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Fernando Pessoa
(publicado na Revista Nova Águia, nº7 – 1º semestre 2011)
Gilberto Lascariz
1
Estas breves considerações fazem parte de um texto maior em laboração sobre o
“Caminho da Serpente” de Fernando Pessoa. Trata-se de um conjunto de reflexões
esotéricas formuladas a partir de “dentro”, isto é, de quem segue uma via gnóstico-
luciferina designada por Via Sabática ou Arte Sem Nome. O Caminho da Serpente é, na
minha opinião, a obra esotérica mais enigmática de Fernando Pessoa e de Portugal. É
também a menos compreendida, em virtude de um enraizado preconceito humanista e
cristão entre aqueles que, mais preocupados com a racionalização do esoterismo do que
com a Realização que ele augura, recusam encarar a natureza gnóstico-luciferina da Via
apresentada nestes fragmentos oraculares de Fernando Pessoa. Desse preconceito
emergiram muitas e insensatas opiniões, classificando estes fragmentos como
testemunhos de uma prática tântrica, mesmo não havendo neles nenhuma referência
plausível ao Tantrismo. Estes breves pensamentos de heresiarca estão, por isso,
condenados à partida a serem obscuros e controversos.
1
Suarès, Carlos. The Cipher Of Genesis: Using The Qabalistic Code To Interpret The First Book of the
Bible and the Teachings of Jesus. Boston: Shambhala, 1970.
2
Anes, José Manuel. Fernando Pessoa e os Mundos Esotéricos. Lisboa: Ésquilo Edições, 2004.
3
Correia, A. A. Mendes. Le Serpent, totem dans la Lusitanie proto-historique, In: “Anais da Faculdade de
Sciências do Porto”. Porto: F. S. P., 1928, v. 15.
2
É atravessando como a Serpente o vórtice ilusório do devir e as suas contingências
materiais e humanas que se pode abrir os Olhos da Sabedoria Plurifacial, verdadeira
heteronímia sapiencial de que Melek Taus, o Anjo Pavão Sheitan, é a sua maior epifania
mítica. Mas este manuscrito é segundo o autor um “ livro que não é”, não só pelo facto
de a língua não conseguir reter a inconstante obliquidade da Gnose-Serpente na
coerência formal do texto mas, sobretudo, porque ele exige ser “lido” na Quinta-
Essência do Azoth, na Alma, o Livro da Natureza que não é. Esse “livro” foi, segundo o
psicanalista Joseph Lang cinzelado nas “pedras da nossa alma”4, isto é, do Inconsciente.
Ele é, por isso, um “manuscrito por encontrar” (Esp. 54A-3) para cada um de nós! A
Serpente é a personificação mítica desse Livro com suas folhosas peles, a própria
Gnose, o Fogo Primordial e Sapiencial. Mais do que Livro ela é, por isso, Fogo e Luz.
Esta Gnose Draconiana, como lhe chamava Andrew Chumbley5, não é para os ouvidos
dos místicos e filósofos que vivem na dualidade do mundo e da razão, mas para o
Sonhador e o Louco Divino. O Louco Sonhador ao estilo de Gérard de Nerval atravessa
como a Serpente todas as coisas sem nelas se reter nem pertencer. Na Tradição Secreta
Ocidental as hipóstases desse Louco Divino são Caim e Al Kidhr, errantes reflexos um
do outro entre-os-mundos.
O Louco Divino deixou uma grande tradição entre os gnósticos medievais como os
Turlupins, os Luciferianos e os Irmãos do Livre Espírito, mas também em São Basílio,
São Simão e mesmo Bernardo de Clareval, na tradição cristã. O desapego antinómico de
sua Via tem paralelo com a ascese hindu dos errantes baulos, que seguem a Via
Avagudha. No Ocidente ele teve o seu eidolon na Serpente e em suas hipóstases Caim e
Al Kidhr, modelos exemplares de vias livres, iniciáticas, errantes e antinómicas,
existindo “fora das ordens e sistemas”e “fora das leis (rectilíneas) dos mundos” (Esp.
54A-12). A sua natureza luciferina e alquímico-sexual, designadas muitas vezes pela
expressão “Arte Sem Nome”, tem sido denegrida pelas religiões monoteístas de massas
como tendo um “carácter maldito, o aspecto repugnante da Cobra” tendo sido proscrita
por trazer “a sua Opposição ao Universo” (Esp. 54A-12). A oposição ao Universo
supõe a oposição ao Criador, a Iavé, assumindo a dimensão daimónica de Caim
enquanto criador livre e auto-suficiente. Esta atitude antinómica atingiu o seu máximo
esplendor filosófico nos “Provérbios do Inferno” de William Blake, na teoria das “duas
luzes” de Natham de Gaza, discípulo favorito do “Messias do Pecado” Sabbatai Sevi,
assim como no “Anti-Cristo” de Fredrich Nietsche. O próprio Pessoa glosa
indirectamente o seu “Gott ist tod" no que ele chama a “verdade essencial” trazida pela
Serpente: “Deus é o cadáver de si mesmo”6 (Esp. 54A-11).
4
Noll, Richard. The Cult of Jung: The Origins of a Charismatic Movement. London: Fontana, 1996.
5
Chumbley, Andrew. Azoetia: A Grimoire of the Sabbatic Craft. Chelmsford: Xoanon Publishers, 1992;
Chumbley, Andrew. The Draconian Grimoire: The Dragon-Book of Essex. Edição Privada.
6
Lembrando também uma outra frase célebre de Nietzsche "Deus está morto mas o seu cadáver
permanece insepulto". Pessoa pretendeu sepultá-lo enquanto hipóstase do Poeta-Serpente.
3
simbólica numerológica semelhante ao “Rito dos Catorze Passos de Caim-Serpente” das
covinas sabáticas de hoje, num peregrinatório movimento sinódico ao longo das catorze
estrelas da constelação do Dragão. Catorze é também o número tarótico associado ao
Anjo Guardião. Sem dúvida esta Serpente é o Anjo-Daimon do Adepto e Poeta, isto é,
Samael, o dador original da Gnose ao Filho Primeiro Nascido da Linhagem e que foi
evocado no mais poderoso guião teúrgico alguma vez escrito e publicado para
convocação e conversação com o Santo Anjo Guardião: o “Liber Samekh, Theurgia
Goetia Summa (Congressus Cum Daemone)”7 de Aleister de Crowley. O décimo quinto
fragmento é um esquema em forma de vesica piscis. Esse esquema não deixa de ter
relações numerológicas com o Baphomet, o Arcano 15 do Tarot, que Oswald Wirth
representou com características ofídias. Talvez seja por isso que o Livro da Serpente
refira sibilinamente que a Serpente é “no baixo mundo a lua crescente e no mundo
superior a minguante” (Esp. 54A-9), os tempos cósmicos do ofídico solve e coagula
representados nos braços do Baphomet de O. Wirth.
O que caracteriza esta Gnose Draconiana, que Aleister Crowley, Kenneth Grant e
Andrew Chumbley hão-de deixar, muito tempo depois da escrita deste texto, um
património consideravelmente original de reificação iniciática e de praxis antinómica, é
ele sintetizar o Caminho Não-Dual, a Via do Louco Sábio, onde todas as poções e
venenos são bebidos, consumidos e transcendidos na supraconsciência da Eterna
Vacuidade, da Perene Nudez. Pessoa dirá por isso: “A Serpente é o entendimento de
todas as coisas e a comprehensão intellectual da vacuidade d'ellas...” (Esp- 54A-2). Este
“entendimento” do tudo e “compreensão” do nada coloca cada leitor na posição de Isha
escutando a Serpente no Éden quando esta a incita a comer o fruto proibido, abrir os
olhos e a compreender o bem e o mal. A Serpente é, portanto, o estado supraracional da
Gnose reificado no Adepto. Sem reificação a Gnose é mero deleite poético e extático e a
Grande Obra é malograda na verborreia da letra e da forma dos esoteriologistas de hoje.
7
Samekh refere-se ao Caminho 14 da Árvore da Vida e está associado à letra hebraica samek, que é a
chave teúrgica da passagem do ego (Lua-Yesod) para a supraconsciência representada pelo Anjo Guardião
(Sol-Tiphareth). Samekh é também uma referência velada a Samael.
4
Pessoa há-de dizer que “se nega, porque como passa sem rasto recto, pôde deixar o que
foi, visto que verdadeiramente o não foi” (Esp. 54A-3).
O título deste “livro” não deixa de ser, no entanto, uma referência implícita ao Caminho
da Serpente dos cabalistas. Pulsando em sucessivas contracções e expansões de si
mesmo no Caminho de Retorno ao longo das esferas planetares da Árvore da Vida ela
repete a própria morte e despertar do Adepto, libertando de pele em pele a substância
cósmica do seu ser para ser reabsorvido no Não-Ser. O seu objectivo final é alcançar o
estado de Presença e Despertar, Puro Sabat da Extinção de todos os Desejos. Ao
ascender em perpétuo auto-sacrifício e deleite ao longo dos 22 Caminhos que unem
Sephirotes e Qlifotes ela entrega-se à extinção de si mesmo no amplexo final do Ain
Soph, a Luz Ilimitada. Pessoa, contudo, segue o modelo cabalístico mais em essência do
que em forma. Ele cria uma ruptura morfológica e distorções semânticas que
escandalizariam um cabalista8 tradicional. Revogando o modelo cabalístico herdado de
Kirchner por um mapa em forma de Vesica Piscis geometrizada, criada a partir dos seus
dois triângulos equiláteros, um superior e outro inferior, Pessoa cria um modelo de base
undecimal típico da Via Telémica e Apofática. O seu elemento de ruptura maior é
parecer defender que a barreira teológica entre Sefirotes e Qlifotes é uma convenção
criada por aqueles que vêm o cosmos pelos olhos da ilusão e da dualidade e não da
Unidade. Na perspectiva do Adepto essa antítese formal é uma ilusão consensual criada
pelos cabalistas ao tentarem resolver o problema do mal separando-o de Deus. Ela é,
portanto, uma concepção da ordem material e mágica das coisas, como diria Pessoa.
A Serpente abraça e rejeita ritmicamente, no seu movimento pulsante para dentro e para
fora ao longo do cosmos (Vesica Piscis), seja na sua ascensão vertical como na sua
expansão horizontal, todas as polaridades e oposições. Ela vive-as e anula-as em si
mesmo, na condição típica de um gnóstico para quem o pecado e a virtude, a moral e a
religião, são miragens da nossa consciência egotrópica, de quem ainda confunde as
ficções e reflexos do seu pensar com a obscura claridade do Não Ser. A Serpente
atravessa todas as dualidades e oposições ao modelo do Caminho Errático de Caim e da
Via Não-Dual, enrolando-se por detrás e pela frente, abraçando e abandonando a Árvore
da Vida e da Morte, pertencendo-se apenas a Si-Mesma. Nesse caminhar em que
simultaneamente voa e rasteja, em que o corpo roça intimamente a energia do cosmos,
ela esboça o modelo do Adepto Antinómico. Uma das traduções do hebreu Caim é
“aquele que possui” (qana), isto é, se possui a si mesmo. Nesse Caminho, em que se
possui a si-mesmo e se está sozinho e nu, ele bebe dos elixires e dos venenos do mundo,
liquidando todos os referentes herdados do Mundo e da Tradição.
8
A escolha da vesica piscis é apropriada pois ela representa o próprio cosmos. Através do seu esquema
em formato de Vesica Piscis ou, melhor ainda, em Diamante, Fernando Pessoa inspirou-se na Árvore da
Vida. Seja enquanto Árvore Perfeita ou Árvore da Queda por uma questão de Equilíbrio só poderia haver
uma numerologia decimal tal como a Tetraktys Pitagórica exemplifica. A criação de um esquema baseado
no número 11 introduz uma unidade simultaneamente inercial e dinâmica de duplo rosto (1/1), verdadeiro
Janus Luciferino. Este número está associado a Daath, onde se erguem as Sete Cabeças do Dragão do
Abismo, assim como às divindades telémicas Nuit, Hadit e Ra-Hoor-Khuit. Sem dúvida esta ideia tem uma
influência telémica pela sua exaltação do número 11, mas também pelo facto de ser o número da Magnun
Opus, resultante da união do Pentagrama e do Hexagrama. Enquanto número sapiencial da Força Mágica
(AVD) ele enquadra-se bem no simbolismo oblíquo da Serpente.
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Caminho, que simultaneamente abraça a morte e a volúpia, anulando todas as
dualidades das Vias consagradas, sejam elas secas ou húmidas e sinistras ou dextras,
está sob o signo de Shaitan, o Opositor, Guardião e Mestre Secreto9 da Tradição. Pessoa
diz, por isso com irreverência: “É preciso, quando se é Serpente, passar em Satan para
chegar a Deus”. Para quem é Serpente, isto é, um Pneumático insuflado e transfigurado
pelo Fogo-Pneuma, Deus é sempre uma passagem, um cadáver calcinado que se tem de
calcar sem medo aos nossos pés e deixá-lo tornar-se poeira. Deus é a última pele, a
esperança de sobrevivência final da ego-personalidade com a sua promessa de redenção,
pois como diz Pessoa ela “passa para além de Deus” (Esp. 54A-3). Deus e Satan não
são, assim, em substância a Serpente mas suas personas cumprindo a função radical do
Despertar Antinómico pelo ordálio da Oposição. A Serpente é o Homem-Deus.
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“Satã é o porteiro do Templo do Rei; Ele permanece no pórtico de Salomão e guarda as Chaves do
Santuário. Nenhum homem pode lá entrar, salvo o consagrado, tendo o arcano de Hermes”. Kingsford,
Anne. Clothed with the Sun: Being the Illuminations of Anna (Bonus) Kingsford”. London: John M.
Watkins, 1889.