo corpo, tanto no interior – o
discurso interior – como exterior – o diálogo com outrem e o diá-
logo de outrem.
Segundo Bakhtin/Volochinov, “a única maneira de fazer
com que o método sociológico marxista dê conta de todas as pro-
fundidades e todas as sutilezas das estruturas ideológicas
“imanentes” consiste em partir da filosofia da linguagem concebi-
da como “filosofia do signo ideológico”” (10, 38), ou seja, como
uma “filosofia da palavra”: “a palavra, como signo, é extraída pelo
locutor de um estoque social de signos disponíveis” (10, 113), e “a
própria realização deste signo social na enunciação [enunciado]
concreta é inteiramente determinada pelas relações sociais” (10,
113).
Temos, então, o material necessário para a construção de
uma Teoria do Enunciado Concreto: o enunciado ideológico, ou
seja, a palavra ideológica, como também o método para investi-
gar a sua estrutura imanente: o método sociológico. Nesse senti-
do, “a filosofia marxista da linguagem deve justamente colocar

92
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

como base de sua doutrina a enunciação [enunciado] como reali-


dade da linguagem e como estrutura sócio-ideológica” (10, 126).
A natureza ideológica do enunciado concreto revela a ação
de forças centrípetas e centrífugas no seu interior: “o verdadeiro
meio da enunciação, onde ela vive e se forma, é um plurilingüismo
dialogizado, anônimo e social como linguagem, mas concreto,
saturado de conteúdo e acentuado como enunciação individual”43
(17, 82).
O procedimento dinâmico com que os conceitos principais
do Círculo são definidos dá a dimensão dos elementos envolvidos
na investigação do enunciado concreto. Se ele é concreto, é histó-
rico; se ele é histórico, é humano; se ele é humano, é social; se ele
é social, é ético; se ele é ético, é consciente, tudo isso em interação
orgânica. Por isso existe a necessidade de uma estrutura sociológi-
ca bem determinada para dar conta do enunciado concreto e de
sua especificidade ética, histórica-fenomenológica, sociológica e
dialógica. É também necessário levar em conta que o enunciado
concreto é uma unidade da comunicação verbal, pois para
Volochinov é impossível “compreender como se constitui um enun-
ciado qualquer, tenha ele a aparência da autonomia e do acaba-
mento, se não o encaramos como um momento, como uma sim-
ples gota nesta rio da comunicação verbal da qual o momento
incessante é aquele mesmo da vida social e da História” (16, 288).
Tomar o enunciado como unidade da comunicação verbal
é o objetivo do segundo capítulo do ensaio “Os gêneros do discur-
so” (1952-1953). As discordâncias com Saussure, em relação a
forma de utilização da língua, são aqui explicitadas: “a utilização
da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos),
concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou dou-
tra esfera da atividade humana” (21, 290).

43
Na edição francesa enunciação aparece como énoncé: “Le veritable
milieu de l’énoncé, là ou il vit et se forme, c’est la polylinguisme
dialogisé, anonyme et social comme le langage, mais concret, mais
sature de contenu, et accentué comme un énoncé individuel” (18, 96).

93
Geraldo Tadeu Souza

A interação orgânica entre a língua e a vida se dá por inter-


médio de enunciados concretos. E quais seriam, então, as parti-
cularidades constitutivas do enunciado concreto? Para Bakhtin,
elas são as seguintes:

a) a alternância dos sujeitos falantes;


b) o acabamento específico do enunciado:
b.1 o tratamento exaustivo do sentido do objeto (tema);
b.2 o intuito, o querer-dizer do locutor;
b.3 as formas típicas de estruturação do gênero do aca-
bamento;
c) a relação do enunciado com o próprio locutor (com o au-
tor do enunciado), e com os outros parceiros da comuni-
cação verbal.

É importante considerar todas essas particularidades em


interação orgânica, uma sendo indissociável da outra. Assim
sendo, vejamos como Bakhtin explica cada uma delas.
A primeira particularidade é explicada da seguinte manei-
ra: a alternância dos sujeitos falantes “compõe o contexto do enun-
ciado, transformando-o numa massa compacta rigorosamente
circunscrita em relação aos outros enunciados vinculados a ele”
(21, 298-299).
Já a segunda, além de ser uma das particularidades cons-
titutivas do enunciado, é determinada por três fatores, os quais,
da mesma forma que as particularidades constitutivas, estão li-
gados, de maneira indissolúvel, ao todo orgânico do enunciado.
Começando pela particularidade, Bakhtin nos diz que “o acaba-
mento do enunciado é de certo modo a alternância dos sujeitos
falantes vista do interior; essa alternância ocorre precisamente
porque o locutor disse (ou escreveu) tudo o que queria dizer num
preciso momento e em condições precisas (21, 299). Nesse senti-
do, “o primeiro e mais importante dos critérios de acabamento do
enunciado é a possibilidade de responder” (21, 299).

94
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

Essa “possibilidade de responder” é determinada pelos três


fatores apresentados acima em relação ao acabamento específico
do enunciado concreto. Todos esses fatores – o tema, o intuito –
elemento subjetivo, e o gênero do discurso, que como já dissemos
são ligados indissoluvelmente, permitem que observemos nas
explicações teóricas de Bakhtin, a articulação dinâmica dessa
interação orgânica.
Portanto, o tratamento exaustivo do objeto de sentido é
explicado do seguinte modo: “teoricamente, o objeto é inesgotá-
vel, porém, quando se torna tema de um enunciado (de uma obra
científica, por exemplo), recebe um acabamento relativo, em con-
dições determinadas, em função de uma dada abordagem do pro-
blema, do material, dos objetivos por atingir, ou seja, desde o
início ele estará dentro dos limites de um intuito definido pelo
autor” (21, 300).
Esse intuito discursivo – ou o querer-dizer do locutor – que
Bakhtin considera o elemento subjetivo do enunciado, “entra em
combinação com o sentido do objeto – objetivo – para formar uma
unidade indissolúvel, que ele limita, vincula à situação concreta
(única) da comunicação verbal, marcada pelas circunstâncias in-
dividuais, pelos parceiros individualizados e suas intervenções
anteriores: seus enunciados” (21, 300).
Completando essa engrenagem, do ponto de vista das for-
mas típicas de estruturação do gênero do acabamento, chega-
mos aos gênero do discurso: “o querer-dizer do locutor se realiza
acima de tudo na escolha de um gênero do discurso. Essa escolha
é determinada em função da especificidade de uma dada esfera
da comunicação verbal, das necessidades de uma temática (do
sentido do objeto), do conjunto constituído dos parceiros, etc.
Depois disso, o intuito discursivo do locutor, sem que este re-
nuncie à sua individualidade e à sua subjetividade, adapta-se e
ajusta-se ao gênero escolhido, compõe-se e desenvolve-se na for-
ma do gênero determinado” (21,301).
Nos resta explicar, ainda, a terceira particularidade consti-
tutiva do enunciado: a relação do enunciado com o próprio locutor

95
Geraldo Tadeu Souza

(com o autor do enunciado), e com os outros parceiros da comuni-


cação verbal. Considerando o enunciado como um elo na cadeia
da comunicação verbal, Bakhtin diz que esse enunciado “repre-
senta a instância ativa do locutor numa ou noutra esfera do ob-
jeto do sentido. Por isso o enunciado se caracteriza acima de tudo
pelo conteúdo preciso do objeto do sentido. A escolha dos recur-
sos lingüísticos e do gênero do discurso é determinada principal-
mente pelos problemas de execução que o objeto de sentido im-
plica para o locutor (o autor)” (21, 308). Essa escolha dos recur-
sos lingüísticos e do gênero do discurso, aliada a “necessidade de
expressividade do locutor ante o objeto de seu enunciado”, com-
põem as particularidades que determinam o estilo e a composi-
ção do enunciado, ao mesmo tempo que explicita a relação do
enunciado com o seu autor.
Não podemos esquecer, também, da relação do enunciado
com os outros parceiros da comunicação verbal. Para Bakhtin,
“ter um destinatário, dirigir-se a alguém, é uma particularidade
constitutiva do enunciado, sem a qual não há, e não poderia
haver, enunciado. As diversas formas típicas de dirigir-se a al-
guém e as diversas concepções típicas do destinatário são as par-
ticularidades constitutivas que determinam a diversidade dos
gêneros do discurso” (21, 325).
Das particularidades constitutivas do enunciado e de seus
fatores de acabamento, destacamos alguns conceitos que julga-
mos importante apresentar de uma maneira mais aprofundada:
Gêneros do Discurso, Tema, Expressividade, Estilos e Entonações.
O que nos propomos, a seguir, é eleger cada um desses
conceitos principais, que em interação orgânica, permitem inves-
tigar o enunciado concreto, tomando cada um como centro de
nossas atenções por motivos exclusivamente didáticos. É claro
que esses conceitos não são nenhuma novidade terminológica,
mas a extensão de sentido que adquirem no interior do todo da
obra do Círculo se revela absolutamente nova.

96
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

1. Gêneros do Discurso
O conceito Gêneros de Discurso aparece, pela primeira vez,
na obra de Bakhtin/Medvedev The Formal Method In Literary
Scholarship (1928)44 , como crítica à definição mecânica desse
conceito pelos formalistas.
Como acontece com os outros conceitos do Círculo,
Bakhtin/Medvedev procura entender o sentido desse conceito,
que representa, no interior da obra dos formalistas, uma expres-
são do pensamento abstrato, em sua relação com o enunciado
concreto. Para os teóricos russos, o problema da investigação do
gênero no pensamento formalista é que ele só é abordado “quan-
do todos os outros elementos básicos da construção já estão es-
tudados e definidos, e a poética formalista está terminada” (7,
129), ou seja, o gênero só é investigado no fim da análise, meca-
nicamente, como um composto de esquemas.
A proposta do Círculo é que a análise do todo da obra poé-
tica, do todo desse enunciado artístico concreto, deve ser iniciada
pelo gênero, pois ele representa a forma típica dessa construção
poética. Mais uma vez, a crítica se dirige a uma análise da cons-
trução poética cujo percurso se orienta pelos elementos abstra-
tos da língua, propondo, por outro lado, uma definição para esse
conceito no interior do enunciado concreto. Bakhtin/Medvedev

44
Morson e Emerson em seu Creation of a Prosaics, fazem a seguinte
observação: “Perhaps still more surprising, the Bakhtin group’s first
serious discussion of genre belongs not to Bakhtin himself, but to
Medvedev. The Formal Method in Literary Scholarship devotes a
chapter to demonstrating that any good sociological approach to
literature must be grounded in genres, which, Medvedev argued, carry
and shape social experience for individual people. Although it is
presently impossible to determine priority of discovery, Bakhtin seems
to have been impressed and influenced by Medvedev’s argument,
enough so to have refined, extended, and recast it. Over the next few
decades and with varying degrees of success, Bakhtin was to pass all
his favorite concepts and concerns through the prism of genre and the
novel” (38, 272).

97
Geraldo Tadeu Souza

considera que “o sentido construtivo de cada elemento só pode


ser compreendido em conexão com o gênero” (7, 129).
O gênero é “a totalidade típica do enunciado artístico, e
uma totalidade vital, um todo acabadado e resolvido” (7, 129).
Para o Círculo, “o problema do acabamento [zavershenie] – é um
dos problemas mais importantes da Teoria do Gênero” (7, 129),
pois “todo gênero representa um caminho especial de construção
e acabamento de um todo, acabá-lo essencialmente e
tematicamente (repetimos), e não apenas condicionalmente ou
composicionalmente” (7, 129).
De qualquer forma, é importante salientar que para
Bakhtin/Medvedev “o acabamento composicional é possível em
todas as esferas da criação ideológica, mas o acabamento temático
real é impossível” (7, 129), devido a concepção fenomenológica e
particular que orienta sua concepção de enunciado concreto, ou
seja, do ponto de vista da comunicação verbal a abordagem te-
mática está sempre em evolução e em interação com a evolução
dos gêneros do discurso.
A análise mecânica, segundo o Círculo, que norteia o pen-
samento formalista impede a percepção do problema do todo cons-
trutivo tridimensional, a interação orgânica entre o problema do
todo, o problema do gênero e o problema do acabamento temático
na construção da obra poética, bem como nos outros gêneros do
discurso.
Qualquer gênero se orienta em relação à realidade em duas
direções:

a) ao ouvinte ou receptor em conjunto com as condições


precisas de performance e percepção;
b) à vida pelos seus conteúdos temáticos. (acontecimen-
tos, problemas, etc.).

Para Bakhtin/Medvedev, “cada gênero é capaz de contro-


lar apenas certos aspectos precisos da realidade. Cada gênero
possui princípios precisos de seleção, formas precisas para ver e

98
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

conceptualizar a realidade, e uma extensão e profundidade de


penetração” (7, 130).
Como já demonstrado anteriormente, em relação aos con-
ceitos enunciado e diálogo, o conceito gênero interage, também,
com o problema da consciência e do gênero interior. Para o Cír-
culo, “são as formas do enunciado, e não as formas da língua,
que têm o papel mais importante na consciência e na compreen-
são da realidade” (7, 133). Nesse sentido, “a consciência humana
possui uma série de gêneros interiores para perceber e
conceptualizar a realidade. Uma consciência determinada é rica
ou pobre em gêneros, dependendo do seu desenvolvimento ideo-
lógico” (7, 133).
Um outro aspecto da base do pensamento concreto do
Círculo é a proposta de que uma poética genuína do gênero só
pode ser uma sociologia do gênero. Para eles, “a realidade do
gênero e a realidade acessível ao gênero são inter-relacionadas
organicamente. Mas temos visto que a realidade do gênero é a
realidade social de sua realização no processo da comunicação
artística. Portanto, o gênero é o agregado de sentidos da orienta-
ção coletiva na realidade, com a orientação através do acaba-
mento. Esta orientação é capaz de subjugar novos aspectos da
realidade. A conceptualização da realidade se desenvolve e se
cria no processo da comunicação social ideológica” (7, 135).
Sendo assim, os gêneros do discurso se tornam os modelos
padrões da construção de um todo verbal, como que uma tipolo-
gia estilístico-composicional das produções verbais. De qualquer
forma, devemos levar em conta que “esses modelos do gênero se
distinguem por princípio do modelo lingüístico das orações” (23,
357).
Embora o conceito Gêneros do discurso só tenha aparecido
em 1928, as obras anteriores do Círculo já refletem um encami-
nhamento para esse conceito. Já no seu primeiro texto “Art and
Answerability” (1919), Bakhtin divide a cultura humana em três
domínios: a ciência, a arte e a vida, lembrando que esses três
domínios “ganham unidade somente na pessoa individual que os

99
Geraldo Tadeu Souza

integra dentro de sua própria unidade” (1, 1). Para ele, “a arte e a
vida não são uma unidade, mas elas devem se unir em mim – na
unidade de minha responsabilidade” (1, 3). Nesse sentido, o con-
ceito Gêneros do Discurso vai ser construído no interior de cada
um desses domínios, sendo que a vida cotidiana será constituída
pelos Gêneros Primários e a vida da ciência e a vida da arte, pelos
Gêneros Secundários.
Essa noção de domínio cultural vai estar presente, tam-
bém, no ensaio de 1926, “Le discours dans la vie et le discours
dans la poésie”, onde Volochinov busca a compreensão de um
gênero primário – o discurso na vida – como fundamento para
uma explicação do funcionamento do gênero secundário – a poe-
sia, no interior do todo da sociedade e de sua vida econômica.
Referindo-se ao primeiro – o discurso na vida – como enunciado
da vida cotidiana, encontramos aqui uma primeira referência a
gênero: “todas as avaliações desse gênero, qualquer que seja o
critério – ético, gnoseológico, político ou outro – que lhes oriente,
englobam muito mais que o conteúdo no aspecto propriamente
verbal, lingüístico do enunciado: elas englobam, ao mesmo tem-
po, a palavra e a situação extra-verbal do enunciado” (5, 189)45
O estudo da problema dos Gêneros do Discurso deve ser
analisado em interação orgânica com o problema da língua e o
problema da Comunicação Social. Nesse sentido, Bakhtin/
Volochinov propõe que “uma análise fecunda das formas do con-
junto de enunciações [enunciados] como unidades reais na ca-
deia verbal só é possível de uma perspectiva que encare a enuncia-
ção [enunciado] individual como um fenômeno puramente socio-
lógico” (10, 126).

45
Na edição inglesa desse ensaio não há referência a gênero nessa
citação: “All these and similar evaluations, whatever the criteria that
govern them (ethical, cognitive, political, or other), take in a good deal
more than what is enclosed within the strictly verbal (linguistic) factors
of the utterance. Together with the verbal factors, they also take
in the extraverbal situation of the utterance” (6, 98). Talvez por
isso, Morson e Emerson não considerem referência a esse conceito
nesse ensaio.

100
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

Nesse sentido, Bakhtin/Volochinov desenvolve a seguinte


ordem metodológica para o estudo da língua:

1. the forms and types of verbal interaction in connection


with their concrete conditions;
2. forms of particular utterances, of particular speech
performances, as elements of a closely linked interaction
–i.e., the genres of speech performance in human behavior
and ideological creativity as determined by verbal
interaction;
3. a reexamination, on this new basis, of language forms
in their usual linguistic presentation. (11, 95-96)46

Essa ordem metodológica não esconde a interação orgâ-


nica entre as suas proposições, assim como, a sua articulação
dinâmica: “as relações sociais evoluem (em função das infra-es-
truturas), depois a comunicação e a interação verbais evoluem
no quadro das relações sociais, as formas dos atos de fala evolu-
em em conseqüência da interação verbal, e o processo de evolu-
ção reflete-se, enfim, na mudança das formas da língua” (10,
124).
A relação entre o tipo de comunicação social, o tipo de inte-
ração verbal e os gêneros do discurso é explicada da seguinte

46
Na edição brasileira, o conceito gêneros do discurso é substituído
por “categorias de atos de fala”, e a ordem metodológica do estudo da
língua é a seguinte:
1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições
concretas em que se realiza.
2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em
ligação estreita com a interação de que constituem os elementos,
isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica
que se prestam a uma determinação pela interação verbal.
3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação
lingüística habitual (10, 124).

101
Geraldo Tadeu Souza

forma: “toda situação da vida cotidiana possui um auditório, cuja


organização é bem precisa, e dispõe de um repertório específico
de pequenos gêneros apropriados. Em cada caso, o gênero cotidi-
ano se adapta à linha que a comunicação social parece ter traça-
do para ele – no sentido de representar o reflexo ideológico do
tipo, da estrutura, da finalidade e da constituição própria às rela-
ções de comunicação social” (16,291).
Em “La structure de l’énoncé” (1930), Volochinov também
dá sua definição de gênero: ele é um tipo de comunicação social
que “organiza, constroi e acaba, de maneira específica, a forma
gramatical e estilística do enunciado, assim como a estrutura do
tipo do qual ele depende” (16, 290). Nesse mesmo ensaio ele dis-
cute o gênero cotidiano representado no discurso literário, ou
seja, no enunciado poético.
Antes de continuar nossas observações sobre o desenvolvi-
mento do conceito gêneros do discurso na obra do Círculo, é im-
portante lançar algumas observações sobre o seu funcionamen-
to:

a) ao nascer, um novo gênero nunca suprime nem substi-


tui quaisquer gêneros já existentes;
b) qualquer gênero novo nada mais faz que completar os
velhos, apenas amplia o círculo de gêneros já existen-
tes;
c) cada gênero tem seu campo predominante de existência
em relação ao qual é insubstituível;
d) cada novo gênero essencial e importante, uma vez sur-
gido, influencia todo o círculo de gêneros velhos: o novo
gênero torna os velhos, por assim dizer, mais conscien-
tes, fá-los melhor conscientizar os recursos e limitações,
ou seja, superar a sua ingenuidade;
e) a influência dos novos gêneros sobre os velhos contri-
bui, na maioria dos casos, para a renovação e o enri-
quecimento destes. (13, 237-238).

102
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

Todas essas características mantêm a coerência dinâmica


dos conceitos que articulam as formulações teóricas de Bakhtin/
Volochinov/Medvedev, o que também irá se refletir na distinção
entre gêneros primários e gêneros secundários. E é no ensaio “Os
gêneros do discurso” (1952-1953) que encontramos todas as de-
finições que orientam esse conceito no todo da obra do Círculo
desenvolvidos em seu mais alto grau de acabamento teórico. Aqui,
os gêneros do discurso são divididos em gêneros primários e gê-
neros secundários e, também, esses conceitos são orientados
dentro de uma perspectiva dinâmica com base no enunciado con-
creto cotidiano.
Os gêneros do discurso são aqui definidos como “tipos re-
lativamente estáveis de enunciados” que uma determinada co-
munidade utiliza no processo de interação verbal. Para Bakhtin,
“a riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas,
pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e
cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros
do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida
que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa” (21,
279). Essa heterogeneidade dos gêneros do discurso – desde os
gêneros da vida cotidiana, passando pelas formas variadas de
exposição científica, e de todos os modos literários – poderia
inviabilizar o seu estudo, visto que “a diversidade funcional pare-
ce tornar os traços comuns a todos os gêneros do discurso abs-
tratos e inoperantes” (21, 280).
Mas, então, como Bakhtin resolve esse problema? O teóri-
co russo vai definir o caráter genérico do enunciado concreto le-
vando “em consideração a diferença essencial existente entre o
gênero de discurso primário (simples) e o gênero de discurso se-
cundário (complexo)” (21, 281), ou seja, o enunciado concreto é,
em relação aos enunciados anteriores, um enunciado típico da
organização social da linguagem em gêneros do discurso de uma
ou outra esfera – primária ou secundária.
Para Bakhtin, “uma concepção clara da natureza do enun-
ciado em geral e dos vários tipos de enunciados em particular
(primários e secundários), ou seja, dos diversos gêneros do dis-

103
Geraldo Tadeu Souza

curso, é indispensável para qualquer estudo, seja qual for a sua


orientação específica”47 (21, 282). Ele fala que o que esclarece a
natureza do enunciado e sobretudo “o difícil problema da corre-
lação entre língua, ideologias e visão do mundo” (21, 282) é, por
um lado a inter-relação entre os gêneros primários e secundári-
os, e por outro o processo histórico de formação dos gêneros se-
cundários. E o que são gêneros primários e gêneros secundários?
Os gêneros primários são aqueles que compreendem os
tipos de diálogo oral: linguagem de reuniões sociais, dos círculos,
linguagem familiar, cotidiana, linguagem sociopolítica, filosófica,
etc.. A sua esfera de realização concreta é a da comunicação verbal
cotidiana onde eles se apresentam em infinita variedade: em in-
teração com as formas de autor, ou seja, “comunicamos fatos
que achamos interessantes ou que são íntimos, pedimos e recla-
mamos todas espécies de coisas, fazemos declarações de amor,
discutimos e brigamos, trocamos amabilidades, etc”(25, 395); em
interação com uma certa hierarquia social – esfera de familiari-
dade, a esfera oficial, e suas variantes. Esses gêneros são fenô-
menos da vida cotidiana.
Ao refletir sobre esses fenômenos da vida cotidiana, o enun-
ciado cotidiano, o Círculo se vale do enunciado literário como uma
representação do enunciado real. Segundo Volochinov, “podemos,
[…] sem risco de erro, supor que a relação de dependência que
existe entre a “infra-estrutura” econômica – a base econômica da
sociedade – e o tipo de comunicação cotidiana reproduzida no “poe-
ma” de Gógol, é medido segundo a proporção que ele tenha ocorri-
do na vida real; diremos a mesmo coisa da dependência que existe
entre um tipo de comunicação cotidiana e o modo de interação
verbal que se inscreve no seu quadro” (16, 310)48 .

47
O enunciado concreto encontra seu lugar nas relação com enunciados
anteriores do mesmo tipo. Nesse sentido, o conjunto de enunciado
típicos, ou seja, que pertence a uma determinada esfera de sentido, é
o que o Círculo chama de gêneros do discurso.
48
Essa relação entre o enunciado real e o enunciado representado é
discutida, também, nas obras de Bakhtin Problemas da Poética de

104
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

Os gêneros secundários – o romance, o discurso científico,


o discurso ideológico – são aqueles que “durante o processo de
sua formação […] absorvem e transmutam os gêneros primários
(simples) de todas as espécies, que se constituíram em circuns-
tância de uma comunicação verbal espontânea” (21, 281). É im-
portante observar, então, que a presença do gênero primário no
gênero secundário implica uma representação, visto que o pri-
meiro é um fenômeno da vida cotidiana, e o segundo, da vida de
um determinado gênero secundário – romance, discurso científi-
co, discurso religioso, etc.
Essa distinção entre gêneros primários e gêneros secundá-
rios é de importância capital para a compreensão da distinção
entre a heterogeneidade de gêneros do discurso da vida cotidiana
e a representação desses gêneros no romance, concebido como
um fenômeno da vida artístico-literária49 . Segundo Bakhtin, “a
natureza do enunciado deve ser elucidada e definida por uma
análise de ambos os gêneros. Só com esta condição a análise se
adequaria à natureza complexa e sutil do enunciado e abrangeria
seus aspectos essenciais” (21, 282).
De acordo com Bakhtin, “todos os gêneros secundários (nas
artes e nas ciências) incorporam diversamente os gêneros primári-
os do discurso na construção do enunciado, assim como a relação
existente entre estes (os quais se transformam, em maior ou me-
nor grau, devido à ausência de uma alternância dos sujeitos falan-
tes)” (21, 295). Os gêneros secundários simulam a comunicação
verbal, ou seja, o diálogo, e os gêneros primários do discurso no
que se refere a posição responsiva do enunciado. Ocorre, então,
que “nos limites do enunciado, o locutor (ou escritor) formula per-
guntas, responde-as, opõe objeções que ele mesmo refuta, etc. (21,
295), ou seja, opera simulando as réplicas do diálogo.

Dostoievski e A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O


contexto de François Rabelais.
49
No seu primeiro escrito – “Arte e Responsabilidade” (1919), Bakhtin
já dizia: “Quando um ser humano está na arte, ele não está na vida,
e vice-versa” (1, 1)

105
Geraldo Tadeu Souza

Não é só a distinção entre gêneros primários e gêneros se-


cundários que vai nos ajudar a analisar as sutilezas do enuncia-
do. É preciso, também, considerar o enunciado concreto como
uma unidade da comunicação verbal, seja ele um enunciado co-
tidiano, científico ou artístico.
Nesse sentido, podemos compreender a obra-enunciado
realizada por um gênero secundário, também como um “elo na
cadeia da comunicação verbal; do mesmo modo que a réplica do
diálogo, ela se relaciona com as outras obras-enunciados: com
aquelas a que ela responde e com aquelas que lhe respondem, e,
ao mesmo tempo, nisso semelhante à réplica do diálogo, a obra
está separada das outras pelo fronteira absoluta da alternância
dos sujeitos falantes” (21, 298), ou seja, todas as particularida-
des constitutivas do enunciado concreto, que apresentamos na
introdução desse capítulo, funcionam tanto para a análise do
gênero primário como do gênero secundário, e permitem colocar
no mesmo terreno comum tanto os enunciados concretos
pertencentens a um ou outro gênero.
Falta ainda apresentar uma última distinção, do ponto de
vista do enunciado enquanto unidade da comunicação verbal: a
oposição entre as formas da língua e os gêneros do discurso –
formas do enunciado concreto. Bakhtin diz que Saussure ignora
“o fato de que, além das formas da língua, há também as formas
de combinação dessas formas da língua, ou seja, ignora os gê-
neros do discurso” (21, 304). O dado, o que compreende os re-
cursos para a construção de um enunciado concreto – o criado –
se compõem, então, das formas da língua e dos gêneros do dis-
curso (formas do enunciado).
Para Bakhtin, “os gêneros do discurso são, em compara-
ção com as formas da língua, muito mais fáceis de combinar,
mais ágeis, porém, para o indivíduo falante, não deixam de ter
um valor normativo: eles lhe são dados, não é ele que os cria. É
por isso que o enunciado, em sua singularidade, apesar de sua
individualidade e de sua criatividade, não pode ser considerado
como uma combinação absolutamente livre das formas da língua,
do modo concebido, por exemplo, por Saussure (e, na sua estei-

106
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

ra, por muitos lingüistas), que opõe o enunciado (a fala), como


um ato puramente individual, ao sistema da língua como fenô-
meno puramente social e prescritivo para o indivíduo”50 (21, 304).
Mas é importante ressaltar que para o Círculo, os gêneros
do discurso e a língua materna são anteriores à gramática, com-
preendendo a gramática como fruto do pensamento abstrato. Nes-
se sentido, “a língua materna – a composição do seu léxico e sua
estrutura gramatical – não a apreendemos nos dicionários e nas
gramáticas, nós a adquirimos mediante enunciados concretos que
ouvimos e reproduzimos durante a comunicação verbal viva que
se efetua com os indivíduos que nos rodeiam. Assimilamos as for-
mas da língua somente nas formas assumidas pelo enunciado e
juntamente com essas formas. As formas da língua e as formas
típicas do enunciado, isto é, os gêneros do discurso, introduzem-
se em nossa experiência e em nossa consciência conjuntamente e
sem que sua estreita correlação seja rompida” (21, 301-302).
A dinâmica do funcionamento real do enunciado concreto
ganha, na relação com o gênero do discurso, uma explicação mais
particular. Se antes o enunciado era uma unidade da comunica-
ção verbal, agora, ele vai ser um “elo na cadeia da comunicação
verbal de uma dada esfera” (21, 316), ou seja, de um gênero do
discurso determinado. Segundo Bakhtin, “as fronteiras desse
enunciado determinam-se pela alternância dos sujeitos falantes.
Os enunciados não são indiferentes uns aos outros, refletem-se
mutuamente. São precisamente esses reflexos recíprocos que lhes
determinam o caráter. O enunciado está repleto dos ecos e lem-
branças de outros enunciados, aos quais está vinculado no inte-
rior de uma esfera comum da comunicação verbal” (21, 316), ou
seja, de um determinado gênero do discurso, seja ele primário ou
secundário.
Aquela reflexão que deixamos de fazer em Marxismo e Fi-
losofia da Linguagem por problemas de tradução, ou seja as
relações existentes entre o enunciado concreto, o diálogo e o

50
Essa distinção entre língua e fala já foi tratada no capítulo anterior,
quando tratamos do “objetivismo abstrato”.

107
Geraldo Tadeu Souza

gênero do discurso, ganham no ensaio “Os Gêneros do Discur-


so” uma articulação que permite recuperar a unidade do círcu-
lo. De um ponto de vista dialógico, o enunciado concreto é, an-
tes de mais nada, uma resposta, ou seja, uma réplica a enun-
ciados anteriores dentro do mesmo gênero: “refuta-os, confir-
ma-os, completa-os, baseia-se neles, supõe-nos conhecidos e,
de um modo ou de outro, conta com eles” (21, 316), ou seja, no
acontecimento único e não-reiterável do enunciado concreto há
uma interação orgânica entre o gênero do discurso ao qual ele
pertence e a sua natureza dialógica, seja do ponto de vista do
micro-diálogo – diálogo interior, do diálogo na presença de in-
terlocutores, ou do grande diálogo, onde todo ato verbal huma-
no pode ser colocado em relação dialógica.
É no interior de um gênero do discurso determinado que
o enunciado concreto ocupa uma posição definida em relação a
um determinado tema. Desta forma, “o enunciado é repleto de
reações-resposta a outros enunciados numa dada esfera da co-
municação verbal” (21, 316), mas esse é o assunto que tratare-
mos a seguir, e se refere às relações entre o enunciado de outrem
e a expressividade expressa pelo estilo e pela entonação.

2. Tema
O tratamento exaustivo do tema é, como vimos anterior-
mente, um dos fatores do acabamento específico de um enun-
ciado concreto enquanto unidade da comunicação verbal. Mas
como esse conceito foi tratado no percurso teórico do Círculo
Bakhtin/Volochinov/Medvedev? Quais são as características que
ele apresenta na relação com outros conceitos como gêneros do
discurso, situação, significação, relações dialógicas? Como inse-
rir o tema na engrenagem dinâmica que move o todo do enun-
ciado concreto?
Se o princípio monístico que caracteriza o pensamento do
Círculo permanecer válido para esse conceito, encontraremos
nele todas as características já mencionadas em relação ao enun-

108
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

ciado e aos gêneros do discurso. Em primeiro lugar, vamos par-


tir de uma definição de tema dada pelo Círculo, para depois
percorrer o todo da obra, procurando outras relações que esse
conceito possa ter adquirido nesse percurso.
Na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929) há um
capítulo destinado a esse conceito. O capítulo 7 – Tema e Signifi-
cação na Língua – apresenta uma série de características com as
quais podemos definir o tema. Para Bakhtin/Volochinov, o tema
é:

a) uma propriedade que pertence a cada enunciado como


um todo;
b) o sentido do enunciado completo;
c) individual e não reiterável;
d) expressão de uma situação histórica concreta que deu
origem ao enunciado;
e) determinado não só pelas formas lingüísticas que en-
tram na composição (as palavras, as formas morfológicas
ou sintáticas, os sons, as entoações), mas igualmente
pelos elementos não verbais da situação;
f) tão concreto como o instante histórico ao qual pertence
o enunciado;
g) irredutível à análise, ou seja, não pode ser segmentado;
h) um sistema de signos dinâmico e complexo, que procura
adaptar-se adequadamente às condições de um dado
momento da evolução; e
i) “uma reação da consciência em devir ao ser em devir”,
ou seja, é uma resposta51 (10, 128-129).

51
O problema da tradução aparece mais uma vez aqui. Em Marxismo e
Filosofia da Linguagem não existe a ocorrência enunciado, e sim
enunciação completa, enunciação como um todo. Decidimos manter o
conceito enunciado por dois motivos: 1) é o tema de nossa dissertação
e 2) encontramos argumentos favoráveis nas citações dessa obra que

109
Geraldo Tadeu Souza

Antes de traçar um paralelo entre as distinções enuncia-


do/frase (ou oração) e as que são feitas nesse capítulo de Mar-
xismo e Filosofia da Linguagem entre tema – o sentido único e
não reiterável do enunciado concreto – e significação – o sentido
das palavras que compõe o enunciado concreto na sua acepção
lingüística – é importante voltar um pouco no tempo, e procurar
outras relações com as quais o conceito tema é apresentado.
Em “Discours dans la vie et dans la poésie”(1926) pode ser
estabelecida uma relação dialógica entre tema – aquilo de que se
fala na vida – e herói- aquele de que se fala na obra literária: “toda
palavra realmente pronunciada […] é a expressão e o produto da
interação social de três participantes: o locutor (ou autor), o ou-
vinte (ou leitor) e aquilo (ou isso) de que falamos (ou herói)” (5,
198). Esses três participantes – o locutor, o ouvinte, o tema –
interagem organicamente. Sendo assim, os dois últimos – o ou-
vinte e o tema (herói), aos quais o locutor orienta seu enunciado
concreto, “participam constantemente no acontecimento da cria-
ção, o qual não cessa de ser, um instante sequer, o acontecimen-
to de uma comunicação viva entre eles” (5, 201).
Bakhtin/Medvedev aponta um outro aspecto na definição
de tema. Para eles, é importante distinguir entre uma concepção
lingüística do tema, a significação da palavra e da frase, da que é
defendida pelo Círculo, onde o tema é o sentido do todo do enun-
ciado concreto. O tema não é composto dessas significações, ou

se encontram em Mikhaïl Bakhtine. Le principe dialogique, como


segue:
“Appelons le sens de l’énoncé entier son thème. […] En fait, le thème
de l’énoncé est individuel et non réitérable, comme l’est l’énoncé lui-
même. Il est l’expression de la situation historique concrète que a
engendré l’énoncé… [..] Il s’ensuit que le thème de l’énoncé est
déterminé non seulement par les formes linguistiques qui le composent
– mots, forms morphologiques et syntaxiques, sons, intonation – mais
aussi par les aspects extra-verbaux de la situation. Si nous omettons
ces aspects de la situation, nous ne saurions comprendre l’énoncé,
comme si nous en avions omis les mots les plus importants” (30, 73).

110
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

seja, ele não é um elemento da língua. Mesmo sendo construído


com a ajuda desses elementos, o tema transcende a língua, “é ao
todo do enunciado como um ato discursivo que está direcionado
o tema, não à palavra, à frase, ou ao período” (7, 132). Os teóricos
russos consideram o tema como “um ato sócio-histórico preciso.
Conseqüentemente, ele é inseparável da situação total do enun-
ciado da mesma forma que é inseparável dos elementos lingüísti-
cos” (7, 132), ou seja, em todo enunciado concreto existe uma
parte verbal e uma parte extra-verbal, e o tema pertence a essa
última, enquanto um dos fatores de acabamento do enunciado
concreto.
A relação entre o tema e o gênero do discurso é explicitada
da seguinte maneira: “a unidade temática da obra e seu lugar
real na vida desenvolvem-se conjuntamente, organicamente, na
unidade do gênero” 52 (7, 133). Uma visão mais ampla dessa
relação é dada na seguinte citação: “dentro do horizonte ideoló-
gico da cada época, há um centro de valores que é seguido por
todos os caminhos e aspirações da atividade ideológica. Esse
centro de valores torna-se o tema básico ou, mais precisamente
o complexo de temas da literatura de uma dada época. Os te-
mas dominantes estão conectados, também, como sabemos, com
um repertório específico de gêneros”53 (7, 157).
Voltando a Marxismo e Filosofia da Linguagem, encontra-
mos essa mesma articulação: “a cada etapa do desenvolvimento
da sociedade, encontram-se grupos de objetos particulares e li-
mitados que se tornam objetos da atenção do corpo social e que,

52
Entenda-se obra aqui como uma obra-enunciado, ou seja, a obra
como uma unidade da comunicação verbal de um gênero secundário,
nesse caso, da literatura.
53
Essa relação do centro de valores com os temas de um gênero de
discurso específico – a literatura (gênero secundário) pode também
ser derivada para os gêneros primários (vida cotidiana), bem como
para outros gêneros secundários. Ver os objetivos de Bakhtin
explicitados anteriormente neste trabalho no que se refere à Arquite-
tônica Apreciativa e ao centro de valores.

111
Geraldo Tadeu Souza

por causa disso, tomam um valor particular. Só este grupo de


objetos dará origem a signos, tornar-se-á um elemento da comu-
nicação por signos” (10, 44). O signo a que Bakhtin/Volochinov
se refere aqui é o signo ideológico, ou seja, o signo povoado por
valores sociais. Nesse sentido, os teóricos russos chamam “a rea-
lidade que dá lugar à formação de um signo de tema do signo”
(10, 45), isto é, “cada signo constituído possui seu tema” (10, 45),
ou melhor, cada enunciado concreto, cada manifestação verbal
tem seu tema específico.
O tema é, então, um tema ideológico, o qual possui sempre
um índice de valor social de natureza interindividual. O signo
ideológico, o tema, o valor se constroem entre os indivíduos, ou
seja, eles são de natureza sociológica, ideológica e dialógica. Para
Bakhtin/Volochinov, “o tema e a forma do signo ideológico estão
indissoluvelmente ligados, e não podem, por certo, diferenciar-se
a não ser abstratamente” (10, 45).
Nesse sentido, as relações entre forma – gêneros do discur-
so – e conteúdo – tema – adquirem vida sob as mesmas forças
sociais e condições econômicas. De acordo com os teóricos rus-
sos, “são as mesmas condições econômicas que associam um
novo elemento da realidade ao horizonte social, que o tornam
socialmente pertinente, e são as mesmas forças que criam as
formas das comunicações ideológicas (cognitiva, artística, reli-
giosa, etc.), as quais determinam, por sua vez, as formas da ex-
pressão semiótica”54 (10, 46).
Essa explicação extra-verbal da natureza do tema precisa
ser compreendida também na sua relação com o verbal, ou seja,
com a palavra, visto que o enunciado concreto, como já fala-
mos, se compõe de uma parte verbal – as palavras – e de uma

54
Essas forças sociais e a organização econômica da sociedade são
fundamentais para a compreensão ativa de qualquer conceito do
Círculo. Elas aparecem no todo da obra com as seguintes
designações: horizonte social, apreciação social, expressividade
e outras.

112
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

parte extra-verbal – a situação. Bakthin/Volochinov formula,


então, a inter-relação entre o tema – extra-verbal – e a significa-
ção – verbal – da seguinte maneira:

“o tema constitui o estágio superior real da capacidade lingüísti-


ca de significar. De fato, apenas o tema significa de maneira
determinada. A significação é o estágio inferior da capacidade
de significar. A significação não quer dizer nada em si mesma,
ela é apenas um potencial, uma possibilidade de significar no
interior de um tema concreto” (10, 131).

Os teóricos russos distinguem aqui a relação entre a signi-


ficação contextual de um enunciado concreto – o tema – e a signi-
ficação da palavra, frase, oração no sistema da língua, ou seja, a
investigação abstrata dos elementos lingüísticos55 . A natureza
semântica e a natureza lingüística, ou seja, o extra-verbal e o
verbal que compõem o enunciado concreto se completam na se-
guinte dinâmica: “a significação, elemento abstrato igual a si
mesmo, é absorvida pelo tema, e dilacerada por suas contradi-
ções vivas, para retornar enfim sob a forma de uma nova signifi-
cação com uma estabilidade e uma identidade igualmente provi-
sórias” (10, 136).
Essa relação do tema com o enunciado concreto, único, e
não reiterável, ajuda a compreender o discurso de outrem, fenô-
meno que é estudado amplamente pelo Círculo. A relação entre o
discurso do autor e o discurso citado envolve, também, uma abor-
dagem do tema. O discurso citado é um tema do nosso discurso.
Enquanto um enunciado citado, ele apresenta o seu próprio tema,
e assim integra o contexto do discurso do autor – o nosso discur-
so: “o tema autônomo então torna-se o tema de um tema” (10,
144). O estudo do fenômeno do discurso citado exige que se es-

55
Pode ser feita um analogia entre essa inter-relação entre tema e
significação e a que foi feita no capítulo anterior entre enunciado e
frase (e oração), visto que o tema corresponde a uma forma do
enunciado e a significação à forma da língua.

113
Geraldo Tadeu Souza

tabeleça uma relação dialógica entre o tema do enunciado do au-


tor e o tema do enunciado citado. Segundo Bakhtin, “o significado
lingüístico de uma enunciação dada é conhecido sobre o fundo de
uma língua e o seu sentido atual, sobre o fundo de outras
enunciações concretas do mesmo tema, sobre o fundo de opiniões
contraditórias, de pontos de vista e de apreciações…”56 (17, 90).
No ensaio “O discurso no romance”, Bakhtin dedica um
capítulo à pessoa que fala no romance, buscando a relação entre
essa pessoa – representada no gênero secundário (romance), e a
pessoa que fala na vida cotidiana – gênero primário. Nesse últi-
mo, ele mostra como nossa fala está cheia de palavras de outrem,
ou seja, o tema de nossos discursos é o tema dos discursos de
outrem: “fala-se no cotidiano sobretudo a respeito daquilo que os
outros dizem – transmitem-se, evocam-se, ponderam-se, ou jul-
gam-se as palavras dos outros, as opiniões, as declarações, as
informações; indigna-se ou concorda-se com elas, discorda-se
delas, refere-se a elas, etc. Se prestarmos atenção aos trechos de
um diálogo tomado ao vivo na rua, na multidão, nas filas, no hall,
etc., ouviremos com que freqüência se repetem as palavras “diz”,
“dizem”, “disse”, e freqüentemente escutando-se uma conversa
rápida de pessoas na multidão, ouve-se como que tudo se juntar
num único “ele diz”, “você diz”, “eu digo… E como é importante o
“todos dizem” e o “ele disse” para a opinião pública, a fofoca, o
mexerico, a calúnia, etc.” (17, 139).
É importante ressaltar quantas características o tema já
adquiriu nesse percurso. O tema é ideológico, histórico-
fenomenológico, sociológico e dialógico, ou seja, preenche o prin-
cípio monístico que rege todos os conceitos formulados pelo Cír-
culo. A engrenagem dinâmica que move o enunciado concreto
move também todos os seus elementos constitutivos.

56
Na edição francesa aparece enunciado e não enunciação: “Le sens
linguistique d’un énoncé donné se conçoit sur le fond du langage, son
sens réel, sur le fond d’autres énoncés concrets sur le même thème,
d’autres opinions, points de vue et appréciations en langages divers…”
(18, 104).

114
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

Assim sendo, o tratamento exaustivo do tema do enuncia-


do é, em conjunto com o gênero do discurso e o intuito discursivo
do locutor, um dos três fatores que em interação orgânica dão
acabamento específico ao enunciado concreto e proporcionam
sua capacidade de responder a enunciados anteriores.
Para Bakhtin, o objeto do discurso “é inesgotável, porém,
quando se torna tema de um enunciado (de uma obra científica,
por exemplo), recebe um acabamento relativo, em condições de-
terminadas, em função de uma dada abordagem do problema, do
material, dos objetivos por atingir, ou seja, desde o início ele esta-
rá dentro dos limites de um intuito definido pelo autor” (21, 300).
Nesse sentido, o objeto do discurso – o tema – de um enunciado
concreto “não é objeto do discurso pela primeira vez neste enun-
ciado, e este locutor não é o primeiro a falar dele” (21, 319). Se-
gundo o teórico russo, “o locutor não é um Adão, e por isso o
objeto de seu discurso se torna, inevitavelmente, o ponto onde se
encontram as opiniões de interlocutores imediatos (numa con-
versa ou numa discussão acerca de qualquer acontecimento da
vida cotidiana) ou então as visões de mundo, as tendências, as
teorias, etc. (na esfera da comunicação cultural)” (21, 319-320).
O tema, como um dos fatores de acabamento do enunciado
concreto, exige que o percebamos dentro do mesmo princípio
dialógico que orienta esse enunciado, ou seja, para uma com-
preensão ativa do tema não podemos nos esquecer que “o enun-
ciado é um elo na cadeia da comunicação verbal e não pode ser
separado dos elos anteriores que o determinam, por fora e por
dentro, e provocam nele reações-respostas imediatas e uma res-
sonância dialógica”57 (21, 320).

57
No ensaio “O problema do Texto”, Bakhtin fornece uma outra dimen-
são do princípio dialógico que orienta o tema, no interior da grande
temporalidade: “dois enunciados distintos confrontados um com o
outro, ignorando tudo um do outro, apenas ao tratar superficialmen-
te um único e mesmo tema entabulam, inevitavelmente, uma relação
dialógica entre si. Ficam em contato, no território do tema comum,
de um pensamento comum” (22, 342).

115
Geraldo Tadeu Souza

Para concluir nossas observações acerca do tema – o sen-


tido do enunciado concreto – vamos tomar tema e sentido como
sinônimos e apresentar mais uma peça da engrenagem dinâmi-
ca que move as formulações teóricas do Círculo:

“O sentido é potencialmente infinito, mas só se atualiza no contato


com outro sentido (o sentido do outro), mesmo que seja apenas no
contato com uma pergunta no discurso interior do compreendente.
Ele deve sempre entrar em contato com outro sentido para revelar
os novos momentos de sua infinidade (assim como a palavra reve-
la suas significações somente num contexto). O sentido não se
atualiza sozinho, procede de dois sentidos que se encontram e
entram em contato. Não há um “sentido em si”. O sentido existe só
para outro sentido, com o qual existe conjuntamente. O sentido
não existe sozinho (solitário). Por isso não pode haver um sentido
primeiro ou último, pois o sentido se situa sempre entre os senti-
dos, elo na cadeia do sentido que é a única suscetível, em seu todo,
de ser uma realidade. Na vida histórica, essa cadeia cresce infini-
tamente; é por essa razão que cada um dos elos se renova sempre;
a bem dizer, renasce outra vez” (25, 386).

3. Expressividade
Para compreender o enunciado concreto na cadeia da co-
municação verbal é necessário perseguir o conceito que organiza
essa comunicação, e esse conceito aparece com vários nomes no
todo da obra do Círculo, preenchendo as concepções ética, histó-
rico-fenomenológica, sociológica, ideológica e dialógica por ele
desenvolvida: avaliação social, apreciação social, orientação so-
cial, horizonte social, expressividade, enfim, uma série de termos
para recobrir um elemento comum – a noção de valor que preen-
che a relação do autor com o seu enunciado concreto.
Nesse sentido, decidimos levantar alguns aspectos do per-
curso do conceito apreciação social no interior do todo da obra do
Círculo, reservando para última parte as observações em torno

116
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

do conceito expressividade, desenvolvida por Bakhtin no ensaio


“Os gêneros do discurso” (1952-1953), o qual representa, para
nós, a articulação do conceito de valor no interior do enunciado
concreto em seu mais alto grau.
Os conceitos que articulam a Teoria do Enunciado Concre-
to acabam, como sabemos, se situando, por um lado, sempre na
fronteira entre o verbal e o extra-verbal, e por conseqüência, há
sempre uma interação orgânica entre eles. É o que acontece, por
exemplo, com o conceito apreciação social. A apreciação social, o
valor de uma determinada relação social numa comunidade dis-
cursiva, define:

n a escolha do tema, palavras, forma e sua combinação


individual nos limites de um enunciado dado;
n a escolha do conteúdo, a seleção da forma e a conexão
entre forma e conteúdo.

Segundo Bakhtin/Medvedev, “a apreciação social” unifica


o minuto da época e as novidades do dia com a intenção histó-
rica. Isso determina a fisionomia histórica de todo ato e de todo
enunciado, sua fisionomia histórica individual, de classe, de épo-
ca” (7, 121).
Em relação a esse mesmo conceito, Bakhtin/Medvedev diz
que se trata de uma instância intermediária entre a língua en-
quanto sistema abstrato de possibilidades – o ponto de vista das
formas lingüísticas – e a língua enquanto realidade concreta – o
ponto de vista do sentido: “apenas para o enunciado dado, em
suas condições históricas particulares é que a unidade de senti-
do, signo e realidade é realizada através da apreciação social. Se
tomarmos o enunciado concreto fora de sua criação histórica, em
abstração, estaremos longe do que estamos, precisamente, pro-
curando” (7, 125-126). A apreciação social compõe, então, o eixo
ético com o qual opera qualquer enunciado concreto.
Por tudo isso, “é impossível compreender um enunciado
concreto sem nos acostumarmos aos seus valores, sem com-

117
Geraldo Tadeu Souza

preender a orientação de suas apreciações no meio ideológico”


(7, 121). Ou como aparece em Marxismo e Filosofia da Lingua-
gem, “toda enunciação [enunciado] compreende antes de mais
nada uma orientação apreciativa” (10, 135).
Os conceitos apreciação social ou orientação apreciativa vão
estabelecer uma relação dialógica de concordância com o con-
ceito expressividade, desenvolvido por Bakhtin mais extensamen-
te, como já falamos, no ensaio “Os gêneros do discurso”. De qual-
quer maneira, não podemos esquecer que o conceito expressivi-
dade já aparece no ensaio “O discurso no romance” (1934-1935),
na discussão da palavra bivocal, ou seja, da relação entre o enun-
ciado do autor e o enunciado de outrem: “no campo de quase
todo enunciado ocorre uma interação tensa e um conflito entre a
sua palavra e a de outrem, um processo de delimitação ou de
esclarecimento dialógico mútuo. Desta forma o enunciado é um
organismo muito mais complexo e dinâmico do que parece, se
não se considerar apenas sua orientação objetal e sua expressivi-
dade unívoca direta”58 (17, 153). É esta natureza complexa e
dinâmica do enunciado concreto e sua relação com a expressivi-
dade que passará a ser, agora, nosso objeto de reflexão.
Antes de nos determos sobre o conceito expressividade,
vamos recapitular as três particularidades constitutivas do enun-
ciado concreto. Em primeiro lugar, o enunciado concreto é um
elo na cadeia de comunicação verbal, portanto, ele se constitui
pela alternância dos sujeitos falantes. Em segundo, o enunciado
concreto se constitui por um determinado acabamento, cujo in-
terior se constitui, por sua vez, de três fatores ligados indissolu-
velmente: um gênero do discurso determinado, um tema – trata-
do exaustivamente no processo da comunicação verbal, e o intui-

58
Bakhtin considera que “na composição de quase todo enunciado do
homem social – desde a curta réplica do diálogo familiar até as grandes
obras verbal-ideológicas (literárias, científicas e outras) existe, numa
forma aberta ou velada, uma parte considerável de palavras
significativas de outrem, transmitidas por um ou outro processo”
(17, 153).

118
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

to do locutor – a sua expressividade individual para com esse


enunciado. Finalmente, o enunciado concreto se constitui na re-
lação com o seu autor e com os seus outros parceiros – destina-
tários – da comunicação verbal.
Todas essas particularidades constitutivas do enunciado
concreto se caracterizam, no processo da comunicação verbal,
por uma expressividade determinada. Mas o que seria essa ex-
pressividade? Qual é a sua relação com essas particularidades,
ou seja, com o gênero do discurso, com o tema, com a entonação
e com o estilo, assim como com o autor e com o enunciado de
outrem? E qual é a diferença entre a expressividade do enun-
ciado concreto e a expressividade da oração?
Antes de mais nada, vamos responder a essa última ques-
tão. No ensaio “Os gêneros do Discurso” (1952-1953), Bakhtin
faz as seguintes perguntas: “Pode-se considerar que o princípio
expressivo do discurso é um fenômeno da língua enquanto sis-
tema? Pode-se falar de aspectos expressivos quando se trata de
unidades da língua, ou seja, de palavras e de orações?” (21, 308).
Segundo o teórico russo, essas perguntas só podem ter uma res-
posta negativa: “a língua enquanto sistema dispõe, claro, de um
rico arsenal de recursos lingüísticos – lexicais, morfológicos e sin-
táticos – para expressar a posição emotivo-valorativa do locutor,
mas todos esses recursos na qualidade de recursos lingüísticos,
são absolutamente neutros no plano dos valores da realidade”
(21, 308), ou seja, no acontecimento de um enunciado concreto
não há espaço para neutralidade.
De qualquer maneira, não podemos esquecer que a expres-
sividade do enunciado concreto, único, e não reiterável, é
construída com a ajuda do material verbal, isto é, dos recursos
lingüísticos. E com isso concorda Bakhtin: “apenas o contato entre
a significação lingüística e a realidade concreta, apenas o contato
entre a língua e a realidade – que se dá no enunciado – provoca o
lampejo da expressividade. Esta não está no sistema da língua e
tampouco na realidade objetiva que existiria fora de nós” (21,
311).

119
Geraldo Tadeu Souza

De acordo com o teórico russo, “o sistema da língua possui


as formas necessárias (isto é, os recursos lingüísticos) para ma-
nifestar a expressividade, mas na própria língua as unidades
significantes (palavras e orações) carecem, por sua natureza, de
expressividade, são neutras. É isso que possibilita que elas sir-
vam de modo igualmente satisfatório a todos os valores, os mais
variados e opostos e a todas as instâncias do juízo do valor”59 (21,
315).
A expressividade deve ser relacionada, então, com o acon-
tecimento único de um enunciado concreto, ou seja, com toda a
reflexão em torno da realidade concreta da linguagem desenca-
deada pelo Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev. É em torno
dessa reflexão sobre o particular, e não das reflexões do objetivismo
abstrato e do subjetivismo idealista, que podemos compreender
de maneira ativa a análise do acabamento específico que um enun-
ciado concreto, realizado, adquire na comunicação verbal.
É no interior da noção de acabamento específico do enun-
ciado concreto que vamos tentar perceber a natureza da relação
existente entre os três fatores desse acabamento, os quais estão
em interação orgânica – o tema, o gênero do discurso e a expres-
sividade, bem como a relação da expressividade com o enun-
ciado de outrem.
Para Bakhtin, a expressividade é, num primeiro momento,
a relação valorativa do locutor para com o tema – o objeto do
discurso, ou seja, ela corresponde ao intuito, ao querer-dizer do
locutor no ato de criação do enunciado concreto. Como já vimos
anteriormente, a unidade temática de um enunciado concreto se

59
Essa relação de neutralidade da palavra já foi desenvolvida anterior-
mente por Bakhtin/Volochinov em Marxismo e Filosofia da Lingua-
gem, quando da distinção entre o signo ideológico – aquele que tem
expressividade – e a palavra. Para os teóricos russos, o signo “é cria-
do por uma função ideológica precisa e permanece inseparável dela.
A palavra, ao contrário, é neutra em relação a qualquer função ideo-
lógica específica. Pode preencher qualquer espécie de função ideoló-
gica: estética, científica, moral, religiosa” (10, 37).

120
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

desenvolve organicamente na unidade do gênero. Nesse sentido,


segundo o teórico russo, “o gênero do discurso não é uma forma
da língua, mas uma forma do enunciado que, como tal, recebe do
gênero uma expressividade determinada, típica, própria do gêne-
ro dado” (21, 312).
No interior da comunicação verbal, o gênero é algo que é
dado. Portanto, “os gêneros do discurso correspondem a circuns-
tâncias e temas típicos da comunicação verbal e, por conseguin-
te, a certos pontos de contato típicos entre as significações da
palavra e a realidade concreta […] Essa expressividade típica do
gênero, claro, não pertence à palavra como unidade da língua e
não entra na composição de sua significação, mas apenas reflete
a relação que a palavra e sua significação mantêm com o gênero,
isto é, com os enunciados típicos” (21, 312).
Assim sendo, podemos compreender porque na engrena-
gem dinâmica do enunciado concreto os três fatores do seu aca-
bamento específico – a expressividade, o tema e o gênero do dis-
curso – estão indissoluvelmente ligados.
Mas, segundo Bakhtin, “a expressividade de um enuncia-
do nunca pode ser compreendida e explicada até o fim se se levar
em conta somente o teor do objeto do sentido” (21, 317), isto é, se
permanecermos apenas no interior da intenção do locutor em re-
lação ao tema – dois dos fatores de acabamento, ou mesmo na
interação orgânica existente entre o tema, o gênero do discurso e
esse intuito discursivo do locutor.
É preciso mais, é necessário, dentro da engrenagem dinâ-
mica que move o enunciado concreto, considerá-la como uma
resposta: “a expressividade de um enunciado é sempre, em me-
nor ou maior grau, uma resposta, em outras palavras: manifesta
não só sua própria relação com o objeto do enunciado, mas tam-
bém a relação do locutor com os enunciados do outro” (21, 317).
Esse aspecto da expressividade corresponde a sua relação com a
terceira particularidade constitutiva do enunciado concreto: a re-
lação desse enunciado com o seu autor e com aqueles a que ele
responde, os destinatários.

121
Geraldo Tadeu Souza

Para o teórico russo, “a experiência verbal individual do


homem toma forma e evolui sob o efeito da interação contínua e
permanente com os enunciados individuais do outro” (21, 314).
Nesse sentido, “as palavras dos outros introduzem sua própria
expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestru-
turamos, modificamos” (21, 314).
No interior da comunicação verbal não estamos mais no
interior dos recursos lingüísticos sozinhos, e sim, na cadeia de
enunciados concretos que a compõem em evolução permanente.
É por isso que o enunciado de outrem tem tanta importância nas
reflexões do Círculo, e também que um enunciado concreto é
uma síntese dialética entre as minhas palavras e as palavras dos
outros.
Segundo Bakhtin, “a expressividade da palavra isolada não
é pois propriedade da própria palavra, enquanto unidade da
língua, e não decorre diretamente de sua significação. Ela se pren-
de quer à expressividade padrão de um gênero, quer à expressivi-
dade individual do outro que converte a palavra numa espécie de
representante do enunciado do outro em seu todo – um todo por
ser instância determinada de um juízo de valor” (21, 314).
Se considerarmos que todo enunciado concreto, enquanto
uma expressão típica, um gênero do discurso determinado, se
constrói no interior dos enunciados dos outros60 e responde a
esses enunciados61 , estaremos mais próximos de uma compreen-
são ativa das formulações desenvolvidas por Bakhtin, Volochinov
e Medvedev em torno da cadeia da comunicação verbal, e dos
enunciados concretos que são as unidades dessa comunicação
verbal.

60
A experiência verbal do homem pode ser definida, segundo Bakhtin,
“como um processo de assimilação, mais ou menos criativo, das
palavras do outro (e não das palavras da língua)” (21, 314).
61
Para Bakhtin, “a resposta transparecerá nas tonalidades do sentido,
da expressividade, do estilo, nos mais ínfimos matizes da composição”
(21, 317).

122
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

Resta-nos ainda tratar da relação da expressividade com o


estilo e a entonação, o que realizaremos a seguir nas duas últi-
mas partes deste capítulo. Por ora, deixamos mais uma obser-
vação de Bakhtin acerca da interação orgânica entre as particu-
laridades constitutivas do enunciado concreto:

“o enunciado, seu estilo e sua composição são determinados pelo


objeto do sentido e pela expressividade, ou seja, pela relação
valorativa que o locutor estabelece com o enunciado” (21, 315).

4. Estilos
O que nos interessa discutir neste tópico são as carac-
terísticas que o conceito estilo adquire no todo da obra do Círcu-
lo, no interior de uma Teoria do Enunciado Concreto, e sua rela-
ção com os outros conceitos que articulam essa teoria como gê-
nero do discurso, tema, expressividade e entonação, bem como a
relação do estilo com o fenômeno do discurso de outrem.
Com esse intuito, vamos buscar no todo da obra do Circulo
uma definição de estilo. Em 1926, no ensaio “Le discours dans la
vie et dans la poésie”, Volochinov nos dá a seguinte definição de
estilo: “ ‘O estilo é o homem’; mas podemos dizer que o estilo é,
pelo menos, dois homens, ou mais exatamente, um homem e um
grupo social representado pelo ouvinte que participa permanen-
temente no discurso interior e exterior do homem e encarna a
autoridade que o grupo social exerce sobre ele” (5, 212), ou seja,
o estilo, como todos os outros conceitos do Círculo se define pela
interação dialógica entre duas ou mais pessoas. O estilo é, da
mesma maneira que o enunciado concreto, uma construção dia-
lógica, sociológica e ideológica, ou seja, sempre que nos referimos
ao enunciado concreto e seus elementos estamos no domínio do
criado.
No interior de um gênero do discurso secundário – a obra
literária –, Volochinov define dois aspectos da relação entre o
autor e o herói que definem o estilo:

123
Geraldo Tadeu Souza

a) o valor hierárquico do herói;


b) seu grau de proximidade em relação ao autor. (5, 208)

Transportando esses aspectos para o gênero primário, dirí-


amos que o estilo é determinado pelo valor hierárquico do interlo-
cutor, e o grau de proximidade que existe entre o autor do enun-
ciado e esse interlocutor no que se refere a um tema determina-
do62 . Nesse sentido, podemos aproveitar a mesma explicação que
Bakhtin dá para o grau de proximidade entre o autor e o herói:
“esse aspecto tem, em todas as línguas, uma expressão gramati-
cal imediata: o emprego da primeira, da segunda ou da terceira
pessoa, e a modificação da estrutura da frase em função de seu
sujeito (“eu”, “tu” ou “ele”)” (5, 207). Para o teórico russo, “a estru-
tura da linguagem reflete aqui a relação recíproca dos locutores”
(5, 207).
Para Bakhtin/Volochinov, “a individualização estilística da
enunciação [enunciado] […] constitui justamente este reflexo da
inter-relação social, em cujo contexto se constrói uma determi-
nada enunciação [enunciado]” (10, 113). É “a situação e os parti-
cipantes mais imediatos que determinam a forma e o estilo ocasi-
onais da enunciação [enunciado]” (10, 114). Os teóricos russos
consideram que “a elaboração estilística da enunciação [enun-
ciado] é de natureza sociológica e a própria cadeia verbal, à qual
se reduz em última análise a realidade da língua, é social” (10,
122).
Essa abordagem sociológica do estilo permeia a tipologia
do enunciado citado, desenvolvida pelo Círculo na obra Marxis-
mo e Filosofia da Linguagem. Essa tipologia do estilo é desenvol-
vida no interior de um gênero secundário: o romance. Pela orien-
tação dinâmica da inter-relação verbal entre o enunciado do au-
tor e o enunciado citado, ou o discurso de outrem, Bakhtin/Volo-
chinov classifica os estilos em: linear, pictórico e monumental.

62
Essas características vão ser utilizadas posteriormente para a distinção
entre estilo familiar, estilo íntimo e estilo objetivo.

124
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

No estilo linear, as fronteiras entre o discurso do autor e o


discurso citado são nítidas e invioláveis: “a tendência principal
do estilo linear é criar contornos exteriores nítidos à volta do dis-
curso citado, correspondendo a uma fraqueza do fator individual
interno” (10, 150). Já no estilo pictórico acontece o oposto. Nesse
tipo, as particularidades lingüísticas são apreendidas e ocorre
uma coloração do enunciado: a tendência do estilo pictórico “é
atenuar os contornos exteriores nítidos da palavra de outrem”
(10, 150). E no último, o estilo monumental, que compreende o
discurso direto, ocorre a transposição primitiva e inerte do enun-
ciado de outrem.
O fenômeno do enunciado de outrem é amplamente inves-
tigado pelo Círculo porque, como vimos, no interior da comuni-
cação verbal ocorre uma interação tensa entre o enunciado do
autor – o meu enunciado – e o enunciado dos outros, aqueles
enunciados que formaram e formam a minha consciência. O
material que constitui o enunciado concreto – meu ou dos outros
– é a palavra viva: “a palavra não é um objeto, mas um meio
constantemente ativo, constantemente mutável de comunicação
dialógica. Ela nunca basta a uma consciência, a uma voz. Sua
vida está na passagem de boca em boca, de um contexto para
outro, de um grupo social para outro, de uma geração para ou-
tra. Nesse processo ela não perde o seu caminho nem pode liber-
tar-se até o fim do poder daqueles contextos concretos que inte-
grou” (13, 176)63 .
É essa palavra viva que permite ao Círculo desenvolver a
Metalingüística e encarar o estilo dentro desse ponto de vista. De
acordo com Bakhtin, “a estilística deve basear-se não apenas e
nem tanto na lingüística quanto na metalingüística, que estuda a
palavra não no sistema da língua e nem num “texto” tirado da
comunicação dialógica, mas precisamente no campo propriamente
dito da comunicação dialógica, ou seja, no campo da vida autên-
63
Bakhtin considera que “o exame do discurso do ponto de vista da sua
relação com o discurso do outro é de excepcional importância para a
compreensão da prosa artística” (13, 173).

125
Geraldo Tadeu Souza

tica da palavra” (13, 176), isto é, na cadeia da comunicação ver-


bal e no interior de sua unidade: o enunciado concreto.
No ensaio “Os gêneros do discurso”, Bakhtin fornece uma
visão completa e objetiva de todas as inter-relações do estilo com
os elementos do enunciado concreto, assim como uma reflexão
em torno desse conceito enquanto um fato gramatical – fenôme-
no da língua – e um fato estilístico – fenômeno do enunciado
concreto.
Em primeiro lugar, vamos verificar a relação entre o estilo e
o gênero do discurso. Segundo Bakhtin, “o estilo está
indissoluvelmente ligado ao enunciado e a formas típicas de enun-
ciado, isto é, aos gêneros do discurso” (21, 283). Para o teórico
russo, “a definição de um estilo em geral e de um estilo individual
em particular requer um estudo aprofundado da natureza do
enunciado e da diversidade dos gêneros do discurso” (21, 283),
pois cada esfera da atividade e da comunicação humana “conhece
seus gêneros, apropriados à sua especificidade, aos quais corres-
pondem determinados estilos” (21, 284).
Nesse sentido, vamos apontar algumas características da
relação entre o estilo e as particularidades constitutivas do enun-
ciado concreto:

a) o estilo é indissociavelmente vinculado a unidades te-


máticas determinadas e, o que é particularmente im-
portante, a unidades composicionais: tipo de estrutura-
ção e de conclusão de um todo, tipo de relação entre o
locutor e os outros parceiros da comunicação verbal (21,
284);
b) o estilo entra como elemento na unidade de gênero de
um enunciado (21, 284);
c) o enunciado, seu estilo e sua composição são determi-
nados pelo objeto do sentido e pela expressividade, ou
seja, pela relação valorativa que o locutor estabelece com
o enunciado (21, 315).

126
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

d) uma análise estilística que queira englobar todos os as-


pectos do estilo deve obrigatoriamente analisar o todo
do enunciado e, obrigatoriamente, analisá-la dentro da
cadeia da comunicação verbal de que o enunciado é
apenas um elo inalienável (21, 326).

Depois de inserir o estilo na engrenagem dinâmica do enun-


ciado concreto, resta-nos complementá-lo com a tipologia do es-
tilo engendrada por Bakhtin, a qual distingue entre estilo famili-
ar, estilo íntimo e estilo objetivo-neutro. Como, para o teórico
russo, a análise estilística deve ser feita no interior da comunica-
ção verbal, é necessário perceber, então, como as relações de
comunicação social vão se integrar a esse processo.
Segundo Bakhtin, “a estrutura da sociedade em classes
introduz nos gêneros do discurso e nos estilos uma extraordiná-
ria diferenciação que se opera de acordo com o título, a posição, a
categoria, a importância conferida pelo fortuna privada ou pela
notoriedade pública, pela idade do destinatário e, de modo
correlato, de acordo com a situação do próprio locutor (ou escri-
tor)” (21, 322). A partir da interação orgânica entre o gênero do
discurso e o estilo, e do grau de proximidade entre o destinatário
e o locutor, podemos compreender a tipologia de estilos – íntimo,
familiar, objetivo – definida na esfera da vida cotidiana ou da vida
oficial.
Os dois primeiros estilos – íntimo e familiar – em interação
orgânica com seus respectivos gêneros – se caracterizam pelo
caráter pessoal, isto é, por se realizarem “fora dos âmbitos da
hierarquia e das convenções sociais (em maior ou menor grau),
“sem a graduação”, poderíamos dizer” (21, 323). No primeiro há
uma tendência para a fusão entre o locutor e o destinatário, ou
seja, “os gêneros e os estilos íntimos repousam numa máxima
proximidade interior entre o locutor e o destinatário da fala”64

64
Segundo Bakhtin, “o discurso íntimo é empregnado de uma confiança
profunda no destinatário, na sua simpatia, na sensibilidade e na boa

127
Geraldo Tadeu Souza

(21, 323). Já no segundo existe uma tendência para a expressão


de uma atitude pessoal, informal, para com a realidade, isto é,
ele é usado para “destronar os estilos e as visões de mundo que
gozam de um estatuto tradicional e oficial, que se necrozam e
ficam convencionais” (21, 323).
O terceiro tipo de estilo – objetivo ou neutro – representa o
estilo que é compreendido pela estilística tradicional. A compreen-
são do estilo, nesse perspectiva, caracteriza-se por subestimar a
relação do locutor com o destinatário, baseando suas análises
apenas no tema do enunciado e na relação do locutor para com
esse tema, ou seja, rompendo a interação orgânica entre o autor
e o destinatário. Para Bakhtin, “quando se subestima a relação
do locutor com o outro e com seus enunciados (existentes ou
presumidos), não se pode compreender nem o gênero nem o esti-
lo de um discurso” (21, 324). De qualquer forma, esse estilo não
deixa de levar em conta uma certa idéia de destinatário. A dife-
rença é que, ao contrário do estilo íntimo, a expressividade no
estilo objetivo é reduzida ao extremo, ou seja “o estilo objetivo-
neutro pressupõe uma espécie de identificação entre o destinatá-
rio e o locutor, uma comunhão de pontos de vista, o que ocorre à
custa de uma recusa de expressividade”65 (21, 324).
A complementaridade entre o verbal e o não-verbal, as for-
mas da língua e as formas do enunciado concreto é uma das
características principais das formulações teóricas do Círculo.
Nesse sentido vamos concluir a nossa abordagem do conceito
estilo com uma citação de Bakhtin que reafirma esse caráter com-
plementar:

“Pode-se dizer que a gramática e a estilística se juntam e se sepa-


ram em qualquer fato lingüístico concreto que, encarado do pon-
to de vista da língua, é um fato gramatical, encarado do ponto de

vontade de sua compreensão responsiva. Nesse clima de profunda


confiança, o locutor desvela suas profundezas interiores” (21, 323).
65
O discurso científico tem a pretensão de ser uma expressão desse
estilo objetivo-neutro.

128
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

vista do enunciado individual, é um fato estilístico. Mesmo a se-


leção que o locutor efetua de uma forma gramatical já é um ato
estilístico. Esses dois pontos de vista sobre um único e mesmo
fenômeno concreto da língua não devem porém excluir-se mutu-
amente, substituir-se mecanicamente um ao outro, devem com-
binar-se organicamente (com a manutenção metodológica de sua
diferença) sobre a base da unidade real do fato lingüístico. Ape-
nas uma compreensão profunda da natureza do enunciado e das
particularidades dos gêneros do discurso pode permitir a solu-
ção desse complexo problema de metodologia” (21, 287).

5. Entonações
Onde há gênero há estilo, onde há estilo, há entonação,
onde há entonação há gênero. É esse o motivo que leva o pensa-
mento do Círculo a propor uma Sociologia do Gênero, uma
Estilística Sociológica, e também a perceber a entonação na sua
interação orgânica com os outros dois – gênero e estilo – em sua
orientação social: “a entonação é social par excellence” (5, 194).
No todo da obra do Círculo, esse conceito aparece com as
seguintes acepções: entonação, entoação, tom, acento, tonalida-
de, sempre em correlação com o conceito de valor – horizonte
social, apreciação social, expressividade –, que anima a Arquite-
tônica apreciativa da teoria. A entonação é a forma sonora da
expressão axiológica, ou seja, a forma de representação do ele-
mento ético no enunciado concreto.
Num primeiro momento, no ensaio “Sobre a Filosofia do
Ato” (1919-1921), a definição de entonação está relacionada com
a palavra viva expressa num acontecimento único da existência,
portanto, numa perspectiva fenomenológica: “o tom emotivo-volitivo
circunfundi o todo de conteúdo/sentido de um pensamento no ato
realmente realizado e o relaciona à ocorrência única do ser como
acontecimento” (2, 34) . Portanto, a entonação ocupa, no todo da
palavra, o aspecto emotivo-volitivo, em interação orgânica com o
aspecto de conteúdo/sentido (a palavra como conceito) e o aspec-
to palpável-expressivo (a palavra como imagem).

129
Geraldo Tadeu Souza

A entonação é um elemento constituinte da palavra e ex-


pressa a atitude de valor do indivíduo em direção ao objeto66 , o
que é desejável ou indesejável nele: “por aspecto entonacional da
palavra compreendemos a sua capacidade de exprimir toda a
multiplicidade das relações axiológicas do indivíduo falante como
conteúdo do enunciado (no plano psicológico a multiplicidade
das ações emocionais e volitivas do falante), além disso, mesmo
que este aspecto fosse expresso numa entonação real durante a
execução, ou fosse experimentado simplesmente como uma pos-
sibilidade, ele teria igualmente uma dimensão estética” (4, 64).
Volochinov acrescenta a essa perspectiva estética, uma
perspectiva sociológica, discutindo a essência social da entona-
ção, a qual se situa na fronteira entre o verbal e o não-verbal,
conduzindo o discurso para fora dos limites verbais. Como um
dos elementos do enunciado concreto, a entonação têm as mes-
mas características que orientam o todo desse enunciado:

a) a natureza social;
b) a orientação ao ouvinte (o segundo participante);
c) a orientação ao objeto do enunciado (o tema).

Para Volochinov, “a entonação se encontra na fronteira da


vida e da parte verbal do enunciado, ela transmite a energia da
situação vivida no discurso, ela confere a tudo o que é lingüisti-
camente estável um movimento histórico vivo e um caráter de
singularidade” (5, 199). Nesse sentido, a entonação apresenta
características histórico-fenomenológica e sociológica.
Bakhtin/Medvedev considera a entonação – condicionada
pelo sentido único (tema) e não-repetível do enunciado – como
entonação expressiva, a qual ele distingue da entonação sintática
ou entonação em geral: “A entonação expressiva, distinta da en-
tonação sintática que é mais estável, colori todas as palavras do
enunciado e reflete sua singularidade histórica […] É claro que a

66
Como já falamos essa é uma das particularidades constitutivas do
enunciado concreto.

130
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

entonação expressiva não é obrigatória, mas, quando ela ocorre,


é a mais distinta expressão da apreciação social” (7, 122). Essa
tipologia da entonação irá refletir na tipologia estilística – estilo
linear, estilo pictórico, estilo monumental – apresentada pelo Cír-
culo.
No livro Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929), Bakhtin/
Volochinov explica a relação entre a entonação expressiva e a
apreciação social – expressividade – da seguinte maneira: “o nível
mais óbvio, que é ao mesmo tempo o mais superficial da apreci-
ação social contida na palavra, é transmitido através da entoação
expressiva” (10, 132). Para justificar essa afirmação, ele nos dá
um exemplo retirado do Diário de um Escritor, de Dostoiévski:

“Certa vez, num domingo, já perto da noite, eu tive ocasião de


caminhar ao lado de um grupo de seis operários embriagados, e
subitamente me dei conta de que é possível exprimir qualquer
pensamento, qualquer sensação, e mesmo raciocínios profun-
dos, através de um só e único substantivo, por mais simples que
seja [Dostoiévski está pensando aqui numa palavrinha censura-
da de largo uso]. Eis o que aconteceu. Primeiro, um desses ho-
mens pronuncia com clareza e energia esse substantivo para ex-
primir, a respeito de alguma coisa que tinha sido dita antes, a
sua contestação mais desdenhosa. Um outro lhe responde repe-
tindo o mesmo substantivo, mas com um tom e uma significação
completamente diferentes, para contrariar a negação do primei-
ro. O terceiro começa bruscamente a irritar-se com o primeiro,
intervém brutalmente e com paixão na conversa e lança-lhe o
mesmo substantivo, que toma agora o sentido de uma injúria.
Nesse momento, o segundo intervém novamente para injuriar o
terceiro que o ofendera. ‘O que há, cara? quem tá pensando que
é? a gente tá conversando tranqüilo e aí vem você e começa a
bronquear!’ Só que esse pensamento, ele o exprime pela mesma
palavrinha mágica de antes, que designa de maneira tão simples
um certo objeto; ao mesmo tempo, ele levanta o braço e bate no
ombro do companheiro. Mas eis que o quarto, o mais jovem do
grupo, que se calara até então e que aparentemente acabara de
encontrar a solução do problema que estava na origem da dispu-
ta, exclama com um tom entusiasmado, levantando a mão…:

131
Geraldo Tadeu Souza

‘Eureka!’ ‘Achei, achei!. Ele simplesmente repete o mesmo subs-


tantivo banido do dicionário, uma única palavra, mas com um
tom de exclamação arrebatada, com êxtase, aparentemente ex-
cessivo, pois o sexto homem, o mais carrancudo e mais velho dos
seis, olha-o de lado e arrasa num instante o entusiasmo do jo-
vem, repetindo com uma imponente voz de baixo e num tom ra-
bugento… sempre a mesma palavra, interdita na presença de
damas para significar claramente: ‘Não vale a pena arrebentar a
garganta, já compreendemos!’ Assim, sem pronunciar uma úni-
ca outra palavra, eles repetiram seis vezes seguidas sua palavra
preferida, um depois do outro, e se fizeram compreender perfei-
tamente” (10, 133).

Bakhtin/Volochinov observa que “em todos esses casos, o


tema, que é uma propriedade de cada enunciação [enunciado]
(cada uma das enunciações [enunciados] dos seis operários ti-
nha um tema próprio), realiza-se completa e exclusivamente atra-
vés da entoação expressiva, sem ajuda da significação das pala-
vras ou da articulação gramatical” (10, 134), o que vem de encon-
tro ao aspecto emocional do intuito discursivo do locutor, um dos
fatores de acabamento específico do enunciado concreto.
Podemos estabelecer uma relação dialógica entre esse exem-
plo e a seguinte observação que aparece no ensaio “Observações
sobre a epistemologia das ciências humanas” (1974): “há que
observar que a expressão emocional dos valores pode não ter um
caráter explicitamente verbal e pode estar implícita, manifestar-
se pela entonação. As entonações mais substanciais e mais está-
veis constituem um fundo entonacional determinado por um grupo
social (uma nação, uma classe social, uma classe profissional,
um meio, etc.). Em certa medida, pode-se falar apenas por
entonações, tornando quase indiferente, relativa e intercambiável,
a parte do discurso verbalmente expressa. É freqüente o emprego
de palavras inúteis em sua significação verbal, ou então a repeti-
ção de uma única e mesma palavra, de uma única e mesma fra-
se, que então servem somente de suporte material para a entona-
ção desejada” (26, 409-410).

132
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

A engrenagem dinâmica que orienta um enunciado con-


creto faz com que o Círculo não descuide de nenhum de seus
elementos um momento sequer. Segundo Volochinov, “a situa-
ção e o auditório que lhe corresponde determinam antes de tudo
a entonação, e é através desta que são escolhidas e dispostas as
palavras”67 (16, 305). A modificação de um desses elementos –
situação e auditório – provoca uma modificação imediata da ento-
nação.
A natureza da interação orgânica entre a entonação – tom,
o tema – sentido, e o diálogo é explicitada no ensaio “O discurso
no romance” (1934-1935): “a réplica de qualquer diálogo real en-
cerra esta dupla existência: ela é construída e compreendida no
contexto de todo o diálogo, o qual se constitui a partir das suas
enunciações [enunciados] (do ponto de vista do falante) e das
enunciações [enunciados] de outrem (do partner). Não é possível
retirar uma única réplica deste contexto misto de discursos pró-
prios e alheios sem que se perca seu sentido e seu tom, ela é uma
parte orgânica de um todo plurívoco”68 (16, 93).
Toda essa interação orgânica entre as particularidades cons-
titutivas do enunciado concreto obrigam a distinção entre as for-
mas do enunciado concreto e as formas da língua. Sempre que o
conceito a ser definido concorre com uma outra definição – lin-
güística, por exemplo – é próprio ao pensamento concreto do gru-
po dar uma definição complementar a esses conceitos.

67
Volochinov dá a seguinte ordem para a organização da forma do
enunciado: “os elementos fundamentais que organizam a forma do
enunciado são em primeiro lugar a entonação (o timbre expressivo de
uma palavra), depois a escolha das palavras, enfim, sua disposição
no interior de um enunciado completo” (16, 304).
68
Em francês: “Cette vie double est également celle de la réplique de tout
dialogue réel: elle se construit et se conçoit dans le contexte d’un dialogue
entier, composé d’éléments << à soi >> (du point de vue du locuteur), et
<<à l’autre>> (du point de vue de son “partenaire”). De ce contexte
mixte des discours <<siens>> et <<étrangers>>, on ne peut ôter une
seule réplique sans perdre son sens et son ton. Elle est partie organique
d’un tout plurivoque” (18, 106).

133
Geraldo Tadeu Souza

Nesse sentido, Bakhtin, no ensaio “Os gêneros do Discur-


so” (1952-1953), desenvolve a seguinte tipologia da entonação:

1) entonação gramatical (da língua): marca a conclusão,


a explicação, a demarcação, a enumeração, etc.
2) entonação narrativa, exclamativa, exortativa: cruza-
mento da entonação gramatical com a entonação do
gênero;
3) entonação expressiva: a entonação do gênero no todo
do enunciado. (21, 315)

Essa última se caracteriza como pertencente não à forma


da língua mas à forma do enunciado concreto. Nesse sentido,
vamos apresentar algumas características da entonação expres-
siva:

a) ela é um dos recursos para expressar a relação emotivo-


valorativa com o objeto do discurso (tema);
b) não existe fora do enunciado concreto;
c) uma palavra com entonação expressiva já é um enun-
ciado completo. Ex. “Ótimo!”, “Ânimo!”, etc. (21, 309-
310).
d) ela se relaciona com o todo do enunciado concreto, com
a expressividade da palavra, com a expressividade do
gênero na palavra, ou seja, “a expressividade e as
entonações típicas que lhe correspondem não possuem
a força normativa própria das formas da língua” (21,
312).

Vamos terminar nossas observações sobre a entonação com


um citação de Bakhtin, na qual esse conceito adquire o princípio
dialógico que orienta a engrenagem dinâmica do enunciado con-
creto. Aqui, a entonação – tonalidades dialógicas – vai interagir
com os enunciados de outrem, que como já sabemos, é indispen-
sável para qualquer reflexão em torno da comunicação verbal,

134
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

que leve em conta as formulações teóricas de Bakhtin, Volochinov


e Medvedev:

“As tonalidades dialógicas preenchem um enunciado e devemos


levá-las em conta se quisermos compreender até o fim o estilo
do enunciado. Pois nosso próprio pensamento – nos âmbitos da
filosofia, das ciências, das artes – nasce e forma-se em intera-
ção e em luta com o pensamento alheio, o que não pode deixar
de refletir nas formas de expressão verbal de nosso pensamen-
to” (21, 317).

135
Considerações Finais

É chegada a hora de dar um acabamento relativo a esta


dissertação, procurando pontuar alguns aspectos que conside-
ramos importante repetir, ou complementar, de um lugar dife-
rente. Ao tecer nossas considerações finais, temos a intenção de
retomar as abordagens que pretendíamos imprimisse o caráter
deste trabalho: a polêmica em torno da autoria da obras; os pon-
tos de vista utilizados pelo Círculo para investigar o enunciado
concreto; e a engrenagem conceitual que orienta essa investiga-
ção. Gostaríamos, também, de ressaltar a coerência do percurso
teórico do Círculo e a responsabilidade crítica com a qual esses
três teóricos russos discutiram os discursos científicos com os
quais dialogavam para construir o ponto de vista da Metalingüís-
tica, cuja base material é o enunciado concreto.
Para a construção desta dissertação-enunciado, cujo tema
pretendeu dar uma introdução à Teoria do Enunciado Concreto
do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev, partimos de uma in-
vestigação do todo orgânico da obra do Círculo, tendo como base
sua concepção de linguagem articulada sobre a base do enun-
ciado concreto. Por um lado pudemos perceber a heterogeneida-
de de discursos científicos que se debruçam sobre a linguagem
com intuito de revelar um ou outro aspecto de sua existência, e
por outro, observar o caráter de complementariedade que carac-
teriza as investigações do Círculo.
Com relação aos pontos de vista que articulam as investi-
gações de Bakhtin, Volochinov e Medvedev, é importante salien-
tar quatro princípios. O primeiro a ser ressaltado é o princípio
ético que rege as formulações teóricas do Círculo, tanto na crítica
aos outros gêneros do discurso científicos como na articulação
Geraldo Tadeu Souza

de sua Teoria do Enunciado Concreto. Aliados a esse princípio


ético, outros três princípios orientam a engrenagem dinâmica da
teoria desenvolvida por eles: um princípio sócio-ideológico – a
sociologia da consciência, do discurso, do som significativo, a
estilística sociológica e a poética sociológica –; um princípio
dialógico – as relações dialógicas do micro ao grande-diálogo; e
um princípio temporal histórico-fenomenológico – o acontecimento
único da pequena à grande temporalidade. Não podemos esque-
cer que nessa engrenagem dinâmica os quatro princípios estão
em interação orgânica.
Esses princípios, predominantes no pensamento do Círcu-
lo, se apresentaram já nas definições dos conceitos, ou seja, eles
construíram a estrutura viva na qual os conceitos foram articula-
dos no interior desse pensamento: seu conteúdo, sua imagem e
seu tom. A arquitetura dessa visão teórica nos conduziu a uma
reflexão intrinsecamente, imanentemente, estruturada na base
do enunciado concreto, e de sua construção. Para qualquer lado
que olhávamos o enunciado concreto, no interior do todo da obra
do Círculo, pretendíamos enxergar o real, a vida, o homem e seus
valores, seja no discurso literário, científico, cotidiano ou de qual-
quer outro gênero primário ou secundário.
O que Bakhtin inicia, e os seus discípulos – Volochinov e
Medvedev – co-participam, é a tentativa de promover uma descri-
ção da arquitetônica apreciativa concreta e real do mundo, a qual
vai ganhando, no percurso das obras-enunciados do Círculo, os
seus membros constituintes, a sua engrenagem conceitual, ou
seja, os seus objetos reais – locutor, ouvinte, palavra, tema, gêne-
ro do discurso, estilo, entonação, expressividade –, todos eles em
interação orgânica para propiciar uma compreensão ativa do even-
to único da existência, representado pelo enunciado concreto
enquanto um elo da cadeia de comunicação verbal, ou seja, en-
quanto um objeto vivo de algum domínio cultural, seja ele a vida
cotidiana, a arte ou a ciência, que responde a enunciados ante-
riores do mesmo gênero do discurso.
Nos “Apontamentos 1970-1971”, Bakhtin nos dá um enig-
ma para tentar compreender de maneira ativa o todo da obra:

138
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

“meu fraco pela variação e pela variedade terminológica que abran-


ge um único e mesmo fenômeno. As variedades das sínteses.
Aproximações remotas sem indicações dos elos intermediários”
(25, 397). Por que tantos conceitos para a investigação de um
mesmo fenômeno?
Ora, o que mais atrai no estudo da obra do Círculo é, real-
mente, a busca desses elos intermediários, nos quais muitas ve-
zes nos perdemos, para mais tarde nos encontrarmos e nos per-
dermos novamente69 . A aventura dessa busca pelas fronteiras,
nos umbrais, se revela, de qualquer maneira, extremamente en-
riquecedora, deixando rastros, por um lado, das concepções do
pensamento abstrato e do pensamento idealista desenvolvidas
pela lingüística, pela filologia, pela estilística, psicologia, etc., e,
por outro lado, nos educando para uma investigação do enunci-
ado concreto, instigando nossos sentidos para a observação do
mínimo ato concreto de linguagem – o enunciado concreto único
e não-reiterável – como uma experiência aberta de nossa vida,
uma experiência que só terminaria se tivéssemos conhecimento
do fim do mundo, ou pelo menos, do fim de nosso próprio mundo
individual.
Um outro problema que dificultava a nossa compreensão
do todo da obra do Círculo era, como observamos, o problema da
tradução. Nesse sentido, tomamos uma observação de Irene Ma-
chado, “como no Brasil tradutores de Bakhtin nem sempre são
os estudiosos de sua obra, lemos Bakhtin através das mais vari-
adas versões que foram chegando às nossas mãos pelas mais
variadas vias. Praticamos a mais autêntica leitura hipertextual:

69
Como diz o prof. Boris Schnaiderman em seus estudos literários
referindo-se à obra de Bakhtin sobre Dostoiévski: “Em minha tese,
pus em discussão diversas afirmações suas [de Bakhtin] no livro sobre
Dostoievski, mas é preciso discutir mais ainda, pôr tudo em dúvida,
balançar de uma vez o coreto. De outro modo, a literatura se estanca
nas certezas acadêmicas e didáticas. Mobilidade, contradição dialética,
construção/desconstrução, eis os elementos com que temos de
trabalhar. O resto é acomodação e rotina” (33, 88).

139
Geraldo Tadeu Souza

quando lemos um texto de Bakhtin em português navegamos por


uma versão que é uma camada de signos organizada a partir de
outros discursos-línguas que se constituíram a partir dos ma-
nuscritos e dos arquivos de Bakhtin” (48, 267).
Ao nos debruçarmos sobre essas dificuldades de tradução,
iniciamos um processo de discussão em torno dos conceitos enun-
ciado/enunciação e gêneros do discurso, os quais julgamos fun-
damentais no todo da engrenagem conceitual do Círculo. Para
nós, a compreensão ativa do todo da obra do Círculo implica em
tomar os conceitos enunciado e enunciação – traduções do único
conceito russo vyskazyvanie – como sinônimos, visto que é desse
ponto de vista que os três teóricos russos articulam não só a sua
Teoria do Enunciado Concreto no interior da Metalingüística, como
também dialogam com outros gêneros de discurso cientificos como
a lingüística – a fala-enunciado, a estilística – o ato de fala-enun-
ciado ou a expressão-enunciado, e também as ciências humanas
em geral – o texto-enunciado.
É o enunciado – ou enunciação – concreto, real, completo,
vivo que é o elo da comunicação verbal, que responde aos enun-
ciados anteriores e aponta para os enunciados concretos futu-
ros. É, também, o enunciado concreto, particular, único na exis-
tência e não-reiterável, que se constrói, a partir de um tema espe-
cífico, no interior de um gênero do discurso determinado e pela
alternância dos sujeitos falantes que compõem a situação na qual
ele é engendrado. Esse enunciado é a manifestação do intuito
discursivo desses sujeitos nessa construção comunicativa, atra-
vés de um estilo e uma entonação particulares, seja do ponto de
vista do micro-diálogo ao grande-dialógo, da pequena temporali-
dade à grande temporalidade, movimentando o todo do enun-
ciado concreto com seus princípios ético, sócio-ideológico, dialógico
e temporal (histórico-fenomenológico).
Finalmente, gostaríamos de ressaltar que a mais impor-
tante lição de nossa imersão na obra do Círculo é não considerar
um de seus membros – Mikhail Bakhtin – como um Adão mítico,
o primeiro a falar das idéias aqui expostas, mas sim, como um

140
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

ser inserido profundamente nos diálogos de seu tempo e na his-


tória dos vários discursos científicos com que dialogava, os quais
propiciaram a criação desse ponto de vista novo – metalingüísti-
co – com base nos enunciados anteriores, no interior da evolução
da ciência, e nas próprias relações dialógicas entre as suas obras
e a de seus discípulos: Valentin Volochinov e Pavel Medvedev. É
assim que podemos compreender algumas linhas de uma carta
de 1961, de Bakhtin a V. Kozhinov, na qual ele faz a seguinte
observação sobre sua relação com os outros elementos do Círcu-
lo aqui citados, preservando os princípios ético, sócio-ideológico,
dialógico e histórico-fenomenológico que orientam sua visão de
mundo:

“those books [i.é, os livros assinados por Volochinov e Medvedev]


as well as my study of Dostoevski are based on a common
conception of language and of the verbal work… I should note that
this common conception and our contact during our work do not
diminish the independence and originality of each of the three
books… To this day I hold to the conception of language and speech
that was first set forth, incompletely and not always intelligibly, in
those books, although the concept has of course evolved in the
past thirty years” (47, 119).

Neste sentido, a concepção comum de linguagem e da obra


verbal – do enunciado concreto – formaram a base sobre a qual
tentamos discutir as obras-enunciados do Círculo neste trabalho.
É na evolução do todo da obra do Círculo que pudemos compre-
ender o seu conceito de linguagem. Como observa Beth Brait, “o
conceito de linguagem que emana dos trabalhos desse pensador
russo está comprometido não com uma tendência lingüística ou
uma teoria literária, mas com uma visão de mundo que, justa-
mente na busca das formas de construção e instauração do sen-
tido, resvala pela abordagem lingüística/discursiva, pela teoria
da literatura, pela filosofia, pela teologia, por uma semiótica da
cultura, por um conjunto de dimensões entretecidas e ainda não
inteiramente decifradas” (46, 71). Acreditamos que essa obser-

141
Geraldo Tadeu Souza

vação estabelece uma relação dialógica de concordância para com


os outros componentes do Círculo – Volochinov e Medvedev –, e
que, também, ela retoma o caráter de inacabamento com o qual
todas as ciências humanas em geral e as obras do Círculo em
particular devem ser tecidas, na tentativa de escapar da coisifica-
ção dos objetos humanos, ou de uma abordagem psíquica do
criador ou do receptor desses objetos.
Assim sendo, esta dissertação ganha como epílogo uma
citação de Problemas da Poética de Dostoiésvki que orienta, para
nós, todo o desenvolvimento das concepções teóricas do Círculo
Bakhtin/Volochinov/Medvedev, bem como, o movimento que
ousamos dar ao próprio desenvolvimento deste trabalho, cujo
acabamento relativo é mais um elo na cadeia das idéias do Círcu-
lo, e condiciona uma atitude responsiva para com os outros par-
ceiros da comunicação dialógica engedrada por esse tema:

“Somente quando contrai relações dialógicas essenciais com as


idéias dos outros é que a idéia começa a ter vida, isto é, a for-
mar-se, desenvolver-se, a encontrar e renovar sua expressão
verbal, a gerar novas idéias. O pensamento humano só se torna
pensamento autêntico, isto é, idéia, sob as condições de um
contato vivo com o pensamento dos outros, materializado na
voz dos outros, ou seja, na consciência dos outros expressa na
palavra. É no ponto desse contato entre vozes-consciências que
nasce e vive a idéia […] a idéia é interindividual e intersubjetiva,
a esfera de sua existência não é a consciência individual mas a
comunicação dialogada entre as consciências. A idéia é um acon-
tecimento vivo, que irrompe no ponto de contato dialogado entre
duas ou várias consciências” (13, 73).

142
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

Bibliografia do Círculo Bakhtin/


Volochinov/Medvedev 70

(1) Bakhtin, M. (1919) “Art and Answerability” In: Art and


Answerability. Early Philosophical Essays by M. M. Bakhtin. trad.
Vadim Liapunov. Austin, University of Texas Press,1990. p. 1-3
(2) Bakhtin, M. (1919-1921) Toward a Philosophy of the Act. trad.
Vadim Liapunov. Austin, University of Texas Press
, 1993.
(3) Bakhtin, M. (1922-1924) “O autor e o herói” In:0 Bakhtin, M.
Estética da Criação Verbal. trad. do francês de Maria Ermantina
G. Gomes. São Paulo, Martins Fontes, 1992. p. 23-220.
(4) Bakhtin, M. (1924) “O Problema do Conteúdo, do Material e da
Forma na Criação Literária” In: Bakhtin, M. Questões de Litera-
tura e de Estética. A teoria do romance. trad. do russo de Aurora
Fornoni Bernardini e outros. São Paulo, UNESP, 1993, 3a. edi-
ção. p. 13-70.
(5) Voloshinov, V. N. (1926) “Le discours dans la vie et le discours
dans la poésie” In: Todorov, Tzvetan Mikhaïl Bakhtine. Le principe
dialogique. suivi de écrits du cercle de Bakhtine. Paris, Éditions
du Seuil, 1981. p. 181-215.
(6) Volosinov, V. N. (1927) Freudianism. A Critical Sketch. trad. I. R.
Titunik. Indiana, Indiana University Press, 1987.
(7) Bakhtin, M. / Medvedev (1928) The Formal Method in Literary
Scholarship. A Critical Introduction to Sociological Poetics. trad.
Albert J. Wehrle. Baltimore e London, The Johns Hopkins Press,
1991.
(8) Volosinov, V. N. (1929) Marxism and the philosophy of language

70
Para uma bibliografia completa das obras do Círculo ver Todorov, T.
Mikhaïl Bakhtine. Le principe dialogique (31, 173-176) e Faraco, C. A.;
Tezza, C. e Castro, G. de (orgs) Diálogos com Bakhtin. (49, 15-20).

143
Geraldo Tadeu Souza

(edição do original russo). Paris, Mouton, 1972.


(9) Bakhtine, M. (V.N. Volochinov) (1929) Le marxisme et la
philosophie du langage. trad. Marina Yaguello. Paris, Les Éditions
de Minuit, 1978.
(10) Bakhtin, M. (Volochinov) (1929) Marxismo e Filosofia da Lingua-
gem. trad. do francês de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira.
São Paulo, Hucitec, 1986, 3a. edição.
(11) Volosinov, V. N. (1929) Marxism and the Philosophy of Language.
trad. Ladislav Matejka e I. R. Titunik. Cambridge, Massachusetts;
London, England, Harvard University Press, 1986.
(12) Bakhtin, M. (1929) “Del libro Problemas de la obra de Dostoievski”
In: ” In: Estética de la creación verbal. Cidade do México, Siglo
Veintiuno Editores, 1982. p. 191-199.
(13) Bakhtin, M. (1929;1961-1962) Problemas da Poética de
Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro, Ed. Forense-
Universitária, 1981.
(14) Bakhtine, M. (1929; 1961-1962) La poétique de Dostoïevski. Trad.
Isabelle Kolitcheff. Paris, Éditions du Seuil, 1970.
(15) Voloshinov, V. N. (1930) “Les frontières entre poétique et
linguistique” In: Todorov, Tzvetan Mikhaïl Bakhtine. Le principe
dialogique. suivi de écrits du cercle de Bakhtine. Paris, Éditions
du Seuil, 1981. p. 243-285
(16) Voloshinov, V.N. (1930) “Stilystique du discours artistique. 2. La
structure de l’énoncé” In: Todorov, Tzvetan Mikhaïl Bakhtine. Le
principe dialogique. suivi de écrits du cercle de Bakhtine. Paris,
Éditions du Seuil, 1981. p. 287-316.
(17) Bakhtin, M. (1934-1935) “O discurso no romance” In: Bakhtin,
M. Questões de Literatura e de Estética. A teoria do romance. trad.
do russo de Aurora Fornoni Bernardini e outros. São Paulo,
UNESP, 1993, 3a. edição. p. 71-210.
(18) Bakhtine, M. Esthétique et Théorie du Roman. trad. Daria Olivier.
Paris, Gallimard, 1978.
(19) Bakhtin, M. (1937-1938) “Formas de Tempo e de Cronotopo no
Romance (Ensaios de poética histórica) In: Questões de Litera-
tura e de Estética. A teoria do romance. trad. do russo de Aurora
Fornoni Bernardini e outros. São Paulo, UNESP, 1993, 3a. edi-

144
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

ção. p. 211-362.
(20) Bakhtin, M. (1940; 1965) A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. trad. do francês
de Yara Frateschi Vieira. São Paulo, HUCITEC; Brasília, Editora
da Universidade de Brasília, 1993.
(21) Bakhtin, M. (1952-1953) “Os gêneros do discurso” In: Bakhtin,
M. Estética da Criação Verbal. trad. do francês de Maria
Ermantina G. Gomes. São Paulo, Martins Fontes, 1992. p. 277-
326.
(22) Bakhtine, M. (1952-1953) “Les genres du discours” In: Bakhti-
ne, M. Esthétique de la Creátion Verbale. Trad. A. Aucouturier.
Paris, 1979.
(23) Bakhtin, M. (1959-1961) “O problema do texto” In: Bakhtin, M.
Estética da Criação Verbal. trad. do francês de Maria Ermantina
G. Gomes. São Paulo, Martins Fontes, 1992. p. 327-358.
(24) Bakhtin, M. (1961) “Para una reelaboración del livro sobre
Dostoievski” In: Estética de la creación verbal. Cidade do México,
Siglo Veintiuno Editores, 1982. p. 324-345.
(25) Bakhtin, M. (1970-1971) “Apontamentos 1970-1971” In: Bakhtin,
M. Estética da Criação Verbal. trad. do francês de Maria
Ermantina G. Gomes. São Paulo, Martins Fontes, 1992. p. 369-
397.
(26) Bakhtin, M. (1974) “Observações sobre a epistemologia das ciên-
cias humanas” In: Bakhtin, M. Estética da Criação Verbal. trad.
do francês de Maria Ermantina G. Gomes. São Paulo, Martins
Fontes, 1992. p. 399-414.

145
Bibliografia Geral

(27) Kothe, Flávio R. (1977) “A não-circularidade do Círculo de Bakh-


tine”. revista Tempo Brasileiro 51, Rio de Janeiro, Edições Tempo
Brasileiro Ltda.
(28) Jakobson, Roman (1978) “Prefácio” In: Bakhtin, M. (Volochinov)
(1929) Marxismo e Filosofia da Linguagem. trad. do francês de
Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo, Hucitec, 1986,
3a. edição. p. 9-10.
(29) Yaguello, M. (1978) “Introdução” In: Bakhtin, M. (Volochinov)
(1929) Marxismo e Filosofia da Linguagem. trad. do francês de
Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo, Hucitec, 1986,
3a. edição. p. 11-19.
(30) Todorov, Tzvetan. (1981) “Théorie de l’énoncé” In: Todorov, Tzvetan
Mikhaïl Bakhtine. Le principe dialogique. suivi de écrits du cercle
de Bakhtine. Paris, Éditions du Seuil, 1981. p. 67-93.
(31) Todorov, Tzvetan (1981) Mikhaïl Bakhtine. Le principe dialogique.
suivi de écrits du cercle de Bakhtine. Paris, Éditions du Seuil.
(32) Schnaiderman, Boris (1982) Dostoiévski. Prosa. Poesia. “O se-
nhor Prokhartchin”. São Paulo, Perspectiva.
(33) Schnaiderman, Boris (1983) Turbilhão e Semente. Ensaios sobre
Dostoiévski e Bakhtin. São Paulo, Duas Cidades.
(34) Clark, Katerina e Holquist, Michael (1984) Mikhail Bakhtin.
Cambridge, Massachusetts; London, England, Harvard University
Press.
(35) Faraco, Carlos Alberto e outros (1988) Uma introdução a Bakhtin.
Curitiba, Hatier.
(36) Benveniste, E. (1989). Problemas de Lingüística Geral II. Campi-
nas, Pontes.
(37) Holquist, Michael (1990) Dialogism. Bakhtin and his world. Lon-
Geraldo Tadeu Souza

dres, Nova York, Rotledge.


(38) Morson, Gary Saul e Emerson, Caryl (1990) Mikhail Bakhtin:
creation of a prosaics. Stanford, Stanford University Press.
(39) Todorov, T. (1992) “Prefácio” In: Bakhtin, M. Estética da Criação
Verbal. trad. do francês de Maria Ermantina G. Gomes. São
Paulo, Martins Fontes, 1992. p. 1-21.
(40) Barros, Diana Luz Pessoa de. e Fiorin, José Luiz. (orgs.) (1994)
Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. São Paulo, EDUSP.
(41) Brait, Beth “As vozes bakhtinianas e o diálogo inconcluso” In:
Barros, Diana L. P. e Fiorin, José Luiz (orgs.) (1994) Dialogismo,
Polifonia, Intertextualidade. São Paulo, EDUSP.
(42) Dosse, François (1994) História do estruturalismo, v.2: o canto do
cisne de 1967 aos nossos dias. trad. Álvaro Cabral. São Paulo,
Ensaio; Campinas, Editora da UNICAMP.
(43) Machado, Irene A. (1995) O romance e a voz: a prosaica dialógica
de M. Bakhtin. Rio de Janeiro, Imago; São Paulo, FAPESP.
(44) Saussure, Ferdinand (1995) Curso de Lingüística Geral. trad. An-
tônio Chelini e outros. São Paulo, Cultrix.
(45) Emerson, Caryl (1995) “Bakhtin at 100: Looking Back at te Very
Early Years” In: The Russian Review, vol. 54, Janeiro/1995, The
Ohio State University Press. p. 107-114.
(46) Brait, Beth. “A natureza dialógica da linguagem: formas e graus
de representação dessa dimensão constitutiva” In: Faraco, C. A.;
Tezza, C.; e Castro, G. de (orgs.) (1996) Diálogos com Bakhtin.
Curitiba, Ed. da UFPR. p. 69-92.
(47) Faraco, Carlos Alberto. “O dialogismo como chave de uma antro-
pologia filosófica” In: Faraco, C. A.; Tezza, C.; e Castro, G. de
(orgs.) (1996) Diálogos com Bakhtin. Curitiba, Ed. da UFPR. p.
113-126.
(48) Machado, Irene. “Os gêneros e a ciência dialógica do texto” In:
Faraco, C. A.; Tezza, C.; e Castro, G. de (orgs.) (1996) Diálogos
com Bakhtin. Curitiba, Ed. da UFPR. p. 225-272.
(49) Faraco, C. A.; Tezza, C.; e Castro, G. de (orgs.) (1996) Diálogos
com Bakhtin. Curitiba, Ed. da UFPR.

148
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev

Ficha técnica

Divulgação LIVRARIA HUMANITAS-DISCURSO


Ilustrações da capa Composição de ilustrações do livro
Museum Jean Tinguely Basel
Mancha 10,5 x 18,5 cm
Formato 14 x 21 cm
Montagem Charles de Oliveira e Marcelo Domingues
Tipologia Bernard Mod e Bookman Old Styler
Papel miolo: off-set 75 g/m2
capa: cartão branco 180 g/m2
Impressão da capa Vermelho, preto e cinza
Impressão e acabamento Seção Gráfica – FFLCH/USP
Número de páginas 152
Tiragem 1.000 exemplares

149

También podría gustarte