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ENTRE A FÉ E O PRAZER:

Códigos morais e o cristão LGBTI+

Natanael de Freitas Silva*

RESUMO: O objetivo deste texto é analisar como algumas igrejas inclusivas reelaboram códigos
morais, sociais e sexuais para os seus fiéis. E para isso, serão analisados alguns enunciados dos discur-
sos e pronunciamentos dos líderes das Igrejas Cristã Contemporânea e Cidade Refúgio como as no-
ções de “namoro santo” e “combate a promiscuidade”. A partir de um aporte foucaultiano, destaco
como por meio dos discursos essas igrejas delimitam e reconfiguram as relações homoafetivas dentro
de uma histórica conjugalidade monogâmica.

PALAVRAS-CHAVE: Teologia inclusiva; discurso; homoafetividade; LGBTI+.

BETWEEN FAITH AND PLEASURE:


MORAL CODES AND LGBTI+ CHRISTIAN
ABSTRACT: The purpose of this text is to analyze how some inclusive churches re-elaborate moral,
social and sexual codes for their believers. And for this, we will analyze some statements of the
speeches and pronouncements of the leaders of the Contemporary Christian Churches and City
Refuge as the notions of “holy dating” and “fighting promiscuity”. From a foucaultian contribution,
I emphasize how through the discourses these churches delimit and reconfigure the homosexuality
relations within a historical monogamous conjugality.

KEYWORDS: Inclusive theology; speech; homosexuality; LBGTI+.

***
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*
Doutorando em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ/PPHR/CAPES). Licenciado e
Mestre em História pela mesma instituição. É Membro do LabQueer – Laboratório de estudos das relações de gênero,
masculinidades e transgêneros/UFRRJ. E-mail: natanaelfreitass@gmail.com.

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A
teologia inclusiva1, no âmbito acadêmico2, não é mais uma novidade. Porém, no
Brasil3, como uma possibilidade de conjugação da orientação sexual e a identidade
de gênero com uma (in)determinada concepção de fé cristã, ainda é singular. Prin-
cipalmente quando pensamos, e problematizamos, as experiências sociais da maioria das pessoas que
integram a população LGBTI+4. Oriundas dos Estados Unidos - a partir do surgimento da Igreja
Comunidade Metropolitana (ICM), inaugurada em 08 de outubro de 1968, pelo reverendo Troy Perry,
desde os anos 1990, às novas experiências religiosas que cruzam fé e sexualidade têm encontrado, em
terras tupiniquins, um solo fértil. Segundo o teólogo Alexandre Feitosa, um dos objetivos dessa teo-
logia é desconstruir uma “teologia anti-homossexualidade e possibilitar o acesso de gays e lésbicas à
vida da Igreja, mas também contribuir para a descriminalização de seus relacionamentos”5.
Tendo como ponto de partida as (in)determinações do discurso religioso na pós-modernidade,
neste texto, destaco alguns elementos normativos agenciados nos discursos dos líderes das igrejas
inclusivas Cristã Contemporânea (ICC), os pastores Marcos Gladstone e Fábio Inácio e as pastoras
Lanna Holder e Rosania Rocha, fundadoras da Comunidade Cidade de Refúgio (CR), principalmente
no que tange os comportamentos supostamente dissidentes no campo da sexualidade, do desejo e do
afeto, no intuito de (re)inscrever à homoafetividade no âmbito da conjugalidade monogâmica.
Autores como André Sidnei Musskopf, Angela Caldeira, Carlos Coelho Júnior, Cristina Fur-
tado, Fátima Weiss de Jesus, Maressa de Sousa Santos, Marcelo Natividade, Marília César, Zedequias
Alves etc. têm se dedicado a analisar o surgimento de novas denominações cristãs que são protagoni-
zadas por líderes e fiéis predominantemente homoafetivos e transexuais6. Natividade e Weiss de Jesus
reconhecem que, se por um lado, as religiões de matriz africana como a Umbanda e o Candomblé

1 SILVA, Natanael de Freitas. Entre o céu e o inferno: a teologia inclusiva e o gay cristão. Periodicus, p. 276-281, 2017.
2 Ver: ECCO, Clóvis; MARINHO, Thais Alves; DE ARAUJO, Claudete Ribeiro. RELIGIÃO E GÊNERO: uma inves-
tigação do estado da arte dos Estudos de Gênero nos Programas de Pós-Graduação em Ciências da Religião no Brasil.
MANDRÁGORA, v. 24, p. 5-37, 2018;
3 O CONIC, Conselho Nacional de Igrejas Cristãs no Brasil, reconhece o crescimento das igrejas inclusivas no país. Dis-

ponível em: < http://www.conic.org.br/portal/noticias/2577-igrejas-inclusivas-uma-realidade-cada-vez-mais-presente>


Acesso:19/04/18.
4 Segundo o Manual de Comunicação LGBTI+, publicado em 2018, recomenda-se o uso do termo LGBTI+ para referenciar

a população lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual e intersexual. O sinal + denota outras orientações sexuais, identida-
des e expressões de gênero.
5 FEITOSA, Alexandre. Teologia inclusiva: fundamentos, métodos, história e conquistas. Brasília, DF – Oásis Editora, 2016, p. 79.
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6 Ver: Alexya Salvador, mulher trans e pastora da Igreja Comunidade Metropolitana (ICM). Disponível em: <https://mi-

nashoje.com/2017/07/jesus-cristo-foi-o-primeiro-transsexual-da-historia-diz-1a-pastora-transgenera-da-america-la-
tina/> Acesso: 04/07/18.

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historicamente tenham sido vistas como mais abertas e tolerantes aos gays, lésbicas e travestis, desde
os anos 2000, as igrejas cristãs inclusivas têm disputado esses fiéis. Pois, em muitos casos, aqueles e
aquelas que romperam com o(s) cristianismo(s) por sua orientação afetivo-sexual e/ou identidade de
gênero, optando por outras práticas de culto, hoje, podem experienciar uma vida cristã sem negar,
camuflar ou sublimar sua homoafetividade e/ou transexualidade.
Para compreendermos as especificidades dessa discussão é preciso circunscrever e diferenciar
identidade de gênero e orientação sexual. De acordo com Jaqueline Gomes de Jesus, identidade de
gênero refere-se ao gênero com o qual a pessoa se identifica, homem ou mulher. No caso de pessoas
que não se identificam com o gênero atribuído quando do seu nascimento, denomina-se transgênero, e
o seu oposto, cisgênero. Não mantendo necessariamente uma relação de correspondência com a orien-
tação sexual (heterossexual, homossexual e bissexual). Desta maneira, diz a autora: “orientação sexual
é uma dimensão que se refere a todas as pessoas, não podemos fazer uma hierarquia de orientações
sexuais, considerando algumas ‘melhores’ ou ‘mais naturais’ que outras, porque todas são expressões
dignas da sexualidade humana”7.
Ao demarcar essas posições, podemos entender o que está em jogo quando se tem uma pre-
leção por uma ou outra forma de composição dos desejos e afetos. Segundo a antropóloga Fátima
Weiss de Jesus, “Igreja Inclusiva” é um termo controverso, mas, em geral, é utilizado por igrejas que
articulam “sexualidades não heterossexuais e religiosidades cristãs, majoritariamente evangélicas” 8.
Para autora, esse fenômeno é resultado das discussões protagonizadas por grupos LGBTs (denomi-
nação utilizada pela autora), que discutiam a complexa relação entre religião e homossexualidade, no
final dos anos 1990. Consequentemente, é nos anos 20009 que essas comunidades adentram ao cenário
público disputando hegemonia na interpretação dos textos bíblicos considerados contrários à homos-
sexualidade e propondo uma identidade gay/lésbica/trans e cristã.
De modo similar, o teólogo André Sidnei Musskopf afirma que as experiências de grupos e
comunidades cristãs, principalmente na América Latina, voltados e/ou protagonizados por gays, lés-
bicas e transgêneros, “representam uma tentativa de conciliar orientações sexuais e identidades de

7 JESUS, Jaqueline Gomes de. Homofobia: identificar e prevenir. Rio de Janeiro: Metanoia, 2015, p. 43.
8 WEISS DE JESUS, Fátima. A Cruz e o Arco íris: Refletindo sobre gênero e sexualidade a partir de uma "igreja inclusiva"
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no Brasil. Ciencias Sociales y Religión (Online), v. 12, p. 131-146, 2010, p. 132.


9 Segundo Alexandre Feitosa, o primeiro tempo da ICM No Brasil foi fundado em maio de 2004, no Rio de Janeiro. Em

2002, foi criada a Igreja Acalanto, em São Paulo. E ainda a Igreja Cristã Evangelho Para Todos, também em São Paulo,
em 2005.

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gênero fora do padrão heterocêntrico com a experiência de fé”10, compondo os fundamentos da cha-
mada teologia gay/inclusiva ou Queer. Nessa perspectiva, as experiências de fiéis, em sua maioria ho-
moafetivos, têm sido utilizadas como uma lente para (re)interpretar e (res)significar os textos bíblicos.
Talvez seja por isso que alguns teólogos ortodoxos11 defendam que a leitura produzida pelos teólogos
inclusivos é, possivelmente, fruto de uma interpretação viciada e tendenciosa produzida por homens
e mulheres homoafetivos que estariam tentanto alterar os textos bíblicos para legitimar sua orientação
sexual.
No entanto, nas palavras do teólogo e pastor inclusivo, Alexandre Feitosa, a (re)leitura da
Bíblia sob uma perspectiva inclusiva não é fruto de “manipulação”, porém, é o resultado de uma
intepretação histórico-crítica que “opõe-se, rigorosamente, à compreensão fundamentalista da Bíblia,
resultante de interpretações literais”12. Ou melhor, para o autor, a interpretação “fundamentalista” que
condena pessoas homoafetivas resulta não do texto bíblico em si, mas do método literalista que “acaba
por restringir o seu conteúdo, reduzindo seu real significado e, principalmente, distorcendo o sentido
original dos autógrafos”13.
Esse giro interpretativo14, por assim dizer, é expresso também nos argumentos do teólogo e
pastor inclusivo, Marcos Gladstone. Para o autor, “toda homofobia religiosa é a necessária resultante
de uma operação de distorção da Palavra de Deus, a partir fundamentalmente da tradução errônea”15

10 MUSSKOPF, André Sidnei. Via(da)gens teológicas: itinerários para uma teologia queer no Brasil. São Leopoldo: EST/PPG, São
Leopoldo, RS, 2008, p. 170.
11 Um exemplo é o do teólogo Augusto Nicodemus Lopes, da Igreja Presbiteriana do Brasil, que defende uma posição

ortodoxa ao considerar a TI um efeito do que ele chama de “liberalismo teológico”, pois adequa à leitura das escrituras
aos interesses do público homossexual. Ver: <http://tempora-mores.blogspot.com.br/2013/06/um-engano-chamado-
teologia-inclusiva-ou.html> Acesso: 18/04/18.
12 FEITOSA, Op. Cit., p. 51.
13 Idem, p. 51-2.
14 Uso essa expressão para evocar elementos do chamado giro linguístico, que desde os anos 1970, aportou no campo das

ciências humanas e sociais, em grande medida, pelas críticas protagonizadas pelas feministas contra os pressupostos mas-
culinos da produção do saber como as históricas noções de neutralidade, imparcialidade e objetividade. Colocando o
problema da narrativa e da linguagem no centro das análises dos (as) historiadores (as), filósofos (as), sociólogos (as),
antropólogos (as) etc. Ver: HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio
da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n.5, p. 07-41, 1995; RICHARD, Nelly. Intervenções Críticas. Arte, Cultura, Gênero e
política. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002; RAGO, Margareth. Epistemologia feminista, gênero e história. In:
GROSSI, Miriam Pillar. PEDRO, Joana M. Masculino, feminino, plural, gênero na interdisciplinaridade. SC- Editora mulheres,
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2006; RANGEL, Marcelo de Mello; ARAUJO, Valdei Lopes de. Do giro linguístico ao giro ético-político. História da
Historiografia, Ouro Preto, n. 17, abril /2015; CEZAR, Temistocles. Hamlet Brasileiro. Ensaio sobre giro-linguístico e
indeterminação historiográfica (1970-1980). História da Historiografia, Ouro Preto, n.17, abril/2015.
15 GLADSTONE, Marcos. A Bíblia sem preconceitos. 2ª ed.. Igreja Cristã Contemporânea, RJ: 2010, p. 10.

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e/ou compreensão equivocada dos textos bíblicos16 como Gênesis 18-19; Levítico 18, 22 e 20, 13;
Romanos 1, 21-28; 1 Coríntios 6, 9-10 e 1 Timóteo 1,1017. Por sua vez, o autor advoga uma possível
relação homoafetiva entre os personagens bíblicos Davi e Jônatas, principalmente na afirmação am-
bígua do texto de 2 Samuel 1, 26: “que sofrimento tenho por ti, meu irmão Jonatas. Tu tinhas para
mim tanto encanto, a tua amizade me era mais cara do que o amor de mulheres”18. A despeito da
palavra “irmão” constar no texto, há momentos de maior intensidade na narrativa da amizade entre
esses dois personagens, como os intensos abraços e beijos entre eles, citado no texto de I Samuel,
capítulo 20, 41-42, permitindo inferir uma ligação para além de uma amizade fraternal entre dois ra-
pazes, segundo a interpretação de teólogos adeptos da teologia inclusiva. Nas palavras de Gladstone:

por mais amigos que fossem, temos de convir que estamos diante de uma narrativa sui generis
[única] em se tratando de dois heterossexuais.[...] Afinal que união de dois homens faria com
que um príncipe (Jônatas), evitasse assumir sua posição de real sucessor do trono de Israel,
para que o amor da sua vida não encontrasse empecilho para reinar em seu lugar? [1 Sm,
13:17]. Imagine um príncipe ou homem de tanta importância social e econômica de um país,
ficando de tal forma angustiado, ao ponto de recusar se alimentar, simplesmente porque seu
pai está com ódio do seu amigo? [1 Sm, 20:32-34]19.

Desta maneira, Gladstone questiona e duvida do teor meramente fraternal dessa relação, lan-
çando mão da teologia inclusiva, ele busca os elementos característicos de uma histórica concepção
de relação homoafetiva no intuito de (re)inscrever a homossexualidade como uma orientação sexual
possível e até aprovada pelo deus judaico-cristão sob determinadas condições de possibilidades, como
a conjugalidade monogâmica. Deste modo, temos um litígio interpretativo e argumentativo, como
sugere Keith Jenkins20, nos usos e apropriações dos textos bíblicos sobre ou em torno das homosse-
xualidades, ou no termo corrente, homoafetividade. Para Gladstone:

a Bíblia não é homofóbica, assim como não é racista ou misógina”, ele diz. “No passado,
a Bíblia foi usada para justificar a escravidão e a opressão à mulher — mas não lemos
mais a Bíblia dessa maneira. E quando se trata de gays e lésbicas, já é hora de parar de

16 Ver: RODRIGUES ASSIS, Dallmer Palmeira. A homossexualidade desconstruída em Levítico 18,22 e 20,13. Dissertação (Mes-

trado em Ciência da Religião). Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2006.
17 Sobre as disputas interpretativas em torno dessas passagens bíblicas, sugiro ver o item “a teologia inclusiva, ponto por

ponto” em: CÉSAR, Marília de Camargo. Entre a cruz e o arco-íris: a complexa relação dos cristãos com a homoafetividade.
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BH: Editora Gutenberg, 2013, p. 135-160.


18 BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista e ampliada. 6ªimpressão, São Paulo, PAULUS, 2010, p. 433.

19 GLADSTONE, Op. Cit., p. 17.


20 JENKINS, Keith, A História Repensada. SP: Contexto, 2001.

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fingir que a Bíblia é homofóbica, porque não é — ela condena a promiscuidade, inde-
pendente da orientação sexual21.

Isso posto, indago: se é possível, na perspectiva de uma dada teologia inclusiva, articular e
vivenciar uma identidade gay/lésbica/trans e cristã22, como esses sujeitos racionalizam seus desejos e
afetos? Como conciliam uma histórica noção de liberdade sexual do movimento gay, e posteriormente
LGBTI+, com uma concepção de moralidade e conduta sexual cristianizada? Para responder essas
questões, focalizo alguns elementos dos discursos dos (as) líderes das igrejas inclusivas Cristã Con-
temporânea (ICC) e Comunidade Cidade de Refúgio (CR). Entendendo que eles não são meros refle-
xos dessas instituições, mas instituintes de uma vontade de verdade, de um modo de ser e estar no
mundo.
Para rastrear e localizar os discursos dessas igrejas, optei por “materiais da mídia” em diferen-
tes suportes como artigos jornalísticos no El Pais Brasil, vídeos no youtube, programas televisivos como
Superpop e panfletos, quando possível. Segundo Rosa Fischer, estudar “materiais da mídia e respectivas
práticas de veiculação e recepção”23 é uma maneira de historicizar “o que pode ver e o que se pode
dizer numa determinada época”24. Além disso, é observar as continuidades e descontinuidades do que
é dito e como é dito numa dada sociedade e em uma relação espaço-tempo. Ou seja, a mídia constitui
um espaço de visibilidade e produção de sujeitos, ela (con)forma uma determinada compreensão de
si e da realidade.
Deveras, reconheço que uma análise de conteúdo poderia conjugar outros elementos que
atuam na produção de sentido no interior da trama discursiva agenciada por cada um desses meios/ca-
nais de comunicação. Todavia, para responder as inquietações deste texto, decidi pela análise do dis-
curso, entendendo que “analisar discursos significa em primeiro lugar não ficar no nível apenas das
palavras, ou apenas das coisas; muito menos, buscar a bruta e fácil equivalência de palavras e coisas”,
mas é procurar “não o que estaria escamoteado, mas os modos de se fazer verem certas coisas num

21 RINALDI, Alfred Domenico. A Primeira Igreja Gay do Brasil Não Aprova Relacionamentos Abertos. Vice. Disponível
em:< https://www.vice.com/pt_br/article/78zkya/a-primeira-igreja-gay-do-brasil-nao-aprova-relacionamentos-aber-
tos> Acesso: 19/04/18.
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22 CÉSAR, Marília de Camargo. É possível ser gay e cristão? Época, 09/10/2013. Disponível em:

<https://epoca.globo.com/ideias/noticia/2013/10/e-possivel-ser-bgay-e-cristaob.html> Acesso: 18/04/18.


23 FISCHER, Rosa Maria Bueno. Trabalhar com Foucault - arqueologia de uma paixão. BH: Autêntica Editora, 2012, p. 133.
24 Idem, p. 134.

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determinado tempo”25. Dito de outro modo, é o potencial de circulação desses enunciados e as tensões
entre saber-poder que me fizeram elegê-los como objetos dessa reflexão.
Genealogicamente a ICC26 foi criada pelos pastores Marcos Gladstone e Fábio Inácio, em
10/09/2006, na Lapa, Rio de Janeiro. Uma das marcas dessa igreja é o ensino teológico como o livro
A Bíblia sem Preconceitos e Amor entre iguais em 10 lições, que busca matizar e elucidar às interpretações
consideradas homofóbicas dos textos bíblicos. Atualmente a ICC conta com templos no Rio de Ja-
neiro (Campo Grande, Centro, Duque de Caxias, Niterói, Nova Iguaçu e Catedral de Madureira), São
Paulo (Tatuapé e Santo André) e Minas Gerais (Contagem). Já a CR27 foi criada em 2011, na cidade
de São Paulo, pelas pastoras Lanna Holder e Rosania Rocha. Enfatizam também o estudo teológico e
a formação de seus líderes como pastores (as) e “líderes de louvor”. Atualmente a CR conta com
templos em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Campinas, Fortaleza, Praia Grande, Londrina, Natal e
Araçatuba.
De modo geral, essas duas igrejas articulam e replicam boa parte da cosmovisão cristã pente-
costal28 centrada na luta entre o bem e o mal, na “libertação de demônios” e dos vícios, nas orações
de cura e na busca por uma vida considerada santa. No entanto, como já pontuado, o diferencial
dessas igrejas se expressa na equiparação das identidades de gênero e orientação sexual no âmbito
religioso. Minha escolha por falar dessas duas denominações se deu pelo fato delas terem ganhado
maior visibilidade no meio televisivo a partir da participação de seus líderes e fundadores (as) em
programas de auditório como o Superpop29, debates em canais evangélicos30 e de noticiários como o
Caminhos da Reportagem31, da TV Brasil.

25 Idem, p. 138.
26 <http://igrejacontemporanea.com.br/site/quem-somos/historia.html> Acesso: 18/04/18.
27 < http://cidadederefugio.com.br/sobre-a-igreja/as-pastoras/> Acesso: 18/04/18.
28NATIVIDADE, Marcelo. Uma homossexualidade santificada?: Etnografia de uma comunidade inclusiva pentecostal.

Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 30, n. 2, p. 90-121, 2010, p. 91.


29 Exemplo dos pastores Marcos Gladstone e Fábio Inácio, fundadores da Igreja Cristã Contemporânea, no Rio de Janeiro. E

as pastoras Lana Holder e Rosana Rocha, fundadoras da Comunidade Cidade de Refúgio, em São Paulo. Frequentemente são
convidados/as a participar das discussões sobre religião e homossexualidade no Programa Superpop, apresentado por Lu-
ciana Gimenez, na RedeTV.
30 O pastor Marcos Gladstone participou do programa Antenados Na Geral, na rede de televisão Boas Novas, voltada para o
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público evangélico (http://boasnovas.tv/institucional/). O programa foi exibido no dia 20/1/2014. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=q3gRzQped2I > Acesso: 22/07/2017.
31 A edição intitulada Amai-vos uns aos outros, divulgada no dia 31/05/2016, traçou um panorama das igrejas que recebem o

público LGBTI+. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=a_GDgl5vk8k> Acesso: 20/07/2017.

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Além disso, ambas são ativas em práticas de evangelização e atração de novos fiéis como na
Parada do Orgulho LGBTI+, na Marcha para Jesus32 e na internet, a partir das redes sociais como
Facebook e Instagram. Na prática e sob o slogan “Sorria! Jesus te aceita”, a ICC tem ampliado o seu
número de membros e simpatizantes por todo Brasil. Além disso, seus líderes fundadores são oriundos
de denominações tradicionais como Igreja Congregacional, Universal do Reino de Deus33 e Assem-
bleia de Deus, no caso das Pastoras da CR. Isto é, utilizam-se de táticas e estratégias aprendidas em
suas antigas igrejas no intuito de propagar e expandir suas novas denominações. Nas palavras do
sociólogo Coelho Júnior:

uma igreja inclusiva, assim como qualquer outra denominação evangélica, é construída
mediante retalhos, pedaços de várias outras igrejas, experiências de vida de seus líderes
em segmentos anteriores, montando uma espécie de mosaico com discursos que ora
relembram os velhos preconceitos, em outro momento rompem com a opressão, cons-
truindo algo por demais “original”34.

De acordo com Foucault, o discurso não é inocente e muito menos uma tradução das lutas ou
dos sistemas de dominação, pelo contrário, ele é o alvo, “aquilo por que, pelo que se luta, o poder do
qual nos queremos apoderar”35. Isto posto, identifico uma disputa em dois níveis. O primeiro se dá
entre as denominações inclusivas e as igrejas tradicionais (‘evangélicas” e católica). Esse embate ocorre
no campo discursivo em torno da (re)interpretação dos textos bíblicos entendidos como proibitivos
e condenatórios as homossexualidades no âmbito do mercado religioso brasileiro através da publica-
ção de livros, dvds, Bíblias de estudos36 e seminários. O segundo nível acontece entre as próprias
igrejas inclusivas que não apresentam uma visão uníssona quanto o exercício da homaofetividade, fé
cristã e politização. Ou seja, como essas comunidades lidam com as demandas do movimento
LBGTI+ em suas práticas e discursos?

32 DESIDÉRIO, Mariana. Conheça a história dos fiéis homossexuais que optaram por se sentirem aceitos na Parada Gay.

EXAME. 2015. Disponível em: < https://exame.abril.com.br/brasil/os-evangelicos-que-preferem-a-parada-gay-a-mar-


cha-para-jesus/ > Acesso: 22/04/18.
33 Veja a entrevista do ex-pastor da Igreja Universal, Fábio Inácio. In: HIRAOKA, Ricky. ‘Doei todo meu salário para

tentar me curar’, diz pastor de igreja gay. Época, 25/04/13. Disponível em: <https://vejasp.abril.com.br/cidades/igreja-
gay-entrevista-pastores/> Acesso: 19/04/18.
34 COELHO JÚNIOR, Carlos Lacerda. “Somos as ovelhas coloridas do Senhor!”: uma análise sociológica acerca da vivência
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homossexual em uma igreja inclusiva. Dissertação (Mestrado em Sociologia), UFAL, Maceió, 2014, p. 29.
35 FOUCAULT, Michel. A Ordem do discurso, Edições Loyola, 17ª Ed. SP, 1996, p. 10.
36 No Brasil já temos duas bíblias comentadas por pastores e teólogos gays, são elas: Bíblia de Estudo Teologia Inclusiva,

comentada por Alexandre Feitosa, Oásis Editora, 2017; Bíblia graça Sobre Graça, Edição independente, 2017.

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“Leito sem mácula”: homoafetividade santificada?

Na esteira do pensamento foucaultiano, entendo que a sexualidade é um constructo social e


historicamente forjado a partir de uma complexa trama regulatória composta por saberes, poderes,
interdições, táticas e estratégias diversas e localizadas, inclusive pelo discurso religioso. Para o filósofo,
“a sexualidade não é o elemento mais rígido, mas um dos dotados da maior instrumentalidade: utili-
zável no maior número de manobras, e podendo servir de ponto de apoio, de articulação às mais
variadas estratégias”37. Assim sendo, quais as táticas adotadas por essas igrejas inclusivas na composi-
ção de uma conduta moral cristã para os seus fiéis?
Como dito anteriormente, muito dos enunciados mobilizados por esses atores sociais origi-
nam-se de suas vivências e experiencias passadas, ou seja, daquilo que Coelho Júnior denomina de
retalhos ou pedaços de antigas práticas apreendidas em denominações tradicionais. Em seu canal no
youtube, intitulado Clínica do Coração, o Pastor Marcos Gladstone busca tratar de temas como “carência”,
“infidelidade”, “como esperar a pessoa certa” entre tantos outros assuntos. Um dos objetivos do canal
é “tratar sua afetividade para um amor sem preconceitos”. Em alguns dos seus pronunciamentos,
Marcos Gladstone aconselha ou recomenda que os fiéis exerçam a sua afetividade com responsabili-
dade. No vídeo, “sexo antes do casamento”38, o autor afirma que não há uma condenação bíblica
contra o sexo antes do casamento, porém, ele recomenda que os fiéis homoafetivos aprendam a se
valorizar e evitar o sexo casual (vulgo “pegação”), pois “barateiam demais o momento da intimidade
sexual”, afirma Gladstone.
Argumento semelhante é descrito em um dos panfletos distribuídos aos membros e visitantes
da ICC. Ao falar sobre “Santidade”, diz:

para nós não é pecado ser homossexual ou heterossexual, mas sim como cada um dirige a
sua sexualidade. Nosso corpo e atitudes devem ser santos, pois somos templo do Espírito
Santo. Inclusive, para nós a “intimidade sexual” só deve acontecer dentro de um relaciona-
mento de amor e fidelidade39.
164

37 FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade I: A vontade de saber. RJ. 21ª reimpressão; Edições Graal, 1988, p. 114.
38 GLADSTONE, Marcos. Sexo antes do casamento. <https://www.youtube.com/watch?v=W_3WIXzZBq0&in-
dex=9&list=PLu5-EYMBggRfxjN5UakOnENt_ysFtYCen&t=0s > Acesso: 19/04/18.
39 Igreja Cristã Contemporânea. Disponível em: < https://bit.ly/2HecKl9> Acesso: 19/04/18.

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De modo semelhante, as pastoras da CR, em entrevista ao El Pais Brasil afirmam que: “O sexo
só é abençoado por Deus quando ele é debaixo de uma aliança”40. Ao ser questionado sobre as novas
configurações e possibilidades de relacionamento contemporâneo entre casais gays, Gladstone é taxa-
tivo: “os relacionamentos abertos, não são legítimos”. Pois “para nós, o que não é condenado por
Deus é um relacionamento de amor e fidelidade entre duas pessoas, sejam elas do mesmo sexo ou
não”41. Observo aqui uma operação hierárquica entre orientação sexual e valorização da conjugalidade
monogâmica. Isto é, se o “o pecado” não está mais na “condição homossexual”, agora, nessa pers-
pectiva inclusiva, o “erro” está no governo de si, no modo como os sujeitos administram seus desejos,
afetos e prazeres. Equaliza-se a homossexualidade à heterossexualidade, mas repele a bissexualidade e
a pansexualidade42.
Se o pronunciamento é um “ato ou efeito de publicamente expressão uma opinião, manifestar-
se e, defesa de dadas teses ou posições [...] religiosas, [...]. Trata-se de exprimir-se verbalmente; de
proferir ou articular um discurso”43 por meio de vários suportes como um artigo, um programa de tv
ou um sermão. Compreendo que as opiniões e posições emitidas publicamente pelos (as) líderes dessas
denominações não são aleatórias e exclusivas ou restritas do âmbito pessoal e/ou privado, pelo con-
trário, ao se colocarem publicamente como pastores (as) gays/lésbicas, reivindicando autoridade pas-
toral e falando de suas concepções religiosas e visões de mundo, objetivam: 1) defender códigos mo-
rais como uma tática de aproximação e/ou coexistência com outras denominações tradicionais que
ainda os olham como “hereges”, “falsos”, disputando o mercado da fé no Brasil; 2) atrair diversas
pessoas que por causa de sua orientação sexual e/ou identidade de gênero se afastaram de comunida-
des tradicionais, no intuito de expandir suas denominações e números de fiéis; 3) a partir da equipa-
ração homossexualidade — heterossexualidade, defendem e afirmam a interposição/conjunção da
identidade cristã e gay/lésbica/trans na pós-modernidade. Apresentam como um modelo possível a vi-
vência LGBTI+ cristã, materializando alguns dos anseios de uma parcela desta população que almeja
exercer uma religiosidade cristã de forma plena, ocupando também posições de comando nessas igre-
jas inclusivas.

40 ROSSI, Marina. Lésbicas, casadas e pastoras de uma igreja evangélica. El Pais Brasil, São Paulo, 10/03/15. Disponível
em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2015/03/02/politica/1425335261_284235.html> Acesso: 19/04/18.
41 RINALDI, Op. Cit.
165

42 Cinco coisas que você precisa entender sobre a pansexualidade. iGay. Disponível em: <http://igay.ig.com.br/2017-06-

08/pansexualidade.html > Acesso:19/04/18.


43 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Discursos e Pronunciamentos: a dimensão retórica da historiografia. In:

PINSKY, Carla Bassannezi; LUCA, Tânia Regina de. (Org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009, p. 225.

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Segundo Natividade, há nos discursos e nas práticas dessas comunidades uma vontade de ver-
dade, composta por táticas e estratégias de convencimento na elaboração de um “modelo específico
de homossexualidade, conjugando ideias de respeito e igualdade entre homossexuais e heterossexuais
ao tema da ‘vida cristã’”44. Isto é, esses discursos, ainda que positivos e propositivos quanto à conci-
liação das identidades gay/lésbica/trans e cristã, atuam e funcionam como um modo de direcionar as
consciências, (re)elaborando uma outra relação de si para consigo entre e sobre os fiéis a partir das
práticas do poder pastoral. Assim, cria-se, por meio de jogos de inclusão-exclusão, outras margens
identitárias. Outro exemplo de (re)inscrição na norma ocorre no artigo, “quer se casar na Contempo-
rânea?”45. Em que é recomendável aos casais:

1.Viverem um relacionamento monogâmico de amor e fidelidade diante de Deus apresen-


tando bom testemunho perante todos.
2.Terem pelo menos 1 (um) ano de relacionamento. Entendemos ser prematuro casar com
pouco tempo de namoro, pois pularão etapas importantes na construção da vida a dois, isso
ocasionará problemas mais tarde no casamento. Outrossim, um relacionamento curto não
está amadurecido o suficiente para assumir um compromisso tão sério para toda a vida.

Segundo Kleber Prado Filho, ao analisar o exercício do poder pastoral na política de identidade
contemporânea, para Foucault, o

que nos mantem presos ao poder não é a aplicação da lei, mas o jogo da norma. A lei opera
entre nós como “ultima barreira do poder”, mas antes do seu acionamento somos sujeitos
de práticas bem mais finas e subjetivantes do poder, envolvendo moralizações, normaliza-
ções, jogos de verdade, regulações de conduta cotidianas, pequenas conduções do/pelo ou-
tro, governo ético sobre si mesmo, estetizações e trabalhos sobre si mesmo46.

Como aponta Margaret McLaren, um dos efeitos negativos de se apegar a uma determinada
identidade “é a tendência à homogeneidade do grupo; por focar em um aspecto particular da identi-
dade”47, neste caso, a orientação sexual. Em um processo de ressignificação e/ou reapropriação de
uma normativa atribuída aos casais heterossexuais na epístola aos Hebreus: “o matrimônio seja hon-
rado por todos, e o leito conjugal, sem mancha, porque Deus julgará os fornicadores e os adúlteros”48,

44 NATIVIDADE, Op. Cit., 2010, p. 103.


45 Disponível em: <http://igrejacontemporanea.com.br/site/artigos/quer-se-casar.html> Acesso:19/04/18.
166

46 PRADO FILHO, Kleber. A política das identidades como pastorado contemporâneo. In: CANDIOTTO, Cesar;

SOUZA, Pedro de. (Org.). Foucault e o cristianismo. 1ed., Belo Horizonte: Autêntica, 2012, p. 112.
47 MCLAREN, Margareth A. Foucault, Feminismo e Subjetividade. São Paulo: Intermeios, 2016, p. 158.

48 BÍBLIA DE JERUSALÉM. Op. Cit., p. 2100.

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compreendo que os líderes/fundadores da ICC e da CR, ao aludir ao denominado “namoro santo”
(sem sexo antes do casamento) e “combate a promiscuidade” (crítica ao sexo casual), naturalizam e
(re)inscrevem como espaço privilegiado de fruição do desejo a conjugalidade monogâmica, corpori-
ficando por meio de discursos e práticas uma homoafetividade administrada, inteligível e regulada49.
Nas palavras de Foucault, “não existe um discurso do poder de um lado e, em face dele, um
outro oposto”, ou seja, “podem existir discursos diferentes e mesmo contraditórios dentro de uma
mesma estratégia; podem, ao contrário, circular sem mudar de forma entre estratégias opostas”50.
Deste modo, entendo que apesar da positividade da teologia inclusiva em relação a homoafetividade,
com efeito, repõe-se a norma, os códigos morais e sexuais tão caros aos movimentos de liberalização
sexual no Brasil desde os anos 197051. Com isso, perpetua-se uma relação de saber-poder-prazer no
direcionamento das consciências e no governo dos corpos, afetos e desejos.
Em sua tese sobre a vivencia religiosa na Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo,
a antropóloga Fátima Weisss de Jesus destaca um maior trânsito de gêneros nessa comunidade do que
na ICC, por exemplo. Um dos seus argumentos é que “a sexualidade é um aspecto central na teologia
da ICM e como sua perspectiva é incentivadora dos trânsitos de gênero e, em particular, como a
feminilidade é um valor central para a vivência religiosa”52 nesta denominação. Em seu trabalho de
campo, a autora relata a presença de muitos homens gays afeminados na ICM, muitos “montados”
como drag queens, assim como a presença de travestis. De acordo com Vencato, ao analisar a corpora-
lidade e performance de drag queens em territórios gays da ilha de Santa Catarina, a “expressão se montar
é bastante utilizada pelas drag queens. Pode-se dizer que uma drag queen não se veste ou maquia, ela se
monta. Montar-se é o termo nativo que define o ato ou processo de travestir-se, (trans)vestir-se ou pro-
duzir-se”53.
Nesse prisma, argumenta Weiss de Jesus:

49 É pertinente observar como o reconhecimento do casamento homoafetivo no Brasil colocou em disputa noções de

moralidade, família e direito. Ver: COITINHO FILHO, Ricardo Andrade. RINALDI, Alessandra de Andrade. O Su-
premo Tribunal Federal e a “união homoafetiva”: onde os direitos e as moralidades se cruzam. Civitas, (Porto Alegre), v.
18, p. 25-39, 2018.
50 FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade I: A vontade de saber. RJ. 21ª reimpressão; Edições Graal, 1988, p. 112-3.
51 Ver: SIMÕES, Júlio Assis & FACCHINI, Regina. Do movimento homossexual ao LGBT. São Paulo: Editora Fundação

Perseu Abrano, 2009.


167

52 WEISS DE JESUS, Fátima. Unindo a cru e o arco-íris. Vivência religiosa, Homossexualidades e Trânsitos de Gênero na Igreja da

Comunidade Metropolitana de São Paulo. Tese (Doutorado em Antropologia Social), UFSC, Florianópolis, 2012, p. 13.
53 VENCATO, Anna Paula. Fervendo com as drags: corporalidades e performances de drag queens em territórios gays da Ilha de Santa

Catarina. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), UFSC, 2002, p. 9.

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Na ICM-SP, travestis e lésbicas encontram espaço no “grupo de louvor”, bem como assu-
mem outras funções na igreja e há uma constante valorização do “feminino”, aproximando-
a de sujeit@s divers@s, como travestis, transexuais, drag queens, público não corrente nas
outras “igrejas inclusivas”. Esta valorização e construção do feminino é parte daquilo que a
ICM chama de “teologia da inclusão radical”54.

Com esses exemplos é perceptível que apesar da ICM e ICC se definirem como inclusivas, os
modos e as práticas de atuação dos seus líderes e membros, no aspecto da identidade de gênero, são
distintos. Em diálogo com Natividade, Weiss reconhece e localiza as principais diferenças entre essas
duas comunidades e os processos de normatização empregados por elas na gestão dos corpos, dos
gestos, dos afetos, dos desejos e das expressões de gênero. Nas palavras da autora:

Um dos aspectos relevantes na diferenciação entre a minha pesquisa e a de Natividade é a


forma contrastiva com que os fieis de ambas as igrejas lidam com o que consideram como
“feminino”. Se na Igreja Contemporânea, a freqüência é dada majoritariamente por gays e
qualquer traço considerado de feminilidade é “condenado” (Natividade, 2008), na ICM-SP a
presença de drag queens e travestis é constante e, entre os gays a presença de aspectos consi-
derados “femininos” (expressos no “dar pinta”) são comuns mesmo entre as lideranças reli-
giosas. Bem como a presença de lésbicas, travestis e drag queens em espaços importantes na
hierarquia leiga da igreja e mesmo comportamento não “masculinizado” dos gays, apontam
para outras concepções e significações (valorativas) de femininos e masculinos, que circulam
entre homens e mulheres55.

Segundo Jaqueline de Jesus, “expressão de gênero” denota o modo como cada pessoa se apre-
senta, “sua aparência e seu comportamento, de acordo com expectativas sociais de aparência e com-
portamento de um determinado gênero”56, consequentemente, aqueles e aquelas que não se confor-
mam num dado registro das expressões de gênero, tende a ser “vigiado”, “podado”, para que expresse
uma postura social e historicamente considerada “discreta”. Ao evidenciar esses exemplos e dialogar
com o trabalho desses (as) autores (as), percebo continuidades nos jogos de aceitação/inclusão/ex-
clusão da chamada diversidade sexual e de gênero no âmbito religioso até aqui exposto. Como dito
anteriormente, o litígio interpretativo não se dá apenas entre igrejas inclusivas e tradicionais, mas, entre
elas mesmas. Constituindo-se em uma via de mão dupla, mostrando que as igrejas inclusivas também
são heterogêneas e fragmentadas, algo tão característico do mosaico denominacional existente no Bra-
sil contemporâneo57.

54 WEISS DE JESUS, op. Cit., 2012, p. 189.


168

55 WEISS DE JESUS, op. Cit., 2010, p. 140.


56 JESUS, Op. Cit., p. 94.
57 MARIANO, Ricardo. Mudanças no campo religioso brasileiro no censo 2010. Porto Alegre: Debates do NER, ano 14, n.

24, p. 119-137, jul./dez. 2013.

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Homofobia religiosa

Se por um lado, temos as igrejas inclusivas defendendo e legitimando uma amálgama identitária
entre cristianismo e diversidade sexual/gênero, por outro, temos algumas reações oriundas de líderes
ortodoxos como o teólogo e pastor presbiteriano Augusto Nicodemus e o pastor Silas Malafaia, este
com um discurso belicoso, de teor midiático e sensacionalista que toma como alvo primeiro de seus
sermões os ativistas da comunidade LGBTI+. Segundo Jaqueline Gomes de Jesus, a homofobia se
traduz por medo, aversão, rejeição e repulsa sobre pessoas gays e lésbicas, lesbofobia neste caso, assim
como a transfobia em relação as pessoas transexuais e/ou travestis.
Em um artigo publicado originalmente na revista Cristianismo Hoje, intitulado, Um Engano Cha-
mado “Teologia Inclusiva” ou “Teologia Gay”, Nicomedus argumenta que:

O padrão de Deus para o exercício da sexualidade humana é o relacionamento entre


um homem e uma mulher no ambiente do casamento. Nesta área, a Bíblia só deixa duas
opções para os cristãos: casamento heterossexual e monogâmico ou uma vida celiba-
tária. À luz das Escrituras, relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo são vistas não
como opção ou alternativa, mas sim como abominação, pecado e erro, sendo tratada como
prática contrária à natureza. Contudo, neste tempo em que vivemos, cresce na sociedade em
geral, e em setores religiosos, uma valorização da homossexualidade como comportamento
não apenas aceitável, mas supostamente compatível com a vida cristã. Diferentes abordagens
teológicas têm sido propostas no sentido de se admitir que homossexuais masculinos e fe-
mininos possam ser aceitos como parte da Igreja e expressar livremente sua homoafetividade
no ambiente cristão58.

Para Nicodemus, essa leitura inclusiva da Bíblia é de teor ideológico, ou seja, o ponto de partida
não é o texto bíblico em si, mas intenção do autor, a experiência subjetiva do/a leitor/a na pós-mo-
dernidade. Desta forma, o autor argumenta que as hermenêuticas pós-modernas59, como a teologia
feminista e gay, na verdade, são tentativas de relativizar princípios universais e imutáveis a partir da
expansão e consolidação das agendas dos movimentos identitários. Em suas palavras:
169

58 Disponível em: <http://tempora-mores.blogspot.com/2013/06/um-engano-chamado-teologia-inclusiva-ou.html>

Acesso: 05/07/18. (grifos meus).


59 Ver: NICODEMUS, Augusto. Hermenêuticas pós-modernas. Disponível em: <https://www.you-
tube.com/watch?v=ygnvt0BrU-k> Acesso: 05/07/18.

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Desde o Gênesis, passando pela lei e pela trajetória do povo hebreu, até os evangelhos e as
epístolas do Novo Testamento, a tradição bíblica aponta no sentido de que Deus criou ho-
mem e mulher com papéis sexuais definidos e complementares do ponto de vista moral,
psicológico e físico60.

Ao recorrer a uma histórica tradição hermenêutica de cunho reformado, apesar das atuais mu-
danças no âmbito teológico Luterano Internacional61, Nicodemus investe numa disputa interpretativa
para reafirmar concepções que, ainda hoje, concebem as homossexualidades como “pecado”, “abo-
minação” e as entendendo como resultado da “Queda”, narrada no mito do Éden. Não por acaso, em
16 de outubro de 2017, a Igreja Evangélica Luterana do Brasil, em resposta as mudanças aprovadas
pela Igreja Luterana Alemã, publicou uma carta62 se posicionando contra a ordenação pastoral femi-
nina e o casamento homoafetivo em suas comunidades.
Ainda para Nicodemus, o fato da chamada “teologia inclusiva” [apresentar] uma abordagem
segundo a qual, se Deus é amor, aprovaria todas as relações humanas, sejam quais forem, desde que
haja este sentimento” 63 , não justifica a conjugalidade monogâmica homoafetiva, pois se “Deus é
amor”, afirma o autor, também “é fogo consumidor”64, fazendo alusão ao texto de Hebreus 12, 29,
em que se recomenda ao fiel servir “a Deus de modo agradável”, neste caso, evitar os “pecados da
carne”, os desejos considerados infames, como a homossexualidade. Essa afirmação, critica direta-
mente a interpretação inclusiva defendida por Gladstone, mencionada anteriormente, em que se dois
homens ou duas mulheres se relacionam de modo exclusivo e em amor, tal relação seria aceita por
Deus.
Por fim, temos o pastor, teólogo e psicólogo Silas Malafaia. Com um discurso combativo e
belicoso, o mesmo se tornou uma figura recorrente nos debates públicos como a discussão do PLC
122, que buscava equiparar o crime de homofobia ao racismo, seus discursos contra a distribuição do
kit anti-homofobia pelo Ministério da Educação, que foi denominado vulgarmente de “kit-gay”, e a

60 Disponível em: <http://tempora-mores.blogspot.com/2013/06/um-engano-chamado-teologia-inclusiva-ou.html>

Acesso: 05/07/18.
61 Disponível em:<https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/10/1924996-herdeira-da-reforma-protestante-igreja-

luterana-na-alemanha-ordena-mulheres-e-abre-caminho-para-casamento-gay.shtml> Acesso: 05/07/18.


62 Disponível em:<http://www.ielb.org.br/sistema/uploads/postagens/4959/arqui-
170

vos/3dae49213e62be809b5dfb52b4240b88.pdf> Acesso: 05/07/18.


63 Disponível em: < http://tempora-mores.blogspot.com/2013/06/um-engano-chamado-teologia-inclusiva-ou.html>

Acesso: 05/07/18. (grifos meus).


64 BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista e ampliada. 6ªimpressão, São Paulo, PAULUS, 2010, p. 2100.

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sua atuação na audiência pública sobre o estatuto da família, etc.. Tudo isso contribuiu para constituir
e “consolidar a divulgação [de uma] nova identidade de crente-cidadão”65 a Silas Malafaia.
Inegavelmente, é notório que Malafaia capitalizou em seu favor o papel de defensor da “moral
e dos bons costumes”, tendo a comunidade LGBTI+ como o alvo primeiro de seus pronunciamentos.
Em uma breve busca no site Verdade Gospel66, é possível encontrar aproximadamente 400 menções ao
termo “gay”, o que inclui artigos, vídeos, entrevistas e algumas matérias que dão destaque a figuras
públicas aliadas ao Malafaia como o Senador, e também pastor, Magno Malta (PR-ES), o pastor e
também deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP) e a psicóloga ‘‘cristã’’ Marisa Lobo.
Um outro exemplo de sua atuação é o acalorado debate protagonizado por Malafaia, o desem-
bargador Fábio Dutra e os pastores Paulo Afonso, Augusto Miranda, Paulo César e Marcos Gladstone,
na Rádio Melodia67, em 27/11/2009, no Rio de Janeiro. De fato, como não é difícil supor, não houve
consenso, pelo contrário, termos como “heresia”, “abominação”, “erro” foram agenciados em diver-
sos momentos para invalidar toda e qualquer possibilidade de interposição entre fé cristã e a diversi-
dade sexual.
Em um dos seus pronunciamentos em Brasília, no ano de 2013, Malafaia criticou o Supremo
Tribunal Federal (STF) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por terem aprovado o casamento
homoafetivo. Sobre os ativistas LGBTI+ e a tentativa de punir discursos de ódio, Malafaia disse: “O
crime de opinião foi extinto e o ativismo gay quer dizer que a minha opinião sobre a união homoafetiva
é crime. Nos chamam de fundamentalistas, mas eles são fundamentalistas do lixo moral, o ativismo
gay é o fundamentalismo do lixo moral”68.
Nesse trecho, é perceptível o teor belicoso que Malafaia agencia no espaço público para de-
fender sua posição contrária a população LGBTI+, colocando seus princípios como mera “opinião”
e ocultando o seu projeto de poder, numa clara tentativa de neutralizar toda e qualquer possibilidade
de ampliação dos direitos sociais e a punição da homofobia, em todos os seus níveis, inclusive o
religioso.

65 CAMPOS, Roberta; GUSMAO, Eduardo Henrique; BARROS JUNIOR, Cleonardo. A disputa pela laicidade: Uma

análise das interações discursivas entre Jean Wyllys e Silas Malafaia. Religião & Sociedade, v. 35, p. 165-188, 2015, p. 169.
171

66 Disponível em: <http://www.verdadegospel.com/?tipo-busca=todosite&s=gay> Acesso: 05/07/18.


67 Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=W732Dh4mRKE> Acesso: 05/07/18.
68 Disponível em:< https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,em-ato-contra-gays-silas-malafaia-diz-que-uniao-ho-

moafetiva-e-crime,1039203> Acesso: 05/07/18.

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No geral, as igrejas tradicionais e/ou hegemônicas, afirmam que “amam o homossexual, mas
odeiam suas práticas”, isto é, algumas até acolhem gays, lésbicas e trans, porém, ao reduzirem a ho-
moafetividade ao ato sexual, acabam por eclipsar e esvaziar a sua humanidade. Uma das estratégias
discursivas utilizadas com recorrência é dizer que a permanência dos desejos homoafetivos mesmo
após um processo de “conversão”, exprimi “que a continuidade de desejos homossexuais depois de
uma legítima conversão não significa necessariamente uma derrota e nem que Deus falhou com
você”69, afirma Nicodemus. Para o teólogo, há uma diferença entre “pecado e tentação. A atração por
pessoas do mesmo sexo é diferente da prática de relações sexuais entre elas. A primeira é uma tentação,
a segunda é pecado. Tentação e pecado são duas coisas diferentes”70.
Natividade e Oliveira reconhecem que a homofobia religiosa se constitui em um “conjunto
muito heterogêneo de práticas e discursos baseados em valores religiosos” que atuam na desqualifica-
ção e controle da homoafetividade e transgeneridade. A homofobia religiosa não “se manifesta so-
mente no nível de percepções e juízos morais pessoais ou coletivos, mas envolve formas de atuação
em oposição à visibilidade e reconhecimento de minorias sexuais”71. Como citado acima, tais discur-
sos, por mais ‘progressista’ que possa parecer, acaba por repor as hierarquias sexuais. Segundo Edu-
ardo Meinberg, os discursos “punitivos e discriminatórios”, assim como as associações entre homoa-
fetividade e “pedofilia, perversão, doença e abominação [...] podem reverberar violenta e negativa-
mente na sociedade”, se materializando “com possíveis e execráveis episódios de violências físicas e
simbólicas” a pessoas trans e pessoas homoafetivas, assim como “nas intolerâncias internalizadas”,
que ocorre quando essas pessoas

passam a rejeitar a si mesmas por crerem em discursos patologizantes/psiquiatrizantes/pecadologizantes/demo-


nizantes, levando, em alguns casos, a traumas e suicídios (tentados ou consumados) ou à procura de ministérios
de “cura e libertação” e “conversão” de gênero e/ou orientação sexual/afetiva/identitária72.

Assim sendo, a homofobia religiosa não pode ser reduzida a uma mera questão de “opinião”,
pois ela tem efeitos reais sobre a vida, as subjetividades e os corpos da população LGBTI+. Por fim,

69 Disponível em: <http://tempora-mores.blogspot.com/2013/06/carta-um-ex-gay-tentado-voltar-atras.html> Acesso:


05/04/18.
70 Idem.
71 NATIVIDADE, Marcelo; OLIVEIRA, Leandro de. “Nós acolhemos os homossexuais”: homofobia pastoral e regula-
172

ção da sexualidade. Tomo (UFS), v. 14, p. 203-227, 2009, p. 207-8.


72 MARANHÃO Fº., Eduardo Meinberg de Albuquerque. 'É prá baixar o porrete!' Notas iniciais sobre discursos punitivos

/ discriminatórios acerca das homossexualidades e transgeneridades. Mandrágora (São Bernardo do Campo), v. 21, p. 19-
45, 2015, p. 76-7.

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apesar de comungarem de uma mesma identidade, ambos pastores evangélicos, Nicodemus e Malafaia
atuam em frentes específicas. O primeiro, na argumentação teológica e filosófica; o segundo, busca
atrair a opinião pública, particularmente os seus fiéis, construindo uma ampla rede de aliados (as),
apoiadores (as) e adeptos (as) de sua denominação Assembleia de Deus Vitória em Cristo (ADVEC), da
Associação Vitória em Cristo (AVEC) e consumidores (as) das publicações da Editora Central Gospel. Cada
um, numa rede especifica de discursos, saberes e práticas, acabam contribuindo para a sedimentação
da homofobia religiosa.

“Não levantamos bandeira”?!

A partir da prerrogativa de se constituírem como “igrejas para todos, sem preconceitos”, há


uma tentativa clara na prática da ICC e da CR de se moldarem/apresentarem como uma igreja cristã
comum e/ou convencional, para isso, os discursos sobre ou em torno das homossexualidades são
minimizados ou subsumidos em concepções como “Deus não faz acepção de pessoas” e “somos
todos filhos de Deus”. Em entrevista ao portal gospelprime, as pastoras Lanna Holder e Rosania Rocha,
ao serem questionadas sobre a CR ser uma igreja exclusiva ao público gay, respondem:

Holder: “não somos uma igreja de militância gay, não, nós somos a igreja do Senhor Jesus.”[E
tem o endosso de sua esposa]: “e você lá dentro da igreja, você vai ver que temos as bandeira
de São Paulo, do Brasil de Israel e a nossa bandeira da Cidade de Refugio, mas não temos
uma bandeira toda colorida, não fazemos uma acepção de pessoas. Temos famílias de hete-
rossexuais na igreja, com filhos, eles vêm e sentem a presença de Deus, e interagem com a
gente normalmente como seres humanos entende?!”73.

Na mesma entrevista, Rosania Rocha declara: “Batem conosco de frente, por que a gente não
veio falando da bandeira gay”. De modo semelhante, Gladstone reconhece o trabalho de outros gru-
pos de militância LGBTI+, mas, diz ele:

Não levantamos bandeira disso ou daquilo. Já temos muitos grupos que fazem isso muito
bem. Agimos de outra forma. Por exemplo, os grupos de militância trabalham na questão do
casamento entre pares do mesmo sexo. Mas na nossa igreja mostramos vários casais que
173

73 Disponível em: <https://noticias.gospelprime.com.br/entrevista-exclusiva-lanna-holder-rosania-rocha-homossexuali-


dade-cidade-refugio/ > Acesso: 19/04/18.

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tiveram sua união convertida em casamento, assim como crianças adotadas por casais ho-
mossexuais74.

Segundo Natividade, na etnografia sobre os anos iniciais da ICC, no Rio de Janeiro, os mem-
bros e principalmente os que atuavam na evangelização e divulgação da denominação discutiam sobre
os locais e a melhor maneira de promover a nova fé. Logo,

Era permitido evangelizar em portas e entradas de boates, bares ou outros pontos de socia-
bilidade homossexual. Contudo, uma instrução pastoral advertia quanto à entrada e perma-
nência nesses lugares. Embora membros da igreja pudessem eventualmente frequentar tais
locais, tal hábito não era bem visto, tanto pelas lideranças quanto por uma boa parte de fiéis.
Essa atitude era especialmente repudiada quando associada a uma situação de evangelismo,
cujo objetivo era “levar a Palavra”75.

Geralmente, os espaços historicamente associados à população LGBTI+ como saunas, bares


e boates, são vistos por essas lideranças como locais de ‘promiscuidade’, de “influência do mal”, que
podem desviar o fiel, macular o seu testemunho e corromper sua fé. Dessa maneira, se configura uma
divisão do espaço público entre lugares considerados “santos” e “profanos”. O chamado “gueto”, de
certa forma, é demonizado, considerado inadequado e até proibido ao fiel gay/lésbica/trans. Com isso,
forja-se uma dupla moral. Porquanto, se esses lugares historicamente se constituíram nos principais
espaços onde gays, lésbicas, travestis e bissexuais podiam expressar sua sexualidade livremente sem
temer às violências e olhares de reprovação da maioria heterossexual, ao conectar a identidade cristã
com a diversidade gênero-sexual, muitas dessas igrejas se apropriam e até potencializam uma moral
ortodoxa, entendida como um conjunto de valores, de hábitos e práticas característicos desse “novo
nascimento” proporcionado pela adesão a uma (in)determinada fé cristã.
Como já afirmei, a ICC e a CR valorizam a conjugalidade monogâmica, no caso da primeira,
tem-se desde 2012 o GAA FAC, Grupo de Apoio a Adoção Famílias Contemporâneas, que enfatiza
a constituição de novas famílias por meio da adoção76, contando com assessoria jurídica da própria
denominação. Outra estratégia para arrebanhar fiéis, desenvolvida pela CR, foi a organização de uma

74 Disponível em: <http://www.metodista.br/rronline/noticias/comportamento/2014/09/201csomos-muito-rejeita-


dos-pelas-igrejas-tradicionais201d-diz-fundador-da-igreja-crista-contemporanea> Acesso:19/04/18.
75 NATIVIDADE, Op. Cit., 2010, p. 99.
174

76 Ver: RINALDI, Alessandra de Andrade. Da homossexualidade à “homoafetividade”: trajetórias adotivas no Rio de

Janeiro. Interseções (UERJ), v. 16, p. 283-306, 2014; COITINHO FILHO, Ricardo Andrade. RINALDI, Alessandra de
Andrade. A “homoafetividade” no cenário adotivo: um debate antropológico. Mediações - Revista de Ciências Sociais, v.
20, p. 285-306, 2015.

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balada gay gospel, a Refúgio White77, para evangelizar gays e lésbicas e oferecer aos seus fiéis um
espaço de lazer e paquera sem os elementos considerados “pecaminosos” e/ou “libertinos” como o
consumo de álcool e sexo casual.

Considerações Finais

Mediante o exposto e respondendo as questões anteriormente apresentadas, diferente da ICM


que assume uma posição militante, levantando a bandeira pró LGBTI+, a ICC e a CR, buscam se
afastar de certos estereótipos atrelados aos espaços predominantemente LGBTI+ como a “promis-
cuidade”. Ao racionalizar os seus desejos e afetos como algo “natural”, “feito por Deus”, assim como
a heterossexualidade, mimetizam e replicam normas condicionantes da moral cristã. O que aponta
para os limites e tensionamentos na articulação de duas identidades historicamente divergentes. Com
efeito, o exercício da liberdade sexual, como proposto e defendido pelo atual movimento LGBTI+, é
visto com desconfiança e cautela. E apesar da positividade dessa intersecção entre homoafetividade e
fé cristã, é notório o jogo hierárquico entre essas narrativas na produção de outras subjetividades.
Em vista disso, é notório que a identidade gay/lésbica/trans - cristã é ambígua, pois se constitui
numa zona de fronteira entre parte do movimento LGBTI+ e o(s) cristianismo(s), configurando um
duplo pensar na interposição de duas posições de identidade historicamente polarizadas. Isto é, esta é
uma identidade que se constitui e permanece em constante tensão, pois se para parte do movimento
LGBTI+ essas comunidades religiosas buscam se reinserir na norma e evitam levantar bandeira ou
militar pela causa do movimento, por outro lado, as comunidades religiosas tradicionais olham para essas
igrejas inclusivas como “heréticas”, “falsas”, “abomináveis” e, em último caso, entendendo-as como
uma manifestação do “espírito do anticristo” agindo antes do “juízo final”.
Pois, no momento em que uma identidade ou uma verdade sobre o sexo é instaurada, se exclui
todas as outras identidades e possibilidades de existência. Dito de outro modo, a partir do instante
que se conjuga a identidade gay/lésbica/trans a uma conduta moral judaico-cristã, se corporifica um
jogo de inclusão e exclusão. A inclusão ocorre a partir da emulação de uma identidade religiosa, com
seus códigos de conduta, práticas de culto e crenças compartilhadas, assim, esses sujeitos sexo-diversos
175

77 Ver: <http://www.superpride.com.br/2014/05/conheca-a-balada-gay-gospel-com-open-bar-santo.html> Acesso:


19/04/18.

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se reivindicam cristãos como todos os outros, provocando fraturas nos discursos ortodoxos e deman-
dando respostas as suas demandas em outras comunidades de fé78. Pois quem pode negar a legitimi-
dade da conversão desses fiéis?! Já a exclusão, ocorre em dois níveis. O primeiro, como pontuei
anteriormente, é o não reconhecimento da legitimidade das igrejas inclusivas por suas congêneres
ortodoxas; o segundo, é entre a própria comunidade inclusiva, que por replicar um ideário de “vida
santa”, acaba por excluir os sujeitos que não compartilham dos mesmos códigos morais. Nesse cená-
rio, só duas possibilidades são bem quistas, a condição de solteiro ou casado, excluindo as outras
formas contemporâneas como relacionamento aberto e o poliamor. Por fim, fica evidente as tensões,
as táticas e estratégias presentes nos jogos discursivos protagonizados por essas comunidades inclusi-
vas na composição de uma identidade gay/lésbica/trans-cristã na contemporaneidade.

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_____. A Ordem do discurso, Edições Loyola, 17ª Ed. SP, 1996.

78 Dois exemplos de como o avanço da teologia inclusiva tem feito com que denominações históricas revejam seus posi-

cionamentos, abrindo-se para incorporar em seus quadros parte da população LGBTI+. Ver: Igreja Episcopal Anglicana
176

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Artigo recebido em: 24/04/2018 ♦ Artigo aprovado em: 10/07/2018


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